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Bárbara Caldeira
Universidade Federal de Minas Gerais
Elton Antunes
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
O presente trabalho dedica-se a analisar as construções narrativas de vítimas femi-
ninas e seus agressores em casos de assassinatos que se configuram como crimes
de proximidade tomando como referência um conjunto de matérias coletadas no jor-
nal impresso brasileiro Super Notícia. Buscamos explicitar as estratégias discursivas
dos relatos, o que demarcam e focalizam e o modo como nesses casos o jornalismo
observa tais mortes de maneira a caracterizar a violência presente nos episódios, es-
pecialmente as relações de causalidade estabelecidas pelo relato jornalístico. Nosso
exercício analítico observa, também, como se indica a responsabilização de agentes
pelo ocorrido e a maneira como vítimas e agressores são dispostos em cena.
Palavras-chave: jornalismo; narrativa jornalística; violência de gênero; femicídio;
Brasil.
Outro estudo, encabeçado pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc, mostrou que o par-
ceiro é o responsável por mais 80% dos casos de violência reportados pelas mulheres. Na mesma
direção, a pesquisa DataSenado sobre violência doméstica e familiar, publicada em 2015, mostra
que uma em cada cinco mulheres brasileiras já foi espancada pelo marido, companheiro, namo-
rado ou ex. Tais dados confirmam a predominância da autoria dessas agressões e assassinatos
por homens que mantêm ou mantiveram relacionamento sexual e afetivo com suas vítimas, uma
dinâmica de proximidade. O trecho do samba — expressão musical que identifica o Brasil inter-
nacionalmente — que introduz este texto, de autoria do músico Moreira da Silva, já dá pistas de
como a violência contra a mulher é naturalizada culturalmente no país: o homem que tem voz
na canção se zanga porque outro homem bateu em sua mulher, mas considera que ele próprio
tem direito de agredi-la em uma relação de posse. A frase “isso não é direito, bater numa mu-
lher que não é sua” circula nas rodas de samba sem que a violência em si, o ato violento, seja
questionado.
Os crimes de proximidade carregam consigo um elemento problemático para o jornalismo:
as relações de confiança estabelecidas entre vítimas e agressores e, muitas vezes, uma gama de
sentimentos entre ambos que complexificam aquela violência referida. É possível notar que “os
veículos noticiosos brasileiros ainda têm dificuldades em tratar a violência contra as mulheres
como fenômeno complexo e multidimensional” (Vivarta, 2011, p. 8), especialmente quando tais
ocorrências envolvem relações de intimidade entre as partes.
Para Antunes (2015), que retoma as reflexões de Rennó (2011), “fundamentalmente confiar
é dar crédito de que o outro agirá conforme se espera que ele aja. Crença, neste caso, é a
estimativa de probabilidade que outros não agirão de forma a prejudicar a pessoa que confia
ou outro envolvido na relação” (2015, p. 400). A partir disso, é possível indagar sobre quais
as implicações dessas especificidades no relato jornalístico, em nosso segundo grande eixo de
reflexão. Como essa relação de confiabilidade e intimidade aparece na construção narrativa dos
agressores e vítimas? Como esses elementos são postos em cena? O jornalismo compreende as
relações de proximidade e confiança a partir de um emaranhado de afetos ou as apresenta como
que constituídas apenas pela violência?
Como terceira reflexão, recorremos à pesquisa Ipea/SIPS acerca da Tolerância social à vio-
lência contra as mulheres, divulgada em 2014, que mostra que 43% dos entrevistados acreditam
que “mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”. Tomamos, aqui, as
narrativas jornalísticas como compostas por “textos diversos que, em si mesmos, são pequenas
materializações das falas sociais” (Leal, 2006, p.24), percepção apoiada na dinâmica do Círculo
Hermenêutico proposto por Ricoeur (1994), no qual é possível perceber que a tessitura narra-
tiva, a instância da configuração (Mimese 2), só se dá a partir de um mundo prefigurado (Mimese
I), que abarca um conjunto de dimensões estruturais e éticas de um mundo de referência — e
é também por meio da configuração que essa narrativa será reintegrada pelo gesto do leitor a
um mundo de referência e às conversações sociais, em um processo de intervenção e cocriação
(Mimese 3). No desenvolvimento das discussões de Leal:
Articulados na superfície narrativa, esses textos podem dar a (re)conhecer um dis-
curso socialmente abrangente, que, por sua vez, integra uma forma discursiva maior.
Na relação textos/narrativa/discurso podem ser vistas, então, as condições para inser-
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ção e circulação dos falares sociais, das ideologias e da realidade da vida cotidiana.
(Leal, 2006, p. 24)
Pensando na narrativa jornalística e nas falas sociais, assim, como articuladas em um pro-
cesso de alimentação mútua, é possível notar, no relato jornalístico, traços de culpabilização da
mulher na violência por ela sofrida como parece apontar a pesquisa que afirma que a mulher
agredida pelo parceiro que continua com ele gosta da violência? Se trata-se de um imaginá-
rio compartilhado, não estaria o próprio jornalismo inserido em alguma medida na violência
perpetrada contra a mulher?
Esses são os três principais questionamentos que nos guiam para as reflexões que faremos
a seguir. No exercício analítico que aqui desenvolvemos, buscamos, a partir de uma seleção de
reportagens que tratam do fenômeno, explicitar as estratégias discursivas, o que demarcam e
focalizam e o modo como o jornalismo narra tais crimes de maneira a caracterizar a violência
presente nesses episódios, especialmente as relações de causalidade estabelecidas pelo relato
jornalístico, além de observar como se indica a responsabilização de agentes pelo ocorrido e a
maneira como vítimas e agressores aparecem figurados.
Para isso, recorremos ao banco de dados da pesquisa ampliada “Narrativas de um problema
cotidiano: a violência de gênero e o testemunho jornalístico” – cuja coleta de material ocor-
reu nos anos de 2013 e 2014, ancorada na metodologia do “mês falso”, em que as mídias são
acompanhadas por quatro semanas distintas, ao longo de quatro ou cinco meses; e que reúne
reportagens de mídias diversas –, e elegemos seis matérias veiculadas no jornal brasileiro Su-
per Notícia que necessariamente abordaram a morte de mulheres, dando preferência para as que
traziam relações de causalidade já estabelecidas no título ou subtítulo.
O Super Notícia, periódico impresso de caráter popular e disposto em formato tablóide, é o
jornal da categoria com maior circulação de todo o país, batendo a marca de 318.067 exemplares
circulando por dia em 2014, considerando impresso e versão digital, e oscilando entre as três
primeiras posições no ranking geral dos mais vendidos há alguns anos, disputando regularmente
com os jornais Folha de São Paulo (SP) e O Globo (RJ), tidos como veículos de referência 2 .
Assim, nos parece interessante apreender o jornalismo como não deslocado, e sim implicado,
nos fenômenos de violência. Para Pedemonte (2010), “as notícias sobre episódios violentos
não só transmitem informações sobre a violência mas, como qualquer notícia, constituem tam-
bém novos acontecimentos, desta vez simbólicos, que se somam aos eventos que representam.”
(Pedemonte, 2010, p.83, tradução nossa). Nas reflexões de Antunes (2012):
“Midiatizado e em outras ordens do simbólico, o jornalismo não apenas observa e re-
gistra o acontecer da violência, o testemunha, na perspectiva ampla e complexa, o que
implica romper com a condição básica de observação e observador não implicados
nos acontecimentos violentos.” (Antunes, 2012, pp. 286-287)
Assim, antes de empreendermos a análise da construção narrativa de vítimas femininas e
seus assassinos, ponderamos sobre o que o jornalismo quer de fato saber dessas mortes. Para
Leal (2015), a morte, “longe de ser um acontecimento excepcional, é algo comum e frequente:
trata-se da única certeza da vida humana e pessoas morrem todos os dias, de diferentes manei-
ras” (Leal, 2015, s.p.). Não é difícil perceber que o feminicídio, de tão recorrente, já é quase que
previsto nas rotinas jornalísticas, sendo, ao mesmo tempo, ocorrências individuais que se entre-
tecem a outros eventos similares e formam uma teia de mortes inseridas na violência de gênero.
Mas esse movimento não quer dizer, no entanto, que a violência de gênero é de fato reconhecida,
destacada ou problematizada. Se “é possível narrar o morrer, é possível reconstituir a vida de
quem morre, mas a morte é, nela mesma, um acontecimento desconhecido e inenarrável” (Leal,
2015, s.p.), o que sobra para narrar senão a vida e, nesses casos, a violência sistemática em vida
na qual a morte se insere? Mas essa violência de fato aparece em sua complexidade?
seja no apontamento do que faz com que a morte de uma mulher seja, de certa forma, justifi-
cada, seja para dizer do não merecimento. Em outras palavras: para pronunciar que uma vítima
não merecia morrer, automaticamente o jornalismo expõe que há um tipo que deveria, em uma
lógica contrastiva.
Em algumas matérias, o conjunto de termos acionados para caracterizar a vítima e suas ações
tendem quase que em sua totalidade para a apresentação ou da “boa vítima” ou da “má vítima”.
Um exemplo do primeiro grupo pode ser conferido na matéria “Surta e mata a mãe a pisadas”,
do SuperNotícia do dia 31 de agosto de 2013, que narra o assassinato de uma senhora cometido
pelo seu filho, que supostamente teve um surto psíquico em razão de problemas psiquiátricos já
conhecidos. A mulher foi morta com pisadas na cabeça e 25 facadas, o que é evidenciado pela
narrativa. Há na matéria um relato de uma amiga da vítima que diz sobre a mulher assassinada:
“Ela trabalhava muito e era séria, mal cumprimentava as pessoas na rua. A Gislaine se separou
do marido e criava o filho muito bem”.
Ao incorporar em sua tessitura esses elementos, a narrativa acaba por engendrar um perfil
de vítima que não merecia morrer e, por consequência, dizer do perfil da que merece. Em suas
nuances, o relato jornalístico aponta que, caso a vítima não fosse uma mulher trabalhadora, séria
(e sim extrovertida), não fosse uma mulher que não interage com os vizinhos, o choque em
relação a sua morte seria relativizado. Ainda, o sucesso como “mulher” é medido a partir do
sucesso como “mãe”, como se os dois lugares, “papéis sociais”, fossem equivalentes.
Em contrapartida, a matéria “Morta porque não quis transar”, da edição de 26 de janeiro de
2014, narra o assassinato de uma mulher cometido pelo seu ex-marido. Ela foi morta com golpes
de faca, marreta e máquina de costura após ter se negado a fazer sexo com o ex-companheiro (ou
resistir a uma tentativa de estupro, vendo de outro lugar ideológico diferente do encontrado na
reportagem). Na narrativa, vários pontos do relato confluem para a construção da mulher assas-
sinada, Rozinete, como uma “má vítima”: ela estaria se relacionando sexualmente com outros
homens mesmo com o processo de divórcio não concluído – ou seja, a narrativa aponta que ela
estava cometendo, oficialmente, adultério – e não cumpriu a medida protetiva estabelecida pela
Lei Maria da Penha, que pune crimes de violência doméstica no Brasil, deixando que o ex fosse
até sua casa para ver os filhos. Além disso, ela é apontada como consciente do quadro violento
do ex-companheiro, que já havia agredido também a filha do casal. Com esses três elementos
acionados, a vítima acaba sendo implicada em sua própria morte. Nessa lógica, primeiro por-
que “fez por onde ser morta” a partir do momento em que o relato lança dúvidas quanto a sua
conduta moral e sexual. Segundo, porque descumpriu a ordem jurídica “por livre e espontânea
vontade”. Terceiro, porque sabia que poderia morrer a qualquer momento, pois tinha ciência do
quanto o homem com quem convivia era violento, e “mesmo assim” se encontrava com ele em
certas ocasiões.
Entre as implicações dessa visada simplista e algo inquisidora para a figura da vítima, po-
demos destacar a culpabilização da mulher pela própria violência sofrida e, mais ainda, os es-
tabelecimentos e reforços de uma regulação do que as mulheres podem ou não podem fazer,
dividindo-as em dois grandes grupos que carregam os rótulos: “com valor” e “sem valor al-
gum”.
Cobertura jornalística e asssassinato de mulheres: observando vítimas e agressores, refigurando a
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Considerações finais
Após a análise das matérias selecionadas, especialmente considerando as perguntas desen-
tranhadas do gesto jornalístico e a tipologia polarizada na qual se encontram vítimas e agressores
(antagônica entre os dois grupos e internamente, entre as duas “categorias” de vítimas e entre
as duas “categorias” de agressores), consideramos que assassinos e vítimas surgem em lugares
congelados e, assim, a violência aparece como externa à relação dos dois. Ao apresentar os dois
elementos do evento violento como lugares dados e consolidados, prévios à violência, estanques
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Referências
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Cobertura jornalística e asssassinato de mulheres: observando vítimas e agressores, refigurando a
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