Inicialmente observa-se que o texto irá elucidar duas argumentações
acerca da separação de poderes: A primeira é a recomendação de um desenho constitucional que se misture e se sobreponha às competências institucionais, de modo a criar vetos e freios recíprocos, para que nenhuma instituição concentre poder excessivo. O segundo, como implicação, é reconhecer que, para que nenhuma instituição detenha poder excessivo, a autoridade para decidir determinadas questões precisa ficar invariavelmente fragmentada entre diferentes atores. Todavia, é preciso aceitar a possibilidade de que as regras constitucionais sobre separação de poderes, competências e procedimentos, se corretamente interpretadas, possam impedir que alguns atores usem da discricionaridade podendo assim valorar as oportunidades e conveniências das interpretações da constituição e, portanto, utilizá-la a seu favor para as melhores respostas. O autor utiliza da discricionaridade do Supremo Tribunal Federal e os três poderes para justificar o impeachment da presidente Dilma. Nos pronunciamentos públicos dos ministros, ou em seus votos nos julgamentos relativos ao processo, não ganhou qualquer espaço relevante a ideia de que, no fundo, os ministros do Supremo deveriam responder a duas perguntas, diante de cada controvérsia – uma relativa à autoridade para resolver a questão, outra relativa à resposta constitucional substantiva. Diante de uma pergunta sobre o procedimento do impeachment, por exemplo, a quem caberia a interpretação da constituição diante destes processos? A quais poderes? Aos ministros? A quem caberia a palavra final? Existem espaços de interpretação razoável nos quais diferentes instituições podem discordar, mas dentro dos quais uma não pode questionar a interpretação feita pela outra? São perguntas mais institucionais que substantivas, mas que espreitam a tarefa de interpretar e aplicar a Constituição. O tema da separação de poderes tende a só ganhar destaque em controvérsias que envolvam, de forma explícita, a violação à cláusula pétrea da separação de poderes do art. 2º da Constituição. O Supremo não reservou qualquer espaço para a Câmara interpretar e aplicar as suas próprias regras, de acordo com o regimento interno, com a legislação e com a Constituição. A partir de princípios constitucionais vagos, às vezes até implícitos, o Supremo deu uma resposta bastante específica sobre como o procedimento do impeachment deveria prosseguir quanto àqueles pontos contestados. Seguindo-se esse tipo de raciocínio, não sobra espaço para que o tribunal se pergunte se estas são, afinal, questões abrangidas por sua autoridade institucional. O problema envolvia uma questão de fundo de separação de poderes: quem tem autoridade para interpretar o regimento interno da Câmara, quando a Constituição não dispuser sobre o tema, e diante de um dispositivo legal que parece ter um significado claro? Qualquer que seja a posição adotada sobre essa pergunta, parece difícil negar que ela era relevante, e que deveria ter sido tematizada, mas não foi. Para o autor o Supremo simplesmente ignorou a Constituição e foi discricionário focando apenas em como seria a eleição da comissão especial. Para o autor o Supremo vem abandonando essa concepção de separação de poderes típica dos EUA, a qual o Brasil usaria como modelo. No lugar dela, o tribunal enfoca um modus operandi que é tipicamente alemão do pós-guerra, segundo o qual responder à pergunta “o que a Constituição diz” é condição necessária e suficiente para justificar a intervenção judicial sobre qualquer tema. Onde há uma resposta constitucional, está pavimentado, naturalmente, o caminho para a atuação do Supremo. O tribunal pode ser ou não deferente, mas essa deferência sempre ocorre por dentro – a competência do Supremo para responder qualquer pergunta à luz da Constituição não é tematizada, nem justificada; ela é simplesmente pressuposta.
A pergunta dos EUA: quem a Constituição
empodera?
Infere-se do texto que Os Estados Unidos são o berço do
constitucionalismo moderno. No entanto, o pilar fundamental da Constituição americana não é a declaração de direitos fundamentais ou o controle judicial de constitucionalidade das leis. Seu pilar fundamental é uma concepção de separação de poderes original, extremamente influente e que regula o funcionamento da democracia americana até a atualidade. Os direitos fundamentais e o controle de constitucionalidade existem e se justificam em meio a essa estrutura, sendo produto dessa escolha e funcionando para dar efetividade a ela. É essa concepção de separação de poderes que faz com que a pergunta fundamental do debate constitucional americano não seja “o que a Constituição diz sobre algo?”, mas, sim, “a quem a Constituição dá autoridade para resolver a questão?”. Ou seja, quem a Constituição empodera? O modelo americano da separação dos poderes constitui-se na ideia de que cada poder deve dispor de meios de defesa, resistência e invasões dos outros poderes, organizando-se e dividindo-se de forma que cada um seja um ponto de restrição ao outro. É este o desenho da tripartição dos poderes americano. Nesse sentido, se a Suprema Corte possui o poder de interpretar a Constituição e de, ao fazer isso, controlar a constitucionalidade das leis promulgadas pelos demais poderes, antes de qualquer coisa, a Suprema Corte deve interpretar – e respeitar – as cláusulas constitucionais que reservam aos demais poderes o poder-dever de interpretar a Constituição em suas esferas de autonomia. Desta forma, por exemplo, o poder de veto do presidente por considerar determinada posição legislativa inconstitucional, longe de ser uma função dependente e potencialmente controlável pela Suprema Corte, representa o seu poder de interpretar a Constituição de maneira autônoma e independente dentro do exercício de suas funções, sendo controlável, sim, porém não pelo Judiciário, mas apenas por uma eventual supermaioria no Congresso. Entretanto, nada ilustra melhor a diferença entre a visão constitucionalista defendida atualmente pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro do que a decisão monocrática do Ministro Celso de Mello na ADPF nº 45 em que, sem qualquer justificativa mais elaborada, passou a discutir o mérito da ação, que questionava a constitucionalidade de um veto presidencial. É esse tipo de posição, representada exemplarmente por essa decisão monocrática, que parece, hoje, dominar o tribunal quando analisamos algumas das recentes decisões por ele tomadas em meio ao processo de impeachment. Segundo essa concepção, não haveria nenhuma zona de autonomia para os demais poderes efetuarem a sua visão sobre o significado da Constituição. Pelo contrário, uma vez que todo o ordenamento jurídico se submete, em última instância, à Constituição e, uma vez que ao STF cabe a função de interpretá-la, ao STF cabe a palavra final sobre a correção de qualquer decisão tomada pelos demais poderes. Não, portanto, esferas de autonomia, mas apenas decisões provisórias tomadas pelos outros poderes à sombra do controle do STF. Esse é um modelo possível de desenho constitucional. No entanto, não está claro que seja efetivamente adotado pelo direito constitucional brasileiro. De fato, tal modelo não é consequência necessária da adoção de uma Constituição que preveja a possibilidade de controle judicial de constitucionalidade, o que se comprova pelo exemplo americano, que, adequadamente compreendido, diverge dessa concepção, tanto na teoria política que o embasa, quanto no desenho que a materializa e na prática institucional que a efetiva.
A pergunta alemã: o que a Constituição diz?
De acordo com o autor o sistema alemão de controle de
constitucionalidade nasce de uma exigência feita pelas forças de ocupação, no pós-guerra, quando juristas sem envolvimento com o nazismo haviam sido convocados para elaborar uma Constituição provisória para a Alemanha. Tinham liberdade para desenhar essa nova Constituição, mas dentro de alguns parâmetros institucionais mínimos, e a existência de controle de constitucionalidade era um deles. O Tribunal Constitucional resultante é marcadamente diferente da Suprema Corte dos EUA – assim como a Lei Fundamental é diferente da Constituição dos EUA em termos de aspirações e concepções de atuação estatal. O compromisso básico desse sistema é o de que o Estado, em qualquer de suas manifestações institucionais, seja por ação ou omissão, precisa respeitar integralmente as orientações da Lei Fundamental. Esse compromisso, e o tipo de raciocínio que ele gera, fica evidente já no famoso caso Lüth, decidido em 1957, em que o tribunal afirmou a tese da Constituição como uma “ordem objetiva de valores”, com implicações para a aplicação e interpretação de todo o resto do ordenamento. No caso, o tribunal reformou uma decisão envolvendo um litígio típico de direito privado (um boicote causou prejuízo econômico a um cineasta com ligações com o antigo regime nazista), utilizando como parâmetro a “dignidade da pessoa humana”. O tribunal observou que “direitos constitucionais devem, portanto, ser levados em consideração em decisões que a princípio se baseariam essencialmente no direito civil ou em outras áreas do direito”, desenvolvendo, assim, a ideia de “efeito indireto” dos direitos fundamentais e ampliando sua própria jurisdição sobre qualquer decisão judicial de qualquer juiz sobre qualquer tema de direito alemão. E, no caso específico, entendeu que a liberdade de expressão não poderia ser restringida pelo legislador nem pelo juiz, considerando que o boicote de Lüth não era imoral. Esse cenário de supremacia do Tribunal Constitucional, e de uma decorrente insensibilidade institucional, no entanto, não foi imediatamente produzido a partir de Lüth. Foi uma longa construção institucional, sobretudo a partir dos anos 1970, em que o tribunal consolidou essa posição de um expert em dizer o que a Constituição significa. Para Argulhes o Tribunal Constitucional alemão procura garantir a chamada “margem de conformação” das instituições políticas na criação de regras que atendam ao que a Lei Fundamental exige. Esse espaço, porém, é encontrado de forma interna aos parâmetros substantivos que a Constituição coloca.
Separação de poderes e autoridade
Para o autor a argumentação da separação de poderes gira em torno de
duas vertentes quanto a como tribunais se comportam no exercício do controle de constitucionalidade de atos de outros poderes conforme eles levem a sério ou não a ideia de que a Constituição, ao estabelecer diferentes competências, cria espaços para que outros poderes que não o Judiciário sejam os intérpretes finais quanto à melhor interpretação da Constituição. O autor infere que o que se discute é a ideia de que, independentemente do que a Constituição diga substantivamente sobre determinada questão, diante do fato de que as competências também são estabelecidas pela Constituição, deixar de se perguntar “quem tem autoridade para decidir” é mais do que uma postura “ativista”, é desrespeito às regras constitucionais. Para ele, levar a sério a ideia de que a Constituição é um documento político significaria também levar a sério que constituintes, corretamente escolhidos ou não, também fizeram escolhas sobre como dividir competências entre os poderes. De tal forma, se é possível que eles tenham, de fato, atribuído ao STF o poder de errar por último, também é possível que, em certos casos, essa prerrogativa tenha sido atribuída a um outro poder ou instituição. Este é o ponto central da relação entre autoridade e separação de poderes para o autor. Se a fonte de autoridade do tribunal é a Constituição, guardá-la significa também guardar o modelo de separação de poderes adotado pelo Poder Constituinte, mesmo que isso signifique reconhecer a sua incompetência para rever um ato (que se considere) inconstitucional, como por exemplo, o processo de impeachment anteriormente mencionado. Portanto, o autor afirma que o dilema entre os poderes e a constituição é real. Respeita-la pode exigir, em alguns casos, que o STF respeite decisões inconstitucionais dos outros poderes, e que cidadãos e outros atores políticos respeitem esse tipo de comportamento por parte do STF. Para ele devem ser feitas as seguintes perguntas: quem se respeita quando se respeita decisões do STF? Respeita-se a autoridade do tribunal ou respeita-se a autoridade da Constituição? Considerar que ambas são a mesma coisa pode ser, na realidade, negar a segunda, e o pensamento jurídico brasileiro, talvez intoxicado com questões de interpretação constitucional, corre o risco de tampar completamente essa distinção.