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2 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

FRENTE DE ESQUERDA NA FRANÇA EDITORIAL

“Política Perguntas
externa”? impensáveis
Como assim? POR SILVIO CACCIA BAVA

POR SERGE HALIMI*

Q V
uer se deseje ou não uma alian- Moscou e Pequim o monopólio das ivemos um momento da histó- breza. Isso acontece por toda parte.
ça de esquerda e dos ecologis- fake news, do apoio a “movimentos ria da humanidade em que o Mas vale dizer que o Brasil é o tercei-
tas para a eleição presidencial extremistas” ou da compra de “nos- capitalismo globalizado, con- ro país que mais perde impostos com
francesa do próximo ano, os sas empresas-chave”. Esquece, as- trolado pelos grandes grupos as remessas de lucros das multina-
termos desse debate confirmaram o sim, as inexistentes “armas de des- econômicos, e especialmente pelos cionais para paraísos fiscais, segun-
analfabetismo geopolítico da maior truição em massa” do Iraque, o apoio grandes grupos financeiros, impõe do a Tax Justice Network, algo como
parte dos jornalistas. Com efeito, su- ocidental e saudita à Frente Al-Nosra um modelo de organização de nossas R$ 82 bilhões por ano.3

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pondo-se que nenhuma divergência síria – filiada à Al-Qaeda – e o bandi- sociedades e da economia que aten- Na América Latina, nossos países
de política econômica e social impe- tismo norte-americano que inflige de unicamente a seus interesses: ma- são condenados à reprimarização da
ça as formações situadas à esquerda multas extravagantes às empresas ximizar seus lucros e seu poder sobre economia, e toda industrialização é
de Emmanuel Macron de fazerem concorrentes, chegando a obrigar a todos nós.1 combatida pelas grandes corpora-
uma frente contra ele já no primeiro Alstom a submeter-se à General Elec- Essa voracidade pelo lucro só en- ções. Perdemos autonomia e passa-
turno da eleição, podemos dizer o tric.2 Logicamente, seu texto exige contra limites vindos da regulação mos à situação de um novo tipo de
mesmo sobre a política externa? O também, como Donald Trump e Joe pública, isto é, das leis e da fiscaliza- colonização, que submete nossos
mais espantoso é que essa questão Biden, que os europeus “ponham fim ção por parte do Estado. Dado que es- países aos interesses dessas multina-
não tenha interessado a ninguém. E imediatamente ao projeto de gás ses atores capturaram os Estados na- cionais e dos países que as represen-
quanto às relações com os Estados Nord Stream 2” (ver pág. 30). Sugere cionais e mesmo os órgãos de tam no cenário internacional.
Unidos, a China e a Rússia; à política ainda que eles apoiem “a Ucrânia, às regulação internacional como as Na- Esse capitalismo predatório vê a
da França para o Oriente Médio, a voltas com a agressão militar de seu ções Unidas, o FMI, o Banco Mundial América Latina como um campo de
África e a América Latina; ao poder vizinho russo”. Ora, Kiev reclama e a OCDE, a regulação e a fiscalização exploração e expropriação, uma pla-
de fogo? No encontro de 17 de abril, principalmente sua adesão à Organi- ficaram precárias, tornando a ação taforma de extração de riquezas.
nenhum desses temas parece ter sido zação do Tratado do Atlântico Norte desses grandes grupos econômicos Nossas riquezas minerais, petróleo,
abordado pelos dirigentes de esquer- (Otan), uma aliança militar da qual cada vez mais predatória, espoliadora produções agrícolas e pecuária são o
da. E, longe de se surpreender com is- os ecologistas prometeram – uma de e destruidora do meio ambiente. E, que interessa. As condições de vida
so, a mídia preferiu entusiasmar-se suas “primeiras medidas”, caso che- com seu poder, mobilizam os recursos dos latino-americanos não lhes
com questões decisivas para o futuro guem ao poder – tirar a França... públicos para aumentar seus lucros. interessam.
do país, como a comida vegetariana O ex-ministro socialista Benoît A crise de 2008 concentrou o po- E aqui está o grande desafio. Para
nas cantinas escolares de Lyon, as Hamon assegura, apesar de tudo, der cada vez mais em poucas mãos. enfrentar esse capitalismo predató-
“reuniões não mistas” de um sindica- que os desacordos não são “tão nu- As fusões e incorporações criam me- rio e financeirizado é preciso fazer
to estudantil e a recusa de subvenção merosos entre as formações ecolo- gacorporações, levando empresas a frente às grandes corporações que
a um aeroclube de Poitiers. gistas de esquerda”. Quer dizer então ter um faturamento maior que o PIB operam em nosso território, impor li-
A coisa chegou a tal ponto que, que a França progressista poderia de muitos países, e os sistemas públi- mites. A começar pelos bancos. Mes-
quando o patrocinador da reunião adotar amanhã a política para a Chi- cos de regulação democrática se su- mo com a crise econômica, o desem-
unitária, Yannick Jadot, publicou na de Tóquio, a política para a Vene- jeitam a esses interesses poderosos. prego e as falências de pequenas e
uma análise de política externa neo- zuela de Washington, a política ára- Essas grandes corporações não médias empresas, “o Goldman Sachs
conservadora, seu conteúdo passou be de Tel Aviv e a política para a têm limites éticos para atingir seus espera um crescimento médio anual
despercebido.1 Diversas passagens, Rússia de Varsóvia?  objetivos. Sonegam impostos (um de 34% no lucro dos bancos brasilei-
que poderiam ter sido redigidas nu- terço do PIB mundial está em paraí- ros no primeiro trimestre deste ano”.4
ma sala do Pentágono, situam o diri- *Serge Halimi é diretor do Le Monde sos fiscais), degradam o meio am- Enquanto os brasileiros ficam
gente ecologista à direita de Macron. Diplomatique. biente que exploram, submetem ca- mais pobres, o faturamento do setor
Por exemplo, ele atribui “metade das deias inteiras de produção a suas agropecuário em 2021 deve ser 12%
1   Y annick Jadot: “Faire reculer l’influence des
tensões internacionais” à “agressivi- régimes autoritaires ne doit pas signifier s’en- imposições, sacrificam o pequeno e maior que em 2020 e estima-se que
dade crescente de regimes autoritá- gager dans une nouvelle guerre froide” [Con- médio produtor, oferecem produtos chegue a R$ 1 trilhão.
rios na China, Rússia e até Turquia”. trapor-se à influência dos regimes autoritários de má qualidade ao consumidor,2 Tomemos como exemplo a produ-
não significa iniciar uma nova Guerra Fria], Le
Seria de crer que, para ele, as provo- Monde, 13 abr. 2021. constituem monopólios ou oligopó- ção da soja, o principal produto agro-
cações nunca vêm dos Estados Uni- 2   Ver Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la lios que impõem seus preços, degra- pecuário brasileiro em termos de fa-
dos, da Arábia Saudita ou de Israel. loi... américaine” [Em nome da lei... norte-ame- dam as condições de trabalho e os sa- turamento, estimado em R$ 335,2
ricana], Le Monde Diplomatique, jan. 2017; e,
Percebe-se o mesmo estrabismo sobre a Alstom, o relato de Arnaud Montebourg lários dos trabalhadores, aprofundam bilhões para 2021.5 A cultura da soja
atlantista quando Jadot reserva a em L’Engagement, Grasset, Paris, 2020. as desigualdades e aumentam a po- demanda grandes extensões de terra,
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© Claudius

muitas vezes adquiridas de pequenos


proprietários que antes produziam
exportações, porque, com a queda da
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renda familiar do brasileiro, o consu-
to hoje como em momentos históricos
anteriores, os povos da América Lati-
reúne informações sobre cerca de 20
mil empreendimentos econômicos
comida na agricultura familiar; re- mo de carne no mercado interno vem na criaram e criam outros paradig- solidários. Apesar da importância,
quer uma quantidade enorme de caindo significativamente. A devas- mas para organizar sua vida e sua essas experiências não ganham es-
água, que deve ser preservada como tação ambiental para atender às de- produção. Temos muitas indicações cala, não se multiplicam, nunca se
um bem comum; utiliza agrotóxicos mandas externas compensa? do caminho a seguir. tornarão hegemônicas. Elas operam
e, com isso, envenena nossa comida e Os supermercados – um oligopó- No período anterior à colonização nas franjas da economia. Elas não
o meio ambiente; requer maquinaria lio que domina 86,1% do consumo europeia da América Latina, os povos têm poder.
e tecnologia sofisticadas e capital in- diário, impõe preços vis a seus originários construíram modos de Para criar novas relações sociais e
tensivo, o que deixa essa produção fornecedores e eliminou a quitanda vida e de produção marcadamente de produção e consumo é preciso en-
nas mãos do grande capital; requer do bairro, a venda, a mercearia e a coletivos, solidários, cooperativos e frentar essas grandes corporações
mão de obra especializada e, portan- floricultura, ou seja, acabou com o de um profundo respeito e cuidado que operam em nosso território. E
to, não gera empregos locais; deman- pequeno e médio comerciante – têm com a natureza, com todos os seres não há como fazê-lo sem rupturas,
da um volume enorme de energia pa- o mesmo desenho concentrador e vivos. A proposta do buen vivir vem sem enfrentar problemas estruturais
ra exportar seus produtos para o excludente. A maior rede em fatura- dessas concepções e práticas. do país. As tentativas de reforma
outro lado do planeta. Seus lucros vão mento, o Carrefour, multinacional Já os quilombolas no Brasil adota- mostraram seus limites.
para o circuito financeiro internacio- com 498 lojas no Brasil e 72 mil ram também formas coletivas de Precisamos da ousadia de per-
nal, logo não beneficiam o território funcionários, manda seus lucros produção e consumo, cultura trazida guntar: o agronegócio interessa ao
em que é produzida. E, por força de para onde? da África e praticada nos territórios povo brasileiro? A mineração deve
seu poder político, conta com isen- O modelo vale para toda a econo- em que, num movimento de afirma- ser suspensa e proibida? Precisamos
ções tributárias, financiamentos pri- mia. Para os bancos, para a educação ção e resistência, os negros libertos parar com a extração do petróleo?
vilegiados, renegociação e perdão de e a saúde privadas, para o comércio erguiam povoados, organizavam a Precisamos de bancos municipais?
dívidas por parte do poder público. organizado em shoppings centers, produção e construíam autonomia. Precisamos impor limites ao tama-
A BRF, uma empresa nascida no para a produção de energia etc. No início do século XX, os imi- nho e ao poder das empresas? Preci-
Brasil e hoje presente em 140 países, É esse capitalismo predatório que grantes alemães assentados no Para- samos da reforma agrária? 
tem 90 mil trabalhadores, quarenta precisa ser enfrentado quando bus- ná e em Santa Catarina trouxeram
fábricas e um lucro anual que se me- camos superar a crise civilizatória valores e ideias de solidariedade,
1   L adislau Dowbor, O capitalismo se desloca:
de por bilhões de reais, sendo a maior que destrói a nós e a natureza. Não se cooperação, igualdade e justiça, as- novas arquiteturas sociais, Edições Sesc,
produtora de alimentos do mundo. trata, portanto, de uma discussão so- sim como sua experiência política, São Paulo, 2020.
Pergunta: em que ela beneficia os bre economia. A discussão é sobre muitos deles com tradições anar- 2   Ver Jean-Baptiste Malet, O império do ouro
vermelho: a história secreta de uma mercado-
brasileiros? economia política, sobre as formas quistas e socialistas. Essa cultura se ria universal, Vestígio, São Paulo, 2019.
Já a JBS, uma das maiores produ- de organização social e produtiva traduziu na criação dos faxinais, uma 3   “ Brasil é 3º que mais perde com ida de lucro
toras de carne do mundo, que faturou que uma sociedade se dá. forma de propriedade coletiva onde de múltis para paraísos fiscais”, Valor Econô-
mico, 12 abr. 2021.
R$ 270 bilhões em 2020 e é acusada de O modelo neoliberal do capitalis- todos trabalham segundo suas possi- 4   “ Resultado dos bancos”, Valor Econômico, 19
promover o desmatamento na Ama- mo global é hegemônico, mas nem bilidades e o que produzem é dividi- abr. 2021.
zônia, é avaliada em R$ 83,9 bilhões e por isso destrói todas as formas de or- do segundo suas necessidades. 5   w ww.valor.com.br/agro “Da porteira para
Dentro”, Fonte: Ministério da Agricultura.
teve um crescimento de 223% desde ganização da sociedade e de produ- O mapeamento da economia soli- 6   “Joesley e Wesley Batista retomam depoimen-
2017.6 O bom desempenho se deve às ção dos bens necessários à vida. Tan- dária no Brasil, concluído em 2013, tos”, Valor Investe, 19 abr. 2021.
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CAPA

Ultraprocessados,
ultraesfomeados e o sistema
agroalimentar moderno
Alguns parágrafos são suficientes para mostrar como o sistema agroalimentar dominante e o agronegócio andam junto
com os alimentos ultraprocessados e formam uma trindade indissolúvel que causa desequilíbrio ambiental, insegurança
alimentar, fome, doenças, desigualdades sociais e desesperança

POR ELAINE DE AZEVEDO*

O
agronegócio faz parte do siste-
ma agroalimentar hegemôni-
co, também chamado de con-
vencional ou moderno. É um
sistema porque tem muitas partes in-
terconectadas, cujo objetivo não é
produzir soberania nem segurança

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alimentar. É, na real, uma dinâmica
de caráter econômico que busca alta
produtividade de alimentos de baixa
qualidade e alta durabilidade e gera
concentração de renda para poucos e
desequilíbrio ambiental.
O sistema se inicia em grandes
áreas de terras expostas por ecossis-
temas destruídos e florestas queima-
das, que excluem os pequenos agri-
cultores e acabam com a possibilidade
de uma divisão fundiária mais equi-
tativa. O solo nu e empobrecido é pre-
parado com o uso intenso de fertili-
zantes à base de NPK, que promovem
© Mauro Pinheiro
o cultivo de monoculturas fragiliza-
das, e, como todo organismo malnu- los, nossa água e nossa soberania. O tantes procedimentos industriais, protegidos por embalagens atraentes
trido e solitário, sofre e fica vulnerá- destino desses grãos é, majoritaria- como irradiação, secagem, refina- e rótulos de “saudáveis”, “funcio-
vel, atraindo os diversos indicadores mente, virar proteína animal ou agro- mento, altas temperaturas e pres- nais”, “lights”, “diets” e “naturais”, os
desse desequilíbrio: insetos, larvas, combustível. Até aqui o sistema pode são, apertização e hidrogenação. produtos das monoculturas são ven-
ácaros, fungos e plantas invasores – ser também chamado de agronegócio. Depois de sofrerem os impactos des- didos nas grandes redes varejistas.
simplificadamente chamados de Se trocar as monoculturas de grão ses procedimentos, os alimentos Isso tudo acontece com o apoio da
“pragas da agricultura”. por extensas áreas de capim para re- perdem qualidade e precisam de mídia, que fomenta a ilusão dos con-
Para combater essas doenças, na banhos bovinos criados no pasto, uma maquiagem. Assim, para corri- sumidores e a corruptibilidade de go-
verdade um desequilíbrio artificial- com ração feita de grãos e drogas ve- gir as imperfeições, acrescentam-se vernos e parlamentares, insensíveis
mente causado, o sistema utiliza agro- terinárias ou por aves e suínos confi- vitaminas, minerais e aditivos quí- aos apelos ambientais e de saúde co-
tóxicos: pesticidas, nematicidas, fun- nados sobrevivendo graças a antibió- micos sintéticos – corantes, aroma- letiva do povo que os elegeu.
gicidas, herbicidas e outros parentes ticos, temos o sistema da carne tizantes, emulsificantes etc., para O sistema agroalimentar não aca-
da família cida, um sobrenome origi- industrial. Este termina nos frigorífi- dar cor, sabor, crocância, odor, ma- ba aqui. Torna-se cúmplice da lógica
nário do latim que significa “morte”. cos para oferecer proteína animal pa- ciez e aparência de comida perdidos hospitalocêntrica que transpassa o
Para cultivar e colher nas grandes ra poucos aqui e para muitos lá fora. durante o processo industrial. E essa binômio saúde/doença e da indústria
áreas de monoculturas que interferem O sistema continua quando esta- indústria também utiliza restos de médico-farmacêutica, que oferece
na biodiversidade e envenenam não só ciona caminhões de cana, soja, mi- carne e leite para produzir produtos procedimentos e medicamentos para
os cultivos, mas também as águas, os lho e trigo nos pátios da indústria cárneos e lácteos de baixa qualidade diagnosticar e tratar as doenças e os
solos e o ar, o sistema precisa de ma- alimentar, que se abraça com a in- e mais acessíveis. dissabores causados por esses produ-
quinário e emprega poucos humanos. dústria química para transformar E assim, mascarados com poucos tos do agronegócio, mais conhecidos
Além disso, faz uso de transporte ba- monocultura em alimentos que du- grãos integrais, açúcares, sal, gordu- como alimentos ultraprocessados.
seado em petróleo para levar essas rem muito nas prateleiras, produ- ras hidrogenadas, vitaminas e sabo-
culturas a longas distâncias; às vezes zam saciedade e adição, custem pou- res artificiais, sob as promessas de SISTEMA AGROALIMENTAR,
ultramar, bem longe de sua origem. co e iludam os comedores. um corpo perfeito, endossados por ULTRAPROCESSADOS E DOENÇAS
Seguem junto com a exportação nossa Para que durem muito, o sistema estudos científicos financiados pela Entre os desequilíbrios causados por
paisagem, a fertilidade de nossos so- os torna estéreis por meio de impac- própria estrutura que os produz e esses alimentos envenenados e ultra-
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processados estão a obesidade, de dos com terra, herança ou acesso a semprego rural, destruição ambien- Esse show de horrores acontece
um lado, e a insegurança alimentar e educação e saúde, e no campo, nas tal, doenças, insegurança alimentar sob o aumento das taxas de serviços
a desnutrição, de outro. florestas e nas cidades passam fome e fome nos países em desenvolvi- básicos (água, eletricidade e gás), a
Além desse quadro paradoxal, po- ou só comem alimentos de alta densi- mento. E, à frente, o maestro, nosso desestruturação do Sistema Único de
demos relacionar o consumo desses dade energética, envenenados, de conhecido neoliberalismo. Saúde e o corte do auxílio emergen-
alimentos, incluindo os in natura baixo custo e qualidade, que promo- Da parte do Estado, o presidente cial e em meio à maior pandemia e
convencionais, a diversos tipos de vem saciedade, insegurança alimen- do Brasil tem assumido as cláusulas crise sanitária mundial, que já matou
câncer, cujas taxas aumentam a cada tar e diversas enfermidades supraci- de seu acordo nesse sistema. Desde mais de 400 mil brasileiros.
ano; imunodepressão; desordens tadas. Os mesmos alimentos 2019, o governo desestrutura as polí-
neurológicas, desde enxaquecas até ultraprocessados que, por incrível ticas de segurança alimentar e de QUEM RESPONSABILIZAR?
depressão, suicídio, Alzheimer, autis- que pareça, também seduzem mui- bem-estar social que beneficiaram A multiplicidade de atores e a com-
mo, deficiências cognitivas e hipera- tos que poderiam comer comida or- durante alguns anos quem produz plexa rede de poderes acabam por
tividade em crianças; esterilidade em gânica, de origem familiar, local, va- comida no país, como o Bolsa Famí- possibilitar a esquiva da responsabi-
adultos; aborto e problemas congêni- riada e fresca. A comida de verdade. lia, o Pronaf e o Programa de Aquisi- lidade das incontáveis repercussões
tos em bebês; dermatoses; doenças ção de Alimentos (que já chegou a be- econômicas, sociais, ambientais e
respiratórias; anemia; resistência a neficiar 129,8 mil agricultores éticas e sobre a soberania, a seguran-
antibióticos e alergias. Esse é o saldo Depois de sofrerem familiares em 2012). No dia em que ça alimentar e a saúde coletiva resul-
de um pacote que inclui fertilizan- os impactos desses assumiu o governo, o presidente des- tantes desse perverso sistema. E, co-
tes+agrotóxicos+drogas veteriná- tituiu o Conselho de Segurança Ali- mo não é possível colocar a culpa em
rias+aditivos sintéticos, além de
procedimentos, os mentar e Nutricional e enfraqueceu a um ator, todos acabam isentos.
transgenia, irradiação e outras tec- alimentos perdem Política Nacional de Segurança Ali- Ironicamente, a responsabilidade
nologias agroalimentares. qualidade e precisam mentar e Nutricional. Extinguiu o de mudar o sistema acaba caindo so-
Destaco ainda as preocupantes de uma maquiagem Ministério de Desenvolvimento bre o consumidor, que, com seu po-
repercussões dos sistemas indus- Agrário, que apoiava a agricultura fa- der de compra, poderia mudar o qua-
triais de produção animal, sua alta miliar, e congelou diversas modali- dro. Nós, comedores, temos nosso
domesticação e o consequente estrei- AGLOMERAÇÃO DE dades de financiamento para esse se- papel nesse sistema, mas que esse
tamento indesejado entre pragas sel- (IR)RESPONSÁVEIS tor. Enquanto desmonta o sistema clamor não desvie a responsabilida-
vagens e atividades humanas que Metade do povo brasileiro fez um ca- que produz comida, o governo forta- de e acabe por culpabilizar a própria
vêm causando alerta sobre o surgi- samento desastroso com esse atual lece o Ministério da Agricultura, que vítima, vítima essa que não é o come-
mento de supervírus por cientistas governo em 2018. Uma relação bem agora destina 85% da verba da agri- dor privilegiado, que pode optar por

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como Rob Wallace em seu livro Pan- honesta na verdade, porque, durante cultura para o agronegócio de expor- alimentos de verdade, mas aqueles
demia e agronegócio: doenças infec- o turbulento contrato de núpcias, o tação de commodities e de produção que vivem em desertos alimentares,
ciosas, capitalismo e ciência (Elefante, atual presidente nunca escondeu que de ração e agrocombustíveis. Tam- sem emprego, sem políticas de bem-
2020). Esse biólogo alerta que, nas priorizaria os corresponsáveis pelo bém vem desqualificando a Compa- -estar, recebendo ocasionalmente
grandes granjas de criação animal agravamento da insegurança ali- nhia Nacional de Abastecimento e uma cesta básica repleta de alimen-
confinada, os microrganismos esta- mentar e pela destruição ambiental. sua política pública de criar estoques tos de baixa qualidade.
riam encontrando as melhores con- Os amantes? Muitos. O site De regulares para manter o preço baixo Diante dessa denúncia, que nos
dições para o aprimoramento de sua Olho nos Ruralistas destaca quase de alimentos básicos, como arroz e deixa desiludidos e impotentes, é
patogenicidade – a capacidade de in- duas dezenas de associações e sindi- feijão. Pressionada pelos interesses bom lembrar que existem outros sis-
fectar humanos – e para o aumento catos1 do agronegócio ligados à pro- das grandes empresas alimentares, a temas. E, para matar, não minimizar,
de sua virulência – a capacidade de dução de soja, algodão, cana-de-açú- ministra da Agricultura, Tereza Cris- a fome dos brasileiros e garantir sua
nos causar danos. car, leite, fumo e pecuária, além do tina, atacou recentemente o Guia Ali- saúde, só com um Estado que apoie
As gripes suínas, aviárias e a poderoso e discreto Instituto Pensar mentar da População Brasileira, que um sistema agroalimentar responsá-
doença da vaca louca ainda não fo- Agropecuária, que banca, silenciosa- desaconselha o consumo de ultra- vel. Essa possibilidade a gente define
ram suficientes para compreender- mente, a Frente Parlamentar Mista processados.2 Desde que foi eleito, o nas urnas. 
mos tais alertas. Esperamos que o da Agropecuária (apelidada de ban- presidente já liberou cerca de mil no-
novo coronavírus nos torne mais cada ruralista). vos agrotóxicos para agradar a aman- *Elaine de Azevedo  é nutricionista e so-
atentos e nos dê tempo para lutarmos De variados modos, os amantes tes e cafetões. Também ignora a vio- cióloga, professora da Universidade Fede-
contra aquele que é o maior impacto verde-amarelos são mantidos finan- lência no campo e a morte de ral do Espírito Santo e autora do livro Ali-
desse sistema e pode ser a cartada fi- ceiramente pelos cafetões do agrone- ambientalistas e agricultores e crimi- mentos orgânicos, do podcast Panela de
nal sobre a vida no planeta: o aqueci- gócio, que subsidiam essa onerosa naliza movimentos que lutam pela Impressão e da Escola Livre ComidaETC.
mento global, causado pelas maciças paixão entre o Estado e o agronegó- reforma agrária, um direito garanti-
1   A ssociação Brasileira dos Produtores de Se-
emissões de gases de efeito estufa, re- cio: empresas nacionais e multina- do na Constituição. Mais recente- mentes de Soja, Associação dos Produtores
sultado da queima de combustíveis cionais, como Bayer, Basf, DuPont, mente, já com cerca de 15 milhões de de Soja, Sindicato Nacional da Indústria de
fosseis e das mudanças no uso da ter- Syngenta, Aurora, Seara, 3M, JBS, desempregados, 19 milhões de brasi- Produtos para Defesa Vegetal, Associação
Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais,
ra, como o desmatamento, para pro- Nestlé, Frimesa, Danone, Suzano, leiros esfomeados, 9% da população Sindicato Nacional da Indústria de Produtos
duzir proteína animal, ultraproces- Klabin, Bunge, BRF, além de Souza em situação de insegurança alimen- para Saúde Animal, Associação Brasileira da
sados e concentração de renda. Cruz e Phillip Morris e entidades fi- tar grave, mais de 50% de famílias Indústria do Fumo, Associação Brasileira do
Agronegócio, Associação Brasileira de Pro-
nanceiras, como Banco do Brasil, obrigadas a cortar o consumo de dutores de Algodão, Associação Brasileira
TODOS QUE COMEM ESSES Santander, Itaú, Sicredi, B3 (ex-Bo- itens essenciais e com o país batendo de Proteína Animal, Sindicato Nacional das
PRODUTOS ADOECEM, MAS vespa) e o banco holandês Rabobank. novamente à degradante porta do Indústrias de Alimentação Animal, União da
Indústria da Cana-de-Açúcar, Indústria Bra-
QUEM MAIS SOFRE? E seus acionistas, consciente ou Mapa da Fome,3 o governo está inter- sileira de Árvores, Associação Nacional de
Quem mais sofre as repercussões inconscientemente. ferindo na mais antiga e eficiente po- Defesa Vegetal, Viva Lácteos, Confederação
desse sistema são os pequenos agri- Como se vê, são muitos atores que lítica pública de alimentação: o Pro- da Agricultura e Pecuária do Brasil, Conse-
lho das Entidades do Setor Agropecuário,
cultores familiares e as comunidades atuam no palco desse sistema agroa- grama Nacional de Alimentação entre outras.
tradicionais remanescentes do mun- limentar – o agronegócio, a mídia, a Escolar (Pnae). Ele exige a inserção 2   “Tereza Cristina determinou recuo sobre Guia
do rural, obrigados a migrar para as publicidade, a ciência, os supermer- de alimentos ultraprocessados na Alimentar brasileiro, mostram documentos”,
Época, 12 out. 2020.
franjas das grandes cidades para se- cados, o Estado. Todos dançam a mú- alimentação escolar e o aumento de 3   Dados do Inquérito Nacional sobre Inseguran-
rem explorados, junto com os grupos sica orquestrada pelas grandes cor- carnes e derivados, bem como a saída ça Alimentar no Contexto da Pandemia da
sociais mais vulneráveis socialmente porações que produzem insumos, de nutricionistas que zelam pela qua- Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segu-
– negros e, especialmente, mulheres tecnologia, maquinário, ultraproces- lidade nutricional e alimentar dos rança Alimentar (Rede Penssan). Disponível
negras – que não foram contempla- sados, concentração de renda, de- cardápios escolares. em: http://olheparaafome.com.br.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

QUANDO A DISTRIBUIÇÃO ORIENTA A PRODUÇÃO

O triunfo dos supermercados


no Brasil da fome
Hoje, as grandes redes de supermercados são garantia de encontrar o preço mais baixo, porque elas têm a condição
de espremer os fornecedores, levando-os inclusive a prejuízos e falências. Mas não sabemos se estaríamos pagando
mais barato caso não existissem. Elas remoldaram nosso sistema alimentar de uma forma tão profunda que é
impossível restituir as variáveis que nos permitiriam fazer essa conta

POR JOÃO PERES E VICTOR MATIOLI*

P
rimeiro de março de 2021. As permercados são garantia de que acabam pressionando os forne- um pouco mais profundo. Capitais do
ações do Assaí, braço de atacare- encontrar o preço mais baixo do dia, cedores. Enxoval, taxa de administra- Norte, Nordeste e Centro-Oeste foram
jo do Grupo Pão de Açúcar, es- porque elas têm toda a condição de ção, taxa de centralização, taxa de agraciadas com suas primeiras unida-
treiam na Bolsa de Valores com espremer os fornecedores, levando- crescimento, taxa de quebra, promo- des. Em pouco mais de uma década de
385% de valorização. Três semanas -os inclusive a prejuízos e falências. ções. Tudo isso tem um impacto sobre operação, os atacarejos viraram a ga-
depois, o rival Carrefour responde, Mas não sabemos se estaríamos pa- o preço final? Muito provavelmente. linha dos ovos de ouro das duas maio-
anunciando a compra do Big (ex-Wal- gando mais barato caso as grandes Mas os órgãos públicos que teriam res supermercadistas do país. Hoje,
mart) por R$ 7,5 bilhões. Não há mais redes não existissem. Elas remolda- possibilidade de produzir essa esti- algo entre 60% e 70% do faturamento
dúvida: estamos diante da terceira fa- ram nosso sistema alimentar de uma mativa seguem de olhos fechados. das redes sai desse tipo de loja.
se da guerra fria entre as duas gigantes forma tão profunda que é impossível Sempre foi assim. Abilio Diniz, res- A chegada da pandemia foi uma

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do supermercadismo brasileiro. Ago- restituir as variáveis que nos permiti- ponsável pela transformação do Pão grata surpresa para os executivos das
ra, a aposta é para saber quem conse- riam fazer essa conta. de Açúcar em império e expressão má- duas corporações, que divulgavam
gue se beneficiar mais do cenário de Nas últimas décadas, os super- xima do supermercadismo no Brasil, com largos sorrisos, no ano passado,
recessão, desemprego e inflação. mercados travaram uma guerra con- encontrou portas abertas no Palácio vendas recordes impulsionadas pela
Economistas, jornalistas e espe- tra feiras livres e sacolões. Foram do Planalto e no Ministério da Fazen- crise sanitária. Nas duas últimas se-
cialistas de diversas áreas têm busca- parte da ofensiva publicitária para da em todos os governos pós-ditadura. manas de março de 2020, quando os
do entender e explicar o brutal au- que as pessoas trocassem alimentos Entre 2002 e 2019, o BNDES desembol- brasileiros se familiarizavam com o
mento do estado de insegurança in natura por ultraprocessados, para sou R$ 8,5 bilhões para o setor de su- isolamento social, o Carrefour divul-
alimentar e nutricional do país. Um que limitássemos nossa diversidade permercados – R$ 8,4 bilhões ficaram gou um aumento de 20,9% no fatura-
inquérito recente da Rede Brasileira alimentar àquilo que interessa ter com Pão de Açúcar e Carrefour. mento das lojas. O Pão de Açúcar, por
de Pesquisa em Soberania e Seguran- nas gôndolas, excluindo alimentos Antes da compra do BIG, as duas sua vez, vibrava com o crescimento
ça Alimentar e Nutricional (Penssan) regionais, frutas de quintal e verdu- gigantes concentravam o mesmo fa- de 56,5% nas vendas do trimestre.
apontou que pelo menos 19 milhões ras brasileiras. Desafiaram leis tra- turamento das 78 concorrentes se- Aproveitando a comoção nacional
de brasileiros passaram fome nos últi- balhistas para impor um funciona- guintes – o próprio BIG havia deixado em torno da fome, a Abras lançou, em
mos meses de 2020. Mas, com raríssi- mento de 24 horas, sete dias por de figurar no ranking da Associação meados de abril deste ano, uma enge-
mas exceções, os supermercados não semana. E obrigaram agricultores a Brasileira de Supermercados (Abras). nhosa campanha: empresas e pes-
figuram na discussão. Essas corpora- se concentrarem ou quebrar. Nos anos 1990, por diferentes vias, soas físicas podem doar recursos que
ções tiveram êxito total no projeto de Estudo da ONG Oxfam mostra co- ambas empreenderam um primeiro serão utilizados em um cartão, com
se apresentar como uma plataforma mo a fatia de lucro dos supermerca- ciclo de expansão. Enquanto o Carre- crédito de R$ 100, distribuído a famí-
neutra, onde os fornecedores expõem dos tem aumentado na extensa ca- four recebia um grande aporte finan- lias em situação de vulnerabilidade.
os produtos e as pessoas compram. deia de abastecimento de alimentos, ceiro da matriz europeia, o Grupo Com um detalhe: o dinheiro só pode
A realidade, como de praxe, é mais chegando a 30% do total. De novo, Pão de Açúcar se capitalizava nas ser usado em supermercados. Uma
complexa. Em nosso livro Donos do não tem segredo: são os agricultores e Bolsas de Valores de São Paulo e Nova substituição do Bolsa Família, com
mercado. Como os grandes supermer- trabalhadores que ficam com cada York. Em 2007 e 2008, com a compra endereço certo.
cados exploram trabalhadores, forne- vez menos. O gigantismo dos super- dos atacarejos Assaí e Atacadão, o se- A seguir, separamos um trecho do
cedores e a sociedade (Elefante, 2020), mercados leva ao surgimento de um gundo ciclo ficou claro. livro Donos do mercado que apresenta
listamos uma série de razões para ecossistema de atravessadores pe- Até então, as duas redes não con- as contradições do atacarejo, o mais
duvidar dessa pretensa neutralidade. quenos, médios e grandes que repas- seguiam colocar os pés para fora dos brasileiro dos formatos de varejo.
A crença é de que a concentração no sam a mercadoria entre si até que grandes centros. Dependiam de for-
setor de supermercados seria benéfi- chegue à ponta final. Às vezes, há dois necer às classes médias e altas nas DONOS DO MERCADO
ca aos consumidores, uma vez que atravessadores antes de um alimento metrópoles do Sudeste. Eram um re- Meses antes da chegada da Covid-19
lhes permitiria oferecer preços mais chegar à Central de Abastecimento trato de tudo o que o paradigma do ao Brasil, em duas visitas ao Tribu-
baixos. Hoje, pesquisadores e órgãos (Ceasa), e mais um ou dois até chegar desenvolvimento cunhado nos anos nal Regional do Trabalho (TRT) de
de análise da concorrência do mundo ao varejista. Nos casos em que a rela- 1950 nos prometeu: lojas limpas, com São Paulo, acompanhamos pelo me-
todo têm revisto essa posição, mas o ção se dá diretamente com as gran- um cheiro neutro, música ambiente, nos duas dezenas de audiências que
brasileiro Conselho Administrativo des redes, não é exatamente uma boa temperatura controlada. O retrato de tinham as grandes redes varejistas
de Defesa Econômica (Cade) prefere notícia: apenas fornecedores grandes um mundo que parecia próspero. como reclamadas em processos tra-
manter os olhos fechados para um conseguem lidar com essa negocia- Os atacarejos mudaram esse pano- balhistas. Ouvimos histórias de fun-
sem-fim de variáveis. ção e, para não saírem perdendo, eles rama. As lojas sujas e desorganizadas, cionários de todos os cantos da capi-
A começar pela inflação, que tan- precisam espremer os agricultores. que oferecem preços baixos aos clien- tal, mas um cantinho específico
to tem preocupado as famílias brasi- Isso acontece porque os super- tes e lucros altos para os varejistas, apareceu repetidamente nos rela-
leiras. Hoje, as grandes redes de su- mercados impõem uma série de taxas aceleraram a marcha sobre um Brasil tos: Taipas.
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 7

Parada de Taipas, como é mais co- Tudo por ali é pensado para ter o tivo de dissidência, uma razão para colhimento brutal de renda: “Pela 1ª
nhecida, é um subdistrito de Piritu- menor custo possível. Nos super e hi- que o comprador buscasse outra loja. vez, há mais consumidores no ‘ata-
ba-Jaraguá. Ganhou esse nome por- permercados tradicionais, existe uma No atacarejo, não é. Quando o cliente carejo’ que em supermercados”,
que abriga uma estação de trem – ou separação clara e necessária entre a entra, assina um contrato imaginá- anunciou uma reportagem publica-
uma “parada” – da linha que conecta área de vendas e a área de estoque ou rio no qual abre mão de todo tipo de da em novembro de 2016, ecoando
São Paulo a Jundiaí. Mais que um tri- armazenagem. Numa loja de atacare- conforto. Se você não quer pessoas te uma pesquisa da consultoria Niel-
lho de trem, Taipas hospeda unida- jo, essa distinção não existe. O galpão incomodando, procure um Pão de sen. Foi um desses momentos de vi-
des do Atacadão e do Assaí, as ban- no qual os clientes circulam também Açúcar, combinado? rada que soam perpétuos.
deiras de atacarejo dos grupos abriga boa parte do estoque da loja. O Atacadão de Taipas realmente Há cada vez mais segmentos so-
Carrefour e Pão de Açúcar. É o am- Os carrinhos dividem os corredores não poderia se parecer menos com um ciais ali dentro. Um jovem casal esco-
biente perfeito para um modelo de de cimento queimado com empilha- Pão de Açúcar. Não há música, não há lhe uma caixa com 36 hambúrgueres.
negócios que avança sobre as cama- deiras e pallets. Aliás, o que não falta ar-condicionado, não há espaço entre Um senhor analisa os preços de paco-
das mais pobres da população. Um em uma loja de atacarejo são pallets. as gôndolas e o teto. Cada corredor tem tes com dezenas de salsichas. Mães
modelo que garante aos clientes os Eles estão no chão, empilhados no to- um cheiro diferente, quase sempre de- com crianças levam iogurtes, biscoi-
menores preços do mercado, mas que po das prateleiras, no estacionamen- sagradável, e os clientes parecem ter se tos, salgadinhos, leite em pó, achoco-
desvaloriza os alimentos frescos, que to, servem de gôndola para caixas de acostumado a conviver com embala- latados. Os carrinhos tamanho crise
demandam cuidados específicos, e leite e engradados de cerveja; não sur- gens violadas, frascos quebrados e logo se veem preenchidos – suficien-
dá protagonismo aos ultraprocessa- preenderia se a própria estrutura do produtos espalhados pelo chão. En- tes na medida – por refrigerantes
dos, que duram meses ou anos into- galpão fosse feita de pallets. quanto andávamos pela loja, uma gar- comprados em fardos (a partir de seis
cados nas prateleiras. Um modelo Já na entrada da loja, pelo menos rafa de energético se esvaziava, jogada unidades, geralmente é mais barato),
que troca a segurança alimentar e três pessoas tentam convencer os sobre outros produtos, em um pallet peças gigantes de mortadela e de mu-
nutricional dos clientes pelo custo clientes a criar um cartão de crédito no corredor de bebidas; 5 quilos de çarela, potes e potes e potes de mar-
baixo, que troca qualidade por quan- do Atacadão. O atacarejo não tem tan- alho escorriam por um pote enorme garina. Um Tang genérico anuncia no
tidade, que troca os direitos traba- to medo de mostrar a que veio quanto virado perto da seção de pães; um se- pacote de 300 gramas ser reduzido
lhistas dos funcionários por índices as lojas tradicionais. No fundo, vender nhor se equilibrava sobre a fina cama- em açúcares, mesmo que continue a
crescentes de produtividade. objetos não é o main business das re- da de pó branco acumulada em frente ser, basicamente, açúcar; o importan-
O aparentemente famoso “Ataca- des. Fazer dinheiro é, de fato, o main à prateleira das farinhas de trigo. te é a capacidade de render 13 litros.
dão de Taipas” surgiu tantas vezes em business. Oferecer crédito para quem Quando não esperávamos mais nada, O carrinho de uma senhora osten-
nossas conversas de corredor no TRT já estourou o cheque especial é muito a cereja do bolo: um filhote de barata ta, sobre uma montanha de ultrapro-
que não pudemos ignorar o chamado. mais negócio do que vender refrige- passeava calmamente em uma emba- cessados, um resistente maço de sal-

®
A viagem do centro de São Paulo à rante e produtos de limpeza. A renta- lagem de fórmula infantil, namorando sinha. Um corpo estranho. É isso que
unidade consumiu pouco mais de bilidade oriunda de operações finan- o metal em busca de uma fresta. os vegetais se tornaram por aqui: um
uma hora da nossa tarde chuvosa de ceiras é mais simples do que a obtida Essa é a cara do modelo de loja que luxo. Um apetrecho quase desneces-
segunda-feira. A região fica isolada nas gôndolas – e os computadores não ganhou o coração dos executivos das sário em meio ao êxtase colorido de
do resto da cidade por uma porção de reclamam de trabalhar sete dias por grandes redes de supermercados: embalagens plásticas que anunciam
mata nativa cada vez mais escassa e semana, em turnos de 24 horas. feia, suja, desorganizada e assustado- a tragédia social, ambiental e sanitá-
acanhada, mas as ruas movimenta- Em 2019, o banco Carrefour apre- ramente lucrativa. Dos R$ 62 bilhões ria que vai se aprofundando. 
das da parte mais urbana não se dife- sentava uma receita de R$ 2,9 bi- que o Carrefour faturou em 2019 no
renciam em nada de outros pontos da lhões, um crescimento de quase 20% Brasil, R$ 42 bilhões vieram das lojas *João Peres é jornalista formado pela
periferia de São Paulo. Sem o auxílio em meio a uma economia estagnada. de atacarejo. No começo de 2020, o ECA-USP, repórter e editor de O Joio e O
incansável do GPS, não teríamos his- O cartão do Atacadão vinha com tu- grupo anunciou a compra de trinta Trigo. Tem passagens e contribuições pa-
tória alguma para contar. do, representando 28% do fatura- lojas da rede holandesa Makro, a se- ra UOL, The Intercept Brasil, BandNews
Só tiramos os olhos da tela do celu- mento total do braço financeiro da rem transformadas na bandeira Ata- FM e Rede Brasil Atual, entre outros. É au-
lar quando avistamos o galpão laranja corporação. No concorrente, o Assaí cadão. Quem se importa com o cheiro tor do livro-reportagem Corumbiara: caso
sob uma enorme bandeira do Brasil. havia emitido 430 mil novos cartões de alho perto do corredor dos pães? enterrado (Elefante, 2015) e Roucos e su-
Chegamos buscando uma explicação em 2019, passando de 1 milhão em Os carrinhos tamanho restauran- focados: a indústria do cigarro está viva e
para o volume imenso de ações traba- circulação. te se convertem em carrinhos tama- matando (Elefante, 2017); Victor Matioli
lhistas originadas naquela loja especí- Tem mais um degrau aqui. Num nho família. Em tamanho crise. De é jornalista formado pela ECA-USP e re-
fica, mas encontramos um projeto em supermercado tradicional, a “pres- uma realidade que está expressa nas pórter de O Joio e O Trigo. Já colaborou
andamento do que deve ser o futuro são” sobre o cliente para fazer um páginas do jornal Valor Econômico, com UOL, The Intercept Brasil e Carta Ca-
do varejo alimentar no Brasil. cartão de crédito poderia ser um mo- diário que estampa o reflexo do en- pital, entre outros.

O podcast do Le Monde Diplomatique Brasil

Ouça mais sobre o agronegócio


#94 - Como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade,  João Peres e Victor Matioli
#114 - Formação política do agronegócio,  Caio Pompeia
Novos episódios toda semana
diplomatique.org.br/especial/guilhotina
8 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

CONTRADIÇÕES E ALTERNATIVAS AO REGIME ALIMENTAR DOMINANTE

Agro, um mau negócio lhões de toneladas – representaram


81,1% do valor exportado pelo agro-
negócio. As carnes ocuparam a se-
gunda posição, com aumento recor-
de nos casos da carne bovina in
Após cinco décadas de imposição global de um projeto que se apresenta como o único natura, tanto em valor (US$ 7,45 bi-
viável, boas notícias: alternativas para a produção de alimentos saudáveis, acessíveis lhões) como em quantidade (1,72 mi-
lhão de toneladas). As vendas de
e sustentáveis continuam em curso, prefigurando futuros promissores. Estarão as frango somaram US$ 5,99 bilhões, e
lideranças e organizações – inclusive as da esquerda institucional – atentas as de carne suína também alcança-
a essa força social transformadora? ram recordes históricos em valor
(US$ 2,12 bilhões) e em quantidade
(901,1 mil toneladas).5
POR HELENA R. LOPES, JORGE O. ROMANO, PAULO F. PETERSEN E THAIS P. BITTENCOURT* Finalmente, o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), por
meio do acompanhamento do Índice
Uma homenagem à memória e Segurança Alimentar (Rede Pens- cançando 269,9 milhões de toneladas Nacional de Preços ao Consumidor
de Francisco Caporal, san) mostram que, no fim de 2020 – de alimentos.3 Essa informação oficial, Amplo (IPCA), mostra um aumento
lutador do povo. portanto, ainda sob vigência do au- no mínimo, precisa ser matizada. A muito superior da inflação dos ali-
xílio emergencial –, mais da metade maior parcela da produção, cerca de mentos básicos em relação à média
da população brasileira não tinha 135 milhões de toneladas, refere-se à geral, com destaques para o arroz

E
m seu livro No tempo das catás- acesso pleno e permanente a alimen- soja, um grão que se tornou a menina (76%) e o óleo de soja (103%) (Brasil
trofes: resistir à barbárie que se tos. Desse universo, 19,1 milhões de dos olhos entre as commodities do Econômico, 16 dez. 2020).
aproxima,1 Isabelle Stengers dis- pessoas, o que equivale à população agronegócio. Salvo no caso do óleo, a Embora a Conab afirme que há
cute a convivência de duas his- da Grande São Paulo, estavam em si- leguminosa não integra a base da ali- alimentos suficientes, a realidade
tórias contraditórias que moldam tuação de insegurança alimentar mentação nas mesas brasileiras. Sua empírica demonstra o contrário. O
dialeticamente os rumos da existên- grave: passavam fome. A pesquisa ingestão como alimento humano re- “agro” concebe a agricultura como
cia humana no planeta desde a déca- confirma ainda que essa tragédia é mete às prateleiras dos supermerca- um mero negócio. A maximização de
da de 1990. A primeira refere-se ao in- seletiva – tem lugar, gênero, cor e es- dos onde são dispostos os ultrapro- lucros preside a lógica do regime
cessante processo de acumulação de colaridade: Norte e Nordeste, áreas cessados, produtos de baixa qualidade agroalimentar dominante, um siste-

®
capital orientado por supostas “leis rurais, domicílios chefiados por mu- nutricional, responsáveis pelo acen- ma de poder controlado por corpora-
do mercado”. Ainda que o “moinho lheres habitados por pessoas pretas e tuado crescimento de doenças crôni- ções transnacionais. Nas atuais cir-
satânico dos mercados” (na feliz me- pardas e com a pessoa de referência cas na população brasileira. cunstâncias, com o aumento da
táfora de Karl Polanyi) não cesse de sem escolaridade ou apenas ensino O Ministério da Economia divul- demanda internacional e a alta no
também acumular vítimas humanas fundamental incompleto.2 gou que as exportações agrícolas au- preço do dólar, a produção sai da me-
e não humanas, da presente e das fu- O outro lado da moeda se relacio- mentaram 6% em 2020, somando sa do brasileiro e é destinada à expor-
turas gerações, os arautos desse pro- na às previsões de aumento da safra US$ 45,3 bilhões.4 Cabe lembrar que tação. O aumento da insegurança ali-
cesso asseveram que “não há alterna- 2020/2021, ao crescimento das expor- os produtos agropecuários exporta- mentar e da fome resulta – e isso não
tivas”. Perseguir o progresso pela via tações agrícolas e ao aumento dos dos possuem baixo valor agregado, o é um paradoxo – do sucesso do “agro”.
do crescimento econômico, dizem, preços dos alimentos em 2020. Lê-se que implica uma contribuição limi- Trata-se de um exemplo lapidar
seria o único caminho disponível. De no site da Companhia Nacional de tada para a economia, particular- do necroneoliberalismo,6 que radi-
outro lado, figura a história construí- Abastecimento (Conab) que a safra de mente para a geração de empregos. caliza as desigualdades e a violência,
da por aqueles e aquelas que lutam, grãos de 2020/2021 cresceu 4,6%, al- As exportações de soja – 82,97 mi- tratando contingentes cada vez
que não se submetem às evidências maiores da população como “descar-
da primeira história, produtora de © MST/PE táveis”, cuja condição humana de so-
exploração, de guerras e de desigual- brevivência não é responsabilidade
dades sociais que crescem incessan- do Estado nem da sociedade e, me-
temente e conformam a barbárie. nos ainda, do mercado. A fome de
Nos termos de Stengers, dois con- muitos num ambiente de abundân-
juntos estatísticos recentemente di- cia para poucos é o futuro distópico
vulgados ligados à economia do agro- fazendo-se presente no contexto da
negócio expressam com nitidez os pandemia.
resultados associados à “primeira A promoção da segurança ali-
história”. Embora possam parecer mentar e nutricional é um dever do
contraditórios entre si, eles coexis- Estado baseado no princípio do direi-
tem como faces de uma mesma moe- to humano à alimentação saudável e
da: de um lado, a pujança produtiva adequada. Isso implica dizer que o
da agricultura brasileira; de outro, a acesso ao alimento não pode ser re-
acentuação da fome e de outras ex- gulado como uma mercadoria como
pressões de insegurança alimentar outra qualquer, inacessível a quem
na população brasileira. Mas a se- não pode pagar. Implica também a
gunda história também se faz pre- necessidade de transformação do re-
sente. Ela é aqui identificada como a gime alimentar dominante, debate
construção de um movimento emer- que tem mobilizado a comunidade
gente produtor de alternativas ao internacional, particularmente após
agronegócio: a agroecologia. a convocação de uma Cúpula Mun-
dial de Sistemas Alimentares pelo se-
FOME E SUPERPRODUÇÃO cretário-geral da ONU, evento pro-
AGRÍCOLA: OS DOIS LADOS gramado para setembro próximo, em
DE UMA MESMA MOEDA Nova York. Em que pesem os esforços
Dados recém-divulgados pela Rede da sociedade civil de promover mu-
Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentos produzidos pelo MST que foram doados durante a pandemia danças estruturais nos sistemas ali-
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 9

mentares por meio de enfoques alter- agricultura familiar se enfatiza o rar a identidade dos brasileiros com miliares”. Isso seria, no olhar de inte-
nativos como a agroecologia, o “agronegocinho”. base em relações com o “agro”. Quan- lectuais orgânicos do agronegócio, o
documento que pautará a Cúpula – as Em sua construção hegemônica, o do uma atriz famosa pergunta “Você “agromito” da “saída agroecológica”,
Diretrizes Voluntárias de Sistemas agronegócio atua para transformar o sabia que no Brasil todo mundo tem uma ideia “bucólica” apoiada por “or-
Alimentares e Nutrição – reitera ca- discurso das elites agrárias em dis- uma fazenda?” e responde “A minha ganizações esquerdistas retrógradas”
minhos de transformação que inte- curso público, de interesse cada vez fica bem aqui, na cidade, bem no que procura resolver o problema nu-
ressam às corporações transnacio- mais geral. Nessas narrativas, chama meio da minha cozinha. É só abrir a tricional do mundo desprezando as
nais e a países-chave, como Estados a atenção o uso recorrente e afetivo geladeira. Lá eu tenho o meu pomar, regras dos mercados globalizados, em
Unidos e Rússia (apoiados pelo Bra- do termo “agro”, que, à primeira vis- o meu gado de corte, a minha soja... E particular no que toca à necessidade
sil). Sem uma reversão dos rumos ta, funciona como uma abreviação eu amo essa fazenda chamada Brasil. absoluta de “escala de produção”.
que se anunciam, provavelmente do termo “agronegócio”. O sentido de Sou agro. Agrobrasileira”, a tentativa
suas resoluções da Cúpula refletirão usar esse termo como corruptela de é nítida e eficiente. AGROECOLOGIA NÃO É MITO: É FATO
o documento preparatório, que, em agronegócio revela uma dupla estra- Outra faceta dessa estratégia dis- PRESENTE CONSTRUINDO O FUTURO
síntese, defende “mudanças para que tégia: por um lado, abarcar o máximo cursiva é a desconstrução de narrati- A agroecologia se constitui pela com-
tudo permaneça como está”. possível de sentidos, incluindo as di- vas contrárias, o que os intelectuais binação sinérgica entre ciência críti-
versas agriculturas e mundos rurais orgânicos do agronegócio denomi- ca, prática social e movimento políti-
A CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA dentro dele; por outro, oculta sua di- nam “agromitos”. Isto é, a tentativa de co. Trata-se de um enfoque orientador
DO DISCURSO DO AGRONEGÓCIO: mensão central, o sufixo “negócio”, desqualificar qualquer crítica e ques- de transformações nos sistemas ali-
“O AGRO É TUDO”... que escancara seu sentido de exis- tionamento direcionado ao setor. O mentares. Tensionando o dogma neo-
Entendido como uma coalizão hege- tência, isto é, o alimento como fonte alerta quanto aos reais riscos e danos liberal, a agroecologia se orienta por
mônica, o agronegócio é a expressão de lucro, e não como direito. do uso de transgênicos e agrotóxicos, valores sociais e racionalidades eco-
do capitalismo financeiro na agricul- O agronegócio tem um objetivo por exemplo, seria uma “agrofobia”, nômico-ecológicas que combinam a
tura, com implicações especulativas maior, tal como anunciado em 2014, fomentada por artistas e celebridades produção de alimentos saudáveis, a
e rentistas nos mercados globais.7 No no Fórum Mundial do Agronegócio: a defensoras de um “esquerdismo ver- geração de riquezas com distribuição
Brasil, ele só pode ser compreendido chamada “agrossociedade”, a nova de”. A fome também seria um “agro- de renda e a contínua regeneração
com base no papel das elites agrárias fronteira do agronegócio, onde os mito”, algo residual diante do discur- dos processos ecossistêmicos.
na formação social do país. muros que separam o campo da cida- so orgulhoso de um agronegócio Os arranjos sociotécnicos da
Como setor político e econômico de não mais existirão em um contex- nacional que se pretende “celeiro do agroecologia variam segundo as pe-
dominante, o agronegócio procura to de “capitalismo consciente”. A mundo”, para o qual o investimento e culiaridades dos territórios nos quais
impor sua concepção sobre a agricul- construção de uma “agrossociedade” a tecnologia do “agro” supostamente são desenvolvidos. Contrastam, as-

®
tura e a alimentação, uma visão do seria um imperativo para o agrone- garantiriam por si sós a sustentabili- sim, com os sistemas técnicos do
mundo rural e das relações entre gócio, operando “do gene ao meme”.9 dade e as despensas cheias. agronegócio, desenvolvidos para ser
campo e cidade, a sustentabilidade Para atingir esse objetivo, faz-se ne- No contexto da pandemia, as prá- universalizados no intuito de tornar
ambiental presente e futura, dispu- cessária a construção de uma narra- ticas discursivas do agronegócio pro- a agricultura um elo subordinado da
tando por meio do discurso uma nar- tiva hegemônica com a contribuição curaram reforçar seu papel “impres- indústria. Dessa forma, a coprodução
rativa de país.8 de intelectuais orgânicos, redes so- cindível”, acionando a estratégia de natureza-agricultura promovida pelo
Em termos de estratégia discursi- ciais e mídias tradicionais. “pânicos morais”, ao reafirmarem in- enfoque agroecológico se materializa
va, há a tentativa de construir o senso Nas redes sociais, são criados per- sistentemente que, se não fosse o em territorialidades socialmente
comum da opinião pública centrado fis, páginas oficiais e canais de vídeos “agro”, certamente faltariam alimen- construídas pelos saberes e fazeres
na positividade do agronegócio. As- das principais entidades e atores do tos à população (fato que, como vi- locais. Trata-se de uma inteligência
sim, opera a passagem do latifúndio “agro” e cresce a abrangência dos cha- mos, veio a acontecer como resultado coletiva organizada em redes territo-
ao agronegócio; do desmatador ao mados agroinfluencers. Ao mesmo direto das práticas especulativas do riais, que têm garantido em diferen-
produtor sustentável; das commodi- tempo, o apoio da mídia tradicional – agronegócio). tes contextos ao redor do planeta a
ties aos alimentos. A apropriação de cujas campanhas sistemáticas na te- Outros “agromitos” estariam pre- segurança alimentar e nutricional
bandeiras e demandas – enquanto levisão “O agro é pop, é tech, é tudo e sentes em propostas debatidas em por meio da produção e consumo de
significantes flutuantes – de projetos tá na Globo” e “Agro forte, Brasil forte” tempos recentes na Organização das alimentos diversificados e a geração
e discursos antagônicos como o são exemplares – atua no sentido de Nações Unidas para a Alimentação e a de renda às famílias agricultoras no
agroecológico também faz parte do construir e reforçar seu discurso e po- Agricultura (FAO), como a substitui- campo e na cidade.
estratagema discursivo: a sustentabi- der simbólico no imaginário social. ção dos alimentos industrializados Policultivos associados a criató-
lidade passa a ser ressignificada na Esses filmes e anúncios também pela “comida saudável adquirida dire- rios são elementos centrais da produ-
agricultura de baixo carbono, e na expressam a tentativa de reconfigu- tamente de pequenos agricultores fa- ção de base agroecológica. Ao con-

Debates
na TV
LE MONDE

diplomatique
BRASIL
toda
Terça-feira 21h30 canal 44.1
Grande São Paulo

Apresentação  Silvio Caccia Bava Assista a todos os debates em:


youtube/diplobrasil
10 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

trário das monoculturas e dos negócio a longo prazo, a pergunta co- das feiras agroecológicas e os arran- degenerativos sobre o conjunto da
criatórios industrializados, viabiliza- locada à agroecologia deveria ser jos coletivos necessários para a co- sociedade, ao ponto de assistirmos à
dos por economias de escala, os siste- reformulada para: que condições polí- mercialização da produção nos mer- coexistência de seguidos recordes de
mas diversificados da agroecologia tico-institucionais seriam necessárias cados institucionais, como o produção agrícola com a acentuação
fundamentam-se em economias de para que as bem-sucedidas experiên- Programa de Aquisição de Alimentos da fome e da miséria.
escopo (ou de sinergia). Estas últimas cias locais de agroecologia ganhassem (PAA) e o Programa Nacional de Ali- Mas as alternativas existem. Elas
caracterizam-se pela produção e dis- escala? Essa mesma questão suscitou mentação Escolar (Pnae). Essas polí- mostram sua força nas diversificadas
tribuição de um número diversifica- a organização de um Simpósio Inter- ticas dão vida aos sistemas localiza- experiências sociais que se prolife-
do de produtos e serviços a partir de nacional de Agroecologia pela FAO, dos ao garantirem a compra da ram pelo país. Identificadas com o
uma mesma unidade de gestão ope- em 2018, em Roma. Do ponto de vista produção e a distribuição dos ali- campo da agroecologia, inspiram ca-
racional. Essa é a razão pela qual a econômico, trata-se de responder mentos às populações, sobretudo minhos para que os ciclos regressivos
agroecologia se coaduna melhor com quais são as condições para dar esca- àquelas em situação de vulnerabili- gerados pelo agronegócio sejam su-
a lógica de organização econômica la a economias de escopo, regenerati- dade, contribuindo ativamente com perados e deem lugar a círculos vir-
da agricultura familiar. A eficiência vas e redistributivas, superando as ló- a segurança alimentar e nutricional. tuosos, alimentados por economias
econômica dessas unidades é decisi- gicas degenerativas e concentradoras Vale destacar ainda as variadas ecologicamente regenerativas e so-
vamente definida pela interdepen- de renda prevalecentes na economia estratégias econômicas cooperativas cialmente justas e democráticas.
dência ecológica entre suas ativida- do agronegócio. e autogestionárias, que podem ser Com decisão política, reformas, re-
des produtivas. Já as economias de Nos sistemas regenerativos da impulsionadas com o apoio decisivo gulações, reorientação de investi-
escala, próprias do agronegócio, pro- agroecologia, as sementes locais do Estado, de organização coletiva mentos e políticas públicas articula-
curam se viabilizar por intermédio exercem papel determinante. O para certificação e beneficiamento, das para a valorização e expansão do
da redução dos custos unitários, seja maior desafio da conservação dessas ambas com intuito de agregar valor à paradigma agroecológico, essas ex-
pela especialização produtiva, seja sementes reside na erosão genética produção. Assim, a promoção de ren- periências têm tudo para, no decor-
pelo sucessivo aumento da dimensão provocada pelo avanço do agronegó- da na agroecologia se dá em aliança rer de uma geração, se converter em
operacional de sua produção. cio. Estima-se que cerca de 75% da di- com a construção de mercados jus- um verdadeiro continente de territó-
Para viabilizar suas economias de versidade agrícola desapareceu no tos, pautados pela compreensão co- rios diversos de produção e consumo
escala, o agronegócio molda sistemas último século.10 A substituição com- mum de que o alimento não é uma de comida de verdade.
produtivos estruturalmente depen- pulsória das variedades crioulas, seja mercadoria, mas um direito. Embora Para que isso aconteça, será a al-
dentes dos mercados de insumos, a por meio de contaminações cruzadas esse direito básico não venha sendo ternativa agroecológica efetivamente
maior parte deles derivada de recur- ou de políticas públicas de distribui- assegurado pelo Estado, ele segue na compreendida, assimilada e promo-
sos naturais finitos, como petróleo e ção de sementes híbridas e transgêni- pauta prioritária da luta política tra- vida pelas lideranças e organizações

®
fósforo. Já os sistemas estruturados cas, se completa pela adoção obriga- vada cotidianamente em defesa do políticas? Ou a força ideológica do
segundo os fundamentos agroecoló- tória do “pacote” contendo também Estado democrático e de direitos. agro permanecerá se impondo, mes-
gicos se reproduzem econômica e agrotóxicos e fertilizantes químicos. mo em meio ao campo progressista
ecologicamente por meio do manejo A pandemia de Covid-19 explicita SUPERAREMOS A institucionalizado, no intento de des-
intensivo da biodiversidade e de sua a impossibilidade de convivência har- BARBÁRIE DO PROJETO ÚNICO? qualificar a agroecologia como um
biomassa, dispensando o uso siste- mônica entre um modelo baseado na Na esteira do projeto único imposto “agromito” ou de reduzi-la a um sim-
mático de insumos comerciais. valorização dos potenciais socioeco- pelo pensamento neoliberal, o auto- ples nicho de mercado?  
A diversidade produtiva na agroe- lógicos dos territórios, a agroecologia, denominado “agro” esforça-se para
cologia implica também a valoriza- e outro que depende da exploração se reafirmar diante de suas crescen- *Helena Rodrigues Lopes e Thais P.
ção do trabalho das mulheres. Co- predatória desses recursos para se re- tes contradições. Verdadeiros mala- Bittencourt são doutorandas pelo CPDA-
nhecedoras de vasta gama de espécies produzir, o agronegócio. Segundo barismos retóricos tentam ocultar as -UFRRJ; Jorge O. Romano é doutor e pro-
e variedades, elas transformam seus Rob Wallace, em seu livro Pandemia e múltiplas incongruências entre o fessor do CPDA-UFRRJ; Paulo F. Peter-
quintais e demais áreas de produção agronegócio: doenças infecciosas, capi- agro que se diz pop e a realidade agrí- sen é doutor colaborador da AS-PTA e
em verdadeiros centros de biodiversi- talismo e ciência, o estreitamento da cola e alimentar de um país com mais membro do Núcleo Executivo da ANA.
dade, responsáveis pela produção pa- base genética de animais e plantas e a da metade de sua população em si-
ra a venda e para o autoconsumo, as- destruição das relações ecológicas, tuação de insegurança alimentar e
1   Isabelle Stengers, No tempo das catástrofes:
segurando alimentação saudável e por meio de desmatamentos, mono- nutricional; entre o agro que se apre- resistir à barbárie que se aproxima , Cosac
diversificada para as famílias rurais, cultivos e uso de químicos dirigidos senta sustentável enquanto ecossiste- Naify, São Paulo, 2015.
paradoxalmente as que hoje figuram pelo agronegócio (sejam eles agrotó- mas são devastados em ritmos sem 2   Ver: www.olheparaafome.com.br.
3   “ Produção de grãos da safra 2020/21 segue
como as mais vulneráveis às situa- xicos, hormônios ou antibióticos), precedentes, para dar lugar às suas como maior da história: 268,9 milhões de to-
ções de insegurança alimentar. têm engendrado condições perfeitas monoculturas e criatórios extensi- neladas”, Conab, 10 nov. 2020.
Não obstante as inegáveis vanta- para o desenvolvimento de patógenos vos; entre o agro que se pretende te- 4   “Apesar da pandemia, Brasil vive boom em
exportações agrícolas”, UOL, 8 jan. 2021.
gens sociais e ecológicas das econo- e doenças.11 A Covid-19 não é a pri- ch, mas que lança mão de verdadeiro 5   “ Exportações do agro ultrapassam barreira
mias de diversidade demonstradas meira e pode não ser a última. arsenal (agro)tóxico para contraba- dos US$ 100 bilhões pela segunda vez. Em
nas experiências locais de agroeco- Políticas públicas que favoreçam a lançar os efeitos dos desequilíbrios relação a 2019, houve crescimento de 4,1%
nas vendas externas do setor”, Governo do
logia, a pergunta recorrente coloca- constituição e consolidação de siste- ecológicos por ele mesmo gerados. Brasil, 12 jan. 2021.
da pelos céticos ou pelos abertamen- mas alimentares territorializados se- É esse mesmo “agro” que se arro- 6   Achille Mbembe, “O direito universal à respira-
te hostis é: poderá a agroecologia rão essenciais para alterar os padrões ga a ser tudo que atua para deslegiti- ção”, IHU Online, 17 abr. 2020.
7   Guilherme Delgado, Do capital financeiro na
alimentar a crescente e cada vez mais de governança atualmente dominan- mar ou descaracterizar iniciativas de agricultura à economia do agronegócio: mu-
urbanizada população mundial? Em tes. A agroecologia cobra a atuação do produção e abastecimento alimentar danças cíclicas em meio século (1965-2012),
que pese todo apoio institucional e Estado e, por meio de arranjos produ- não alinhadas à sua lógica técnico-e- UFRGS, Porto Alegre, 2012.
8   A análise do discurso presente neste artigo se
ideológico que atrai para si, o agro- tivos e organizativos locais, desafia a conômica totalitária. Superar essa dá com base na teoria do discurso de Ernesto
negócio já não é capaz hoje de ofere- ordem hegemônica e constitui mer- versão fantasiosa e triunfalista sobre Laclau e Chantal Mouffe.
cer resposta adequada a essa ques- cados territorializados. São circuitos os sistemas alimentares é condição 9   José Luiz Tejon, fundador da Associação Bra-
sileira de Marketing Rural e Agronegócio (AB-
tão. E para isso suas condições curtos, que valorizam a alimentação para a remoção de estruturas de po- MRA) e influenciador do agronegócio.
tenderão a se deteriorar no futuro, local e diminuem a dependência de der ditas modernas que insistem em 10  Bruno de Pierro, “Visões múltiplas”, Pesquisa
quando não disporemos de três ele- combustíveis fósseis, contribuindo reproduzir no século XXI um modelo Fapesp, ago. 2013.
11  Sobre o livro de Rob Wallace, Pandemia e
mentos indispensáveis para sua re- também para preços acessíveis. econômico ancorado na especializa- agronegócio: doenças infecciosas, capitalis-
produção: petróleo barato, clima es- Entre as inteligências coletivas ção primária que remonta ao período mo e ciência (Elefante, 2020), cf. entrevista
tável e água abundante. mobilizadas para a geração de renda colonial. Valendo-se da superexplo- com o tradutor da obra no podcast Guilhotina,
“#80 – Allan Rodrigo de Campos Silva”, Le
Considerando essa impossibilida- e mercados justos, encontramos a go- ração da natureza e do trabalho hu- Monde Diplomatique Brasil, 21 ago. 2020.
de biofísica de manutenção do agro- vernança associada à organização mano, o agronegócio irradia efeitos Disponível em: http://bit.ly/Allan-Campos.
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 11

EXPORTAÇÕES OCIDENTAIS ARRUÍNAM OS ESFORÇOS DE AMBIENTALISTAS LOCAIS

A invasão do lixo nesa e internacional com seu retrato


da miséria em torno das atividades
artesanais de reciclagem e incinera-

no Sudeste Asiático
ção.3 As crescentes demandas da po-
pulação chinesa em termos de saúde
ambiental, bem como o forte aumen-
to da própria produção de resíduos
levaram as autoridades a agir. Em ju-
lho de 2017, elas avisaram a Organi-
A solução depende dos consumidores e das comunidades locais! Essa é a filosofia zação Mundial do Comércio (OMC)
das empresas que produzem plástico em abundância, sem se preocupar com o que que fechariam suas portas no dia 1º
de janeiro de 2018. A operação, cha-
acontece com ele. Quando a China decidiu recusar os dejetos enviados pelos países mada Espada Nacional, tinha como
ocidentais, seus vizinhos foram inundados, em detrimento da saúde da população. objetivo “proteger a China, seu meio
E se tratássemos o problema na fonte? ambiente e a saúde de seus cida-
dãos”.4 Então, os empresários da reci-
clagem transferiram parte de suas
POR AUDE VIDAL* atividades para os países do Sudeste
Asiático, com destaque para a Malá-
sia, que não tem soluções técnicas

N
as primeiras horas do dia, pi- OPERAÇÃO ESPADA NACIONAL Na Malásia, moradores da costa para processar de maneira satisfató-
lhas de folhas mortas e emba- Em 2016, a entidade mobilizou a po- oeste, alertados por maus odores e ria todos esses resíduos – nem a Indo-
lagens plásticas queimam em pulação a respeito dos problemas de- por problemas respiratórios e de pele, nésia ou a Tailândia, apesar de seu
frente às casas de Kalianyar, o correntes da remessa de esgoto não descobriram a existência de usinas de amplo uso de embalagens plásticas.
vilarejo de Java Oriental onde mora tratado no rio, instando as empresas tratamento de resíduos. A associação Para agravar a situação, a legislação
Slamet Riyadi. O rapaz trabalha no locais a modificar seus processos Kuala Langat Environmental Protec- ambiental malaia é pouco restritiva e
setor do turismo, após aprender in- produtivos. Uma fábrica que recicla tion Action Group, cofundada por Tan as populações mais pobres não têm
glês por conta própria. Ele sabe que a papel importado do mundo inteiro, Ching Hin, ex-chefe de um vilarejo lo- condições de recusar o trabalho nos
queima não elimina tudo. “Como não por exemplo, aprimorou seus méto- calizado a poucos quilômetros de aterros que surgiram desde 2018. Im-
veem mais nada, os moradores acre- dos, como constataram representan- Klang, o maior porto do país, no Es- pulsionadas por um setor industrial

®
ditam que não há mais nada. Mas o tes da US Aid, organização norte-a- treito de Malaca, identificou cerca de em crescimento na década de 2010,
plástico fica!” Ele quer montar uma mericana que apoia a Ecoton. Mas, 38 delas em 2018 – apenas uma fun- essas atividades já existiam, mas ga-
associação para separar o lixo, ven- dois anos depois, esses esforços fo- cionando legalmente! De acordo com nharam outra dimensão. “Alertamos
der o que pode ser reciclado, fazer ram reduzidos a pó por um afluxo de o relatório da Global Alliance for Al- o governo em meados de 2017, quan-
compostagem com a matéria orgâni- resíduos plásticos em toda a região, ternatives to Incineration (Gaia), uma do soubemos que a China iria inter-
ca e, quanto ao resto, ele vai ver... por causa da desorganização do trá- ONG que trabalha com associações romper as importações. Nós previ-
Slamet é o único ali que está preo- fico mundial desses materiais. locais, mais de 900 mil toneladas de mos que os resíduos seriam desviados
cupado com a fumaça cheia de dioxi- Perto das instalações da associa- lixo plástico foram importadas pela para o Sudeste Asiático”, declara Ma-
na. O plástico não é coletado nas áreas ção, no vilarejo de Sumengko, um li- Malásia em 2018, e mais de 400 mil geswari Sangaralingam.
rurais da Indonésia. Mas a vida coti- xão a céu aberto atrai dezenas de ca- por Tailândia e Vietnã.2 Após essa pu-
diana está cheia dele. No mercado da tadores que reviram o lixo em busca blicação, veículos de comunicação da CONTÊINERES DEVOLVIDOS
cidade vizinha, Tamanan, duas bar- de achados mais ou menos valiosos. Europa e dos Estados Unidos corre- AO REMETENTE
racas vendem embalagens descartá- Eles têm esperanças de encontrar cé- ram para ver o lixo do Sudeste Asiáti- As autoridades tergiversaram. A Tai-
veis, sacos e caixas de isopor, muito dulas de dinheiro, trocados de países co: “Os jornalistas estrangeiros ficam lândia, por exemplo, impôs uma mo-
utilizadas por outros comerciantes. ricos, que acabam representando va- animadíssimos quando encontram ratória às importações de resíduos
As embalagens individuais abundam: lores significativos diante das mo- lixo vindo de sua terra em nossos plásticos em abril de 2018, mas a sus-
não apenas são práticas, mas, princi- destas remunerações locais. Após a aterros”, conta Mageswari Sangara- pendeu no mês seguinte. A Malásia
palmente, permitem que as famílias triagem, tudo o que não pode ser ven- lingam, coeditora malaia da publica- recusou autorizações de importação
pobres façam suas compras dia a dia. dido acaba como combustível em ção e membro da ONG Sahabat Alam em maio de 2018, mas em junho rea-
Quando o lixo não é queimado, ele se uma fábrica de tofu próxima. Malaysia (SAM), um pouco chocada briu as comportas, antes de anunciar
acumula nas margens das estradas e Em Java Oriental, como em qual- com a abordagem da mídia. O desta- uma moratória de três meses, depois
nos cursos de água. quer parte da Indonésia, Malásia, que das revistas são os potes de iogur- de três anos. Na Indonésia, em no-
Maior rio de Java Oriental, o Bran- Tailândia, Filipinas e Vietnã, a mes- te de mirtilo canadenses e as embala- vembro de 2018, Airlangga Hartarto,
tas carrega resíduos de todo tipo. A ma história se repete: empresários gens de queijo francês abandonadas então ministro da Indústria, pediu a
Ecoton, uma associação local lidera- inescrupulosos fingem reciclar resí- no meio dos coqueiros, em vez de re- seu colega do Meio Ambiente que le-
da por um grupo de biólogos, fez dele duos plásticos. Em muitos casos, eles portagens sobre os prejuízos causa- vantasse a proibição, em nome dos
seu campo de investigação e luta. Es- são apenas separados e queimados a dos às populações. US$ 40 milhões trazidos pela indús-
tamos em Gresik, não muito longe de céu aberto ou descartados na nature- O Sudeste Asiático está sendo in- tria de reciclagem para a balança co-
Surabaya, capital da ilha e segunda za, quando não apenas estocados até vadido por lixo desde que a China en- mercial do país5 – sem resultado.
maior cidade do país. Conduzida por a saturação do local, o que leva o tem- cerrou suas atividades de reciclagem, Na primavera de 2019, finalmente,
Prigi Arisandi, ganhador do Prêmio po necessário até o empresário patife em 2018. Até então, era para a China as respostas do governo tornaram-se
Goldman 2011, dedicado ao meio desaparecer. A queima sem precau- que o Ocidente mandava seus resí- mais claras, afirmando uma espécie
ambiente,1 a equipe de biólogos da ções especiais ou a degradação do duos, aproveitando os contêineres de patriotismo ecológico. A ministra
Ecoton monitora a qualidade da água material no meio ambiente libera que retornavam vazios para esse do Meio Ambiente da Malásia, Yeo
e a saúde dos peixes, que sofrem mu- dioxinas, furanos, mercúrio e bifeni- grande exportador de produtos ma- Bee Yin, afirmou ter fechado mais de
tações genéticas preocupantes que las policloradas (PCB). Essas subs- nufaturados. Em um mercado mun- 148 fábricas ou usinas de processa-
impactam sua reprodução. A asso- tâncias tóxicas, em sua maioria mui- dial de cerca de US$ 10 bilhões, a Chi- mento ou armazenamento de resí-
ciação alerta o público para vários ti- to voláteis ou lipossolúveis, podem na acumulava no início da década de duos plásticos. As descobertas de
pos de poluição e procura soluções contaminar o meio ambiente e se 2010 mais de três quartos dessas im- cargas não declaradas ou mal decla-
junto ao poder público e a empresá- acumular no corpo humano, causan- portações. Em 2016, o documentário radas se multiplicam. Durante uma
rios, nessa área que, embora rural, é do câncer e distúrbios do sistema Plastic China, do diretor Wang Jiu- viagem ao porto de Klang, em 23 de
industrializada. hormonal e do sistema nervoso. -Liang, chocou a opinião pública chi- abril de 2019, a ministra constatou a
12 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

declaração fraudulenta de um carre-


gamento espanhol: resíduos classifi-
cados como recicláveis, mas que não
O comércio de
o eram. No dia 28 de maio, ela prome-
Estados Unidos
Canadá

Japão
resíduos plásticos
teu devolver 3 mil toneladas de lixo a
seus países de origem: Estados Uni- Coreia do Sul
dos, Japão, França, Canadá, Austrá-
lia, Reino Unido e até Bangladesh. Taiwan
Depois de chamar os intermediários Noruega China 1
Filipinas
malaios de “traidores”, ela se dirigiu Hong Kong1
aos países exportadores: “Exigimos Reino Unido
Holanda
Alemanha Vietnã
que os países desenvolvidos revisem Bélgica Laos
Ucrânia Índia Indonésia
sua gestão de resíduos plásticos e pa- França
rem de enviá-los aos países em de- Portugal Tailândia Austrália
senvolvimento. Se eles forem envia- Espanha Itália Turquia Malásia
dos para a Malásia, serão devolvidos Romênia
sem culpa”.6 Três dias depois, em
Butterworth – o segundo maior porto Comércio legal em milhares
de toneladas em 2019
do país, localizado em sua porção Sudão
nordeste –, 265 contêineres que con- do Sul Exportações Importações
tinham uma mistura de material or- líquidas superiores líquidas superiores
a 50 mil toneladas a 50 mil toneladas
gânico em decomposição e resíduos
plásticos chamaram a atenção dos Convenção da Basileia As exportações líquidas são
o volume total de exportações
funcionários da alfândega. Em 15 de Países não signitários do tratado do qual se deduz o volume
sobre resíduos plásticos de importações.
junho do mesmo ano, as autoridades
contabilizaram 126 contêineres de li- 1. Hong Kong reduziu em cinco vezes suas importações em
relação a 2016, enquanto o resto da China as interrompeu.
xo não declarado e 155 aguardando 0 50 100 250 500 880
inspeção. E isso não parece ter muda- Maiores exportadores para...
do desde então. Malásia Vietnã Tailândia Indonésia Europa
A Indonésia, por sua vez, tomou América
Japão

®
EUA Japão Ilhas Marshall Ásia
medidas para devolver aos Estados 103 Hong Kong Alemanha Oceania
Alemanha 89 Hong Kong
Unidos, em 17 de junho de 2019, cin- 85 EUA
Japão
co contêineres de lixo que saíram de Reino Unido Coreia do Sul EUA Holanda
59

© Cécile Marin
Austrália Filipinas 57
Seattle com a declaração de “papel 45 48 Espanha 43
40 39 32 Bélgica 40 36 33 Austrália
para reciclagem”, mas continham EUA China Bélgica
20 23 20 19 18 16
também plástico e fraldas usadas. 17 17
Por fim, o presidente filipino bateu
na mesa: após um ultimato pedindo Exportações em milhares de toneladas, em 2019 Fontes: Nações Unidas, base de dados Comtrade; Convenção da Basileia.
ao Canadá que retirasse seus resí-
duos até 15 de maio de 2019, ele cha- triões, e essa disposição vale para sobre seu destino. Segundo a associa- mos acesso aos dados das autoridades
mou seus diplomatas, enviou 69 con- todos, incluindo os Estados Unidos. ção, existem “falhas graves em todas alfandegárias. Mas, sem o controle
têineres de volta ao porto de Von Hernandez, da coalizão de as etapas do percurso”.11 efetivo dos países exportadores e im-
Vancouver e ameaçou, no caso de re- ONGs Break Free from Plastic [Li- No início de 2020, a Malásia devol- portadores, corremos o risco de vê-los
cusa das autoridades canadenses, vrar-se do plástico], resume a vitó- veu pelo menos 4 mil toneladas de li- ainda entrando em nosso país.”
afundá-los em águas territoriais ca- ria: “Os países que recebem resíduos xo plástico ilegal para os vinte países
nadenses.7 A carga foi desembarcada plásticos misturados e não separa- de onde elas haviam saído, incluindo OS LIMITES DA RECICLAGEM
sem problemas. dos de origem estrangeira agora têm 43 contêineres para a França. Mas, Principal pedido da ONG malaia:
Essas tensões explodiram duran- o direito de recusá-los, o que obriga nos primeiros sete meses de 2020, o mais transparência. A Comtrade,
te a reunião da Convenção de Basi- os países de origem a garantir a ex- país recebeu mais de 33 mil tonela- base de dados das Nações Unidas,
leia sobre o Controle de Movimentos portação apenas de plásticos limpos das de resíduos provenientes apenas documenta a circulação de resíduos
Transfronteiriços de Resíduos Peri- e recicláveis”.10 Em teoria, os países do Reino Unido, um aumento de mais plásticos por tipo, país de origem e
gosos e sua Eliminação,8 realizada que não estão em condições de tra- de 81% em relação ao ano anterior.12 país de destino. Mas poderia ser útil
entre abril e maio de 2019 em Gene- tar esses resíduos podem recusá-los. incluir dados sobre suas caracterís-
bra. As ONGs do Sudeste Asiático, Ainda é cedo para avaliar os efei- ticas (limpos ou não) e sobre o pro-
cuja proposta foi apoiada pela No- tos da norma, que entrou em vigor Cinco contêineres de lixo cessamento previsto (ou não) nos
ruega, queriam banir esse tráfico, em 1º de janeiro de 2021. Mas, em 29 saíram de Seattle com a locais de recebimento. Essa trans-
incluindo resíduos plásticos no tex- de janeiro, em um relatório publica- parência permitiria às autoridades
to. Sua petição “Stop dumping plas- do com a Zero Waste Europe e a Gaia,
declaração de “papel locais e aos organismos internacio-
tic in paradise!” [Parem de jogar a organização SAM já alertava: “O para reciclagem”, mas nais monitorar o tráfico ilegal de
plástico no paraíso!] obteve quase 1 tráfico de resíduos europeus impede continham também forma mais eficaz.
milhão de assinaturas. Entre os mili- a Malásia de alcançar sua meta de ‘li- plástico e fraldas usadas É verdade que o comércio de resí-
tantes presentes para defendê-la es- xo zero’”. As importações já estão duos recicláveis continua permitido,
tavam Prigi Arisandi, da Ecoton, e proibidas no país desde outubro de mas tanto a Convenção de Basileia
Mageswari Sangaralingam. Apesar 2018, em termos muito próximos aos Com a elevação do uso de plásticos como a norma-quadro da União Eu-
da oposição virulenta dos Estados da Convenção de Basileia, mas as au- descartáveis causado pela pandemia ropeia sobre resíduos preveem que
Unidos, que ainda não ratificaram o toridades não conseguem parar o de Covid-19, a crise dos resíduos pode eles sejam reciclados no país onde fo-
tratado, a proposta foi adotada: um tráfico. A SAM lembra que esse con- aumentar ainda mais, apesar da legis- ram produzidos, “a menos que haja
anexo à convenção inclui plásticos trabando envolve uma multiplicida- lação internacional. “Ainda não sabe- uma solução melhor em termos am-
não recicláveis9 (ficando permitido o de de atores, alguns dos quais perten- mos se esse lixo plástico sujo e não se- bientais e sanitários” – o que não é o
comércio dos recicláveis). Sua ex- centes ao crime organizado e parado continua chegando à Malásia caso do Sudeste Asiático, cuja in-
portação está proibida sem o con- especializados em forjar declarações vindo da Europa”, disse Mageswari fraestrutura é, de modo geral, menos
sentimento prévio dos países anfi- sobre os materiais transportados ou Sangaralingam em fevereiro. “Não te- eficiente do que a dos países da Orga-
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 13

(PP), usado de várias maneiras, co- No final, é forçoso constatar: des-


UM SETOR EM FRANCA PROSPERIDADE mo caixas de comida para viagem. de 1950, dos 6,3 bilhões de toneladas
Eles só podem ser reciclados uma de resíduos plásticos produzidos em
vez. Os outros plásticos (3, 4, 6 e 7) todo o mundo, apenas 9% foram reci-

S egundo a Citeo, empresa criada por distribuidores de produtos de


consumo para promover a reciclagem na França, 70% do lixo domés-
tico é reciclado. O setor vai bem: 28 mil empregos para 9 bilhões de euros
não são recicláveis.
Complexa, porque é preciso sepa-
clados e 12% incinerados. O restante
se acumula em aterros ou no meio
rar os materiais com um cuidado que ambiente, acabando muitas vezes, de
em faturamento em 2017. Em 2016, 94% do papel e papelão foram reci- é difícil de exigir dos usuários, sejam forma mais ou menos degradada, nos
clados, além de 80% dos metais e 76% do vidro. Mas o quadro é menos eles residenciais ou corporativos. oceanos.16 A crise no Sudeste Asiático
esplendoroso quando examinamos o caso dos plásticos, dos quais ape- Tanto a negligência como a vontade revelou com força a injustiça ambien-
nas 26% estão sujeitos à “recuperação de materiais”, para usarmos a mal informada de fazer o bem (colo- tal e começou a agitar a opinião pú-
cando junto com os resíduos reciclá- blica, tanto nos países que recebem
expressão consagrada.
veis aqueles que gostaríamos que fos- como naqueles que enviam resíduos.
Responsáveis pela gestão de resíduos, as autoridades intermunicipais sem) resultam em resíduos pouco ou Talvez possamos finalmente lidar
francesas optam, desde 2012, pelos “coletores extensivos”, ou seja, por mal separados. As autoridades muni- com esse outro problema mundial
coletar junto tanto os resíduos recicláveis como aqueles que parecem ser, cipais também levam a uma coleta que é a poluição plástica. 
a fim de simplificar a vida dos cidadãos e tornar a coleta seletiva mais acei- menos seletiva (ler boxe).
tável. Essa forma de coleta foi incentivada pela Citeo com o objetivo de E cara porque a pré-triagem re- *Aude Vidal,  antropóloga, é autora do en-
quer alta tecnologia, ou então muita saio Égologie. Écologie, individualisme et
aumentar as quantidades coletadas,1 a despeito da proporção que é reci-
mão de obra. Sua rentabilidade tam- course au bonheur [Egologia. Ecologia, in-
clada. Os plásticos que não são reprocessados são majoritariamente inci-
bém pode ser prejudicada pelo preço dividualismo e a corrida pela felicidade], Le
nerados, como 14,4 milhões de toneladas de lixo a cada ano. baixo do petróleo, que torna mais Monde à l’Envers, Grenoble, 2017.
Em 2017, foram gerados 326 milhões de toneladas de resíduos, sendo barato fabricar plásticos virgens.
39 milhões de toneladas de produtos domésticos e similares, e o restante Nesse caso, o legislador precisa im-
por ou apoiar financeiramente a in- 1   O
 ferecido pela fundação criada por Richard
de resíduos relacionados à indústria e à construção. As exportações fran- Goldman, chefe de uma seguradora norte-a-
cesas de resíduos são cerca de três vezes maiores do que as importações, tegração dos materiais reciclados mericana, e por sua esposa, Rhoda, é o prê-
pelos fabricantes. mio de maior prestígio para a ação ambiental.
indo majoritariamente para países europeus (principalmente Bélgica, Espa- 2   “ Discarded. Communities on the frontlines
Na França, a Agência de Meio
nha, Alemanha e Luxemburgo) e para a Turquia. Do total de resíduos, 16%, Ambiente e Gestão Energética (Ade-
of the global plastic crisis” [Descartado.
Comunidades na linha de frente da crise
o equivalente a 2,3 milhões de toneladas, são encaminhados para “outros me) reconhece que o reprocessa- global do plástico], Gaia, Berkeley (Califór-

®
países”2 (entre os mais pobres do mundo) apesar dos danos causados ao mento de plástico “enfrenta freios nia), abr. 2019.
3   Wang Jiu-Liang, Plastic China [China de
meio ambiente e à saúde de suas populações. tecnológicos e econômicos”.13 A pes- plástico], CNEX Inc., 2016.
quisa avança, mas às vezes é mais 4   “ Notification G/TBT/N/CHN/1211”, Organi-
1   G iulietta Gamberini, “Recyclage: à Paris aussi, le tri du plastique devient plus simple” [Re- lenta do que a chegada de novos ma- zação Mundial do Comércio (OMC), Gene-
ciclagem: também em Paris, separar o plástico torna-se mais simples], La Tribune, 9 jan. bra, jul. 2017.
2019. Disponível em: www.latribune.fr.
teriais ao mercado. Flore Berlingen, 5   G ayatri Suroyo e Cindy Silviana, “In Indone-
2   “ Déchets. Chiffres-clés” [Resíduos. Dados principais], Agência Francesa de Meio Ambien- ex-diretora da Zero Waste France sia, splits emerge over efforts to stem plastic
te e Gestão Energética, Angers, 2020. (antigo Centro Nacional de Infor- tide” [Na Indonésia, surgem divisões sobre
os esforços para conter a maré de plástico],
mações Independentes sobre Resí- Reuters, 21 dez. 2018.
duos) e autora de Recyclage. Le 6   “ Plastic waste to be sent back” [Lixo plástico
nização para a Cooperação e o De- letiva. Esses esforços promissores são Grand enfumage,14 dá o exemplo da mandado de volta], The Edge Financial Daily,
Petaling Jaya (Malásia), 29 maio 2019.
senvolvimento Econômico (OCDE). prejudicados quando os países mais garrafa de leite feita de plástico bri- 7   “ Philippines ships 69 containers of dumped
Por isso, esta é a segunda recomenda- ricos se livram de seus resíduos de lhante branco. Utilizada por conve- rubbish back to Canada” [Filipinas enviam
ção do relatório: proibir todas as ex- maneira barata. niência ou por ter uma aparência 69 contêineres de lixo de volta para o Cana-
dá], Al-Jazeera, 31 maio 2019. Disponível
portações de resíduos plásticos, mes- A reciclagem, que é percebida co- mais atraente para o consumidor, em: www.aljazeera.com.
mo recicláveis, desses países. mo uma solução mais ecológica do ela prejudicou o avanço técnico que 8   Tratado internacional sob a égide das Na-
A SAM e seus parceiros europeus que o aterro ou a incineração, a pon- tinha melhorado a separação das ções Unidas, assinado em 1989 e em vigor
desde maio de 1992. Dos 166 Estados-par-
também pedem que a indústria dos to de a prática da coleta seletiva ser- garrafas convencionais, mais opa- tes, apenas os Estados Unidos e o Haiti não
países ocidentais invista em melho- vir como critério de distinção social, cas: o tipo de plástico não é o mes- o ratificaram.
rar a concepção de suas embalagens teve sua aura manchada após a des- mo, mas as máquinas têm dificulda- 9   S ão eles: o tereftalato de polietileno (PET), o
polietileno (PE) e o polipropileno (PP).
em termos ecológicos, utilizando coberta dos danos causados no Su- de para diferenciar. 10  Rob Picheta e Sarah Dean, “Over 180 coun-
materiais mais fáceis de reciclar. Por deste Asiático. Longe de ser uma so- Teoricamente, o princípio da “res- tries – not including the US – agree to res-
fim, propõem reduzir os resíduos na lução, ela na verdade é limitada, ponsabilidade ampliada” do produ- trict global plastic waste trade” [Mais de 180
países – sem incluir os Estados Unidos –
origem, sobretudo abandonando as complexa e cara. tor “compromete os comerciantes de concordaram em restringir o comércio global
embalagens descartáveis. Se, antes produtos embalados e papéis gráfi- de resíduos plásticos], CNN, 11 maio 2019.
dessa crise, o Sudeste Asiático não se cos a financiar ou organizar a gestão Disponível em: https://edition.cnn.com.
11  
“European waste trade impacts on Malay-
distinguia por uma gestão muito eco- É preciso separar os ma- do fim de vida das embalagens e pa- sia’s zero waste future” [O comércio euro-
lógica de seu próprio lixo, há exem- teriais com um cuidado péis”, segundo a empresa de recicla- peu de resíduos impacta o futuro de lixo zero
da Malásia], Zero Waste Europe, Bruxelas,
plos de iniciativas realizadas em vá- gem Citeo. Mas a história da garrafa
rios países, de Bandung (Indonésia) a
que é difícil de exigir dos de leite brilhante mostra que esse
jan. 2021.
12  Nicola Smith, “Britain sends more plastic
San Fernando (Filipinas), para atin- usuários, sejam eles resi- princípio não serve para muita coisa. waste to Southeast Asia despite clashes
gir o objetivo de “lixo zero”. A SAM, denciais ou corporativos Antigamente, as embalagens reu- with local government” [Grã-Bretanha envia
mais lixo plástico para o Sudeste Asiático,
que tem sede em Penang, uma ilha tilizáveis eram responsabilidade dos apesar dos confrontos com o governo local],
altamente urbanizada no noroeste fabricantes, que tinham de organizar The Telegraph, Londres, 9 out. 2020.
da Malásia, lembra que o governo lo- Limitada, porque sob o nome ge- a coleta. A “embalagem perdida” que 13  “Déchets. Chiffres-clés” [Resíduos. Dados
principais], Ademe, Angers, 2020.
cal proibiu, em 2014, o uso de polies- nérico de “plástico” existem diver- a substituiu, depois que ela se tornou 14  F lore Berlingen, Recyclage. Le Grand enfu-
tirenos para embalagens de alimen- sos materiais, identificados de 1 a 7 “descartável”, efetivamente exime os mage [Reciclagem. A grande cortina de fu-
tos (ainda autorizado na Europa em na embalagem: 1 para o tereftalato fabricantes de suas obrigações. As- maça], Rue de l’Échiquier, Paris, 2020.
15  A Ademe cita nada menos que dezoito leis,
2021). Em 2015, a ilha já apresentava de polietileno (PET), utilizado nas sim, eles a abandonaram ao cuidado decretos e planos de ação franceses ou eu-
um índice de reciclagem próximo a garrafas de água e refrigerante; 2 das comunidades. Parece difícil vol- ropeus desde 2010.
40% e, em 2018, colocou em prática para polietileno de alta densidade tar a responsabilizá-los, mesmo que 16  Laura Parker, “A whopping 91% of plastic
isn’t recycled” [Escandalosos 91% de plásti-
um plano de coleta de sobras de ali- (Pead), o das garrafas de leite, óleo e o quadro legislativo e regulatório cos não são reciclados], National Geogra-
mentos em locais de alimentação co- detergente; 5 para o polipropileno avance rapidamente.15 phic, Washington, DC, 20 dez. 2018.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

AS FIGURAS DA DIREITA ISRAELENSE

Pacifistas não entendem de todo o processo. E esta outra pe-


quena frase, que também dessa vez
provocou reações da direita israelen-

a ideologia de Netanyahu
se: “Qualquer solução oriunda das
negociações deverá também reco-
nhecer os direitos legítimos do povo
palestino e suas justas necessidades”.
Essa definição da autonomia dos pa-
lestinos será encontrada novamente,
quase palavra por palavra, nos Acor-
Por muito tempo minoritário, o Likud se impôs pouco a pouco como a maior força política dos de Oslo, quinze anos depois...
de Israel – uma ascensão que deve muito à personalidade de seus dirigentes. Quer se Como o Egito já não apresentava o
risco de incomodar os planos de Be-
trate de Menahen Begin, primeiro a vencer a esquerda, de Yitzhak Shamir, antigo chefe gin e de seu ministro Sharon, ele lan-
de uma organização terrorista, ou de Benjamin Netanyahu, o atual primeiro ministro, çou a colonização na Cisjordânia. O
todos trabalharam para intensificar a colonização dos territórios palestinos número de habitantes nas implanta-
ções passou de apenas 20 mil em 1977
para mais de 70 mil dez anos depois.
POR CHARLES ENDERLIN* Em outubro de 1979, Moshe Dayan,
que tinha deixado o Partido Traba-
lhista para se tornar o ministro das
A PRIMEIRA VITÓRIA DO LIKUD Já nessa época ele não gostava das meira vez na história, um avião ofi- Relações Exteriores do gabinete de
Em 17 de maio de 1977, o Partido Tra- reportagens que a imprensa israelen- cial egípcio aterrissou em Israel. A vi- Begin, pediu demissão. Ele entendeu
balhista perdeu as eleições e, pela se publicava sobre a repressão da re- sita iria mesmo acontecer. No dia que, para o Likud, não se tratava na
primeira vez desde a criação do Esta- sistência à ocupação e ao início da seguinte, na tribuna do Knesset, Sa- realidade de continuar o processo de
do de Israel, o poder passou para a colonização nos territórios palesti- dat declarou: “A paz só será real com paz com os palestinos... Pelas mes-
oposição de direita. O Likud entrou nos após a Guerra dos Seis Dias. Para a condição de ser fundada na justiça, mas razões, Ezer Weizman, o minis-
no jogo. Menahem Begin, o novo pri- aquilo que era então uma direita ju- e não na ocupação das terras alheias”. tro da Defesa, também se demitiu al-
meiro-ministro, era a favor da anexa- dia, a mídia deveria se autocensurar, Ele insistiu na “necessidade de uma guns meses depois.
ção dos territórios palestinos. Ele era não mostrar o que estava acontecen- retirada total dos territórios árabes,

®
um fiel apoiador do Gush Emunim do. Desde então, Neher e seus amigos incluindo Jerusalém do Leste”, e na O MISTÉRIO SHAMIR
[Bloco da fé], a organização sionista combateram qualquer crítica da co- criação de um “Estado palestino”. Em 1988, eu decidi escrever a biogra-
religiosa que tem por objetivo desen- lonização que Begin e Ariel Sharon fia de Yitzhak Shamir.5 Sabia-se muito
volver a colonização na Cisjordânia. quisessem desenvolver. pouco sobre o passado desse persona-
Na Kol Israel [A voz de Israel],1 isso Como o Egito já não apre- gem, chefe do grupo paramilitar sio-
significava um novo vocabulário. BEGIN E A PAZ COM O EGITO sentava o risco de inco- nista Stern nos anos 1940, agente do
Não se pode mais dizer “Cisjordânia”, Alguns meses depois, um evento im- Mossad, presidente do Knesset quan-
e sim “Judeia-Samaria”; o termo “co- portante veio transformar o Oriente
modar os planos de Begin do da visita histórica de Sadat a Jeru-
lônias” foi, a princípio, banido. Tanto Médio e chacoalhar a visão profun- e de seu ministro Sharon, salém, ministro das Relações Exterio-
quanto possível, não se devia falar de damente enraizada na consciência ele lançou a colonização res durante a guerra contra o Líbano
“implantações”, mas de “localidades” coletiva dos israelenses sobre um na Cisjordânia em 1982, sucessor de Begin na chefia
judias. Ainda era facultativo, e eu mundo árabe com o qual a paz é, no do Likud e duas vezes chefe de gover-
nem sempre utilizava o vocabulário melhor dos casos, um sonho impos- no.6 Diversos intelectuais israelenses
“recomendado”, que, para mim, não sível. Em 9 de novembro de 1977, o Em 17 de setembro de 1978, sob a me diziam: “Shamir!? Não é interes-
conseguia mascarar a realidade da presidente egípcio Anwar Sadat liderança de Jimmy Carter, o presi- sante! Não enxerga dois palmos à
ocupação dos territórios palestinos. anunciou, ao longo de um discurso dente norte-americano, Begin e Sadat frente do nariz!”. Em outras palavras,
Nessas condições, meus comen- diante do Parlamento de seu país, assinaram solenemente os Acordos não havia nada a escrever sobre ele!
tários e minhas reportagens nem que estava disposto a ir ao Knesset, de Camp David. O Egito ia recuperar Quando, bem depois, eu me interessei
sempre agradavam a diversos is- em Jerusalém, “se isso permitisse que todo o Sinai4 e concluir um tratado de pelo movimento messiânico e por Ne-
raelenses de origem francesa – prin- a morte de um soldado ou oficial paz com Israel. É preciso, entretanto, tanyahu, reencontrei essa falta de in-
cipalmente o professor André Neher. egípcio fosse evitada”. Para os jorna- voltar aos textos do “Acordo-modelo teresse – e de compreensão – dos inte-
Personalidade importante do judaís- listas da Kol Israel, isso parecia total- para a paz no Oriente Médio”. Uma lectuais da esquerda israelense pela
mo francês, imigrante recentemente mente incongruente. O rais (“presi- frase fez estremecer a direita israelen- ideologia da direita no poder.
instalado em Jerusalém, ele as consi- dente”, em árabe) em Jerusalém? se, que por muito tempo condenou Efetivamente, Shamir não tinha
derava inadmissíveis. Eu descobriria, Begin respondeu na mesma noite que Begin por isso: “Os palestinos partici- publicado nenhum livro, nem conce-
bem depois, as advertências que ele estava disposto a acolhê-lo. Essa parão da determinação de seu pró- dido à mídia israelense grandes en-
tinha proferido depois da Guerra dos aproximação entre dirigentes inimi- prio futuro”. Como? Primeiro, duran- trevistas contando sua vida, suas ori-
Seis Dias de junho de 1967 aos “teóri- gos continuou por alguns dias. Na re- te um período transitório de cinco gens. Não havia quase nada a seu
cos de uma esquerda pura [e a] mui- dação, analisávamos o fato, na me- anos no início do qual “os habitantes respeito. Foi preciso que eu procuras-
tos intelectuais judeus da diáspora lhor das hipóteses, como um grande da margem ocidental do Jordão e de se, encontrasse testemunhas ainda
que reivindicam o direito de crítica exercício de relações públicas, e uma Gaza elegerão uma autoridade autô- vivas. A história desse homem me pa-
com relação a Israel, sem se darem brincadeira nos levava às gargalha- noma que os governará e colocará em recia fascinante. Um cientista políti-
conta do mecanismo mortalmente das: “Sadat vai a Yad Vashem!”.3 Era ação uma potente força de polícia lo- co o definia como nacional-bolchevi-
perigoso no qual eles aceitam entrar. inimaginável. Algumas semanas an- cal, que contribuirá para garantir a que. Devo reconhecer que não
[...] Ser contra Israel, por qualquer tes, o rais tinha declarado que estava segurança de Israel e de seus vizi- consegui escavar todas as zonas obs-
nuance que seja, é, neste ponto preci- disposto a sacrificar 1 milhão de sol- nhos”. Três anos depois do início des- curas de suas origens. Seus pais eram
so, ser realmente e fatalmente contra dados egípcios para recuperar sua se período transitório deveriam co- membros de uma célula comunista
Israel, é dar para a acusação de Israel terra, o Sinai. Na sexta-feira, 18 de no- meçar as negociações para definir o em Rozhoni, seu vilarejo natal na Po-
uma contribuição cujas repercussões vembro de 1977, no final da manhã, estatuto definitivo da margem oci- lônia oriental. Depois da ocupação
sobre o todo são perigosamente im- eu estava no Aeroporto Ben Gurion dental e de Gaza e concluir um trata- da região pelo Exército Vermelho, em
previsíveis. Essas ‘críticas’ são, por- para cobrir a chegada da delegação do de paz entre Israel e a Jordânia, 1939, Shlomo Yzernitzky, seu pai, foi
tanto, nocivas, em lógica pura”.2 preparatória vinda do Cairo. Pela pri- cujos representantes participariam designado pela hierarquia soviética
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 15

para o importante cargo de comissá- Uma noite em 1942, ele conversava tos. As duas formações ultraortodoxas da razão pura, de Emmanuel Kant.
rio encarregado do comércio de peles com Eliahu Beit Tsouri, que acabava recusaram suas propostas, assim co- Estavam reunidos cerca de vinte pro-
e couros, um recurso estratégico. de recrutar. Trechos: mo o partido Shass, os ultraortodo- fessores eméritos, historiadores, so-
Dois amigos de infância de Sha- • Shamir: “Nosso objetivo? Libertar xos orientais. Na verdade, Barak e o ciólogos, filósofos, a maioria funda-
mir, encontrados em Israel, me di- nosso povo da ocupação estrangei- Shass não queriam que ela dirigisse o dores do movimento A Paz Agora, nos
ziam que ele era mais versado nos es- ra. É nossa guerra contra a Inglater- país. Eles concluíram um acordo se- anos 1970. Nenhum nunca leu algum
critos de Marx e Engels que nos de ra [então potência mandatária na creto com o ex-primeiro-ministro livro de Netanyahu.
Vladimir Zeev Jabotinsky, o fundador Palestina, N.R.]. [...] Seremos ape- Netanyahu, que, por sua vez, conse- Em 2012, Sternhell reconheceria:
do sionismo revisionista, um movi- nas um pequeno grupo. Poucos guiu formar uma coalizão parlamen- “Na esquerda, a gente não tinha en-
mento anticomunista e antissocialis- contra muitos. Estaremos isolados tar de 74 deputados com o Likud, os tendido que tudo isso iria logicamen-
ta oposto às instituições da Organiza- em nossa guerra. A população nos sionistas religiosos, os ultraortodo- te se encadear. Baruch Goldstein [au-
ção Sionista Mundial e que pregava a rechaçará até que consigamos edu- xos, o Shass e os Trabalhistas. Barak tor do massacre de 29 palestinos em
criação de um Estado judaico dos cá-la. [...] Faremos uma guerra de conservou o Ministério da Defesa. Hebron em 1994] e Yigal Amir [assas-
dois lados do Jordão. Para todas as guerrilha. É a única arma dos fracos Netanyahu voltou então ao poder. sino de Yitzhak Rabin em 1995] re-
outras testemunhas, não havia dúvi- contra os fortes. A única maneira de Eu reli seu livro em suas duas versões, presentavam uma corrente ideológi-
das: ele teria se unido muito jovem ao chegar a um equilíbrio de forças...” em hebraico e em inglês. Na época, ca e política considerável, muito
Betar, o movimento da juventude sio- • Beit Tsouri: “Que operações podere- segundo suas declarações durante a poderosa, uma verdadeira torrente
nista revisionista. Ele veio para a Pa- mos realizar?” campanha das primárias do Likud, que a esquerda se recusava a ver por
lestina em 1935 com a aprovação dos •Shamir: “O terrorismo individual. ele não mudou sua visão, como a defi- covardia. Era cômodo fechar os
soviéticos dos quais dependia seu Ações terroristas dirigidas indivi- nia em seu livro A Place Among the olhos. Era mais fácil dizer que tínha-
pai? Onde estaria a verdade? O grupo dualmente contra as pessoas na che- Nations [Um lugar entre as nações], e mos pegado uma gripe do que dizer
paramilitar sionista Stern, do qual ele fia da administração de ocupação.” não tinha a intenção de fazer a menor que estávamos com câncer, enquan-
se tornou chefe operacional a partir Sob as ordens de Shamir, Eliahu concessão aos palestinos: “A vida co- to era mesmo um câncer que nos afe-
de 1944, tinha ligações privilegiadas Beit Tsouri e Eliahu Hakim assassina- tidiana dos árabes pode ser concebi- tava, e isso foi o grande fiasco da lide-
com o Partido Comunista na Palesti- riam, no Cairo, Lord Moyne, ministro da diferentemente na realidade do lo- rança israelense de esquerda”.8 
na, na Tchecoslováquia e na Bulgária. britânico das colônias, no dia 8 de fe- cal. [...] Quando alguns árabes
A resposta se encontraria talvez nos vereiro de 1944. Capturados e conde- povoam uma colina isolada, não há *Charles Enderlin é jornalista. Autor da
arquivos do NKVD7 em Moscou. nados à morte, eles foram enforcados. nenhuma razão para declarar a coli- obra De notre correspondant à Jérusalem.
Relendo as autobiografias publi- na inteira autônoma. [...] Apenas se- Le journalisme comme identité [De nosso
cadas pelos veteranos do grupo Stern, O RETORNO DE NETANYAHU riam autônomos os centros urbanos. correspondente em Jerusalém. O jornalis-

®
eu constatei que, até o início dos anos As eleições legislativas aconteceram O resto do território, pouco povoado, mo como identidade], Seuil, Paris, 2021. Os
1960, alguns se vangloriavam de ter em Israel em 10 de fevereiro de 2009. será excluído desse acordo”. trechos deste artigo são tirados dessa obra.
se engajado nas vias do terrorismo. O partido Kadima, dirigido por Tzipi Para o primeiro-ministro, a es-
Esse termo desapareceu nas edições Livni, ficou na frente, com 28 deputa- querda continua sendo o inimigo in- 1   F oi nessa rádio pública israelense, multilín-
guas, nacional e internacional, que o autor
seguintes, seus autores apresentan- dos. Essa antiga deputada do Likud terno, porque ela aceita a ideia de que começou sua carreira de jornalista em 1971,
do-se mais como “combatentes pela efetuou uma mudança ideológica de o povo palestino tenha direitos. É, es- na seção francófona. (N.R.)
liberdade”. Minha impressão de estar 180 graus ao aceitar, em troca da paz, creve ele, o sintoma da doença con- 2   Nono colóquio dos intelectuais judeus de lín-
gua francesa, 29 jan. 1968. Citado em Israël
diante de uma reescrita da história o princípio da partilha da terra de Is- traída no início do século na Europa dans la conscience juive. Données et débats
foi reforçada ao longo dos dias passa- rael com os palestinos, contraria- do Leste. O vírus do marxismo que [Israel na consciência judia. Dados e debates],
dos nos arquivos do Museu do Stern, mente à educação muito à direita que impregnou todos os movimentos ju- Presses Universitaires de France, Paris, 1971.
3   M onumento em memória às vítimas do Holo-
em Tel Aviv. Eu via homens e algumas ela recebeu de seus pais. Eitan Livni, deus, socialistas, comunistas e de es- causto, em Jerusalém. (N.R.)
mulheres, de idade, passar horas re- seu pai, foi o chefe das operações de querda desde o início do século XX. 4   Ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis
gistrando seus testemunhos. Eu pe- Irgun, a organização clandestina di- O campo da paz compreende a Dias, em 1967. (N.R.)
5   Shamir. Une biographie [Shamir. Uma biogra-
dia explicações: “Eles estão testemu- rigida por Begin, que combateu os ideologia que guia a política de Ne- fia], Olivier Orban, Paris, 1991.
nhando somente agora?”. Resposta: britânicos até a independência de Is- tanyahu? Eu não creio. E tive a confir- 6   De 1983 a 1984, depois de 1986 a 1992. (N.R.)
“De jeito nenhum! Estão reformulan- rael, em 1948. O presidente do Estado mação em uma recepção na casa do 7   A polícia política soviética. (N.R.)
8   Entrevista com Zeev Sternhell, que pode ser
do seus testemunhos. Tem coisas que lhe confiou a missão de formar uma historiador e universitário Zeev Ster- lida em Au nom du Temple. Israël et l’irrésistible
não se pode contar hoje em dia!”. nova coalizão governamental. Ela nhell, em Jerusalém. O convidado de ascension du messianisme juif (1967-2013)
Entretanto, eu consegui pôr as negociou sem sucesso com Ehud Ba- honra era Yirmiyahu Yovel, na oca- [Em nome do Templo. Israel e a irresistível as-
censão do messianismo judeu (1967-2013)],
mãos em uma citação de Shamir em rak, cujo Partido Trabalhista desmo- sião do lançamento em livrarias de Seuil, Paris, 2013. Também figura no documen-
um livro de Gerold Frank, The Deed. ronou e não tinha mais que doze elei- sua tradução em hebraico da Crítica tário de mesmo nome (2015).
16 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

UMA IDEOLOGIA VÍTIMA DE SUAS CONTRADIÇÕES

O declínio do
sionismo de esquerda
Pela quarta vez em dois anos, a oposição ao primeiro-ministro israelense,
Benjamin Netanyahu, se vê diante do mesmo impasse: embora majoritária,
ela é tão heterogênea que não consegue chegar a um acordo. Com treze
das 120 cadeiras do Parlamento, a esquerda sionista, encarnada pelo histórico
Partido Trabalhista e pelo Meretz, parece velar a hegemonia perdida

POR THOMAS VESCOVI*

D
epois das quatro eleições legis- çasse sua segurança. O objetivo se perspectivas nacionalistas, e com
lativas ocorridas em Israel des- tornou então a criação de uma enti- maior razão etnorreligiosas, foram
de abril de 2019, impôs-se a dade política em que eles seriam ma- percebidas como uma ruptura com a
mesma constatação: a influên- joritários e viveriam em segurança. luta de classes, destinada a unir os in-
cia do Partido Trabalhista diminuiu Em outras palavras, a edificação de divíduos em função de sua condição
muito em relação às alianças entre um Estado judeu. social, e não de sua comunidade. Por
nacionalistas e religiosos. A utopia do O projeto sionista, porém, não era outro lado, as organizações marxis-
sionismo de esquerda, ou seja, a fun- monolítico e surgiram tendências. A tas e socialistas europeias negavam a
dação de um Estado para os judeus burguesia se reuniu em torno de Her- existência de uma “nação judaica”.
sobre bases socialistas, parece ter zl, que, partidário de um Estado ju-

®
fracassado. Entretanto, essa esquer- deu liberal, procurou obter ajuda di- KIBUTZ, A IMAGEM
da teve um papel fundamental na plomática e pontos de apoio no seio HISTÓRICA IDEAL
história de Israel: no coração de sua do capitalismo ocidental. Outros mi- No entanto, aqueles que sofriam com
criação, em 1948, foi majoritária no litantes defendiam um sionismo alia- o antissemitismo e com suas humi-
Knesset (o Parlamento israelense) do ao socialismo, fazendo repousar o lhações diárias, e a quem era negada No entanto, o não cumprimento
durante as três primeiras décadas de sucesso do projeto na transformação qualquer forma de reconhecimento por Israel das resoluções da ONU co-
existência do Estado e voltou ao co- dos judeus marginalizados em traba- social, não podiam esperar até o meçou já em sua criação, quando a es-
mando de 1992 a 1996 e depois de lhadores, operários e camponeses triunfo de uma hipotética revolução. querda ditava a agenda política. De
1999 a 2000. Mas, nas últimas elei- produtivos. A partir dos anos 1920, Foi assim que o sionismo ganhou in- década em década, o sionismo traba-
ções, essa esquerda mostrou-se inca- esse sionismo de esquerda, conheci- fluência entre os ativistas de esquer- lhista, com sua recusa a conceder di-
paz de voltar ao primeiro plano, re- do como “trabalhista”, chegou a se da, cujo ideal progressista e revolu- reitos iguais aos árabes que viviam em
gistrando os piores resultados de sua impor à frente do movimento. cionário não deixava de estar suas fronteiras e reconhecer o direito
história – sete cadeiras das 120 em No fim do século XIX, os fundado- impregnado de uma cultura colonial. dos palestinos de viver livres e digna-
março de 2020 e treze neste ano. res do movimento reivindicaram o re- Na Palestina, diante de uma popula- mente em sua pátria, perdeu sua más-
Para explicar esse declínio, con- conhecimento não apenas de um di- ção árabe amplamente camponesa e cara progressista e conservou apenas
vém recordar as origens e contradi- reito à soberania para os judeus, mas ligada a modelos políticos tradicio- um caráter conservador e colonial.
ções do sionismo de esquerda. Em também de um direito à instalação em nais, as organizações sionistas de es- Hoje, a visão do judeu revolucio-
1897, em Basileia, intelectuais judeus uma terra onde eles eram então pouco querda se sentiram uma vanguarda nário desembarcando na Palestina
fundaram o movimento sionista. Sua numerosos: não chegavam a 5% da revolucionária, sobre a qual se assen- para fundar com seus camaradas um
principal figura foi o jornalista aus- população da Palestina. Em um con- tava a vitória do marxismo ou do so- Estado progressista e uma sociedade
tro-húngaro Theodor Herzl. Antigo texto em que as potências ocidentais cialismo no Oriente Médio. Assim co- igualitária permanece enraizada no
defensor da assimilação, ele viu seu estabeleceram impérios na Ásia e na mo a burguesia sionista, elas partiam imaginário político de muitos euro-
ideal desmoronar: em 1894, em Paris, África, principalmente, o projeto sio- do princípio de que, sendo seu projeto peus. Durante décadas, estes últimos
cobriu o caso Dreyfus para seu jor- nista integrava a ideologia colonial.1 justo, moderno e progressista, os ára- se sensibilizaram com a questão is-
nal; depois, em 1897, soube da elei- Ser de esquerda podia revelar bes só poderiam se beneficiar dele. raelo-palestina por meio da celebra-
ção do candidato social-democrata e uma abordagem universalista e con- Essa perspectiva ruiu a partir dos ção do modelo socialista israelense,
abertamente antissemita Karl Lue- sistir em defender princípios como a anos 1920 e 1930, marcados por vá- com os kibutzim coletivistas e seus
ger à prefeitura de Viena. A partir de justiça social para todos e o acesso rios ciclos de revoltas dos árabes da pioneiros trabalhando a terra. O qua-
então, passou a ver a assimilação não dos povos à igualdade e à liberdade. Palestina contra a expropriação de dro era idealizado, mas hoje não sig-
mais como uma solução, e sim como O sionismo parecia estar em contra- suas terras e o jogo duplo da potência nifica grande coisa. Não apenas por-
uma ameaça. Os judeus se veriam dição com esses ideais, pois preten- mandatária britânica. Isso levou, em que os kibutzim não são mais
cercados, de um lado, por correntes a dia defender somente os judeus. Du- 1947, à solução “onusiana” de uma di- significativos nos equilíbrios econô-
favor de sua destruição física, em que rante a segunda metade do século visão da Palestina em dois Estados, micos e sociais, mas sobretudo por-
os pogroms, no Império Russo, foram XIX, a esquerda radical europeia árabe e judaico – solução arrasada que eles não podem mais dissimular
a expressão mais direta, e, de outro, mostrou-se crítica a esse respeito. pela Primeira Guerra Árabe-Israelen- a realidade da política israelense:
por um desejo dentro de suas fileiras Considerava que os princípios mar- se. No decorrer desse conflito, o mo- uma política colonial, opressiva e an-
de se integrar às sociedades euro- xistas e socialistas eram os únicos vimento sionista chegou a tomar pos- corada na doxa neoliberal, o que faz
peias, afastando-se da religião e até objetivos a serem seguidos: seria por se de 78% da Palestina, onde foi de Israel um dos países mais desi-
mesmo de qualquer pertencimento meio da revolução social que os ju- fundado o Estado de Israel, em 1948. guais do mundo ocidental: o segundo
comunitário. No entanto, essa últi- deus se emancipariam, e não pela Este só teve legitimidade graças à de- – atrás do México – no seio da Organi-
ma estratégia não impediu que o an- criação de um Estado a milhares de cisão da ONU, que previu a criação a zação para a Cooperação e o Desen-
tissemitismo se difundisse e amea- quilômetros de seus locais de luta. As seu lado de um Estado árabe. volvimento Econômicos (OCDE). A
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 17

© Renato Zechetto
bre o voto dos judeus orientais, tradi- os kibutzim permitiam aos militan-
cionalmente favoráveis à direita. tes adquirir uma educação política
Entretanto, Avi Gabbay multiplicou que, com a carreira militar, consti-
os convites discretos ao eleitorado tuía a base principal da formação
conservador e religioso, afirmando trabalhista. Esses quadros represen-
que as colônias representavam a “be- tavam a elite do país. Se hoje ainda
la face do sionismo” e que os erros da existem cerca de 250 kibutzim, eles
esquerda se deviam ao fato de que são em sua maioria privatizados. Do-
seus militantes haviam esquecido o tados de terrenos para a construção
que significava ser judeu. Seu suces- de vilas ou parques para lazer,
sor até janeiro de 2021, Amir Peretz, atraem jovens casais com filhos em
também marroquino, não foi melhor busca de um modo de vida mais sau-
do que ele no plano eleitoral. dável. Apenas alguns ainda funcio-
Outro elemento desfavorável para nam segundo os princípios coletivis-
a esquerda sionista: seus militantes tas, tais como a igualdade de salários
não conhecem, ou conhecem mal, o e a vida em comunidade.
cotidiano dos israelenses que vivem Enfim, é preciso observar que a
na periferia das principais cidades. maior parte dos militantes da esquer-
Para o cientista político Ilan Greil- da sionista tem pouca consciência da
sammer, o conjunto do movimento realidade palestina e não sabe o que
trabalhista sionista, inclusive o Me- significa viver sob bloqueio militar.
retz, não tem “nenhuma ligação com Quando leem reportagens realizadas
as massas populares”.2 Os responsá- por jornalistas como Amira Hass e
veis por esses partidos, acrescenta, Gideon Levy nos territórios ocupa-
“nunca foram a Sderot ou a Netivot dos, eles associam seus autores a es-
[duas cidades do sul de Israel, próxi- querdistas, alarmistas e pessimistas,
mas à Faixa de Gaza], nem passando que só ouviriam a versão palestina.
de carro”. Isso explica por que suas Também é revelador o desinteresse
ideias são percebidas como propostas trabalhista pelas ONGs, como a
“elitistas” concebidas por e para os B’Tselem, a Breaking the Silence ou a

®
privilegiados de Tel Aviv. Como ocorre Yesh Din, que mostram a realidade
em muitos países, o eleitorado de di- da ocupação, assim como todos os
reita é nitidamente mais popular que elementos incômodos e os pontos ce-
o de esquerda, salvo entre os árabes. gos que a sociedade israelense não
isso acrescenta-se a degradação do sando-se a se alistar por motivos filo- Após as eleições de abril de 2019, deseja ver. Essas organizações são os
clima político: muitos intelectuais e sóficos ou políticos. Os outros conse- o jornalista Meron Rapoport estu- últimos pilares do campo da paz,
jornalistas qualificam a evolução de guem ser isentos, caso sejam dou o voto de 37 comunidades judai- mas não têm quase mais nenhum
Israel a partir dos anos 2000 de “direi- ultraortodoxos, ou obtêm dispensa cas entre as mais pobres do país, re- apoio político dos principais dirigen-
tização”, alguns falando até em “des- por diversos motivos, principalmen- presentando 1 milhão de eleitores. 3 tes da esquerda, mais preocupados
vio fascistizante”, em um contexto de te profissionais (embora a atribuição No geral, essas cidades reúnem ju- em recrutar eleitores entre os mais de
marginalização crescente da esquer- de alguns postos imponha o cumpri- deus mizrahim e judeus russos. Na 660 mil colonos que residem na Cis-
da sionista. mento de suas obrigações militares). média, a taxa de participação ali é de jordânia. Encontram-se isoladas
O Estado trabalhista, construído 60%, o equivalente a trinta cadeiras diante de um poder que limita consi-
no decorrer das primeiras décadas da no Knesset, segundo as regras do vo- deravelmente suas atividades ao
existência de Israel e baseado em Em setembro de 2019, to proporcional em vigor em Israel. apresentá-las como traidoras da pá-
princípios de laicidade e solidarieda- apenas 41% das crianças Em seu conjunto, a esquerda sionista tria. Ao se desligar de uma parte des-
de entre trabalhadores judeus, não obteve 3,25% dos votos, ou seja, um se campo político que antes formava
existe mais. Israel está hoje plena-
estavam matriculadas deputado. Os dirigentes do Partido uma de suas bases eleitorais, a es-
mente integrado ao capitalismo oci- em escolas laicas e Trabalhista e do Meretz não existem querda sionista se priva de dinâmicas
dental e tornou-se até um eldorado públicas; o restante aos olhos dos judeus mais desfavore- que poderiam oferecer um discurso
para os empreendedores das novas frequentava escolas cidos, principalmente os não asque- alternativo à propaganda colonial e
tecnologias digitais. No seio da socie- naze. Inversamente, a direita nacio- ultrassecuritária de Netanyahu. 
dade, as ondas de reformas econômi-
privadas e religiosas nalista conseguiu 22 mandatos
cas adotadas a partir dos anos 1980 nessas comunidades, entre os quais *Thomas Vescovi é pesquisador inde-
substituíram o espírito coletivo pelo IGNORÂNCIA DA doze para o Likud. O partido de Ben- pendente em história contemporânea. Este
individualismo, e os valores socialis- REALIDADE PALESTINA jamin Netanyahu, assim como seus artigo foi adaptado de sua obra L’Échec
tas parecem agora fora de moda, con- Por outro lado, embora o Estado reco- aliados, enraíza-se nessa sociedade d’une utopie. Une histoire des gauches en
trariamente àqueles do nacionalismo nheça apenas um “povo judeu”, a periférica, em particular por meio de Israel [O fracasso de uma utopia. Uma his-
religioso. A título de exemplo, em se- conflituosidade permanece onipre- organizações beneficentes que pro- tória das esquerdas em Israel], La Décou-
tembro de 2019, apenas 41% das sente entre os componentes da popu- põem atividades para as crianças ou verte, Paris, 2021.
crianças estavam matriculadas em lação judaica (asquenazes, falashas, escolas subsidiadas. Algumas déca-
escolas laicas e públicas; o restante mizrahim, judeus russos, sefardi- das antes, esse ativismo era exclusi- 1   L er Gilbert Achcar, “La dualité du projet sio-
frequentava escolas privadas e reli- tas...), que se sentem concorrendo vidade da central sindical Histadrut niste” [A dualidade do projeto sionista], Ma-
giosas. Esse novo estado de espírito para ascender aos postos de decisão e tinha um papel importante na pe- nière de Voir, n.157, fev.-mar. 2018.
2   Chloé Demoulin, “La gauche israélienne se
atinge também a instituição militar. do país. Se Israel conta apenas com netração trabalhista entre os mais cherche à droite... et ne se trouve pas” [A es-
Segundo a associação de refuseniks 30% de judeus asquenazes, estes últi- desfavorecidos. querda israelense tenta achar um lugar à direi-
Mesarvot (“que reúne aqueles que se mos encarnam as principais corren- A esquerda sionista sentiu tam- ta... mas não encontra], Mediapart, 8 jun.
2018. Disponível em: www.mediapart.fr.
recusam a entrar para o Exército”), tes da esquerda sionista. A eleição em bém ter perdido seu viveiro de diri- 3   Meron Rapoport, “Israel’s left lost a million vo-
cerca de 50% dos estudantes esca- 2017 do empresário Avi Gabbay, de gentes provenientes dos kibutzim, tes in the last polls. Here’s how they get them
pam do serviço militar. Entre eles, família marroquina, à liderança do graças ao qual ela manteve por mui- back” [Esquerda israelense perdeu 1 milhão
de votos nas últimas eleições. Aqui está como
menos de 10% se afirmam todo ano Partido Trabalhista (posto que ocu- to tempo sua participação no Estado eles os recuperaram], Middle East Eye, 19 ago.
como objetores de consciência, recu- pou até 2019) não teve influência so- e nas suas instituições. No passado, 2019. Disponível em: www.middleeasteye.net.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

CAMPANHA NÃO CONSEGUE CONVENCER FUNCIONÁRIOS A SE ORGANIZAREM

Por que os sindicatos perderam a


batalha contra a Amazon nos EUA
Famosos hollywoodianos, jornalistas, políticos: todos desejavam a criação de uma seção sindical no imenso armazém
da Amazon em Bessemer, no Alabama. Todo mundo, menos os trabalhadores do local, que votaram em massa contra
a sindicalização... A pressão exercida pela transnacional durante a campanha bastaria para explicar esse resultado?

POR MAXIME ROBIN*, ENVIADO ESPECIAL

“D
avi contra Golias.” A com- Nos Estados Unidos, sindicalizar Com quase 1 milhão de pessoas a pois, as “cidades-armazém”, que fi-
paração não saía da boca os funcionários de uma empresa é seu serviço, o equivalente a uma pa- cam com “o manuseio da carga e os
dos militantes que, em uma via crucis. Primeiro a organiza- ra cada 150 pessoas economicamen- empregos claramente mais baixos”;
março, organizaram um ção sindical deve ser chamada por te ativas do país, a empresa é o se- por fim, o restante do país, onde o
referendo sobre a criação de uma se- um funcionário da planta – no caso gundo maior empregador privado comércio local é afundado pela ex-
ção sindical no BHM1, o imenso ar- do Alabama, um estoquista que tele- em nível nacional (e em dois anos es- plosão das compras on-line, sem a
mazém da Amazon em Bessemer, no fonou para o RWDSU em agosto –; em pera ultrapassar a rede de supermer- contrapartida da geração de empre-
Alabama. E a comparação não era in- seguida, ela deve provar à agência fe- cados Walmart). A crise sanitária, gos, a não ser nos postos de
fundada. Carregadores, em sua es- deral encarregada das leis trabalhis- com o desenvolvimento maciço das entrega. 3
magadora maioria afro-americanos, tas, a National Labor Relations Board compras on-line, impulsionou ainda Bessemer pertence à segunda ca-
desafiaram uma das mais poderosas (NLRB), que 30% dos trabalhadores mais as atividades da companhia, a tegoria, a das cidades-armazém. Em-
empresas do mundo, de propriedade do local desejam que a seção sindical ponto de ser difícil mensurar o ritmo blemática dos pequenos centros in-

®
do homem mais rico do planeta – Jeff seja criada. Vencida essa etapa, vem de contratação da Amazon hoje, que dustriais em declínio, com seu tecido
Bezos –, em um dos estados mais uma amarga campanha, ao fim da se tornou ainda mais fácil, na medi- social fragilizado desde o fechamen-
conservadores dos Estados Unidos. qual se organiza um referendo. A luta da em que o vírus levou repentina- to, nos anos 1990, da fábrica da Pull-
Porém, enquanto na Bíblia o pe- é travada fábrica por fábrica, super- mente ao desemprego milhões de man, que produzia vagões de carga,
queno Davi acaba derrotando o gi- mercado por supermercado, fast- trabalhadores. Uma situação sem ela lembra outras localidades escolhi-
gante Golias, na Amazon aconteceu o -food por fast-food: se o “sim” tivesse precedentes, de acordo com histo- das pela Amazon para instalar seus
contrário. Dos 5.805 funcionários das vencido em Bessemer, isso não mu- riadores – exceto talvez no início dos gigantescos centros logísticos, como
instalações que ocupam 8 hectares, daria em nada a situação dos demais anos 1940, quando as indústrias Sparrows Point, nos arredores de Bal-
apenas 738 votaram “sim”, ao passo armazéns da Amazon. Para os fun- contratavam a todo vapor para timore, e King of Prussia, perto da Fi-
que 1.798 votaram “não”. Stuart cionários, entrar nesse processo im- apoiar o esforço de guerra. 2 ladélfia. Cidades em crise ficam de
Appelbaum, líder do Retail, Wholesa- plica uma batalha longa e árdua, que, joelhos para atrair a transnacional, o
le Department Store Union (RWD- se perdida, pode trazer represálias RECOMPOSIÇÃO TERRITORIAL que impulsiona a guerra fiscal. “Bes-
SU), o sindicato do grande varejo nos contra aqueles que buscaram a ajuda Para descrever a importância assu- semer oferece créditos fiscais compe-
Estados Unidos, imediatamente con- do sindicato – muitas vezes a demis- mida pela empresa, o jornalista Alec titivos, locações comerciais acessí-
testou o resultado, acusando a Ama- são. Nessas condições, não é de es- MacGillis menciona um “efeito Ama- veis, mão de obra treinada e baixo
zon de ter violado a neutralidade da pantar que apenas 6,3% dos funcio- zon”, que recompõe o território nor- custo de vida”, orgulha-se o site da Câ-
votação. A derrota no Alabama se so- nários do setor privado sejam te-americano segundo uma hierar- mara de Comércio, cujos funcionários
ma àquela ocorrida em Delaware, em sindicalizados nos Estados Unidos. quia em três níveis: no topo, “as não responderam ao nosso pedido de
2014, confirmando o mastodonte das Nas últimas duas décadas, a cidades que abrigam as sedes da entrevista. Durante a campanha sin-
vendas on-line como uma fortaleza Amazon construiu nos Estados Uni- Amazon e os empregos bem pagos, dical, o prefeito democrata Kenneth
inexpugnável para as organizações dos 110 centros do tamanho do de alto nível educacional”, como Gulley, no comando desde 2010, abs-
de trabalhadores. BHM1 e planeja construir mais 33.1 Seattle, Washington e Boston; de- teve-se de tomar posição. Em feverei-
ro, durante seu “Discurso do Estado
da Cidade”, ele elogiou a chegada da
Amazon e destacou o “ambiente pró-
-negócios” do município, sem dizer
uma palavra sobre o conflito.
Os sindicatos nem sempre gozam
de boa reputação junto às autorida-
des eleitas no sul dos Estados Unidos.
O Alabama faz parte do clube dos 27
right-to-work states (estados do direi-
to ao trabalho), onde a lei permite
que os funcionários não paguem
contribuições sindicais, fragilizando
o caixa das organizações trabalhis-
tas. A legislação e a tributação favorá-
© Gustavo Berocan

veis às empresas incentivaram a ins-


talação, nessa região do país, de
grandes grupos automotivos, parti-
cularmente alemães e japoneses, que
trazem consigo todo um ecossistema
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 19

de subcontratação. Dessa forma, o tempo que vigora na Amazon, as en- nários. “Basicamente, para a máqui- sindicato) e, olhando em retrospecti-
Alabama exibe a particularidade de comendas urgentes impossíveis de na, é um momento em que você não va, a campanha fracassada de Besse-
abrigar a única fábrica não sindicali- satisfazer em razão do tamanho do faz nada. Eles querem que o TOT seja mer parece uma enorme miragem.
zada da Mercedes no mundo. hangar, as horas extras requeridas o mais baixo possível, mas isso de- Um observador que se informasse
Nesse contexto, a campanha lan- no último minuto e que complicam o pende necessariamente dos produtos apenas por meio de redes sociais, mí-
çada em Bessemer foi uma surpresa. cuidado das crianças, e sua exaspe- que caem na sua mão.” Um defeito no dias e vídeos on-line teria apostado
O BHM1 é um armazém novo (foi ração por ver suas tarefas determi- código de barras, um cupom de des- na vitória do “sim”, tão numerosas e
inaugurado em março de 2020), que nadas e cronometradas por um algo- conto, e os problemas começam. visíveis eram suas publicações. Sin-
oferece 6 mil empregos com salários ritmo. “Nunca vou entender como Connelly ri nervosamente ao falar da dicatos poderosos, como o dos joga-
que começam em US$ 15,30 por hora, uma pessoa sã pode organizar um atmosfera frenética no armazém, en- dores da liga profissional de futebol
o dobro do salário mínimo no Alaba- sistema como esse e esperar que as tre o espírito de equipe e a rivalidade americano (NFL) e o dos roteiristas
ma e um pouco menos do que se re- pessoas vivam uma vida plena. Com cronometrada. “Eles promovem a de Hollywood, além de artistas e aca-
cebe em uma fábrica de automóveis, jornadas de dez, onze, doze horas, competição o tempo todo. Quem co- dêmicos, apoiaram a iniciativa. Até o
porém mais do que no Walmart (US$ como ter uma família? Ficamos loca mais produtos nas prateleiras presidente Joe Biden assumiu publi-
11 por hora) ou em um fast-food (on- preocupados com as crianças fora de ganha um intervalo extra de quinze camente seu apoio duas semanas an-
de a remuneração tende a se alinhar casa, mas o sistema foi pensado para minutos, uma camiseta.” Antes do tes do fechamento das urnas – apoio
com o salário mínimo). A Amazon que a mãe e o pai estejam em casa referendo sobre o sindicato, a Ama- inédito de um inquilino da Casa
também oferece cobertura de saúde com elas?” Questionada por Glover, zon ofereceu um bônus de demissão Branca, desde Franklin Roosevelt.
desde o primeiro dia de trabalho, o Bates esclarece que seus filhos já es- para tirar os funcionários desconten-
que está longe de ser regra no setor tão crescidos e que ela tem sete ne- tes da votação. “Desde o início da DEMISSÕES ABUSIVAS
privado dos Estados Unidos. tos, despertando exclamações e risos campanha, eles despediram 250 pes- A cobertura por vezes romântica e
Quando chegamos às instalações de admiração. É por eles que ela luta, soas”, diz o carregador. idealizada do conflito ajudou a fo-
do RWDSU em Birmingham, a prin- afirma: “Se não lidarmos com os No condado conservador, onde mentar a ilusão de uma vitória do
cipal cidade do Alabama, no fim de problemas agora, sabemos o que nos mais de quatro em cada dez eleitores “sim” na opinião pública, distorcen-
março, os semblantes eram de cansa- aguarda no futuro”. afro-americanos deram seu voto a do a realidade de um terreno mais di-
ço. Visivelmente extenuados por uma Donald Trump em 2016 e em 2020,4 os fícil de compreender. A pandemia, a
maratona de vários meses, um pe- ENTRE O ESPÍRITO DE EQUIPE ativistas sindicais, no entanto, insis- atmosfera tensa pela presença da mí-
queno grupo de organizadores rece- E A RIVALIDADE CRONOMETRADA tiram em inscrever sua abordagem dia e pela agitação sindical em frente
bia um apoio de peso: o ator Danny Esse sentimento não deve nada ao na continuidade das lutas pelos direi- ao armazém, bem como a topografia
Glover, que usava um boné do Ne- acaso. Apesar de seu gigantismo, a tos civis do pastor Martin Luther do local – um imenso depósito sem

®
wark Eagles, uma franquia da Negro Amazon ainda se considera o “tenro King e do movimento Black Lives janelas plantado em uma área indus-
National League, a liga de beisebol broto” dos primórdios, a start-up do Matter [Vidas Negras Importam], de- trial, um estacionamento vigiado por
exclusiva para negros durante a se- “primeiro dia”. “Ir para o segundo nunciando a hipocrisia da Amazon um carro da polícia e seguranças,
gregação. Sua visita tinha o objetivo dia significaria paralisia. Seguida de nesses temas. “Eles estão se lixando sindicalistas agitando cartazes no
de motivar a tropa, dar um tapinha inutilidade. Seguida de um lento e para as vidas negras”, declarou Dar- cruzamento mais próximo – torna-
nas costas dos organizadores e con- doloroso declínio. Seguido da morte. ryl Richardson à New York Magazine. vam difícil, se não impossível, intera-
tar sua história. Diante dele, na sala É por isso que na Amazon sempre es- “Querem dar a impressão de se im- gir com os trabalhadores, exceto pelo
de reuniões com as cores do RWDSU taremos no primeiro dia”, declarou portar, principalmente com Martin punhado de carregadores publica-
(cujo emblema representa uma mão Bezos (também proprietário do Luther King. Colocam folhetos e fotos mente envolvidos com o sindicato, ou
negra apertando uma mão branca), Washington Post) em 2016, em uma dele pelos corredores. Fingem, por- com os funcionários completamente
estavam os trabalhadores que simbo- carta aos acionistas da companhia. que os negros são maioria na fábri- satisfeitos com seu destino, exibidos
lizaram o movimento na mídia, entre Para manter esse clima febril, a em- ca.”5 As referências a Luther King são pela comunicação da empresa.
eles Jennifer Bates, que depôs sobre presa precisa aumentar implacavel- onipresentes na região. O pastor foi É claro que a Amazon usa seus re-
suas condições de trabalho no Sena- mente a produtividade e diminuir o levado sob custódia em Bessemer, em cursos ilimitados e toda a sofistica-
do a convite de Bernie Sanders. Pela custo da mão de obra. E vê o surgi- 30 de outubro de 1967, por organizar ção tecnológica à sua disposição para
porta entreaberta, via-se também mento de qualquer contrapoder co- sem autorização a Marcha pela Igual- influenciar os funcionários. Por trás
Darryl Richardson, o trabalhador mo uma ameaça existencial. dade. O caso foi encerrado na Supre- das portas do armazém, a gerência
que fez o telefonema em agosto. De ascendência afro-americana, ma Corte, que se recusou a examinar organizou “sessões de informação”
Em uma conversa de mais de uma o cinquentão em forma Perry Con- a apelação, deixando o pastor conde- coletivas obrigatórias sobre as conse-
hora, Glover alternou piadas sobre ci- nelly aterrissou no BHM1 após perder nado a cinco dias de detenção e US$ quências da criação de um sindicato
nema e momentos mais sérios, prin- o emprego de segurança de aeropor- 50 de multa. No dia de seu assassina- no local, e os telefones dos funcioná-
cipalmente quando falou sobre seus to durante a pandemia. O dinheiro to, em 4 de abril de 1968, em Mem- rios foram bombardeados com men-
ancestrais que nasceram escravos que ganha hoje “é equivalente ao que phis (com um rifle comprado em Bir- sagens que descreviam o sindicato
em Louisville, na vizinha Geórgia, e pagava de imposto no emprego ante- mingham), Martin Luther King tinha como um invasor. “Não deixe estra-
seus avós meeiros, que colhiam algo- rior” – modo de dizer que ele viu sua ido apoiar uma greve de coletores de nhos dividirem uma equipe vencedo-
dão para um proprietário branco. A chegada à Amazon como uma franca lixo negros, que exigiam melhores ra! Acreditamos que você não precisa
avó do comediante ignorou as conve- regressão. O stower (estoquista) é res- salários e condições de trabalho.6 pagar um intermediário para falar
niências e ameaças dos proprietários ponsável por escanear os produtos e A estratégia sindical foi apoiada em seu lugar nem pagar taxas para
e mandou os filhos para a escola, em colocá-los nas prateleiras equipadas por democratas de alto escalão (par- conseguir o que já tem de graça”, po-
vez de obrigá-los a trabalhar no cam- com códigos de barras. “Na hora do lamentares, líderes religiosos in- de-se ler no print de tela fornecido
po. Sua mãe trocou a Geórgia por São almoço, é uma corrida: ir ao banhei- fluentes...), que se sucederam em por um funcionário.
Francisco e se tornou funcionária ro, chegar à sala de descanso, buscar Bessemer antes da votação na Ama- A Amazon também instalou no
dos correios. O ator se lembra da at- a refeição, sentar. Me sobra o quê? zon, falando da cidade como uma armazém de Bessemer, no dia 25 de
mosfera rebelde que reinava em sua Doze minutos para comer?” “nova Selma”.7 Outro apoiador de janeiro, consultores especializados
casa. Quando adolescente, ele lia nos É a primeira vez na carreira que passagem, o rapper Killer Mike, che- (pagos com milhares de dólares por
jornais as histórias dos ativistas ne- ele tem uma agenda tão cronometra- gou a comparar Bezos a um “senhor dia), os famosos union busters [caça-
gros do sul que “defenderam seus di- da: “Eu me identifico no computador, de escravos”, e as condições de traba- dores de sindicatos].8 Circularam
reitos” agarrando-se aos bancos dos faço a leitura do código de barras. O lho nos armazéns (calor e ritmo, so- boatos terríveis de que a Amazon po-
restaurantes reservados aos brancos: computador calcula o tempo gasto bretudo) às dos campos de algodão. deria simplesmente fechar o arma-
“Eles foram meus heróis”. entre uma leitura e outra”. É o famoso Essa retórica inflamada, porém, zém em caso de “traição” dos funcio-
Jennifer Bates, por sua vez, con- time off task (tempo sem tarefa), ou não convenceu os trabalhadores nários – como o Walmart, que em
tou sobre o insuportável controle de TOT, do qual falam todos os funcio- (85% negros, segundo estimativas do 2009 decidiu encerrar suas atividades
20 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

em Jonquière, no Canadá, após a dicato”). Um terceiro trabalhador, que investir e arriscar seu lugar por frágio no Alabama, colocando sua es-
constituição de um sindicato. mais velho, explicou que já havia vis- um emprego no qual você não se vê a tratégia em questão. Sem isso, mes-
Com seus interesses em jogo, a to o RWDSU em ação em um emprego médio prazo? Na dúvida, os trabalha- mo que Bessemer dê origem a novas
multinacional não hesitou em violar a anterior, e isso não melhorou sua si- dores do BHM1 podem ter achado campanhas, elas também correm o
legislação trabalhista para destruir a tuação. O último funcionário usava que tinham mais a perder (emprego, risco de acabar em fracasso.
campanha: a NLRB não tem o poder uma corrente com broches em forma salário, seguro-saúde coberto pela Para sair do impasse, há quem
de puni-la financeiramente. Depoi- de animais convidando a votar “não”: Amazon...) do que a ganhar (eles não proponha boicotar a Amazon. Mas
mentos de ex-funcionários que tenta- “[Os gerentes] distribuem no depósi- sabiam exatamente o quê). mesmo esses militantes, sem saber,
ram organizar o sindicato nos depó- to, todo mundo usa”. Os ministrado- De qualquer forma, a saga de Bes- enriquecem a transnacional, seja
sitos de Delaware e da Virgínia res dos cursos sobre os sindicatos fo- semer foi uma oportunidade para o comprando on-line de um concor-
mencionam um comportamento ram descritos como “bacanas”, de país fazer um balanço da situação de rente como o eBay, para o qual a
brutal, ameaças e represálias, in- forma alguma ameaçadores: “Eles sua legislação trabalhista. Várias Amazon fornece produtos, seja usan-
cluindo demissões abusivas, como a apenas explicaram para que serve um pesquisas mostraram que a opinião do a Netflix e o Google, já que a Ama-
de um funcionário que estava de li- sindicato”. A exibição dessas entrevis- pública era fortemente favorável ao zon Web Services fornece energia pa-
cença médica para cirurgia no joelho. tas rendeu a Mike ofensas nas redes “sim”, e os editoriais estavam em ra vastas porções da internet e
Em Chester, na Virgínia, a sanção das sociais, acusado de trabalhar para os sintonia. “É claro que o declínio dos armazena seus bancos de dados. Du-
autoridades, após investigação, foi patrões. Ele respondeu que era cru- sindicatos é a principal razão pela rante uma videoconferência sindical,
obrigar a Amazon a afixar na sala de cial “entender a psicologia dos ‘antis- qual os ricos ficam mais ricos, e os no dia 6 de março, um militante ficou
reunião, em uma folha de papel A4, sindicatos’, o sentimento dos traba- pobres, mais pobres”, chegou a es- surpreso com o fato de que a Amazon
uma lista de ações que se comprome- lhadores”, e que não trabalha para crever o colunista liberal Joe Nocera é dona da rede de supermercados
teu a não cometer. “Não ameaçamos ninguém, “a não ser para a verdade”. em um texto em formato de mea cul- Whole Foods (especializada em pro-
demitir; não perguntamos sobre ati- pa. “Como muitos democratas de dutos “orgânicos” e adquirida em
vidades sindicais; não vigiamos; não OPINIÃO PÚBLICA FAVORÁVEL minha geração, eu não prestei aten- 2017). Outro perguntou como “boico-
ameaçamos com represálias.” O do- É impossível saber que efeito a estra- ção nisso. Os sindicatos fazem subir tar a Amazon”, sem saber que sim-
cumento deveria servir para tranqui- tégia de associar a campanha sindi- os salários não apenas de seus mem- plesmente participar daquele encon-
lizar os funcionários, mas pode ter o cal à luta pelos direitos civis teve so- bros: as empresas não sindicaliza- tro beneficiava a empresa, da qual o
efeito oposto, explicitando em local bre a votação. Além disso, os das em geral precisam se alinhar a Zoom depende para sua computação
de destaque os riscos assumidos pe- trabalhadores encontrados ao acaso eles. A falta de sindicatos neste país em nuvem. Em situação de semimo-
los rebeldes.9 por Mike não pareciam visceralmen- significa que as empresas não so- nopólio – na terra da livre concorrên-
Frustrado por não poder falar com te hostis aos sindicatos: eles simples- frem nenhuma pressão para aumen- cia... –, a empresa de Bezos se tornou

®
os funcionários da Bessemer, um jor- mente não tinham consciência de tar os salários.”10 A contagem de vo- quase impossível de evitar. 
nalista entrou no estacionamento do sua utilidade. “É fácil culpar a Ama- tos de Bessemer foi acompanhada ao
armazém, embora isso pudesse signi- zon, mas os sindicatos também têm vivo pelo site do jornal The New York *Maxime Robin  é jornalista.
ficar problemas com a lei, para esten- culpa”, analisa o jornalista. Ele acha Times, com o mesmo respeito presta-
der seu microfone a quem quer que que uma eleição ganha deveria ser do a uma eleição política nacional – 1   “ Map of Amazon warehouses” [Mapa dos ar-
fosse. Com uma camisa havaiana que mera formalidade, apenas o coroa- algo nunca visto em uma eleição mazéns da Amazon], CNBC, 19 jan. 2020.
Disponível em: www.cnbc.com.
contrasta com a cor de asfalto, Mike mento de uma vitória já conquistada corporativa.
2   Karen Weise, “Pushed by pandemic, Amazon
Elk, de 35 anos, está em sua quinta com a campanha e o convencimento Perguntamos a Perry Connelly, o goes on a hiring spree without equal” [Impul-
cobertura de uma campanha sindical de uma massa crítica de funcionários estoquista de Bessemer, o que seria sionada pela pandemia, Amazon entra em es-
piral de contratações inédita], The New York
no sul dos Estados Unidos (todas der- pelo sindicato, que dessa forma já dele se o “não” vencesse. “A direção
Times, 27 nov. 2020.
rotadas). Ele próprio foi demitido do não têm mais medo de expressar suas do armazém vai usar um truque, 3   Francesca Paris, “‘The gaps have grown’: Re-
site Politico por tentar sindicalizar a convicções ao lado do colega. uma desculpa qualquer para me des- porter Alec MacGillis talks Amazon, regional
inequality and his hometown of Pittsfield” [“As
redação, e reinvestiu sua indenização No caso do BHM1, o RWDSU usou pedir”, respondeu ele. “Estou pronto
lacunas cresceram”: repórter Alec MacGillis
para criar seu site, o Payday Report uma tática diferente, chamada hot para isso: é o preço a pagar para que fala sobre Amazon, desigualdade regional e
[Jornal do Dia do Pagamento], que shopping no jargão sindical dos Esta- isso mude. Se ganhar o ‘sim’ e eu pu- sua cidade natal, Pittsfield], The Berkshire
Eagle, Pittsfield, 7 abr. 2021.
propõe “cobrir as notícias sociais nos dos Unidos. Trata-se de “virar” uma der representar o sindicato, fico. Se o
4   C f. “Presidential results” [Resultados presi-
desertos midiáticos”. Otimista no iní- planta assim que ela abre, aprovei- ‘não’ vencer, não estarei aqui por denciais], 2016 e 2020, National Public Ra-
cio do movimento, que acompanhava tando um descontentamento repen- muito tempo.” dio. Disponível em: www.npr.org.
5   Citado em Sarah Jones, “‘It’s not fair to get fired
desde a base em Pittsburgh, ele mu- tino entre os funcionários – no caso No dia da vitória do “não”, os tra-
for going to the bathroom’. An Amazon worker
dou de ideia quando foi a campo, ob- de Bessemer, por causa das péssimas balhadores de um centro de Chicago in Alabama on the fight for a union” [“Não é jus-
servando que em uma reunião de condições sanitárias do depósito. O fizeram espontaneamente uma para- to ser despedido por ir ao banheiro”. Um traba-
lhador da Amazon do Alabama na luta por um
Bernie Sanders em frente às instala- objetivo é aproveitar o elemento- da do trabalho. Outras ações foram
sindicato], New York Magazine, 16 mar. 2021.
ções do sindicato, em Birmingham, -surpresa, sem ter trabalhado o ter- anunciadas em cerca de cinquenta Disponível em: www.nymag.com.
no dia 26 de março, havia mais jorna- reno, colocando conscientemente a cidades. Eles terão um destino dife- 6   L er Sylvie Laurent, “Le dernier combat de
Martin Luther King” [O último combate de
listas que trabalhadores. carroça na frente dos bois. Isso pode rente? Para explicar a derrota de Bes-
Martin Luther King], Le Monde Diplomati-
Antes de ser expulso da área do ar- levar a negligenciar o trabalho de semer, os militantes continuam cul- que, abr. 2018.
mazém por um segurança, Mike con- fundo. Por isso, os líderes religiosos pando a Amazon, suas ameaças, sua 7   
Em referência às marchas organizadas em
1965 entre Selma e Montgomery para protes-
seguiu entrevistar quatro carregado- locais pouco foram mobilizados du- intimidação. Durante o mês de mar-
tar contra a proibição do voto de negros no sul
res. Todos eram negros; todos iam rante essa campanha, ao contrário ço, a Câmara dos Representantes vo- dos Estados Unidos. Ler Adolf Reed Jr. “‘Sel-
votar “não”. “Eu sou mais contra, por- dos ativistas on-line e dos pesos-pe- tou o Protecting the Right to Organi- ma’ et la légende noire” [“Selma” e a lenda ne-
gra], Le Monde Diplomatique, mar. 2015.
que não sei muito sobre sindicatos, sados do Partido Democrata, que ze Act [Lei de Proteção ao Direito de
8   Lee Fang, “Amazon hired Koch-backed anti-u-
nunca lidei com eles”, declarou vieram em grande número. Organização], ou PRO Act, que visa nion consultant to fight Alabama warehouse
Ashley, de 32 anos. Um funcionário Outros problemas: a alta taxa de justamente eliminar as pressões organizing” [Amazon contratou consultor an-
tissindical apoiado pelo Koch para lutar con-
de 19 anos comparou o sindicato a rotatividade de pessoal, a falta de exercidas pelo empregador durante
tra a organização trabalhista em armazéns do
um “ladrão” que queria tirar parte de tempo para se comunicar no arma- as campanhas sindicais, proibindo Alabama], The Intercept, 10 fev. 2021. Dispo-
seu suado dinheiro. Esse era o princi- zém (tanto pelas condições de traba- particularmente as “sessões de infor- nível em: www.theintercept.com.
9   David Streitfeld, “How Amazon crushes
pal argumento utilizado pela Ama- lho quanto pela pandemia, que tor- mação” obrigatórias. Se o projeto for
unions” [Como a Amazon esmaga os sindica-
zon durante suas sessões de informa- nou impossível qualquer atividade bem, pode morrer na porta do Sena- tos], The New York Times, 16 mar. 2021.
ção coletiva – a empresa chegou a paralela, como um churrasco sindi- do, por falta de apoio dos republica- 10  Joe Nocera, “Unions are back in favor. They
need to seize the moment” [Sindicatos voltam
criar um site dedicado ao argumento, cal) e a falta de perspectivas de car- nos. De qualquer forma, ele não isen-
à moda. Eles precisam aproveitar o momen-
o Do It Without Dues (algo como “re- reira em um armazém. Quem sabe se ta os sindicatos e os líderes to], Bloomberg Businessweek, 21 mar. 2021.
solva suas questões sem pagar ao sin- ainda estará ali no ano seguinte? Por democratas de aprender com o nau- Disponível em: www.bloomberg.com.
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 21

EX-PRESIDENTE É O CRONISTA DE SUA PRÓPRIA FALTA DE AUDÁCIA

Obama, de Dom Quixote BANQUEIROS SEQUESTRADORES


A impopularidade do plano de salva-
ção dos bancos, elaborado pela nova

a Sancho Pança
equipe, decorreu do fato de confiar
aos responsáveis pelo desastre a mis-
são de remediá-lo. Obama exprimiu
sua irritação diante da falta de “grati-
dão” dos banqueiros que ele havia
“salvado do incêndio”, enquanto mi-
Poucos presidentes norte-americanos despertaram tanto entusiasmo e se lhões de norte-americanos iam à fa-
beneficiaram de tanta popularidade internacional. Ao final, contudo, restou um lência sem que o Estado os socorres-
se. Ele admitiu: “É inútil dissimular
sentimento de que faltou alguma coisa. Em suas Memórias, Barack Obama as evidências. Os maiores responsá-
apresenta algumas chaves para entender essa decepção. Elas podem veis pelas desgraças econômicas do
explicar a atual audácia econômica de seu antigo vice-presidente? país continuaram fabulosamente ri-
cos. Escaparam a qualquer processo
porque as leis em vigor considera-
POR SERGE HALIMI* vam que a irresponsabilidade e a de-
sonestidade espantosas dos conse-

A
© Unsplash
s obras dos dirigentes políticos lhos de administração ou das salas
que rememoram sua carreira de negociação eram menos reprová-
depois de ter fracassado mere- veis que o roubo de um adolescente
cem ser lidas por quem gostaria numa loja”. Mas também aí ele se de-
de fazer melhor que eles. Quando se fende dizendo que não tinha esco-
veem obrigados a admitir a desilusão lha: os banqueiros mantinham a
que provocaram, atribuem-na com economia “como refém” e traziam
frequência ao irrealismo de seus par- “bombas no cinto”. Obama admite,
tidários, à fúria de seus adversários, à porém, que chegou a lamentar não
complexidade do mundo, a um jogo ter sido “mais corajoso nos primeiros
político que os obriga a prometer meses” de seu mandato. Talvez isso

®
mais do que podem cumprir. Segue- explique hoje a audácia relativa do
-se que mesmo uma presidência de- homem que foi seu vice-presidente
cepcionante comporta uma realiza- durante oito anos.
ção que gostamos de exaltar. O A comparação entre eles é ainda
primeiro volume das Memórias de mais tentadora no caso da Guerra no
Barack Obama termina com o relato Afeganistão. Obama preferiu conser-
pormenorizado do cerco e execução Barack Obama na Sala Roosevelt da Casa Branca, em 2010 var o ministro da Defesa de seu pre-
de Osama bin Laden...1 decessor, Robert Gates, “um republi-
Mas o autor, que já deve estar pen- superou Hillary Clinton nas primá- mais próximos parece resumir sua cano, um falcão, um defensor das
sando no capítulo final do segundo rias democratas antes de suceder a presidência: não seria o caso de apro- intervenções estrangeiras”, porque...
volume, não pode ir muito longe na George W. Bush ao final de uma cam- veitar a crise econômica e financeira “ele sabia como funcionava o Pentá-
apresentação eufemística de seu ba- panha vibrante e alegre. Quase sem- para transformar o sistema, como fez gono e onde estariam as armadilhas
lanço. É que sua presidência, iniciada pre, fez a escolha certa no momento Franklin Roosevelt, mas de repará-la. a evitar”. Quase imediatamente, ob-
em 20 de janeiro de 2009 num clima de certo – como se opor corajosamente, As coisas já iam suficientemente mal, serva que os chefes militares que-
euforia, após uma vitória eleitoral con- no outono de 2002, à Guerra do Ira- parece dizer o novo presidente; não riam pressioná-lo, tornando públicas
tundente e sob os auspícios do “Yes, we que. E a sorte lhe sorriu: a crise finan- convocarei, para piorá-las ainda suas preferências no caso afegão, an-
can” [Sim, podemos], encerrou-se oito ceira de setembro de 2008 desqualifi- mais, pessoas que gostariam de mu- tes que ele se decidisse. Exasperado,
anos depois com a chegada de Donald cou os republicanos semanas antes dar tudo. Rahm Emanuel, seu chefe convidou-os à Casa Branca e cha-
Trump à Casa Branca. E o que sem dú- da eleição geral. Obama se tornou o de gabinete, havia apoiado Hillary mou-os à ordem, mas aceitou suas re-
vida é mais grave para Obama: já não primeiro presidente afro-americano Clinton, tinha contatos em Wall comendações, pois acabou enviando
resta muita coisa de seus anos de exer- da história dos Estados Unidos. Street, comparecia ao Fórum Econô- mais tropas ao Afeganistão. Se Joe Bi-
cício do poder na memória coletiva, a Missão cumprida e fim de percur- mico de Davos? Não importa: “Com den mantiver a decisão que acaba de
ponto de um dos presidentes mais in- so? Somos tentados a pensar assim, uma economia mundial em queda li- anunciar, será preciso esperar até 11
teligentes e brilhantes correr o risco de tanto mais que, quanto ao resto, seus vre, minha tarefa número um não era de setembro próximo para que todas
ter marcado menos a história de seu objetivos pareciam vagos e permane- reformular a ordem econômica mun- saiam de lá. Doze anos perdidos.
país que seu sucessor imediato, bem ceriam letra morta: mudar o modo de dial”, escreve. “Cumpria evitar um Um livro anterior de Obama, pu-
menos dotado que ele. fazer política, eliminar as divisões do desastre de maior amplitude. Para is- blicado em 2006, trazia o título de A
Tal como nós, o autor parece ana- país, incitar os jovens a servir ao inte- so, eu precisava de pessoas que hou- audácia da esperança.2 Pinta um ho-
lisar seu percurso e suas realizações. resse geral. Uma vez eleito, o homem vessem gerido crises e fossem capa- rizonte menos empolgante, porém
E, tal como nós, ele se interroga: afi- que justificava sua ambição desme- zes de acalmar os mercados em mais conforme ao que foi sua presi-
nal, o que queria Barack Obama? O dida alegando a vontade de “mudar o pânico – pessoas a quem, por defini- dência: “Seria útil descrever o mun-
poder, sem dúvida. Militante associa- mais rápido possível” não parou de ção, pudéssemos censurar os peca- do tal qual ele deveria ser se os esfor-
tivo, decidiu entrar para a política repisar a ideia de que a mudança leva dos do passado.” O mesmo raciocínio ços empregados para isso não são
porque não se contentava com geren- tempo. No início de suas Memórias, impediu-o de escolher um ministro suficientes?”. 
ciar as consequências de decisões lembrando o jovem militante asso- da Economia que não fosse um pro-
alheias. Em seguida, concluiu que ciativo que foi, Obama se enternece: duto puro do sistema capitalista.
*Serge Halimi é diretor do Le Monde
um parlamentar minoritário de um “Eu era como Dom Quixote sem San- Qualquer outro que não Timothy
Diplomatique.
estado do Meio-Oeste seria menos cho Pança”. Na Casa Branca, desse Geithner “precisaria de meses para
poderoso que um eleito para o Con- cavaleiro que combatia o mal, só res- compreender tão bem quanto ele a 1   B arack Obama, A Promised Land [Uma terra
gresso. Depois, já senador por Illi- tará a figura esbelta. crise financeira e travar relações com prometida], Crown, Nova York, 2020. As cita-
ções que se seguem são extraídas dessa obra.
nois, voltou o olhar para a Casa Bran- O capítulo no qual Obama justifi- os atores da finança mundial; ora, 2   Barack Obama, L’Audace d’espérer [A audácia
ca. Contra todas as expectativas, ca a escolha de seus colaboradores desse tempo eu não dispunha”. da esperança], Presses de la Cité, Paris, 2007.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

ESTADOS UNIDOS, UM VIZINHO MUITO INVASIVO

México abala a tutela compra de equipamentos norte-a-


mericanos pelas forças de segurança
mexicanas (veículos blindados,

norte-americana
aviões de patrulha marítima, heli-
cópteros de combate etc.), além de
US$ 3 bilhões para um fundo desti-
nado a intensificar a presença norte-
-americana ao sul do Rio Bravo.
Calderón abriu amplamente as
O México observa sua soberania ser dilapidada por todas as partes. comportas da colaboração com os
No plano institucional, pela corrupção. No territorial, pelos cartéis. serviços de inteligência do norte. Seu
governo autorizou o estabelecimento
No econômico, pelo livre-comércio. E, no geopolítico, por sua proximidade do Sistema de Vigilância Técnica do
“maldita” com os Estados Unidos. Nesse último campo, o presidente México, um programa que permite a
López Obrador operou uma mudança discreta, porém determinante Washington geolocalizar, interceptar
e analisar as informações provenien-
tes de qualquer sistema de comunica-
POR LUIS ALBERTO REYGADA* ção (telefone e internet) no México.
Em novembro de 2010, uma investiga-
ção jornalística revelou que nove

E
m 15 de dezembro de 2020, o fornecedores de fuzis de assalto do macia de resguardo e aplaudiu o es- agências de inteligência norte-ameri-
presidente mexicano, Andrés cartel de Sinaloa.2 Por meio de seu tabelecimento do perímetro de canas fixaram residência em um ar-
Manuel López Obrador (conhe- projeto Gunrunner [traficantes de segurança norte-americano. Em ranha-céu localizado não muito longe
cido como AMLO), enviou uma armas] e da Operação Fast and Fu- 2005, onze anos após o Acordo de Li- da embaixada dos Estados Unidos.5
carta de parabéns a Joe Biden, eleito rious,3 a ATF permitiu que contra- vre Comércio da América do Norte Entre as entidades hospedadas, esta-
para a Casa Branca algumas semanas bandistas ligados a traficantes de (Nafta), a Parceria para a Segurança e vam a Defense Intelligence Agency
antes. Em meio a protocolos espera- drogas obtivessem armas nos Esta- Prosperidade (SPP) entrelaçou ainda (DIA, inteligência militar), o National
dos, a carta foge de um simples gesto dos Unidos e as contrabandeassem mais as políticas de segurança dos Reconnaissance Office (NRO, ima-
diplomático de boa vizinhança: “Es- por meio da fronteira, em uma tenta- dois países. Em 2007, Felipe Calderón gens de satélite) e a National Security
tamos certos de que, com seu gover- tiva de seguir seu rastro. Desde 2006, apelou ao “Tio Sam” para ajudá-lo em Agency (NSA, de inteligência digital).

®
no, será possível seguir os princípios e durante cinco anos, 2.500 armas, de sua “guerra ao narcotráfico”. A Ini- Considerando que o tapete verme-
de política externa consagrados em fuzil semiautomático a antitanque, ciativa Mérida tornou-se então a pe- lho não estava suficientemente esten-
nossa Constituição, em particular a caíram nas mãos dos cartéis, com o dra angular da cooperação entre Mé- dido, os Estados Unidos decidiram ir
não intervenção e [o direito à] auto- consentimento tácito de agentes nor- xico e Washington. além dos termos dos acordos firma-
determinação dos povos”. Convenci- te-americanos – que não se importa- dos com o vizinho. Em 2013, denún-
do de que a segurança e a prosperida- ram com o impacto de seus métodos: PRESIDENTE GRAMPEADO cias de Edward Snowden revelaram
de dos Estados Unidos estão as Kalashnikovs que passaram por No papel, esse programa financiado uma estação clandestina do Serviço
“intimamente ligadas à situação no esses programas secretos foram as pelo Departamento de Estado e pela de Coleta Especial (Special Collection
México”, o Departamento de Estado, mesmas que causaram a morte de Agência para o Desenvolvimento In- Service – SCS), um programa secreto
há muito tempo, faz da supervisão do seus próprios colegas da polícia de ternacional (Usaid) visa “fortalecer a administrado em conjunto pela CIA e
vizinho ao sul uma “prioridade abso- migração e da Patrulha de Fronteira segurança mexicana e as instituições a NSA. Atuante na capital mexicana,
luta”,1 sem se preocupar muito com a dos Estados Unidos. judiciais”, bem como o direito do Es- seus agentes reuniam informações
questão da soberania. Entretanto, nada disso teria sido tado de “conter a violência” e “prote- políticas e econômicas, notadamente
Um escândalo recente marca esse possível sem o aval de dirigentes me- ger a fronteira”. Ao mesmo tempo, de- interceptando comunicações de altos
espírito. O julgamento de Joaquín “El xicanos. Em 2002, quando o então ve “intensificar os esforços dos funcionários e, às vezes, do próprio
Chapo” Guzman, que terminou em presidente dos Estados Unidos, Geor- Estados Unidos em seu território pa- presidente da República.6
2019, revelou como a Agência de Ál- ge W. Bush, criou um comando mili- ra acabar com o tráfico de armas, di- Nacionalista convicto, AMLO não
cool, Tabaco, Armas de Fogo e Explo- tar para supervisionar a parte norte nheiro e a demanda de drogas”.4 De aceitou essa interferência. Poucos
sivos (ATF) – supostamente encarre- do continente (o US Northern forma mais concreta, a iniciativa as- dias após sua vitória, em 1º de julho
gada de combater o tráfico de armas Command – Northcom), seu homólo- sume a forma de um envelope de de 2018, e ao se preparar para receber
– “acidentalmente” se tornou um dos go, Vicente Fox, praticou uma diplo- meio bilhão de dólares destinado à como presidente eleito a visita de Mi-
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 23

ke Pompeo, secretário de Estado de No último ano, o México traba-


Donald Trump, declarou que preten- lhou muito para se manter dentro dos UMA DIPLOMACIA REGIONAL COMBATIVA
dia rescindir um contrato de compra limites diante de um parceiro comer-
de oito helicópteros militares no va-
lor de US$ 1,2 bilhão. No mês seguin-
te, seu futuro ministro da Segurança
cial tão imprevisível quanto podero-
so. Contudo, no fim de outubro de
2020, o governo mexicano bateu o
A vontade do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador
(AMLO), de emancipar seu país dos Estados Unidos está evidente
desde sua cerimônia de posse, em 1º de dezembro de 2020: o presidente
Pública declararia que “a colabora- punho na mesa, julgando intolerável venezuelano, Nicolás Maduro, odiado por Washington, foi convidado. No
ção no campo militar [com os Esta- não ter sido informado de uma inves- mesmo dia, López Obrador lançou um plano de desenvolvimento integral
dos Unidos] não é a melhor forma de tigação dirigida a um ex-ministro da com El Salvador, Guatemala e Honduras, marcando uma reorientação es-
lidar com os problemas de insegu- Defesa, o general Salvador Cienfue- tratégica para o sul.
rança”, antes de lançar uma pequena gos, preso em sua chegada a Los An- Rapidamente, o México demonstrou que seu retorno ao princípio do
bomba: “Teremos de reconsiderar to- geles, indo visitar sua família. Deter- não intervencionismo não é sinônimo de indiferença ou passividade. Ele
dos os acordos de cooperação exis- minado a obrigar o governo dos se opõe às pressões do Grupo de Lima – que reúne países americanos
tentes entre nossos países”.7 Estados Unidos a respeitar os acordos que não reconhecem o governo de Maduro –, mas sem deixar a organiza-
Desde que se instalou no Palácio de cooperação, AMLO estava dispos- ção. Prefere criar outros recursos de ação, como o mecanismo de Monte-
Nacional, no início de dezembro de to a abrir um precedente. Ele pediu a vidéu, com o Uruguai, e a Comunidade do Caribe, para promover o diálo-
go. Em 13 de agosto de 2019, em entrevista ao Canal Once, seu chanceler,
2018, López Obrador mantém ativa- libertação do soldado aposentado,
Marcelo Ebrard, criticou as receitas norte-americanas, “que só podem
mente as agências de repressão às acusado pelo DEA de conluio com
levar ao desastre”.
drogas dos Estados Unidos fora de traficantes de drogas. Preferindo não
O governo de AMLO também se reconciliou com uma antiga tradição: o
sua estratégia. Poucos meses depois colocar em risco a sustentabilidade
asilo político. Este último foi concedido tanto a figuras próximas do ex-pre-
de reformular o corpo policial e de suas agências federais em territó- sidente equatoriano Rafael Correa, perseguidos por Quito, quanto a um
abandonar a luta frontal contra os rio mexicano, a Justiça norte-ameri- deputado de oposição venezuelano. A Cidade do México acolheu especial-
cartéis, anunciou em entrevista cole- cana aceitou – para surpresa de todos mente o presidente boliviano, Evo Morales, após o golpe de Estado que o
tiva em 7 de maio de 2019: “Não que- – abandonar seus procedimentos, ar- derrubou em novembro de 2019. Nessa ocasião, o México criticou aberta-
remos mais a Iniciativa Mérida”. O gumentando “questões delicadas e mente o papel desempenhado pela Organização dos Estados Americanos
México solicitou que a ajuda norte-a- importantes de política externa”,9 al- (OEA), destacando o papel nocivo de seu secretário-geral, Luis Almagro.
mericana fosse redirecionada para go jamais visto. Ao mesmo tempo, pretende redinamizar a Comunidade de Estados Lati-
projetos de desenvolvimento econô- A medida mostra que os dois paí- no-Americanos e Caribenhos (Celac), cuja presidência assumiu em 8 de
mico, especialmente no sudeste do ses “são mais fortes quando traba- janeiro de 2020. O objetivo não é criar um eixo progressista em uma lógica
país e na América Central, a fim de lham juntos e respeitam a soberania de enfrentamento da direita, e sim favorecer a unidade do bloco latino-a-

®
conter a migração que tanto preocu- de suas nações”, disse um comunica- mericano nas instituições multilaterais – nas quais a diplomacia mexicana
pava Trump. do conjunto presumivelmente ditado sonha ter um papel cada vez mais importante. (L.A.R.)
A nova política de segurança de por diplomatas mexicanos.10 Cien-
AMLO, entretanto, luta para provar fuegos foi enviado de volta ao México
seu valor. A incipiente Guarda Nacio- para julgamento, e a DEA comparti- vadores que antes abriam as portas Chapo’s jury to hear how the US government
nal não está conseguindo conter a ta- lhou suas provas, resultado de uma aos norte-americanos – estão cons- sent guns to the Sinaloa cartel” [Os promo-
xa cada vez maior de homicídios, investigação de oito anos. Mas, para truindo todo tipo de teorias para ex- tores não querem que o júri de El Chapo
ouça como o governo dos EUA enviou armas
muito menos enfraquecer grupos cri- o governo de López Obrador, “nada plicar sua atitude: ele estaria sujeito ao cartel de Sinaloa], Vice, 10 dez. 2018.
minosos. As forças de segurança so- mais será como antes”, indicam cola- ao poder dos militares, em conluio Disponível em: www.vice.com.
freram vários reveses: catorze poli- boradores próximos: “a confiança foi com traficantes de drogas; seria um 3   E m referência à série de filmes Velozes e
furiosos .
ciais pereceram em uma emboscada rompida”.11 populista que joga com a fibra nacio- 4   S ite da Embaixada dos EUA no México (ht-
e um comando fortemente armado nalista para se preparar para as pró- tps://mx.usembassy.gov), Jorge Carrasco A.
por pouco não conseguiu assassinar CAMUFLADO POR WASHINGTON ximas eleições. “Talvez a reação do e J. Jesús Esquivel, “El gran espía” [O grande
espião], Proceso, 14 nov. 2010.
o chefe da força policial do México, O Executivo continua comprome- presidente seja simplesmente uma 6   Jens Glüsing, Laura Poitras, Marcel Rosen-
no coração da capital. tido em melhor supervisionar as ati- resposta à indignação provocada pe- bach e Holger Stark, “NSA accessed Mexi-
Em novembro de 2019, chegou-se vidades das agências de segurança e la atitude questionável de uma agên- can president’s email” [NSA acessou a caixa
de e-mail do presidente], Der Spiegel Inter-
perto de uma crise diplomática após inteligência dos Estados Unidos. Ele cia estrangeira demasiado interven- national, Hamburgo, 20 out. 2013.
o massacre de uma família méxico- dá um novo pontapé no formigueiro cionista e que precisava ser detida de 7   D iego Oré, “Incoming Mexican president to
-americana no nordeste do estado de ao propor uma reforma – adotada em uma vez por todas”, sugere o jorna- review US security cooperation-aide” [Novo
presidente mexicano vai revisar acordos de
Sonora (fronteira com o Arizona), apenas dez dias, em 15 de dezembro lista Jorge Zepeda.13 cooperação de segurança com os EUA],
por membros do crime organizado. A de 2020 – na lei de segurança nacio- Resta saber se o presidente mexi- Reuters, 3 ago. 2018.
opinião pública dos Estados Unidos nal. Acostumados a operar quase cano conseguirá convencer seu novo 8   “ The cartelization of Mexico” [A cartelização
do México], The Wall Street Journal, Nova
estava em choque. Um editorial do sem restrições, a DEA, o FBI, a CIA e a homólogo, Joe Biden, a revisar os ter- York, 6 nov. 2019.
Wall Street Journal ridicularizou a Immigration and Customs Enforce- mos de uma cooperação que foi inefi- 9   M ichael O’Boyle e John Harney, “US dro-
“rendição” de um governo à frente de ment (ICE) agora serão responsáveis caz para a migração e desastrosa em pping drug charges against Mexico’s ex-de-
fense chief” [EUA retiram as acusações de
um país “perigosamente perto de um perante as autoridades locais. termos de segurança – dois assuntos drogas contra o ex-chefe da defesa do Méxi-
Estado falido”. “Se o México não pu- Em 14 de janeiro de 2021, o Minis- que certamente ressurgirão durante co], Bloomberg , Nova York, 17 nov. 2020.
der controlar seu território, os Esta- tério Público mexicano anunciou o a gestão do presidente democrata. O 10  C omunicado Conjunto do Procurador-Geral
da República do México e do Procurador-
dos Unidos terão de fazê-lo. [...] Uma resultado de sua investigação sobre Departamento de Estado norte-ame- -Geral dos Estados Unidos, 17 nov. 2020.
operação militar não está descarta- Cienfuegos: nada conclusivo; o ge- ricano poderia dar o primeiro passo Disponível em: www.gob.mx/fgr.
da.”8 Quando Washington ameaçou neral não será processado. Em entre- reconhecendo a morte da Iniciativa 11  J . Jesús Esquivel, “Con Estados Unidos ‘se
perdió la confianza’ y ‘ya nada será igual’”
incluir cartéis mexicanos na lista de vista coletiva, AMLO castiga a DEA e Mérida. Por enquanto, o Congresso [Com os Estados Unidos, “a confiança foi
“organizações terroristas estrangei- a acusa de ter criado um processo. dos Estados Unidos já planejou um perdida” e “nada mais será como antes”],
ras” listadas pelo Departamento de “Não podemos deixar nenhuma dú- pacote de US$ 150 milhões para fi- Proceso, 21 nov. 2020.
12  “ Presidente instruye a SRE publicar expe-
Estado, o chanceler mexicano, Mar- vida pairar sobre o governo e suas nanciar a iniciativa em 2021.  diente completo de investigación contra el
celo Ebrard, rebateu e reafirmou que instituições. Por isso, decidimos pu- general Salvador Cienfuegos Zepeda” [O
o país “jamais tolerará qualquer ação blicar todo o dossiê”.12 As 750 pági- *Luis Alberto Reygada  é jornalista. presidente instrui a SRE a publicar todo o
processo de investigação contra o general
que prejudique sua soberania nacio- nas da investigação dos Estados Uni- Salvador Cienfuegos Zepeda], nota à im-
nal”, ciente de que tal designação te- dos foram tornadas públicas no 1   “ Integrated Country Strategy – Mexico” [Es- prensa da presidência da República, 15
ria consequências jurídicas que in- mesmo dia – uma afronta ao Depar- tratégia integrada de países – México], De- jan. 2021.
partamento de Estado americano, 3 ago. 13  J orge Zepeda Patterson, “Cienfuegos, la otra
centivariam a interferência (Twitter, tamento de Justiça. Os opositores de 2018. Disponível em: www.state.gov. explicación” [Cienfuegos, a outra explica-
27 nov. 2019). López Obrador – os círculos conser- 2   Keegan Hamilton, “Prosecutors don’t want El ção], Milenio, México, 19 jan. 2021.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

RUANDA, O ÚLTIMO GENOCÍDIO DO SÉCULO XX

Na França, a verdade mentar (MIP), em 3 de maio de 1998,


quando uma comissão de investiga-
ção teria sido mais eficaz. “Sei que al-

continua bloqueada
guns arquivos foram encontrados
após o fim da missão parlamentar”,
lamentou mais tarde o coronel André
Ronde, que fora encarregado de res-
ponder às perguntas dos parlamen-
tares. “Isso foi intencional ou não? Ig-
Nos últimos meses, dois relatórios estabeleceram a responsabilidade acachapante noro-o” (France Culture, 7 abr. 2016).
da França e de François Mitterrand no genocídio dos tútsis em Ruanda em 1994. Em outros pontos, a MIP se auto-
censura. Ela não convocou, por exem-
Essa cumplicidade é reflexo da história ou um simples arranjo político pontual plo, o capitão Paul Barril, ex-guarda
entre os países? Na França, o controle do acesso aos arquivos constituiu do Élysée que se tornou mercenário e
um entrave para a busca por respostas foi várias vezes citado nas investiga-
ções sobre Ruanda. Promoveu nume-
rosas audiências, mas algumas a por-
POR FRANÇOIS GRANER* tas fechadas, como as dos diretores
da DGSE ou de vários militares. Não
publicou a carta do general Jean Ran-

“R
esponsabilidades esma- do Ministério do Interior ou dizem madores de decisão franceses se es- nou, datada de 15 de junho de 1998,
gadoras”: em 26 de março respeito a assuntos nucleares para meraram no apoio aos extremistas que enumerava as características das
de 2021, após dois anos de fins civis e mesmo... à agricultura.2 hutus, que levavam adiante o assassi- duas caixas-pretas do Falcon 50 pre-
trabalhos, a Comissão de Os documentos que o Ministério das nato de seus principais adversários, sidencial abatido em 6 de abril de
Pesquisa sobre os Arquivos France- Forças Armadas libera são frequente- tomavam o poder e exterminavam 1994. A MIP forneceu, todavia, algu-
ses Referentes a Ruanda e ao Genocí- mente sem interesse, incompletos ou sistematicamente os tútsis. Entre 7 de mas informações úteis, como os aler-
dio dos Tútsis (1990-1994), chefiada rasurados. “As peças liberadas são a abril e 17 de julho de 1994, 800 mil ho- tas enviados pelo general Varret des-
pelo historiador Vincent Duclert, lan- biblioteca rosa”, ironiza Marc Trévi- mens, mulheres e crianças foram de 1990: “Eles são muito pouco
çou nova luz sobre a ação da França dic. O ex-juiz antiterrorista se per- massacrados, segundo a ONU.5 Como numerosos, vamos liquidá-los”, dis-
nesse pequeno país da África dos gunta sobre a conformidade à Cons- entender a atitude das autoridades sera-lhe o comandante da guarda

®
Grandes Lagos. Ainda assim, zonas tituição de um princípio que permite francesas? Somente o acesso aos ar- ruandense sobre os tútsis. Revelou
de sombra persistem por motivo do ao Poder Executivo pôr entraves à quivos permitirá responder a essa também, em parte, o controle exerci-
segredo que rodeia a política africana justiça em assuntos “sensíveis”.3 pergunta. do pelo coronel francês Didier Tauzin
de Paris e da dificuldade de acesso A política francesa para Ruanda, Trata-se, sobretudo, de uns 10 mil sobre o Exército ruandense, em feve-
aos documentos oficiais da época. entre 1990 e 1994, pertence a essa ca- documentos do Élysée, depositados reiro-março de 1993. Infelizmente,
Os militares envolvidos estão hoje tegoria. Como todos os presidentes da nos Arquivos Nacionais em Pierrefit- seu relatório final se limitou a uma
desobrigados do dever de sigilo, mas V República, François Mitterrand te, e de outro tanto do Ministério das síntese parcial de seus trabalhos.
o acesso aos arquivos continua de- apoiou, em nome da “estabilidade” do Relações Exteriores, entre os quais A partir de 2005, as denúncias de
pendente de autorizações excepcio- continente, regimes autoritários con- muitos telegramas diplomáticos e tútsis sobreviventes levaram a justiça
nais. O Código do Patrimônio (artigo siderados favoráveis à França. Em cerca de meio milhar de fichas DGSE, a pedir a liberação de arquivos mili-
L. 213-4) impede a abertura dos refe- 1990, esse foi o caso do presidente Ju- às vezes duplicadas em vários locais. tares. Mas, de novo, a liberação conti-
rentes ao Executivo (presidência e go- vénal Habyarimana, ameaçado pela Acrescentem-se uns 200 mil docu- nua parcial, como informa o Journal
verno) durante pelo menos 25 anos. rebelião da Frente Patriótica Ruan- mentos de interesse variado, disper- Officiel, onde são consignadas as re-
Porém, segundo o jurista Bertrand dense (FPR), hoje no poder. O Élysée sos pelas salas do Serviço Histórico cusas proferidas pelos magistrados.7
Warusfel, a maior parte dos segredos, tomou a decisão sozinho, ignorando o da Defesa (SHD) em Vincennes. No Em 2015, a promessa de Hollande de
mesmo militares, perde importância Parlamento e o resto do governo, co- total: cerca de 20 metros lineares. abrir os arquivos do Élysée a todos os
ao fim de dez ou quinze anos.1 Os mo confirma o relatório Duclert. As Sob a pressão crescente de jorna- pesquisadores se chocou com a pro-
pesquisadores podem, é certo, plei- informações sobre os preparativos de listas e associações, o Parlamento, a curadora de Mitterrand, Dominique
tear exceções, mas estas são concedi- um genocídio dos tútsis foram siste- justiça e os presidentes François Hol- Bertinotti, que só concedeu autoriza-
das conforme a boa vontade do pró- maticamente ignoradas; os precavi- lande e depois Emmanuel Macron ções de consulta a conta-gotas, sem
prio Executivo. Um mesmo telegrama dos, como o coronel René Galinié, adi- autorizaram, cada um, a liberação de direito a fotografar. Sob pressão dos
diplomático de 1993 podia assim ser do de defesa em Kigali, o general Jean um ou vários milhares de documen- pesquisadores e associações de víti-
examinado em determinado mo- Varret, chefe da cooperação militar, e tos. Mas a maioria das peças conti- mas, o Conselho de Estado, em sessão
mento, por todos os pesquisadores, Claude Silberzahn, que dirigia a DG- nua inacessível ao público, e as con- solene em 12 de junho de 2020, deci-
em La Courneuve (arquivos do Mi- SE, foram afastados e substituídos. dições de consulta das outras diu em favor do “interesse de infor-
nistério das Relações Exteriores), Em 1993, as acusações vieram a desencorajam a pesquisa, notada- mar o público sobre esses aconteci-
mas apenas a pedido, por outros, em público.4 O Élysée e o Estado-Maior mente em virtude da impossibilidade mentos históricos”, contra a “proteção
Pierrefitte (Élysée); uma mesma ficha acenderam contrafogos midiáticos: de tirar cópias. Também é proibido de segredos de Estado”.8 Essa fórmula
da Direction Générale de la Sécurité Le Canard Enchaîné, Le Monde, Li- publicar esses documentos on-line. geral, pronunciada num caso especí-
Extérieure (DGSE) é acessível em bération e France Inter, principalmen- Os mais difíceis de acessar são os ar- fico, soa como uma advertência. Em
Pierrefitte, mas não em Vincennes te, reproduziram o relato simplifica- quivos do Ministério das Forças Ar- outras democracias, como o Reino
(Ministério das Forças Armadas)... dor de um regime legítimo atacado madas, que nem sequer fornece o in- Unido, um pedido assim pode ser
Outro cadeado preserva as autori- por um movimento armado estran- ventário do SHD.6 atendido em seis semanas e posto on-
dades da curiosidade dos cidadãos e geiro baseado em Uganda e favorável Os poderes públicos reagem len- -line após outro período semelhante.
pesquisadores: o segredo de defesa. aos interesses anglo-saxões (os “Kh- tamente e com prudência às interpe- Em abril de 2019, Macron, ansioso
Apesar do nome, ele pode proteger mers negros” da FPR). Essa negação, lações dos pesquisadores e investiga- para melhorar a imagem da França
arquivos sem nenhuma relação com enraizada no segredo das delibera- dores. Por isso, as revelações do em Ruanda e na África, autorizou a
a defesa. Segundo um relatório ofi- ções governamentais, duraria um jornalista Patrick de Saint-Exupéry comissão de universitários presidida
cial de 2018, 5 milhões de documen- quarto de século. Após o atentado de no Le Figaro (12-15 jan. 1998), ques- por Duclert. Deu-lhe acesso a um
tos são considerados sigilosos, meta- 6 de abril de 1994, que matou o presi- tionando a atitude da França durante conjunto de arquivos tanto civis
de dos quais pelo Ministério das dente Habyarimana e seu colega do o genocídio, redundaram numa sim- quanto militares. Nenhum especia-
Forças Armadas; os outros provêm Burundi, Cyprien Ntaryamira, os to- ples Missão de Informação Parla- lista dos Grandes Lagos africanos
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 25

participou, sob pretexto de que se tra- acrescenta, “o combate midiático é


tava, antes de tudo, de analisar o fun- uma urgência. Ele condiciona as ope- DAS EXPULSÕES AO EXTERMÍNIO
cionamento do Estado. O volumoso rações ulteriores”.10
• 1959  “Toussaint ruandense”: expulsão tata que “a comunidade internacional e
relatório que daí resultou cita 8 mil De modo geral, o relatório, que se
de dezenas de milhares de tútsis, princi- alguns de seus membros, entre os quais
documentos oriundos principalmen- concentra no período antes do geno-
palmente para Uganda. a Bélgica, fracassaram em 1994”.
te do Élysée, de Matignon, da DGSE e cídio, minimiza a ajuda francesa
• 1962 Independência. • 1998  A Missão de Informação Parla-
do SHD. Recoloca em seu devido lu- (qualificada de “estratégia indireta”
• 1963  Massacre de tútsis pelo poder hutu. mentar sobre Ruanda (França) reconhe-
gar, finalmente, os que tentavam ne- pelo general Christian Quesnot) pres-
• 1973  Golpe de Estado do general hutu ce “graves erros de avaliação”.
gar o genocídio dos tútsis e imputar à tada durante os massacres ao Gover-
Juvénal Habyarimana. Massacre de tútsis. • 2000
FPR um crime parecido (a tese fala- no Interino Ruandês (GIR) e às FAR.
• 18 de julho de 1975  Acordo de assis- 14 de abril  Kagamé é eleito presidente
ciosa do “duplo genocídio”) ou livrar Passa por alto pela questão do forne-
tência militar França-Ruanda. de Ruanda; seria reeleito em 2003,
a França de toda responsabilidade. cimento de munições após 6 de abril
• 1986 Yoweri Museveni toma o poder 2010 e 2017.
Esse relatório é sem dúvida ne- de 1994, que, no entanto, está sufi-
em Uganda com o apoio dos tútsis exi- 7 de julho O grupo internacional de
cessário, mas permanece insufi- cientemente estabelecida para ser
lados e reunidos na Frente Patriótica personalidades comissionado pela
ciente, atrasado com relação aos da- objeto de uma queixa de cumplicida-
Ruandense (FPR) de Paul Kagamé. Organização da Unidade Africana
dos obtidos pela pesquisa universitá- de no genocídio. E não diz absoluta-
• 1º de outubro de 1990  Ofensiva militar (OUA) entrega seu relatório, intitulado
ria e jornalística. Seus limites são de mente nada sobre a presença, tam-
da FPR a partir de Uganda. “Ruanda: o genocídio que poderia ter
vários tipos. Os próprios autores re- bém bem atestada, de uma boa
• 1993 sido evitado”.
conhecem que alguns arquivos estão dezena de soldados franceses na zo-
18 de agosto Acordos de paz de • 24 de novembro de 2006  Ruanda rom-
faltando ou talvez tenham sido des- na governamental entre abril e ju-
Arusha (Tanzânia) entre o governo pe relações diplomáticas com a França
truídos. O escritório da Assembleia nho, após a evacuação oficial de to-
ruandense e a FPR. em protesto contra os processos aber-
Nacional recusou-se, assim, a comu- dos os efetivos da França. Que papel
5 de outubro Criação da Missão das tos pelo juiz Jean-Louis Bruguière que
nicar a totalidade dos existentes na desempenharam eles? O relatório
Nações Unidas para a Assistência de responsabilizavam ruandenses citados
MIP – e não apenas os processos ver- também não examina as seis fichas
Ruanda (Minuar). na investigação sobre o atentado de 6
bais das audiências a portas fecha- DGSE relativas às duas pequenas
• 1994 de abril de 1994.
das. Além disso, a Comissão Duclert, equipes de mercenários comandados
Janeiro-março Primeiros assassinatos • 5 de agosto de 2008 Nomeada por
encarregada de estudar o período por Barril e Robert “Bob” Denard.
cometidos pelas milícias. Kagamé, a Comissão Mucyo (do nome
1990-1994, excluiu documentos pos- Barril, porém, assinou com o primei-
6 de abril  O presidente Habyarimana e de seu presidente, o ex-ministro da
teriores, mas pertinentes. “A pre- ro-ministro do GIR, em 28 de maio de
seu colega do Burundi, Cyprien Ntar- Justiça Jean de Dieu Mucyo) acusa,
tensa implicação de oficiais ou sol- 1994, um contrato de assistência inti-

®
yamira, morrem num atentado contra em seu relatório, a França de ter contri-
dados franceses no atentado [de 6 de tulado “Inseticida”. Lembrando: os
seu avião. Assassinato de dez capace- buído para a preparação do genocídio e
abril de 1994]”, afirma ele na página extremistas hutus chamavam suas
tes-azuis belgas. participado dele.
334, “só foi aventada por ocasião de vítimas tútsis de “baratas”.
Abril-julho Genocídio de tútsis pelas • 2021
um artigo da jornalista Colette Outra zona sombria importante
milícias Interhamwe e Impuzamugam- 26 de março  O relatório da comissão
Braeckman, publicado em 22 de ju- foi a operação militar Turquoise [Tur-
bi, às vezes auxiliadas pelas Forças Ar- de historiadores presidida por Vincent
nho no periódico belga Le Soir e tido quesa] (22 de junho a 22 de agosto de
madas Ruandenses (FAR). Duclert reconhece “responsabilida-
como ‘efabulação’ pelo embaixador 1994), lançada por Paris com o aval
22 de junho  Prevista para dois meses e des esmagadoras” da França, mas
da França na Bélgica”. No entanto, do Conselho de Segurança da ONU,
autorizada pelo Conselho de Seguran- enfatiza a ausência de cumplicidade
outras fontes sustentam essa impli- oficialmente para pôr fim aos massa-
ça das Nações Unidas, a operação no genocídio.
cação, sobretudo a ficha DGSE de 14 cres. Poucos dias após o início da
Turquoise, chefiada pelo Exército fran- 19 de abril Encomendado por Kigali em
de novembro de 1995, segundo a qual operação, cerca de 2 mil tútsis refu-
cês, deve proteger os civis ruandenses 2017 ao escritório de advocacia norte-a-
“um mercenário francês, Patrick Ol- giados nas colinas de Bisesero, a oes-
e distribuir ajuda humanitária. mericano Levy Firestone Muse, um rela-
livier, estaria envolvido nesse caso e te de Ruanda, foram abandonados a
Julho  A FPR toma o poder em Kigali. tório conclui pela “pesada responsabili-
teria se utilizado de suas relações seus assassinos, embora os militares
• 6 de dezembro de 1997  A Comissão de dade” da França no genocídio, mas não
junto aos ministérios franceses da franceses estivessem nas imedia-
Pesquisa Parlamentar belga, investigan- formula nenhuma acusação quanto à sua
Cooperação e das Relações Exterio- ções, informados de sua presença.
do os acontecimentos em Ruanda, cons- participação nos morticínios de 1994.
res a fim de ocultar a verdade”.9 Desses fatos incriminadores, o rela-
Além disso, na análise dos arqui- tório faz uma narração incompreen-
vos que entram em sua esfera, o rela- sível para leigos. Estranhamente, dei- conhecimento deles à justiça. O rela- africanos, sem se expor diretamente,
tório parece cheio de lacunas. Procu- xa de mencionar que cerca de tório menciona que as FAR recuaram para informar a essas autoridades
ra-se aí, em vão, o que disse a parte oitocentos desses refugiados foram em julho para a zona controlada pela nosso desejo de que abandonem a
francesa das longas conversas ocorri- por fim salvos em 30 de junho, por Turquoise, tida como zona humani- ZHS. Insista em que a comunidade
das de 9 a 13 de maio de 1994 entre o iniciativa de militares franceses que tária segura (ZHS), onde deveriam internacional, sobretudo as Nações
general Jean-Pierre Huchon, adido de agiram sem receber ordens. Limita- ser desarmadas. Enfatiza os limites Unidas, logo deverá determinar a
defesa em Kigali, e o tenente-coronel -se a retomar parte das justificativas dessa ação, mas omite que as FAR conduta em relação a essas pretensas
Ephrem Rwabalinda, que solicitou a do Exército (“insuficiência de infor- continuaram a combater a partir des- autoridades” (página 632).
ajuda de Paris. Este último figura en- mações”, “capacidade militar ainda sa zona, conforme revelam os mapas No entanto, o relatório ignora um
tre os adjuntos do chefe de Estado- limitada”, “preocupação com o res- da DGSE e os indicadores de localiza- elemento essencial de contexto, que
-Maior das Forças Armadas Ruan- peito às ordens recebidas do poder ção do Estado-Maior do Exército. esclarece essas mudanças. Embora
denses (FAR) que participaram do político”), apesar da massa de arqui- O relatório reproduz longamente nenhuma decisão houvesse sido ain-
genocídio. “Os militares franceses”, vos que as contradizem. as discussões na esfera do Executivo da tomada, o Élysée e o Quai d’Orsay
explicou o oficial das FAR em seu Um inquérito por cumplicidade francês e do Conselho de Segurança colocavam diante do fato consuma-
próprio relato dessas conversas, “es- no genocídio, apresentado pelos so- da ONU para decidir se a Turquoise do o resto do governo, o Parlamento
tão de pés e mãos atados para fazer breviventes de Bisesero, quer saber poderia e deveria deter os membros francês e a ONU: a pedido do minis-
uma intervenção qualquer em seu fa- por que nenhuma ordem de proteção do GIR refugiados na ZHS ou simples- tro das Relações Exteriores, o Exérci-
vor por causa da opinião da mídia, e resgate foi dada e a quem toca a res- mente vigiá-los até que fossem entre- to francês deixou tranquilamente
que só a FPR parece controlar. Se na- ponsabilidade, no local e em Paris. gues à justiça internacional. Bernard que os criminosos partissem para o
da for feito para melhorar a imagem Os documentos secretos que foram Emié, do gabinete do ministro das Zaire (atual República Democrática
do país no exterior, as autoridades recusados aos juízes figuram no âm- Relações Exteriores, Alain Juppé, es- do Congo), onde se reorganizaram
militares e políticas de Ruanda serão bito acessível à comissão, que sabia creveu então a seu representante no para tentar reconquistar Ruanda.
responsabilizadas pelos massacres de sua existência. Procurou-os, en- local: “Utilize todos os canais indire- Após o genocídio, o Estado não des-
ali cometidos.” Em consequência, controu-os? Seja como for, não deu tos, principalmente seus contatos mentiu seu apoio a esses aliados em
26 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

NO ESPELHO DOS “CEM DIAS DE RUANDA”

O enigmático
fuga tanto para o Zaire como para a tituições da V República, que concede
França, onde foram muito bem aco- ao chefe de Estado e a seu círculo o po-
lhidos. Mas esse fato não é de modo der de tomar, quase sem salvaguardas,
algum mencionado. decisões prenhes de consequências

silêncio africano
De maneira geral, o relatório Du- para populações e países inteiros. 
clert dá a impressão de evitar tudo
que pudesse abrir caminho para pro- *François Graner  é pesquisador, membro
cessos penais. Três características da Association Survie e autor, com Raphaël
embasam, na lei e na jurisprudência Doridant, de L’État français et le génocide
francesas, a noção de cumplicidade: des Tutsis au Rwanda [O Estado francês e O fracasso da “comunidade internacional”, que condenou
um apoio ativo, dado com pleno co- o genocídio dos tútsis em Ruanda], Agone- à morte 800 mil tútsis em Ruanda, tem sido objeto de
nhecimento de causa e com conse- -Survie, Marselha, 2020.
quências sobre a evolução dos acon- muitas análises desde 1994. Mas como compreender
tecimentos. Levando-se em conta os 1   D
 avid Fontaine, “Archives publiques et bas- o silêncio dos Estados e dos intelectuais africanos
elementos acumulados e estabeleci- tions imprenables” [Arquivos públicos e forta-
lezas inexpugnáveis], Le Canard Enchaîné,
enquanto se perpetrava, à vista de todos, o último
dos, a justiça deveria poder se pro-
nunciar. Declarando-se incompeten-
Paris, 3 mar. 2001.
2   “ Rapport sur le secret de la défense nationa-
genocídio do século XX? Até hoje, os assassinos
te para formular tal julgamento, a le en France/II” [Relatório sobre o segredo vivem tranquilamente espalhados pelo continente
Comissão Duclert se dá o direito de da defesa na França/II], Secrétariat Général
de la Défense et de la Sécurité Nationale, Pa-
apresentar uma conclusão eminente- ris, jan. 2018.
mente política. Como não se encontra 3   Fabrice Arfi e Fabrice Lhomme, “Le juge Trévi- POR BOUBACAR BORIS DIOP*
nenhum indício da intenção de pro- dic dénonce: ‘Le dispositif sur le secret défen-
se n’est pas constitutionnel’” [O juiz Trévidic
mover o genocídio entre os tomado-

P
denuncia: “O dispositivo sobre o segredo de
res de decisão franceses, ela os exone- defesa não é constitucional”], Mediapart, 24 or que a humanidade não cor- com seus representantes em Kigali
ra de toda cumplicidade. Ora, vale fev. 2011. Disponível em: www.mediapart.fr. reu em socorro dos tútsis de indica que houvessem tomado a me-
4   J ean Carbonare, na época presidente da
lembrar que em 1998 o ex-alto funcio- Survie, pediu ao Élysée e ao Journal de 20 Ruanda em 1994, embora os dida exata do que estava acontecen-
nário Maurice Papon foi condenado Heures da France 2 que a França deixasse morticínios, maciços e de uma do ali ou procurado mudar o rumo
por cumplicidade de crime contra a de apoiar os que preparavam um genocídio atrocidade espantosa, houvessem dos acontecimentos.
enquanto era tempo.
humanidade sem ter aderido à ideo- 5   Ver François-Xavier Verschave, “Conniven- acontecido à vista de todos? A ONU é Os chefes de Estado e líderes da
logia nazista ou mesmo tomado pleno ces françaises au Rwanda” [Conivências regularmente criticada e por bons opinião pública africanos também

®
conhecimento do crime cometido. francesas em Ruanda], e Colette Braeckman, motivos: o comandante da Missão não mostraram mais empatia para
“Rwanda, retour sur un aveuglement interna-
O relatório mostra Mitterrand e tional” [Ruanda, de volta a uma cegueira in- das Nações Unidas para a Assistência com aqueles que estavam sendo aba-
seus consultores como exceções e sua ternacional], Le Monde Diplomatique, res- de Ruanda (Minuar), o general cana- tidos como gado em Butare, Kibuye,
política em Ruanda como disfunção pectivamente mar. 1995 e mar. 2004. dense Roméo Dallaire, bem informa- Gitarama e outros lugares.
6   Ver Philippe Leymarie, “Secret défense ou
do passado. O objetivo será reconci- l’État de non-droit” [Segredo de defesa ou do por um desertor do movimento Ainda que nada justifique essa
liar a França e Ruanda, ainda que a Estado de não direito], Défense en Ligne, 10 extremista Hutu Power, pediu um re- omissão, poderíamos encontrar al-
expensas do conhecimento histórico mar. 2018. Disponível em: https://blog.mon- forço de 5 mil capacetes-azuis para guma desculpa se a catástrofe tivesse
dediplo.net.
e da justiça? Objeto político-universi- 7   Journal Officiel de la République Française evitar os massacres programados, ocorrido num lapso de tempo muito
tário dos mais estranhos, o relatório de 14 dez. 2007, 13 jun. e 18 out. 2008, 20 mas ela, ao contrário, diminuiu os curto. Ora, é pelo próprio motivo de
foi redigido no Ministério das Forças fev. e 7 jul. 2009, 30 jul. 2010, 1º nov. 2012. efetivos de 2.300 soldados para 270 sua duração – do início de abril a
8   D ecisões n. 422327 e 431026, de 12 jun.
Armadas. Foi apresentado aos jorna- 2020, Assemblée du Contentieux, François observadores não armados. Nós es- meados de julho – que falamos nos
listas por Franck Paris, consultor de Graner contre Ministère de la Culture, Con- quecemos, porém, que a organização “Cem Dias de Ruanda”1 a propósito
Macron para assuntos da África, e pe- seil d’État, Paris. Cf. também Decisão n. que entregou as vítimas a seus car- do genocídio dos tútsis. Isso quer di-
2017-655, de 15 set. 2017, Conseil Consti-
lo general Valéry Putz, membro de seu tutionnel, Paris. rascos era dirigida na época por dois zer que, se em Maputo, Abidjã ou
Estado-Maior particular, cujos prede- 9   F icha n. 16053/N, “France – Belgique – africanos: o egípcio Boutros Boutros- Abuja, as autoridades com poder de
cessores de 1994 ele põe em causa. Rwanda: Au sujet de l’assassinat du prési- -Ghali, secretário-geral, e o ganense decisão possam ter sido apanhadas
dent Habyarimana” [França-Bélgica-Ruan-
A impossibilidade de esclarecer da: sobre o assassinato do presidente Kofi Annan, subsecretário-geral, res- desprevenidas, tiveram mais de três
completamente os acontecimentos de Habyarimana], DGSE, Paris, 14 nov. 1995. ponsável pelo departamento de ope- meses para se inteirar do que ocorria.
Ruanda dá bem a medida do segredo 10  C f. Jacques Morel, La France au Cœur du rações de manutenção da paz. Eles Não fizeram isso. Em junho de 1994,
Génocide des Tutsis [A França no centro do
que envolve ainda a política africana genocídio dos tútsis], Izuba-L’Esprit Fra- não tinham, é claro, nenhum poder o mês de maior morticínio, a Organi-
da França e o funcionamento das ins- ppeur, Paris, 2010. de decisão, mas nada nas tratativas zação da Unidade Africana (OUA)
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© George Mulala/ Reuters


promoveu sua reunião anual em Tú- gica e na França. Numerosos clientes
nis e, como se nada estivesse ocor- potenciais da justiça internacional
rendo, nem sequer julgou necessário continuam, ainda hoje, instalados
inscrever na ordem do dia a situação por toda parte no continente, seja na
do “país das mil colinas”. O Governo África do Sul, no Quênia, no Zimbá-
Interino Ruandês (GIR), que na época bue e, é claro, na vizinha República
não estava longe de ter assassinado 1 Democrática do Congo (RDC). Sua
milhão de tútsis, tomou tranquila- sensação de segurança é tal que, às
mente assento na reunião, em nome vezes, não acham necessário sequer
do Estado genocida... dissimular sua identidade: Félicien
É verdade que o fim do apartheid Kabuga, apelidado de “Financiador
acabava de ser oficializado, após uma do Genocídio”, foi por muito tempo
demorada luta em que a OUA desem- protegido pelas autoridades do Zim-
penhara papel de destaque. Ela pre- bábue e em seguida do Quênia, antes
tendia, pois, celebrar essa vitória na de ir reencontrar sua família na Fran-
pessoa de Nelson Mandela, presente ça e ser preso, em maio de 2020, em
em Túnis. Mas foi ele, primeiro man- Asnières-sur-Seine.
datário eleito democraticamente na Todavia, as ex-colônias francesas
África do Sul, que salvou a honra do são, por razões políticas evidentes, a
continente ao fugir da pauta e decla- primeira escolha dos assassinos em
rar sem rebuços: “O que está aconte- fuga. Eles costumam ser particular-
cendo em Ruanda é uma vergonha mente bem-vindos no Gabão e em
para todos nós. Devemos provar, com Procurado: Felicien Kabuga, o “Financiador do Genecídio” Camarões – país onde foi por fim
ações concretas, nossa vontade de re- apanhado o coronel Théoneste Ba-
solver o problema”. O historiador Gé- “países de sua esfera”. Até o Senegal, 2000 e se intitula, significativamen- gosora, tido como o “Cérebro do Ge-
rard Prunier, que relata o episódio,2 amigo dócil e detentor do recorde te, “Ruanda: o genocídio que poderia nocídio”, condenado por crime con-
menciona o choque que essa declara- africano de operações externas da ter sido evitado”.4 Encontramos nele tra a humanidade pelo Tribunal
ção provocou em Paris, onde Fran- ONU, contribuiu com pouco: uns (p.229) esta confissão de uma alta Penal Internacional para Ruanda
çois Mitterrand, sempre impregnado trinta homens, encarregados apenas autoridade, não identificada, da (TPIR) em 2008. Em Ndjamena, em
do “espírito de Fachoda”,3 raciocinou de tarefas de intendência... OUA: “Enquanto africanos, seremos 2000, meus amigos e eu soubemos,

®
mais ou menos nestes termos: “Man- De seu lado, a OUA tentou mais sempre assombrados por nosso fra- após uma manifestação literária in-
dela ou qualquer outro, não deixare- tarde se safar com honra encomen- casso em Ruanda; e a comunidade titulada “Ruanda: escrever por dever
mos os anglo-saxões meterem o nariz dando um relatório a um grupo in- internacional deveria ser assombra- de memória”, que um dos partici-
em nossos negócios!”. ternacional de eminentes personali- da também”. pantes de nossos debates era procu-
dades chefiado por Ketumile Masile, Era uma verdadeira autocrítica e, rado pelo TPIR. Enfim, foi em Thiès,
GENOCIDAS REFUGIADOS ex-presidente de Botsuana, do qual como tal, digna de respeito, embora cidadezinha a uns 60 quilômetros de
PELO CONTINENTE faziam parte, entre outros, Ellen- tudo isso fosse irrisório diante da Dacar, que o coronel Aloys Simba (o
Prunier, então membro do secreta- -Johnson-Sirleaf, diretora regional imensidão da perda: durante cem “Açougueiro de Murambi”) acabou
riado internacional do Partido So- do Programa das Nações Unidas pa- dias seguidos, cada dia de silêncio detido, em novembro de 2001. Ele vi-
cialista, sabia em primeira mão – e ra o Desenvolvimento (Pnud) e futu- da OUA custava a vida de 10 mil via sob a discreta proteção da Orga-
dava conselhos a respeito – que a ra presidente da Libéria, Lisbet Pal- inocentes... nização Nacional dos Direitos Hu-
operação Turquoise, de triste memó- me, psicóloga sueca e viúva do De qualquer modo, os Estados manos, que depende da Federação
ria, seria um fracasso. Via com clare- primeiro-ministro Olof Palme, o ca- africanos, considerados individual- Internacional dos Direitos Humanos
za que se tratava principalmente de nadense Stephen Lewis, diretor-ad- mente, não se sentiram de fato atin- (FIDH). Sem o pedido expresso e, va-
convocar sem demora tropas sul- junto do Fundo das Nações Unidas gidos pelas conclusões do relatório. le dizer, enérgico da procuradora
-africanas... Ansiosa por dar a apa- para a Infância (Unicef), e o general Por exemplo, nunca deixaram de fe- Carla Del Ponte, ele provavelmente
rência de força multilateral à sua ex- Amadou Toumani Touré, ex-presi- char os olhos à presença, em seu solo, nunca seria entregue ao TPIR.
pedição militar-humanitária, Paris dente do Mali. daqueles que conceberam ou execu- Assim, quanto ao problema de
não conseguiu, dessa vez, aliciar pa- Seu relatório, sem dúvida um dos taram o genocídio. Um mapa da diás- Ruanda, a falência política e moral
ra a combinação os exércitos do que melhores sobre essa página sombria pora desses genocidas mostraria que dos Estados africanos é completa.
chama, com muita propriedade, da história, foi concluído em julho de eles não se refugiaram apenas na Bél- Vamos nos consolar atribuindo-a
28 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

DESASTRE PRESENTE, PASSADO E FUTURO

Governo
unicamente aos erros de presidentes devida talvez ao que a escritora ruan-
cínicos e, no caso dos francófonos, dense Yolanda Mukagasana chama
aterrorizados com a ideia de aborre- de “medo de saber”,5 foi observada
cer Paris? Claro que não. É cada vez em todos os graves conflitos ocorri-

pandêmico:
mais difícil, em qualquer questão, dos na África, da guerra civil da Libé-
formular um julgamento global sobre ria aos distúrbios atuais na Etiópia e
a África; no entanto, podemos obser- no Mali. Com o tempo, os países afri-
var, em toda parte, que a “solução fi- canos vão se tornando, sem nem se-

hora de apurar
nal” de Ruanda não impressionou os quer se aperceberem disso, forte-
espíritos. O genocídio, porém, se deu mente estranhos uns aos outros. E as
no momento em que, graças às tran- fronteiras, para as pessoas, são as
sições democráticas ocorridas após o herdadas da colonização. Essa con-

responsabilidades
fim da Guerra Fria, o jogo político se fusão mental não ajuda a ver as coi-
abrira na maior parte dos países afri- sas com clareza. Assim é que, para
canos. O surgimento de forças novas muitos intelectuais africanos, a lei-
havia liberado a palavra e era de es- tura do genocídio dos tútsis continua
perar uma compreensão mais clara falseada por uma surda hostilidade
dos desafios do drama por parte de ao presidente Paul Kagamé. Em sua saga para aniquilar o Estado brasileiro, ao revelar
um público mais bem informado. “Em Ruanda, os hutus matam os inaptidão, despreparo e desprezo pela ação pública, o
Nada disso aconteceu. A impren- tútsis e os tútsis matam os hutus”: es-
sa, que se tornou sem dúvida mais li- sa frase foi apregoada, no auge da presidente conduz um governo que alimenta o preconceito
vre, quase nunca se aventura para matança, por Boutros-Ghali. Em contra tudo que é público e deixa implícita a direção a
além das fronteiras nacionais. Em tu- Biarritz, na primeira conferência tomar: franquear ao privado a gestão da nação
do que não diz respeito à política lo- França-África após o genocídio, Mit-
cal, ela continua a copiar, cegamente, terrand fingiu estar torturado pela
os despachos da Agência France- angústia ao proferir, numa entrevis- POR LENA LAVINAS E CLAUDIO S. DEDECCA*
-Presse (AFP), da Reuters ou da Asso- ta: “Que pode fazer a França quando
ciated Press. Os jornais televisivos, de os chefes africanos decidem resolver

A
seu lado, se contentam em retomar seus problemas a machadadas?”. lista só aumenta e parece cinas em 2020 – embora contasse no
no fim das transmissões as imagens e As palavras de um secretário-ge- acompanhar não apenas o grau “orçamento de guerra” com R$ 24,5

®
comentários da TF1 ou da France2. ral da ONU reforçadas pelas de um de letalidade da Covid-19, mas bilhões nessa rubrica, só gastou R$
As rádios particulares se mostram – e chefe de Estado francês: duas inép- também a insanidade do chefe 2,22 bilhões –, desconsiderou a ne-
se mostraram, sobretudo durante o cias racistas antológicas. No entanto, do Executivo. O presidente Jair Bolso- cessidade incontornável de adquiri-
genocídio – completamente mudas a elas dizem em voz alta o que por toda naro continua pregando o uso de -las no montante necessário para
respeito de Ruanda, de sorte que as parte, inclusive na África, se pensa drogas cuja eficácia no tratamento atender à cobertura da população-al-
únicas fontes de informação, tenden- dos africanos. Essa percepção de um preventivo contra o coronavírus ja- vo em 2021. Estudo em andamento do
ciosas como podemos supor, são a continente inteiro, por ele mesmo e mais foi comprovada, tendo agora economista Carlos Octávio Ocké-Reis
BBC, a Radio France Internationale pelos outros, tornou possível o plane- agregado ao coquetel de sua autoria a aponta que recorrer aos R$ 21,6 bi-
(RFI) e a Voz da América. jamento do último genocídio do sé- proxalutamida. Tal como no caso da lhões não executados no ano passado
Contudo, nos dias que correm, já culo XX e sua execução durante três cloroquina e da ivermectina, esse traduz uma insuficiência orçamentá-
não é mais possível invocar a descul- meses. É ela também que, quase trin- bloqueador hormonal, cuja fabrica- ria de no mínimo R$ 5 bilhões nos
pa da ignorância. Com efeito, poucas ta anos depois, impede a África de ção foi rejeitada por dois laboratórios, gastos com vacina em 2021.
tragédias de nosso tempo, africanas compreender seus mecanismos, ou carece de estudos comprobatórios É fato, porém, que contas não são
ou não, foram tão meticulosamente até de aceitar simplesmente a ideia de que afastem suspeitas de ter até mes- um forte desse governo. O ministro
estudadas quanto o genocídio dos que, por trás desses cem dias de hor- mo provocado mortes.1 da Economia, que em mais de dois
tútsis de Ruanda. Nem se pode contar ror, havia não a irrupção de um ódio Enquanto ultrapassamos as 400 anos no cargo não aprendeu como se
as publicações de historiadores e jor- irracional e gratuito, mas, como mui- mil mortes contabilizadas por Co- produz um orçamento, anuncia um
nalistas sobre o assunto, sem falar tas vezes se viu na história contem- vid-19, sobram evidências de que o enésimo programa social “forte e só-
dos filmes, obras literárias e peças de porânea, as clássicas lutas pelo poder Brasil se moveu na contramão do res- lido”, que tem grandes chances de se
teatro. Um grande trabalho vem sen- fora de qualquer controle.  to do mundo na busca por vacinas. somar à lista de iniciativas que nau-
do feito também nas redes sociais. Como indica estudo2 elaborado por fragaram antes mesmo de tomar for-
*Boubacar Boris Diop  é romancista se- um conjunto de acadêmicos e jorna- ma para além do nome de batismo,
CARNIFICINA DARIA negalês. Última obra publicada: Bàmmeelu listas para subsidiar as atividades da caso do Renda Brasil e do Renda Ci-
RAZÃO AOS RACISTAS Kocc Barma , EJO-Éditions, Dacar, 2017. CPI da Pandemia, o país aderiu ao dadã. À deriva, alardeou mecanismos
É, portanto, em outra parte que pre- programa Covax Facility da OMS, pa- de financiamento enganosos, que
cisamos buscar os motivos de 27 lon- ra desenvolvimento e acesso a vaci- iam do uso de precatórios ao desvio
gos anos de apatia africana. Em Da- 1   C f., por exemplo, a exposição da Association nas contra a Covid-19, pouco mais de de recursos do Fundeb ou ainda à ex-
car, Nairóbi ou Maputo, os des Rescapés et Familles de Victimes Ibuka. duas horas antes do término do pra- tinção de benefícios contributivos e
Disponível em: www.ibuka.be.
acontecimentos de Ruanda foram 2   Gérard Prunier, Rwanda: le génocide, Dagor- zo estipulado. “Tendo a opção de soli- não contributivos, isto é, suprimindo
vistos sobretudo como uma cons- no, Paris, 1998. citar doses suficientes para vacinar direitos constitucionais. Na lógica do
trangedora carnificina interétnica 3   Antigo posto avançado egípcio, Fachoda, no entre 10% e 50% da população, a es- desmonte, essa é a rota do sucesso.
atual Sudão do Sul, atiçou em 1898 a cobiça
que, infelizmente, daria razão aos ra- de britânicos e franceses. Isso originou um colha foi por 10%. Nosso país entrou No auge de uma crise sanitária,
cistas. As imagens de centenas de grave conflito diplomático, exacerbado pelo como um dos financiadores com a social e econômica sem precedentes,
milhares de corpos apodrecendo ao patriotismo de ambos os lados. O incidente cota mínima: comprou 42 milhões de que há um ano ceifa milhares de vi-
costuma ser evocado como um símbolo da
sol ou atirados no Nyabarongo, de viva rivalidade colonial entre os franceses e doses, o suficiente apenas para 21 das, o governo federal se mostrou rei-
mulheres evisceradas, de bebês joga- aqueles que eles chamam globalmente de an- milhões de brasileiros” (p.41-42). teradamente incapaz de executar os
dos vivos em latrinas e de cães pres- glo-saxões. Convivendo com uma segunda créditos extraordinários aprovados
4   “ Le génocide qu’on aurait pu stopper” [O ge-
tes a se repastar em cadáveres eram nocídio que poderia ter sido evitado], disponí- onda da pandemia, que colapsa o sis- para o combate à pandemia, seja no
quase surreais, sendo compreensí- vel no site da Commission d’Enquête Citoyen- tema de saúde público e privado, o tocante à compra de imunizantes e
vel, até certo ponto, que a África, to- ne: http://cec.rwanda.free.fr. país toma conhecimento de que o medicamentos, seja no financiamen-
5   C f. Yolande Mukagasana, N’aie pas peur de
mada de vergonha, haja por enquan- savoir [Não tenha medo de saber], Robert La- Ministério da Saúde, além de não to- to de leitos de UTI, em queda, en-
to desviado o olhar. Essa atitude, ffont, Paris, 1999. mar iniciativas para a compra de va- quanto aumenta o número de óbitos
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 29

na fila de espera por tratamento in- das instituições públicas. É espanto- uma economia sustentável e deslocar senso mais elementar e destoa de um
tensivo. Como observa documento so que parte da elite nacional – moti- o risco de uma nova futura pandemia, conjunto de iniciativas em escala glo-
do Ipea 3 sobre as respostas à Co- vada por seus interesses privados e já prevista pelos epidemiologistas em bal que visam recolocar o sistema ca-
vid-19, além de “não haver intenção sempre sedenta por benesses junto todo o mundo, o governo Bolsonaro pitalista de volta nos trilhos.
de elaborar um plano geral para o ao aparelho de Estado – e da classe pauta sua agenda em iniciativas de São diversos os sinais de omissão
SUS, construído coletivamente” para média ainda continue dando legiti- privatização que resultam em ridícu- do governo em relação ao planeja-
enfrentar a pandemia, o atraso na midade ao processo. los R$ 3,5 bilhões; apoio aos grupos mento econômico e social no presen-
disponibilização de recursos foi mar- O enfraquecimento das políticas e milicianos via liberalização do acesso te e no futuro. Nesse sentido, não se
ca registrada da atuação do Ministé- das instituições públicas se expressa a armas de elevada letalidade, com pode dizer que o governo apresenta
rio da Saúde, comprometendo o aten- na total ausência de planejamento de eliminação do imposto de importa- um comportamento contraditório
dimento emergencial adequado à curto, médio ou longo prazos. O go- ção; criação de imposto sobre livros; em relação às políticas e instituições
população e alimentando a escalada verno adota medidas sociais e econô- aprovação do ensino em casa (homes- públicas. São amplas as evidências
de novos casos e mortes. micas tópicas, ad hoc e fragmenta- chooling); encaminhamento ideológi- de simbiose entre incompetência na
Até mesmo o orçamento destina- das, enquanto se consolida uma co da concorrência para a rede 5G; gestão governamental e ação plane-
do ao pagamento do auxílio emer- recessão casada com o recrudesci- omissão em relação ao desmatamen- jada de desmonte das políticas e ins-
gencial em 2020 não foi gasto em sua mento inflacionário, crescentes ta- to na Amazônia; paralisação de obras tituições públicas.
integralidade. O Inesc estima que R$ xas de desemprego são acompanha- importantes de infraestrutura, como Tais evidências levaram a um dis-
28,9 bilhões não foram executados – das por perda de renda dos segmentos a finalização do rodoanel na Região tanciamento da maioria dos governa-
uma sobra que provavelmente expli- mais pobres, o descontrole da pande- Metropolitana de São Paulo, e de mo- dores em relação ao governo federal,
ca que 1 milhão de adultos pobres mia corrói a capacidade do sistema bilidade urbana em várias capitais independentemente de sua maior ou
não tenham sido alcançados no ano de saúde, gerando seu colapso, um brasileiras; abandono do planeja- menor adesão ao projeto do presidente
passado pelo auxílio emergencial, legado amplo de problemas de saúde mento para o sistema energético... ensandecido. Premida pela explosão
como revelam cruzamentos da Pnad da população é consolidado para os Enquanto as economias avança- da pandemia em seus estados e aban-
Covid-19. Essa inoperância agudiza a próximos anos e a deterioração do das colocam na ordem do dia um au- donada pelo governo federal, a maio-
fome e humilha quem, embora aten- sistema de educação se estabelece mento coordenado das alíquotas do ria dos governadores empreende es-
da aos critérios de beneficiário do au- em todos os seus níveis. Imposto de Renda das empresas para forços importantes para minimizar os
xílio emergencial, foi descartado, in- O desleixo governamental em re- financiar a retomada do crescimento dados econômicos e sociais da pande-
visibilizado pelo Estado, que tem a lação à explosão dos problemas so- econômico, estabelecendo um piso mia sobre sua população, sinalizando
obrigação constitucional de o prote- ciais e econômicos no presente é mínimo global para evitar a evasão que não mais acreditam que uma polí-
ger. A economia feita em detrimento acompanhado da omissão quanto ao fiscal e para ir além da taxação das tica responsável venha a ser conduzi-

®
dos mais vulneráveis corresponde a planejamento pós-pandemia. En- big techs e da big farma,4 no Brasil en- da e coordenada pelo governo federal.
65% dos R$ 44 bilhões que vão finan- quanto a Comunidade Europeia, os tra na agenda desonerar por comple- E agora, com a abertura da CPI da Pan-
ciar a segunda rodada do auxílio Estados Unidos e a China estruturam to os hospitais privados, que, aliás, se demia, pretende o presidente, acuado
emergencial que começou a ser pago robustos e complexos planos de de- recusaram a aderir à proposta da fila diante de sua irresponsabilidade, im-
no início de abril, desta feita por ape- senvolvimento que visam estimular o única para gestão compartilhada de putar a eles a autoria das omissões e
nas quatro meses e num valor muito crescimento, superar rapidamente as leitos no início da pandemia. Aqui o inações que o incriminam.
aquém da cobertura das necessida- sequelas da pandemia, estruturar discurso da austeridade fere o bom É impossível, portanto, desco-
des básicas de sobrevivência. Sobre- nhecer o estado de deriva vivido pelo
viver passa a ter resposta na filantro- © Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil país, que tem gerado consequências
pia e na solidariedade. econômicas e sociais desastrosas no
Em sua saga para aniquilar o Esta- presente e reserva novas consequên-
do brasileiro, ao revelar inaptidão, cias negativas para o futuro. Nesse
despreparo e desprezo pela ação pú- sentido, o impeachment do atual
blica, o presidente conduz um gover- presidente se apresenta como uma
no que alimenta o preconceito contra necessidade incontornável. Mesmo
tudo que é público e deixa implícita a que ele não se reeleja em 2022, espe-
direção a tomar: franquear ao priva- rar por tal mudança significará acu-
do a gestão da nação. É esse mote que mular maiores problemas econômi-
leva inexoravelmente à aprovação de cos e sociais no presente, além de
projetos de lei que autorizam a aquisi- desafios colossais na construção de
ção de vacinas pela iniciativa privada, nosso futuro. 
em meio a gargalos do Plano Nacional
de Imunizações gestados pelo pró- *Lena Lavinas  é professora titular do Ins-
prio governo, ao mesmo tempo que tituto de Economia da UFRJ; Claudio S.
socializa o custo da iniciativa para to- Dedecca é professor titular aposentado de
da a população. Parte do setor priva- Economia Social e do Trabalho da
do empresarial agradece, mesmo se Unicamp.
ainda não logrou obter aquilo que se-
1   J ohanns Eller, “‘Nova cloroquina’ de Bolsona-
gue em sua linha de prioridades: a li- ro, proxalutamida foi rejeitada por dois labo-
berdade plena para a comercialização ratórios”, Blog Malu Gaspar, O Globo, 15
de vacinas. Por ora, vão oferecer aos abr. 2021.
2   “A tragédia brasileira do coronavírus/Co-
seus empregados a mesma ilusão de vid-19: uma análise do desgoverno do gover-
amparo invocada pelos senhores da no federal, 2020-21”. Documento entregue à
guerra em defesa dos servos da gleba. Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da
Covid-19 do Senado Federal, abr. 2021. Auto-
O direito à proteção em troca da obri- ria coletiva.
gação de trabalhar, e bem trabalhar. 3   “ Políticas sociais: acompanhamento e análise
É evidente a desorganização geral | BPS | n. 28 | 2021”. Disponível em: https://
bit.ly/3sS2fH0.
produzida pelo governo nas três di- 4   Janet Yallen propõe que as economias avan-
mensões relevantes para a sociedade çadas e o G20 adotem um piso de 21% como
– a política, a social e a econômica –, a alíquota para o IRPJ, taxa hoje que equivale à
média, com grande dispersão entre países,
qual produz um processo acelerado facilitando a evasão e a multiplicação dos pa-
de enfraquecimento das políticas e Presidente Jair Bolsonaro e sua equipe seguem se omitindo diante da pandemia raísos fiscais.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

WASHINGTON SEMEIA A CIZÂNIA NA EUROPA

A batalha do gás natural


A degradação das relações entre a Rússia e a Europa Ocidental ocupa as chancelarias desde 2014 com uma
sucessão de disputas: conflito na Ucrânia, destino do opositor Alexei Navalny, gasoduto Nord Stream 2...
O pano de fundo é o grande jogo estratégico em que se cruzam a estratégia russa, as exigências
norte-americanas, os interesses alemães, a crise climática e o dogmatismo liberal da Comissão Europeia

POR MATHIAS REYMOND*

D
© Gerd Fahrenhorst/ Wikimedia
urante sua visita à Casa Branca, construção do gasoduto Nord Stream
em julho de 2018, Jean-Claude 1 entre a Rússia e a Alemanha. A do
Juncker, então presidente da gasoduto Nord Stream 2 obceca-os a
Comissão Europeia, entrou em ponto de fazerem tudo para impedir
acordo com o presidente Donald seu término. Mas o escândalo inter-
Trump. “Hoje decidimos reforçar nacional em torno desse tubo eclipsa
nossa cooperação estratégica no outro campo de batalha do gás. Deci-
campo energético”, declararam os dida a contornar a Ucrânia, um vizi-
dois, em conjunto. “A União Europeia nho com o qual está em conflito des-
pretende importar mais gás natural de 2014, a Rússia não se contenta com
liquefeito dos Estados Unidos para dobrar o Nord Stream. Em 8 de janei-
diversificar seu abastecimento.”1 Era ro de 2020, Vladimir Putin inaugu-
um segredo de polichinelo: os produ- rou, em companhia do presidente
tores norte-americanos de gás que- turco, Recep Tayyip Erdogan, o gaso-
riam mais mercado, e a União Euro- duto Turkish Stream, que visa ali-

®
peia, principal importador mundial, mentar a Europa pelo sul, via Tur-
parecia o cliente certo. quia. Outra ramificação, batizada de
O conflito entre a Rússia e a Ucrâ- Tesla, deve abastecer no futuro a Sér-
nia, a questão do gasoduto Nord via, a Hungria, a Bulgária e a Áustria,
Stream 2 e as tensões no Mediterrâneo passando pela Grécia e a Macedônia
em torno das jazidas cipriotas colocam do Norte, já clientes.9 Esse prolonga-
a produção de gás natural no centro do mento traz à baila o South Stream,
jogo geopolítico, no momento em que um antigo projeto russo de traçado
os desafios ambientais preocupam ca- Tubos para o gasoduto Nord Stream 2, localizados em Mukran, Alemanha similar ao abandonado por Moscou
da vez mais os Estados. Trata-se de um em 2014 por causa das pressões exer-
recurso não renovável, sem dúvida, transações diárias. Ao contrário, os Se os Estados Unidos consomem o cidas por Bruxelas sobre os membros
mas menos poluente que o petróleo ou contratos via gasoduto – e parte dos essencial de sua produção, também da União Europeia parceiros do pro-
– sobretudo – o carvão. Além disso, referentes ao GNL – acolhem prazos se livram dos excedentes em quanti- jeto.10 Diante dos obstáculos encon-
permite que se produza uma eletrici- que chegam muitas vezes a vinte ou dade cada vez maior. Dos três grandes trados no mercado europeu e da hos-
dade barata, e seu transporte é hoje trinta anos.3 Todavia, os gasodutos mercados mundiais, o europeu pare- tilidade crescente dos ocidentais
mais fácil que no século passado. têm sobre o GNL uma vantagem con- ce o mais suculento. Washington contra os tubos russos, Moscou apri-
Com o aparecimento do gás natu- siderável: pelos tubos, as perdas ener- exerceu diversas formas de pressão mora suas capacidades de exporta-
ral liquefeito (GNL), transportado por géticas se limitam a 4% ou 5%, ao pas- sobre Bruxelas a fim de reduzir o con- ção de GNL e se volta para o leste: o
navios-tanque, o setor, outrora muito so que se elevam a 10% ou mesmo 15% trole da Rússia sobre o fornecimento tubo Força da Sibéria, inaugurado
regionalizado, internacionalizou-se e por navio, em razão das múltiplas eta- de gás europeu. Em julho de 2017, em dezembro de 2019, encaminhará
libertou-se da dependência mútua pas de transformação (liquefação, Trump atacou a Iniciativa dos Três para a China 38 bilhões de metros cú-
entre exportadores e importadores transporte, regaseificação e encami- Mares (ITM). Reunido pela primeira bicos por ano, durante três décadas.
imposta pelos gasodutos.2 Mas o pro- nhamento final... por gasoduto). vez em 2016, esse fórum congrega to- No Velho Continente, os Estados
cesso não prima pela simplicidade: o Maior produtor mundial de gás, dos os anos doze países6 situados en- Unidos sabem poder contar com um
gás extraído é primeiro liquidificado os Estados Unidos extraem 88% a tre o Mar Báltico, o Mar do Norte e o aliado ainda mais sólido que a Polô-
por resfriamento a uma temperatura mais que há quinze anos, enquanto a Mar Adriático a fim de “promover a nia: o dogmatismo liberal de Bruxe-
de –16 °C, transportado por barco e Rússia estagnou e a Europa diminuiu cooperação com vistas ao desenvolvi- las. Com a abertura do setor à con-
depois regaseificado. Na União Euro- sua produção pela metade. Motivo? A mento das infraestruturas nos setores corrência, a gestão dos gasodutos
peia, cerca de trinta terminais permi- descoberta, no início dos anos 2000, de energia, transportes e informáti- passa agora por sociedades indepen-
tem essas operações (ver mapa). A do gás “não convencional” extraído ca”.7 O então presidente norte-ameri- dentes dos operadores históricos, pa-
maior parte das exportações mun- do subsolo pela técnica altamente cano não escondia seu objetivo: refor- ra que estes não favoreçam o gás de
diais é feita por gasodutos (63% con- poluidora da fraturação hidráulica.4 çar, com o apoio da Polônia e contra a uma empresa – a deles, no caso. As-
tra 37% por mar), mas a diferença di- A partir de 2008, sua exploração in- opinião da Alemanha, o abasteci- sim, a companhia russa Gazprom,
minuiu (78% contra 22% em 2005). tensiva foi facilitada pela “vontade de mento norte-sul da Europa com o for- que produz e distribui o gás, além de
Mais cômodo que o gás terrestre, o independência energética do gover- necimento de gás partindo do termi- administrar os gasodutos, vê-se en-
GNL entusiasma os adeptos da libera- no federal” e, sobretudo, pelo “regi- nal GNL de Swinoujscie (Polônia) redada em textos redigidos pela Co-
lização do setor. Graças a ele, os ope- me jurídico de exploração-produção, para o resto da Europa Central8 e con- missão Europeia e... aprovados por
radores trabalham com os preços de pelo qual, nos Estados Unidos, a pro- correr, assim, com os gasodutos rus- Washington. Com efeito, meses após
diversos mercados (europeu, atlânti- priedade do solo se estende ao subso- sos vindos do leste. o acordo selado entre Juncker e
co e pacífico) e fecham com frequên- lo”.5 Ou seja, o proprietário não preci- De 2005 a 2011, quando ainda não Trump sobre o fornecimento de gás,
cia cada vez mais contratos a curto sa de autorização do Estado para exportavam gás para a Europa, os Es- o Parlamento europeu adotou em ca-
prazo, os spots, que permitem efetuar explorar seu subsolo. tados Unidos não se opuseram à ráter de urgência, em 17 de abril de
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 31

2019, a diretriz sobre o gás constante te da central de Fukushima, no Japão, solverá sem o fator demanda: modifi- 8   Reuters, 4 jul. 2017.
do terceiro pacote de Energia-Clima, em 2011, o átomo perdeu prestígio. car em profundidade as cadeias de 9   “Rencontre Erdoğan-Poutine: nouveau gazo-
que revisava a fundo a diretriz sobre Restam, pois, as energias renová- produção e de consumo graças à so- duc, Lybie et Syrie sur la table” [Encontro Er-
doğan-Putin: novo gasoduto, Líbia e Síria na
o gás de 2009. veis. O entusiasmo com que são sau- briedade energética, à transferência da mesa], Le Figaro (com AFP), Paris, 8 jan. 2020.
“Essa mudança”, explicou a Co- dadas faz às vezes esquecer que elas produção manufatureira e à redução 10  Jean-Michel Bezat, “Gasoduc South Stream:
missão Reguladora da Energia da necessitam de extração – poluidora15 drástica dos fluxos de transporte.  pourquoi la Russie a décidé de jeter l’éponge”
[Gasoduto South Stream: por que a Rússia de-
França, “estende a aplicação dos prin- – de minerais (cobalto, lítio, zinco, cidiu jogar a toalha], Le Monde, 2 dez. 2014.
cípios legislativos essenciais da União níquel, alumínio...) disponíveis ape- *Mathias Reymond  é economista. 11  “Gaz et életricité. Cadre législatif européen”
Europeia ao domínio da energia nas em alguns países (Bolívia, Brasil, [Gás e eletricidade. Quadro legislativo euro-
peu], Commission de Régulation de l’Énergie,
(acesso de terceiros à rede, regras ta- Chile, China, Congo, Moçambi- 1   “ Déclaration conjointe UE-États-Unis à la suite 29 abr. 2020. Disponível em: www.cre.fr.
rifárias, dissociação das estruturas de que...), o que criará uma nova depen- de la visite du président Juncker à la Maison 12  Philippe Sébille-Lopez, “Le gaz naturel en Eu-
propriedade, transparência) a todos dência. O essencial da economia de- Blanche” [Declaração conjunta UE-Estados rope: quels enjeux énergétiques et géopoliti-
Unidos após a visita do presidente Juncker à ques? Première partie” [O gás natural na Euro-
os gasodutos de destino e proveniên- veria então repousar, futuramente, Casa Branca], Comissão Europeia, Bruxelas, pa: quais são os desafios energéticos e
cia de países terceiros até o limite do na eletricidade, o que leva a antever a 25 jul. 2018. geopolíticos? Primeira parte], Diploweb, 25
território da União Europeia.”11 Como multiplicação de parques eólicos, 2   Ver “L’Europe énérgetique entre concurrence out. 2020. Disponível em: www.diploweb.com.
et dépendance” [A Europa energética entre 13  Citado por Philippe Sébille-Lopez, “Le gaz na-
observa o consultor Philippe Sébille- centrais elétricas, linhas de alta-ten- concorrência e dependência], Le Monde Di- turel en Europe”, op. cit.
-Lopez, “esse texto favorece clara- são, transformadores, condensado- plomatique, dez. 2008. 14  Philippe A. Charlez, “Le gaz naturel liquéfié
mente os projetos de importação de res, interruptores e tomadas. Ora, o 3   M athilde Godard, “Le GNL: l’énergie fossile américain pourra-t-il concurrencer à terme les
de demain?” [GNL: a energia fóssil de ama- marchés gaziers russes?” [O gás natural lique-
GNL dos Estados Unidos e outros lu- principal isolante elétrico utilizado nhã?], Forbes, 23 jun. 2020. Disponível em: feito americano poderá, no futuro, concorrer
gares, pois o GNL escapa à confusão hoje, o hexafluoreto de enxofre (SF6), www.forbes.fr. com os mercados de gás russos?], La Revue
burocrática e regulamentar comuni- produz um efeito estufa 22.800 vezes 4   Ver Maxime Robin, “Au Dakota du Nord, les de l’Énergie, n.633, Paris, set.-out. 2016.
vaches perdent leur queue” [Em Dakota do 15  Lorène Lavocat, “Les minerals: le très noir ta-
tária, cujas consequências ainda não mais potente que o gás carbônico. Norte, as vacas perdem o rabo], Le Monde bleau des énergies vertes” [Os minerais: o
conseguimos avaliar plenamente”.12 Sua utilização deverá aumentar 75% Diplomatique, ago. 2013. quadro muito negro das energias verdes], Re-
Mesmo que não consiga vencer de hoje até 2030...16 5   J ean-Pierre Hansen e Jacques Percebois, porterre, 29 out. 2020. Disponível em: ht-
Énergie. Économie et politiques [Energia. tps://reporterre.net.
seus concorrentes russos e noruegue- Se a multiplicação dos recursos re- Economia e políticas], 3. ed., DeBoeck, Pa- 16  Hubert Mary, “Quelles alternatives à l’hexafluo-
ses em termos de volume, o novo for- nováveis e a redução das fontes de ris, 2019. rure de soufre, le plus puissant gaz à effet de
necedor norte-americano se aprovei- energia que emitem mais gases do 6   Áustria, Bulgária, Croácia, Estônia, Hungria, serre utilisé dans l’industrie?” [Quais são as
Letônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, alternativas ao hexafluoreto de enxofre, o mais
tará das novas regras fixadas pela efeito estufa parecem a solução mais Eslováquia, Eslovênia e Romênia. potente gás de efeito estufa utilizado na indús-
Comissão Europeia: para que se con- lógica, a equação ecológica não se re- 7   w ww.3seas.eu. tria?], L’Usine Nouvelle, Antony, 25 jul. 2020.
siga a “cooperação transatlântica”, é

®
preciso “eliminar os obstáculos inú-
teis à concessão de licenças de GNL Geopolítica dos tubos e navios-tanque Iamal

aos Estados Unidos a fim de acelerar União Europeia (UE) em 2019 Vindos dos
Mar da campos
as exportações norte-americanas” e, Produtor de gás fornecedor da UE Noruega de gás
de Iamal
sobretudo, “manter consultas regula- Alianças e disputas NORUEGA
res e atividades de promoção com os 109,1 5,8
País da Iniciativa dos Três Mares
operadores do mercado, de modo que RÚSSIA

ts
País que a Rússia quer contornar

igh
FINLÂNDIA

L
os Estados Unidos se tornem o princi-

rn
País que assinou acordo com a Rússia 20,5

e
rth
para a construção de gasoduto 2,0
pal fornecedor de gás da Europa”.13

No
4,5 Vyborg
Grandes gasodutos que abastecem a UE Mar
Essa ambição, abertamente pro- existentes
do Norte
Ust-Luga
2

SUÉCIA
palada pelos países da Europa Cen-
am

em construção em projeto
1
tre

od
am

Sistema para contornar a Ucrânia DINAMARCA 1,0 LETÔNIA ho


S

tral e apoiada por Bruxelas, poderá, REINO UNIDO


tre

IRLANDA er
rd

1,3 Moscou h
No

ot
S

Br
rd

no entanto, chocar-se contra alguns Capacidade de transporte 2,9 LITUÂNIA


No

em Gm3 por ano ESTADOS UNIDOS 5,3 HOLANDA Greifswald Klaipėda al


obstáculos. Por um lado, talvez Mos- mais de 50 Świnujście
2,2 Iam 170,6
South Hook Grain
36,8 Minsk
17,2 78,8
cou reaja antes que as cartas sejam de 20 a 50 Gate Berlim
BELARUS
de 5 a 20 NIGÉRIA Zeebrugge 20,4
distribuídas. Se o GNL norte-ameri- Dunkerque ALEMANHA POLÔNIA
Varsóvia
Kiev
17,4
cano custa menos que o gás russo Terminal de GNL 13,3 ss
Montoir- BÉLGICA 1 8,3 Progre
gaseificação TRINIDADE de-Bretagne UCRÂNIA
(22% de diferença, para desempenho (importação) E TOBAGO FRANÇA 88,7
2 4,9 Ujhorod
Soyuz 28,2
liquefação SUÍÇA
igual), os sucessivos processos de li- (exportação) 6,0 Mugardos ÁUSTRIA 8,9
Bilbao 3,4 4 3 9,8 ROMÊNIA Mar Cáspio
quefação, transporte e regaseificação Consumo Outros (Peru,
Gijón,
43,4 Rovigo CROÁCIA Crimeia Anapa
anual de gás Angola, Egito) inutilizada por 2,3 10,9 Tuapsé
o tornam, em última análise, menos em Gm3 em 2019 não rentabilidade SÉRVIA White Stre
4,6 Fos-sur-Mer ITÁLIA ish am GEÓRGIA
competitivo. Tendo, assim, margem Turk m Mar Negro
Tes

PORTUGAL ESPANHA BULGÁRIA a


Stre
eam

Importações da UE
la

Barcelona 2,8 AZERBAIJÃO


6,1
maior para fixar suas tarifas, a Ga- a partir de países não membros
Str

5 6 e Erzurum ARMÊNIA
Sines Tap
em Gm3 em 2019 36,1 Ancara Blu
zprom, a fim de reforçar sua posição por navio-tanque (GNL)
Oceano 70,8
GRÉCIA
Atlântico İzmir Tanap
dominante atual, “pode, notadamen- por gasoduto
Cartagena 5,1
TURQUIA 43,2 CATAR
te, ignorar algumas cláusulas dos Fontes: Rede Europeia de Gestores de Redes de 21,4 9,5
contratos e conceder a seus clientes de Transporte de Gás, www.entsog.eu/maps;
Commissão Europeia; www.nord-stream.com; MARROCOS
ARGÉLIA
29,7
TUNÍSIA Mar Mediterrâneo CHIPRE 1-REP. TCHECA
europeus descontos sobre os preços US Department of Energy; Global Energy
EastMed 2-ESLOVÁQUIA
Monitor, "Europe gas tracker";
contratuais indexados pelo preço do 3-HUNGRIA
BP, "Statistical review
4-ESLOVÊNIA
of world energy", 5,4
petróleo”.14 jun. 2020.
0 500 1 000 km
LÍBIA EGITO
5-ALBÂNIA
6-MACEDÔNIA DO NORTE
Por outro lado, a vontade europeia
de diversificar as fontes de importa- Dez maiores consumidores Produtores Divisão de consumo de energia primária Importações mensais1 de gás natural russo
de gás em Gm3, em 2019 da União Europeia, em 2019 pelas grandes rotas de abastecimento
ção de gás confirma o fato de que os União Ucrânia
EUA 846,6 101,0 Europeia Gm3
países-membros continuarão a se União Arábia
Petróleo Gás Carvão
Europeia 469,6 113,6
Saudita 38,3 % 24,6 % 11,2 % 6
alimentar... de gás. Ora, a União Eu- Rússia 444,3 114,4 Noruega 5
Nord Stream 1

ropeia deve reduzir em 20% suas China 307,3 153,5 Austrália 4


emissões de gases do efeito estufa de Irã 223,6 173,1 Canadá 3
Canadá 120,3 177,6 China
hoje até 2030 e alcançar a neutralida- Arábia Energias Nuclear
2
Saudita 113,6 178,1 Catar Belarus
1 Turkish Stream
de de carbono em 2050. Esses objeti- Japão 108,1 244,2 Irã
renováveis 10,6 %
(em operação desde jan. 2020)
11,0 % 0
vos implicam uma virada rumo às Emirados
Árabes Unidos 76,0 679,0 Rússia Janeiro Janeiro Janeiro Janeiro Fevereiro
Hidroeletricidade 4,3 % 2017 2018 2019 2020 2021
energias renováveis, hidráulicas ou Índia 59,7 920,9 EUA
Fonte: dados Entsog, na Comissão Europeia, 1. da União
Fonte: BP, op.cit. Fonte: BP, op. cit. "Quarterly report on european gas markets", 4e trim. 2020. Europeia.
nucleares. Entretanto, após o aciden-
© Cécile Marin
32 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

OFERECER ÀS CRIANÇAS UMA ALIMENTAÇÃO SABOROSA, SAUDÁVEL E ECOLÓGICA

A cozinha coletiva
como lugar de luta
A polêmica provocada pela introdução, em janeiro deste ano, de refeições vegetarianas
nos refeitórios de Lyon pôs a merenda escolar sob os holofotes. Entretanto, as questões
vão muito além da alimentação com carne ou mesmo do rótulo “orgânico”. Livre dos
produtos industrializados, a cozinha coletiva pode se tornar um laboratório do “comer bem”

POR MARC PERRENOUD E PIERRE-YVES ROMMELAERE*

D
esde que entrou em cena nos para reforçar o sabor e gomas e gelati- va Zelândia quanto ao cordeiro) pro-
reality shows, a cozinha ganhou nas para prolongar o prazo de valida- voca um balé incessante de navios
ares de nobreza, a ponto de se de e melhorar o aspecto. Habituadas cargueiros, aviões e caminhões atra-
tornar um fator de distinção e socializadas com esses excessos de vés do mundo. Trata-se de escolher
social. Os renomados cozinheiros, glicose e de lipídios, as crianças pe- entre uma produção industrial que
apresentados como criadores, indiví- dem para repetir. É assim que, em al- necessita de um transporte rodoviá-
duos singulares e inspirados, expres- gumas casas, o sobrepeso e até mes- rio tão longo quanto poluente e uma
sam-se recriando pratos que se tor- mo a obesidade se somam a carências produção local e artesanal.
naram obras de arte. No outro nutricionais (e uso de antioxidantes, Bem longe de laquear os cardápios
extremo do espaço social e simbóli- ácidos graxos multissaturados).1 com verniz ecológico, nutricionistas e
co, a cozinha coletiva escolar parece cozinheiros recorrem a circuitos lo-

®
condenada à mediocridade. Ela re- MANTER VIVO O cais, em contato direto com os usuá-
presenta a cozinha pública, ao con- TECIDO AGRÍCOLA LOCAL rios – os alunos, com quem podem de-
trário da alta cozinha, privada e dife- Confrontados com esse problema de bater – e com os fornecedores que eles
renciada. Refeições baratas, com um saúde, os industriais do setor criam conhecem e escolheram. Num colé-
único cardápio que, em vez de clien- rótulos e assinam listas e contratos gio de Lézignan-Corbières (Aude), por
tes, alimenta usuários que não têm a públicos com parlamentares. O site exemplo, os legumes vêm de uma as-
opção de ir a outro lugar: alunos de Cantines Responsables, por exemplo, sociação de reinserção social que cul-
todas as origens sociais. As crianças propõe um programa de formação e tiva jardins de plantas leguminosas
estão condenadas a comer produtos cursos on-line sobre a “transição ali- na saída da cidade. Ir buscar em sua
ruins e mal preparados? mentar” e tem um link para a revista região produtores confiáveis consti- trate de gigantes, como a Sodexo ou a
Em todos os estabelecimentos es- profissional L’Autre Cuisine. Cada tui uma primeira etapa, mas esse ca- Elior, especialistas na cozinha em-
colares da França, os chefes de cozi- uma de suas páginas evoca a ação de- minho na realidade só tem sentido se presarial às quais as coletividades lo-
nha dos refeitórios têm o direito e o sinteressada de uma associação que for articulado com um trabalho na cais podem escolher delegar o servi-
poder de propor à direção das escolas tem como ambição promover o “ser- cozinha. Quando se utilizam produ- ço público, quer de outras indústrias,
fornecedores locais que escolheram, viço público” e as “dimensões social e tos locais, da estação, se possível or- como a Transgourmet ou a Sysco, que
em vez de confiarem nos produtos sustentável na cozinha coletiva. Mas gânicos, são oferecidas refeições mui- fornecem pratos preparados e conge-
alimentícios da agroindústria. Sem uma pesquisa um pouco mais apro- to mais saudáveis do que as lados para os cozinheiros das cozi-
dúvida, a merenda depende de uma fundada revela que tanto a revista preparadas com produtos industriali- nhas coletivas.
atividade organizada: nutricionistas profissional como o site mencionado zados – por exemplo, usando frangos A Lei Egalim, de outubro de 2018,
participam da elaboração de cardá- têm como mecenas os grupos indus- criados nos aviários e granjas a mi- “para o equilíbrio das relações co-
pios de acordo com os princípios do triais (principalmente Elior e Sodexo) lhares de quilômetros, empanturra- merciais no setor agrícola e alimentí-
equilíbrio alimentar, atuando como que dominam o mercado. Um traba- dos de antibióticos e abatidos com cio e uma alimentação saudável, sus-
árbitros entre os produtos e sabores lho de comunicação e de marketing cinco semanas, ou mesmo produtos tentável e acessível a todos”, é
aprovados pelas crianças e as práti- instala a confusão, tirando partido de rotulados como “orgânicos” (iogurtes resultado de vários anos de negocia-
cas nutricionais virtuosas. equívocos criados por palavras ho- ou geleias), mas também vindos da ção entre os poderes públicos e in-
Asas de frango ou bastonetes de mônimas: falar de “qualidade” e “sus- indústria, muito açucarados e não lo- dustriais do setor. Ela impõe que até
peixe empanados, massas com queijo tentabilidade” para não abordar a cais. Portanto, é exatamente o fato de 2022 (pelo menos foi a data estabele-
ralado, mousse de chocolate: sabe- agricultura orgânica, evocar o “local” transformar no lugar o produto bási- cida antes da crise sanitária) haja um
mos que os alimentos favoritos dos aplicando-o a toda a França mais do co, de cozinhá-lo, que permite con- aumento de até 50% dos produtos
pequenos glutões correspondem com que a incontestáveis circuitos curtos trolar os custos e conservar uma refei- “com a etiqueta de qualidade” desti-
frequência aos consumidos em casa, (“É francês, é local!”), reivindicar ção por menos de 2 euros. nados à cozinha coletiva: apelação de
onde seus pais nem sempre têm tem- uma “cozinha coletiva responsável”... Se no que diz respeito aos produ- origem protegida (AOP) ou controla-
po, energia ou meios de diversificar e A merenda escolar impõe ques- tos e ao abastecimento os usos conti- da (AOC), indicação geográfica prote-
equilibrar os cardápios. Essas refei- tões inextricavelmente sanitárias e nuam difíceis de serem alterados é gida (IGP), label rouge [selo vermelho
ções domésticas se mostram muitas relacionadas com o meio ambiente. porque, com cerca de 4 bilhões de re- que garante a qualidade do produto],
vezes excessivamente gordurosas, Por um lado, a produção intensiva di- feições por ano na França, a cozinha agricultura orgânica (AO) etc. Pode-
muito salgadas ou demasiadamente minui a fertilidade das terras, polui e coletiva representa um mercado gi- ríamos nos vangloriar disso. Mas o
açucaradas, a fim de compensar a fal- limita a biodiversidade. Por outro, a gantesco com engrenagens bem lu- diabo se esconde nos detalhes, e a po-
ta de sabor dos produtos básicos, pro- especialização de alguns países em brificadas. Isso tem uma importân- sição hegemônica dos industriais não
venientes da indústria agroalimentí- uma monocultura de baixo custo cia capital para os setores da indústria está ameaçada. De fato, ao sentirem a
cia. Sua composição revela uma (por exemplo, a Romênia no que diz agroalimentícia e da prestação de direção do vento mudar, os campeões
saturação de conservantes, aditivos respeito ao cogumelo-de-paris, a No- serviços nas coletividades, quer se da agroindústria alimentícia passa-
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 33

© Linoca Souza
Entre outros, na França, o traba- mas palavras para as crianças sobre a
lho de Jean-Marc Mouillac, em Dor- origem dos produtos e como vão pre-
dogne, é exemplar. Na década de pará-los permite que elas se interes-
2010, ele conseguiu convencer a esco- sem e se sensibilizem pelas questões
la em que trabalhava como chefe de sanitárias, ecológicas e econômicas
cozinha a utilizar 100% dos produtos associadas à alimentação. Fazer refe-
orgânicos e locais, mantendo o custo rência ao vínculo com os fornecedo-
da refeição em 1,70 euro. Hoje em dia res locais, à qualidade dos produtos
empregado pelo departamento, ele é que permite a redução da quantidade
instrutor de cozinha de coletividade de carne, ou explicar as razões da in-
e atua em todas as cozinhas coletivas trodução de um dia sem carne é ex-
do território. Bastou a competência por o problema do excesso de consu-
de uma pessoa e um pouco de vonta- mo da alimentação composta por
de política para criar uma função carne no Ocidente. Explicar aos alu-
que, no entanto, parece indispensá- nos por que muitas vezes vão ter me-
vel ao setor. O objetivo não é transfor- nos bananas e com mais frequência
mar os agentes territoriais das cozi- maçãs é abordar a circulação mun-
nhas coletivas em chefes renomados; dial dos produtos alimentícios.
mas, entre os pratos “artísticos” e a Para as equipes das cozinhas para
produção industrial, existe um lugar coletividades, valorizar seu trabalho
para um ofício da cozinha de coleti- muda tudo. Elas não estão mais es-
vidade a serviço dos usuários. condidas em suas respectivas cozi-
Além de suas dimensões sanitária, nhas; podem se vangloriar de uma
ambiental e econômica, a cozinha de profissão cuja dimensão educativa e
coletividade tem uma importância cultural passa a ser evidente; estão
cultural. A comensalidade, o fato de integradas às equipes pedagógicas
comer junto com outras pessoas, é (refeições espanholas, inglesas, ale-
também a constituição de uma cultu- mãs, “romanas” ou “medievais” ela-
ra comum. Sem dúvida, é possível boradas com os professores e as tur-
louvar as virtudes da alimentação mas de alunos). Podem sensibilizar

®
exótica, a abertura que ela daria para todos os estabelecimentos, o máximo
as crianças. Mas, antes de fazer os ali- possível, sobre os bons hábitos do cir-
mentos atravessarem o planeta, é cuito curto e orgânico e lembrar que
possível começar redescobrindo os na cozinha... se cozinha.
pratos tradicionais locais. Rabo e bo- Após alguns anos, atores que até
checha de boi cozidos com legumes, hoje eram inaudíveis enfim estão
uma variedade de tomates tradicio- com a palavra. São cozinheiros e nu-
nais, lentilhas, favas, diversos tipos de tricionistas que começam a criar
couve: em todas as regiões da França blogs para expressar sua insatisfação
ram a desenvolver, há anos, uma série mais para abate. Com agricultores e tem-se acesso a esses produtos locais, com práticas usuais, seu desejo de fa-
de “orgânicos” para seus laticínios, criadores de animais que propõem muitas vezes orgânicos, por preços zer de outra maneira e de desenvolver
para alguns legumes etc. Iogurtes fa- produtos de qualidade e da estação, módicos. E, no entanto, muitas crian- soluções locais. Escolher seus forne-
bricados na Hungria ou legumes pro- em geral é possível entrar em acordo ças jamais os experimentaram e nun- cedores, colocar em prática técnicas
duzidos em serras da Andaluzia per- sobre preços que permitem aos cam- ca nem sequer ouviram falar deles. específicas, valorizar seu trabalho e
correm milhares de quilômetros em poneses ganhar a vida e, ao mesmo integrar sua equipe à comunidade
caminhões para chegar aos pratos e tempo, aos cozinheiros propor cardá- OS COZINHEIROS educativa: os ingredientes de uma
são provenientes de regiões onde o pios acessíveis para as famílias. Tam- ESTÃO COM A PALAVRA cozinha coletiva artesanal, pública e
trabalho é mal remunerado. Mas eles bém nesse caso tudo se relaciona com A espetacularização de uma alta cozi- social estão à mão. 
podem se beneficiar do rótulo “orgâ- o trabalho na cozinha. Em vez de nha que utiliza as mais complexas
nico”. A Lei Egalim não ameaça os abrir pacotes de “seleta de legumes” técnicas (sifão, sous vide para cozi- *Marc Perrenoud  é sociólogo, professor e
atores dominantes do setor, que já congelados, é a própria equipe que la- nhar em baixa temperatura etc.) e os pesquisador da Universidade de Lausanne,
propõem soluções “para uso imedia- va os legumes, os descasca e os corta e mais exóticos ingredientes tem a ver na Suíça; Pierre-Yves Rommelaere é che-
to”. É possível até se perguntar se ela cria os meios de servir para as crian- com o que se poderia chamar de uma fe de cozinha no Colégio Anglade, de Lézig-
não vai servir de pretexto para os po- ças uma refeição preparada no local, gentrificação da alimentação. Nos nan-Corbières, França, e membro do coleti-
deres públicos suprimirem funcioná- com produtos bons, além de contri- tempos atuais, como uma imagem no vo Les Pieds dans le Plat. São coautores da
rios territoriais e abandonarem todo buir para manter vivo o tecido agríco- espelho, é usual recorrer aos organis- obra Une autre cantine est possible. Pour en
o mercado de cozinhas coletivas aos la da localidade. Escolher um animal, mos geneticamente modificados, finir avec dix idées reçues sur la cuisine de
prestadores de serviços industriais em seguida cortar, limpar e temperar, prontos para o uso e baratos – pratos collectivité [Um outro refeitório é possível.
que, nos próximos dois ou três anos, e a própria pessoa cozinhar as carnes prontos e preparados para serem rapi- Para acabar com dez ideias preconcebidas
serão os únicos a poder propor uma permite também reduzir as quantida- damente consumidos jamais foram sobre a cozinha de coletividade], Éditions du
grande quantidade de ofertas “orgâ- des de alimentação composta de car- tão vendidos –, principalmente entre Croquant, Vulaines-sur-Seine, 2021.
nicas” a preço baixo. ne em benefício da qualidade, o que é as crianças e os adolescentes.2 Cozi-
No entanto, ainda assim, cozi- uma necessidade ecológica: quando a nhar na cozinha coletiva coisas sim- 1   L er Benoît Bréville, “Obésité, mal planétaire”
nheiros e nutricionistas de estabele- carne é mais saborosa, é possível usar ples, mas boas, é também mostrar que [Obesidade, um mal planetário], Le Monde
Diplomatique, set. 2012.
cimentos escolares optam, desde ago- uma menor quantidade dela. Boas re- existe uma terceira via entre a sofisti- 2   C f. Thibaut de Saint Pol, “Les évolutions de
ra, por ir buscar em seu departamento feições, mas também com preço bai- cação dos “grandes chefes” e o gloubi- l’alimentation et de sa sociologie au regard
produtores rotulados como orgânicos xo? É possível suprimindo os interme- -boulga3 das centrais industriais. des inégalités sociales” [As evoluções da ali-
mentação e de sua sociologia no que diz res-
ou em processo de mudança. Em to- diários industriais, diminuindo o Para a equipe, existe todo um tra- peito às desigualdades sociais], L’Année So-
das as regiões da França, como em to- custo do transporte e, sobretudo, re- balho a ser feito em matéria de edu- ciologique, v.67, n.1, Paris, 2017.
das as zonas temperadas, é possível duzindo o desperdício: 30% a 40% das cação. Sair da cozinha coletiva no 3   P rato inventado pelo dinossauro Casimir,
personagem de um desenho animado fran-
cultivar uma grande variedade de quantidades servidas nos refeitórios início do serviço, como fazem cada cês. A mistura parece o que chamamos de
frutas e legumes e criar todos os ani- franceses acabam na lixeira. vez mais cozinheiros, e dizer algu- gororoba. (N.T.)
34 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

UMA NOÇÃO ONIPRESENTE... E BASTANTE CÔMODA

Resiliência por toda parte


Até onde ir com as políticas de arrocho e aperto fiscal e como chegar até lá?
Como fazer que elas pareçam justificadas, até benéficas, e garantir sua aceitação social?
O recurso às ciências cognitivas permite armar políticas públicas para esse fim e ajuda
a moldar nosso comportamento; isso é ilustrado pela valorização da “resiliência”

POR EVELYNE PIEILLER*

“A
qui, a resiliência tem sabor “positividade” particular. Sua popu- delo difuso de passagem lucrativa de rotonina, o “hormônio da felicida-
de uma salsicha de pé de larização na França tem origem nos sofrimentos, do resiliente como mo- de”? Que papel desempenha a
porco.” É o que se podia ler, trabalhos do psiquiatra Boris Cyrul- desto herói, que reconheceu e trans- dopamina nas dependências de dro-
menos de uma semana de- nik, que, há algum tempo, foi mem- formou suas fragilidades, é uma ar- gas? Quais são as zonas de reflexão
pois dos atentados de 13 de novem- bro da Comissão Attali sobre os en- ma ideológica e política ideal. Na no cérebro e o que se passa nele
bro de 2015, em um artigo do Le Mon- traves ao crescimento e se tornou “o realidade, ela é colocada hoje e cele- quando elas são ativadas? Essas neu-
de elogiando um restaurante. É psi preferido dos franceses” – seus li- brada como a solução para superar os rociências, que se denominam “cog-
possível supor que a salsicha tinha vros figuram, desde o início dos anos tempos difíceis, o que confirma o nitivas”, procuram assim identificar
muito mais força comunicante de re- 2000, entre os mais vendidos no ramo Instituto Nacional de Altos Estudos o que produz o “racional” e o “irra-
siliência porque o mencionado res- de autoajuda.1 Cyrulnik define a resi- da Segurança e da Justiça, atualmen- cional”, circunscrever a conexão en-
taurante estava situado em um dos liência como a “capacidade de ter êxi- te integrado ao Ministério do Inte- tre o consciente e o inconsciente e,
arrondissements onde haviam ocorri- to, de viver e se desenvolver positiva- rior, quando propôs em março de com base na análise das disfunções,
do os fuzilamentos. Era provocador, mente, de maneira socialmente 2020 “a resiliência como eixo de co- definir o processo psicológico que
mas precursor. Cinco anos depois, a aceitável, apesar do estresse ou de municação de crise”. O contrato assi- separa o normal do patológico.
palavra é usada, se permitirem dizer, uma adversidade que comporte nor- nado em 17 de março de 2020 com a Portanto, elas têm por objeto as-

®
em todos os tipos de ocupação. As malmente o risco grave de um resul- BVA Nudge Unit (a “unidade de em- suntos importantes, pois contribuem
instituições internacionais, o mundo tado negativo”.2 Sejamos positivos! purrãozinho” do grupo BVA), encar- para estabelecer “cientificamente”
das finanças, da administração, da Todo um léxico floresceu em relação regada de dar consultoria para o go- normas de saúde, psíquicas e com-
saúde pública, os economistas, os ur- a essa maravilhosa capacidade: dian- verno em sua gestão da pandemia, portamentais, e podem ser solicita-
banistas, os climatologistas: todos te dos “acidentes da vida”, é possível esclarece seu papel e o quadro em das para corrigir, melhorar ou trans-
recorrem a ela. Os políticos a adoram. “se reconstruir”, “retomar o próprio que se situa a nova “fábrica de con- formar “mecanismos” falhos.5 Uma
Joe Biden evocou em seu discurso de desenvolvimento” e até mesmo “se sentimento”. De fato, “empurrãozi- vez que sabemos quais mensageiros
posse, em 20 de janeiro, a “resiliên- reinventar”. O sofrimento pode tra- nho” é o termo inofensivo que desig- químicos intervêm, por exemplo, nas
cia” da Constituição. Emmanuel Ma- zer benefício, em uma versão psicoló- na técnicas de sugestão indireta com emoções e conhecemos a localização
cron a declina sem medo de se repe- gica da destruição criadora. a função de influenciar, sem pressão, da atenção no cérebro, seria uma lás-
tir. Se, no contexto da pandemia de as motivações e a tomada de decisão, tima não se beneficiar desses avan-
Covid-19, o presidente francês evoca CHOQUES ÍNTIMOS de nos tirar com doçura de nossa ir- ços prodigiosos para auxiliar os indi-
os “cenários de resiliência”, ele tam- E CRISES SOCIAIS racionalidade espontânea, obstáculo víduos a superar suas dificuldades ou
bém sabe se mostrar mais criativo. Veem-se muito rapidamente as van- natural à adoção da “boa prática” – otimizar seu potencial. Para isso,
Assim, para os 50 anos da morte do tagens de levar adiante essa como- no caso..., da resiliência.4 basta uma análise refinada dos pro-
general De Gaulle, em 9 de novembro vente noção. Em primeiro lugar, ela Na França, o BVA Group, empresa cessos, um mapeamento detalhado
de 2020, Macron fez uma saudação a tem o charme de poder ser aplicada de estudos e de consultoria, de acor- das conexões dos neurônios e do re-
seu “espírito de resiliência”. Batizou a de modo ambíguo ao indivíduo e ao do com seu site, oferece especialistas cabeamento dos mecanismos. É para
mobilização do Exército em março de coletivo, como se os choques íntimos “para compreender os indivíduos e isso que vai contribuir a análise dos
2020 de “Operação Resiliência”. No e as crises sociais pudessem ser so- seus comportamentos emergentes, a “vieses cognitivos”.
Fórum Econômico Mundial de Da- brepostos. Além disso, de qualquer fim de antecipar os grandes movi- Nos anos 1970, os psicólogos Da-
vos, em 26 de janeiro, o presidente se maneira, são outras coisas, como a mentos”, mas também “comunicação niel Kahneman (em 2002, ganhou o
declarou “por um capitalismo resi- coragem, a sorte, a solidariedade, a para criar, movimentar e converter prêmio do Banco da Suécia em me-
liente”. Um recente projeto de lei luta, todos os elementos que permi- [sic] graças ao formidável poder das mória de Alfred Nobel, denominado
francês se intitula “Clima e resiliên- tem de fato “se recuperar”, mas que, ideias, da imaginação e da criativida- “Nobel de Economia”) e Amos Tver-
cia”. Os ministros compartilham do indiscutivelmente menos “psi”, não de”. O site de sua filial BVA Nudge sky evidenciaram a irracionalidade
léxico do presidente, e Roselyne Ba- têm esse belo mistério do processo Unit indica com menos lirismo: “Nós de algumas escolhas econômicas.6 O
chelot, da Cultura, evoca com entu- mental que nos salva e recria. Trata- acionamos os ‘fatores de mudança’ que leva à tomada de uma decisão er-
siasmo, num clima de suspense pro- -se de uma operação muito bem-su- que modelam os comportamentos”. rônea é uma redução, geralmente in-
fundo, um “modelo resiliente de cedida de celebração da magia de Sabemos que a percepção e a in- consciente, na maneira de tratar a in-
funcionamento dos locais culturais” nossos recursos, que maquia “a adap- terpretação do mundo se traduzem formação que a faz ser objeto de uma
(Twitter, 23 dez. 2020). tação permanente do sujeito em de- em informações eletroquímicas ao distorção. Esse “viés cognitivo” tem
Visivelmente, ser resiliente é trimento do questionamento das longo de uma rede de nervos e de cé- para ele o charme da rapidez (não se
perfeito. condições de seu sofrimento”, como lulas nervosas (neurônios) que fa- fadiga o cérebro) e da evidência (irra-
Talvez seja mesmo a perfeição. formula Thierry Ribault em um livro zem circular sinais; para resumir, os dia certeza). Atualmente, há um re-
Sem dúvida, isso não tem muito preciso e irascível.3 neurônios “codificam” a informa- pertório de cerca de duzentos vieses
tempo. Por exemplo, se lembrarmos Sua extrema valorização eviden- ção. As neurociências, que descre- cognitivos. Nós nos limitaremos a
bem..., o general De Gaulle consa- temente está de acordo com as ideias vem e examinam com atenção essa poucos exemplos: o “viés de confir-
grou-se mais à resistência do que à desta época, que convidam cada in- transmissão, podem se especializar mação”, quando preferimos o que vai
resiliência. Por outro lado, qualquer divíduo a se considerar um capital a na análise do que está em jogo nos no sentido de nossas crenças; o “viés
que seja a névoa que a rodeia, é claro frutificar. Mas, de modo mais amplo, comportamentos ou nas capacida- de enquadramento”, quando esco-
que ela tem toda uma vibração de a promoção da resiliência como mo- des mentais. Que função exerce a se- lhemos o que a apresentação da pro-
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 35

posta nos incita a escolher; ou ainda jogo não é criar uma motivação, mas acompanhada de meios de coerção nios da leitura], Odile Jacob, 2007. O autor
é presidente do Conselho Científico da
quando escolhemos o que tende a va- de fato fazer as pessoas passarem da tão arcaicos quanto as contravenções Educação Nacional, instituído pelo ministro
lorizar a curto prazo. Não pareceria intenção para a ação. A intenção é e que a opinião pública não está intei- Jean-Michel Blanquer.
realmente necessário nos demorar criada pela pedagogia e pela comuni- ramente convencida do poder de re- 6   L er Laura Raim, “Pire que l’autre, la nouvelle
science économique” [Pior que a outra, a
nesses vieses, que se assemelham cação. A ação é criada pela báscula invenção que se supõe nascer das cri- nova ciência econômica], Le Monde Diplo-
bastante ao peso dos preconceitos, comportamental”.11 Viva a mosca. Em ses e dos estados de emergência...  matique, jul. 2013.
da retórica, do temperamento etc., se outras palavras, o objetivo, para reto- 7   Eléonore Solé, “Comment notre cerveau
nous manipule-t-il?” [Como nosso cérebro
as neurociências não os incorporas- mar o que diz a filósofa Barbara Stie- *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Mon- nos manipula?], Sciences et Avenir, Paris, 21
sem ao seu campo de estudo, com a gler, é uma “modelagem infracons- de Diplomatique. jul. 2019.
perspectiva de agir sobre eles. ciente de nossos comportamentos”.12 8   J érôme Boutang e Michel De Lara, Les Biais
1   C f. o estudo de Nicolas Chevassus-au-Louis, de l’esprit. Comment l’évolution a forgé notre
Segundo elas, esses vieses, devi- “Le grand bazar de Boris Cyrulnik” [O grande psychologie [Os vieses do espírito. Como a
damente balizados em todas as espé- DESAPARECIMENTO bazar de Boris Cyrulnik], Revue du Crieur, n.6, evolução forjou nossa psicologia], Odile Ja-
cies de domínios, da memorização às DO MAU ESPÍRITO Paris, 2017/1. cob, 2019.
2   Boris Cyrulnik, Un merveilleux malheur [Uma 9   C itado em Géraldine Woessner, “Emmanuel
relações sociais, apresentam algu- A Nudge Unit é discreta em suas maravilhosa infelicidade], Odile Jacob, Paris, Macron et le pouvoir du ‘nudge’” [Emmanuel
mas características marcantes. Ao ações, o que se compreende. No en- 1999. Macron e o poder do ‘empurrãozinho’], Le
contrário do erro, que é aleatório, tanto, é claro que construir a resiliên- 3   Thierry Ribault, Contre la résilience. À Fu- Point , Paris, 4 jun. 2020.
kushima et ailleurs [Contra a resiliência. Em 10  Éric Singler, “Pour une ‘nudge unit’ à la fran-
eles seriam sistemáticos, atuariam cia e, portanto, recabear as conexões Fukushima e em outros lugares], L’Échappée, çaise” [Para uma “unidade de empurrãozi-
em todos os indivíduos e seriam ime- para induzir a aceitar o que se supõe Paris, 2021. nho” à francesa], Libération, Paris, 11 maio
moriais: durante a pré-história, sua contribuir para a resiliência geral 4   O termo foi popularizado pelo economista Ri- 2014.
chard Thaler e pelo jurista Cass Sunstein em 11  C itado em Hubert Guillaud, “Où en est le
função era “permitir ao nosso cére- passa evidentemente pela culpabili- Nudge. La méthode douce pour inspirer la nudge (1/3)? Tout est-il ‘nudgable’?” [Onde
bro economizar tempo e energia”.7 zação interiorizada do “desviante” e a bonne décision [Empurrãozinho. O método está o empurrãozinho (1/3)? Tudo é “empur-
Mas, outrora úteis, hoje eles falseiam gratificação interiorizada pela “boa doce para inspirar a boa decisão], Vuibert, rável”?], InternetActu, 27 jun. 2017. Disponí-
Paris, 2010. Richard Thaler recebeu o Prêmio vel em: www.internetactu.net.
“nossas decisões cotidianas”.8 Essas prática”, portadora de um futuro res- Nobel de Economia em 2017. 12  B arbara Stiegler, De la démocratie en pandé-
fragilidades universais produzem plandecente. Emoções que, uma vez 5   E las já estão em prática, entre outras, na mie. Santé, recherche, éducation [Sobre a
um estado emocional e orientam os neurônios enfim codificados cor- reflexão pedagógica. Cf. Stanislas Dehae- democracia na pandemia. Saúde, pesquisa,
ne, Les Neurones de la lecture [Os neurô- educação], Gallimard, Paris, 2021.
nosso pensamento. Ora, o funciona- retamente, modificam virtuosamen-
mento do viés, do mesmo modo que o te os comportamentos e permitem
de qualquer operação mental, pode admitir as obrigações necessárias pa-
ser modulado graças à intervenção ra melhorar o estado pessoal, assim
de outras mensagens: para que a de- como a situação coletiva. Desse mo-

®
cisão seja menos emocional, mais do, as ciências cognitivas “armam”,
pertinente, mudamos as conexões. para retomar um termo estimado por
Aí se encontra o papel dos “empur- Singler, as políticas públicas, tornan-
rãozinhos”. Conhecemos a história da do aceitáveis novas normas sociais
mosca-alvo desenhada no fundo de que parecem então morais, altruís-
mictórios em Amsterdã, a qual, efeti- tas, benéficas para todos.
vamente, permitiu uma grande redu- Evidentemente, há motivo para se
ção dos custos de limpeza. O caso é preocupar. É possível temer a “cienti-
famoso; um pouco menos famosas ficização” de uma empresa política
são as múltiplas “Nudge Units” que se de... modificação das normas. É pos-
estabeleceram para orientar algumas sível ficar horrorizado com a mani-
ações políticas: no Reino Unido, em pulação ideológica, o cinismo do elo-
2010, no governo de David Cameron; gio secreto da adaptação, em que
em 2013, nos Estados Unidos, junto a desapareceriam as emoções ruins e o
Barack Obama... Na França, como re- mau espírito que levam à não sub-
sume Ismaël Emelien, que recrutou a missão. Mas é possível também cons-
filial da BVA quando era conselheiro tatar com certo prazer que a vontade
de Macron, o objetivo não está tão de transformar cada indivíduo em
longe da mosca-alvo: “Fizemos exata- suporte da resiliência teve de ser
mente de modo que a pessoa siga na
direção certa. É completamente in-
dissociável do interesse geral”.9 É
muito gentil. É sempre muito gentil
quando pensam por nós, que pensa-
mos mal. Concretamente, a Nudge
Unit governamental se dispõe a
“construir o bem-estar e a resiliência
a longo prazo”, pois esta última não
seria uma dádiva pessoal, um dom
inexplicável, não: ela é “construída”.
Que não nos enganemos com isso:
não se trata aqui da simples virtuosi-
dade de comunicadores superdota-
dos. Éric Singler, responsável pela
BVA Nudge Unit, salienta: “Informar
e convencer, por meio de elementos
riWi

racionais, um indivíduo que não é ra-


©P

cional não é pertinente para que ele


mude seu comportamento”.10 E ele in-
siste: “A Nudge envolve uma mudan-
ça comportamental, não só uma mu-
dança de imagem. Nela, o que está em
36 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

INTERVENÇÃO

Interseccionalidade como ferramenta


na busca pela justiça social
O livro Interseccionalidade analisa o surgimento, o crescimento e os contornos do conceito que lhe dá nome e mostra
como as estruturas interseccionais abordam temas diversos, como direitos humanos, neoliberalismo e política de
identidade. Em entrevista, Sirma Bilge, uma das autoras, analisa como a interseccionalidade pode apoiar as diversas
lutas por justiça social

POR BIANCA PYL*

© Divulgação
sempre diz que ela não seria capaz de
escrever esse livro sem mim. E eu sin-
to o mesmo. A obra é um ponto de en-
contro, um encontro entre mim e ela.

Em um trecho do primeiro capítulo,


vocês dizem que o foco deve ser o que a
interseccionalidade faz, e não o que
ela é. Por que é tão importante enfati-
zar a prática da interseccionalidade?
O que está dito no livro, por meio

®
da citação de um artigo da autora
Kimberlé Crenshaw, “o que a inter-
seccionalidade faz, e não o que é”,
não pretende desvalorizar a teoria.
Acreditamos que a teoria seja um as-
sunto sério, e não apenas monopólio
dos acadêmicos e da universidade. A
hora da teoria chega por causa dos
movimentos sociais, por causa das
pessoas nas ruas. Teorias emancipa-
tórias como a interseccionalidade
não surgem de repente da academia.
Dito isso, a teoria é importante. Esses
debates sobre o que é interseccionali-
dade têm vida própria. É como se,
com uma boa definição, tudo se re-
Sirma Bilge, professora da Universidade de Montreal, fala sobre seu novo livro escrito em parceria com Patricia Hill Collins solvesse. E quando os acadêmicos
concentram todos os seus esforços e

S
irma Bilge e Patricia Hill Col- zer avançar a justiça social” e destaca Tínhamos muitas diferenças: de ge- debatem qual definição de intersec-
lins trabalharam juntas na pro- a importância dos movimentos so- ração, idioma, religião. E essas dife- cionalidade é a verdadeira, torna-se
dução do livro Interseccionali- ciais, como o das mulheres negras no renças nos ajudaram a trazer diferen- um círculo vicioso e estéril e não ser-
dade, lançado no Brasil em Brasil, para a construção do tes sensibilidades, experiências de ve ao propósito de interseccionalida-
março pela Boitempo. Elas utiliza- conceito. vida e posições epistêmicas. Por ou- de como nós e outras pessoas a defi-
ram o conceito para olhar suas pró- tro lado, concordamos em muitas nimos. A interseccionalidade não é a
prias diferenças durante o processo LE MONDE DIPLOMATIQUE BRA- coisas de base e no âmbito político. E única forma de análise para entender
de escrita do livro. “Nós nos relacio- SIL – O livro Interseccionalidade é re- o mais importante: trabalhamos como o poder opera na sociedade,
namos por meio de nossas diferen- sultado de sua parceria com Patricia nossas diferenças de uma maneira mas uma forma de intervir. É uma in-
ças”, afirma Sirma em entrevista ao Hill Collins. Como foi o processo de muito produtiva. Há um momento tervenção, uma práxis capaz de des-
Le Monde Diplomatique Brasil. O escrever o livro conjuntamente? em nosso livro de ilustração da práxis mantelar relações desiguais de po-
conceito tem ganhado espaço dentro Quais desafios vocês encontraram? da interseccionalidade no qual fala- der, de fazer avançar a justiça social e
e fora da academia e, por isso mesmo, Sirma Bilge – Patricia e eu concorda- mos sobre a relacionalidade e a rela- as múltiplas questões que a atraves-
a professora do departamento de So- mos que não foi fácil, pois não dividi- cionalidade radical como valor e sam, como a justiça ambiental. Por-
ciologia da Universidade de Montreal mos o livro e dissemos: “Este é o seu ideia fundamentais para a intersec- tanto, se concentrarmos nossos es-
alerta sobre a cooptação do termo pe- capítulo. Este é o meu capítulo”. Sim- cionalidade. Então, nós praticamos forços e energias apenas em debater
lo neoliberalismo: “o neoliberalismo plesmente escrevemos juntas, o que isso. Nós nos relacionamos por meio o que esse conceito significa, sim-
organiza coisas como o capitalismo significou um vaivém contínuo. Ob- de nossas diferenças. Ao mesmo tem- plesmente não olharemos para as
ético, perverte o vocabulário da justi- viamente, viemos de espaços muito po, aceitamos que nunca poderemos formas como as pessoas o usam, co-
ça social para alimentar sua hegemo- diferentes. Ela é uma afro-americana compreender totalmente a diferença mo utilizam essa abordagem e para
nia contínua”. Além disso, Sirma res- nos Estados Unidos. Eu sou uma pri- do outro, sempre restará alguma par- fazer o quê. E as pessoas estão usan-
salta a contribuição prática da meira geração de migrantes da Tur- te dessa alteridade. É uma experiên- do essa abordagem de várias manei-
interseccionalidade para “desmante- quia; passamos uma década na Fran- cia muito enriquecedora. Não foi fá- ras. Essas formas nem sempre são
lar relações desiguais de poder e fa- ça e depois migramos para o Canadá. cil, mas sou grata por isso. Patricia progressistas e emancipatórias.
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 37

Qual é o potencial da interseccionali- dos. A ideia de mudar as grandes ins- é que a publicação de nosso livro crie teve acesso a cuidados de saúde? Ago-
dade na colaboração com movimen- tituições neoliberais por dentro é múltiplas oportunidades para que ra, quem está tendo acesso à vacina-
tos e organizações que buscam a jus- uma ilusão para mim, não vejo isso mais pessoas possam ler esses livros ção? Quem pôde se proteger durante
tiça social? como possível. O que vejo é que a cur- fantásticos. Não apenas os de Lélia as quarentenas e lockdowns? –, temos
Eu acho que há certa resistência to prazo pensamos que estamos re- Gonzalez e Sueli Carneiro, mas de to- de pensar que esses acessos foram de-
da esquerda em relação à interseccio- formando a instituição, e a longo, ve- das as novas gerações de feministas siguais. Nem todos puderam se prote-
nalidade quando diz que as injustiças mos que elas apenas rearticulam a afro-brasileiras. ger – trabalhadores da linha de frente
estão relacionadas somente à política hegemonia. E simplesmente somos que sempre estiveram em posições
de classe. O potencial da interseccio- integrados às suas regras como ca- Quais são os principais desafios colo- precarizadas, como imigrantes, pes-
nalidade de criar coalizões entre di- maradas, como se estivéssemos in- cados pela ascensão do populismo de soas pobres ou que vivem em zonas
ferentes movimentos em busca de corporados em suas instituições. extrema direita aos movimentos so- rurais. É uma questão interseccional.
justiça social é real. Mas as alianças Tentamos reformar, mas no fim do ciais e como a interseccionalidade É como a eugenia. A pandemia mata
precisam ser éticas. Quando outros dia os negócios parecem se consoli- ajuda a enfrentar esses desafios pessoas e não se dá importância. É as-
grupos trouxerem suas prioridades, dar como de costume. contemporâneos? sustador. É uma ficção científica, uma
pode ser que eles escutem: “Oh, não, A justiça social não está embutida distopia. Estou pensando no que acon-
esses temas são muito específicos. Quais são as principais contribuições na interseccionalidade. Existem pes- teceu há alguns meses em Montreal.
Agora que vocês se juntaram ao mo- do movimento de mulheres negras no soas que usam a interseccionalidade, As nações indígenas ainda sofrem com
vimento maior, precisamos olhar pa- Brasil para os debates da interseccio- mas não são orientadas para a justiça a colonização no Canadá. Havia um
ra o patriarcado. Não podemos olhar nalidade no mundo? Por exemplo, social. Portanto, discursos políticos homem indígena Innu, que foi deslo-
para o transpatriarcado, assuntos Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. Em reacionários e conservadores, popu- cado. Ele estava vivendo em situação
trans não são exatamente feminis- outras palavras, como as lutas locais listas de extrema direita e mesmo fas- de rua. Havia toque de recolher às 20h
tas”, ou outras coisas excludentes do podem ressoar com o que acontece no cistas podem usar não o termo em si, em Montreal, por causa da Covid, e seu
tipo. Ou podemos ouvir: “Oh, não, cenário global? porque eles não usam a palavra “inter- abrigo foi fechado. Ele estava procu-
aqui estamos lidando com anticapi- Eu li apenas as obras de Lélia Gon- seccionalidade”, mas se apoiar em rando abrigo e entrou em um banhei-
talismo, não podemos abordar a zalez e Sueli Carneiro que foram tra- manobras interseccionais. Por exem- ro químico. Estava –50 °C, ou algo as-
questão da discriminação racial”. En- duzidas para o inglês ou para o fran- plo, quando Trump está articulando sim, e ele morreu em um banheiro de
tão, voltarei ao que disse sobre a for- cês. Tive a sorte de poder lê-las e seu nacionalismo branco, é muito in- plástico no centro de Montreal, em um
ma como Patricia e eu colaboramos fiquei maravilhada com o conceito terseccional. Quando falam sobre dos bairros mais ricos da cidade. Seu
nesse livro. Contei que tentamos pra- de amefricanidade.1 Esse conceito é uma nação cristã branca; quando di- nome era Raphael Andre. Quando
ticar a relacionalidade radical. E na tão interessante e tão interseccional! zem que são invadidos por não bran- olhamos para isso, há colonialismo,

®
coalizão política, da mesma forma, Essas autoras têm um pensamento cos, muçulmanos, LGBTQ: estão se falta de moradia, métodos abusivos de
precisamos praticar a relacionalida- interseccional e uma práxis intersec- apoiando no ódio interseccional. Es- policiamento relacionados à Covid, fe-
de radical se quisermos que a inter- cional, ainda que não usem esse ter- tão definindo interseccionalmente chamento de abrigos. Existem tantas
seccionalidade nos dê oportunidades mo literalmente nessas obras, mas suas identidades e valores, dizendo: falhas! A pandemia de Covid-19 repro-
de criar coalizões éticas. ele está lá. Então, como Patricia e eu “Praticamos valores familiares, e a fa- duz as desigualdades existentes e cria
dissemos no livro – o livro também mília natural deve ser heterossexual, novas, como o toque de recolher. 
Como movimentos e organizações so- traz pessoas do século XIX e as femi- cristã”. Essas retóricas e essa constru-
ciais podem construir uma resposta nistas do fim do século XIX na Índia ção “nosso grupo versus seu grupo que *Bianca Pyl é jornalista, editora web do
interseccional às desigualdades –, precisamos rastrear como as mu- nos ameaça” operam em fronteiras in- Le Monde Diplomatique Brasil e apresen-
aprofundadas pelo neoliberalismo? lheres, e incluo as mulheres trans, de terseccionais, fronteiras simbólicas. tadora do podcast Guilhotina.
O neoliberalismo também usa a in- múltiplos grupos marginalizados, já Não devemos interpretar a oposição
terseccionalidade. Ele organiza coi- tinham um pensamento e uma prá- mordaz dos movimentos populistas Esta entrevista contou com o apoio
sas como o capitalismo ético, perver- xis interseccional sem usar o termo. de extrema direita como interseccio- de Marina Valeriano.
te o vocabulário da justiça social Em nosso livro, fizemos um breve pa- nalidade, não é isso que estou dizen-
para alimentar sua hegemonia contí- norama, um gostinho da interseccio- do. Precisamos ir um pouco além da 1   C
 onceito de Lélia Gonzalez que significa “Um
processo histórico de intensa dinâmica cultu-
nua. Então, houve cooptação desses nalidade no mundo; nele é possível superfície e entender como eles usam ral (resistência, acomodação, reinterpreta-
vocabulários críticos e dos nossos encontrar traços de interseccionali- a interseccionalidade, mas de uma ção, criação de novas formas) referenciada
instrumentos de luta pela hegemo- dade sem usar a palavra. forma totalmente oposta: para prote- em modelos africanos e que remete à constru-
ção de uma identidade étnica. [O valor meto-
nia. Nossas ferramentas são seques- Infelizmente, meu conhecimento ger privilégios interseccionais, não dológico desta categoria] está no fato de res-
tradas e usadas contra nós. Nesse do contexto brasileiro e dos movi- para lutar por justiça social. Parece gatar uma unidade específica, historicamente
contexto, quando o neoliberalismo mentos de mulheres negras brasilei- uma coisa bizarra de dizer, mas há forjada no interior de diferentes sociedades
que se formaram numa determinada parte do
usa a interseccionalidade, alguns ras é muito limitado. O que eu li foi o uma interseccionalidade oculta da ex- mundo”. Lélia Gonzalez, “Nanny”, Revista Hu-
grupos a abandonam, e eu não con- suficiente para me convencer de co- trema direita. Temos de estar alertas manidades, 1988.
cordo com isso. Temos que reinvestir mo é fundamental prestar atenção para isso. Caso contrário, não podere-
e repolitizar essas ideias, denunciar nos atores, movimentos e saberes lo- mos compreender como a usam. Título  Interseccionalidade
a cooptação neoliberal da intersec- cais para exercitar o conhecimento Achamos que a interseccionalidade é Autor  Patricia Hill Collins e Sirma Bilge
cionalidade, mostrar que o neolibe- em profundidade. uma definição positivada, orientada à Tradução  Rane Souza
Orelha  Winnie Bueno
ralismo impõe medidas neoliberais, Meu maior desejo em relação a esse justiça social. Não. É uma ferramenta.
Apoio  Fundação Rosa Luxemburgo
pois a universidade neoliberal está livro é que ele ajude a sobressaltar, Pode ser usada para a justiça social, Páginas  288
falando em inclusão, diversidade intensificar na sua sociedade a luz pode ser usada para múltiplas rela- Preço  R$ 67,00
etc., mas isso nunca se traduz em que se lança sobre publicações, obras ções de poder interligadas. Preço e-book  R$ 51,00
mudanças substanciais. artísticas e o trabalho intelectual de Editora  Boitempo
É superficial, como maquiagem. mulheres afro-brasileiras. Sabe, acho A pandemia de Covid-19 aprofundou
Algumas palavras aqui, umas fotos que as teorias feministas afro-brasi- as desigualdades sociais em todo o
ali, e está feito! Acho que os movi- leiras têm muito a ver com intersec- mundo. Você acha importante que se-
mentos e organizações sociais preci- cionalidade. E não estou dizendo que jam feitas análises interseccionais so-
sam se desfazer das instituições neo- elas têm a aprender com a intersec- bre os efeitos da pandemia, para não
liberais, precisam subverter e apostar cionalidade – somos nós que temos corrermos o risco de elaborar respostas
no nosso poder de colaborar uns com muito a aprender com o trabalho fe- que não estejam de fato alinhadas com
os outros e construir fora dessas ins- minista negro brasileiro, e muito a os desafios colocados pela pandemia?
tituições, porque, se lutarmos dentro trocar. Com o trabalho feminista in- Quando pensamos em Covid e no
dessas instituições, seremos coopta- dígena no Brasil também. Meu desejo que aconteceu – Quem morreu? Quem
38 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2021

MISCELÂNEA

livros internet
NOVAS NARRATIVAS DA WEB
dos “pós-dramáticos”, em nossa subjetividade ou ainda
em determinadas discussões políticas, a recuperação Sites e projetos que merecem seu tempo
do contexto da escrita de Trilogia do reencontro adi-
ciona camadas de complexidade a essa prostração. No OPERAÇÃO VINGANÇA
esclarecedor prefácio à edição brasileira, o professor Esse é o apelido das operações que a polícia
da Udesc Stephan A. Baumgärtel descreve a frustra- do Rio de Janeiro realiza nas favelas após a
TRILOGIA DO ção da jovem burguesia cujos sonhos revolucionários morte de algum policial. O especial feito pelo
REENCONTRO de 1968 se dissolveram e, ao retomar a história re- MediaLab.UFRJ e a Agência Autônoma, em
Botho Strauss, cente do teatro alemão, atenta para o reflexo na cena parceria com Redes da Maré, Fogo Cruza-
Temporal dessa geração: um teatro sem narrativa, com persona- do, Pista News, Witness e Rede LAVITS, foi
gens sem profundidade psicológica, numa peça que inspirado em metodologias da arquitetura

N ão é preciso conhecer o teatro alemão e sua his-


tória para apreender a melancolia de Trilogia do
reencontro, peça de Botho Strauss escrita em 1976 e
pode ser lida como despolitizante. Baumgärtel tam-
bém apresenta a trajetória e o pensamento de Strauss
– autor alemão importante, vencedor do prestigiado
forense e mostra com mapas, vídeos, fotos
e investigação jornalística como helicóp-
teros levam terror aos moradores, não raro
encenada pela primeira vez em 1977, em Hamburgo. prêmio Georg Büchner em seu país, amplamente en- realizando disparos e jogando bombas do
No texto, publicado pela editora Temporal com tradu- cenado por lá –, o que permite um entendimento mais alto, perto de escolas, atingindo inocentes.
ção de Alice do Vale, amigos se encontram no vernis- amplo de Trilogia . O trabalho contou com apoio da Fundação
sage de uma associação artística, menos interessados Vale observar ainda que, ao dedicar quase trinta no- de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
nas obras expostas que em si próprios; tentativas de tas ao final do volume às referências das artes plásti- Janeiro (Faperj) e da Fundação Ford.
conversas, inícios falhados, assuntos tão intrigantes cas citadas na peça, a edição acaba provocando uma https://documental.xyz/intervencao
quanto queda capilar se acumulam em quadros rápi- reflexão sobre outros discursos que podem permear
dos que não evoluem, à semelhança da relação en- o texto de Strauss; se a pintura em questão na expo- A OLHO NU
tre diversos personagens. A aparição silenciosa de sição da associação artística é a realista, com suas Nos Estados Unidos, o Unjustice Watch (Ob-

®
um dos membros do conselho da associação – único possibilidades várias de representação da realidade, servatório da Injustiça, numa tradução livre),
acontecimento da peça – ameaça agitar esse estado que tipo de conversa Strauss está estabelecendo com junto com o canal Buzzfeed, publicou o re-
de limbo, mas a perturbação é temporária. a mimese? sultado de uma pesquisa que mostrava poli-
Se tal fragmentação e estagnação não nos são es- ciais e seus posts no Facebook considerados
tranhas nos dias atuais, seja nos espetáculos chama- [Mariana Delfini] Jornalista e tradutora. racistas, xenófobos ou preconceituosos. A
ideia era que, ao revelar como os policiais se
comportam nas redes, ficasse mais claro que
essas questões não são individuais, mas prá-
tica recorrente em toda a corporação, derru-
bando a “teoria da maçã podre”. Toda a base
de dados está aberta, e você pode buscar
é um dos arquitetos da democracia brasileira, que co- comentários feitos nas redes pelos policiais
meçou a ser construída no final da década de 1970. com filtros como cidade, faixa salarial, se está
Ativista em defesa do meio ambiente e dos direitos das na ativa ou na reserva. Como seria uma pes-
minorias quando essas agendas ainda engatinhavam, quisa dessa com os policiais brasileiros?
ele faz parte da geração que teve a juventude roubada www.plainviewproject.org
A DEMOCRACIA pela ditadura militar.
RESISTE: Liszt foi observador atento do governo de Michel Te- ARTES E EMOÇÕES
O BRASIL DE mer, que destruiu as estruturas de proteção social do O Google fez um experimento: perguntou a
2018 A 2020 Estado brasileiro fundadas na década de 1930. Nem 1.300 pessoas quais emoções eram dispara-
Liszt Vieira, a ditadura militar conseguiu chegar tão longe. Os go- das ao observarem 1.500 pinturas. Com base
Garamond vernos tucanos na década de 1990 tampouco. Temer nos resultados, criaram um atlas das emo-
conseguiu fazer em dois anos o que a direita brasileira ções que foram causadas por elas: mistério,

A cabo de concluir a leitura do livro de Liszt Vieira,


uma coletânea de cinquenta artigos publicados na
Carta Maior entre 2018 e 2020. Saio da última pági-
não faz em quase noventa anos. Depois, a situação só
fez piorar e os desdobramentos da vitória de Bolsona-
ro para a democracia estão aí para o mundo inteiro ver.
desejo, tédio, amor, raiva, confusão e nojo são
algumas das 25 categorias pelas quais se
pode navegar no site interativo. Foi realizado
na com a sensação de que tenho em mãos um texto Na maturidade, Liszt está tendo o desprazer de tes- com a ajuda de cientistas da Universidade da
que pode ser lido em duas perspectivas distintas. A temunhar a derrocada da democracia que viu nascer. Califórnia em Berkeley e pretende ser usado
primeira, mais óbvia, é como crônica de nossa tragédia Mas se engana quem acha que, por isso, seu texto para auxiliar no estudo das emoções huma-
contemporânea. Está tudo registrado com precisão jor- é melancólico e triste. De modo algum. É inspirador, nas. Experimente se você também percebe
nalística: as reformas neoliberais que destruíram o con- analítico, um convite à resistência. Nasci no final da as sensações em cada quadro.
trato social instituído pela Constituição de 1988, a vitó- década de 1980. Sou da geração que herdou a demo- https://artsexperiments.withgoogle.
ria de Jair Bolsonaro nas eleições, os desdobramentos cracia construída pela geração de Liszt. Tomo a prosa com/art-emotions-map/
sociais e políticos da pandemia, a destruição da tradi- do professor como um chamado à responsabilidade.
ção da política externa brasileira. O trabalho de Liszt é Defender a democracia é dever de todos nós, e a com- [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
incontornável para o leitor interessado em conhecer a preensão é o primeiro ato de resistência. Ler esse livro Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
factualidade da crise democrática que começou a se é um gesto político. ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
abater sobre o Brasil em meados da década de 2010. pela ECA-USP e doutorando em Design na
Na outra chave, autor e texto se confundem e o livro [Rodrigo Perez] Professor do Departamento de FAU-USP.
deixa de ser crônica para se tornar testemunho. Liszt História da Universidade Federal da Bahia.
MAIO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa
Ano 14 – Número 166 – Maio 2021
Ontem, foi o editorial do Washington Post. www.diplomatique.org.br
Hoje, é a capa do Le Monde Diplomatique
Brasil. A “performance” do Brasil está
assustando o mundo inteiro! DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Julio Villar, via Facebook 02 Frente de esquerda na França
“Política externa”? Como assim?
Silvio Caccia Bava
Diretores
Por Serge Halimi Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Prêmio para essa capa agora, por favor! Rubens Naves
Leandro Reis, via Instagram
03 Editorial
Perguntas impensáveis
Editor
Luís Brasilino
Infelizmente tenho que aplaudir essa Por Silvio Caccia Bava
Editora-web
capa. É nossa triste realidade mesmo. Bianca Pyl
Adilson Barros, via Instagram 04 Capa
Ultraprocessados, ultraesfomeados Editor de Arte
e o sistema agroalimentar moderno Cesar Habert Paciornik
Quem pensou essa capa entende do Por Elaine De Azevedo Estágio em Jornalismo
riscado que une este mundo e o outro. O triunfo dos supermercados Laura Toyama e Samantha Prado
Caio F, via Instagram no Brasil da fome
Revisão
Por João Peres e Victor Matioli Lara Milani e Maitê Ribeiro
O Diplomatique Brasil, além de ser um Agro, um mau negócio
Gestão Administrativa e Financeira
baita jornal, sempre nos brinda com Por Helena R. Lopes, Jorge O. Romano, Paulo F. Arlete Martins
artes sensacionais em suas capas. Petersen e Thais P. Bittencourt
Assinaturas
Perfil do podcast Em Outras Palavras, via Twitter
11 Exportações ocidentais
A invasão do lixo no Sudeste Asiático
Leila Alves
assinaturas@diplomatique.org.br

Capa e conteúdo potentes! Retratam bastante bem Por Aude Vidal Tradutores desta edição
o tamanho da barbárie nacional! Tempos difíceis! Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,

Mas venceremos essa quadra histórica de horror! 14 As figuras da direita israelense


Pacifistas não entendem a
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant

José Pereira, via Twitter Conselho Editorial


ideologia de Netanyahu Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Por Charles Enderlin Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Cada vez mais me surpreendo com o Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Diplomatique Brasil. Mais uma vez, vocês 16 Uma ideologia vítima de suas contradições
Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,

®
O declínio do sionismo de esquerda José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
acertaram na arte da capa e nos textos.
Por Thomas Vescovi Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Descreveram demais o que estamos passando Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,

18
e quanto Bolsonaro é realmente sádico. Campanha nos Estados Unidos Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
e Vera da Silva Telles.
Nick Faria, via Twitter Por que os sindicatos perderam
a batalha contra a Amazon Assessoria Jurídica
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Ideologia, perspectivas e as Por Maxime Robin, enviado especial
bases do bolsonarismo Escritório Comercial Brasília

A ideologia bolsonarista acabou com toda e 21 Ex-presidente é o cronista de


sua própria falta de audácia
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
qualquer resistência contra a corrupção. Obama, de Dom Quixote a Sancho Pança jh@marketing10.com.br

Alysson Sabóia, via Facebook Por Serge Halimi Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria

Por que não conseguimos aproveitar o 22 Estados Unidos, um vizinho muito invasivo
México abala a tutela norte-americana
com o Instituto Pólis.

valor econômico da biodiversidade? Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque


Por Luis Alberto Reygada São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Por causa dos interesses privados se involucrando Tel.: 55 11 2174-2005
na política e em políticas públicas. 24 Ruanda, o último genocídio do século XX
Na França, o acesso à verdade
diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
Rócio Estrellas, via Instagram
continua bloqueado Assinaturas: Leila Alves
Por François Graner assinaturas@diplomatique.org.br
Por que os funcionários públicos Tel.: 55 11 2174-2015
O enigmático silêncio africano
japoneses se matam de trabalhar Por Boubacar Boris Diop Impressão
Dizer que servidor público vive ao abrigo D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda.
de vicissitudes demonstra a falta total de 28 Desastre presente, passado e futuro
Governo pandêmico:
CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhan-
guera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086,
entendimento das funções públicas e do Estado, Cep: 07753-040 - Cajamar - SP
desconhecendo o papel do servidor público e do hora de apurar responsabilidades
Por Lena Lavinas e Claudio S. Dedecca
trabalho desenvolvido para atender a sociedade.
Pedro Júnior, via Instagram
30 Washington semeia a cizânia na Europa
A batalha do gás natural
Por Mathias Reymond LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

32 Oferecer às crianças uma alimentação Fundador


Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : Hubert BEUVE-MÉRY
saborosa, saudável e ecológica
envie suas críticas e sugestões para A cozinha coletiva como lugar de luta Presidente, Diretor da Publicação
diplomatique@diplomatique.org.br Serge HALIMI
Por Marc Perrenoud e Pierre-Yves Rommelaere
As cartas são publicadas por ordem Redator-Chefe
de recebimento e, se necessário, 34 Uma noção onipresente... e cômoda
Resiliência em toda parte,
Philippe DESCAMPS

resumidas para a publicação. Diretora de Relações e das Edições Internacionais


resiliência em lugar nenhum Anne-Cécile ROBERT
Por Evelyne Pieiller
Os artigos assinados refletem o ponto de Le Monde diplomatique
vista de seus autores. E não, necessariamen- 36 Intervenção
Interseccionalidade como
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
te, a opinião da coordenação do periódico. www.monde-diplomatique.fr
ferramenta na busca pela justiça social
Por Bianca Pyl Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:

38
32 edições impressas e 5 eletrônicas.
Miscelânea ISSN: 1981-7525
Capa: © Cesar Habert Paciornik
®

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