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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1): 77-86, 2004 EM NOME DA LEI E DA ORDEM: A PROPÓSITO DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA

EM NOME DA LEI E DA ORDEM


a propósito da política de segurança pública

CÉSAR BARREIRA

Resumo: Os dilemas conjugados às estratégias e práticas utilizadas pelos órgãos de segurança para reduzir a
criminalidade e melhorar a ordem pública ocupam lugar central nas reflexões deste artigo, tomando como
referência empírica a política de segurança pública no Estado do Ceará (1987-2002).
Palavras-chave: segurança pública; ordem e lei; insegurança e criminalidade.

Abstract: This article deals primarily with the dilemmas stemming from the strategies and practices used by
public safety authorities to reduce crime and improve public order. Public safety policy in the State of Ceara
(1987-2002) serves as a point of reference.
Key words: public safety; law and order; insecurity and crime.

A
redemocratização do país, iniciada em 1985, avaliadas e mensuradas, no imaginário da população, pela
embora permitindo uma consolidação e renova- capacidade de manter a ordem e a segurança pública.
ção das instituições, repôs novos dilemas refe- Este artigo tem como propósito analisar essas questões,
rentes à implantação da lei e da ordem. Ao longo do tem- tomando como referência empírica a política de seguran-
po que sucede o processo de redemocratização, as crises ça pública no Estado do Ceará, implementada nas duas
de abuso de autoridade policial, o aumento da inseguran- últimas décadas. Como recorte histórico, destacam-se os
ça e do medo nas grandes metrópoles, a violação dos di- governos de Tasso Jereissati (1987-1990), Ciro Gomes
reitos humanos e o desrespeito à cidadania atestam os li- (1991-1994) e as duas gestões consecutivas de Tasso
mites da política de segurança pública do país, cujo cenário Jereissati (1995-2002), cujas administrações, embora não
é agravado por crises internas nos órgãos responsáveis. tenham tido uma política de segurança uniforme, notabi-
Estas crises se concretizam nas denúncias de envolvimento lizaram-se por introduzir mudanças na forma de conceber
dos policiais em corrupção e práticas ilegais de implanta- e gerir as práticas policiais. Ocorreram, nesse contexto,
ção da lei e da ordem. Se é verdade que os dilemas en- diversas alterações na estrutura administrativa da área de
frentados na implantação da lei e da ordem ultrapassam o segurança acompanhadas pelas substituições de seus co-
campo de uma política de segurança pública, é fato recor- mandos, visando melhorar a credibilidade dos aparelhos
rente que a população continua a exigir mais ordem e se- policiais e a capacidade destes em oferecer maior segu-
gurança, não obstante a desconfiança que depositam nos rança para a população, não obstante o aumento da vio-
órgãos competentes para o exercício dessa finalidade. lência no cotidiano do Estado do Ceará, que deixa trans-
Os problemas ligados à área de segurança pública são parecer fissuras e fragilidades deste setor.
politizados à medida que a legitimidade dos governos é O estudo das transformações internas e externas da po-
predominantemente determinada por sua capacidade de lítica de segurança pública ocupa uma dimensão essencial
manter a ordem e uma possível “paz pública”. Em outras neste trabalho. As quatro gestões governamentais serão
palavras, a “presença” ou a “ausência” do governo são analisadas de forma unificada, sem apontar diferenciações

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internas. A abordagem aqui proposta busca o alcance de aparelhos repressivos. Corrobora também com este fato a
grandes linhas que informam as estratégias da política de formação do policial com lacunas profundas no campo dos
segurança pública referendadas em uma prática discursiva.1 direitos humanos e no respeito à cidadania. O uso da tor-
Os dilemas conjugados às estratégias e práticas utili- tura nas batidas policiais e nos interrogatórios aparece
zadas pelos órgãos de segurança para reduzir a criminali- como marca de continuidade de práticas habitualmente
dade e melhorar a ordem pública ocupam lugar central nas empregadas. A tortura, que no regime autoritário era uma
reflexões deste artigo, que pretende analisar as proposi- prática recorrente nos interrogatórios dos presos políti-
ções gerais das administrações governamentais anterior- cos, passou a ser um exercício freqüente nas detenções e
mente referidas, privilegiando as “grandes questões” no nos inquéritos envolvendo pessoas pobres, negros e de-
domínio da política de segurança pública, entre as quais a sempregados.
busca de legitimidade e a relação entre polícia e popula- Se estas práticas aparecem como um legado do regime
ção. Acontecimentos ocorridos no campo da segurança, autoritário, os governos democráticos enfrentam o desa-
nessa época, trabalharam na contramão de um processo fio de implementar uma política de segurança pública ca-
de legitimidade e moralização, apresentando momentos paz de prevenir e combater a criminalidade e de manter a
de crise e de conflito passíveis de serem entendidos sob o ordem, tendo como referência os princípios do Estado de
crivo de análises sociológicas. Direito.
No Ceará, o “governo dos empresários” herdou uma
UMA HERANÇA... UM LEGADO... longa trajetória construída pelos coronéis (Virgílio Távora,
César Cals e Adauto Bezerra) (Barreira, 1992a). Este ci-
O período inaugurado com a eleição de Tasso Jereissati, clo foi encerrado pelo economista Gonzaga Mota, esco-
também intitulado “governo dos empresários”, tentou im- lhido a partir do denominado “pacto dos coronéis” e sacra-
primir uma marca do “novo”, do “diferente”, destacando mentado em 1982 pelo presidente Figueiredo. Tal acordo
sobretudo um ideário de modernidade e racionalidade em teve como característica a partilha do poder do Estado entre
suas ações (Barreira, 2002; Lemenhe, 1998; Gondim, os três citados coronéis (Barreira, 1996). O desfecho foi
1998). Herdou, entretanto, um cenário político, principal- a ruptura do governador Gonzaga Mota com os “arquite-
mente no campo da segurança pública, bastante desfavo- tos” da combinação, surgindo no interior desta cisão o
rável e inquietante. O legado de 21 anos de vigência de nome do empresário Tasso Jereissati, filho do ex-senador
um regime autoritário (1964-1985) deixou, como nos de- Carlos Jereissati. A luta pela hegemonia do Estado passa
mais Estados brasileiros, marcas problemáticas para uma a ser construída no âmago de uma disputa simbólica entre
efetiva instauração de um Estado de Direito, comprovan- o “novo” e o “antigo”, o “moderno” e o “atrasado”, o “ra-
do o fato de que a redemocratização do regime de gover- cional” e o “irracional”. O ponto de saliência deste deba-
no não se dá por um “passe de mágica”, capaz de condu- te é o alijamento das “forças do atraso”, do “tempo dos
zir automaticamente a democratização das instituições do coronéis”.
Estado. Este processo é complexo e lento, representando O “atraso” é o lado emblemático da política de segu-
uma espécie de “rito de passagem” de um regime autori- rança pública caracterizada por práticas ilegais com uso
tário para um democrático, considerando-se que “não se indiscriminado da violência. A lei e a ordem eram manti-
pode desprezar o peso do autoritarismo social e das he- das, em princípio, neste tempo, com o uso da violência
ranças deixadas pelos regimes autoritários nas agências física ilegítima como costume social produzido no cerne
encarregadas do controle repressivo da ordem pública” da ditadura, reconhecida pelo uso do “excesso de poder”.
(Adorno, 2000:132). As ações repressivas tiveram como aliado o autoritaris-
O primeiro governo eleito, no Estado do Ceará, após o mo do Estado Nacional, conjugado com práticas cliente-
regime militar, enfrentou também a dificuldade da institucio- listas e patrimonialistas do poder local. Os órgãos de se-
nalização das práticas democráticas em todas as esferas do gurança pública aparecem claramente, e sem nenhuma
poder, uma vez que as mesmas foram enrijecidas pelo regime mediação, a serviço das classes dominantes, com o aval
autoritário, apontando para a necessidade de ser realizada da legalidade dada por parte do Estado. A organização
uma transição no interior das instituições do Estado. policial e seus exercícios ilegais são construídos visando
O legado autoritário aparece claramente nas práticas a defesa da ordem social vigente, do patrimônio privado
ilegais e no uso indiscriminado da violência por parte dos e da segurança das classes dominantes. No meio rural,

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práticas dessa natureza são mais socializadas na proteção meio de uma prática mais eficiente de combate à crimina-
da grande propriedade rural e no combate à organização lidade e de “implantação da lei e da ordem”. No âmbito
política dos trabalhadores agrícolas. Na área urbana estas do aparato policial, discursos baseados na racionalidade
ações aparecem na batalha contra os movimentos sociais e modernidade eram enfatizados. O medo e a insegurança
urbanos organizados, na postura diante dos pobres, ne- eram combatidos em discursos e ações, que visavam mu-
gros e favelados, configurando hábitos exercidos na con- danças nas estratégias de policiamento. Estas receberam
jugação indistinta do público e do privado, com preva- nova roupagem justificada na idéia de que os órgãos de
lência deste último. segurança têm que acompanhar a “sofisticação” do mun-
A ausência de procedimentos democráticos e a descon- do do crime, mostrando-se mais modernos e mais bem
fiança, por parte da população, do comportamento da equipados, com presença legitimada forte nos meios de
polícia na manutenção da ordem e da lei são dois dos prin- comunicação. É neste contexto que surgem programas es-
cipais legados negativos dos antigos governos, tendo como trategicamente preparados, objetivando recuperar o con-
cunha o autoritarismo. A corrupção e a perda dos princí- trole estatal do crime.
pios da disciplina e da hierarquia são os vetores que nor- Em 1987, a Secretaria de Segurança Pública organi-
teiam uma avaliação interna dos órgãos de segurança, prin- zou uma campanha para acabar com a pistolagem no Es-
cipalmente da Polícia Civil. Neste combate é que os tado do Ceará, cujo esforço estava carregado de simbo-
governos cearenses, sob o slogan de “governo das mu- lismo político e social. Construíram-se estratégias
danças”, buscaram imprimir sua marca na política de se- discursivas de negação do “antigo” e do “atrasado”, com
gurança pública. Internamente, tentaram recuperar os prin- base na afirmação do “novo”, contrário ao momento em
cípios da disciplina, da hierarquia e da moralidade, que o crime sobrepunha-se à lei do Estado. Em uma “nova
isolando o lado considerado “podre” dos órgãos de segu- ordem social” que estava sendo implantantada, no Estado
rança, procurando reconstruir relações éticas entre supe- o crime de pistolagem não podia ter espaço, sendo consi-
riores e subalternos. As relações decompostas estariam na derado uma atitude do passado, do “tempo dos coronéis”.
base das ações ilegais e de emprego de corrupção impe- Neste embate, eram identificadas as “forças do atraso”,
rantes nos órgãos de segurança, conjugadas com relações corporificando no interior do campo político as figuras
corporativas dominantes. dos principais mandantes dos “crimes por encomenda”.
Para superar esta conjuntura desfavorável, principal- A campanha contra a pistolagem não conferiu apenas
mente de deterioração das relações internas nos órgãos visibilidade ao uso de ilegalidade, tentando reprimir e
de segurança, foi escolhida uma cúpula dirigente de ori- extinguir esta ação. Anunciou-se um novo momento quan-
gem externa ao Estado do Ceará e com formação policial do o Estado passou a ter o controle sobre o crime, negan-
diferente da Polícia Civil e Militar. O delegado Moroni do a existência de um “poder paralelo” mantido, em par-
Torgan, gaúcho e com formação na Polícia Federal, pre- te, pelos grandes proprietários de terra conjugados com
enchia os requisitos esperados, tendo como principal as- “políticos tradicionais”. Diariamente foram estampados
sessor o delegado Renato Torrano, conterrâneo e possui- nos jornais de Fortaleza nomes de “perigosos pistoleiros”,
dor das mesmas características profissionais do secretário bem como de mandantes pertencentes a “importantes fa-
de Segurança Pública na condição de delegado de carrei- mílias” do Estado (Barreira, 1992a).
ra da Polícia Federal. As escolhas de profissionais fora As inovações estratégicas do plano de segurança para
dos quadros locais produziu um grande mal-estar, princi- o estado do Ceará foram paulatinamente traçadas e cons-
palmente no âmbito da Polícia Civil, tendo como máxi- truídas ao longo desta campanha, notabilizando-se pela
ma: “O Estado do Ceará e os seus órgãos de segurança busca de neutralidade e independência diante do poder
possuem homens capazes de ficarem na frente de sua po- econômico e político, quebrando as amarras com “ações
lítica de segurança pública”. O embate estava estabeleci- ilegais” dos órgãos de segurança pública ligadas aos se-
do, aparecendo claramente o objetivo do Governo, que tores dominantes.
era o de romper as amarras pessoais imperantes nos ór- A campanha contra a pistolagem, tal como ficou co-
gãos de segurança do Estado, caracterizadas pela defesa nhecida nos meios de comunicação de massa, não só pos-
de laços corporativos. sibilitou maior visão pública das ações e usos de combate
Externamente, as administrações cearenses buscavam ao crime, como também trouxe dividendos políticos.
recuperar credibilidade e confiança junto à população por Moroni Torgan e Renato Torrano, principalmente o pri-

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meiro, construíram capital político que foi utilizado em mais truculentos do regime militar” (O Povo, 14/04/1993).
campanhas eleitorais. Não obstante serem originários de As denúncias, por parte das entidades de defesa dos direitos
outro Estado e também pertencentes a uma categoria pro- humanos, avolumaram-se. A grande marca é que a tortura
fissional pouco legitimada para o exercício de função de passou a ser divulgada como uma ação recorrente nas
representação na esfera do poder (Barreira, 1998b), con- delegacias, principalmente naquelas situadas na periferia
seguiram transformar a segurança em emblema de cam- de Fortaleza, tendo como principais vítimas os pobres, os
panha, mesmo que, nas pesquisas de opinião pública, os negros e os desempregados. Como disse o pedreiro
policiais, juntamente com os homens políticos, fossem Antônio Braga, “eu tive sorte, porque sei que outros presos
apontados como setores profissionais “menos confiáveis”. sofrem isso todos os dias e ninguém descobre. E quando
se é pobre e mora na favela, os policiais chegam dizendo
MÁCULAS E TRANSPARÊNCIAS que a gente é marginal” (O Povo, 14/04/1993).
A discussão sobre a legalidade ou a ilegalidade deste
Alguns “escândalos” afetaram interna e externamente comportamento sórdido nos interrogatórios passou a fa-
os órgãos de segurança pública do Estado do Ceará nos zer parte da “ordem do dia”. No horizonte deste debate,
últimos 15 anos, exigindo por parte da opinião pública está presente não só o respeito aos direitos humanos, mas
respostas imediatas. Tais eventos macularam dois dos prin- também uma questão político-estratégica sobre qual o tra-
cipais eixos de mudança da política de segurança: a tamento que um preso deve receber em uma instituição de
moralização e a modernização. Estes acontecimentos in- segurança pública do Estado, detentor do monopólio da
ternos e externos promoveram mudanças na estrutura in- força legal. Em outras palavras, como deve ser obtida a
terna da Segurança Pública, buscando novos padrões nas confissão de um possível “suspeito”. É importante frisar
operações e ações policiais. As crises, como momento rico que, neste embate, passam a ser reproduzidas categorias
e revelador dos problemas sociológicos, deixam trans- de personagens negadas socialmente, como, por exemplo:
parecer fissuras no tecido social, tornando públicas ques- “marginal”, “suspeito”, “bandido”, “desordeiro”, “elemen-
tões há muito submersas nas instituições. to”, etc. No universo simbólico de uma boa parte da po-
Em 12 de abril de 1993, foi flagrada, numa dependên- pulação, aparece claramente a distinção entre cidadãos
cia de delegacia da polícia, a tortura executada por poli- possuidores de direito e “não-cidadãos” destituídos de
ciais civis no pedreiro Antônio Ferreira Braga. Este fato direitos. A disputa passa a ganhar forma não só entre a
foi constatado por delegados de entidades de direitos hu- população, mas também no âmbito da polícia, validando
manos, pela imprensa cearense, parlamentares e advoga- o mote que diz que “bandido tem que ser tratado no tapa”.
dos da OAB-CE. “Eles haviam recebido uma denúncia As entidades de defesa dos direitos humanos e alguns
anônima através de telefone minutos antes e seguiram para parlamentares de “partidos de esquerda” que constroem
a delegacia, onde encontraram o preso deitado no chão, um discurso diferente do anteriormente descrito, desta-
com as mãos algemadas e os pulsos protegidos por peda- cando o respeito à cidadania e aos direitos humanos, pas-
ços de borracha (para evitar marcas), despido e envolvi- saram a ser acusados de “só defenderem bandidos”, re-
do com um carpete amarrado a altura dos joelhos para que forçando a impunidade e as taxas de criminalidade. Neste
não se soltasse. Ao lado dele havia os instrumentos de ínterim, entretanto, ganharam espaço alguns princípios de
tortura: fios elétricos e uma palmatória” (O Povo, 13/04/ um Estado democrático de Direito. Os órgãos de segu-
1993). Esta ação tinha como objetivo obter a confissão rança pública, por exemplo, passaram a ser vistos como
do possível furto de um televisor. O ato de tortura teve responsáveis pelos direitos de todo cidadão que é detido
grande publicidade na imprensa local e nacional, com como “suspeito” ou para uma averiguação.
documentação fotográfica que constitui prova irrefutável O fato flagrado trouxe também à tona as péssimas con-
da ação. Este fato ocorreu no período do Governo de Ciro dições das delegacias do Estado, tendo destaque a situa-
Gomes, quando estava à frente da Secretaria de Seguran- ção dos espaços de detenção. Estes são geralmente locais
ça Pública o delegado Francisco Crisóstomo.2 que não possuem as mínimas condições de salubridade,
A tortura mantém-se como costume do passado, questão sem ventilação e entrada de luz solar. Também o número
destacada pelo então deputado do PT Mário Mamede: “a de detidos por aposento está sempre acima do comportável,
comissão deparou-se com um quadro de violência, de havendo delegacias que acomodariam quatro presos e
degradação do ser humano, que nos remete aos momentos chegam a ter quase 40 homens em uma cela. A situação é

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conjugada a outros agravantes, como o fato de que a ali- O “direito de ir e vir”, que faz parte dos princípios bá-
mentação dos detidos é, geralmente, fornecida pelas suas sicos dos direitos humanos, estava negado. O abastecimen-
famílias, que não possuem condições econômicas satisfa- to de água e alimento que estava sendo providenciado por
tórias para tanto. Um dado preocupante, para a popula- parlamentares, entidades de direitos humanos e popula-
ção, e que produz intranqüilidade, principalmente nos res foi cerceado. O direito a beber e comer estava interdi-
bairros periféricos, é o número crescente de homens deti- to. O jurista Walmir Pontes, referindo-se a esta situação,
dos que fogem dos cárceres das delegacias. Estas fugas diz que a “Constituição Federal assegura ao cidadão o
decorrem das situações descritas anteriormente acresci- direito de manifestação em área pública e o direito de ir e
das da falta de segurança dos cárceres das delegacias. vir. A presença da polícia só se justifica para evitar trans-
Por último, é importante destacar que, se as detenções gressões da ordem. Não pode impedir que as pessoas se
ocorrem geralmente fora de uma base de legalidade jurí- locomovam nem que deixem de alimentar-se. Se eles im-
dica, estas são agravadas pelo tempo de permanência dos pediram a entrada de alimentos e água não só é grave, é
presos nas delegacias, havendo casos de estes ficarem mais assustador” (O Povo, 13/04/1997).
de seis meses, sem que o inquérito policial seja concluí- A operação militar que representou um excesso de po-
do. As situações deixam transparecer a responsabilidade, der, pautada no uso de uma violência física inexplicável,
ou co-responsabilidade, do Poder Executivo no quadro da pretensamente legitimada pelo Estado, deixou manifestan-
segurança pública. tes não apenas aterrorizados, mas também impotentes.
Outro fato que merece ser mencionado ocorreu no dia Trata-se de uma ação que não é específica das práticas
12 de dezembro de 1997, configurando uma “operação institucionais do Estado do Ceará. Santos (1997:162),
policial desastrosa”. O Movimento dos Sem Terra – MST analisando a organização policial e a defesa da ordem
estava acampado na Av. Bezerra de Menezes, em Forta- social vigente, acentua que, “além do exercício da violên-
leza, em frente à Secretaria do Desenvolvimento Rural do cia física legítima, de ações visando a sedimentação de
Estado, reivindicando terra e uma melhor política de cu- um consenso social, nele está contida a virtualidade da
nho agrícola. Concretamente eles solicitavam o cumpri- violência física ilegítima enquanto prática social que im-
mento de algumas promessas do Governo, como implan- plica a possibilidade do excesso de poder”. Nesta opera-
tação de projetos de infra-estrutura e produção, geração ção, o consenso social não foi sedimentado, reforçando a
de empregos, liberação de recursos para o pagamento de incapacidade dos órgãos de segurança de atuarem rela-
mão-de-obra, etc. Durante a madrugada, a Polícia Mili- cionados com os movimentos sociais organizados e com
tar, usando de força física, cercou o acampamento, impe- suas demandas. Na ausência da fala, da palavra, como se
dindo qualquer contato dos trabalhadores com a popula- reporta Hannah Arendt, aparece a violência física aberta
ção. A área foi totalmente isolada com filas duplas de e sem mediação.
policiais, criando um cordão de isolamento constituído por Nesta operação, como em todas as ações nas quais há
cerca de mil policiais. Em poucos minutos foi preparada “excesso de violência”, o lugar da autoridade foi subtraí-
quase uma operação de guerra, com a participação do do, construindo-se uma transferência de responsabilida-
Batalhão de Choque, Gate, Casa Militar, Corpo de Bom- de e de culpabilidade que mantém incólume o próprio
beiros, Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Pra- Governo do Estado.3 A explicação dada pelos policiais
ças, Polícia Feminina, 2a Seção da Polícia Militar, Quar- para a ação era a de que “estamos cumprindo ordens su-
tel do Comando Geral, ambulâncias e, inclusive, um periores”. O comando da Polícia Militar, preocupado com
rabecão do IML. Esta operação visava o enfraquecimen- a opinião pública, eximiu-se da responsabilidade do “ex-
to do movimento e o retorno imediato dos trabalhadores cesso de violência” dos subalternos, ou “transgressão da
aos seus municípios. Para o deputado João Alfredo (PT), disciplina militar”, ficando a população mais uma vez
“a repressão aos acampados tinha o objetivo ‘claro’ de com uma sensação preocupante de que os policiais ain-
impedir a manifestação dos trabalhadores ligados ao MST da “agem por instinto”. Trata-se de uma reação que ca-
durante a inauguração do Fórum Clóvis Beviláqua (...) minha na direção oposta ao discurso do Governo, que é
Estava tudo preparado para fazer um despejo violento. a busca de previsibilidade e de racionalidade nas ações
Acontece que a imprensa veio, os parlamentares vieram e policiais.
eles não quiseram assumir o ônus do desgaste. Ia ser um A legitimidade do Governo, em grande parte medida
massacre” (O Povo, 13/04/1997). por sua capacidade de manter a ordem, saiu bastante afe-

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tada. Para Bayley (2001:17), “a manutenção da ordem é a O escândalo foi denominado “Caso França”. Com as de-
função essencial do governo. Não apenas a própria legiti- núncias que vieram à tona, conjugadas com práticas cri-
midade do governo é em grande parte determinada por minosas (já tornadas públicas anteriormente pelas enti-
sua capacidade de manter a ordem, mas também a ordem dades de direitos humanos e por parlamentares, que
funciona como critério para se determinar se existe ou não envolviam policiais em tráfico de drogas, prostituição e
governo. Tanto conceitual quanto funcionalmente, governo crimes de corrupção e extorsão), o quadro de moralização
e ordem andam juntos. (...) As atividades policiais tam- do domínio da segurança pública foi profundamente atin-
bém determinam os limites da liberdade numa sociedade gido em sua legitimidade.
organizada, algo essencial para se determinar a reputação Estas denúncias, legitimadas com o “argumento de au-
de um governo. Embora governos imponham restrições toridade” de quem as fez, tornaram cristalinamente visí-
de outras maneiras, a maneira pela qual eles mantêm a veis as ações ilícitas seculares que envolvem policiais no
ordem certamente afeta de modo direto a liberdade real”. Estado. Elas não só atingiram a moral dos órgãos de se-
Nesta operação militar, a forma como foi mantida a or- gurança como também aumentaram o grau de medo e in-
dem incomodou diretamente a liberdade real, pondo em segurança da população, ficando no ar a pergunta: “em
xeque os detentores do monopólio do uso legítimo da vio- quem confiamos?”
lência física. Entretanto, como opina Wieviorka (1997:19), O “Caso França” ensejou o estabelecimento de uma
“é cada vez mais difícil para os Estados assumirem suas “Comissão Especial” para apurar e avaliar as denúncias.
funções clássicas. O monopólio legítimo da violência fí- Após a divulgação de um relatório parcial elaborado por
sica parece atomizado e, na prática, a célebre fórmula tal comissão, o governador Tasso Jereissati iniciou pro-
weberiana parece cada vez menos adaptada às realidades fundas alterações nos órgãos de segurança. A grande mu-
contemporâneas”. dança foi a substituição da Secretaria de Segurança pela
Por último, é lícito dizer que, nesta operação, a rela- Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania –
ção entre o Governo do Estado e os movimentos sociais SSPDC. A modificação do nome está carregada de sim-
organizados explicitou-se na ausência do diálogo, centra- bolismo, reforçado pela nomeação de um general-de-di-
lização das ações, autoritarismo, etc. No imaginário sim- visão do Exército para dirigir a Secretaria. Novamente um
bólico da população, a ação desencadeou-se não apenas gaúcho – o general Cândido Vargas Freire – veio assumir
contra os trabalhadores rurais, mas principalmente a fa- o comando máximo dos órgãos de segurança pública. Esta
vor dos proprietários de terra, ou em defesa do patrimô- Secretaria surgiu com maior peso político, integrada di-
nio privado. O poder da polícia aparece mais uma vez retamente à “estrutura organizacional da Governadoria do
respondendo principalmente pela segurança das classes Estado, com responsabilidade de coordenar, controlar,
dominantes e não em busca da implantação de um con- integrar e, principalmente, de unificar as atividades de
senso social, reforçando a assertiva de que, no “cômputo segurança pública desenvolvidas pela Polícia Civil, pela
geral, o poder da polícia parece responder mais às neces- Polícia Militar, pelo Corpo de Bombeiros e pela Corre-
sidades de segurança da elite do que do público em geral” gedoria dos órgãos de Segurança Pública e Defesa da Ci-
(Bayley: 2001:114). dadania” (Brasil, 2000:74).
O terceiro fato ou “escândalo” afetou diretamente um A unificação das atividades dos diferentes setores que
dos pilares de mudança da imagem externa dos órgãos de compõem o sistema de Segurança Pública do Estado e,
segurança pública do Estado: o eixo da moralização in- principalmente, as ações das Polícias Civil e Militar pas-
terna. No dia 20 de janeiro de 1997, foi preso com um saram a ser um dos grandes objetivos da nova Secretaria.
carro roubado o agente da Polícia Civil João Alves de As grandes alterações, entretanto, ocorreram não na uni-
França. Após sua prisão, o acusado fez diversas denún- ficação das polícias civil e militar, mas na integração de
cias de atos criminosos com a participação de policiais alguns trabalhos. A palavra “unificação” faz parte de um
civis e militares, como também de parte da cúpula da se- vocabulário execrado pelas corporações policiais, nega-
gurança pública (Brasil, 2000). Estas denúncias, que apon- do por princípio ou por uma ideologia corporativa, mas,
tavam a participação dos órgãos de segurança pública em também, pela ausência de uma clara política de unifica-
práticas ilícitas, atingiam pessoas importantes deste do- ção. Nesta indefinida política de unificação, destaca-se a
mínio, como, por exemplo, Francisco Quintino Farias, ex- criação da Corregedoria Geral dos Órgãos de Segurança
secretário de Segurança Pública do Governo Ciro Gomes. Pública e Defesa da Cidadania – CGOSPDC, tendo à frente

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o juiz aposentado Helder Mesquita. A Corregedoria tem CAMPO MINADO DE ACEITAÇÃO E


como grande meta moralizar internamente os órgãos de NEGAÇÃO SOCIAL
segurança, objetivando como competência básica apurar
os atos ilícitos penais e as transgressões funcionais por Neste campo minado de aceitação e negação social, em
parte dos três setores (Polícia Militar, Polícia Civil e Bom- que a aplicação de lei e de ordem é exigida, num misto de
beiros Militares), realizar inspeções administrativas nos coerção e controle, novas demandas públicas surgem em
estabelecimentos e repartições destes setores e proceder outro momento sociopolítico. Concretiza claramente o fato
aos serviços de correição nos procedimentos realizados de que “o que o público realmente leva até a polícia como
pela Polícia Civil e, principalmente, manter a observân- pedido de serviço depende não só do que eles sentem que
cia da hierarquia, da disciplina e da probidade funcionais. precisam, mas do que eles acreditam que a polícia está
Estas competências, ou a reafirmação delas, vêm direta- interessada em tratar” (Bayley 2001:152). É importante
mente colocar-se como um escudo de proteção contra as destacar a idéia de que as demandas públicas refletem
denúncias do “Caso França”. diretamente as condições sociais e econômicas da popu-
As mudanças das estratégias de atuação dos órgãos de lação. Neste contexto é que são pautadas as grandes li-
segurança não ficaram restritas ao domínio técnico-admi- nhas de atuação e de relação entre polícia-sociedade, po-
nistrativo, haja vista que o “Caso França” trouxe outros lícia-população e polícia-comunidade.4
dividendos. Em maio de 1997, três meses após este rui- A busca de “parceria” e de participação da comu-
doso acontecimento, o Governo do Estado contratou a First nidade local nos trabalhos de segurança pública da
Security Consulting, tendo à frente William Bratton, con- SSPDC, coordenados pela Diretoria da Cidadania desta
forme referido em parte anterior deste artigo. A consulto- Secretaria, concretizou-se na criação de Conselhos
ria propôs a criação de um projeto de segurança pública Comunitários de Defesa Social – CCDS. Estes conselhos
com nove distritos-modelo para Fortaleza, partindo das seriam o elo de ligação entre a comunidade e os órgãos
nove áreas militares que existem, com suas nove compa- de segurança, tendo como principal objetivo “participar
nhias de polícia militar. “O eixo central do projeto DM é ativamente na solução dos problemas de segurança do
a reformulação da sistemática de trabalho das polícias atra- bairro, apoiando e auxiliando a SSPDC” (Ceará, s/d).
vés da unificação das ações desenvolvidas pela PM e pela A palavra de ordem destes conselhos é incentivar o bom
PC, com o objetivo de racionalizar e estreitar a colabora- relacionamento da comunidade e das lideranças com a
ção e o apoio entre as duas polícias no combate à crimi- Polícia Militar, a Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros.
nalidade” (Brasil, 2000:230). Os distritos-modelo que A busca deste relacionamento se, por um lado, indica a
estão sendo paulatinamente instalados tiveram como um conquista e o reforço de laços de confiança com a
dos principais ganhos no campo das operações estratégi- população, por outro, representa uma racionalidade do
cas a integração dos trabalhos das Polícias Militar e Civil trabalho, envolvendo a comunidade na missão policial.
nas delegacias, através do uso dos policiais militares em Este envolvimento ocorreria por um trabalho de reci-
serviço nas delegacias. procidade nas denúncias dos atos ilícitos e criminosos,
No âmbito dessas mudanças também é destaque a bus- apontando os locais tidos como “perigosos e violentos”
ca de parceria entre a prática policial e a população, prin- e, inclusive, propondo o tipo de policiamento mais
cipalmente com as lideranças populares interessadas na eficaz para o bairro (motopatrulha, radiopatrulha, cava-
construção de um “policiamento comunitário”. Neste pro- laria a pé e outros). Na prática, entretanto, os trabalhos
jeto, tem obtido realce a criação dos conselhos comunitá- dos conselhos estão em grande parte reduzidos “às de-
rios que vieram operacionalizar a mudança ou o acrésci- núncias” que ocorrem nas reuniões, realizadas mensal-
mo de “defesa da cidadania” no nome da Secretaria de mente, envolvendo comunidade e setores da segurança
Segurança Pública. pública, bem como no momento da ocorrência de um
Os três fatos (a tortura do pedreiro, a ação contra o MST “ato ilícito”. O conhecimento da população local sobre
e o “Caso França”) deixaram transparecer problemas cru- a área física e, principalmente, como as relações sociais
ciais da política de segurança pública, que estavam sub- são construídas e constituídas representa o mercado de
mersos e empedernidos. Também anunciaram as exigências troca entre comunidade e polícia, concretizando uma
de um novo momento de estratégia de policiamento: o relação de reciprocidade que redefine e reorienta o
respeito aos direitos humanos e às liberdades democráticas. trabalho da polícia.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

A Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cida- nados “pontos críticos de criminalidade”, inclusive apon-
dania divulga um total de quase 700 conselhos organiza- tando o tipo de estratégia policial mais eficaz. O apoio
dos no Estado do Ceará até o início de 2002. Em janeiro que a “comunidade” pode oferecer, que parte de um saber
de 2001, havia 664 conselhos comunitários, assim distri- forjado, simplesmente, no cotidiano das experiências vi-
buídos: 70 em Fortaleza; 421 na Região Metropolitana de vidas e não metódico e cientificamente construído, pode
Fortaleza; e 173 no restante do Estado. Estes dados de- ser bastante negativo, reforçando alguns estereótipos no
monstram maior sensibilidade para a criação destes con- campo da violência. Também o apoio da “comunidade”
selhos nos municípios-limítrofes com Fortaleza e que in- pode não servir para indicar soluções mais racionais e
cluem Caucaia e Maracanaú, considerados pela imprensa eficientes de combate à criminalidade. Os estereótipos
e pelos órgãos de segurança os municípios mais violentos reforçariam as segmentações sociais e aumentariam as
do Estado. Esta sensibilidade decorre não apenas das pre- intolerâncias diante do diferente e do desconhecido. As
cárias condições econômicas destas áreas, mas também marcas das classificações sociais, que representam para
da vulnerabilidade e insegurança em que vivem estas po- Bourdieu (1990) uma violência simbólica, aumentam o
pulações, corroborando a idéia de que, com exceção das fosso das distinções sociais, distanciando de um possível
localidades consideradas nobres de Fortaleza e das áreas consenso ou de um equilíbrio social.
litorâneas, regiões de turismo e de lazer, as áreas periféri- As novas exigências sociais e as demandas públicas que
cas estão, em grande parte, descobertas, faltando, por decorrem das condições socioeconômicas das populações
exemplo, viaturas para policiamento e um maior efetivo situam a práxis policial em um complexo campo de atua-
policial. ção e de atribuições. A polícia atual, principalmente a que
O secretário de Segurança, general Cândido Vargas age em áreas periféricas urbanas, é cada vez mais exigida
Freire, parafraseando um slogan de campanha política a trabalhar em assuntos não criminais, como, por exem-
de uma candidata de um bairro periférico de Fortaleza plo, desavenças entre casais, brigas de vizinhos, proble-
(Barreira, I., 1998) disse que o “conselho é uma oportuni- mas de adolescentes, uso de bebidas alcoólicas, etc. Estas
dade de o cidadão ter vez e voz, dar sugestões, reivindi- demandas exigem maior conhecimento de práticas e com-
car” (O Povo, 12/01/2001). Neste discurso, aparece um portamentos sociais, como também forçam o policial a ter
apelo ao concurso do cidadão, possuidor de reivindica- mais sensibilidade diante da aplicação da lei.
ções, como também a necessidade de atingir o objetivo Um delegado da Polícia retrata bem este quadro, quando
primordial da nova política, que é o fortalecimento dos diz que “hoje nós trabalhamos quase que como assistente
laços entre o cidadão e os órgãos de segurança pública. social. A maior parte dos problemas que nos procuram
Em outro momento, o secretário reafirmou os novos ob- poderia ser resolvido por uma assistente social. Nós per-
jetivos das operações policiais, dentro das metas de uma demos muito tempo com essas coisas e não temos tempo
segurança “para o povo e com o povo”, declarando que é de atacar os problemas de criminalidade. E tem mais, se a
“preciso buscarmos junto ao cidadão as suas necessida- gente não fizer nada para resolver estes problemas a po-
des, sugestões e críticas para melhorar nossa atuação. Não pulação não acredita mais na gente. E tem outro proble-
adiantaríamos estarmos bem equipados – o que não é o ma, tem muitos casos que seriam resolvidos só por um
caso – se não contássemos com essa parceria com a co- aconselhamento. Por exemplo, um bêbado que estava cau-
munidade” (O Povo, 13/12/98). sando desordem. Mas a gente tem que fazer um Boletim
Esta recente estratégia de policiamento seria, em par- de Ocorrência – BO e depois prender o [desordeiro] so-
te, uma volta para a “polícia comunitária”. Entretanto, nos mente para satisfazer a população”. A importância da
objetivos atuais, a comunidade teria um papel mais ativo operação policial, neste sentido, é dada por práticas tra-
do que o próprio policial, uma vez que as operações de dicionais já legitimadas socialmente, sendo o uso da for-
segurança partiriam da demanda e das sugestões da co- ça física, por meio da coerção e da punição, autorizado
munidade. coletivamente. Neste mesmo domínio, aparece a deman-
Um dado preocupante é que a atuação dos Conselhos da da população por “prestação de serviço” para os poli-
Comunitários de Defesa Social passam a ocupar, em par- ciais, com um forte apelo popular. A “prestação de servi-
te, um espaço dos “serviços de inteligência”, os quais não ço” aparece no mesmo plano (para o povo) da aplicação
funcionam a contento. Esta atuação apareceria no mapea- da lei e manutenção da ordem pública. Como diz Bayley
mento dos “pontos de intranqüilidade social”, os denomi- (2001:169), “o dilema para a polícia nas sociedades ur-

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EM NOME DA LEI E DA ORDEM: A PROPÓSITO DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA

banas industrializadas é que ela tem que desempenhar um uma legitimidade social. Esta aquisição atinge, principal-
papel preponderante de prestação de serviços exatamente mente, um setor dos escalões superiores, não resvalando,
ao mesmo tempo em que a necessidade da aplicação da normalmente, para os “setores das pontas” – os policiais
lei parece estar aumentando”. – que mantêm contato direto com a população. Na linha
Uma polícia mais próxima da comunidade, fazendo e de frente desta conquista encontram-se os “novos delega-
aprendendo com ela as estratégias de policiamento (dentro dos” que se mostram abertos às novas demandas sociais e
de um quadro idealizado pelos órgãos de segurança), tentam construir um discurso na contramão do enfoque
necessariamente passará por estas demandas, que acar- militar, legado dos anos de vigência do regime autoritá-
retam uma maior complexidade nos serviços de segurança rio, que é dado à segurança pública.
pública. Outra ordem de problema é que essa polícia não A conquista desta base de legitimidade está passando
anularia os conflitos inexoráveis entre a implantação da não só por uma nova estratégia de policiamento, mas tam-
ordem, da lei e os ditames de uma sociedade democrática. bém por uma “mudança de mentalidade”, que envolve
As novas estratégias de policiamento têm, no seu necessariamente uma formação mais humanista dos con-
horizonte, uma idealização baseada na existência de uma tingentes profissionais. Tal formação, que não deve resu-
“polícia para o povo e com o povo”. A idealização é cons- mir-se à melhor capacitação técnica, dá ênfase aos princí-
truída em um universo de simbolismos e práticas sociais pios das ciências humanas de respeito à diferença e aos
que, por um lado, visam a conquista de legitimidade, valores socioculturais. Obtêm cada vez mais espaço a for-
confiança e aceitação social e, por outro, buscam racio- mação e a qualificação dos profissionais da área de segu-
nalidade, eficiência e competência no trabalho policial. John rança no domínio dos direitos humanos e no respeito à
Benyon, no prefácio do livro de Jean-Claude Monet (2001), cidadania. No espaço de formação e qualificação, as uni-
escreve que a “participação dos cidadãos na polícia é, para versidades, como depositárias dos conhecimentos huma-
esta, um fator de eficácia e de legitimidade. De um modo nistas, são as grandes parceiras deste projeto, caminhan-
geral, ela é um valor chave da cultura democrática”. do concomitante à linha de preocupação crescente da
população com os direitos humanos e os princípios de-
ALGUNS PONTOS, UMA REFLEXÃO mocráticos. A democracia e, especificamente, as estraté-
gias utilizadas para a manutenção da ordem pública de-
A atuação dos órgãos de segurança no período anali- pendem diretamente da qualidade de sua polícia.
sado, tendo como parâmetros os princípios da moralização O embate entre direitos humanos e segurança pública
interna e de uma maior eficiência, teve como objetivo a tem sido um dos pontos cruciais na efetiva instauração do
diminuição da criminalidade. Apontou também problemas Estado de Direito. É preocupante, entretanto, o fato de
gerais existentes nos órgãos de segurança interessados em que, para uma boa parcela da população e dos responsá-
fixar linhas de ação e traçar uma nova estratégia policial. veis pela segurança pública, os defensores dos direitos hu-
O preocupante e inquietante é que estas linhas gerais de manos preservam, em última instância, a impunidade do
ação não fizeram diminuir as taxas de criminalidade no “criminoso” e se opõem, sistematicamente, a todo esfor-
Estado, como também não modificaram o cenário de medo ço de contenção da criminalidade. Por outro lado, estes
e de insegurança que impera na sociedade. O quadro é representantes tentam mostrar que não defendem a impu-
agravado pelo fato de que o descrédito em relação à polí- nidade, mas sim a competência do sistema de segurança,
cia diante da opinião pública não se reduziu. Esta má re- usando a força segundo as necessidades e trabalhando
putação decorre não só do cenário de medo e inseguran- dentro dos princípios da lei. A competência dos órgãos
ça, mas também das máculas, analisadas neste trabalho, de segurança estaria diretamente ligada ao respeito ao ci-
que abriram fissuras na imagem dos órgãos de segurança. dadão possuidor de direitos.
Nesta complexa engrenagem, fica cada vez mais evidente No panorama de medo e insegurança, entretanto, o uso
que a fomentação de uma “imagem positiva” não é cons- da força é não só legitimado, como também cada vez mais
truída somente por uma política discursiva, devendo esta solicitado e exigido. A demanda por mais força é mais
ser conjugada por práticas correspondentes. presente na periferia da cidade de Fortaleza, em função
Um dado importante na construção desta imagem é a da insegurança e vulnerabilidade em que vive a popula-
percepção, por parte de alguns setores, dos órgãos de se- ção. Este comportamento reproduz certa ambigüidade, na
gurança, da necessidade e da importância da conquista de medida em que para este setor social existe uma consciên-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

cia de que a política de segurança responde mais aos an- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
seios das classes dominantes, sendo os pobres, os negros
ADORNO, S. Insegurança versus direitos humanos – entre a lei e a
e os habitantes das periferias os que mais sofrem com as ordem. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v.11, n.2,
ações policiais. Entretanto, o peso inercial da tradição, que 2000.
não decorre somente dos órgãos de segurança, mas tam- BARREIRA, C. Massacres: monopólios difusos da violência. Revista
Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, n.57-58, p.169-186, 2000.
bém da sociedade, dificulta em grande parte as mudanças
__________. Crimes por encomenda – violência e pistolagem no ce-
ou inovações nas práticas policiais. A construção, no do- nário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará Editora, 1998a.
mínio da segurança, de categorias e conceitos, provavel-
__________. Lugar de policial é na política? estratégias simbólicas
mente, torna-se mais complexa, uma vez que envolve cons- de afirmação e negação. In: BARREIRA, I.; PALMEIRA, M.
tante e permanente julgamento moral. Distúrbio, desordem, (Orgs.). Candidatos e candidaturas – enredos de campanha elei-
toral no Brasil. São Paulo: Anna Blume Editora, 1998b.
motim, bandido, desordeiro – seriam bons exemplos, nesta
__________. Os pactos na cena política cearense: passado e presente.
construção de saberes não estereotipados e na busca de Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, v.40, p.31-
uma melhor compreensão dos problemas sociais. 50, 1996.
Finalmente, é importante destacar o fato de que, nos __________. Trilhas e atalhos do poder – conflitos sociais no sertão.
Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992a.
últimos anos, houve uma mudança, por parte dos acadê-
__________. Le pistolet et la politique (La mort sur ordonnance).
micos, em relação a uma postura de descaso sobre o pa- Cahiers du Brésil Contemporain. Paris, n.17, 1992b.
pel do sistema policial. Este posicionamento recente si- BARREIRA, I.A.F. Pensamento, palavras e obras. In: PARENTE, J.;
tua no centro do debate acadêmico o sistema policial no ARRUDA, J.M. (Orgs.). A era Jereissati – modernidade e mito.
interior dos princípios do Estado democrático de Direito, Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.

trazendo à evidência os Direitos Humanos e a Cidadania. __________. Chuvas de papéis – ritos e símbolos de comportamentos
eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará Editora, 1998.
Nos embates políticos tal temática ganha novos e estimu-
BAYLEY, D.H. Padrões de policiamento: uma análise internacional
lantes elementos e em “momentos eleitorais” é sempre comparativa. Tradução Renê Alexandre Belmonte. São Paulo:
realimentada a idéia de que, como a polícia, a política tam- Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
bém se alimenta do tema de insegurança e de violência. BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BRASIL, M.G.M. A segurança pública no “Governo das Mudanças”:
moralização, modernidade e participação. Tese (Doutorado) – São
Paulo, 2000.
NOTAS
CEARÁ (Estado). Guia do CCDS. Fortaleza: Secretaria da Segurança
Pública e Defesa da Cidadania, s/d.
Este artigo é resultado, em grande parte, de uma reflexão coletiva da
qual participaram Domingos Abreu, Glaucíria Brasil e Rosemary GONDIM, L.M.P. Clientelismo e modernidade nas políticas públicas
Almeida, tendo como suporte a pesquisa sobre a Política de Seguran- – os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza:
ça Pública do Estado do Ceará, realizada pelo Laboratório de Estudos Editora Unijuí, 1998.
da Violência da Universidade Federal do Ceará, com apoio da Funda- LEMENHE, M.A. A “modernidade” como emblema político. In: BAR-
ção Ford. REIRA, I.A.F; PALMEIRA, M. (Orgs.). Candidatos e candidatu-
1. A política de segurança pública, ao lado da política educacional e ras – enredos de campanha eleitoral no Brasil. São Paulo: Anna
da de saúde, passa a ser o ponto nevrálgico, considerado o “calcanhar Blume Editora, 1998.
de Aquiles” destes governos. Estes tentam com discursos e práticas MONET, J.-C. Polícias e sociedades na Europa. Tradução Mary Ama-
amenizar esta situação no âmbito da segurança pública, contratando, zonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de São
inclusive, no último período Tasso, uma consultoria externa – a First Paulo, 2001.
Security Consurity –, que tem como principal acionista e ideólogo o
ex-chefe de polícia da cidade de Nova York, William Bratton, que O POVO. Fortaleza, 13/04/1993; 14/04/1993; 13/04/1997; 13/12/98;
ganhou notoriedade com o slogan “tolerância zero”. 12/01/2001.

2. O delegado da Polícia Civil, Francisco Crisóstomo, conhecido du- PARENTE, J.C. A fé e a razão na política, conservadorismo e moder-
rante a “Campanha para acabar com a pistolagem no Estado” como o nidade das elites cearenses. Fortaleza: Edições UFC, 2000.
principal “caçador de pistoleiros”, foi nomeado secretário de Segurança SANTOS, J.V.T. dos. A arma e a flor – formação de organização poli-
Pública no Governo Ciro Gomes, tendo perdido o cargo após ter feito cial, consenso e violência. Tempo Social, Revista de Sociologia
alguns comentários, “não politicamente corretos”, a respeito das enti- da USP, v.9, n.1, 1997.
dades de direitos humanos.
WIEVIORKA, M. O novo paradigma da violência. Tempo Social, Re-
3. A prática de transferência de responsabilidades, mantidas as devi- vista de Sociologia da USP, v.9, n.1, 1997.
das proporções, foi a tônica do chamado massacre de Eldorado dos
Carajás (Barreira, 2000).
4. Neste trabalho, não foi dado nenhum tratamento rigoroso aos con-
ceitos de população e comunidade, usando-se, em boa parte, palavras
sinônimas, delimitando simplesmente uma área física da cidade, cir- CÉSAR BARREIRA: Professor em Sociologia e Coordenador do Laboratório
cunscrita a um bairro ou a uma parte deste. de Estudos da Violência da UFC, Pesquisador do CNPq/Pronex.

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