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Cobertura jornalística e asssassinato de mulheres: observando

vítimas e agressores, refigurando a violência

Bárbara Caldeira
Universidade Federal de Minas Gerais

Elton Antunes
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo
O presente trabalho dedica-se a analisar as construções narrativas de vítimas femi-
ninas e seus agressores em casos de assassinatos que se configuram como crimes
de proximidade tomando como referência um conjunto de matérias coletadas no jor-
nal impresso brasileiro Super Notícia. Buscamos explicitar as estratégias discursivas
dos relatos, o que demarcam e focalizam e o modo como nesses casos o jornalismo
observa tais mortes de maneira a caracterizar a violência presente nos episódios, es-
pecialmente as relações de causalidade estabelecidas pelo relato jornalístico. Nosso
exercício analítico observa, também, como se indica a responsabilização de agentes
pelo ocorrido e a maneira como vítimas e agressores são dispostos em cena.
Palavras-chave: jornalismo; narrativa jornalística; violência de gênero; femicídio;
Brasil.

Violência contra a mulher: o contexto brasileiro


“Na subida do morro, me contaram que você bateu na minha nêga
Isso não é direito, bater numa mulher que não é sua
Deixou a nêga quase nua no meio da rua
A nêga quase que virou presunto, eu não gostei daquele assunto.”
(Na Subida do Morro, Moreira da Silva)
Em junho de 2013, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou pesquisa afirmando
que ao menos um terço das mulheres de todo o mundo são ou já foram vítimas de violência
física e sexual. Na ocasião, o órgão, vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) tratou,
em sua divulgação, de frisar que os dados apontavam para um problema de saúde global que
tomava proporções endêmicas, ressaltando que, de acordo com o mesmo levantamento, 38% das
mulheres vítimas de homicídio foram mortas pelos seus parceiros.
É notório, assim, que a violência de gênero é um problema presente no cotidiano das mulhe-
res de vários países, manifestando-se de diversas maneiras, incluindo as agressões simbólicas,
psicológicas, verbais. Este trabalho, no entanto, se debruça sobre um tipo de agressão específico
e um recorte geográfico particular para tentar delinear como essas vítimas e seus agressores são
construídos narrativamente pelo relato jornalístico e como o jornalismo observa tais crimes: o
homicídio de mulheres, denominado feminicídio ou femicídio, no contexto brasileiro.

IX Congresso Sopcom. pp. 341-351. Coimbra, novembro de 2015


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O Brasil, 5º maior país do mundo em extensão territorial e população, apresenta números


alarmantes acerca do fenômeno. De acordo com dados compilados por Waiselfisz (2015) no
Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil, o país ocupa a 5ª posição do ranking
de homicídios femininos no cenário internacional, em estudo feito com 83 nações. Apenas El
Salvador, Colômbia e Guatemala (países latino-americanos) e a Federação Russa ultrapassam os
4,8 homicídios por 100 mil mulheres apresentados pelo Brasil, o que equivale a 48 vezes mais
feminicídios do que os observados no Reino Unido, por exemplo.
Outra pesquisa, efetivada pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc, em 2010, mostra que 5
mulheres são espancadas a cada 2 minutos no Brasil. A estimativa não diz de mortes, mas ajuda
a constituir o cenário no qual elas se dão: o da violência sistemática. É como se, ao final de
todo o dia, o país tivesse o saldo de 3.600 mulheres feridas por homens com quem, de alguma
maneira, convivem. A complexidade e multiplicidade das possibilidades de agressões e como
elas se encadeiam nos parecem, assim, decisivas para a compreensão da violência de gênero e
do assassinato de mulheres. Nas reflexões de Russel e Caputti, retomadas por Pasinato (2011):
Femicídio está no ponto mais extremo do contínuo de terror anti-feminino que in-
clui uma vasta gama de abusos verbais e físicos, tais como estupro, tortura, escra-
vização sexual (particularmente a prostituição), abuso sexual infantil incestuoso e
extra-familiar, espancamento físico e emocional, assédio sexual (ao telefone, na rua,
no escritório e na sala de aula), mutilação genital (cliterodectomia, excisão, infibu-
lações), operações ginecológicas desnecessárias, heterossexualidade forçada, esteri-
lização forçada, maternidade forçada (ao criminalizar a contracepção e o aborto),
psicocirurgia, privação de comida para mulheres em algumas culturas, cirurgias cos-
méticas e outras mutilações em nome do embelezamento. Onde quer que estas formas
de terrorismo resultem em mortes, elas se tornam femicídios. (Pasinato apud Russel
& Caputti, 2011, p. 224)
Também o discurso jurídico reconhece a dimensão sistemática da violência contra a mulher.
A Lei nº 13.104, decretada em 9 de março de 2015 no Brasil, altera o art. 121 do Decreto-Lei nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Como feminicídio, no documento, entende-se
o homicídio “praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, sendo con-
siderados para a classificação se o crime envolve violência doméstica e familiar e “menosprezo
ou discriminação à condição de mulher”. 1
Os dados, até então, convergem para a percepção de que a violência de gênero no Brasil
mostra-se uma chaga aberta que implica desafios comunicacionais e nos compele a um primeiro
eixo reflexivo: se mulheres são agredidas em grandes proporções todos os dias, como o jorna-
lismo lida com a questão? É percebida como uma violência específica de gênero? Mais do que
isso, a morte de mulheres está inserida em um quadro de agressões mais amplo, que engloba vi-
olências diversas, psicológicas, físicas, sexuais, como reconhecem o discurso jurídico brasileiro
e as pesquisas acadêmicas desenvolvidas sobre o assunto? O relato jornalístico dá conta dessa
complexidade constituidora do fenômeno?
1. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm
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Outro estudo, encabeçado pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc, mostrou que o par-
ceiro é o responsável por mais 80% dos casos de violência reportados pelas mulheres. Na mesma
direção, a pesquisa DataSenado sobre violência doméstica e familiar, publicada em 2015, mostra
que uma em cada cinco mulheres brasileiras já foi espancada pelo marido, companheiro, namo-
rado ou ex. Tais dados confirmam a predominância da autoria dessas agressões e assassinatos
por homens que mantêm ou mantiveram relacionamento sexual e afetivo com suas vítimas, uma
dinâmica de proximidade. O trecho do samba — expressão musical que identifica o Brasil inter-
nacionalmente — que introduz este texto, de autoria do músico Moreira da Silva, já dá pistas de
como a violência contra a mulher é naturalizada culturalmente no país: o homem que tem voz
na canção se zanga porque outro homem bateu em sua mulher, mas considera que ele próprio
tem direito de agredi-la em uma relação de posse. A frase “isso não é direito, bater numa mu-
lher que não é sua” circula nas rodas de samba sem que a violência em si, o ato violento, seja
questionado.
Os crimes de proximidade carregam consigo um elemento problemático para o jornalismo:
as relações de confiança estabelecidas entre vítimas e agressores e, muitas vezes, uma gama de
sentimentos entre ambos que complexificam aquela violência referida. É possível notar que “os
veículos noticiosos brasileiros ainda têm dificuldades em tratar a violência contra as mulheres
como fenômeno complexo e multidimensional” (Vivarta, 2011, p. 8), especialmente quando tais
ocorrências envolvem relações de intimidade entre as partes.
Para Antunes (2015), que retoma as reflexões de Rennó (2011), “fundamentalmente confiar
é dar crédito de que o outro agirá conforme se espera que ele aja. Crença, neste caso, é a
estimativa de probabilidade que outros não agirão de forma a prejudicar a pessoa que confia
ou outro envolvido na relação” (2015, p. 400). A partir disso, é possível indagar sobre quais
as implicações dessas especificidades no relato jornalístico, em nosso segundo grande eixo de
reflexão. Como essa relação de confiabilidade e intimidade aparece na construção narrativa dos
agressores e vítimas? Como esses elementos são postos em cena? O jornalismo compreende as
relações de proximidade e confiança a partir de um emaranhado de afetos ou as apresenta como
que constituídas apenas pela violência?
Como terceira reflexão, recorremos à pesquisa Ipea/SIPS acerca da Tolerância social à vio-
lência contra as mulheres, divulgada em 2014, que mostra que 43% dos entrevistados acreditam
que “mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”. Tomamos, aqui, as
narrativas jornalísticas como compostas por “textos diversos que, em si mesmos, são pequenas
materializações das falas sociais” (Leal, 2006, p.24), percepção apoiada na dinâmica do Círculo
Hermenêutico proposto por Ricoeur (1994), no qual é possível perceber que a tessitura narra-
tiva, a instância da configuração (Mimese 2), só se dá a partir de um mundo prefigurado (Mimese
I), que abarca um conjunto de dimensões estruturais e éticas de um mundo de referência — e
é também por meio da configuração que essa narrativa será reintegrada pelo gesto do leitor a
um mundo de referência e às conversações sociais, em um processo de intervenção e cocriação
(Mimese 3). No desenvolvimento das discussões de Leal:
Articulados na superfície narrativa, esses textos podem dar a (re)conhecer um dis-
curso socialmente abrangente, que, por sua vez, integra uma forma discursiva maior.
Na relação textos/narrativa/discurso podem ser vistas, então, as condições para inser-
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ção e circulação dos falares sociais, das ideologias e da realidade da vida cotidiana.
(Leal, 2006, p. 24)
Pensando na narrativa jornalística e nas falas sociais, assim, como articuladas em um pro-
cesso de alimentação mútua, é possível notar, no relato jornalístico, traços de culpabilização da
mulher na violência por ela sofrida como parece apontar a pesquisa que afirma que a mulher
agredida pelo parceiro que continua com ele gosta da violência? Se trata-se de um imaginá-
rio compartilhado, não estaria o próprio jornalismo inserido em alguma medida na violência
perpetrada contra a mulher?
Esses são os três principais questionamentos que nos guiam para as reflexões que faremos
a seguir. No exercício analítico que aqui desenvolvemos, buscamos, a partir de uma seleção de
reportagens que tratam do fenômeno, explicitar as estratégias discursivas, o que demarcam e
focalizam e o modo como o jornalismo narra tais crimes de maneira a caracterizar a violência
presente nesses episódios, especialmente as relações de causalidade estabelecidas pelo relato
jornalístico, além de observar como se indica a responsabilização de agentes pelo ocorrido e a
maneira como vítimas e agressores aparecem figurados.
Para isso, recorremos ao banco de dados da pesquisa ampliada “Narrativas de um problema
cotidiano: a violência de gênero e o testemunho jornalístico” – cuja coleta de material ocor-
reu nos anos de 2013 e 2014, ancorada na metodologia do “mês falso”, em que as mídias são
acompanhadas por quatro semanas distintas, ao longo de quatro ou cinco meses; e que reúne
reportagens de mídias diversas –, e elegemos seis matérias veiculadas no jornal brasileiro Su-
per Notícia que necessariamente abordaram a morte de mulheres, dando preferência para as que
traziam relações de causalidade já estabelecidas no título ou subtítulo.
O Super Notícia, periódico impresso de caráter popular e disposto em formato tablóide, é o
jornal da categoria com maior circulação de todo o país, batendo a marca de 318.067 exemplares
circulando por dia em 2014, considerando impresso e versão digital, e oscilando entre as três
primeiras posições no ranking geral dos mais vendidos há alguns anos, disputando regularmente
com os jornais Folha de São Paulo (SP) e O Globo (RJ), tidos como veículos de referência 2 .

O gesto jornalístico de querer saber: desentranhando perguntas


A partir da coleta do material, foram desenvolvidos quadros de mapeamento das seis maté-
rias elencadas no intuito de perceber pontos de contato ou de fuga entre elas. Um exercício que
nos pareceu proveitoso consistiu em desentranhar perguntas compreendidas como gesto jorna-
lístico de querer saber dessas narrativas, observando como os relatos jornalísticos das matérias
selecionadas organizam determinada experiência no mundo. Dessa forma, conseguimos traçar,
mesmo que de forma incipiente, certas recorrências operadas pelo jornalismo quando se depara
com assassinato de mulheres e com relações de proximidade e confiabilidade.
2. Dados disponíveis no site da Associação Nacional de Jornais (ANJ) – www.anj.org.br . Em 2013, a Folha de
São Paulo, obteve a marca de 294.811 exemplares ao dia, o que lhe garantiu 2ª posição na lista, liderada pelo Super
Notícia (302.472), mas em 2014 alcançou o número de 351.745 exemplares, ao dia, variação de 19,31% em relação
ao ano interior, passando o Super Notícia como líder.
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Percorrendo de certa forma o caminho inverso da construção da notícia, refletindo sobre o


modo como o jornalismo busca produzir referência estabelecendo uma origem factual, é possí-
vel caracterizar o jogo de hierarquização e de mostrar e esconder presente em toda e qualquer
narrativa, percebendo quais informações foram eleitas como de maior destaque entre o novelo
de elementos que circundam e atravessam o acontecimento e como o jornalismo as articula. Para
Manna (2014),
Quando dizemos que o jornalismo informa algo, chamamos atenção para o caráter
criador necessariamente implicado no ato de informar. Se compreendermos que in-
formar significa dar forma a algo, a informação seria o produto dessa operação: uma
figura de visibilidade. Quando dizemos que a informação instaura uma visualidade
estamos, é claro, nos remetendo a uma noção imagética ampla, possibilitada inclu-
sive por textos verbais ou sonoros. Essa figura, aglutinação de significações a serem
compartilhadas, não é espelho da realidade, mas um construto, uma organização de
relações forjadas pela ação jornalística e que passam a existir na e por causa da infor-
mação. (Manna, 2014, p. 69)
Assim, ao chamarmos atenção para a “dimensão performativa da informação jornalística”,
frisamos que a construção narrativa não é senão um conjunto de ações que “apresentam um
mundo”, em vez de “representar o mundo” (2014, p. 69). Admitimos, então, a narrativa como
composta por fragmentos, obrigatoriamente lacunar, tecida por elementos diversos, nesse caso
específico, pelo gesto jornalístico. Perceber, assim, quais perguntas podem ser extraídas de
determinadas narrativas é acessar, mesmo que de maneira fragmentária e sob a forma de rastros,
a pauta que deu origem àquele construto, ou seja, direcionamentos por vezes mascarados quando
os fios que dão origem à narrativa já aparecem costurados como uma malha.
Nesse exercício ao qual nos propusemos, chegamos a uma lista de seis “perguntas desentra-
nhadas” comuns às seis matérias selecionadas e caminhamos para algumas inferências a partir
delas:

1) Por que o homem matou essa mulher?


Há, aqui, destaque para a existência de uma motivação, de uma justificativa minimamente
plausível para que aquela mulher tenha morrido. Na suposição de justificativa, o motivo ou “a
motivação” ganha mais relevo do que o absurdo em si da morte.

2) A vítima DEU motivos ao agressor para ser morta?


Seja para negar que a vítima deu motivos para ser morta ou para negar que ela provocou o
agressor, o próprio gesto jornalístico de fazer essa indagação é problemático porque julga que
existe um motivo dado pela mulher pra implicá-la em sua própria morte. Se a primeira pergunta
atribui uma razão ao homem, a segunda atribui uma culpa à mulher. A razão e a culpa, aqui, são
duas instâncias complementares, mas distintas.
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3) Como se deu essa morte? Quais os detalhes?


Percebemos, nas matérias analisadas, um esforço de presentificação da cena do crime por
meio de descrições do ambiente e, especialmente, da mulher encontrada morta. Nesse momento,
muito marcadamente, as narrativas estabelecem relações de causalidade muitas vezes complica-
das ao tentar delinear a sequência de ações que culminou no assassinato. É necessário ressaltar
que o encadeamento diz mais “um homem matou” do que “uma mulher morreu”. Em outras
palavras, a construção narrativa da cena aponta não para o evento “uma mulher morreu”, e sim
para “uma mulher foi morta”. Ao conferir a dimensão de ação ao agressor e não à vítima, a
narrativa jornalística traz a figura masculina em protagonismo e caminha para o apagamento da
mulher.

4) Qual era o estado emocional do agressor no momento da morte?


No conjunto de narrativas estudadas, notamos fortemente a tendência da inserção de ele-
mentos, especialmente adjetivos, que buscam caracterizar o estado emocional do agressor no
momento do crime e que, quase em sua totalidade, operam na construção de uma cena em que
aquele homem estava “fora de si”, “fora de seu juízo perfeito” quando cometeu o ato. Assim,
ao fazer essa pergunta, ao performar esse gesto, podemos dizer que o jornalismo relativiza a
violência e instaura a capacidade de agência na instância do agressor. Mais uma vez, a figura
do homem parece importar mais do que a figura da mulher nessa processualidade da construção
narrativa.

5) A mulher sabia do histórico de violência do homem com quem convivia?


Tal gesto também soa como complicado por desconsiderar a dimensão da violência siste-
mática e relacionamentos abusivos sobre a mulher e seu processo de constituição como sujeito.
É quase como perguntar, nos meandros narrativos, se era possível ela prever que morreria. No
entanto, certa incoerência salta aos olhos e merece atenção: apesar de indagar por um histórico,
a narrativa constrói a violência como um gesto episódico. De acordo com Vivarta (2011), “a
principal característica da cobertura sobre violência contra as mulheres é a individualização do
problema: 73,78% das notícias analisadas trazem esse enfoque” (Vivarta, 2011, p. 8).

6) O homem que assassinou essa mulher mostrou sinais de arrependimento?


Mais uma vez, seja na negativa ou na afirmativa, esse gesto indica uma possibilidade de
atenuar a violência cometida pelo homem caso ele tenha se arrependido e reforçar o outro ponto
mencionado, de que ele não estava em seu juízo perfeito quando cometeu o crime. Perguntar
pelo arrependimento do agressor é um outro modo de apagamento da figura da mulher e da
violência de gênero e, ainda, envolve admitir a possibilidade de redenção da figura masculina
que cometeu o assassinato.
Diante de tais perguntas, é razoável presumir que o jornalismo não apenas captura os aconte-
cimentos violentos em um mundo empírico e os narra: está inserido no ciclo da violência contra
a mulher e, em suas nuances, pode cometer outras agressões ao cometer “agressões narrativas”.
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Assim, nos parece interessante apreender o jornalismo como não deslocado, e sim implicado,
nos fenômenos de violência. Para Pedemonte (2010), “as notícias sobre episódios violentos
não só transmitem informações sobre a violência mas, como qualquer notícia, constituem tam-
bém novos acontecimentos, desta vez simbólicos, que se somam aos eventos que representam.”
(Pedemonte, 2010, p.83, tradução nossa). Nas reflexões de Antunes (2012):
“Midiatizado e em outras ordens do simbólico, o jornalismo não apenas observa e re-
gistra o acontecer da violência, o testemunha, na perspectiva ampla e complexa, o que
implica romper com a condição básica de observação e observador não implicados
nos acontecimentos violentos.” (Antunes, 2012, pp. 286-287)
Assim, antes de empreendermos a análise da construção narrativa de vítimas femininas e
seus assassinos, ponderamos sobre o que o jornalismo quer de fato saber dessas mortes. Para
Leal (2015), a morte, “longe de ser um acontecimento excepcional, é algo comum e frequente:
trata-se da única certeza da vida humana e pessoas morrem todos os dias, de diferentes manei-
ras” (Leal, 2015, s.p.). Não é difícil perceber que o feminicídio, de tão recorrente, já é quase que
previsto nas rotinas jornalísticas, sendo, ao mesmo tempo, ocorrências individuais que se entre-
tecem a outros eventos similares e formam uma teia de mortes inseridas na violência de gênero.
Mas esse movimento não quer dizer, no entanto, que a violência de gênero é de fato reconhecida,
destacada ou problematizada. Se “é possível narrar o morrer, é possível reconstituir a vida de
quem morre, mas a morte é, nela mesma, um acontecimento desconhecido e inenarrável” (Leal,
2015, s.p.), o que sobra para narrar senão a vida e, nesses casos, a violência sistemática em vida
na qual a morte se insere? Mas essa violência de fato aparece em sua complexidade?

Cena, ação: as construções narrativas de vítimas e agressores


A partir do exercício de desentranhar as perguntas das reportagens selecionadas, perceber
como as mulheres vitimadas e seus agressores foram construídos narrativamente tornou-se tarefa
mais palatável. Ao fazer certas perguntas e conexões, estabelecer relações de causalidade e supor
consequências, o jornalismo entrega as lentes pelas quais enxerga tais crimes e, na esteira, como
observa as figuras que agem naquela cena e que serão articuladas pela narrativa jornalística.
Nosso intuito não é, de maneira alguma, criar uma tipologia ampla para vítimas e assassinos
envolvidos na violência de gênero. Tampouco desconsideramos a série de tensionamentos e
disputas de sentidos que o engendrar da narrativa, sempre heterogênea, porosa e complexa,
abarca. Assumimos, aqui, a observação desenvolvida a partir da análise de seis matérias de um
recorte temporal, geográfico e editorial específicos a partir de recorrências por nós identificadas
no material. No conjunto de narrativas elencadas, assim, é possível notar que as construções são
marcadas por dinâmicas polarizadas tanto em relação à figura das vítimas quanto dos agressores,
e falaremos delas em dois momentos distintos.
Notamos que há uma dicotomia considerável quanto à construção narrativa das vítimas que,
a partir de nossa análise, podem ser inseridas em dois grandes grupos: as “boas vítimas”, aque-
las apontadas no relato jornalístico como não merecedoras da morte que sofreram, e as “más
vítimas”, aquelas cujas ações, encadeadas narrativamente, culminaram em sua própria morte.
Nos dois casos, porém, pode-se dizer de marcação que tenta regular o comportamento feminino,
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seja no apontamento do que faz com que a morte de uma mulher seja, de certa forma, justifi-
cada, seja para dizer do não merecimento. Em outras palavras: para pronunciar que uma vítima
não merecia morrer, automaticamente o jornalismo expõe que há um tipo que deveria, em uma
lógica contrastiva.
Em algumas matérias, o conjunto de termos acionados para caracterizar a vítima e suas ações
tendem quase que em sua totalidade para a apresentação ou da “boa vítima” ou da “má vítima”.
Um exemplo do primeiro grupo pode ser conferido na matéria “Surta e mata a mãe a pisadas”,
do SuperNotícia do dia 31 de agosto de 2013, que narra o assassinato de uma senhora cometido
pelo seu filho, que supostamente teve um surto psíquico em razão de problemas psiquiátricos já
conhecidos. A mulher foi morta com pisadas na cabeça e 25 facadas, o que é evidenciado pela
narrativa. Há na matéria um relato de uma amiga da vítima que diz sobre a mulher assassinada:
“Ela trabalhava muito e era séria, mal cumprimentava as pessoas na rua. A Gislaine se separou
do marido e criava o filho muito bem”.
Ao incorporar em sua tessitura esses elementos, a narrativa acaba por engendrar um perfil
de vítima que não merecia morrer e, por consequência, dizer do perfil da que merece. Em suas
nuances, o relato jornalístico aponta que, caso a vítima não fosse uma mulher trabalhadora, séria
(e sim extrovertida), não fosse uma mulher que não interage com os vizinhos, o choque em
relação a sua morte seria relativizado. Ainda, o sucesso como “mulher” é medido a partir do
sucesso como “mãe”, como se os dois lugares, “papéis sociais”, fossem equivalentes.
Em contrapartida, a matéria “Morta porque não quis transar”, da edição de 26 de janeiro de
2014, narra o assassinato de uma mulher cometido pelo seu ex-marido. Ela foi morta com golpes
de faca, marreta e máquina de costura após ter se negado a fazer sexo com o ex-companheiro (ou
resistir a uma tentativa de estupro, vendo de outro lugar ideológico diferente do encontrado na
reportagem). Na narrativa, vários pontos do relato confluem para a construção da mulher assas-
sinada, Rozinete, como uma “má vítima”: ela estaria se relacionando sexualmente com outros
homens mesmo com o processo de divórcio não concluído – ou seja, a narrativa aponta que ela
estava cometendo, oficialmente, adultério – e não cumpriu a medida protetiva estabelecida pela
Lei Maria da Penha, que pune crimes de violência doméstica no Brasil, deixando que o ex fosse
até sua casa para ver os filhos. Além disso, ela é apontada como consciente do quadro violento
do ex-companheiro, que já havia agredido também a filha do casal. Com esses três elementos
acionados, a vítima acaba sendo implicada em sua própria morte. Nessa lógica, primeiro por-
que “fez por onde ser morta” a partir do momento em que o relato lança dúvidas quanto a sua
conduta moral e sexual. Segundo, porque descumpriu a ordem jurídica “por livre e espontânea
vontade”. Terceiro, porque sabia que poderia morrer a qualquer momento, pois tinha ciência do
quanto o homem com quem convivia era violento, e “mesmo assim” se encontrava com ele em
certas ocasiões.
Entre as implicações dessa visada simplista e algo inquisidora para a figura da vítima, po-
demos destacar a culpabilização da mulher pela própria violência sofrida e, mais ainda, os es-
tabelecimentos e reforços de uma regulação do que as mulheres podem ou não podem fazer,
dividindo-as em dois grandes grupos que carregam os rótulos: “com valor” e “sem valor al-
gum”.
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Mais ainda, há um contrassenso a ser observado. Se a mulher, como vimos na listagem de


perguntas desentranhadas das narrativas, é constantemente apagada no relato, é na sua caracteri-
zação que ela finalmente surge em cena, certo? Não. Paradoxalmente, é nessa qualificação que
a figura da mulher mais aparece, mas que também mais é invisível, uma vez que o juízo moral
que o jornalismo faz acerca da vítima parece esconder ainda mais a violência de gênero. Ou
seja: ver a mulher, perceber que ela está em cena, não significa de fato apreender a violência de
gênero.
Na outra ponta, há a construção narrativa da figura do agressor, que também, no conjunto
de matérias analisado, opera em dois grandes blocos antagônicos: o dos “assassinos previstos”
e o dos “assassinos não previstos”. Mais uma vez, notamos que há um esforço narrativo que
ressalta, em muitos momentos, que o agressor estava fora de si quando cometeu o crime, o que
ressalta uma ideia de passionalidade contida nessa agressão que carece de problematizações. O
componente emocional, na qualificação da figura do homem, quase o redime nas duas pontas:
se sempre foi um “homem bom” e cometeu o crime, o ato violento é uma mácula em sua traje-
tória, incongruente com o que sempre aparentou ser. Se ele era um homem já conhecido como
agressivo, a culpa é de seu “temperamento ruim”.
O “assassino previsto” é articulado pelos fios narrativos como um homem com notável his-
tórico de violência — constantemente ressaltado. É o caso, por exemplo, do agressor da já
mencionada matéria “Morta porque não quis transar”, na qual há o reforço da previsibilidade do
assassinato por meio de elementos como a fala do soldado responsável pela prisão do homem
que marca que o assassino já havia sido preso por agressão pela Lei Maria da Penha, já havia
agredido a filha e era conhecido como alguém violento.
Já a caracterização do agressor como um “assassino não previsto” instaura um grau de excep-
cionalidade naquele assassinato, visto que o homem, no esforço do relato jornalístico, aparece
como aquele que não tinha histórico de violência. É o caso do agressor da matéria “Mata mulher
e diz que foi o diabo”, publicada em 27 de agosto de 2013, que matou sua mulher com golpes
de enxada na frente da filha e de sobrinhos da vítima. A Polícia Militar, por meio da fala de
um soldado, afirma que não havia nenhum histórico de briga entre os dois e isso surpreendeu
mais ainda a todos. A “surpresa”, por sua vez, faz com que aquela violência seja vista como epi-
sódica, particular, individual: uma exceção. A divisão dos agressores em dois grandes grupos,
para a qual caminha a narrativa jornalística das matérias analisadas, corrobora, assim, para a na-
turalização da agressão perpetrada e não problematização da dimensão sistemática que constitui
a violência de gênero.

Considerações finais
Após a análise das matérias selecionadas, especialmente considerando as perguntas desen-
tranhadas do gesto jornalístico e a tipologia polarizada na qual se encontram vítimas e agressores
(antagônica entre os dois grupos e internamente, entre as duas “categorias” de vítimas e entre
as duas “categorias” de agressores), consideramos que assassinos e vítimas surgem em lugares
congelados e, assim, a violência aparece como externa à relação dos dois. Ao apresentar os dois
elementos do evento violento como lugares dados e consolidados, prévios à violência, estanques
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e imutáveis independente da relação que se estabelece, o jornalismo deixa de considerar que


aquela relação abrange outros feixes e nuances, como a dimensão do afeto e da confiança.
Reflexões produtivas acerca da violência de gênero apareceriam, talvez, se o relato jornalís-
tico fosse capaz de compreender vítima e assassino fora de lugares cristalizados para compreen-
dê-los em relação e, assim, em ação, em performance. Afirmar sem problematizar o lugar de
vítima da mulher pode ser compreendido, inclusive, como uma forma de destituir novamente a
mulher de protagonismo, ação e empoderamento. Não trata-se, obviamente, de dizer que essa
mulher não é de fato vítima porque ela é. Mas, ao construir narrativamente a figura feminina
apenas marcada pela passividade e não-resposta à violência que sofre – o que não deixa de ser
um julgamento moral do jornalismo – a dimensão do “pôr em relação” se esvazia. O gesto jor-
nalístico pergunta em algum momento, por exemplo, se aquela mulher tinha condições materiais
de deixar a relação?
Pensar na proximidade e na confiança nos faz ver um conjunto de elementos que diz de
uma organização que vai além de sociabilidades constituídas por “apenas violência”. Se ela
tem muitas facetas e mostra-se complexa, se as relações de afeto não são facilmente definidas,
mesmo que o jornalismo insista constantemente que a “passionalidade” é a força motriz desses
crimes, acaba por reduzir a dimensão de sentimentos entrecruzados da relação instituída entre
aqueles sujeitos.

Referências
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Cobertura jornalística e asssassinato de mulheres: observando vítimas e agressores, refigurando a
violência 351

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