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Capelania prisional

Uma breve aplicação da teologia reformada à assistência religiosa aos encarcerados


17/04/2015 11:22:03

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Ter uma compreensão de onde viemos afeta


dramaticamente nossa atitude sobre o propósito e o valor da vida. As pessoas e, por
conseguinte, suas sociedades possuem visões de mundo, na maioria das vezes buscando
responder às principais questões existenciais: quem somos, de onde viemos, para onde vamos
depois da morte...

O naturalismo, entendimento mais corrente na sociedade atual, exclui completamente a


possibilidade de que fomos criados por um ser superior e eterno, dotado de inteligência, poder
e criatividade. Na verdade, os naturalistas ignoram 
qualquer evidência que aponte para a existência de algo para além de energia e matéria. Sob o
rótulo de “cientistas”, tentam esconder que sua maneira de compreender o mundo não possui
qualquer amparo, carecendo de evidências empíricas e explicações mais concretas.

Contrapondo a perspectiva naturalista, a doutrina bíblica da criação nos apresenta um ser


(Deus) que existe desde a eternidade, bem como um mundo que teve, de fato, um começo.
Ainda, cabe frisar que, quando Deus trouxe a raça humana à existência Ele exclamou que tudo
aquilo que fizera era muito bom (Gênesis 1.31). Não sem razão o texto de Paulo aos Efésios
enuncia que somos poiema dEle (2.10), Sua obra-prima.

Uma das resultantes dessa Imago Dei  está na dignidade humana, princípio reconhecidamente


conquistado pelo cristianismo. Embora na sociedade ocidental os absolutos morais estejam
sendo abandonados por parte da cultura, inclusive com a tentativa de se negar que haja uma
verdade universal e incondicional, é certo que a lógica de proteção do homem decorre desses
absolutos.

Fundado nesse padrão absoluto, o homem, em sua condição original, era “capaz de não pecar”
(posse non peccare), como definiu Agostinho. Havia, pois, duas liberdades. A primeira era
baseada na possibilidade de escolher; a segunda, por sua vez, estava ligada à “verdadeira
liberdade”, que deve ser entendida como a viabilidade de obedecer totalmente a Deus.
Assim, embora Adão e Eva tivessem a capa¬cidade de agir conforme o estado de perfeição no
qual foram criados, a desobediência provocou uma depravação universalizada em toda a
criação, separando o homem do Criador. Mas o pecado não ficou restrito ao primeiro casal.
Conforme declarou o apóstolo Paulo, “assim como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque
todos pecaram.” (Romanos 5.12) Aqui reside sua amplitude: todos já nascem maculados.

Nesse sentido, a enganosidade e corrupção do nosso coração (Jeremias 17.9), inclusive, faz
com que tenhamos não somente uma inclinação para o pecado, mas, sim, que sejamos
escravos dele (Romanos 3.9-18). Seguindo os preceitos agostinianos, o homem, após a queda,
passou à condição de “não ser capaz de não pecar” (non posse non peccare).

O ponto nevrálgico, pois, é que desde o pecado original nos torna¬mos espiritualmente mortos
(Colossenses 2.13) e, ao invés de “filhos de Deus”, partilhamos da condição de “filhos da ira e
da desobediência” (Efésios 2.3 e 5.6). Todos estão condenados pelo pecado, e isso faz com
que, para Deus, não haja distinção entre criminosos e não criminosos, como se estes fossem
melhores que aqueles – “a Escritura encerrou tudo sob o pecado” (Gálatas 3.22a).

Não obstante, apesar de ser completamente inclinado para o pecado (“depravação total” é a
expressão usada pelos teólogos) e constantemente instigado à maldade (Gênesis 3.1-7), isso
não retira do homem a responsabilidade pessoal e intransferível por suas atitudes, devendo
delas prestar contas.

Dessarte, os seres humanos, mesmo depois da queda, mantém sua capacidade de fazer
escolhas: eles optam por fazer as escolhas erradas e buscam, inclusive, a satisfação de suas
concupiscências no próprio pecado (Efésios 4.19; e Tiago 1.14).

Mas, se tudo se resumisse a isso, a vida na terra já deveria ter se extinguido há bastante
tempo. Só que Deus “é bom para todos” (Salmos 145.9), até “para com os ingratos e maus”
(Lucas 6.35) e, por conta de Sua disposição favorável aos homens, não deseja a morte do
ímpio (Ezequiel 18.23). Todos os homens, pois, indistintamente, são alcançados por essa
graça, inclusive aqueles que sequer acreditam que Deus existe.

Nesse passo, a Bíblia nos é clara quanto a algumas formas que Deus usa para atingir Seu
desiderato de Se mostrar benigno a todos os homens, bem como os efeitos produzidos. Numa
apertada síntese, Deus usa da Sua revelação (abrange tanto o conhecimento de Si quanto de
Suas normas), dos governos, das relações sociais (integramos aqui as famílias e a opinião
pública) e de Suas punições e recompensas como meios de operação da graça comum. Pelos
frutos dessa ação divina, Ele suspende por dado tempo a sentença de morte que recaiu sobre
a humanidade, nos cerca com Suas bênçãos naturais, transmite percepções de moralidade e
verdade, viabiliza a prática do bem público e da justiça civil, e, para o que mais nos importa no
presente estudo, refreia o pecado humano.

Todavia, se Deus usa da graça comum, por vários meios, para conter o pecado do homem, por
que ainda há crimes e violações de toda ordem? Por conta da resistibilidade da graça comum,
mantida que está a possibilidade de escolha do homem; se assim não fosse, seríamos meros
robôs ou marionetes nas mãos de um deus-diabo.

Para além disso, importa-nos pensar na conversão, uma obra operada pelo Espírito Santo, que
cancela nossos pecados (Atos 3.19) e é capaz de transmutar um co¬ração de pedra em carne
(Ezequiel 11.19): trata-se do estado de “ser capaz de não pecar” – posse non peccare, como
afirmou Agostinho. A redenção, por conseguinte, viabiliza em nós a condição de não mais
vivermos em um constante pecar (Romanos 6.1-2; e Efésios 2.1-7), pois é o próprio Deus
quem nos chama ao arrependimento e a uma novidade de vida (Romanos 6.4; Efésios 4.17-24;
e Colossenses 3.5-11).

Porém, por ainda vivermos num mundo caído, apesar de chamados à perfeição (1 Pedro 1.16),
somos incapazes de cumpri-la cabalmente nessa terra (1 João 2.1-2). A expressão latina simul
justus et peccator, cunhada por Lutero, expõe a dualidade de dimensões – simultaneamente
justo e pecador: somos justos porque Deus imputa em nós a perfeita retidão de Cristo; ou seja,
Ele assim nos declara não porque façamos algo, mas porque Jesus o fez por nós. Lado outro,
encontramo-nos ainda pecadores porque, de fato, descumprimos os mandamentos divinos.

Por fim, quando tratamos de injustiça, o sentimento que se aloja no coração é mais profundo
que qualquer necessidade física: enquanto essa pode ser saciada num dado momento, aquele
repousa em uma esperança futura, que independe de nossos esforços. Assim sendo, Deus já
designou um dia em que irá exercer juízo sobre todo o mundo. Esse julgamento será perfeito,
posto que efetuado por um justo juiz, que não comete os mesmos erros que experimentamos
em nossos tribunais. Esse magistrado é onisciente e, portanto, sabe de todos os fatos ou
circunstâncias dos casos que se achegam à Sua corte, não estando sujeito aos acidentes que
resultam da ignorância. Esse juiz também é onipotente, sendo perfeitamente capaz de impor a
justiça: inexistem forças contrárias que possam impedir a execução de suas sentenças.

Feita essa breve exposição dos quatro pilares da teologia sistemática – criação, queda,
redenção e consumação –, resta-nos aplicarmos tais princípios à capelania prisional, que não
visa apenas prestar amparo religioso aos integrantes da mesma comunidade de fé, mas
também busca propiciar ao recluso uma oportunidade de ressocialização.

Ao lhe falar sobre “a realidade da criação”, apresenta ao preso uma perspectiva de valores
universais que devem ser cultivados e somente são possíveis por causa da ação bondosa de
Deus, além de transmitir ao encarcerado uma esperança de restauração da Imago Dei.

Ao ponderar quanto ao “homem afastado de Deus”, lhe oferece uma reflexão sobre a origem
pecaminosa de boa parte dos delitos e a manutenção da responsabilidade pessoal pelo crime,
pois sempre há uma ação alternativa à violação da norma penal. Outrossim, o anúncio da
notícia de que “todos pecaram” retira do preso a ideia de que ele é a pior de todas as pessoas,
impossível de receber o perdão divino e incapaz de se perdoar.

Quando trata da “corrupção dos padrões bíblicos”, o capelão o leva a avaliar sua torpeza diante
de Deus. Além disso, ancora em seu pensamento questões afetas aos (i) relacionamentos
familiares – como eram antes do crime, como estão na cadeia e quais as projeções do recluso
sobre isso –, (ii) ao trato com o dinheiro – apartando a avareza e o ganancioso consumismo
inveterado – e (iii) ao pecado estrutural – propiciando uma significação bíblica de sua condição
social.

Ademais, a capelania tem o condão de mostrar ao recluso como Deus lhe é gracioso, sendo
que o respeito à sua dignidade humana proporciona, inclusive, a elevação da autoestima. Para
alguns, aliás, a prisão pode ser tida como providência divina contra uma morte prematura nas
mãos de outros bandidos ou em confronto com policiais.

Ainda, a assistência espiritual fortalece no encarcerado os valores bíblicos, a percepção de


uma justa punição pelo mal cometido, a busca por romper o estigma social e solidificar os laços
familiares despedaçados e, por fim, a recompensa divina pelas boas obras. O próprio
testemunho do apóstolo Paulo lhes pode servir de exemplo, pois, mesmo preso injustamente, o
discípulo tardio (1 Coríntios 15.8) manteve sua confiança e esperança em Deus, sem perder a
alegria e a fé.

Finalmente, ao pontuar os preceitos envoltos na consumação, além de fomentar nos presos os


desejos, sentimentos e atitudes que são buscados através do processo de ressocialização,
aludida percepção de uma justiça final e perfeita nos capacita a perdoar aqueles que algum dia
já causaram algum mal a nós ou a algum ente querido.

Por conseguinte, importa que realizemos a capelania porque é nosso dever:

1) nos solidarizar com os presos, também criados à imagem de Deus, exerçam eles, ou não, a
mesma crença;
2) assistir aos “domésticos da fé”, sejam irmãos convertidos na prisão ou mesmo aqueles que,
por ocasião do pecado, estavam nas fileiras de nossas igrejas e acabaram infringindo a lei
penal;
3) ansiar por sermos instrumentos de Deus para que os reclusos, diante dos ensinos bíblicos,
passem a se portar de maneira diferente na prisão e quando dela saírem (agir da graça
comum); e
4) evangelizar (Marcos 16.15), crendo que Deus, de forma soberana, é capaz de levar o
homem ao arrependimento (Romanos 2.4) e à mudança de vida (Romanos 6.4; 2 Timóteo
2.24-26).

Nossa expectativa, aqui, foi lançar luzes sobre um tema complexo e pouco abordado de
maneira sistemática e aprofundada. Apesar da concisa exposição, esperamos também ter
encorajado igrejas e irmãos para que cuidem de uma parcela da população tão menosprezada,
cumprindo o Ide cristão.
 
 

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