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Nº 539 | Ano XIX | 19/8/2019

Future-se
Do ethos ao business em tempos de

Roberto Romano Tatiana Roque


Ivan Domingues José Geraldo de Sousa Junior
Carolina Catini Renato Janine Ribeiro
Boaventura de Sousa Santos Andréa Caldas
Marina Maia Flávio Nunes
EDITORIAL

Do ethos ao business em
tempos de “Future-se”

O
governo Bolsonaro anuncia o programa em detalhes o Future-se e vê como principal
Future-se. Os pilares de sustentação da problema “o caráter inteiramente vendido à ló-
proposta são a abertura das academias gica privatizante e mercadorizadora do projeto
a parcerias com a iniciativa privada, gestão des- econômico-político que está por trás, deliran-
centralizada e sem a presença da máquina esta- te do ethos público universitário que marca o
tal, além do financiamento associado a fundos sentido social e político da universidade como
de investimentos no mercado de capitais. condição estratégica para o desenvolvimento
A presente edição da revista IHU On-Line soberano do país”.
debate a proposta com especialistas de diferen- O ex-ministro da Educação, filósofo e profes-
tes áreas do conhecimento. sor na USP, Renato Janine Ribeiro, é taxati-
Para Roberto Romano, professor de Ética vo ao afirmar que o Future-se é uma proposta de
e Filosofia na Unicamp, a proposta visa apenas quem não conhece a realidade da universidade
uma visão eficiente – nos modelos do mercado – no Brasil.
e se descola da acadêmica. Para ele, assim como Andréa Caldas, doutora em Educação e
as universidades públicas, as confessionais e professora na UFPR, chama atenção de como
2 comunitárias “serão produtoras de dividendos a inserção de lógicas mercadológicas pode ar-
para acionistas e não geradoras de ideias”. ruinar o ambiente acadêmico e, logo, as produ-
Ivan Domingues, filósofo e professor titular ções científicas.
da UFMG, também vê a proposta como algo que A proposta do Future-se compreende, além das
desvirtua a gênese da universidade, transfor- universidades, os Institutos Federais de Edu-
mando seu ethos em business. cação. Flávio Luis Barbosa Nunes, reitor e
Carolina Catini, professora do departamen- professor do Instituto Federal Sul-rio-granden-
to de Ciências Sociais da Educação da Faculda- se - IFSul, destaca que essas instituições são
de de Educação da Unicamp, vê na proposta a tão prejudicadas quanto a academia. Para ele,
revelação de mais uma das faces da financeiriza- a gestão estatal é fundamental para assegurar o
ção e privatização dos direitos sociais que move acesso universal à formação integral do sujeito.
o atual governo. A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
O professor catedrático da Faculdade de Econo- lente semana!
mia da Universidade de Coimbra, em Portugal,
Boaventura de Sousa Santos, analisa como a
educação e a geração de ciência vão se converten-
do, historicamente, num lucrativo mercado.
Para Marina Campos de Avelar Maia,
doutora em Educação e pesquisadora associada
ao Graduate Institute of International and Deve-
lopment Studies, da Suíça, corre-se o sério risco
de gerir uma universidade reduzida a lógicas de
Imagem da capa:
grandes redes internacionais de fast-food.
Fachada da Facul-
Tatiana Roque, professora do Instituto de dade de Direito da
Universidade Federal
Matemática da UFRJ, destaca que esses ataques
do Paraná – UFPR,
à universidade precisam ser compreendidos no durante manifestação
contexto desse governo que, segundo ela, faz contrária ao contingen-
avançar a democracia iliberal. ciamento de recursos
pelo Governo Federal/
José Geraldo de Sousa Junior, doutor em Foto: Associação de
Direito e professor e ex-reitor da UnB, analisa Professores UFPR

19 DE AGOSTO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Tema de capa | Roberto Romano: Boa gestão universitária desligada do espírito acadêmico
gera apenas burocracia e repressão intelectual
13 ■ Tema de capa | Ivan Domingues: O Future-se e a substituição do ethos pelo business
22 ■ Tema de capa | Carolina Catini: Educação: revelação de mais uma face da financeirização e
privatização dos direitos sociais
29 ■ Tema de capa | Boaventura de Sousa Santos: O lucrativo mercado da educação e da ciência
que extermina a universidade pública e democrática

34 Tema de capa | Marina Campos de Avelar Maia: A mercantilização da educação e o risco da
escola McDonalds e dos alunos hambúrgueres

40 Tema de capa | Tatiana Roque: Em tempos de democracia iliberal, estratégia é desqualificar
verdades científicas

44 Tema de capa | José Geraldo de Sousa: Future-se valoriza o privado e não acena para o ethos
acadêmico

51 Tema de capa | Renato Janine Ribeiro: Future-se: uma proposta de quem não conhece a
realidade da universidade

57 Tema de capa | Andréa Caldas: Future-se propiciará o “darwinismo educacional”
60 ■ Tema de capa | Flávio Luis Barbosa Nunes: Educação é bem social que precisa manter a
natureza pública 3
63 ■ Outras edições

Diretor de Redação Patrícia Fachin, Cristina Guerini,


Inácio Neutzling Evlyn Zilch, Stefany de Jesus Rocha,
(inacio@unisinos.br) Wagner Fernandes de Azevedo e
Amanda Bier.
Coordenador de Comunicação - IHU
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Redação
João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
(joaovs@unisinos.br)
ISSN 1981-8769 (impresso)
Patricia Fachin – MTB 13.062/RS
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Wagner Fernandes de Azevedo
(wfazevedo@unisinos.br)
A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Projeto Gráfico CEP: 93022-000
Ricardo Machado Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
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Editoração
A versão impressa circula às terças-fei- Gustavo Guedes Weber
ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Nestor Pilz
Inácio Neutzling, César Sanson, (nestor@unisinos.br)

EDIÇÃO 539
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

Bolsonaro e a proposta de criar uma sociedade


compatível com o capitalismo neoliberal
“A estratégia do governo é criar uma neblina em torno das suas intenções
efetivas, fazendo com que a sociedade preste atenção em questões triviais.
Enquanto se opera isso, se assume o projeto do Guedes que não tem mais
lugar no mundo de hoje.”
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Dispo-
nível em http://bit.ly/2KRVqRI

Uberização: a edição da velha ideia do


trabalho amador
“Ela [a uberização] pode ser sintetizada como a consolidação do traba-
lhador em trabalhador just in time. Ou seja, um trabalhador inteiramente
desprovido de direitos, garantias, segurança.”
Ludmila Costhek Abílio é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho
– Cesit, na Faculdade de Economia da Unicamp. Disponível em http://bit.ly/2N6wJUt

4 A exclusão previdenciária e a criação de uma


massa de inaposentáveis
“No geral, o que se vê ao longo da história é, de um lado, uma sucessão de
governos se apropriando dos fundos previdenciários para resolverem seus
problemas fiscais e, de outro lado, um conjunto resistente de servidores
tentando preservar os recursos.”
Filipe Costa Leiria é auditor público externo junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande
do Sul – TCE-RS. Disponível em http://bit.ly/30aJe52

Os impactos ambientais das linhas de


transmissão de energia elétrica
“Eu acredito que as linhas realmente sejam necessárias, mas aposto no de-
senvolvimento e complementação de alternativas como geração de energia
descentralizada. Imagine se cada um pudesse ter seu próprio painel solar,
produzindo energia para sua demanda e ainda, talvez, sobressalente?”
Larissa Donida Biasotto é graduada em Ciências Biológicas e mestra em Ecologia pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Disponível em http://bit.ly/2Ha6VD7

Agricultura, pecuária e garimpos: as causas


do desmatamento na Amazônia Legal
“Alertas de desmatamento mensais de anos anteriores têm indicado a
ocorrência de desmatadores nessas áreas de preservação”.
Antônio Victor Fonseca, graduado em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Pará –
UEPA e pesquisador do Imazon.

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REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

“A terra esgotada e a Clima: é preciso uma O ditador, a sua “obra”,


desumanidade que nova visão sistêmica e o grande blefe do
nos destrói” senhor Guedes

Essas são questões delica- “Acabou o tempo da indig- “Ainda é tempo de impedir
das que se tornaram a linha nação ou, pior, da indiferen- que o fanatismo ideológico
discriminante para uma so- ça. É preciso agir, e rapida- do senhor Guedes destrua 90
ciedade mais ou menos hu- mente também.” anos de história da econo-
mana. O Papa trata delas O texto é do chef italiano Carlo Petrini, mia brasileira, para atender
com a maior liberdade, não fundador do movimento Slow Food, ao interesse de um pequeno
pressionado pela urgência reproduzida nas Notícias do Dia de grupo de banqueiros, finan-
12-8-2019, disponível em http://bit.
de ter votos a pedir. ly/2H9NoCV;
cistas e agroexportadores,
O comentário é de Carlo Di Cicco, jor- passando por cima do inte-
nalista especializado em assuntos do resse do ‘resto’ da sociedade
Vaticano, reproduzido nas Notícias do brasileira”.
Dia de 12-8-2019, disponível em http://
bit.ly/2PflGv9; Escreve José Luís Fiori, professor titu-
lar de Economia Política Internacional
UFRJ, reproduzido nas Notícias do Dia
de 13-8-2019, disponível em http://bit.
ly/2OXxa68.

“Não gosto do O Diálogo de Os invisíveis


helicóptero porque ele Interconvicções de Manaus
atira para baixo e as
pessoas morrem”

Crianças do Complexo de “Os processos migratórios, Silêncios, extensões de água


Favelas da Maré descrevem os novos movimentos reli- prateada, faixas de terra co-
horror da vida sob fogo cru- giosos, a individualização da bertas por uma vegetação
zado em mais de 1.500 car- espiritualidade, os chama- densa e escura. Do barco
tas enviadas para a Justiça dos religiosos “à la carte”, descascado embalado pelas
do Rio, que restabelece re- aumentaram exponencial- ondas preguiçosas do Rio Ne-
gras mínimas para opera- mente, trazendo um novo gro, Manaus à distância apa-
ções policiais no local. desafio para o Estado laico rece uma enorme aldeia flu-
A reportagem é de Felipe Betim, diante do pluralismo religio- tuante à mercê do sobe-desce
reproduzida nas Notícias do Dia, de so e de convicções.” da água.
15-8-2019, disponível em http://bit.
O texto é de Rita Macedo Grassi, A reportagem é de Stefania Falasca,
ly/2TDI3cb.
mestra em Ciências da Religião pela jornalista, que trabalha na Conferência
PUC Minas e membro do Grupo Episcopal Italiana – CEI, e no jornal ita-
de Pesquisa Religião, Pluralismo e liano Avvenire, enviado pela jornalista
Diálogo – REPLUDI, publicado nas e publicado nas Notícias do Dia de
Notícias do Dia, 03-06-2019, disponível 16-08-2019, no sítio do IHU. Disponível
em 16-8-2019. Disponível em http://bit. em http://bit.ly/2ZcooFs.
ly/2NhdjN0.

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

Boa gestão universitária desligada


do espírito acadêmico gera apenas
burocracia e repressão intelectual
Assim como as universidades públicas, as confessionais e
comunitárias “serão produtoras de dividendos para acionistas
e não geradoras de ideias”, lamenta Roberto Romano
Patricia Fachin

O
que se vive hoje nas universi- cracia, repressão intelectual contra os
dades brasileiras pode ser clas- pesquisadores”.
sificado como “uma marcha a Na avaliação de Romano, “as universi-
ré para antes do século XVII, um boi- dades confessionais e comunitárias serão
cote direto às Luzes do século XVIII”, conduzidas, como as públicas, ao plano
diz o filósofo Roberto Romano à IHU do mercado e dos serviços pagos. Elas se-
On-Line ao resumir o atual estado das rão produtoras de dividendos para acio-
universidades no país, que atuam sem nistas e não geradoras de ideias, como
autonomia e reproduzem a lógica de
era o caso das PUCs, Metodistas, pres-
operação do Executivo.
biterianas no passado recente”. E adver-
Na entrevista a seguir, concedida por te: “Engana-se quem, nas universidades
e-mail, o professor da Unicamp afirma comunitárias, imagina que elas poderão
6 que o programa Future-se não traz no- resistir ao mercado onipotente”.
vidades para as universidades. “A ‘no-
Roberto Romano é professor de
vidade’ é velha”: sempre o programa
Ética e Filosofia na Universidade Esta-
de privatizar o mais possível nos cam-
dual de Campinas - Unicamp. Cursou
pos da pesquisa e do ensino levando as
doutorado na École des Hautes Études
universidades públicas a buscar finan-
en Sciences Sociales - EHESS, França.
ciamentos que definam o seu espectro
Escreveu, entre outros livros, Igreja
de investigação, pedagogia etc. Com a
privatização claríssima no Future-se, contra Estado. Crítica ao populismo
ocorre um golpe mortal na autonomia católico (São Paulo: Kairós, 1979), Con-
universitária. Os seus planos, doravan- servadorismo romântico (São Paulo:
te, não serão definidos interna corporis Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A
ou pelo governo. Eles serão fornecidos monstruosidade no século XVIII (São
pelo mercado de ações. É o fim de toda Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã
pesquisa livre”, lamenta. Ele adverte e outros desafios (São Paulo: Perspecti-
ainda que “a receita para as boas ges- va, 2004) e Os nomes do ódio (São Pau-
tões universitárias, se desligada do lo: Perspectiva, 2009).
espírito acadêmico, gera apenas buro- Confira a entrevista.

IHU On-Line - Pode nos con- corporações nas tarefas ligadas à anterior à centralização monárquica.
tar sobre a história das univer- contabilização, direitos, formas de Gradativamente elas incorporam,
sidades: qual sua origem, por relacionamento entre autoridades, além do estudo teológico, a medici-
que, como e para que elas fo- dos bispos ao papa, dele aos muni- na. Disciplinas como a filosofia eram
ram criadas? cípios. A universidade de Bolonha próximas das questões enfrentadas
teve autonomia desde o início por- pela fé cristã frente a seus adversá-
Roberto Romano - Algumas que servia a corporação dos advoga- rios muçulmanos. Instaladas nas ur-
das primeiras universidades, como dos, sempre em luta contra os vários bes, as universidades atraíam grande
a de Bolonha, surgiram para ajudar poderes que restaram do feudalismo quantidade de pessoas pobres que,

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“As universidades eram


praticamente as únicas
corporações abertas a todos”

a exemplo de seus pais, fugiam do das monarquias, as universidades do liberdades, salários, condição es-
guante feudal. Ao chegar nas cidades passam a fornecer técnicos de go- tável, respeito. No mesmo passo em
aquelas pessoas se instalavam nas verno (a expressão é de I. Kant2, no que os Estados definiam suas fron-
periferias onde, com os não admiti- Conflito das Faculdades) aos teiras e funções, as universidades di-
dos nas corporações (estas eram fe- bispos, papas, reis. Recebem muita minuem o número de seus aderentes
chadas aos antigos participantes ou atenção os advogados e contadores, vindos de todos os cantos. Mesmo
parentes), formavam massas temi- médicos e formados no direito ca- assim, ainda no século VXII, época
das pelos burgueses e aristocratas. nônico e romano. Além, claro, dos de ouro da Raison d’état, a procura
Como os restos de feudalismo exis- teólogos que sustentam as teses con- de talentos vindos de toda a Europa
tiam pela Europa inteira, os candida- flitantes no interior da Igreja e nas é intensa. Surgem universidades em
tos aos poucos empregos urbanos e à lutas clericais contra os reis. Grada- quase todas as terras e, com elas, a
universidade vinham de toda parte. A tivamente as despesas de manuten- necessidade de “mão de obra” ade-
experiência das viagens se integrou ção institucional são assumidas pela quada. É assim que podemos recor- 7
assim, desde o início na vida univer- Igreja e pelos monarcas. Tal dispên- dar o convite do Palatino a Spinoza3,
sitária. As universidades eram prati- dio exige da universidade uma dimi- para ensinar em Heidelberg. O go-
camente as únicas corporações aber- nuição da liberdade na pesquisa, nos vernante garante que o filósofo terá
tas a todos. Estudantes e mestres se debates, na administração dos cam- toda liberdade de pesquisa e ensino,
reuniam para o estudo, a discussão, pi. Se estabelece uma concorrência desde que não toque em problemas
o exame de autores conhecidos. Ha- entre reis, papas e demais poderes eclesiásticos. A resposta de Spinoza
via uma prática de emergente demo- para arrebanhar em determinados é célebre: “ignoro limites para minha
cracia na escolha dos dirigentes. Os centros universitários o maior nú- capacidade de filosofar”.
reitores recebiam mandatos de seis mero de professores famosos, alunos
meses ou pouco mais. Como a maior talentosos etc. Muita correspondên- Universidades: fábricas de
parte dos estudantes vinha do campo cia foi empregada por mandatários técnicos
e nele, diziam os citadinos, seria pos- para conduzir aqueles cérebros às
sível discutir se os camponeses (como universidades de seu país. O rei da A transformação das universidades
as mulheres) eram seres humanos Inglaterra, por exemplo, escreveu em fábricas de técnicos de governo
perfeitos, surge a prática do trote: “os aos professores na França oferecen- foi rápida. Le Goff lembra que o rei-
bichos”, ao passar pelos trotes, de- tor Gerson já define um programa de
les saíam como pessoas. Jacques Le proteção da propriedade privada e
Goff1 (18 Ensaios sobre a Idade
2 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, consi- apoio ao poder secular ou religioso.
derado como o último grande filósofo dos princípios da
Média) tem preciosas achegas sobre era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um Pouco importam a legitimidade e o
grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias
os costumes acadêmicos da universi- idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de
direito, disse Gerson, “desde que os
dade nascente. partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre donos das galinhas durmam sosse-
os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon),
isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mes- gados”. E temos a trilha que condu-
Com o crescimento do aparato bu- mo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto
ziu ao papel mais triste da universi-
de conhecimento científico, como até então pretendera a
rocrático e centralizador da Igreja e metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mun- dade: o de instrumento de repressão
do dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a prio-
ri da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do ao pensamento livre. As faculdades,
entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004,
1 Jacques Le Goff (1924): medievalista francês, formado dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador
em história e membro da Escola dos Annales. Presidente, com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível em 3 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632–1677): filósofo ho-
de 1972 a 1977, da VI Seção da École des Hautes Études http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant, foi publicado o landês. Sua filosofia é considerada uma resposta ao dua-
en Sciences Sociales (EHESS), foi diretor de pesquisa no Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emma- lismo da filosofia de Descartes. Foi considerado um dos
grupo de antropologia histórica do Ocidente medieval nuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser grandes racionalistas do século 17 dentro da Filosofia Mo-
dessa mesma instituição. Entre outras altas distinções, Le acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edi- derna e o fundador do criticismo bíblico moderno. Con-
Goff recebeu a medalha de ouro do Centre National de la ção 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada fira a edição 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitulada
Recherche Scientifique (CNRS), pela primeira vez atribuída A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, dis- Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento, dis-
a um historiador. (Nota da IHU On-Line) ponível em https://goo.gl/SIII5H. (Nota da IHU On-Line) ponível em https://goo.gl/GEGuI5. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

sobretudo a de Teologia, se transfor- tos satíricos e lúcidos como os de sidade escritos por Fichte9, Hegel10,
mam, ainda na escrita de Le Goff, Kant (sobretudo o já citado Confli- Schelling11, Humboldt12. Este último
na “corporação dos queimadores to das Faculdades), os escritos insistiu na divisão drástica: o ensino
de livros”. À espera, claro, de que dos Enciclopedistas, em particular era para ser feito nas universidades,
os autores dos livros fossem quei- o Plano de Uma Universidade a pesquisa nos institutos especiali-
mados. Praticamente toda a inte- para a Rússia, de Diderot8. zados. Desde então temos um des-
ligência europeia dos séculos XVII conforto no interior dos campi: a
Naquele texto o pensador imagi-
e XVIII produziu obras essenciais exigência de manter ao mesmo tem-
na a universidade como instituição
para a ciência e as humanidades po o ensino, a pesquisa e a extensão
onde a maioria dos saberes seriam
fora dos campi. Nomes como Lei- nem sempre trouxe bons resultados.
cultivados. É conhecida a sua tese: se
bniz4, Pascal5, Descartes6, Spinoza, Mas ainda resta o ideal próximo ao
a tarefa de elaborar um plano de es-
e tantos outros, ou foram persegui- de Bacon e Diderot: a universidade
tudos coubesse a especialistas, eles
dos ou ignorados pela universidade. como ponto de encontro de todos os
jamais chegariam a um ensino uni-
Mesmo intelectuais que exerceram saberes praticados pela humanida-
versal. Assim, o teólogo faria tudo
cargos políticos importantes, como de. E com preferência dedicada aos
convergir para o plano religioso, o
Francis Bacon7, perderam a luta mais pobres, com ingresso gratuito.
matemático faria o mesmo, levando
contra o conservadorismo teórico
tudo às matemáticas, o direito etc. IHU On-Line - Pode nos con-
e de costumes existente em Oxford
Ele propõe um sistema que engloba- tar um pouco sobre a história
e Cambridge. E assim chegamos às
ria, segundo graus de complexidade, das universidades brasileiras:
fortíssimas críticas das Luzes ao
todos os saberes e técnicas pratica- como, em que contexto e com
ensino universitário. Claro, desde
das socialmente. Como Descartes, quais projetos surgiram as uni-
longa data os humanistas europeus
Diderot só escrevia sobre as técnicas versidades públicas no país?
castigavam o pedantismo, o dogma-
unindo o saber científico de seu tem-
tismo, a cegueira acadêmica. Quan- Roberto Romano - Não tivemos
po e as técnicas empregadas pelos
do lemos as invectivas de Rabelais universidades no período colonial e
artesãos. Recusando toda hierarquia
contra a Sorbonne, sentimos o cli- também não as possuíamos após a
entre os saberes (as “Faculdades Su-
ma de intolerância e reacionarismo Independência. Existiram centros
8 periores de Teologia, Direito, Medi-
da corporação antes aberta a todos, de ensino superior na Igreja (a car-
cina e abaixo as demais disciplinas)
agora um castelo de privilegiados
ele abriu o campo para um espraia-
pelos reis ou papas ou burguesia
mento horizontal do conhecimento, 9 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): filósofo alemão.
rica. É em tal clima que surgem tex- Exerceu forte influência sobre os representantes do na-
quase copiando o plano de estudos cionalismo alemão, assim como sobre as teorias filosó-
para restaurar as ciências proposto ficas de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte decidiu
devotar sua vida à filosofia depois de ler as três Críticas
4 Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): filósofo, cien- por Francis Bacon. O mais relevante, de Immanuel Kant, publicadas em 1781, 1788 e 1790. Sua
tista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão. O uso investigação obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu
de “função” como um termo matemático foi iniciado por do ponto de vista político e social, é próprio editor que publicasse o manuscrito. O livro surgiu
Leibniz, numa carta de 1694, para designar uma quanti-
dade relacionada a uma curva, tal como a sua inclinação
ter ele proposto que a universidade em 1792, sem o nome e o prefácio do autor, e foi sauda-
do amplamente como uma nova obra de Kant. Quando
em um ponto específico. É creditado a Leibniz e a Newton não deveria ser privilégio dos ricos, Kant esclareceu o equívoco, Fichte tornou-se famoso do
o desenvolvimento do cálculo moderno, em particular o dia para a noite e foi convidado a lecionar na Universida-
desenvolvimento da integral e da regra do produto. Des- nobres, clérigos. Ela deveria acolher, de de Jena. Fichte foi um conferencista popular, mas suas
creveu o primeiro sistema de numeração binário moder- sem custos, os pobres. “Segundo as obras teóricas são difíceis. Acusado de ateísmo, perdeu o
no (1705), tal como o sistema numérico binário utilizado emprego e mudou-se para Berlim. Seus Discursos à na-
nos dias de hoje. Demonstrou genialidade também nos probabilidades”, dizia ele, “é mais ção alemã são sua obra mais conhecida. (Nota da IHU
campos da lei, religião, política, história, literatura, lógica, On-Line)
metafísica e filosofia. (Nota da IHU On-Line)
fácil encontrar mais gênios em chou- 10 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): filóso-
5 Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, físico e matemáti- panas do que em castelos”. fo alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de
co francês que criou uma das afirmações mais repetidas Aquino, desenvolveu um sistema filosófico no qual esti-
pela humanidade nos séculos posteriores (O coração tem vessem integradas todas as contribuições de seus princi-
razões que a própria razão desconhece), síntese de sua Como vemos, o que é vivido hoje pais predecessores. Sobre Hegel, confira a edição 217 da
doutrina filosófica – o raciocínio lógico e a emoção. (Nota no Brasil representa uma marcha IHU On-Line, de 30-4-2007, disponível em https://goo.gl/
da IHU On-Line) m0FJnp, intitulada Fenomenologia do espírito, de (1807-
6 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemá- a ré para antes do século XVII, um 2007), em comemoração aos 200 anos de lançamento
tico francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho dessa obra. Veja ainda a edição 261, de 9-6-2008, Carlos
revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso
boicote direto às Luzes do século Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, dis-
por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, XVIII. No século XIX as universida- ponível em https://goo.gl/D94swr; Hegel. A tradução da
que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. história pela razão, edição 430, disponível em https://goo.
Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e da des exercem um papel contraditório: gl/62UATd e Hegel. Lógica e Metafísica, edição 482, dis-
matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos ponível em https://goo.gl/lldAkv. (Nota da IHU On-Line)
e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comenta-
elas formavam burocratas civis e 11 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm Joseph von
dores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama religiosos e ao mesmo tempo pensa- Schelling, 1775-1854): filósofo alemão. Suas primeiras
de racionalismo continental (supostamente em oposição à obras são geralmente vistas como um elo importante
escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), dores que modificaram a cultura. É entre Kant e Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas
posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. (Nota da obras são representativas do idealismo e do romantismo
IHU On-Line)
assim que tivemos planos de univer- alemães. Criticou a filosofia de Hegel como “filosofia ne-
7 Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo, ensaísta gativa”. Schelling tentou desenvolver uma “filosofia po-
inglês, barão de Verulam e visconde de Saint Alban. É sitiva”, que influenciou o existencialismo. Entrou para o
considerado como o fundador da ciência moderna. Des- 8 Denis Diderot (1713-1784): filósofo e escritor francês. seminário teológico de Tübingen aos 16 anos. (Nota da
de cedo, sua educação orientou-o para a vida política, na A primeira peça importante da sua carreira literária é Let- IHU On-Line)
qual exerceu posições elevadas. Em 1584 foi eleito para a tres sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient, em que 12 Alexander von Humboldt [Friedrich Heinrich Ale-
câmara dos comuns. Sucessivamente, durante o reinado resume a evolução do seu pensamento desde o deísmo xander, Barão de Humboldt] (1769-1859): naturalista e
de Jaime I, desempenhou as funções de procurador-geral até ao cepticismo e o materialismo ateu, o que o leva à explorador alemão. Atuou também como etnógrafo, an-
(1607), fiscal-geral (1613), guarda do selo (1617) e grande prisão. Mas a obra da sua vida é a edição da Encyclopédie tropólogo, físico, geógrafo, geólogo, mineralogista, botâ-
chanceler (1618). Como filósofo, destacou-se com uma (1750-1772), que leva a cabo com empenho e entusiasmo nico, vulcanólogo e humanista, tendo lançado as bases de
obra onde a ciência era exaltada como benéfica para o apesar de alguma oposição da Igreja Católica e dos pode- ciências como Geografia, Geologia, Climatologia e Ocea-
homem: o Novum Organum. (Nota da IHU On-Line) res estabelecidos. (Nota da IHU On-Line) nografia. (Nota da IHU On-Line)

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go de eclesiásticos especializados em tes de 32. A missão francesa ajudou dos nos vestibulares. Criou-se então
teologia e direito canônico) e leigos a formar o plano de pesquisas e de a primeira rede nacional de ensino
(Faculdades de Direito, Medicina). ensino na USP, o que deu a ela um privado, cujos lucros foram imensos
Boa parte da elite brasileira estuda- caráter clássico e ao mesmo tempo para seus proprietários. Trata-se dos
va na Europa, em Portugal e demais contemporâneo. Uma rede de ins- “cursinhos para o vestibular”. A sua
países como a França, a Alemanha titutos isolados no Estado de São propaganda especial era a que colo-
etc. Parece anedota, mas a Univer- Paulo mudou a face das cidades e cava em cartazes, no rádio e na TV,
sidade do Brasil foi instaurada para regiões paulistas, ajudando a apri- os que conseguiram entrar para as
conceder um título acadêmico ao morar procedimentos industriais, públicas, tendo cursado as escolas
rei da Bélgica que visitaria o país. agrícolas e científicos. Com a im- especializadas em vestibular. Caras,
No debate sobre as possíveis uni- plantação da Unesp, tais institutos tais instituições privadas serviam
versidades se enfrentaram a Igreja formam um plano coerente, o que como gargalo de entrada aos cam-
e os líderes positivistas e liberais. veio ajudar ainda mais o desenvolvi- pi oficiais. Gradativamente aquelas
Os segundos eram contra a Univer- mento econômico e social do interior escolas passaram a formar “univer-
sidade porque temiam a primeira. paulista. A Unicamp veio encerrar o sidades” que passaram a acolher es-
Eles consideravam perigoso colocar ciclo de saberes e intervenção na tudantes com menores recursos. A
o ensino superior nas mãos de uma vida mais ampla do interior. Jun- qualidade do ensino e a carreira do-
instituição eclesiástica “atrasada”, tas, as três universidades paulistas cente naqueles centros constituem
não própria ao mundo moderno. trazem riquezas ao país, em troca de fatos lastimáveis.
Assim, os positivistas foram opostos um financiamento do Estado que se
à criação de universidades e favorá- baseia em parcela do ICMS. Patentes
veis ao ensino científico e técnico. em grande quantidade evidenciam o
As tensões se prolongaram, em ou- quanto as três instituições são estra-
tégicas em termos regionais, nacio-
“Praticamente
tros patamares, durante a ditadura
Vargas. Defensores do ensino laico nais, internacionais. toda a
se defrontaram com os que lutavam
pelas teses eclesiásticas. Podemos
A Universidade de Brasília, resul-
tado de um plano de país indepen- inteligência 9
dizer que algumas figuras foram
icônicas no período: Alceu Amoroso
dente e soberano, moderna em todos
os sentidos, foi duramente atingida europeia
Lima13, católico que operou durante
muito tempo no Ministério da Edu-
pela ditadura implantada em 1964.
Aliás, as universidades paulistas
dos séculos
cação definindo os curricula, sobre-
tudo no campo das humanidades, e
também sofreram com a repressão
definida no regime autoritário. As
XVII e XVIII
Gustavo Capanema14 e seus aliados,
que tentaram outras vias diferen-
Universidades federais se mantive-
ram em número estável até o gover-
produziu obras
tes da religiosa para os campi. As
Pontifícias Universidades Católicas
no de Luiz Inácio da Silva, quando
vários campi foram implantados em
essenciais para
foram instauradas no mesmo movi- todas as regiões. a ciência e as
mento da pastoral mais ampla, que
na época definia o Brasil como “país
Há um aspecto perverso nas rela-
ções entre as universidades públi- humanidades
fora dos campi ”
de missão”. cas e os níveis inferiores de ensino.
Até 1965 o padrão do ensino médio
Universidade laica brasileiro era dos mais elevados da
A primeira universidade efetiva- América do Sul. Mas ele não era
mente laica surge com a USP, na aberto para grandes massas. Com Programas de financia-
luta entre o Estado de São Paulo, a ditadura, as escolas oficiais de mento de estudos universi-
ensino médio passaram a receber tários
vencido na Revolução Constitucio-
contingentes sempre maiores de
nalista contra o poder central. O
alunos, o que impossibilitou manter Nos governos Luiz Inácio e Dilma,
lema da USP (“A ciência vence”) era
o nível elevado do ensino anterior. como continuidade do governo FHC,
um recado sutil aos donos do mando
Ao mesmo tempo, as universidades surgem programas de financiamen-
federativo: com a ciência seria pos-
públicas continuaram com seu pú- to de estudos em escolas privadas
sível atingir os alvos dos insurgen-
blico restrito a determinadas clas- de ensino superior. Embora tenham
13 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): nascido no Rio de
ses sociais, mais próximas da classe ajudado muitos estudantes a ob-
Janeiro, crítico literário, professor, pensador, escritor e lí- média abastada. Assim, as escolas ter uma qualificação superior, tais
der católico. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde.
(Nota da IHU On-Line) de ensino médio oficiais não ofere- programas ajudaram de fato a soli-
14 Gustavo Capanema (1900-1985): político mineiro. Foi
o ministro que mais tempo ficou no cargo em toda a his-
ciam uma formação própria para dificar financeiramente os proprie-
tória do Brasil. (Nota da IHU On-Line) fazer seus egressos serem aprova- tários das “universidades” privadas.

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

Empresas como a Kroton passaram a as universidades públicas a buscar ber15 no importante texto intitulado
oferecer ações na bolsa, comprar esco- financiamentos que definam o seu Ciência como Vocação (Wis-
las, enfim, definiram um padrão capi- espectro de investigação, pedagogia senschaft als Beruf, 1922). Um
talista e rentista para o suposto ensino etc. Com a privatização claríssima discurso weberiano a ser lido e me-
superior. No mesmo passo as univer- no Future-se, ocorre um golpe mor- ditado com afinco.
sidades públicas iniciam programas tal na autonomia universitária. Os
de cotas para estudantes advindos do seus planos, doravante, não serão
ensino médio oficial, pobres, negros, definidos interna corporis ou pelo IHU On-Line - Os defensores
indígenas. Quando tais programas governo. Eles serão fornecidos pelo das universidades mencionam
estavam apresentando seus primei- mercado de ações. É o fim de toda a necessidade de elas assegura-
ros frutos houve o golpe contra o go- pesquisa livre. rem a sua autonomia, mas há
verno Dilma. A partir daí se inicia o anos o senhor critica a falta de
desmonte das universidades públicas, autonomia das universidades.
os ataques às políticas de cotas, o des- Por que as universidades não
mantelamento grave do incentivo à IHU On-Line - Como o progra- são autônomas, na sua avalia-
pesquisa. O Brain Drain se acelera e ma possivelmente vai impactar ção? O que caracterizaria uma
sua rapidez permite prever um esva- as universidades privadas, es- universidade autônoma?
ziamento dos laboratórios brasileiros. pecialmente aquelas com fins
públicos, como as confessio- Roberto Romano - A Constituição
Como se pode notar, o horizonte para
nais e comunitárias? de 88 é um documento heteróclito em
as universidades oficiais brasileiras
termos lógicos e doutrinários. Nela se
não é róseo. Pelo contrário, a ameaça Roberto Romano - As universi- apresentam formas jurídicas diferen-
da sua privatização é a cada instante dades confessionais e comunitárias tes e não raro conflitantes, como a que
mais patente. Um clima de caça às
serão conduzidas, como as públicas, defende o Estado de Direito e o Estado
bruxas se instalou com o governo Bol-
ao plano do mercado e dos serviços Democrático de Direito. No primeiro
sonaro e pode-se dizer que a política
pagos. Elas serão produtoras de di- caso, temos a defesa absoluta da pro-
governamental de hoje se enquadra
videndos para acionistas e não gera- priedade. No segundo, a tese de que a
perfeitamente no termo cunhado por
10 doras de ideias, como era o caso das propriedade deve atentar para o fim
Platão, milênios atrás: temos um po-
PUCs, Metodistas, presbiterianas no social. Esta é apenas uma das inúme-
der misólogo, inimigo da pesquisa e
passado recente. Engana-se quem, ras divergências subliminares, aco-
do ensino públicos. As escolas “supe-
nas universidades comunitárias, modadas num texto aparentemente
riores” de ensino privado, nacionais
imagina que elas poderão resistir ao coeso. Some-se as emendas que des-
ou estrangeiras, vão bem, obrigado!
mercado onipotente. figuram até mesmo o escrito inicial,
IHU On-Line - Numa entrevista e podemos dizer que a Constituição
“Os positivistas que o senhor concedeu a Caros do Brasil tem manipuladores que a
adaptam aos mais diversos interesses.
Amigos em 1999, fez referência
foram opostos à seguinte frase: “as universi- A justiça, sobretudo no STF, suposto
“defensor da Constituição”, apenas
à criação de
dades de hoje estão se transfor-
mando no seguinte: a pessoa piora o cenário. Mas uma noção que
definiu a Carta Magna, sobretudo para
universidades mais importante é o gerente de
recursos, e os professores to- prevenir males trazidos pelos regimes

e favoráveis ao dos são globetrotters que vão ditatoriais do século XX (Vargas e o


vender o logotipo pelo mundo poder de 1964), colocou como pilar a

ensino científico afora”. Qual é o peso que as uni-


versidades têm dado à gestão e
doutrina da autonomia. Este ponto é
sempre relativo, pois estamos no Bra-

e técnico” ao seu quadro de professores e


qual é a atualidade desta decla-
sil, pátria do centralismo. Autonomia
dos entes federados, das instituições
ração hoje, 20 anos depois? (o Ministério Público se beneficiou
muito e infelizmente tem usado sua
IHU On-Line - Qual sua avalia- Roberto Romano - Infelizmen- autonomia como instrumento de po-
ção do programa recém-lança- te, tal ideia que retirei de Bill Rea-
do pelo MEC, o Future-se? Que der e de intimidação) e a autonomia
dings (The University in Ruins)
novidade ele traz às universi- é uma profecia que se cumpriu. A 15 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, conside-
dades públicas em relação ao receita para as boas gestões uni- rado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante
e o espírito do capitalismo (São Paulo: Companhia das Le-
modo como elas já atuam hoje?
versitárias, se desligada do espírito tras) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras.
A IHU On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5-
Roberto Romano - A “novida- acadêmico, gera apenas burocra- 2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito
do capitalismo 100 anos depois, disponível em http://bit.
de” é velha: sempre o programa de cia, repressão intelectual contra os ly/ihuon101. Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cader-
privatizar o mais possível nos cam- pesquisadores. Aliás, nada que não nos IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max We-
ber – o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/
pos da pesquisa e do ensino levando tenha sido anunciado por Max We- ihuem03. (Nota da IHU On-Line)

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universitária. Ocorre que a autonomia que se observa nas instâncias do IHU On-Line - Uma questão
universitária não recebeu regulamen- Estado. Pode explicar essa ideia? polêmica nas universidades
tação legal até hoje. Mesmo as univer- são as métricas avaliativas da
Roberto Romano - As institui-
sidades públicas paulistas não tiveram aprendizagem: alguns pesqui-
ções políticas brasileiras surgem no
tal regulamentação. Sua autonomia fi- sadores avaliam que essas mé-
âmbito da reação termidoriana16 con-
nanceira está perenemente ameaçada tricas não dão conta de avaliar
tra os pressupostos e práticas da Re-
devido a tal fato. Agora mesmo a As- o saber e outros afirmam que
volução Francesa. Com Termidor e,
sembleia Legislativa de São Paulo se-
sobretudo com Napoleão, o modelo ela é necessária para avaliar o
gue uma CPI cujo alvo, além de arran- do equilíbrio dos poderes, atribuído nível de aprendizado dos alu-
car recursos das universidades, ruma a Montesquieu17 erroneamente, visto nos. O que o senhor pensa so-
para a privatização das mesmas. A não ter sido idealizado já por Platão, per- bre as métricas?
regulamentação tem vários motivos. de o passo para a hegemonia do Exe- Roberto Romano - Integrei du-
Um deles é o trato dos reitores com o cutivo. Os demais poderes, se é pos- rante anos a Comissão de Avaliação
“poder” federal. Em vez de exigir re- sível usar o termo, são tutelados pelo da Unicamp, na qual os relatórios, os
gras e leis para as universidades, boa Executivo. Tal versão conflita com pedidos de promoção e outros quesi-
parte dos magníficos preferiram “fazer as formas europeias como as usadas tos eram analisados. O primeiro ponto
política” com o Ministério da Educa- na Inglaterra, nas quais o Executivo que noto é a diversidade dos saberes.
ção, oferecendo apoio regional aos é posto e demitido pelos Parlamen- Seria possível usar o mesmo metron
donos do mando em Brasília. Tal “re- tos. Tudo em nosso modelo segue o na avaliação de setores díspares como
alismo” levou a adiar indefinidamente rumo do Executivo. Este último, um a engenharia, a física, a educação, a
a autonomia legal das universidades. gigante de pés de barro, visto que tem química, a biologia etc? Passado este
Elas ainda dependem em quase tudo poderes desmesurados mas precisa ponto, os números de fato refletem a
das ordens ministeriais. E os governos do aval parlamentar e da proteção qualidade e a quantidade certa dos tra-
de Temer e o atual não têm interesse judicial, se estabelece numa buro- balhos de investigação, docência etc?
em ‘negociar” apoio com reitores. O cracia que assume todas as iniciati- Noto que surgiu uma polêmica que no
realismo, como sempre, trouxe péssi- vas. A maioria das políticas públicas meu entender é sem sentido. Refiro-
mos frutos. Os movimentos docentes brasileiras é prerrogativa do Executi-
também deixaram de lado a questão.
me à guerra entre qualidade e quanti- 11
vo. O Parlamento e a Justiça devem dade. Aqui também é preciso encontrar
Eles priorizaram as reivindicações ser cooptados sempre, mas não têm a medida correta e justa. Setores das
salariais, os andamentos de política o poder de iniciativa. As universida- ciências exatas e médicas costumam
interna dos campi, sem focar esforços des, infelizmente, seguem o padrão. publicar artigos e livros coletivamente.
junto a parlamentares e governantes Valorizados nelas são os gabinetes Já no campo das ciências humanas a
tendo em vista a necessária regula- reitorais e não tanto os Conselhos, as prática é diversa, mais raros os livros e
mentação legal da autonomia. Outras Comissões etc. E é assim que os reito- artigos coletivos. Certa feita o relatório
causas existem, mas seria demasiado res das universidades federais, como
de um professor de filosofia quase foi
longo nos deter nelas. disse antes, assumem uma atitude
recusado, porque ele teria a publica-
política de “negociar” apoio dos mi-
ção de um livro e dois artigos em um
nistérios. Casos são mais do que co-
“O horizonte nhecidos. A Universidade da Paraíba,
ainda hoje um excelente centro, na
ano. Foi difícil explicar que na filosofia
e nas ciências sociais um livro por ano
para as época ditatorial tinha um reitor que
demanda trabalho sério e disciplinado
e que um filósofo ou sociólogo que pu-
“se dava bem” com o ministério. As
universidades verbas fluíam sem problemas. Passou
blica dez livros e 20 artigos num só ano
apresenta sérios problemas de rigor.
oficiais
a ditadura, escassearam os recursos
Como sempre, no caso das avaliações,
federais e outros caminhos precisa-
guio-me pela filosofia da prudência:
brasileiras ram ser tomados. O modelo geral de
administração praticado no Brasil é o
nada demais! Nem muito resultado
nem resultado algum. O problema da
não é róseo” predomínio do Executivo. E as uni-
versidades o seguem.
medida é um dos mais importantes nas
ciências e na ética, ele não se resolve
apenas em termos técnicos, mas exige
IHU On-Line - Nesta mesma a virtude da prudência, algo muito difí-
entrevista a Caros Amigos, o se- cil de ser exercitado coletivamente.
nhor disse que “a universidade 16 Reação termidoriana: termo utilizado para designar a
mimetiza, de maneira perversa queda do governo jacobino, liderado por Maximilien Ro-
bespierre. (Nota da IHU On-Line)
até, porque ela é uma espécie de 17 Barão de Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, IHU On-Line - Como o senhor
1689-1755): político, filósofo e escritor francês. Ficou fa-
parasita, mimetiza a estrutura moso por sua Teoria da Separação dos poderes, atualmen- vê a preocupação das universi-
de poder do Estado” e tem a mes- te consagrada em muitas das modernas constituições na-
cionais. Sua obra mais famosa é O espírito das leis. (Nota
dades com os “cursos voltados
ma relação fisiológica de poder da IHU On-Line) para o mercado”?

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

Roberto Romano - O professor gundo a qual um terço dos bra- impediu o exercício da imaginação e
Roberto Macedo, economista, tem sileiros desconfiam da ciência. a prática da agudez mental. Os gru-
um texto intitulado “Faça de seu di- Como o senhor interpreta esse pos supostamente evangélicos, mas
ploma uma prancha de surf”. Nele, se dado? Isso é um sintoma da cri- na verdade oportunistas e retrógra-
critica a tendência de especializar de- se das universidades também? dos, pioram a receita. Retornamos aos
masiadamente o ensino universitário. anos 30 quando nos EUA a teoria da
Roberto Romano - É a colheita de
O professor argumenta que muitas evolução era combatida a ferros por
uma prática das elites e de boa parte
tarefas, no aparelho de Estado e nas dos intelectuais brasileiros, cuja pre- pastores milagreiros e venais. Chega-
firmas privadas, são cumpridas por ocupação é o lucro em detrimento da mos à época em que o grito das Luzes
pessoas que, oficialmente, não pode- sociedade. Só no fim de um processo faz todo sentido: “Esmagai a Infame!”.
riam desenvolver ações. Assim, um razoavelmente democrático foi esta- É triste, mas é assim.
engenheiro poderia empregar saberes belecido um trato mais responsável
que deveriam ser praticados por um com a educação pública. Infelizmente IHU On-Line - Que futuro vis-
economista, advogado etc. Ele propõe o referido trato se esgotou com o novo lumbra para as universidades
que os campi instaurem ou reinstau- governo obscurantista, aliás eleito por
brasileiras?
rem um setor mais amplo de ensino, massas alheias e contrárias à vida in-
inicial, para depois encaminhar os es- telectual. O anti-intelectualismo bra- Roberto Romano - Com o an-
tudantes para suas especializações ou sileiro se instalou em setores à direita. dar da carruagem do mercado e do
tarefas de mercado. Acho uma boa su- Mas há grande número de inimigos obscurantismo e com o denomina-
gestão a do professor Macedo. do intelecto nas chamadas esquerdas. do “terrorismo cultural” (Tristão de
E a cultura brasileira, pelo menos des- Athayde) redivivo, não vejo futuro al-
de Vargas, vive de novelas de rádio e gum para a universidade. Perdoem as
IHU On-Line - Recentemente TV. A população foi amestrada pelos Polianas, o nosso caso está mais para
foi publicada uma pesquisa se- dramas melosos e repetitivos, o que Cassandra. Sem mais nem menos.■

12
Leia mais
- A extrema direita resgata a experiência maquiavélica de usar a religião em favor de
quem governa. Entrevista especial com Roberto Romano, publicada em Notícias do Dia de
28-5-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/31Bc0fE.
- O MP é apenas um fármaco. A superconcentração do Executivo é a causa da corrup-
ção. Entrevista especial com Roberto Romano, publicada em Notícias do Dia de 30-9-2016,
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2Z9TwkP.

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O Future-se e a substituição
do ethos pelo business
Para Ivan Domingues, filósofo e professor da Universidade Federal
de Minas Gerais - UFMG, o Future-se substitui o ethos pelo business
Patricia Fachin

A
pesar do progresso científico e no Supremo, como na questão da auto-
tecnológico que marca o século nomia didático-científica, administrativa
XXI e das mudanças que isso está e financeira/patrimonial estabelecida no
gerando nas sociedades e no meio acadê- artigo 207 da Constituição”, explica.
mico, a função da universidade nos dias Na entrevista a seguir, concedida por
de hoje “não é muito diferente da sua e-mail, Domingues reflete sobre as im-
missão no curso dos séculos XIX-XX e é plicações do programa nas universida-
antes de tudo a de um agente de civiliza- des, explica suas propostas de reforma
ção, devendo levar as luzes do conheci- para o ensino superior e defende a apli-
mento e da cultura a todas regiões de um cação do artigo 207 da Constituição nas
país”, pontua Ivan Domingues à IHU universidades.
On-Line. Para ele, ao discutir o desen-
Ivan Domingues é graduado e mes-
volvimento e a missão da universidade,
tre em Filosofia pela Universidade Fede-
“não devemos reduzir a coisa a desenvol- 13
ral de Minas Gerais - UFMG e doutor em
vimento econômico e PIB crescendo: há
Filosofia pela Université de Paris I. Atual-
que se ressaltar a missão da universidade
mente é professor titular da UFMG. Além
à vista das demandas e necessidades do
de experiência no ensino e na pesquisa,
conjunto da população, como agente da
Ivan Domingues acumulou experiência
cultura e do bem-estar da sociedade”, diz. administrativa ao longo de sua carreira,
Defensor de uma posição ponderada tendo sido fundador do Doutorado em
acerca da relação entre as universidades Filosofia da UFMG, um dos fundadores e
e o setor privado, não se opondo à pre- ex-diretor do Instituto de Estudos Avan-
sença do capital na universidade públi- çados - IEAT/UFMG, assessor do Reitor
ca via doações, à construção de edifícios da UFMG – Gestão 2010-2014, coorde-
com recursos privados, nem a atividades nador da Área de Filosofia da Coorde-
lucrativas ligadas ao desenvolvimento de nação de Aperfeiçoamento de Pessoal
produtos, Domingues também concorda de Nível Superior - Capes e membro de
com as “críticas de colegas” ao Progra- Comitê Assessor de Filosofia do Conselho
ma Future-se. O pesquisador vê com Nacional de Desenvolvimento Científico
desconfiança a participação das Organi- e Tecnológico - CNPq. Atualmente é o
zações Sociais - OSs e das Sociedades de coordenador do Núcleo de Estudos do
Propósito Específico - SPEs nas universi- Pensamento Contemporâneo - NEPC da
dades. Segundo ele, a novidade do Futu- FAFICH-UFMG, um grupo interdiscipli-
re-se é uma fonte de risco. “A novidade nar de pesquisa que desenvolve o projeto
mesmo é o contrato de gestão por direito Biotecnologias e o Futuro da Humani-
privado e nesse contrato a centralidade dade, apoiado pela Fapemig, com ênfase
da OS com a missão de introduzir parâ- no impacto das bioengenharias sobre a
metros de empresas privadas com sua questão antropológica e suas implicações
cultura no setor público e na adminis- éticas, políticas e jurídicas. Ele é autor de,
tração pública. Aí a aposta é maior e as entre outros, de Filosofia no Brasil.
incertezas são enormes, estando ainda Legados & perspectivas. Ensaios
muita coisa obscura e um sem número de metafilosóficos (São Paulo: Editora
tecnicidades jurídicas mal equacionadas, Unesp, 2017).
com o potencial de muita coisa ir parar Confira a entrevista.

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

IHU On-Line - Qual é a função esteira da Bildung alemã e da Paideia conjunto das IFES recebeu o Progra-
da universidade pública nos dias grega, bem como da Ratio Studiorum ma com muitas reservas, vindo de um
de hoje? Por que é importante dos jesuítas, fazendo da universidade governo como esse, com o presidente
manter o caráter público para um agente da educação moral de um disposto a levar a agenda do enfren-
pesquisa e ensino superior? país, de uma comunidade e virtual- tamento da ideologia e dos costumes
mente de toda a humanidade. até os gabinetes e as salas de aula,
Ivan Domingues - Penso que a
com o guru dele e de seus filhos fa-
função da universidade pública nos Tudo somado, várias são as funções
lando de guerra cultural e que a terra
dias de hoje não é muito diferente da ou missões da universidade, poden-
é plana. Na mesma linha, seguindo as
sua missão no curso dos séculos XIX do todas estar reunidas numa só
pegadas do chefe e do guru, com seu
-XX e é antes de tudo a de um agente instituição ou espalhadas num con-
primeiro ministro da Educação de-
de civilização, devendo levar as luzes junto maior, com a totalidade delas
sancando Paulo Freire2, deixando a
do conhecimento e da cultura a todas fazendo pela soma ou adição, mas
agenda positiva do ensino superior de
regiões de um país, podendo atuar em sinergia, aquilo que cada uma faz
lado e colocando no centro da agenda
em âmbito regional ou em escala na- como parte e isoladamente.
educativa escoteiros cantando o hino
cional, bem como se abrir à interna-
nacional. Depois foi a vez do novo mi-
cionalização em escala mundial, com
nistro dizendo que os professores das
o cientista definindo-se virtualmente
como um cidadão do mundo. “A função da federais dão poucas aulas, comprova-
das por números que ninguém sabe
Sobre o regional e o local, lembro
que foi assim que o Massachusetts
universidade de onde ele tirou, quando sabemos
que é outra e bem diferente a realida-
Institute of Technology - MIT e o pública nos de no hemisfério Norte, onde a carga
California Institute of Technology aula dos docentes é a metade, deven-
- CALTECH nasceram nos Estados dias de hoje do ser somados a carga da pesquisa e

não é muito
Unidos, um e outro institutos volta- outros afazeres, como aliás aqui entre
dos, respectivamente, para a promo- nós. Tudo isso sem nos esquecermos

14
ção do desenvolvimento do Massa-
chusetts e da Califórnia, e surgidos diferente da de suas declarações preconceituo-
sas sobre a sociologia e a filosofia,
justamente depois que as engenha-
rias se integraram às universidades sua missão apoiando-se sem nenhuma base do-
cumental no exemplo do Japão, cuja
pelo mundo afora, até então com
atuação restrita às humanidades e no curso dos Federação das Indústrias repudiou
a iniciativa desastrada, e ao mesmo
medicina, como as de Paris, Oxford,
Coimbra, Salamanca e de San Mar-
séculos XIX-XX” tempo ignorando que nas melhores
universidades do mundo procura-se
cos, no Peru colonial. Não muito di- o equilíbrio entre as humanidades,
ferente, este será o caso da Univer- as engenharias e as ciências duras,
sidade de Austin, cuja homepage de IHU On-Line - Qual sua ava- como nos casos de Harvard e de Ox-
saída abre-se para as ações da presti- liação sobre o Programa Ins- ford. Contudo, as coisas não pararam
giosa Universidade visando o desen- titutos e Universidades Em- por aí, e agora lá está ele de volta
volvimento do Texas. Assim, junto preendedoras e Inovadoras apresentando esse Programa como se
com as luzes da razão espalhando-se - Future-se, recém lançado pelo fosse a redenção do sistema federal
sobre um país ou sobre o mundo, Ministério da Educação - MEC? de ensino superior, quando na reali-
a justificar a ideia da universidade Quais são os pontos positivos e dade vai levar ao seu colapso e pôr em
como agente de civilização, na es- negativos do programa?  xeque décadas de esforço conjunto de
teira do projeto iluminista, teremos governos e de gerações – e isso num
Ivan Domingues - A pergun-
então a ideia da universidade como país como o nosso, que chegou tarde
ta nos leva ao centro do Programa,
agente de desenvolvimento, nacio- demais ao ensino superior, compara-
abarcando aspectos de maior ou me-
nal ou regional. do com outros vizinhos da América
nor complexidade, acerca dos quais
Latina, como o Peru e o México.
Não bastasse, deveremos adicionar você me pede um balanço, deven-
ainda a função maior da universidade do eu me alongar bastante ao fazer
na formação das pessoas e na educa- o cômputo dos aspectos positivos e
ção das mentes, como imaginaram negativos. Que o leitor tenha paciên- 2 Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. Como
diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade
Humboldt1 e outros educadores, na cia e me perdoe se eu titubear e pa- de Recife, obteve sucesso em programas de alfabetiza-
ção, depois adotados pelo governo federal (1963). Esteve
recer prolixo. Afinal, o Programa só exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação
1 Alexander von Humboldt [Friedrich Heinrich Alexan- foi apresentado agora e as avaliações Cultural em Genebra, Suíça. Foi também professor da Uni-
der, Barão de Humboldt] (1769-1859): naturalista e explo- camp (1979) e secretário de Educação da prefeitura de São
rador alemão. Atuou também como etnógrafo, antropó- ainda estão em curso. Paulo (1989-1993). É autor de A Pedagogia do Oprimido,
logo, físico, geógrafo, geólogo, mineralogista, botânico, entre outras obras. A edição 223 da revista IHU On-Li-
vulcanólogo e humanista, tendo lançado as bases de
ciências como Geografia, Geologia, Climatologia e Ocea-
Indo ao ponto, ao dar minha pri- ne, de 11-6-2007, teve como título Paulo Freire: pedagogo
da esperança e está disponível em http://bit.ly/ihuon223.
nografia. (Nota da IHU On-Line) meira impressão geral, digo que o (Nota da IHU On-Line)

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Problemas e urgências de Seleção Unificada - Sisu), por sagrados à “Pesquisa e Inovação” e à


exemplo, mas não vem ao caso, por “Internacionalização”, que são fracos
O resultado desse estado de coisas extrapolar o Programa – será preciso e mesmo ingênuos, aquele que seria
é, portanto, as desconfianças e as re- considerar duas coisas. A primeira, o mais robusto e decidido dos três,
servas. O ensino superior é uma re- considerar os gaps ainda existentes com foco em “gestão, governança e
alidade sumamente complexa, além nos diferentes planos das pesquisas empreendedorismo”, não passa de
de cara e desafiadora. Entendo que básica e aplicada, num mundo como uma tentativa mal ajambrada de um
o nosso sistema, deixando a gradu- o de hoje às voltas com a corrida de- ministro ressentido e de um inepto
ação de lado, é bem-sucedido no senfreada nos diversos campos da secretário da Secretaria de Educação
tocante à pós-graduação depois de C&T, como mostram os dados mais Superior - Sesu brincando de gesto-
cinquenta anos de esforços da Co- recentes, extraídos de fontes confiá- res, com uma equipe de técnicos de
ordenação de Aperfeiçoamento de veis: assim, ao contar aqueles dire- economia e administração em que
Pessoal de Nível Superior - Capes e tamente ligados ao P&D&I, enfatiza- ninguém é do ramo, sem familiari-
das universidades. Entendo também dos incompletamente pelo programa dade com o assunto, e com os dois
que de tempos em tempos é preciso do governo, que mostram o país superiores na hierarquia parecendo
reformar o ensino superior em to- aparecendo em 13º lugar na produ- eles mesmos não gostar do objeto
dos os seus níveis, tendo sido a úl- ção de papers em inglês, investindo nem das federais: referidas como
tima vez a reforma universitária de em 2018 1,17% do PIB em P&D, em “balbúrdias”, tratando aquilo que a
68, patrocinada pelo regime militar. contraste com os 4,32% da Coreia e maioria vê como um bem intrínseco
Passado tanto tempo, outros proble- os 2,84% dos EUA e da Alemanha, (o conhecimento) como uma merca-
mas e outras urgências surgiram, in- e terminando o ano de 2017 em 10º doria e um bem fungível, e lançan-
clusive distorções sérias criadas por lugar em pedidos de patentes, ao do para embasar propostas núme-
governos recentes, como a expansão passar em sua participação mundial ros duvidosos e sem lastro, como
das vagas numa mesma universida- de 0,24% em 2006 para 0,28% em a declaração do titular da Sesu que
de, quando era o caso de criar outras 2017, quando a China atingiu mais entre as top 50 a maior parte delas
federais, levando a expansão à queda de 41% e os EUA cerca de 16,5%. A não passa de 40% de orçamento pú-
dos padrões e ao inchaço das cidades segunda, considerar o quadro his- blico. Ora, os dados disponíveis são
universitárias, com sua população tórico da economia brasileira, co- bem diferentes, a começar pelos da 15
de repente duplicada ou aumentada locando em foco o peso relativo da União Europeia que mostram que o
em 50%. Somem-se a essas distor- indústria de transformação no PIB orçamento público gira em torno de
ções outras tantas do mesmo quilate nacional, como mostram os dados 77%, ao passo que nos EUA, segun-
e não menos preocupantes, como o preocupantes que me foram passa- do a American Association for the
processo de eleição de reitores, por dos pelo ex-reitor da Universidade Advancement of Science - AAAS e a
sufrágio direto e igualdade de pesos Federal de Minas Gerais - UFMG e National Science Foundation - NSF,
dos diferentes segmentos, como vem ex-ministro de Ciência e Tecnologia, esses números chegaram em 2016 a
acontecendo na maioria das fede- o professor Clélio Campolina, que 60%, 25% da própria universidade,
rais, levando ao populismo e à crise mostram um processo de verdadeira 6% originários de ONGs, 6% de em-
de governança como a de agora, com desindustrialização, hoje beirando presas e 3% de outras fontes.
a universidade fragmentada, a admi- o desastre: para nos convencermos
nistração central isolada, sem pro- disso, basta compararmos o ano de P&D&I e empreendedoris-
postas capazes de empunhar bandei- 1985, fim do ciclo militar, quando a mo
ras e deflagrar campanhas, e os dois indústria tinha 23,02% do PIB, pas-
segmentos propriamente acadêmi- Estou comentando essas coisas,
sa em seguida por sucessivas quedas
cos expostos às ações insidiosas do para me ater ao essencial, e ainda as-
e retomadas, até atingir o abismo de
ministério. Some-se ainda a destrui- sim fui forçado a me alongar bastan-
13,81% no fim do governo de FHC,
ção entre nós da figura do professor- te. De fato, para fazer uma reforma
em 1999, subir para 17,79% no pri-
titular, com a porteira aberta e a es- dessa envergadura seria necessária
meiro governo Lula, por volta de
tranheza de nossos colegas de outros uma ampla discussão com a comuni-
2005, e despencar para 11,40% em
pontos do globo que não entendem dade e um horizonte de tempo bem
2015, hoje certamente algo menos,
por que as coisas se passam assim maior visando à adesão ou não ao
devendo estar cravando menos de
nesta parte do hemisfério. Programa. Nada disso foi feito, as co-
10%, ao voltar aos índices de fins de
munidades universitárias e os reito-
1940 e início dos anos 1950.
Investimentos res não foram consultados, nem asso-
Voltando ao ponto, há dias o Con- ciações científicas e especialistas no
Para terminar o cômputo dos pro- selho Universitário da UFMG reco- assunto, e a própria consulta pública
blemas e das urgências – sem a velei- mendou a não adesão ao Future-se. que termina no dia 15 de agosto não
dade de ser exaustivo: haveria muito Nada mais acertado. Com efeito, prevê questionamentos mais subs-
o que dizer sobre a questão das quo- como poderia ser diferente se, a par tantivos do documento, forçando a
tas e o sistema de ingresso (Sistema dos outros eixos do Programa con- recusa ou a aceitação em bloco, com

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TEMA DE CAPA

o secretário da Sesu em entrevista tão anterior. Apenas eu diria agora, artigo, de no. 44, por criar o “Dia
desafiando a comunidade a apresen- ao ser perguntado, que eu não vejo Nacional do Estudante Empreende-
tar uma melhor proposta. Contudo, maiores problemas as universidades dor”, que irá cair num sábado logo
as coisas são bem mais complica- federais continuarem, como quer o depois do Trabalhador. Mais uma
das, para ficarmos só com o primeiro governo, com o apoio da Empresa bobagem e uma leitura equivocada
eixo, o qual, com suas novas formas Brasileira de Pesquisa e Inovação das coisas, como se os programas
de gestão e governança a cargo de Industrial - Embrapii, criada a par- do P&D&I fossem a quinta-essência
Organizações Sociais - OS privadas tir do modelo da Embrapa, em 2013, da Universidade Pública, e não algo
e fontes de financiamento lastreadas com sua excelência atestada em tudo próprio de certas áreas, que têm em
por fundos de investimento lançados que ela faz e hoje com inúmeras par- comum com as outras o conheci-
no mercado de capitais e gerenciados cerias com IFES como o IFSul de mento como bem intrínseco, junta-
pela OS que terá um papel de gran- Minas e outros tantos como o IFBA, mente com seus frutos, e proprieda-
de protagonismo no Comitê Gestor o IFCE, o IFMG, o IF Fluminense, o de da civilização.
(Parceria Público/Privado), termi- IFSC, entre outros, assim como par-
Todo mundo sabe que a conjun-
nará por sequestrar a autonomia das cerias com o Instituto Tecnológico
tura econômica está ruim e mesmo
IFES e transformar as Universidades de Aeronáutica - ITA, a Universida-
péssima. Neste cenário o ministro
Federais de instituições públicas que de Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
vem e acena com 100 bilhões de re-
eram em empresas privadas – e isso (Coppe), a Universidade Federal de
ais. Só que o governo não tem esse
ninguém quer. Santa Catarina - UFSC (CERTI) e a montante: nem os 100 bi, como ele
própria UFMG (DCC). Da mesma reconhece, que deverão ser obtidos
Ao concluir, retornando aos núme-
forma que não vejo nada demais os com ajuda de aportes externos, nem
ros do Brasil e à conjuntura ruim, convênios dos hospitais universi-
contrastando-os com os eixos do os 50 bi, que ele alega tê-los e que
tários com a Empresa Brasileira de serão alavancados com o patrimô-
Programa, especialmente o primei- Serviços Hospitalares - EBSERH,
ro, que de longe é o mais importante, nio das Ifes, aluguéis de dependên-
fundada em 2011, e hoje com par- cias e aportes da União. Tudo isso,
peço que alguém me explique como cerias com quase todos eles, cerca
seria possível num país como o nos- além de deixar o governo federal
de 32 IFES, à exceção da UFRJ e da com as mãos livres, desobrigado em
16 so e no momento em que estamos Universidade Federal de São Paulo -
vivendo, fazer P&D&I e empreen- destinar as verbas constitucionais
Unifesp, tendo, em vez de privatiza- à educação e ao ensino superior,
dedorismo, quando não temos mais do, salvo os hospitais públicos de en-
indústria e em vez de desenvolver ao terceirizar as fontes de financia-
sino da bancarrota iminente. Tudo mento, levará à financeirização das
produtos preferimos comprar tecno- isso nós fazemos e não representa
logia pronta. universidades e a gestão ficará nas
propriamente uma novidade, porém mãos de OSs ao alcance do jogo bru-
Com efeito, se o objetivo é esse a numa escala menor, topicamente, e to das corporações financeiras, das
médio prazo, o melhor a ser feito se- sem terceirizar a autonomia e a res- interferências dos governantes (o
ria preparar o caminho e melhorar ponsabilidade. MEC continuará como o grande tu-
a casa a curto prazo, e nada disso Assim, novidade mesmo é o con- tor) e dos compadrios dos políticos e
temos no Programa anunciado com trato de gestão por direito privado apaniguados: estes últimos com um
estardalhaço, ao terminá-lo com três e nesse contrato a centralidade da mundo a ganhar especialmente na-
meses, sabe-se Deus como e com que OS com a missão de introduzir pa- quelas instituições de menor porte,
ajuda, retirado de qual gaveta ou ga- râmetros de empresas privadas com sem tradição ou com pouco enrai-
binete, e depois dar um mês para as sua cultura no setor público e na ad- zamento e sediadas em localidades
IFES decidirem sua adesão ou não ministração pública. Aí a aposta é mais afastadas.
ao Programa, com o stick numa mão maior e as incertezas são enormes,
e a carrot na outra. estando ainda muita coisa obscura
IHU On-Line - Como as par-
e um sem número de tecnicidades
cerias público-privadas impac-
jurídicas mal equacionadas, com o
IHU On-Line – Há alguma tam a produção do conheci-
potencial de muita coisa ir parar no
novidade no Future-se em re- mento nas universidades hoje e
Supremo, como na questão da au-
lação ao que já é feito hoje nas quais as expectativas nesse sen-
tonomia didático-científica, admi-
universidades em termos de tido em relação ao Future-se? 
nistrativa e financeira/patrimonial
autonomia administrativa, fi-
estabelecida no artigo 207 da Cons- Ivan Domingues - Creio que eu
nanceira e de gestão, por meio
tituição, e, no entanto, ignorada pelo já respondi, ao reconhecer o papel
de parceria com organizações
projeto de lei a ser enviado ao Con- da Embrapii e da EBSERH, assim
sociais e de fomento à captação
gresso, totalizando 18 páginas, tra- como as minhas desconfianças fren-
de recursos próprios?
tando de modificar 18 leis ou antes te às OSs e às Sociedades de Propósi-
Ivan Domingues - Penso que o artigos menores, muitos deles recen- to Específico - SPEs, contemplando
essencial já está respondido na ques- tes, e terminando em seu penúltimo diferentes escalas. Sobre as OSs, que

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existem em profusão, há que se con- cado eu me pauto pelo artigo 207 da privados e visando usos públicos,
siderar no tocante às Ifes, até onde Constituição, levando-me a dizer que com o nome do empreendedor ou
eu sei, a situação do Instituto de Ma- bastaria ele ser aplicado em sua intei- mecenas na frente do prédio, assim
temática Pura e Aplicada - Impa. Só reza, com as autonomias administra- como não sou contra várias ativida-
que o Impa, consagrado à matemáti- tiva e financeira sendo exercidas para des lucrativas ligadas a patentes e
ca pura, é uma instituição pequena valer, ao serem somadas à autonomia desenvolvimento de produtos.
e recebe verbas generosas do MEC e científica didático-pedagógica.
Nada disso existia na universidade
do MCT, não sendo exatamente um
Só que a vida é dinâmica e, além da medieval quando ela surgiu, vendo
modelo para a captação de recursos
lei maior, há para os programas de no ensino uma espécie de oração e
privados e de atuação no mercado fi- obséquio a Deus, ao passo que hoje
P&D&I, até onde eu sei, o Marco Re-
nanceiro. Ora, o que o Programa Fu- é diferente, devendo essas coisas
gulatório do Código de C&T de 2015-
ture-se quer é alguma coisa como o ou novidades ser “customizadas” e
2016, o qual serve de parâmetro para
“Fature-se” e seu propósito é trazer o estando essa matéria já pacificada e
as ações de empreendedorismo e
mercado para dentro das UFES e le- suficientemente regulamentada.
permite a sua permanente reatuali-
var à sua total financeirização, como
zação e recalibragem.
eu disse, inclusive “Naming Rights”.
Por seu turno, em contraste com o Isto dá uma ideia de que uma uni-
Impa, o Inhotim de Belo Horizonte
também é uma OS, porém modelada
versidade pode permanecer pública
e abrir-se para programas de P&D&I,
“O nosso
para captar recursos da Lei Rouanet,
e sua gestão é inteiramente privada,
sem perder a autonomia e a identi-
dade tão prezadas por nós. Aqui e
sistema,
havendo um boss que manda em to- em outras situações o que importa
para nós, professores, é o ethos, num
deixando a
dos e decide tudo.
Outra coisa bem diferente e bem
sentido próximo de Robert K. Mer- graduação de
lado, é bem-
ton3, e esse ponto é deixado de lado
mais arriscada é colocar todas as fe-
pelo Programa, ao trocar o ethos
derais nas mãos de uma mesma ou
em diferentes OS, tornadas parcei-
ras por contratos de direito privado,
pelo business, e isso é outra história
e significa errar de endereço. sucedido no 17

e é aqui que começam as dificulda- tocante à pós-


des, mesmo que todo mundo esteja
graduação”
IHU On-Line - Alguns críticos
interligado pelas boas práticas, o do programa Future-se argu-
princípio da transparência, a audi- mentam que o programa fará
tagem dos resultados e a fiscalização com que as universidades fi-
dos órgãos de controle. quem refém do capital. Como o
senhor vê esse tipo de crítica e IHU On-Line - A parceria en-
como avalia a incidência do ca- tre empresas e universidades
IHU On-Line - O que, na sua é positiva para a produção de
pital na universidade pública? 
opinião, deve balizar e limitar conhecimento? Pode nos dar
as relações público-privadas Ivan Domingues - Também o alguns exemplos de como esse
dentro das universidades? essencial já foi respondido, mas há tipo de parceria pode ser posi-
outros que devem ser considerados. tiva ou negativa?
Ivan Domingues - Sua pergun- Antes de mais nada, eu concordo
ta é difícil e a resposta é dessas que com as críticas de colegas que já as- Ivan Domingues - Eu não sou
valem 40 milhões de dólares. Até sinalaram que o Programa Future-se engenheiro, nem venho da área tec-
agora eu evitei os questionamentos coloca o mercado dentro da univer- nológica, e não passo de um filósofo
jurídicos, por não ter competência sidade e a deixará vulnerável aos al- e um intelectual preocupado com o
na matéria e ser pessoalmente muito tos e baixos do mercado financeiro, destino do país e a situação da uni-
desconfiado das agendas negativas conhecido por sua extrema volatili- versidade pública.
que caracterizam os meios acadê- dade, como mostrou a crise de 2008. Voltando à sua pergunta, há dias li
micos e as próprias esquerdas, com
Agora, eu não sou contra a inci- na Folha de São Paulo [03/09] uma
todo mundo feliz da vida ao repudiar
dência ou a presença do capital na matéria assinada por Angela Pinho
as mudanças e dizer não para tudo.
universidade pública via endowe- em torno do Future-se e das ações do
De minha parte, não considero que
ments [doação], mesmo a cons- MEC, ao longo da qual ela cita, com
a universidade pública no Brasil está
trução de edifícios com recursos respeito ao P&D&I que integra os
no melhor de seus momentos e não
dois primeiros eixos, o exemplo de
precisa ser modificada em nada.
3 Robert King Merton (1910-2003): foi um sociólogo um colega da Universidade de São
O meu pensamento íntimo é o opos- norte-americano considerado um teórico fundamental da
burocracia, da sociologia da ciência e da comunicação de
Paulo - USP, o professor Humberto
to, como já comentei antes, e no ata- massa. (Nota da IHU On-Line) Gomes Ferraz, que não faz muito

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tempo desenvolveu o medicamento vadas, e acertar na Coreia. Porém, e da extensão e o que consegue dizer
Vonau, com suas duas credenciais, a Coreia é outra conversa e fica em da pesquisa, em meio às trivialida-
segundo a jornalista: [1] o medi- outro planeta. des sobre internacionalização e re-
camento é excelente, sendo muito conhecimento de diplomas, não diz
Por seu turno, outro modelo se-
eficaz contra náusea, e foi desenvol- nada acerca da pesquisa básica, só
gundo o Secretário da Sesu, que
vido em parceria com a Biolab, que da pesquisa aplicada, ao tomá-la na
como eu disse parece não gostar do
financiou o projeto; [2] trata-se do última ponta do processo de P&D&I,
seu quintal e das federais, são as
produto que mais rende royalties à com a Inovação saltando à frente, e
estaduais paulistas, USP e Univer-
universidade, rateados entre a admi- desde logo considerada pelo viés do
sidade Estadual de Campinas - Uni-
nistração central, os departamentos empreendedorismo empresarial e
camp, que têm a Fundação de Am-
envolvidos, a agência de inovação e não da inovação tecnológica.
paro à Pesquisa do Estado de São
os próprios criadores, que irão ficar É muito pouco, não pode dar certo
Paulo - Fapesp como fonte adicional
com 30% do total. e não é uma mera questão de torcer
de recursos, à diferença de outros
estados, com as Fundações de Am- contra o Brasil, mas a favor, no sen-
Várias faces da universidade tido estratégico de pôr o foco correto
paro à Pesquisa - FAPs ou em mín-
Até aqui tudo bem. Só que, embora gua ou totalmente quebradas, e no no desenvolvimento com tecnologia
o projeto tenha sido bem-sucedido, entanto segundo o colega da USP, a e sustentabilidade, bem como a fa-
o professor não deixou de revelar prestigiosa universidade está longe vor da universidade pública de pes-
suas reservas contra a burocracia de ser um modelo em empreende- quisa como “incubadora” de C&T
das nossas universidades, “um ver- dorismo, levando um pesquisador antes de ser de P&D&I, e nada mais.
dadeiro inferno”, segundo ele, para de seis meses a dois anos para com-
não falar da burocracia do governo, prar um equipamento.
IHU On-Line - O senhor tem
eu acrescentaria, da mesma forma Realmente, algo precisa ser feito, defendido que é preciso “re-
que não deixou de expressar suas mas não como pensa o ministro, que fundar” a universidade públi-
desconfianças profundas frente ao não é da área e é a favor de reduzir ca. Pode explicar essa ideia?
programa do MEC, e de resto bem a verba de seu ministério, em mais Por quais razões e em que as-
18 parecidas com as minhas. De um pectos as universidades preci-
uma de suas bizarrices, e como tal
lado, ao dizer que “o MEC não co- nunca vista antes no MEC e em ou- sam ser refundadas?
meçou bem nesse governo”, ao se tros prédios da Esplanada ou defen-
referir ao discurso de enfrentamento Ivan Domingues - Sim, mas veja
dida nem mesmo por seus colegas
das universidades que caracteriza a bem, não porque eu considere que o
atuais de governo.
gestão Bolsonaro, levando-o a ex- modelo esteja errado ou tenha fra-
pressar sua preocupação acerca das cassado, mas porque ele precisa de
“reais intenções desse programa”. IHU On-Line - O senhor já atualizações e recalibragens, como
De outro, ao revelar o nosso déficit disse em algumas ocasiões, aliás qualquer modelo em diferen-
de cultura tecnológica, para não di- como numa entrevista à Re- tes lugares do mundo, em razão da
zer “empreedendorística”, levando vista Diversa (Nº 20 - Ano 12 própria dinâmica das coisas ou das
as nossas universidades a se refu- – 20-04-2013) que o tripé ensi- transformações do meio em que ele
giarem no academicismo, em meio, no-pesquisa-inovação nunca se está inscrito. Concretamente, eu
poderíamos acrescentar, ao mais consolidou no Brasil e que fal- digo que o modelo da universidade
desabusado dos taylorismos, como ta uma agenda positiva de C&T pública republicana está bem de-
mostra a jornalista, ao parafrasear para o país. Que tipo de iniciati- senhado no Brasil e deverá ainda
suas palavras, dizendo que segun- vas permitiriam consolidá-lo e render seus excelentes serviços nas
do ele “a universidade [dá] um peso criar uma agenda de C&T?   décadas que virão, garantido pelo
muito maior a publicações na avalia- artigo 207 da Constituição e tendo
Ivan Domingues - Eu não me como marco legal a autarquia e seus
ção dos docentes, em detrimento de
lembro de ter tratado do tripé en- dispositivos, ao colocá-la longe das
outros indicadores, como o desen-
sino-pesquisa-inovação, mas, sim, ações dos governos, no rol da ad-
volvimento de produtos”, fazendo-o
do tripé ensino-pesquisa-extensão, ministração indireta. Considere-se
perder o foco em suas pesquisas.
levando-me a questionar a centrali- ademais que a universidade brasilei-
Essa é uma das várias faces da uni- dade da extensão, como se fosse um ra – estou falando de universidade
versidade com suas diferentes cul- eixo à parte e em que eu via em nos- completa, cujo modelo foi formatado
turas de área e o projeto do governo sas federais algo sumamente inflado, em nosso país a partir dos anos 30
de Bolsonaro para as UFES passa uma verdadeira pletora carregando, em plena era Vargas – tem cerca de
ao largo dessas coisas e erra o alvo, além da extensão à comunidade, a 90 anos, ou um pouco menos para o
inclusive ao mirar as universidades prestação de serviços e as pós-gra- conjunto das federais, como no caso
americanas, tomadas supostamente duações lato sensu. De fato, o pro- da UFMG, que só foi federalizada em
como modelos de universidades pri- grama Future-se nada diz do ensino 1949. Às Universidades ditas com-

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pletas seguem os Institutos Federais car de verdade os preceitos do artigo Sobre as reformas e recalibragens
com atuação na área tecnológica, de 207 da Constituição, ao garantir às do modelo, muito certamente deve-
criação bem mais recente, na esteira IFES a plena autonomia financeira rá ser feito em diferentes planos e
dos Centros Federais de Educação e administrativa, para além da au- níveis, mas sem necessidade de re-
Tecnológica - CEFETs, mas dentro tonomia didático-científica: e desde volucionar os marcos legais, como
do mesmo marco legal das universi- logo, não transformando as univer- já comentado no tocante a progra-
dades, com o artigo 207 garantindo sidades em prestadoras de serviços e mas de P&D. Não tenho a menor
autonomia didático-científica, admi- arriscando seu patrimônio na bolsa, condição, no espaço dessa entrevis-
nistrativa e financeira/patrimonial. como se fosse um bem privado, con- ta ao IHU, de abordar na extensão
forme quer o governo atual, com a e profundidade requeridas aquelas
A bem da verdade, uma autono-
disposição de transformar as ideias reformas que eu considero mais
mia que nunca foi completamente
em goods e as atividades acadêmicas importantes, senão apontá-las su-
realizada, salvo a autonomia didáti-
em business, coisas que não vamos mariamente, ao percorrer os dispo-
co-científica, que bem ou mal existe,
encontrar nem mesmo nos Estados sitivos jurídico-administrativos que
mesmo que meio defasada, com au-
Unidos, mas como agente de civiliza- dão o arcabouço constitucional das
las de mais e pesquisa de menos, em
ção e bem público do povo brasileiro IFES. Assim, eu elencaria entre as
comparação com o hemisfério norte.
e da nação em seu conjunto, como reformas que eu considero funda-
Ao passo que, no tocante às duas ou-
notaram o imperador Pedro II ao mentais:
tras pernas do modelo, os diferentes
criar a Universidade de Ouro Preto,
governos deixaram a universida- [i] a pronta implantação da auto-
Armando Salles a Universidade de
de pública de braços atados e sem nomia de gestão das universidades
São Paulo, Zeferino Vaz a Unicamp
meios próprios para seguir adiante federais, conforme o artigo 207, e
e Capanema, na esteira de Francisco
com sua missão de gerar e difundir para tanto seria suficiente dar-lhes
Campos, as primeiras universidades
o conhecimento, em meio às penú- o status de autarquia especial, com
que iriam compor depois o sistema
rias de orçamento, como as de hoje, plena liberdade de contratação de
das federais.
com cortes e mais cortes de verbas seus servidores e professores e mo-
constitucionais, bem como em meio delagem das carreiras e políticas sa-
às amarras de uma administração lariais, atentando-se inclusive dife- 19
obsoleta e pouco ou nada republica-
na: por um lado, em sua face exter- “O Conselho renças regionais que fazem com que
um salário igual seja diferente em
na, uma administração que em sua
estrutura e em seu funcionamento, Universitário São Paulo e no Acre: neste quadro,
não precisaríamos nem de OS nem
da UFMG
em meio a seu cartorialismo ibérico, mesmo de fundações, bastando ter
é a mesma desde os anos 30 quando um RH com esses atributos e fun-
o Departamento Administrativo do
Serviço Público - DASP foi fundado recomendou ções;

a não adesão
e que depois, como o resto do país, [2] a quebra da unidade da car-
foi crescendo de puxado em puxado, reira, ao considerar que nas gran-
virando um verdadeiro monstro ju-
rídico; e, por outro, em sua face in- ao Future-se” des universidades cerca da metade
do corpo docente não é constituída
terna, com seu staff administrativo de pesquisadores, como nas áreas
desmotivado e nada disposto a se li- profissionais, para as quais basta-
vrar das heranças do ancien régime, IHU On-Line - Que reformas riam bons profissionais e regimes
cujos males datam da colônia, como são fundamentais para pen- de trabalho distinto da dedicação
o corporativismo, em meio à indife- sar e projetar o futuro das exclusiva, que seria reservada aos
rença complacente da administração universidades públicas brasi- pesquisadores;
central, das benesses do populismo leiras hoje?  [3] a quebra da isonomia das uni-
sindical negociadas à época das elei- versidades e instituições superiores
Ivan Domingues - É preciso ficar
ções para reitor e totalmente avesso de ensino, levando, por um lado, a
claro que se a constituição garante e
às chamadas boas práticas da ética
o governo central não cumpre, não distinguir as IFES entre [i] univer-
republicana, como a responsabilida-
estamos diante de um problema po- sidade de pesquisa em sentido estri-
de, o zelo pelo bem público e a trans-
lítico, mas de um problema jurídico, to, com doutorados acadêmicos na
parência dos atos e decisões.
da alçada do Supremo, que tem o de- linha de frente, e [ii] universidade
Então, para encurtar a conversa, ver de zelar pela aplicação irrestrita de ensino voltada para a aquisição
rigorosamente falando, se o modelo da lei maior. Contudo, o Supremo de uma habilidade técnica ou pro-
é bom e nada há de errado com ele, está amesquinhado e saturado de fissional, ao adaptar para os nossos
trata-se então não de jogá-lo fora ou problemas de outras alçadas e com- meios as Community Schools da
deixá-lo de lado, mas de realizá-lo petências, inclusive roubos, fake Califórnia e fixar para as universi-
em toda sua extensão, bastando apli- news e assemelhados. dades de pesquisa parâmetros de

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excelência que serviriam de portas sidades menores, localizadas Ivan Domingues - Simples-
de entrada e de saída do sistema, em regiões estratégicas e que mente não acredito, não porque
conforme formulação do ex-rei- atendam às demandas das eu torça contra, eu que sempre fui
tor e ex-ministro do MCTI, Clélio suas regiões. Esse modelo já e sou universidade, mas pelas ra-
Campolina, com quem venho con- foi implementado no Brasil zões já apontadas: um projeto po-
versando sobre o assunto; por ou- em alguma medida? O que po- bre, arrogante, pueril e estreito, e
tro, a garantir aos ITs a vocação de deria melhorar nesse sentido? ainda assim sumamente perigoso,
escolas técnica de nível superior, a julgar pelas possibilidades que o
Ivan Domingues - Sim, como eu
com sua carreira específica, sem a aguardam ao ser confrontado com
necessidade de se transformar em já disse, e eu aproveito para acres-
a realidade mesquinha da pes-
universidades completas e iguais centar agora a universidade corpo-
quisa em P&D&I no Brasil. Duas
às outras, oferecendo doutorados e rativa da Petrobras, que aplicava e
possiblidades, em suma, e ambas
mestrados acadêmicos. aplica ainda um absurdo de suas re-
conduzindo ao mesmo resultado,
ceitas na formação de seus quadros ou seja: a possibilidade de dar
Modelos de ensino superior de engenheiros, que serão desloca- tudo errado, porque errou de alvo
dos nas diferentes áreas da extra- e passou ao largo da realidade, ao
Vou parando por aqui, ao lembrar ção e beneficiamento do petróleo, pressupor para as nossas terras o
que a França também tem o seu Re- inclusive em desenvolvimento de círculo virtuoso de P&D&I, num
gime Jurídico Único – RJU e opera programas de P&D, sem prejuízo país em que as empresas prefe-
com um modelo bipolar de ensi- de parcerias com as universidades, rem importar tecnologia pronta e
no superior, tendo como grandes como na Coppe na UFRJ, e ainda já testada, em vez de desenvolver
protagonistas as escolas de elite e a universidade corporativa da Em- produtos e projetos, correndo um
as universidades de massa, haven- braer, que antes de sua fusão com risco todo seu; a possibilidade de
do entre estas várias excelentes. O a Boeing investia cerca de 10% em dar tudo errado, porque acertou
contraste são a Inglaterra com seu P&D, tendo caído segundo Clélio e transformou a universidade em
modelo único e a Alemanha com o Campolina, expert no assunto, para prestadora de serviços e o conhe-
modelo bipolar das Escolas técni- 7% em anos recentes. cimento não num bem intrínseco,
20 cas superiores e das universidades
Entende-se, como não se deu con- público ou o que seja, mas num
completas, todas como ensino pú- good e num bem fungível, nada
blico superior, pago na Inglaterra e ta o projeto Future-se do governo,
que em programas como esses es- mais. E desde logo, alguma coisa
gratuito na Alemanha. No extremo que pode ser descartada e substi-
oposto está a Coreia, onde as pró- tão em jogo não exatamente a pro-
dução de papers, mas o desenvol- tuída o tempo todo, não havendo
prias empresas estão ou são a uni- as ciências básicas e as chamadas
versidade, como a Hyundai e a Sam- vimento de produtos, nem sempre
goods para os mercados, mas para humanidades nada o que fazer
sung, não havendo rigorosamente ou o que dizer num mundo como
universidade pública, mas privada, consumo próprio, em meio à corri-
da em C&T que caracteriza as eco- esse, só as commodities, o lucro, o
num país que investe uma fábula
nomias avançadas do hemisfério investimento e o business.
em C&T, cerca de 4-5% do PIB, con-
tra 3-4% do Japão e da Alemanha. Norte, com a Petrobras e a Embra- Assim, das três missões da univer-
Tudo isso, sem falar das universi- er devendo ser arroladas entre os sidade apontadas acima, só sobrará
dades comunitárias, nem rigorosa- cases de sucesso, para usar a ter- uma: a de desenvolvimento de P&D,
mente públicas, nem rigorosamen- minologia empregada pelo MEC na terminando a riqueza nas mãos de
te privadas, como obras da Igreja apresentação do dito projeto. alguns poucos, aqueles que se deram
cristã, a exemplo da universidade Ora, entre esses cases de sucesso, bem no processo competitivo, sendo
católica medieval, das universida- devemos mencionar a própria uni- portanto vencedores, e condenando
des protestantes norte-americanas, versidade pública brasileira, as três ao desaparecimento as missões civi-
como Harvard, e das PUCs e simila- paulistas incluídas, que respondem lizatória e educativa da universidade,
res no Brasil, como a Unisinos. na acepção de educação moral, avalia-
por mais de 90% da nossa pesquisa
das uma e outra por seu duplo projeto
Então, modelos não faltam e as considerando o conjunto das áreas
de espalhar as luzes do intelecto sobre
públicas brasileiras já têm o seu, do conhecimento.
a realidade circundante e moldar os
tratando-se apenas de aplicá-los e
corações e as mentes das pessoas.
recalibrá-los.
IHU On-Line - Numa outra
entrevista que nos concedeu,
IHU On-Line - Deseja acres-
IHU On-Line - O senhor tam- o senhor disse que “falta uma
centar algo?
bém defende modelos univer- agenda positiva em C&T” para
sitários diferenciados, que o Brasil. Iniciativas como o Ivan Domingues - Sim, ao falar
possam auxiliar no desenvol- Future-se podem potenciali- de desenvolvimento e da missão da
vimento do país, com univer- zar uma agenda em C&T? universidade, não devemos reduzir a

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coisa a desenvolvimento econômico demandas e necessidades do conjunto esse que eu considero de suma impor-
e PIB crescendo: há que se ressaltar da população, como agente da cultu- tância e que eu gostaria de enfatizar ao
a missão da universidade à vista das ra e do bem-estar da sociedade, ponto concluir a nossa conversa. ■

Leia mais
- O intelectual cosmopolita globalizado é um outsider. Entrevista especial com Ivan Do-
mingues, publicada nas Notícias do Dia de 22-8-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos - IHU, disponível em http://bit.ly/2zsnFlH
- As biotecnologias e a possibilidade do pós-humano e do transumano. Entrevista espe-
cial com Ivan Domingues, publicada nas Notícias do Dia de 20-10-2013, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2Z9lVr1

21

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TEMA DE CAPA

Educação: revelação de mais uma


face da financeirização e privatização
dos direitos sociais
Carolina Catini observa que vivemos “uma nova cisão social entre
quem tem o direito de ter acesso a um serviço transformado em
investimento à sua inserção social pela exploração ou não”
João Vitor Santos

A
fagocitose do capital do século A questão agora é quebrar as barreiras
XXI tem, entre as suas habilida- que restam e envolver as universidades
des, a apropriação de diversos públicas neste processo”, exemplifica,
campos e a transformação dos mesmos falando do Future-se.
em ativos financeiros. Com a educação Segundo tem observado a professora,
não tem sido diferente. A professora Ca- os riscos são os mesmos da concorrên-
rolina Catini observa que o que se vive cia mercantil, em que se investe somen-
hoje é algo maior, parte de um processo
te no que dá mais lucro. “Certamente
que chama de financeirização e priva-
algumas áreas da educação receberão
tização dos direitos sociais. “Bancos e
maiores investimentos que outros, am-
empresas se interessam pelos repas-
pliando a desigualdade entre campos de
22 ses estatais por meio dos trabalhos de
produção de conhecimento”, acrescen-
responsabilidade social, com os fundos
ta. Carolina ainda alerta que “há aqui
de investimento e fundos patrimoniais
diversos outros aspectos da questão
para financiar as atividades educativas
da financeirização e privatização dos
e culturais, é difícil saber o que são re-
direitos sociais, mas é preciso destacar
cursos provenientes do Estado e de fun-
que é dessa gravidade que estamos fa-
dos privados”, explica. Ou seja, é mais
lando” quando o tema é educação: “diz
do que um processo de privatização,
respeito a uma nova cisão social entre
pois ainda se faz uso de recursos esta-
quem tem o direito de ter acesso a um
tais, mas com a gestão privada. Logo,
serviço transformado em investimento
elementarmente, vai-se mover pelas ló-
à sua inserção social pela exploração ou
gicas de lucro. “Uma hipótese de inves-
não. O que passa a ser estipulado dire-
tigação é que se o controle dos direitos
tamente pelos investidores, sem media-
sociais pelas empresas e bancos priva-
ções. Com isso, qualquer caráter inclu-
dos se dá pela financeirização, os direi-
sivo do neoliberalismo se esvai e sobre
tos sociais também se tornam formas
a concorrência pura e simples”.
de investimentos nos trabalhadores e
trabalhadoras, numa especulação das No entanto, mesmo diante de um qua-
forças de trabalho que podem se tornar dro que ela denomina como barbárie,
rentáveis no futuro”, acrescenta. observa que há terreno para resistên-
Na entrevista a seguir, concedida por cia. “Ainda há espaço para experiências
e-mail à IHU On-Line, Carolina ana- formativas consistentes, intelectuais
lisa essas questões que estão ao fun- e práticas, na universidade pública. E
do de movimentos que têm ocorrido num momento em que se eleva um an-
no campo da educação. Segundo suas ti-intelectualismo e controle de todas as
perspectivas, programas como o Futu- práticas sociais, é preciso manter essas
re-se e mesmo as reformas da Educa- frestas abertas e fazer expandir alguma
ção Básica chegam como manifestações capacidade de ação para criação de for-
claras de tais lógicas. “A maior parte mas não individualistas, competitivas e
da oferta de vagas no ensino superior concorrências de relações”, sintetiza.
é diretamente privada e já se transfor- Carolina Catini é formada em Pe-
mou em ativos financeiros há tempos. dagogia, mestra em Sociologia da Edu-

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cação e doutora na área de Educação, nha de Pesquisa Trabalho e Educação


Estado e Sociedade, todos cursos rea- no Programa de Pós-graduação da Fa-
lizados na Faculdade de Educação da culdade de Educação da Unicamp. En-
Universidade de São Paulo - USP. Pro- tre suas obras publicadas, destacamos
fessora do departamento de Ciências Privatização da educação e gestão da
Sociais da Educação da Faculdade de barbárie (São Paulo: Edições Lado Es-
Educação da Universidade Estadual de querdo, 2017).
Campinas - Unicamp, coordena a Li- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você pesquisa e na cultura. Boa parte da efetivação organizações sociais ligadas a bancos
a transformação da educação destes direitos sociais passou a ser e conglomerados empresariais, por
em ativo financeiro. Gostaria mediada por Organizações Sociais de meio de seus institutos e fundações,
que nos explicasse como se dá direito privado que são contratadas que muitas vezes passam a subcontra-
esse processo. pelas secretarias, municípios e esta- tar organizações sociais menores para
dos. Embora essa forma de funcio- realizar uma multiplicidade de serviços
Carolina Catini – Na verdade,
namento se chame “parceria público sociais pelas quais estão responsáveis.
eu estudo a forma social dos direi-
-privada”, e na Reforma do Aparelho Elas atuam isoladamente ou organiza-
tos sociais. E estou pesquisando as
de Estado realizada no governo FHC das em espécies de conglomerados de
mudanças que estão em curso na
se apresentasse como “serviços pú- trabalhos sociais empresariais, como
educação básica estatal provocadas
blicos não-estatais”, elas são, de meu o Todos pela Educação - TPE1, que
pela intensificação da privatização
ponto de vista, exatamente o contrá- é composto por organizações como
da educação, que está se dando pela
rio – serviços estatais, não públicos, Instituto Itaú Social, Instituto Uni-
prestação de serviços de organiza-
isto é, literalmente, serviços privati- banco, Fundação Bradesco, Instituto
23
ções sociais de direito privado. E
zados por tais organizações da socie- Lemann, Instituto Natura, Fundação
essa investigação leva à observação
dade civil, contratadas pelo Estado. Telefônica/Vivo, etc., e apoiado pela
da tendência colocada de maneira
As Organizações Sociais controlam Fundação Roberto Marinho (da rede
cada vez mais plena de transforma-
a gestão, a contratação de funcioná- Globo), pela família Johannpeter
ção da educação em ativo financeiro.
rios e, de acordo com sua linguagem (dona da Gerdau), pelo Burger King
Quando os maiores e mais lucrativos
própria, têm “missão” privada, com (parte do patrimônio do empresário
bancos e grandes conglomerados
atuação que diz respeito a seus prin- João Paulo Lemann, junto com Am-
empresariais se tornam prestadores
cípios religiosos, financeiros, de con- bev, Heinz e outras empresas), pela
de serviços educativos por meio de duta, procedimentos etc. Fundação Educar DPaschoal, pelos
contratos de gestão com o Estado,
O fato é que há um “mercado da ci- institutos das empreiteiras Cyrela e
eles não acessam recursos estatais
dadania” bem consolidado desde os MRV, pelo grupo Votorantim etc.
para realizar sua “responsabilidade
social”, mas também fazem uso de fins dos anos 1990 com aquilo que se E vale dizer, apenas como nota,
fundos de investimento próprios, chama de “neoliberalismo inclusivo” que embora a privatização dos servi-
abertos a negociações no mercado – que denotou até bem recentemente ços de saúde tenha se dado de modo
financeiro. Esse processo envolve os a associação do crescimento das polí- descentralizado pela terceirização
serviços em si, mas também o pró- ticas sociais e a inserção social de tra- das Unidades Básicas de Saúde -
prio patrimônio – antes considerado balhadores e trabalhadoras pelo con- UBSs, o modelo do TPE é seguido,
público – como os meios de trabalho, sumo com a privatização dos direitos por exemplo, pelo Instituto Coalizão
imóveis e terrenos estatais, os quais sociais. Essa privatização fortaleceu Saúde que reúne hospitais privados,
vão sendo apropriados privadamente organizações privadas, pela concen- empresas da indústria farmacêutica,
por tais organizações sociais e tam- tração de renda e controle de setores empresas de seguro e planos de saú-
bém podem compor fontes de espe- sociais imprescindíveis, como os ser- de para dar respostas “às demandas
culação e rentabilidade financeira. viços sociais de saúde e educação. da população e do país”.
A privatização do ensino funda- Conglomerados de traba- 1 Todos pela Educação (TPE): é uma organização sem fins
mental e médio está ocorrendo por lhos sociais
lucrativos composta por diversos setores da sociedade
brasileira com o objetivo de assegurar o direito à Educa-
um meio distinto e mais complexo ção Básica de qualidade para todos os cidadãos até 2022,
ano em que se comemora o bicentenário da independên-
do que a terceirização dos serviços Tal fortalecimento não se observa cia do Brasil. Fundado em 2006, o movimento conta com
sociais na saúde e na assistência so- necessariamente nas organizações da 32 organizações, entre mantenedores e parceiros, e quase
200 representantes divididos entre os diversos cargos da
cial, ou mesmo na educação infantil sociedade civil, mas sobretudo nas estrutura organizacional do TPE. (Nota da IHU On-Line)

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O TPE não terceiriza de maneira seleção, bem como envolverá a sele- Carolina Catini – A questão de
simples a gestão de escolas e siste- ção para preenchimento dos cargos fundo é a mudança de papel dos di-
mas de ensino, mas faz uma pres- por novos dirigentes. Também ofere- reitos sociais e do Estado para ges-
tação de serviços segmentada por ce serviços para 27 secretarias muni- tão das populações neste momento
cada um dos aspectos da divisão do cipais de educação, para estabelecer histórico que vivemos. A crise eco-
trabalho educativo, oferecida pelos parcerias com outras organizações nômica se dá por uma sobreacumu-
institutos e fundações de cada ban- privadas para desenvolvimento tec- lação de capitais fictícios, que é o
co e empresa privada, dentre outros nológico, gestão e formação de pro- desenvolvimento da forma plena do
“parceiros da educação”. Além de fessores e professoras. capital de fazer dinheiro virar mais
desenvolver pesquisas, gerar dados dinheiro, sem a mediação do traba-
O Instituto Ayrton Senna2 faz par-
e as evidências que precisa para lho e sua produção de mais-valia.
formular políticas públicas, como cerias com redes públicas desde os
Uma hipótese de investigação é que
as que deram base para a Reforma anos 1990 para desenvolvimento
se o controle dos direitos sociais pe-
do Ensino Médio, tais organizações de metodologias pedagógicas, e foi
las empresas e bancos privados se
também organizam e atuam direta contratado pela Secretaria Estadual
dá pela financeirização, os direitos
ou indiretamente (por meio da sub- de Educação de São Paulo para as-
sociais também se tornam formas
contratação de outras organizações sessorar toda a implementação do de investimentos nos trabalhadores
sociais) numa miríade de projetos Inova-SP – o programa que parece e trabalhadoras, numa especulação
e programas, contínuos ou tempo- dar corpo à Reforma do Ensino Mé- das forças de trabalho que podem se
rários, voltadas a cada um dos seg- dio. Os bancos Itaú e Unibanco, por tornar rentáveis no futuro. Além da
mentos do trabalho educativo esco- exemplo, que se fundiram em 2008, lógica em si, o problema mais grave é
lar e não escolar, entre a formação detêm Institutos culturais e sociais, que há hoje força de trabalho em ex-
de professores(as), a formação de organizam serviços próprios e tam- cesso que não pode ser empregável.
gestores, a inserção de tecnologias, a bém subcontratam outras entidades
privadas para fornecimento de servi- Essa hipótese persegue a noção de
compra de serviços e materiais didá-
ticos, projetos de empreendedoris- ços sociais temporários por meio de que os direitos sociais são formas
mo e capacitação profissional para editais próprios. Ambos os institutos históricas e se alteram em função
24 os jovens etc. Essas grandes empre- fomentam há longo tempo progra- daquilo que ele é proveniente, que é
sas e bancos mantêm seus fundos mas para juventude dentro e fora da a própria forma de realização da for-
em capital aberto para acionistas, escola, e foram instituições centrais ça de trabalho e a reprodução social
assim como investem seus próprios na coordenação da Reforma do En- de trabalhadores e trabalhadoras.
capitais em outros fundos. sino Médio. Se num momento histórico que cor-
respondia à consolidação de direitos
Se é certo que bancos e empresas públicos num Estado de bem-estar
Exemplos de atuação des- se interessam pelos repasses estatais
ses grupos social que, como sabemos, nunca se
por meio dos trabalhos de respon- efetivou plenamente nos países pe-
Só para dar alguns exemplos: o sabilidade social, com os fundos de riféricos, a dissolução da sociedade
Instituto Lemann faz “formação investimento e fundos patrimoniais industrial e salarial e as mudanças
de lideranças” – que se desenvolve para financiar as atividades educati- nas formas da exploração e contratos
para formar gestores do setor priva- vas e culturais, é difícil saber o que da força de trabalho alteram ainda
do e público e, mais recentemente, são recursos provenientes do Estado mais as formas dos direitos sociais.
também para formar líderes com e de fundos privados. Tais institutos No entanto, a privatização dos direi-
carreiras políticas, independente do e fundações têm atuação nacional, tos sociais não se dá em detrimento
partido que vá representar. A “ban- com programas distintos em cada do Estado ou de seu enfraquecimen-
cada Lemann” se apresenta como estado e município e o grau de ar- to, mas de seu fortalecimento como
suprapartidária, como o Todos pela ticulação entre eles e o Estado é de protetor dos direitos privados indivi-
Educação, mostrando que há uma uma simbiose cuja profundidade é duais. Não parece que se trata de um
sobreposição das decisões dos em- difícil de mensurar. Estado Mínimo, mas de um Estado
presários – isto é, de quem perso- amplo que faz a gestão social em con-
nifica o capital – a qualquer decisão junto com empresas privadas e ban-
IHU On-Line – Como compre-
política. O Instituto Lemann foi con- cos – que não estão disputando com
ender a questão de fundo que
tratado recentemente pela Secre- o Estado o controle da educação, mas
proporcionou a transformação
taria Estadual de Educação de São concorrendo umas com as outras,
da Educação Básica em ativos?
Paulo para fazer a seleção dos diri- enquanto o Estado é indutor e fiador
gentes da educação que coordenam 2 Instituto Ayrton Senna: ONG brasileira criada pela
destes novos contratos de prestação
os trabalhos nas diretorias regionais família Senna em 1994 tendo como presidente Viviane de serviços sociais. A hibridização
Senna, empresária e irmã do tricampeão de Fórmula 1. O
de ensino e decidiu, por critérios do Instituto concretiza o sonho de Ayrton Senna de ajudar o de recursos públicos e privados para
instituto, retirar do cargo 36 dos 91 Brasil a diminuir as desigualdades sociais, criando oportu-
nidades de desenvolvimento humano a crianças e jovens
manutenção de serviços sociais indi-
dirigentes que fizeram parte dessa por meio da educação. (Nota da IHU On-Line) ca essa simbiose entre o que é estatal

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e privado, mas perdem o caráter pú- vos financeiros é distinto em cada mente favorecido pelos programas
blico que assumiram num momento nível de ensino, estão se desenvol- sociais como o Programa Universi-
específico da história. vendo paralelamente e tem pontos dade para Todos - Prouni e o Fundo
de contato. É preciso considerar que de Financiamento ao Estudante do
Virginia Fontes3 considera as Fun-
enquanto grande parte do ensino Ensino Superior - Fies, com recur-
dações e Associações Sem Fins Lu-
básico é estatal e as formas de pri- sos estatais aplicados em fundos de
crativos - Fasfil aparelhos privados
vatização são mais escamoteadas, a investimento com lucros garantidos.
de hegemonia, que compõem um
maior parte da oferta de vagas no en- Isso ampliou o poder econômico de
Estado ampliado. Do mesmo modo,
sino superior é diretamente privada uma instituição financeira (mais que
Lúcia Maria Wanderley Neves4 es-
e já se transformou em ativos finan- educativa) como a Kroton, que em
tuda a atuação das organizações
ceiros há tempos. A questão agora 2014 tinha 40% de seu faturamento
sociais como estratégias do capital
é quebrar as barreiras que restam e proveniente de recursos estatais. Em
para educar o consenso.
envolver as universidades públicas 2016 sua rede de ensino superior ul-
Essa é uma mudança radical na neste processo. trapassou 1 milhão de estudantes no
forma de organização social e tem país. A gratuidade dos serviços ou o
Não tenho condições de uma expo-
diversas consequências. Arrisco di- financiamento de parte das mensali-
sição desse processo mais pormeno-
zer que estamos assistindo à maior dades pelas bolsas aqui representava
rizado no ensino superior, mas há
transformação da educação desde a ampliação do acesso ao direito à
boas pesquisas como as desenvolvi-
sua massificação pela forma escolar educação pelas classes populares, ao
das, por exemplo, por Lalo Minto5 da
e o que é novo é justamente fruto da mesmo tempo que permitiu a maior
Unicamp e de Allan Kenji6 na Uni-
terceirização dos serviços sociais, concentração de renda e a constante
versidade Federal de Santa Catarina
que permitiu que ela se tornasse operação no mercado financeiro.
– UFSC, que destrincham relações
ativo financeiro de uma imensa in-
entre público, privado e financeiriza- No mesmo ano de 2016, logo após a
dústria de serviços educativos. Des-
ção no ensino superior, mas também segunda onda de ocupações de esco-
de que a Organização Mundial do
de Roberto Leher7, Wlademar Sguis- las, o braço social da empresa, a Fun-
Comércio - OMC estabeleceu que a
sard8, entre outros. dação Pitágoras – que leva o mesmo
educação é um bem e serviço comer-
nome que a rede de ensino privado 25
cializável como qualquer outro, na Entretanto, cabe um destaque em
em Minas Gerais, lançou o progra-
primeira década dos anos 2000, ela relação à articulação entre o ensino
ma Aliança Brasileira pela Educação
passou a circular no mercado finan- superior e básico, com o exemplo da
- ABE que passou a oferecer serviços
ceiro, nas bolsas de valores, no ar- Kroton9. Esse processo foi ampla-
gratuitos às secretarias de educação
rolamento dos títulos da dívida pú-
básica estatais para a “pacificação”
blica, tudo isso com parte dos lucros 5 Lalo Minto: graduado em Economia pela Universidade
Estadual Paulista, mestre e doutor em Educação pela Uni- das relações escolares. Os ativos fi-
garantidos pelo Estado. Isso não está versidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor
do Departamento de Filosofia e História da Educação, da nanceiros do ensino superior da rede
transformando apenas a estrutura Faculdade de Educação da Unicamp. (Nota da IHU On-Line) privada da Kroton financiam os tra-
da educação e seu financiamento, 6 Allan Kenji: possui graduação em Psicologia pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina e mestrado em Edu- balhos sociais da empresa no ensino
mas também os processos educati- cação pela UFSC. Atualmente é estudante de doutorado
no Programa de Pós-graduação em Educação e coorde- básico, apresentado por ela como o
vos e a formação ofertada. nador do Grupo de Estudos da Teoria Marxista da Depen- “maior mercado da América Latina”,
dência da Escola de Formação Política da Classe Trabalha-
dora - Vânia Bambirra. (Nota da IHU On-Line) com 58 milhões de matrículas e 83%
7 Roberto Leher: reitor da Universidade Federal do Rio
IHU On-Line – Quais os riscos de Janeiro, professor Titular da Faculdade de Educação
em instituições públicas. Processos
de o ensino superior sofrer as e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ como este permitem a entrada da
na linha Políticas e Instituições Educacionais. Doutor em
mesmas incidências da educa- Educação pela Universidade de São Paulo, desenvolve empresa na educação básica estatal e
pesquisa em políticas públicas em educação. (Nota da
ção básica, transformando-se IHU On-Line)
a disputa com outros monopólios dos
em ativo financeiro? 8 Wlademar Sguissard: licenciado em Filosofia pela Uni- serviços de educação, como o TPE.
versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul, mestrado em Science de l’Éducation - Université de
Carolina Catini – O processo de Paris X, Nanterre e doutorado em Sciences de l’Éducation
- Université de Paris X, Nanterre. É professor Titular apo-
transformação da educação em ati- sentado da Universidade Federal de São Carlos e profes- IHU On-Line – Quais os riscos
sor aposentado da Universidade Metodista de Piracicaba. de uma educação financeirizada?
(Nota da IHU On-Line)
9 Kroton Educacional: é a maior empresa privada do
3 Virginia Fontes: historiadora, com mestrado na Univer- mundo no ramo da educação. Fundada em 1966 em Belo Carolina Catini – Os riscos são
sidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em Filosofia
- Université de Paris X, Nanterre. Atua na Pós-Graduação
Horizonte a partir da criação de uma empresa de cursos
pré-vestibular chamada Pitágoras, a Kroton atua em todos
os mesmos colocados aos da concor-
em História da UFF, onde integra o Núcleo Interdisciplinar níveis escolares, tais como: pré-escolar, ensino primário rência mercantil: há investimento
de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o marxismo. Entres e secundário, ensino secundário para adultos, vestibular,
suas obras estão Reflexões Im-pertinentes (2005), O Brasil e cursos livres, educação superior e pós-graduação entre naquilo que pode se tornar rentável
o capital-imperialismo: teoria e história (2010) e inúmeros outros. Kroton tem mais 1,185 milhão de estudantes pre-
artigos em periódicos nacionais e internacionais. (Nota da senciais e 819.000 na modalidade de EAD, com 290.000
IHU On-Line) estudantes na educação básica em 127 campi e 726 polos
4 Lúcia Maria Wanderley Neves: graduada em Peda- divididos entre 11 marcas educacionais que estão distri- a marca Unopar; e 10 mais com as marcas Unime, Ceama,
gogia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, buídas em todos os estados Brasileiros. A empresa tam- Unirondon, Fais, Fama e União em 10 estados brasileiros.
possui mestrado em Educação pela UFPE e doutorado em bém está envolvida na distribuição, atacado, varejo, im- Ela também opera 804 escolas associadas no Brasil sob a
Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É portação, e exportação de livros didáticos e revistas, entre marca Pitágoras, bem como 5 escolas parceiras no Japão e
professora aposentada da UFPE, pesquisadora visitante do outras publicações. Além disso, ela licencia produtos pe- 1 escola parceira no Canadá. É a maior empresa brasileira
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e da dagógicos relacionados com a escola. A empresa opera 21 no segmento de ensino superior para o número de alunos
Fundação Oswaldo Cruz. (Nota da IHU On-Line) campi com a marca Pitágoras; 10 com a marca Unic; 5 com e de receita. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

e o investimento é intermitente de diretamente pelos investidores, sem tes e pesquisadores pelas entidades
acordo com os interesses dos grupos mediações. Com isso, qualquer ca- privadas, o que altera radicalmente
financeiros. Certamente algumas ráter inclusivo do neoliberalismo se nossas relações de trabalho. A ra-
áreas da educação receberão maio- esvai e sobra a concorrência pura e dicalização aqui se dá pela criação
res investimentos que outros, am- simples. O que está em jogo é cada do fundo que pode colocar serviços,
pliando a desigualdade entre cam- um de acordo com suas capacidades os imóveis, os terrenos e tudo que a
pos de produção de conhecimento. de demonstrar que pode ser um in- Universidade produzir no bojo dos
O que podemos esperar da produção vestimento rentável. processos de financeirização, que é
de conhecimento e formação profis- o segundo eixo do programa.
sional cada vez mais sob controle do
Como muitos pesquisadores já
capital? E mais: do capital em crise,
buscando saídas de emergência para “Há um apontaram, é verdade que a cria-
ção de tal fundo, em conjunto com
sua reprodução?
A terceirização de parte dos servi-
‘mercado da os cortes e desvinculação de gastos
com orçamento estatal, é uma fonte
ços de educação por diferentes orga- cidadania’ bem de financiamento incerta e duvidosa,
nizações sociais já coloca em curso a que pode privilegiar certas áreas em
desigualdade entre os serviços pres- consolidado detrimento de outras. Trata-se da

desde os fins
tados à sociedade, bem como sua tentativa de transformação da uni-
intermitência. Os direitos sociais se versidade pública em uma Organi-
tornam tão intermitentes quanto o
trabalho, uma vez que as organiza- dos anos 1990 zação Social, que disputa por finan-
ciamentos e captação de recursos
ções privadas devem competir para
a prestação de serviço e dependem com aquilo que como qualquer outra. Isso é bastante
grave, pois trata de sua apropriação
de licitações e editais e contratos
estatais para tanto. Ao mesmo tem- se chama de privada no bojo de um processo uma
mudança completa na forma de or-

26
po, a crise econômica de longa data
implica no aumento da demanda
‘neoliberalismo ganização social.
Ainda há água para correr entre o
pelos serviços sociais por uma mas-
sa de desempregados, ou que por
inclusivo’” andamento da implementação do
programa e na nossa capacidade de
vezes encontra trabalho precário e
resistência e organização. Mas não
com baixos salários, num cenário
me parece correto denominar esse
de grandes transformações tecnoló-
IHU On-line – Qual sua avalia- processo de privatização e financeiri-
gicas e aumento de um mercado de
ção quanto ao Future-se? zação como um retrocesso, pois não
serviços controlados por empresas
há qualquer momento do passado
de aplicativos. Carolina Catini – Muitas ava- com o qual se possa identificar tama-
Desse modo, a gestão das popula- liações foram feitas e publicadas nha forma de controle e apropriação
ções se dá por direitos sociais que desde que o Future-se foi apresen- privada da ciência e da formação.
funcionam como investimentos e tado pelo Ministério da Educação
em julho deste ano. Já conhecido A consideração de que esse seja um
também como contenção social, o
como “Fature-se” nos meios aca- movimento anacrônico e retrógrado
que por vezes ocorre de modo conco-
dêmicos, o programa se baseia no pode nos levar à avaliação equivoca-
mitante. E grande parte das pessoas
mesmo processo que induz à priva- da da função dessa forma de gestão
está cada vez mais submetida à ges-
tização de outros serviços sociais: estatal para o capital e suas crises.
tão pela violência, não como sujeitos
o sucateamento drástico dado pelo Isso parece representar exatamente
do direito, mas como objetos da in-
subfinanciamento que conduz à ter- o progresso da educação capturado
tervenção, de confinamento, contro-
ceirização, dado que as condições pelo capital e não um retorno a um
le e vigilância social constantes, por
de trabalho vão se deteriorando, e momento pré-iluminista. De qual-
uma gestão estatal que é também
se torna mais fácil a comprovação quer modo, esse projeto de raciona-
empresarial e militar. É claro que
da eficiência – e as vezes até mes- lização e esclarecimento não pode ser
há aqui diversos outros aspectos da
mo a necessidade – do setor priva- reivindicado pela esquerda, pois sa-
questão da financeirização e privati-
do para a prestação de serviços. Um bemos na barbárie que ele culminou.
zação dos direitos sociais, mas é pre-
ciso destacar que é dessa gravidade dos eixos do programa se refere à Ao contrário, tal processo corres-
que estamos falando. Ela diz respeito contratação de Organizações So- ponde à forma mais desenvolvida do
a uma nova cisão social entre quem ciais para terceirizar partes da ges- capital e se há uma razão que rege tal
tem o direito de ter acesso a um ser- tão que, como vimos, pode se trans- processo é regulação social pela con-
viço transformado em investimento formar ela mesma em processo de corrência privada. Ela aponta para
à sua inserção social pela exploração financeirização, mas também da um futuro, mas um futuro no qual
ou não. O que passa a ser estipulado contratação de funcionários, docen- apenas cabem aqueles que vencem

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degraus da disputa concorrencial do trabalho fosse um projeto de vida que outras perspectivas saiam do
desvairada, um futuro da geração de cada um de nós. horizonte de expectativas. É possí-
sem futuro que, sem perspectiva de vel notar uma unidade na metodo-
estabilidade, é impelida desde cedo a Trabalho docente logia pedagógica das fundações e
aprender as regras da concorrência. institutos empresariais, que envol-
Ela se vincula com o terceiro eixo do Para o trabalho docente, o em- vem o emprego de tecnologias, os
programa que é o empreendedoris- preendedorismo pode configurar projetos de vida dos jovens e o con-
mo e a inovação. pela precarização dos contratos de trole dos comportamentos pelas ha-
trabalho, como está ocorrendo nas bilidades socioemocionais. Não por
escolas básicas particulares, pela acaso também a Polícia Militar, no
IHU On-Line – Uma lógica co- contratação como Microempreende-
papel de educadora que cumpre nas
mum ao mundo do trabalho é a dor Individual - MEI e pode ocorrer
escolas públicas há mais de 25 anos,
do empreendedorismo. Como com a terceirização dos serviços de
pelo Programa Educacional de Re-
observa a apropriação da ideia educação, que abre a perspectiva de
sistência às Drogas e à Violência -
de empreendedorismo e inova- colocar sob controle de organizações
Proerd, por exemplo, também ado-
ção pelo campo da Educação? sociais privadas uma parcela bastan-
tou metodologia semelhante desde
te considerável de trabalhadores e
Carolina Catini – A lógica do em- 2015, com a ênfase na mudança de
trabalhadoras da educação estatal,
preendedorismo incide sobre o tra- condutas e formas de comunicação
com toda a instabilidade dessa pres-
balho educativo e sobre a formação com base na teoria de aprendiza-
tação de serviço intermitente.
da juventude, colocando-se ainda gem socioemocional.
como possibilidade de se apresentar No ensino superior, o empreende-
Já faz tempo que o protagonismo
como contrapartida para os direitos dorismo nos coloca como captadores
juvenil faz parte do linguajar das
sociais privatizados. O empreende- de recursos e competidores pelos
fundações empresariais que fazem
dorismo é, na verdade, uma ideolo- mesmos fundos públicos e privados,
formação da juventude. Depois das
gia, pois se apresenta como forma nos transformando em gestores de
projetos de pesquisa. Já há abertura ocupações de escolas, tornou-se
de manifestação de seu oposto. A
para estabelecimento de convênios comum falar em transformar lide-
liberdade individual para inovação
e autonomia na organização do tra- diretos com empresas privadas para ranças de ocupação em lideranças 27
pesquisas e patentes, mas a amplia- empreendedoras. Por meio de ob-
balho são formas de controle social
ção do corte do financiamento pú- servação e acompanhamento de
que não se dão pela passividade,
blico, bem como o corte de bolsas casos que encontrei na pesquisa
mas pela manutenção da atividade
de pós-graduação, a estagnação dos que estou realizando, levanto uma
e engajamento constante de traba-
planos de carreira e o crescimento hipótese para o empreendedoris-
lhadoras e trabalhadores para a pró-
de editais de organizações sociais mo na educação, que diz respeito a
pria exploração do trabalho. Apesar
da impressão de autonomia para privadas para o financiamento da outra mudança, consequência de os
organização do próprio trabalho e pesquisa aprofundam e alteram o direitos sociais se efetivarem pelo
organização individual da vida, tudo caráter empreendedor no trabalho intermédio de entidades privadas:
que é criado tende a ser capturado e da educação. Além da concorrência, eles aparecem como gratuitos, mas
fundido às empresas de serviços por tudo isso implica num enquadra- exigem contrapartidas dos usuários.
aplicativos, por exemplo, ou quais- mento mais severo do tipo de pes-
quer outras formas empresariais. quisa a ser financiado, bem como na Trabalho voluntário e em-
autonomia da escolha dos objetos de preendedorismo social
Além disso, há impressão de que estudo, metodologias e divulgação
um celular ou aplicativo torna-se No caso das mil formas de confi-
dos resultados. Quem paga a banda
um suporte para seu trabalho, mas namento pela educação não formal
escolhe a música.
ele é o representante de um patrão, ofertada aos jovens de periferia pe-
ele é o controle do trabalho por uma las fundações de bancos e empresas,
Ensino do empreendedoris-
megaempresa, muitas vezes interna- mo a contrapartida se dá pelo trabalho
cional, que emprega nossa atividade. voluntário ou empreendedorismo
Desse modo, tendemos a trabalhar Empregado na formação o empre- social. Nas escolas, o empreende-
antes de estar empregado, sem re- endedorismo parece cumprir um dorismo é colocado como atividade
muneração, por nossa inserção no papel de encerrar as alternativas de de disciplinamento para o traba-
mundo da exploração do trabalho. O vida e sobretudo a luta contra a ex- lho, mas também pode se desenhar
incentivo constante ao empreende- ploração. Para os estudantes, o en- como contrapartida de um direito
dorismo conduz a uma proatividade sino do empreendedorismo implica privatizado. Além de os jovens tra-
subserviente ao sistema, que envolve na naturalização dessa necessidade balharem nas escolas, projetos como
a concorrência e o emprego do tem- de autoengajamento constante vol- as parcerias instituídas com o Se-
po no investimento por tornar-se tada para a própria sobrevivência e brae, por exemplo, realizam feiras
competitivo, como se a exploração inserção no trabalho, fazendo com para comercialização dos produtos

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TEMA DE CAPA

feitos pelos estudantes nas quais se IHU On-Line – Qual a impor- lações de trabalho e formação que
ensaiam formas de arrecadação de tância da manutenção de uma neguem o empreendedorismo e a
recursos não estatais. O rendimento universidade pública no país? privatização.
de tal comércio depende da estrutu-
Carolina Catini – Bom, estamos Precisamos ganhar tempo porque
ra da escola e do financiamento das
sendo expropriados por todos os la- estamos aprendendo a lutar con-
empresas privadas, variando entre
dos e é importante resistir e manter tra essa nova razão que orienta as
artesanatos produzidos com suca-
os espaços e meios de trabalhos e formas de dominação econômica,
tas até máquinas, robôs e produtos
formação ainda não completamen- política e social. A aparência demo-
elaborados com impressoras 3D.
te deteriorados e subsumidos pelo crática que algumas organizações
De qualquer forma, parece que faz
capital. A universidade brasileira sociais privadas levam em sua luta
sentido a palavra de ordem “Nunca
ainda se preserva da avalanche das por direitos sociais, assim como
mais direitos sem contrapartidas”,
privatizações e da militarização dos sua experiência na eficiência de
como Dardot10 e Laval11 sintetizam
trabalhos sociais. Não se trata do de- gestão, atrapalha a avaliação das
uma das bandeiras do neoliberalis-
sejo de restaurar nada, como apon- concessões que se fazem em torno
mo total, no livro A nova razão do
Mundo12. tou Paulo Arantes13 em entrevista ao de tais processos de privatização.
Brasil de Fato14, porque quem está Não obstante, a organização fi-
Modernização ultraconser- na universidade pública hoje sabe nanceira tem como razão de existir
vadora dos limites de nossa atuação para a o lucro e não a melhoria das con-
formação crítica, desenvolvimento dições de vida de trabalhadores e
O ministro da Educação apresen- de processos coletivos de pesquisa e trabalhadoras. A exigência de con-
tou o empreendedorismo como o produção de conhecimento. trapartida que elas podem exigir
futuro livre das amarras dos em- certamente ampliará a desigual-
Espremidos que estamos pela
pregos fixos e concursos públicos, dade entre estudantes de cada seg-
intensificação do trabalho e pela
incentivando a abertura de startups mento social e os que ingressaram
produtividade etc., a luta não deve
dentro da Universidade. Há a possi- por cotas ou programas sociais que
se orientar pelo corporativismo e
bilidade de se desenhar um modelo recém popularizou a universidade
justificativas meritocráticas para
28 que funde trabalho e educação, no
a manutenção dessa forma social,
e alterou sua função social.
qual boa parte da atividade edu-
mas pelo sentido que ela pode ga- E é claro que o Estado está em imen-
cativa se centre na formação pelo
nhar na luta para impedir a sub- sa vantagem, podendo, por exemplo,
próprio trabalho, subordinado dire-
serviência completa da educação cortar financiamento das universi-
tamente pelos donos do capital, que
às relações mercantis e financei- dades e institutos federais, gerando
se apresentam como os organizado-
rizadas. Deixar que as instituições a situação de emergência, na qual
res dos direitos sociais.
do mercado financeiro presidam muitas delas estão declarando insu-
Mais uma vez, nada disso se apre- as políticas educativas, organizem ficiência de recursos para manter o
senta como um retrocesso, mas práticas e comandem as pesquisas funcionamento nos próximos meses.
sim como uma modernização das científicas é deixar se criar uma Precisamos nos preparar para essa
relações sociais com sentido ultra- nova normatividade, controlada e outras táticas que serão utilizadas
conservador, na qual se destroem e de ponta a ponta por elas. Penso para induzir o consentimento da pri-
degradam todas as linhas de uma or- mesmo que não há chance de res- vatização e financeirização.
dem social precedente para finalizar tauração. Ou o capital se apropria
Mas mesmo com as adversidades
um ciclo histórico e manter a ordem e muda por completo a forma so-
de nossas relações de trabalho, ain-
dentro do caos, numa contenção so- cial da Universidade ou resistimos
da há espaço para experiências for-
cial que se dá pela guerra concorren- para criarmos formas novas de re-
mativas consistentes, intelectuais e
cial de todos contra todos.
13 Paulo Arantes: graduado em Filosofia pela Univer-
práticas, na universidade pública. E
sidade de São Paulo - USP, fez doutorado de Troisième num momento em que se eleva um
Cycle na Université de Paris X, Nanterre, com a tese Hegel:
l’ordre du temps (Paris: Harmattan, 2000), também dispo- anti-intelectualismo e controle de
10 Pierre Dardot: filósofo e pesquisador da universidade nível em português, Hegel: a ordem do tempo (São Paulo: todas as práticas sociais, é preciso
Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensa- Hucitec, 2000). Arantes é docente emérito da Faculdade
mento de Marx e Hegel. Desde 2004, com Christian Laval, de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, do Departamen- manter essas frestas abertas e fazer
coordena o grupo de estudos e pesquisa Question Marx, to de Filosofia da USP. Escreveu várias obras, entre elas
que procura contribuir com a renovação do pensamento Um departamento francês de ultramar (São Paulo: Paz e expandir alguma capacidade de ação
crítico. Publicou no Brasil, juntamente com Christian Laval, Terra, 1994); Ressentimento da dialética (São Paulo: Paz e para criação de formas não individu-
o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota Terra, 1996); e Extinção (São Paulo: Boitempo, 2007). Pro-
da IHU On-Line) fessor aposentado da USP, o pensador marxista dirige a alistas, competitivas e concorrências
11 Christian Laval: pesquisador e professor de sociologia coleção Zero à Esquerda, da Editora Vozes, e a Coleção
da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. É autor Estado de Sítio, da Boitempo. Sua obra associa o rigor da de relações. Talvez assim a universi-
de L’Homme économique: Essai sur les racines du néoli-
beralisme (Gallimard, 2007) e também de um volume de
filosofia hegeliana e marxista com análises sociológicas e
antropológicas da realidade cultural brasileira. Concedeu
dade possa ser um dos lugares que
história da sociologia, L’ambition sociologique (Gallimard, e entrevista “A violência institucional ilegal é exercida hoje alimente a luta contra a barbárie que
2012). Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot, como uma política sistêmica. Governos não fazem mais a
o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota diferença” à edição 248 da revista IHU On-Line, disponível estamos vivendo. E a luta coletiva e
da IHU On-Line)
12 São Paulo: Editora Boitempo, 2016. (Nota da IHU
em http://bit.ly/kQ0npm. (Nota da IHU On-Line)
14 A entrevista está disponível em http://bit.ly/3094I2w.
auto-organizada é sempre fonte para
On-Line) (Nota da IHU On-Line) essa criação.■

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O lucrativo mercado da educação


e da ciência que extermina a
universidade pública e democrática
Boaventura de Sousa Santos explica que as lógicas
colonialistas e neoliberais barram outras formas de
conhecimento que não sejam a favor do mercado
João Vitor Santos e Wagner Fernandes de Azevedo

O
capitalismo compreendeu que Dentro dessa trajetória contraditó-
mercantilizar a educação é ex- ria, formula-se “o capitalismo univer-
tremamente lucrativo. No en- sitário”. A educação como mercadoria
tanto, essa construção não é recente. A lucrativa faz dos estudantes “consu-
ciência construiu-se como um conhe- midores de um serviço produzido pela
cimento colonizador, subjugando e ex- universidade de que os trabalhadores
terminando os conhecimentos que bus- mais qualificados são os professores”.
cavam a interligação do ser humano e Boaventura expõe que esse processo
a natureza. O conhecimento abstraído, se formula em cinco fases: primeiro, “a
separado e fragmentado, constitui-se degradação financeira da universidade
como base da exploração da Terra e dos pública transferindo recursos para o
povos que a ela se identificavam. O so- setor privado”; segundo, “privilegiando 29
ciólogo português Boaventura de Sousa a formação da força de trabalho exigi-
Santos explica, em entrevista concedi- da pela economia”; terceiro, “torna-se
da por e-mail à IHU On-Line, que “a mercado onde os estudantes deviam
concepção [de natureza] que foi ado- pagar para entrar”; quarto, “criam-se
tada nas colônias foi a concepção car- rankings das universidades para que
tesiana porque era essa a que permitia cada universidade passasse a ter um
explorar os recursos naturais sem limi- valor de mercado globalmente reconhe-
te e mesmo considerar os povos nativos cido”; e, por fim, “a universidade deve
como parte da natureza e, tal como ela, ser gerida como uma empresa capitalis-
totalmente disponíveis para os interes- ta privada”. O sociólogo identifica que
ses coloniais”. no Brasil todas as fases do capitalismo
A ciência, para Boaventura, tem um universitário estão articuladas no pro-
caráter ambíguo e contraditório, pois grama Future-se: “avança de maneira
“tem um pluralismo interno, pode ser brutal, tipo terapia de choque, para
um instrumento contra a dominação queimar etapas e fazer colapsar as fases
capitalista, colonialista e patriarcal mas acima mencionadas”.
o conhecimento científico continua Para o sociólogo é necessário, mais
afirmando uma superioridade incondi- que a defesa da universidade pública,
cional e em abstrato que acaba por legi- a defesa de uma reforma universitária
timar o epistemicídio”. Para o sociólo- – aos moldes da Reforma de Córdoba
go, esse pluralismo coloca a ciência em de 1918 – a partir de cinco vetores: a
disputa, sendo a universidade o local democratização da universidade; a re-
dos diferentes enfrentamentos. “Nas conversão epistemológica, ao que de-
últimas décadas houve esforço notável signa como Epistemologias do Sul; a
no sentido de tornar esse projeto [de luta contra o elitismo; o testemunho na
universidade pública] mais inclusivo prática da sua vocação anticapitalista,
e intercultural. Esse esforço está hoje antipatriarcal, anticolonialista; e a cria-
no centro da hostilidade à universida- ção de formas não capitalistas (fora da
de pública. É que o neoliberalismo não lógica dos rankings) de cooperação in-
está mais interessado em projetos de teruniversitária, tanto a nível nacional
país”, acrescenta. como internacional.

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TEMA DE CAPA

Boaventura de Sousa Santos é the Cognitive Empire (Duke University


professor catedrático da Faculdade de Press, 2018); Pneumatóforo: Escritos
Economia da Universidade de Coim- Políticos 1981-2018 (Almedina, 2018);
bra e Distinguished Legal Scholar da Esquerdas do Mundo, Uni-vos! (Boi-
Faculdade de Direito da Universidade tempo, 2017); Decolonising the Uni-
de Wisconsin-Madison e Global Legal versity (Cambridge Scholars, 2017);
Scholar da Universidade de Warwick. É Justicia entre Saberes: Epistemologías
igualmente diretor do Centro de Estu- del Sur contra el Epistemicidio (Mora-
dos Sociais da Universidade de Coim- ta, 2017); As bifurcações da ordem. Re-
bra, diretor do Centro de Documenta-
volução, cidade, campo e indignação
ção 25 de Abril da mesma Universidade
(Editora Cortez, 2016); A Difícil Demo-
e coordenador Científico do Observató-
cracia - Reinventar As Esquerdas (Boi-
rio Permanente da Justiça Portuguesa.
tempo Editorial, 2016).
Entre sua vasta produção bibliográfica,
citamos os recentes livros The End of Confira a entrevista.

IHU On-Line — Como se cons- tureza, a cartesiana, que concebia a do uma superioridade incondicional
tituiu o conhecimento científi- natureza como desprovida de digni- e em abstrato que acaba por legiti-
co nos países colonizados? dade divina e, por isso, à disposição mar o epistemicídio, ontem como
dos seres humanos (res extensa), e hoje. Se eu quero ir à lua preciso do
Boaventura de Sousa Santos
a concepção espinozista que distin- conhecimento científico, mas se eu
— Constituiu-se como parte inte-
guia entre a natureza inerte (natura quero conhecer e defender a biodi-
grante do processo colonial. Foi
naturata) e a natureza fonte sagrada versidade da Amazônia, preciso do
sempre mais uma questão de poder
de vida (natura naturans) e, como conhecimento indígena. Isto, que
do que de saber e envolveu sempre
30 a destruição dos conhecimentos que
tal, plena de dignidade divina (deus parece evidente, continua a ser ne-
sive natura). A concepção que foi gado pelas concepções dominantes
vigoravam nas regiões do mundo por
adotada nas colônias foi a concepção de ciência e do ensino superior.
onde se expandiu o colonialismo eu-
cartesiana porque era essa a que per-
ropeu. Chamo isso de epistemicídio.
mitia explorar os recursos naturais
O epistemicídio foi sempre o outro IHU On-Line — De que forma
sem limite e mesmo considerar os
lado do genocídio: populações sem podemos compreender hoje,
povos nativos como parte da natu-
valor humano porque ignorantes ou no Brasil e no mundo, o papel
reza e, tal como ela, totalmente dis-
detentoras de conhecimentos sem da universidade pública?
poníveis para os interesses coloniais.
validade ou até perigosos. Nunca
atuou em separado do conhecimento Boaventura de Sousa Santos
teológico, a evangelização. — Dado o seu pluralismo interno,
IHU On-Line — Como, no con-
a ciência pode ser um instrumento
Mas este projeto teve diferentes texto atual do Brasil e do mun-
contra a dominação capitalista, co-
trajetórias em diferentes regiões do do, é possível compreender a
lonialista e patriarcal. A universi-
mundo. Na Ásia e em parte da África colonialidade dos saberes?
dade pública em contexto democrá-
e das Américas, onde existiam im- Boaventura de Sousa Santos tico tem defendido esse pluralismo
périos que detinham e sustentavam — O colonialismo, ao contrário do ao defender a liberdade acadêmica
sistemas de conhecimento ordenado que se pensa, não terminou com as como pressuposto da produção de
e, por vezes, escrito, o epistemicídio independências, apenas mudou de um conhecimento livre, crítico e
foi particularmente violento e, para- forma. Passou a ser um colonialis- independente. Esse conhecimento
doxalmente, foi acompanhado pelo mo interno, desde a concentração confronta as elites retrógradas ao
fascínio da diferença epistemológica de terra até ao racismo. Vivemos em pôr a sua dominação injusta a nu.
e a absorção ou aproveitamento se- sociedades capitalistas, colonialistas Daí que elas não desperdicem as
letivos. Em outras regiões, a ciência e heteropatriarcais. Obviamente, a oportunidades para tentar neutrali-
e a evangelização atuaram como se questão epistemológica é hoje muito zar a universidade pública. Por outro
operassem em tabula rasa. A ciên- mais complexa porque a ciência tem lado, a universidade pública foi onde
cia colonial foi sempre uma ciência um pluralismo interno que permi- se construíram os projetos de país.
truncada em relação ao conheci- tiu que ela também se tornasse um Estes projetos foram quase sempre
mento existente na Europa. Por instrumento eficaz contra o colo- excludentes, pois não incluíram a
exemplo, no século XVII estavam nialismo. Parte do ataque de hoje à história da resistência anticolonial,
vigentes (ainda que com difusão universidade vem daí. Mas o conhe- os povos indígenas, os povos de ma-
diferente) duas concepções de na- cimento científico continua afirman- triz africana, as mulheres, para não

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falar dos direitos do povo cigano ou blica (e a universidade privada não dade pública (incluindo salários de
de pessoas com necessidades espe- lucrativa e com missão universitária, professores e bloqueio de carreiras)
ciais etc. isto é, a universidade que recusa ser para permitir a criação de univer-
uma universidade-negócio) é talvez sidades privadas com pessoal qua-
Porém, nas últimas décadas houve
a mais bem administrada instituição lificado. Os primeiros professores
esforço notável no sentido de tornar
do Estado e aquela em que há menos foram quase todos formados em uni-
esse projeto mais inclusivo e inter-
corrupção. É um espaço de convi- versidades públicas em cuja forma-
cultural. Esse esforço está hoje no
vência democrática que começa a ção o Estado tinha feito um grande
centro da hostilidade à universidade
conhecer os limites da sua democra- investimento. Deu-se, assim, o que
pública. É que o neoliberalismo não tização e no melhor dos casos, aliás podemos designar como a acumu-
está mais interessado em projetos de frequentes, começa a tomar medidas lação primitiva do sistema privado
país. Para ele, a economia é uma só, para os ir ultrapassando. Também de ensino superior: uma transferên-
capitalista e global, e as elites que a nesta medida se transforma numa cia massiva de investimento público
governam devem ser treinadas em ameaça para o poder conservador e para o setor privado.
universidades igualmente globais. suas elites que querem preservar o
As universidades nacionais são em- elitismo das universidades para as A segunda fase consistiu na ideia
pecilho perigoso. manter ao seu serviço. de que a universidade devia privile-
giar a formação da força de trabalho
IHU On-Line — Existe um as- qualificada exigida pela economia.
“A ciência sédio neoliberal às universida-
des? Como ele se dá e que ne-
Todos os outros objetivos deviam ser
negligenciados ou eliminados.
pode ser um oliberalismo é esse que incide
também sobre os saberes? A terceira fase foi que a universi-

instrumento Boaventura de Sousa Santos


dade pública devia ser ela própria
um mercado onde os estudantes de-

contra a
— O neoliberalismo começou a pe- viam pagar para entrar (o anátema
netrar na universidade em grande da gratuidade demagogicamente
dominação escala a partir dos anos 1980, quan-
do se começou a expandir o que
convertido num privilégio injusto).
E onde os professores deviam tor- 31
capitalista, designo como capitalismo universi-
tário. Trata-se de transformar a uni-
nar-se mais competitivos, criando-
se mecanismos quantitativos para
colonialista e versidade, de um bem comum, em
investimento lucrativo.
medir a sua produtividade e tor-
nando as carreiras precárias para
patriarcal” Um célebre estudo da Merril Lyn- incentivar a competitividade.
ch2 afirmava nessa época que a saú- A quarta fase foi a invenção dos
de e a educação superior seriam rankings das universidades, classi-
IHU On-Line — Como o se- duas das áreas de investimento mais ficações globais das universidades
nhor analisa o espaço da uni- lucrativo nas décadas seguintes. Este (dos seus professores) para que cada
versidade hoje? objetivo exigia a degradação das uni- universidade passasse a ter um valor
versidades públicas para abrir espa- de mercado globalmente reconheci-
Boaventura de Sousa Santos ço para as universidades privadas. do. No caso de se liberalizar intei-
— É um espaço crescentemente plu- Foi aí que a universidade pública ramente o sistema de ensino uni-
ral e diverso que começa a ter cons- deixou de ser em muitos países uma versitário, o preço a pagar por uma
ciência de que tem ainda um longo prioridade para o Estado. Foi esta a franquia de um curso de uma dada
caminho a fazer no sentido de se origem da chamada crise financeira universidade dependeria da localiza-
descolonizar, democratizar e des- das universidades públicas. ção no ranking, tanto da universida-
patriarcalizar. Mas, na medida em
de vendedora como da universidade
que toma consciência disto, torna- As cinco fases do capitalis- compradora. O ranking, tal como o
se mais forte e mais perigosa para mo universitário PIB, é extremamente seletivo e en-
as “elites do atraso” como bem diz o
O capitalismo universitário teve vá- viesado nos fatores que contabiliza.
Jessé de Souza1. A universidade pú-
rias fases – em alguns países os pro- Está na origem da enorme estrati-
1 Jessé José Freire de Souza (ou Jessé Souza) (1960): pro- cessos foram simultâneos: ficação e segmentação do sistema
fessor universitário e pesquisador brasileiro. Em 2 de abril universitário, uma estratificação e
de 2015 foi nomeado pela Presidência da República ao
cargo de presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
A primeira fase foi, como disse, a segmentação que discrimina contra
Aplicada (Ipea), cargo anteriormente ocupado por Sergei degradação financeira da universi- as universidades de quase todos os
Suarez Dillon Soares. Foi demitido do cargo em maio de
2016, quando Michel Temer assumiu interinamente a Pre- países e contra a maioria delas den-
sidência, depois do afastamento de Dilma Rousseff. Ele Acesse mais em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line).
concedeu inúmeras entrevistas para IHU On-Line, entre 2 Merril Lynch & Co., Inc. é um banco norte-americano tro de cada país. Trata-se de uma
elas Nova classe média: um discurso economicista, disponí-
vel em http://bit.ly/2hR834u; e Ralés, batalhadores e uma
de investimentos e provedores de outros serviços finan-
ceiros. Foi adquirido pelo Bank of America em 2008. (Nota
globalização universitária capitalis-
nova classe média, disponível em http://bit.ly/2wP47E2. da IHU On-Line) ta, totalmente oposta à cooperação e

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

internacionalização interuniversitá- hostil precisamente porque esta tem quanto entidade específica com uma
ria que existia antes. vindo a operar gradualmente contra missão abrangente na sociedade.
tudo o que é anátema para a extrema Visa acabar com a ideia de universi-
A quinta fase, talvez a mais recen-
direita: democratização, produção dade tal como a entendemos hoje.
te, é que a universidade no seu con-
de conhecimento com vocação anti-
junto e, portanto, também a univer-
capitalista, anticolonialista e antipa-
sidade pública deve ser, não só um IHU On-Line — Como a uni-
triarcal, luta contra os preconceitos
mercado capitalista, mas também versidade pode ajudar a cons-
raciais e sexuais e contra conserva-
deve ser gerida como uma empresa truir uma sociedade que su-
dorismo religioso ou de casta (no
capitalista privada. A distinção en- pere as estruturas patriarcais,
caso da Índia).
tre universidade pública e privada capitalistas e coloniais?
deve diluir-se a prazo: os estudan-
tes são consumidores de um serviço Boaventura de Sousa Santos
produzido pela universidade de que
os trabalhadores mais qualificados
“O capitalismo — A verdadeira reforma da univer-
sidade deverá aprofundar os seguin-
são os professores. universitário tes objetivos. Identifico os principais
vetores:
Obviamente, o capitalismo uni-
versitário tem-se confrontado com
visa substituir 1) Ampliar a democratização da
muita resistência e, em certos paí-
ses, como no caso do Brasil durante
a responsabi- universidade, não apenas no domí-
nio do acesso, como no domínio do
os governos do PT, tem havido for-
tes movimentos de contracorrente.
lidade social professorado, como no domínio da
pesquisa e da extensão.
O Projeto Future-se visa neutralizar
esse movimento e avançar com os
pela eficiência 2) Fazer uma reconversão episte-

objetivos do capitalismo universi- econômica” mológica no sentido de passar do


pluralismo interno da ciência ao plu-
tário. E avançar de maneira brutal, ralismo externo. É o que designo por
tipo terapia de choque, para queimar Epistemologias do Sul, isto é, o reco-
32 etapas e fazer colapsar as fases aci- IHU On-Line — Hoje, existe a nhecimento da existência de conheci-
ma mencionadas. emergência de uma Reforma mentos válidos para além do conhe-
Universitária? De que ordem cimento científico, particularmente
deve ser essa reforma e em que os conhecimentos nascidos nas lutas
IHU On-Line — Por que a uni-
medida o espírito (a alma, a cons- contra o capitalismo, o colonialismo
versidade se torna um objeto de
ciência) da Reforma de Córdo- e o patriarcado, produzidos pelas po-
desejo para lógicas neoliberais?
ba3, de 1918, ainda pode inspirar? pulações que mais duramente têm so-
Boaventura de Sousa Santos — frido as injustiças e as discriminações
Boaventura de Sousa Santos
Por duas razões. Primeiro, como re- causadas por esses modos de domi-
— Infelizmente a reforma de que se
feri, é considerado um investimento nação, tanto no passado como hoje.
fala hoje — flagrantemente o caso de
lucrativo. Segundo, a transformação Não se trata de qualquer movimento
Future-se — está nos antípodas da re-
capitalista da universidade retira-lhe anticiência. Trata-se exatamente do
forma animada no continente pelos
a capacidade de produzir conheci- oposto, na medida em que reconhe-
estudantes de Córdoba (Argentina)
mento crítico, livre e independente. cer os limites da ciência e levá-la a
de 1918. Esta última visou aumentar
A universidade é assim domesticada dialogar com outros conhecimentos
a responsabilidade social da universi-
e sujeita à lógica global capitalista. não só aumenta a justiça cognitiva
dade de que nasceram, por exemplo,
Não é necessária a repressão poli- sem a qual não há justiça social, como
os departamentos de extensão uni-
cial. Basta que a monotonia das me- dá à ciência uma nova e excitante ta-
versitária. O capitalismo universitá-
didas de medição do desempenho e refa, a de contribuir para produção
rio visa substituir a responsabilidade
do ranking façam o trabalho que se de ecologias de saberes que fortale-
social pela eficiência econômica. A
espera delas. çam as lutas das classes e populações
reforma capitalista da universidade
é uma contrarreforma. Não visa dar sociais oprimidas, exploradas, dis-
um futuro à universidade. Visa antes criminadas. Um exemplo basta para
IHU On-Line — Podemos, ain-
eliminar o futuro da universidade en- ilustrar: no movimento antiagrotóxi-
da, afirmar que a universidade
cos produz-se uma ecologia criativa
também se torna um terreno de
3 Reforma Universitária de Córdoba, também conhecida de saberes entre os conhecimentos
desejo da extrema direita que como Reforma Universitária de 1918: foi um movimento científicos de médicos, engenheiros,
ascende no mundo? Por quê? de projeção latino-americana para democratizar a univer-
sidade e conferir-lhe um caráter científico. Começou com biólogos e químicos e os conheci-
uma rebeldia estudantil na Universidade Nacional de Cór-
Boaventura de Sousa Santos doba da Argentina que se estendeu entre março e outubro mentos das populações camponesas,
— A extrema direita vê na universi- de 1918, durante a qual houve violentos confrontos entre
reformadores e católicos. Sua data simbólica é 15 de junho
indígenas, quilombolas e ribeirinhas
dade um ambiente particularmente de 1918. (Nota da IHU On-Line) afetadas pela contaminação das suas

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águas, a degradação das suas terras e tos estratégicos, destruição da base podia existir sem colonialismo e sem
o envenenamento dos seus corpos. O industrial, sobretudo no setor da patriarcado. Não pode. Não há traba-
saber científico dos que fizeram dou- construção civil para abrir caminho lho livre, capitalista sem a seu lado
toramentos universitários deve saber às empresas estrangeiras, educação existir trabalho desvalorizado e não
dialogar e enriquecer-se com o saber e saúde, evangelização promotora da pago, seja sob a forma de trabalho
notório dos que têm o doutoramento teologia da prosperidade etc. escravo, trabalho racializado ou sexu-
da vida. Nisto consiste a tarefa desco- alizado ou ainda o trabalho não pago
lonizadora da universidade, uma ta- da economia de cuidado que conti-
refa exigente porque tem um compo- IHU On-Line — Como o senhor nua a recair predominantemente nas
nente de autocrítica que nem sempre interpreta a ascensão da extre- mulheres. O drama da nossa época é
é fácil de digerir. ma direita no Brasil e no mun- que a dominação moderna tem três
do a partir de lacunas deixadas cabeças principais que atuam articu-
3) A universidade deve lutar con- pela esquerda? E que lacunas
tra o elitismo com que sempre lidou ladamente (capitalismo, colonialismo
são essas? Como superá-las? e patriarcado) enquanto a resistência
com as escolas e os professores do
ensino médio e secundário e criar Boaventura de Sousa Santos contra ela tem estado fragmentada.
formas de cooperação e de formação — Vivemos uma onda reacionária no Muitas lutas anticapitalistas têm sido
dos que lutam no seu dia a dia contra mundo. Distingue-se do conservado- racistas e sexuais, muitas lutas anti-
a educação-negócio e por uma edu- rismo. O pensamento conservador colonialistas e antirracistas têm sido
cação libertadora, emancipadora. crê nos valores da Revolução Fran- sexistas e pró-capitalistas e muitas
cesa, liberdade, igualdade e fraterni- lutas feministas têm sido racistas e
4) A universidade deve dar teste- dade, embora dê total prioridade ao pró-capitalistas. Enquanto a domina-
munho na prática da sua vocação an- primeiro e o conceba mais pela ótica ção atuar articuladamente e a resis-
ticapitalista, favorecendo, na provi- da liberdade econômica do que pela tência contra ela atuar fragmentada-
são dos seus serviços, as economias ótica da liberdade política, cultural e mente, não haverá justiça social.
familiares, cooperativas, solidárias, social. Ao contrário, o pensamento
de mulheres, camponesas, indíge- reacionário pretende regressar a um
nas, quilombolas. Por exemplo, as mundo pré-Revolução Francesa, um IHU On-Line — Quais os de-
universidades não podem estar ape- safios para fazer frente a esse 33
mundo de privilégios e de hierarquias
nas fisicamente próximas a favelas e sociais assentes em supostas hierar- avanço neoliberal e de extrema
periferias. Devem estar, na prática, quias naturais, sejam elas sexuais, ét- direita que temos vivido?
solidárias com a luta contra a injus- nico-raciais, religiosas ou de castas. O Boaventura de Sousa Santos —
tiça social e racial de que as suas po- movimento de extrema direita esteve A dominação capitalista, colonialista
pulações são vítimas. sempre presente, numas épocas mais e patriarcal está se revelando cada
5) As universidades devem criar e noutras menos. Neste momento, é a vez mais incompatível com a demo-
formas não capitalistas (fora da ló- versão ideológica mais consistente da cracia, mesmo a democracia de baixa
gica dos rankings) de cooperação justificação da extrema desigualdade intensidade como é a democracia li-
interuniversitária, a nível nacional e social causada pela versão mais antis- beral. As democracias atuais correm
internacional. Um bom exemplo é a social do capitalismo que hoje domi- o risco de morrer democraticamente
rede de universidades sul-sul, entre na: o capital financeiro. A esquerda ao eleger antidemocratas. O desafio
universidades brasileiras e argenti- deve se autocriticar sem se autoflage- maior é a defesa da democracia e da
nas, recentemente criada no âmbito lar. A sua ilusão principal foi pensar convivência social a que ela apela. As
das celebrações do centenário da Re- que o poder de governo incluía o po- forças políticas de direita conserva-
forma de Córdoba. der social, cultural e econômico. Ora, dora não são defensoras confiáveis da
isso nunca ocorreu e agora tem de democracia porque sempre que têm
reconhecer amargamente esse erro e de optar entre mais democracia ou
IHU On-Line — Sem ainda su- recomeçar de novo. mais capitalismo, optam por mais ca-
perar as lógicas colonialistas, pitalismo, como se mostrou no golpe
quais os riscos de adotarmos
contra a presidente Dilma Rousseff.
o próprio colonialismo como a IHU On-Line — Em que medi-
Recentemente publiquei um livro de
solução para os problemas dos da as chamadas pautas identi-
intervenção — Esquerdas do Mundo,
países de terceiro mundo? tárias (feminismo, negritude,
Uni-vos! (Boitempo Editorial, 2017)
diversidade sexual) desver-
Boaventura de Sousa Santos — — no qual apelo a que as diferentes
tebram os movimentos de es-
Em minha opinião, o subcontinente forças de esquerda esqueçam tanto os
querda?
e, particularmente o Brasil, está a sectarismos passados como alianças
ser sujeito a um violento processo de Boaventura de Sousa Santos — espúrias e destrutivas com a direita, e
recolonização que abrange múltiplos Em nenhum caso. Essa ideia decorre aprendam a unir-se na defesa da de-
setores: sistema judiciário, entrega de visões marxistas eurocêntricas que mocracia. Amanhã pode ser dema-
de recursos naturais e investimen- viveram na ilusão que o capitalismo siado tarde.■

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

A mercantilização da educação e
o risco da escola McDonalds e
dos alunos hambúrgueres
Marina Maia observa que já se vive um processo de redução do
ensino a um comércio, que não leva em conta a universalização,
o desenvolvimento das pessoas e o fim das desigualdades
João Vitor Santos

A
educação é um direito, mas nem ção dessa lógica. “O que se está diante
sempre isso tem sido tão claro. agora é um outro movimento, mais
Para a professora Marina Cam- explícito e com maior perigo, que é
pos de Avelar Maia, assegurar a edu- uma privatização ‘exógena’, com uma
cação como direito, em todos os níveis privatização de fato de partes da uni-
de ensino, requer ação direta do Estado versidade”, pontua.
como financiador e gestor de escolas e
Assim, a professora compreende que
universidades. Segundo ela, o problema
ver a educação como produto pode
é que o Estado tem sido retirado desse
trazer retardos ao próprio desenvol-
sistema, abrindo espaço para um fenô-
vimento econômico do país. “O acesso
meno que denomina como mercantili-
ao ensino superior por grupos histori-
34 zação. “A mercantilização da educação
camente excluídos é fundamental, não
é o tratamento da educação como mer-
apenas oferecendo o ensino a estes in-
cadoria e não um direito, ou como um
divíduos, mas também com um papel
setor a ser explorado economicamente
de mudança no perfil socioeconômico
através de uma série de serviços. Isto
do país, um efeito que vai além do pró-
tem se tornado possível por uma mu-
prio estudante e ultrapassa gerações”,
dança de paradigma sobre a educação,
observa. “Ao submeter a educação
sobre sua função na sociedade e sobre
superior ao mercado, com seus inte-
quem seja responsável por ela”, expli-
resses e lógicas específicas, todo esse
ca, na entrevista concedida por e-mail à
compromisso social e estrutura de tra-
IHU On-Line.
balho é colocado em risco, ou apaga-
Para Marina, os problemas dessa do. O lucro passa a estar acima destas
concepção são muitos, entre eles o de preocupações e funções sociais, e as
encarar o processo educacional como questões centrais passam a ser lucro e
um processo empresarial. “Escolas eficiência”, acrescenta.
não são McDonalds e alunos não são
Marina Campos de Avelar Maia
hambúrgueres. A complexidade da
é pesquisadora associada ao Graduate
educação é infinitamente maior. Es-
Institute of International and Develop-
tamos lidando com pessoas, sujeitos
de direitos, que devem se desenvol- ment Studies, da Suíça. É doutora em
ver plenamente”, observa. Ela ainda Educação pelo UCL Institute of Edu-
ressalta que esse não é um processo cation - University of London e mestra
novo e que essa mercantilização já em Educação pela Universidade Esta-
vem ocorrendo, pois, especialmente dual de Campinas - Unicamp. Também
no caso das universidades, são muitas é pedagoga pela Unicamp e especialista
as instituições privadas, mas que de- em Gestão Educacional. Entre suas pu-
pendem de recursos públicos. “Esta é blicações mais recentes, destacamos O
uma privatização ‘endógena’, quando público, o privado, e a despolitização
a lógica privada é adotada no âmbi- das políticas educacionais (In: Fernan-
to público”, explica. No caso do pro- do Cassio. (Org.). Educação Contra a
grama Future-se, que o tipifica como Barbárie. São Paulo: Boitempo, 2019).
obscuro, teme que haja uma acentua- Confira a entrevista.

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“Estas novas relações mercantis


impõem muitos desafios
ao direito à educação e ao
avanço da igualdade social”

IHU On-Line – Vivemos, es- ator central, na verdade os empresá- uma oferta de qualidade para todos.
pecialmente no Brasil, um pro- rios da educação dependem, e muito, Aqui não entendo qualidade como
cesso de mercantilização da do setor público, mas ele tem se tor- apenas índices em exames de larga
educação? nado um mediador de relações, a até escala, mas uma qualidade social-
mesmo criador e fomentador de mer- mente referenciada, com um papel
Marina Campos de Avelar
cados. Na educação básica muitos democratizante.
Maia – Vivemos um processo glo-
serviços são prestados para o Estado
bal de privatização e mercantilização Neste quesito, comparando a ou-
(prestados inclusive por organiza-
da educação, que se manifesta de di- tros países, aqueles chamados “de-
ções chamadas “sem fins lucrativos”,
versas formas, em vários contextos. senvolvidos”, vemos que estes uni-
como as grandes fundações e insti-
Definida de uma forma simples, a tutos). A educação superior privada versalizaram cobertura no século
mercantilização da educação é o tra- também depende do Estado, do seu passado, e trataram de questões
tamento da educação como mercado- financiamento e políticas públicas sociais centrais neste tempo, antes
ria e não um direito, ou como um se- para crescer. Exemplo disto é a es- da hegemonia neoliberal, com suas 35
tor a ser explorado economicamente tagnação que este setor está sofrendo políticas baseadas no mercado. Por
através de uma série de serviços. Isto desde 2014/2015 quando o Fundo isso, na maioria destes países que
tem se tornado possível por uma mu- de Financiamento ao Estudante do tomamos por exemplo, a universa-
dança de paradigma sobre a educa- Ensino Superior - Fies e o Programa lização da educação ocorreu em um
ção, sobre sua função na sociedade e Universidade para Todos – Prouni contexto muito diferente. Ao contrá-
sobre quem seja responsável por ela. sofreram cortes, interrompendo a ex- rio do que se tornou senso comum, a
Setores privados consideram cada pansão deste setor. Estas novas rela- educação não foi o maior instrumen-
vez mais que seja possível aliar o lu- ções mercantis impõem muitos desa- to de desenvolvimento socioeconô-
cro com o social; e nesta lógica não fios ao direito à educação e ao avanço mico e de combate à desigualdade,
haveria problema algum em tratar da igualdade social. mas fazia parte de um esforço muito
a educação como mercadoria. Esta mais amplo de trabalho neste senti-
é uma mudança de paradigma que do. Este trabalho foi feito com várias
na verdade vai além da educação IHU On-Line – Como avalia a políticas sociais, como as de ativa-
e atinge todos os serviços sociais. política pública de educação no ção e regulação econômica e previ-
Como resultado, no Brasil, na edu- Brasil? E que relações é possí- dência. A educação tinha igualdade
cação básica temos a oferta do en- vel estabelecer com outros paí- como um valor interno, e guiava es-
sino em escolas particulares, bem ses de que a senhora conheceu colhas de financiamento e currículo,
como a oferta de uma série de ser- a realidade? mas ela não era vista como a grande
viços auxiliares para redes públicas. solução no combate à desigualdade,
Marina Campos de Avelar tal como se coloca hoje (em discurso,
Aqui estão incluídos desde a criação
Maia – É difícil fazer uma análise mas não em prática!).
e distribuição de livros didáticos até
tão ampla, mas eu diria que um desa-
serviços complexos como sistemas Para isto, o investimento público
fio central que o Brasil precisa tratar
de gestão e consultorias de políti- foi grande, e segue maior que o nos-
urgentemente é a abissal desigual-
cas públicas. Já no ensino superior so. As métricas mais utilizadas pela
dade social e educacional do país.
o destaque fica para a oferta direta mídia são problemáticas, como a de
Tivemos alguns esforços e avanços,
do ensino em instituições privadas,
mas estamos distantes de realmente percentual do PIB. Perceba que os
com 75% das matrículas desta etapa
democratizarmos o acesso e a qua- países europeus possuem um grande
no setor privado.
lidade da educação. O Brasil tem PIB e uma população pequena esco-
Neste contexto, o papel do Estado uma dívida histórica a sanar com a lar e total, o que dificulta compara-
tem mudado. Ele continua sendo um universalização da oferta do ensino e ções, e o contrário também ocorre,

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

com países de pequeno PIB que aca- escolher para qual escola enviar contexto de globalização, necessário
bam tendo um percentual alto inves- seus filhos, a mídia questionava a inclusive para compreender a pró-
tido em educação, o que não neces- qualidade do ensino, liberais de- pria mercantilização da educação.
sariamente quer dizer que estejam fendiam o financiamento de escolas
investindo tanto assim. Há também privadas, organismos internacio-
que se considerar o movimento de nais recomendavam a descentrali-
crescimento/envelhecimento da po-
pulação (países envelhecendo terão
zação da gestão educacional para
autoridades locais na busca de efi-
“Um desafio
cada vez menos alunos, o que vai
barateando a educação, e países com
ciência. Então na década de 1990
houve na Suécia um movimento
central que
população em crescimento terão que se assemelha a muitos outros o Brasil
cada vez mais crianças e por isso há países, com a descentralização de
que se construir escolas, contratar parte da gestão para órgãos locais, precisa tratar
urgentemente
professores... o que demanda maior mas mantendo um outro tipo de
investimento). E, para fechar, há centralização via testes padroniza-
a questão histórica, países como o
Brasil ainda possuem adultos anal-
dos de larga escala.
é a abissal
desigualdade
fabetos a serem educados, crianças O que interessa desta experiência
ainda a serem incluídas na escola... para o Brasil é a ampliação de
precisamos aumentar nosso sistema
e precisamos de verba para isso.
como entendemos o movimento
e desenvolvimento de políticas social e
Investimento por aluno
educacionais. Na América Latina,
muitos países estavam adotando educacional
A métrica de investimento por alu-
políticas de descentralização na
mesma época, mas por motivos do país”
no me parece ser a melhor. Já te- e com formas distintas. No
mos o cálculo do quanto a educação Brasil, assim como na Suécia,
36 de qualidade para todos custaria, houve um certo consenso no país
inclusive por aluno, que é o instru- em favor da descentralização. IHU On-Line – Qual a impor-
mento Custo Aluno-Qualidade Ini- Contudo, diferentemente de lá, tância da concepção de uma
cial - CAQi e Custo Aluno-Qualidade o maior argumento aqui foi o da educação pública universal? E
- CAQ, que foram um resultado do democratização da educação, essa educação deve abarcar to-
trabalho da sociedade civil e foi ins- aproximando a gestão da educação dos os níveis, até o ensino supe-
titucionalizado no Plano Nacional aos professores e famílias. Mas, rior? Por quê?
da Educação - PNE em 2014. Temos ao mesmo tempo, os adeptos da Marina Campos de Avelar
um plano para a educação, mas infe- lógica neoliberal concordavam com Maia – A educação tem sido con-
lizmente os governos estão optando a medida com o objetivo de reduzir cebida como um bem público desde
por desconsiderá-lo e seguem atra- custos e aumentar a eficiência da
o século passado, quando Estados
sando o desenvolvimento da nossa gestão de recursos da educação.
passaram a se ocupar da oferta da
educação. Voltar ao PNE e cumpri-lo
é fundamental para avançarmos. O que nos importa em compreen- educação para todos. Considera-se
der isto é ver como políticas globais que a educação possua um papel
surgem em locais distintos com ra- fundamental de formação humana,
zões localizadas; e como elas acabam baseada em princípios de respeito
IHU On-Line – Como a senho- à vida, dignidade humana, diversi-
tendo efeitos não previsíveis. Na
ra avalia a experiência sueca de dade cultural e justiça social. O in-
Suécia, por exemplo, a descentrali-
descentralização da educação? divíduo é visto de uma forma ampla
zação abriu a possibilidade do finan-
No que essa experiência pode e holística, com direito à educação
ciamento de escolas particulares, e
servir à realidade brasileira? para se desenvolver através dela com
depois a autorização de escolas com
Marina Campos de Avelar fins lucrativos. Anos depois, após a seus diversos aspectos (cultural, so-
Maia – Durante muitas décadas falência de uma grande rede e aban- cial, econômico, ético, político, ar-
do século XX na Suécia, durante o dono destes alunos (que precisaram tístico…). Isto abarca a formação
auge do Estado de Bem-Estar So- trocar de escolas às pressas), houve individual e social, então cobre a for-
cial, a política educacional era mui- um consenso nacional de que a me- mação de identidade, de convivência
to centralizada no Ministério da dida havia sido um erro, e a revoga- com o outro, de valores compartilha-
Educação. Ao final dos anos 1980 ram. Este exercício de busca de ten- dos por uma sociedade, de combate
e começo dos 1990 houve um mo- dências internacionais em contextos às desigualdades e preconceitos, de
vimento amplo de questionamento e com características locais especí- pensamento livre, crítico e autôno-
desta centralização. Pais queriam ficas é fundamental no nosso atual mo, assim como tem um papel de

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oferta de oportunidades, de inclusão da, incluindo instituições com fins com igualdade social. No Brasil, isso
e mobilidade social. lucrativos e uma oferta educacional é feito através do famoso “tripé” do
de qualidade questionável. Além ensino, pesquisa e extensão. No en-
Por isso precisamos de uma educa-
disso, elas têm coberto o ensino, sino temos a função de formar pro-
ção pública, para dar conta de uma
mas a pesquisa ainda é majoritaria- fissionais que levarão este trabalho
tarefa tão grande e cara, e oferecê-la
mente realizada pelas instituições adiante em seus diversos espaços de
a todos, ou seja, de caráter universal.
públicas. O nosso ensino superior atuação. O acesso ao ensino superior
Essa missão continua no ensino su-
perior, mas com algumas atribuições privado tem se concentrado de tal por grupos historicamente excluídos
a mais, em especial a formação pro- forma que pode ser considerado um é fundamental, não apenas oferecen-
fissional. Mas a formação pessoal e oligopólio (hoje temos 4 ou 5 orga- do o ensino a estes indivíduos, mas
social não se opõe à formação para o nizações com grande parte das ma- também com um papel de mudança
trabalho, de forma alguma uma coisa trículas), tendo sérias consequên- no perfil socioeconômico do país, um
exclui a outra ou justifica a não neces- cias para o acesso e qualidade desta efeito que vai além do próprio estu-
sidade de uma educação pública uni- etapa de ensino. dante e ultrapassa gerações. Quanto
versal no Ensino Superior. Ao con- à pesquisa, a universidade tem um
Por isso é fundamental que se cum-
trário, faz parte do ensino superior papel de desenvolver estudos e ser
pra a meta do PNE de que, até 2024,
a formação holística também para um polo de pensamento e análise de
40% das novas vagas sejam ofertadas
a vida profissional, criando adultos forma a combater desigualdades e in-
no sistema público. Também é im-
com pensamento crítico e autônomo justiças e fomentar desenvolvimento
portante que haja maior regulamen-
em todos os setores e atividades so- com equidade e sustentabilidade. Por
tação do ensino privado nesta etapa,
ciais, e auxiliando a mobilidade social fim, na extensão, este trabalho deve-
para que se garanta uma oferta de
de grupos historicamente excluídos. ria ser disseminado e escoado para
qualidade neste âmbito também.
grupos mais amplos, alcançando não
Entretanto, há que se pontuar que apenas alunos, mas as comunidades
ensino superior não é de fato ‘uni- ao redor da universidade.
“O Brasil tem
versal’, já que em nenhum país toda
a população segue para o ensino Ao submeter a educação superior
37
uma dívida
superior. Ainda assim, a ‘universa- ao mercado, com seus interesses e
lidade’ aparece no acesso a esta eta- lógicas específicas, todo esse com-
pa de ensino, com países que têm
políticas que facilitam este acesso a histórica a promisso social e estrutura de traba-
lho é colocado em risco, ou apagado.
todos, enquanto em outros o siste-
ma é mais excludente. Infelizmen- sanar com a Como Milton Friedman1 disse, “the
business of business is business”, ou
te o caso brasileiro se encaixa no
segundo contexto. Com cobertura
universalização o negócio dos negócios é o negócio.
O lucro passa a estar acima destas
pequena e acesso difícil, muitos são
excluídos, por vezes aqueles que
da oferta preocupações e funções sociais, e as
questões centrais passam a ser lucro
mais precisam deste acesso. Por
isso é fundamental que ampliemos
do ensino e e eficiência. Assim, quanto ao ensi-
no, profissões fundamentais que não
o ensino superior, e que o façamos
via universidade pública (de novo,
uma oferta dão lucro ficam em perigo, com pou-
co financiamento e atenção (como
como planejado no PNE). de qualidade formação de educadores e enfermei-

para todos”
ros, sem nem falar de áreas de hu-
manidade e artes). O ensino costu-
IHU On-Line – Como com- ma ser deformado pela preocupação
preender o espaço público e o de índices. Numa lógica de mercado,
privado no campo do ensino IHU On-Line – Quais os ris- é comum que a competição seja va-
superior? Quais devem ser os cos de uma educação superior lorizada, muitas vezes atrelada ao
caminhos para a articulação a serviço do mercado? financiamento.
desses dois espectros? Marina Campos de Avelar Então rankings e métricas passam
Marina Campos de Avelar Maia – São vários riscos, talvez a ter prioridade, e o ensino passa a
Maia – O Brasil é um dos países possamos resumi-los em torno da revolver em torno da busca de me-
com maior participação do setor pri- questão da igualdade, do desenvol-
vado no ensino superior, hoje com vimento sustentável e equitativo. A 1 Milton Friedman (1912-2006): economista, estatístico
e escritor norte-americano que lecionou na Universidade
75% das matrículas em instituições educação superior com fins sociais, de Chicago por mais de três décadas. Recebeu o Prêmio
de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de
privadas. Problematicamente, a ex- como um direito, tem por objetivo 1976 e é conhecido por sua pesquisa sobre a análise do
pansão do ensino superior se deu oferecer oportunidades para todos e consumo, a teoria e história monetária, bem como por sua
demonstração da complexidade da política de estabiliza-
em grande medida via oferta priva- fomentar um desenvolvimento social ção. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

lhoria destes índices. Na prática, organizações privadas. O que quero ele sugere mecanismos e atividades
sabe-se que por vezes esses índices dizer é que isto deve ser feito de for- que muitas universidades já têm fei-
dizem muito pouco sobre a qualida- ma a não lesar ou arriscar a autono- to, como a busca de parcerias com o
de do ensino de fato, mas faculdades mia e missão e compromisso social setor privado e a promoção de ativi-
inteiras podem passar a trabalhar da educação superior. Em segundo dades que gerem renda adicional, e
em função disto, e então o número lugar, estes efeitos da mercantiliza- para isto já existem as fundações de
passa a ter maior relevância do que ção já acontecem em algum nível, apoio. Entretanto, o projeto ignora
aquilo que ele deveria representar. já que a educação superior não está isto e apresenta práticas já conheci-
Isso pode levar a péssimos resulta- isolada do mundo e das políticas das, fazendo parecer que o governo
dos, como estreitamento curricular públicas atuais, que seguem lógicas tem um grande plano de moderniza-
e adoecimento docente (existe uma neoliberais, baseadas na lógica de ção e financiamento, representando
vasta literatura produzida sobre isso mercado. Esta é uma privatização as Instituições Federais de Ensino
nos âmbitos do ensino básico e supe- “endógena”, quando a lógica privada Superior - IFES como retrógradas.
rior). No Brasil, como disse, o setor é adotada no âmbito público. O que Muitos pesquisadores e as próprias
privado do ensino superior nem se se está diante agora é um outro mo- universidades como um todo têm se
ocupa dos outros pontos, pesquisa e vimento, mais explícito e com maior debruçado sobre o projeto para ana-
extensão. perigo, que é uma privatização “exó- lisá-lo, tentando preencher lacunas e
gena”, com uma privatização de fato compreender os possíveis efeitos.
Pesquisa e mercado de partes da universidade. Quanto à gestão, o maior risco é a
De qualquer forma, quando sub- perda da autonomia. O projeto pro-
metemos a pesquisa à lógica de mer- põe o uso de Organizações Sociais
cado, áreas e tópicos sem aplicação - OS para serem mediadoras da ges-
imediata ou com potencial de lucro
ficam em risco. É um erro imaginar
“O Brasil é um tão das IFES, mas não fica claro qual
seria este papel. De fato, o projeto
que áreas biológicas e tecnológicas dos países parece abrir espaço para a terceiriza-
ção total dos serviços, inclusive ati-
não sofrem perdas neste proces-
38 so. As pesquisas sobre doenças que com maior vidades-fim. Neste caso, a perda de
autonomia é clara, e seria um peri-
participação do
atingem apenas populações com bai-
xo capital (e que não poderiam pagar go para nossas instituições. Quanto
ao investimento, o perigo é enorme
por tratamentos e remédios caros),
ou doenças raras (que não gerariam setor privado no também. Novamente, o projeto não
apenas não esclarece quais seriam as
soluções em massa) são exemplos de
temas cortados quando submetidos ensino superior, fontes de recursos e as quantidades,

hoje com 75%


à lógica do mercado. mas abre espaço para a inversão do
que seja central e complementar. A
Pesquisas chamadas “de base”
também sofrem cortes em todas as das matrículas captação de recursos próprios tem
um potencial pequeno perto do total
áreas. A busca de índices também
ocorre aqui, com a priorização de em instituições para manutenção das IFES. Estes re-
cursos devem ter um papel comple-
publicação em revistas de alto índi-
ce de impacto, inclusive no exterior privadas” mentar. No projeto, está proposto
que o MEC faça a complementação
(em veículos que podem ter maior daquilo que as IFES não consigam
impacto), e desapreço por veícu- captar. Isso é completamente im-
los de divulgação que poderiam ter possível.
maior relevância prática. Outra de-
formação é a “ciência salame”, na IHU On-Line – Como avalia o Para o avanço do ensino superior e
qual a mesma pesquisa é cortada, ou programa Future-se, lançado desenvolvimento nacional, precisa-
fatiada, em diversos artigos que re- recentemente pelo Ministério mos aumentar os investimentos pú-
latam os mesmos resultados, apenas da Educação? blicos e podemos incluir, acima dis-
para inflar índices. to, a captação de recursos próprios
Marina Campos de Avelar para a expansão de serviços e estru-
De privatização endógena Maia – Considero o Future-se uma tura. Neste sentido, o financiamento
para exógena política de grande perigo para nosso básico também não pode depender
ensino superior público, que se im- de fundos e fontes voláteis. Em uma
Tendo dito isso, preciso fazer dois plementada terá efeitos perversos e crise econômica, estes fundos po-
esclarecimentos. Primeiro, isso não difíceis de desfazer. Primeiro gosta- dem diminuir e o ensino e a pesquisa
quer dizer que a universidade não ria de pontuar que o projeto é obscu- podem parar. Por isso o princípio da
deva buscar soluções práticas e apli- ro, mal escrito, não esclarece como adicionalidade é fundamental, o que
cadas, inclusive com colaboração de seria implementado. Como um todo, não é o caso do Future-se.

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IHU On-Line – Atualmente, prestação de contas e acesso à infor- rio do que tentam disseminar, as
qual o peso da filantropia na mação por parte da população, isto grandes organizações filantrópi-
educação no Brasil? E seria não ocorre com a filantropia. cas possuem uma agenda com seu
essa a melhor forma de articu- próprio viés ideológico, geralmen-
Quanto à sua agenda, a filantro-
lação entre o público e o priva- te liberal. E aí a filantropia tem
pia possui um projeto de reforma
do no campo da educação? justamente esse papel de criar
da educação tendo como horizon-
legitimidade para grupos e atores
Marina Campos de Avelar te modelos empresariais. Assim, a
improváveis, que geralmente não
Maia – A filantropia tem tido um gestão da escola tenta se asseme-
teriam espaço para participar de
papel enorme na educação brasi- lhar à gestão de empresas, onde a
forma tão ativa na decisão sobre
leira, tendo participado nos últi- competição é valorizada, utiliza-se
os caminhos da educação.
mos anos na formulação e gestão a padronização e escalonamento de
da educação básica em municípios, soluções como caminho para cresci- Por isso, considero a participação
estados e até no MEC. Aqui estou mento, e metas e índices são usados da filantropia na educação ques-
me referindo à grande filantropia, como instrumentos de gestão e afe- tionável, por sua forma e conteúdo
aos grandes institutos e fundações rição de aprendizagem. Mas tudo de trabalho. Organizações filantró-
que dependem de empresários ou isso é problemático, como mencio- picas não são instituições de re-
empresas. No Brasil, ao contrário nei antes sobre os problemas da presentação de grupos, ou classes
dos EUA, por exemplo, a filantro- mercantilização da educação. ou a dita sociedade civil; não são
pia não possui um papel forte no eleitos, não possuem mecanismos
Ensino Superior, e aqui ela não Escola McDonalds e alunos de controle, e defendem uma agen-
trabalha muito com doações, mas hambúrgueres da contrária à democratização da
executa suas próprias iniciativas. educação de qualidade. Por isso
Certa vez, um empresário ativo não acho que seja um modelo que
As organizações aqui também têm na filantropia brasileira me per-
uma origem majoritariamente cor- articule melhor o público e o pri-
guntou por que não podemos fazer vado, ao menos não da forma com
porativa, ao contrário de lá, onde com a educação o que se fez com
a maioria é de natureza familiar. que está aí. Por isso, quanto à dis-
o McDonalds, com processos pa-
Digo isto para pontuar que “filan- dronizados no mundo todo que
cussão sobre o público e privado na 39
tropias” não são iguais, países dife- educação, acho que o debate pre-
“garantem qualidade”. Desde en- cisa avançar mais sobre formas de
rentes possuem organizações com tão digo que precisamos voltar ao
características distintas, as quais regulação do que articulação, como
básico e lembrar que escolas não defende os Princípios de Abidjan2,
apresentam desafios e oportunida- são McDonalds e alunos não são
des específicos para seus contex- que foram firmados recentemente
hambúrgueres. A complexidade da com compromissos internacionais
tos. Isto deve ser levado em conta educação é infinitamente maior. de regulamentação do setor priva-
quando comparamos casos inter- Estamos lidando com pessoas, do na educação para que se defen-
nacionais. sujeitos de direitos, que devem se da o direito à educação. ■
Aqui, a filantropia tem um trabalho desenvolver plenamente.
pulverizado, ela aparece em muitos Se isto não fosse suficiente, esta 2 Os Princípios têm por finalidade assegurar que os Es-
tados cumpram com o dever de priorizar a educação pú-
contextos, mas é geralmente muito agenda já tem sido implementa- blica, gratuita e de qualidade para todos e todas, apoian-
do e investindo na área e protegendo o direito humano
opaca em todos eles. Ou seja, a fi- da desde os anos 1990, inclusive universal à educação. Os “Princípios de Abidjan sobre
lantropia não possui mecanismos de no Brasil, e tem pouca evidência as obrigações de direitos humanos dos Estados em for-
necer educação pública e regulamentar o envolvimento
prestação de contas, o que é um pro- de funcionar. Ao contrário, temos privado na educação” são constituídos por 97 Princípios
Orientadores. Como síntese, foram elaborados dez Prin-
blema. Ao contrário de empresas e um considerável corpo de evidên- cípios Abrangentes, que fornecem uma visão geral e um
organizações públicas, que possuem cia de ela não funcionar – aumen- resumo dos Princípios Orientadores e devem ser lidos em
conjunto com os demais. Leia mais em https://www.abid-
legislações e regras mais claras de tando desigualdades. Ao contrá- janprinciples.org/

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

Em tempos de democracia
iliberal, estratégia é desqualificar
verdades científicas
Para Tatiana Roque, as lógicas do Governo Bolsonaro de desvalorização
da universidade e menosprezo a intelectuais se articulam com o
avanço de ruralistas sobre a Amazônia, entre outras ações
João Vitor Santos

D
e um lado, o Governo de Jair necessário investir em inovação e em re-
Bolsonaro prega, através do Fu- lação com empresas, como nos parques
ture-se, a emergência de qualifi- tecnológicos que existem em várias uni-
car e tornar mais produtivo o trabalho de versidades. Isso não tem nada a ver com
ensino e pesquisa nas universidades pú- privatização”, destaca, ao pontuar que o
blicas. De outro, insufla um negacionis- Future-se vai em sentido contrário.
mo do caos climático, enquanto fazendas Segundo a professora, todos esses
avançam sobre áreas de mata e agrotóxi- movimentos podem ser compreendidos
cos passam a ser mais liberados do que como uma espécie de corrosão que vai
nunca. Para a professora Tatiana Roque, se dando na democracia. É o que com-
tudo isso são faces de uma mesma moeda preende como a prática da democracia
40 e revelam uma intenção muito clara do iliberal. “Não é a instalação de uma di-
Governo Bolsonaro. “Este governo não tadura, mas a fragilização do sistema de
tem nenhum projeto para a universida- pesos e contrapesos da democracia. Há
de pública e para a pesquisa científica”, uma exacerbação do poder majoritário,
dispara. E segue: “a ala mais bolsonarista em que as minorias ficam impedidas de
do governo tem uma agenda ideológica se expressar, de se organizar e de vol-
que identifica a universidade à esquerda tar ao poder”, explica. E acrescenta que
e incentiva, com esse discurso, uma per- “o fenômeno do fim dos intermediários
seguição à comunidade universitária. Já tem a ver com isso, pois as instituições
a ala ultraliberal tem a única agenda de independentes de governos têm um pa-
diminuir o financiamento público”. pel no funcionamento da democracia”.
Na entrevista a seguir, concedida por Por isso, sugere: “a esquerda e o campo
e-mail à IHU On-Line, Tatiana expli- progressista precisam responder a essa
ca que “desvalorizar a universidade e a insatisfação com propostas para termos
pesquisa básica, menosprezar intelectu- mais democracia, para se aprofundar e
ais e cientistas, é um modo eficiente de radicalizar a democracia”.
desqualificar as verdades científicas”. E, Tatiana Roque é graduada em
por isso, assegura que “não é coincidên- Matemática pela Universidade Fede-
cia que isso ocorra no exato momento ral do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra
em que o negacionismo climático ganha em Matemática Aplicada e doutora na
espaço no governo, em que ministros de área de História e Filosofia das Ciên-
Estado buscam desmoralizar o consenso cias pela mesma universidade. É pro-
em torno do colapso climático”. Ou seja, fessora do Instituto de Matemática da
enquanto se destituem esses saberes UFRJ e da Pós-graduação em Filoso-
científicos, vai-se, ao mesmo tempo, jus- fia do IFCS/UFRJ, onde coordena um
tificando os avanços de lógicas produti- grupo de estudos sobre as reconfigu-
vistas muito mais predatórias. “A uni- rações do trabalho no mundo contem-
versidade e a pesquisa científica devem porâneo. Foi presidente do Sindicato
ser atores centrais na proposição de um Docente da UFRJ - ADUFRJ. Tatiana
novo modelo de desenvolvimento, mais também mantém um canal no YouTu-
tecnológico e sustentável. Para isso, é be (disponível em http://bit.ly/33qO-

19 DE AGOSTO | 2019
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jbA ), onde fala e entrevista pessoas nas Notícias do Dia, 14-08-2019, no sítio
sobre temas ligados à educação, polí- do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
tica, ciência e filosofia. disponível em http://bit.ly/2z13OJg
A entrevista foi originalmente publicada Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que o pro- tes e emergência pela produti- a Emenda do teto de gastos, haverá
grama Future-se revela acerca vidade. Em alguma medida, já escassez de recursos e, aí sim, in-
da concepção do Governo Bol- não se vivem lógicas mercado- centivo a uma concorrência insana.
sonaro sobre a universidade lógicas dentro das universida-
pública e a pesquisa científica? des? Por quê?
IHU On-Line – Quando se
Tatiana Roque – Esta resposta Tatiana Roque – Não acho. É fala em aplicabilidade práti-
é muito simples: este governo não completamente diferente. A avalia- ca das pesquisas desenvolvi-
tem nenhum projeto para a univer- ção da pesquisa e da pós-graduação das em universidades, há uma
sidade pública e para a pesquisa pelas agências de fomento é bem predisposição a privilegiar as
científica. A ala mais bolsonarista recebida pela comunidade acadê- ciências ditas exatas? Como
do governo tem uma agenda ide- mica. Por dois motivos: primeiro, conceber as produções das ci-
ológica que identifica a universi- ela é feita pela própria comunidade ências humanas nesse univer-
dade à esquerda e incentiva, com acadêmica (que compõe os comi- so de quantificação, mensura-
esse discurso, uma perseguição à tês das diferentes áreas); segundo, ção e índices e ranqueamentos
comunidade universitária. Já a ala ainda que se estabeleça uma certa de produção científica?
ultraliberal tem a única agenda de competição por recursos, quando o
Tatiana Roque – Quando se
diminuir o financiamento público. volume distribuído é alto, é possí-
fala em aplicação prática das
A união entre esses setores acaba vel atender às demandas da maior
sendo conveniente para ambos. parte dos projetos.
pesquisas, a divisão nem é entre 41
exatas e humanas: é entre pes-
Para que os projetos de pesquisa quisa básica e pesquisa aplicada.
IHU On-Line – Quais os ris- sejam financiados com dinheiro Na Matemática, a maior parte da
cos de a universidade se mo- público, é importante que exista al- pesquisa de ponta não tem aplica-
ver segundo parâmetros de guma avaliação da qualidade, pois ção nenhuma. Está havendo uma
mercado? isso ajuda na prestação de contas à confusão sobre isso. Claro que a
sociedade pelo investimento feito sociedade tem que enxergar a im-
Tatiana Roque – O modo de
na universidade. Claro que alguns portância do que fazemos na uni-
governo do capitalismo atual vai
critérios são distorcidos, como a versidade. A formação no ensino
além da “lógica de mercado”. A
excessiva disciplinarização da ava- superior por si só tem um valor
governança neoliberal estimula a
liação. Mas, no geral, o sistema de social gigante, há muitos índices
concorrência. Esse é exatamente
fomento foi um ganho para a co- mostrando que isso tem efeito na
o ponto do Future-se: governar
munidade científica e funcionou redução das desigualdades. A pes-
pelo incentivo à competição intra
bastante bem nos últimos anos, quisa científica também precisa
e interuniversidades. Propõe-se a
quando o volume de recursos era ser vista pela sociedade, mas isso
criação de um fundo cujos recur-
significativo. não quer dizer que ela deva ser
sos seriam distribuídos por meio
“aplicada” ou “ter utilidade práti-
de uma Organização Social. Essa
ca”. Se fosse assim, a Matemática
OS estabelece metas e critérios de IHU On-Line – O Future-
não teria valor social nenhum.
avaliação para distribuir os recur- se pode representar alguma
sos às universidades e às diferen- ameaça à pesquisa de base?
tes áreas dentro de uma mesma Por quê? IHU On-Line – Como a se-
universidade. Com o financiamen- nhora analisa a relação entre
Tatiana Roque – Isso sim. O
to público cada vez mais escasso, a o público e o privado na edu-
Future-se é uma ameaça à pesqui-
tendência é que se agrave a com- cação e pesquisa nas universi-
sa como um todo, pois não garan-
petição pelos recursos distribuí- dades federais hoje?
te os dois requisitos mencionados
dos via OS, que exigem adesão a
acima. A avaliação não é feita pela Tatiana Roque – A universi-
seus critérios e metas.
comunidade acadêmica, e sim por dade e a pesquisa científica devem
um comitê gestor que nem sabe- ser atores centrais na proposição
IHU On-Line – Coleta Capes, mos como será formado. Além dis- de um novo modelo de desenvolvi-
atualização de Currículo Lat- so, com a política fiscal em curso e mento, mais tecnológico e susten-

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

tável. Para isso, é necessário inves- Governo à informação da ONU IHU On-Line – Como resistir
tir em inovação e em relação com de que o Brasil volta ao mapa a lógicas como a de “democra-
empresas, como nos parques tecno- da fome no mundo? cia iliberal” e constituir alter-
lógicos que existem em várias uni- Tatiana Roque – Desvalorizar nativas?
versidades. Isso não tem nada a ver a universidade e a pesquisa básica, Tatiana Roque – O impasse é o
com privatização. Trata-se de um menosprezar intelectuais e cientis- seguinte: esse processo de desdemo-
modo de estabelecer relações entre tas, é um modo eficiente de desqua- cratização se intensificou após ma-
a universidade e o setor produtivo. lificar as verdades científicas. Não é nifestações que criticavam a demo-
coincidência que isso ocorra no exa-
cracia representativa, como Occupy
to momento em que o negacionismo
Wall Street2, os Indignados na Espa-
“Este governo
climático ganha espaço no governo,
nha3 ou Junho de 20134 no Brasil. O
em que ministros de Estado buscam
lema global era: “não me representa”.
não tem desmoralizar o consenso em torno
do colapso climático. O avanço dos Assim, não dá para só defendermos a
democracia representativa como era
nenhum ruralistas sobre a Amazônia tem
muito a ganhar negando dados de antes, pois ela já estava em xeque.

projeto para a desmatamento e, para isso, as insti-


tuições independentes de pesquisa
A esquerda e o campo progres-
sista precisam responder a essa
universidade (como o Instituto Nacional de Pes-
quisas Espaciais - Inpe) passam a
insatisfação com propostas para
termos mais democracia, para se
pública e para ser aparelhadas. Isso está no cerne
do problema político atual, que tem
aprofundar e radicalizar a demo-

a pesquisa a ver com o fim dos intermediários,


com um ataque sistemático aos pro-
cracia. Não basta clamar por uma
volta ao passado pré-2011, pois

científica” fissionais da verdade. antes não estava tudo bem – ainda


que estivesse bem melhor do que
hoje. Nosso drama é esse...
42
IHU On-Line – A senhora
IHU On-Line – A senhora tem tem usado em suas análises 2 Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street): é um movi-
mento de protesto contra a desigualdade econômica e
dito que o Future-se traz, em a expressão “democracia ili- social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das
empresas - sobretudo do setor financeiro - no governo
beral”. Em que consiste esse
letras miúdas, elementos que dos Estados Unidos. Iniciado em 17 de setembro de 2011,
conceito e como se revela em no Zuccotti Park, no distrito financeiro de Manhattan, na
agridem a liberdade democrá- cidade de Nova York, o movimento ainda continua denun-
ações como o Future-se? ciando a impunidade dos responsáveis e beneficiários da
tica. Que elementos são esses? crise financeira mundial. Posteriormente surgiram outros
Tatiana Roque – Democracia movimentos Occupy por todo o mundo. As manifesta-
Tatiana Roque – O autoritarismo ções foram a princípio convocadas pela revista canadense
iliberal é uma expressão do Or- Adbusters, inspirando-se nos movimentos árabes pela de-
do Future-se concentra-se no mode- bán1 que indica uma corrosão da
mocracia, especialmente nos protestos na Praça Tahrir, no
Cairo, que resultaram na Revolução Egípcia de 2011. (Nota
lo de governança que ele estabelece. democracia por dentro. Não é a da IHU On-Line)
3 Indignados: um dos nomes dados às manifestações de
As decisões concentradas na OS reti- instalação de uma ditadura, mas 2011 na Espanha, também chamadas de Movimento 15 de
ram autonomia da universidade para a fragilização do sistema de pesos Maio (por terem se iniciado no dia 15-05-2011). São uma
série de protestos espontâneos de cidadãos, inicialmente
estabelecer objetivos e prioridades, e contrapesos da democracia. Há organizados pelas redes sociais e pela plataforma civil e
digital ¡Democracia Real Ya! (“Democracia Real Já!”). (Nota
para realizar avaliações e investimen- uma exacerbação do poder majo- da IHU On-Line)
tos. Isso tudo fica centralizado na ritário, em que as minorias ficam 4 Junho de 2013: os protestos no Brasil em 2013, também
conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, Ma-
OS. É um absurdo completo e fere a impedidas de se expressar, de se nifestações de Junho ou Jornadas de Junho, foram várias
manifestações populares por todo o país que inicialmente
autonomia universitária. Para – su- organizar e de voltar ao poder. surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de trans-
porte público, sobretudo nas principais capitais. Inicialmen-
postamente! – resolver um problema
O fenômeno do fim dos intermedi- te restrito a pouco milhares de participantes, os atos pela
relativo à autonomia das universi- redução das passagens nos transportes públicos ganharam
ários tem a ver com isso, pois as ins- grande apoio popular em meados de junho, em especial
dades para administrarem recursos após a forte repressão policial contra os manifestantes, cujo
tituições independentes de governos ápice se deu no protesto do dia 13 em São Paulo. Quatro
próprios, agrava-se o problema, reti- têm um papel no funcionamento da dias depois, um grande número de populares tomou par-
rando das universidades a autonomia te das manifestações nas ruas em novos diversos protes-
democracia; é o caso da mídia, da es- tos por várias cidades brasileiras e até do exterior. Em seu
para elaborar suas políticas. cola, da universidade e de institutos ápice, milhões de brasileiros estavam nas ruas protestando
não apenas pela redução das tarifas e a violência policial,
de pesquisa (Inpe, IBGE, agências mas também por uma grande variedade de temas como os
gastos públicos em grandes eventos esportivos internacio-
IHU On-Line – Que nexo é reguladoras etc.). nais, a má qualidade dos serviços públicos e a indignação
com a corrupção política em geral. Os protestos geraram
possível fazer entre o projeto grande repercussão nacional e internacional. Sobre o tema,
1 Viktor Orbán (1963): político húngaro de direita, primeiro- confira a edição 193 dos Cadernos IHU ideias, intitulada
Future-se, o negacionismo cli- ministro da Hungria desde 2010, tendo exercido o cargo tam- #VEMpraRUA: Outono Brasileiro? Leituras, disponível em
bém entre 1998 e 2002. Orbán é líder do Fidesz, um partido http://bit.ly/2aVdHxw. A edição 524 da revista IHU On-Li-
mático do Governo Bolsonaro nacional-conservador de direita que é, atualmente, o maior ne, Junho de 2013 – Cinco Anos depois. Demanda de uma
– e de dados de desmatamento partido político do país. Orbán ocupa também a vice-presi- radicalização democrática nunca realizada, de 18 de junho
dência do Partido Popular Europeu desde outubro de 2002 e é de 2018, está disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
na Amazônia – e a reação do o político menos lembrado da Europa. (Nota da IHU On-Line) br/edicao/524. (Nota da IHU On-Line)

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Leia mais
- Por uma esquerda mais ampla e moderna. O desafio de sair da bolha e voltar a gover-
nar. Entrevista especial com Tatiana Roque, publicada nas Notícias do Dia de 13-5-2019, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2H2lkRJ.
- “O problema da esquerda não é a pauta dita identitária, mas sim a lacração”. Entrevista
com Tatiana Roque, publicada nas Notícias do Dia de 25-3-2019, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2HXGiCL.
- O combate às desigualdades exige um novo pacto capaz de atualizar os princípios
que deram origem ao Estado de bem-estar social. Entrevista especial com Tatiana Ro-
que, publicada nas Notícias do Dia de 21-8-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
- IHU, disponível em http://bit.ly/2ZX1xKZ.

43

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

Future-se valoriza o privado e não


acena para o ethos acadêmico
José Geraldo de Sousa Junior analisa a proposta
do Ministério da Educação para o ensino superior
Patricia Fachin

A
s propostas do programa Futu- estudo prévio para construir a proposta,
re-se, recém lançado pelo Minis- como foi feito com o Reuni, e um bom ca-
tério da Educação – MEC com a tálogo de parcerias, seus tipos, seu alcan-
justificativa de fortalecer a autonomia ce na sustentabilidade das instituições e
administrativa, financeira e de gestão seus impactos nos programas e projetos
das Universidades Federais de Ensino acadêmicos  teriam  permitido um dese-
Superior por meio de parcerias com or- nho razoável dessa experiência”, conclui.
ganizações sociais e captação de recur-
José Geraldo de Sousa Junior é
sos, já são implementadas nas universi-
graduado em Ciências Jurídicas e Sociais
dades públicas federais, diz o ex-reitor
pela Associação de Ensino Unificado
da Universidade de Brasília – UnB, José
do Distrito Federal - AEUDF, mestre e
Geraldo de Sousa Junior, à IHU On-Li-
doutor em Direito pela Universidade de
ne. Entretanto, salienta, “a diferença, no
44 que aqui se chama novidade da proposta
Brasília - UnB. É também jurista, pesqui-
sador de temas relacionados aos direitos
do MEC, é o caráter inteiramente vendi-
humanos e à cidadania, sendo reconhe-
do à lógica privatizante e mercadoriza-
cido como um dos autores do projeto Di-
dora do projeto econômico-político que
reito Achado na Rua, grupo de pesquisa
está por trás, delirante do ethos público
universitário que marca o sentido social com mais de 45 pesquisadores envolvi-
e  político  da universidade como condi- dos. Professor da UnB desde 1985, ocu-
ção estratégica para o desenvolvimento pou postos importantes dentro e fora da
soberano do país. Daí as críticas”. Universidade. Foi chefe de gabinete e
procurador jurídico na gestão do profes-
Segundo ele, o programa “traz for-
sor Cristovam Buarque; dirigiu o Depar-
mulações que se baseiam em uma série
tamento de Política do Ensino Superior
de dispositivos do mercado financeiro,
no Ministério da Educação; é membro do
formando uma ‘carteira de ações’  que
Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
inclui fundos patrimoniais imobiliá-
dos do Brasil - OAB, onde acumula três
rios,  microcrédito para  startups  e um
décadas de atuação na defesa dos direitos
fundo soberano do conhecimento, tudo
civis e de mediação de conflitos sociais.
isso com abertura para proporcionar
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição
oportunidades de negócios com parti-
realizada com voto paritário de professo-
cipação da iniciativa privada”. Trata-se,
res, estudantes e funcionários da UnB. É
pontua, de “uma situação sem prece-
autor de, entre outros, Sociedade Demo-
dentes e sem paralelo com modelagens
crática (Universidade de Brasília, 2007),
que valorizem o privado na estrutura-
O Direito Achado na Rua. Concepção e
ção de sistemas universitários e que
Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para
jamais chegam ao despudor de acenar
um Debate Teórico-Conceitual e Políti-
para o ethos acadêmico”.
co Sobre os Direitos Humanos (Editora
Na entrevista a seguir, concedida por D’Plácido, 2016).
e-mail, o ex-reitor da UnB também cri-
tica a falta de consultas e discussões A entrevista foi publicada nas Notícias
prévias com reitores das universidades do Dia em 13-5-2019, disponível em
federais e de estudos para embasar a http://bit.ly/2TE191Q
proposta do MEC. “Tivesse havido um Confira a entrevista.

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“Para o MEC, em linguagem


de bolsa de investimentos,
o Future-se já está sendo
chamado Fature-se”

IHU On-Line - Qual sua avalia- mento, sobre criar as condições de privado, que agora se assiste quando
ção sobre o Programa Institutos distribuição justa e solidariamente se examinam os fundamentos das re-
e Universidades Empreendedo- compartilhada da riqueza social- formas em curso, notadamente com a
ras e Inovadoras - Future-se, re- mente produzida, conforme o hori- PEC de Teto de Gastos voltada para
cém lançado pelo MEC? zonte de superação de desigualdades assegurar financiamento de desem-
e de participação política definido na penho econômico-financeiro às cus-
José Geraldo  de Sousa - En-
Constituição. tas de investimentos sociais – saúde,
quanto nos últimos anos o Brasil, se-
educação –, recoloca o impasse que
guindo tendência mundial, conheceu Assim é que se compreende a tre-
em 1988 dividiu os engajamentos
uma grande expansão da educação menda expansão havida no período,
superior com os efeitos dessa expan- sobre serem tais bens, sociais, públi-
com a criação de universidades e de
são afetando positivamente a qua- cos, responsabilidade do Estado, ou
escolas federais no plano da educa-
lidade do ensino e da pesquisa nas privados, deixados à dinâmica apro-
ção superior, a implantação interio-
priadora, acumuladora, movida por
Universidades públicas e privadas, rizada de novos campi, a duplicação
interesse do mercado.
45
essa expansão, compreendida numa do número de vagas principalmente
ação estratégica de um programa nos turnos vespertino e noturno das Para o MEC, em linguagem de bolsa
governamental de base democrático escolas, o apoio às políticas de cotas de investimentos, o Future-se, que já
-popular, se inscreveu num projeto para ampliar os acessos nas mais di- está sendo chamado Fature-se, traz
de sociedade e de Estado (do qual a versas modalidades, sociais, econô- formulações que se baseiam em uma
Constituinte de 1987/1988 represen- micas, étnicas, raciais, e uma inver- série de dispositivos do mercado fi-
tou o seu mais avançado desenho),  e são orçamentária sem precedentes nanceiro, formando uma “carteira
que erigiu a educação e a educação para financiar a expansão, a reestru- de ações” que inclui fundos patrimo-
superior à condição de núcleo estru- turação, o acesso, a permanência e niais imobiliários, microcrédito para
turante desse projeto. as políticas de fomento em todos os startups e um fundo soberano do
Esse programa começa como se de- níveis, da creche à pós-graduação. conhecimento, tudo isso com aber-
fine na Constituição que decorreu do Incluindo a contribuição da oferta tura para proporcionar oportunida-
processo constituinte, por conceber privada, fiel a esses princípios afe- des de negócios com participação da
a educação e a educação superior ridos em procedimentos de regula- iniciativa privada. Uma situação sem
como um bem público, voltado para ção, credenciamento e avaliação do precedentes e sem paralelo com mo-
fins sociais, por isso de livre acesso, sistema, por sua vez com o apoio de delagens que valorizem o privado na
universal, laico, gratuito e, quan- financiamento público para assegu- estruturação de sistemas universitá-
do disponível ao mercado, com seu rar essa expansão, valendo-se de ins- rios e que jamais chegam ao despu-
exercício condicionado por esses va- trumentos de renúncia fiscal (Reuni, dor de acenar para o ethos acadêmi-
lores, portanto, preservado em face Crédito Educativo, Fies, Prouni, Ci- co, como fez o secretário de Ensino
das injunções do comércio. Antes de ência sem Fronteiras, todos discuti- Superior do Ministério da Educação
tudo, direito e não mercadoria. dos minuciosamente pelo presidente - MEC ao afirmar, na audiência de
Lula e pela presidenta Dilma, com apresentação da proposta, que “o
Um bem, portanto, estratégico por- professor universitário poderá ser
os reitores e reitoras, em seguidos
que necessário ao desenvolvimento muito rico. Vai ser a melhor profis-
encontros com pautas consistentes e
econômico, social e político do país,
com esses conteúdos, até a sedimen- são do Brasil”. 
não só para permitir fortalecer a in-
tação de entendimento comum con-
fraestrutura da sociedade, por meio
vertido em políticas públicas).
da pesquisa, da ciência e da inovação IHU On-Line - Segundo o go-
tecnológica, também para orientar Não se perca de vista que a retomada verno, o Future-se “tem por
as direções éticas desse desenvolvi- política da tensão entre o público e o finalidade o fortalecimento da

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TEMA DE CAPA

autonomia administrativa, fi- delos que ocorreram no mundo, não ainda sob o impacto da resolução
nanceira e de gestão das insti- são capazes de gerar expansão do adotada naquele ano pela Organi-
tuições federais de ensino su- ensino superior. Elas até podem ser zação Mundial do Comércio - OMC,
perior, por meio de parceria utilizadas em universidades peque- de incluir a educação superior como
com organizações sociais e de nas, como a de Harvard [instituição um serviço comercial regulado no
fomento à captação de recursos americana privada], que não tem marco do Acordo Geral de Comércio
próprios”. Por que e em que essa premissa colocada”.  de Serviços (GATS, sigla em inglês),
contexto surge essa proposta e reitores de Universidades Públicas
qual seu significado? Ibero-Americanas, autoridades go-
José Geraldo de Sousa - As uni- “O valor da vernamentais e especialistas se reu-
niram na III Cumbre de Reitores
versidades públicas federais, sem
perderem de vista seu pressuposto comercializa- dessas universidades para discutir

ção de
inafastável à autonomia, já vêm im- os perigos postos pelo modelo ne-
plementando todas essas sugestões, oliberal de mercado. Tratava-se de
em sua plataforma de aprimoramen-
to gestor, de busca de ampliação de
produtos analisar as ameaças às universida-
des públicas e a globalização, num
investimentos e de parcerias com se-
tores institucionais, sociais e de mer-
vinculados ao encontro radical que teve como eixo
a educação superior frente a Davos.
cado em projetos de extensão, coo-
peração e parcerias. Os campi têm
ensino superior A Cúpula vem a registro para, entre
as muitas e agudas reflexões, chamar
abrigado instalações para suporte
desses projetos, com cessão onerosa
nos países da a atenção para o texto de Marco An-

OCDE foi da
tonio Rodrigues Dias, ex-professor
e temporalidade limitada ainda que da UnB e quadro da Unesco, e seu
larga de uso, constituindo seus par-
ques tecnológicos para incubação de ordem de 30 ensaio A OMC e a educação superior
para o mercado.
projetos, compartilhando royalties
46 de patentes e de comercialização de bilhões de Em seu estudo, para o qual carreou
cifras inimagináveis levantadas en-
produtos, tanto no campo da ino-
vação tecnológica aplicada para fins dólares em tre outras agências pelo banco de
negócios norte-americano Merril
industriais, quanto no campo das
tecnologias sociais. 1999” Lynch, o professor Marco Antonio
Dias afirma que o mercado mundial
A diferença, no que aqui se chama de conhecimento, somente através
novidade da proposta do MEC, é o  
da Internet, foi calculado, para o ano
caráter inteiramente vendido à ló- IHU On-Line - Como o se-
de 2000, em 9,4 bilhões de dólares,
gica privatizante e mercadorizadora nhor avalia, particularmen-
tendente a alcançar 53 bilhões no
do projeto econômico-político que te, os três eixos do programa:
ano de 2003. E, de acordo com as
está por trás, delirante do ethos pú- governança, gestão e empre-
mesmas fontes, o valor da comer-
blico universitário que marca o sen- endedorismo; pesquisa e ino- cialização de produtos vinculados ao
tido social e político da universidade vação; e internacionalização? ensino superior nos países da OCDE
como condição estratégica para o Qual é a relevância de cada um foi da ordem de 30 bilhões de dóla-
desenvolvimento soberano do país. desses eixos? res em 1999. Para o professor, com
Daí as críticas. Na contracorrente base nessas informações pode-se di-
José Geraldo  de Sousa - Ini-
de opiniões competentes e experi- zer que a importância dos serviços,
ciei a resposta a esta pergunta em
mentadas, o programa expõe suas o que vai muito além da educação,
entranhas nutridas no interesse do questão anterior. O que eu reitero é
a conformidade dessas proposições representa, na economia norte-ame-
mercado, servindo conforme pensa ricana, dois terços de seus resultados
o coordenador da Campanha Nacio- ao desenho entreguista desse patri-
mônio social que é a universidade e 80% de seu mercado de emprego.
nal pelo Direito à Educação, Daniel
Cara, que vê com “gravidade” a dinâ- pública brasileira. Desdobrando o Esses dados, diz o professor, re-
mica de estender a responsabilidade começo da resposta, reafirmo que presentam  números inacreditáveis,
da geração de receitas aos institutos ela retoma, como tenho mencionado e, à medida que novos dados são
e universidades: “As universidades em várias circunstâncias, inclusive analisados, se constata que todos
públicas federais brasileiras preci- nesse espaço do IHU, o objetivo de são extraordinários. E, para os que
sam cumprir a missão de expansão realizar as teses ultraneoliberais de relutam em aceitar a prioridade do
da educação superior com qualida- abocanhar a fatia substanciosa de comércio sobre os direitos humanos,
de. Todas as estratégias de financei- capitalização até agora protegida a capacidade dos países de formar
rização propostas pelo programa, contra a ganância do mercado. Em seus cidadãos conscientes e com ca-
e que conversam com diversos mo- 2002, na cidade de Porto Alegre, pacidade crítica estará efetivamente

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condenada, se o que rege as ações o tópico está totalmente claro, claro e universidades se aliem a diversos
é uma concepção que dá prioridade com ressalvas ou se não está claro. modelos de fundos de investimento
aos aspectos comerciais (DIAS, Mar- Ao final, é possível deixar ainda um para ampliar suas receitas e criar
co Antonio Rodrigues. A OMC e a comentário geral sobre a proposta”. ambientes favoráveis aos negócios.
educação superior para o mercado. Isso combinado com  Fundos de In-
Pela especificidade dos itens anun-
In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, vestimentos Imobiliários  que per-
ciados, nota-se um conjunto comple-
Miguel; PANIZZI, Wrana Maria mitiriam às  universidades  celebrar
xo de medidas que guardam vincula-
(orgs). A Educação Superior Frente a contratos de gestão compartilhada
ção contraditória com a Constituição,
Davos; La Educación Superior Fren- acerca do seu próprio patrimônio
leis orgânicas, estandares [padrões]
te a Davos. Porto Alegre: Editora da imobiliário e da União e às reitorias
UFRGS, 2003). de supervisão fiscalizadora (TCU,
estabelecer parcerias público-priva-
CGU, AGU, MPU). Cito um exemplo
das, comodato ou cessão de prédios
A Constituição de 1988 tem sido a pontual: enquanto na proposta se e lotes. Além disso, Fundos Patrimo-
expressão de uma formidável mobi- abre a possibilidade de acúmulo de niais (endowment) para captar do-
lização da comunidade acadêmica e encargos decorrentes de obrigações ações de empresas ou de ex-alunos
da sociedade civil, que se orientou contratadas para atuação de pessoal para financiar pesquisas ou investi-
pelo conceito do papel social que a em dedicação exclusiva, professo- mentos de longo prazo.
universidade realiza e de que a edu- res desse regime são diuturnamente
cação é um bem público e mesmo interpelados pelo TCU e pelo MPU Conforme já mencionei em outras
quando se realiza de modo privado, com a tipificação de violação do regi- oportunidades, dá-se agora a inves-
por impulso de mercado, não pode me, em situações que, a rigor, sequer tida mais sutil porque disfarçada em
delirar dos valores que o Consti- deveriam ser questionadas. Há, por- ilusão de reforma aperfeiçoadora
tuinte levou para o seu texto. Esses tanto, uma agenda presumida de ca- do sistema. O ministro da Educa-
princípios são corolários de duas ráter legislativo e procedimental que ção com o programa ‘Future-se’ diz
institucionalidades fundamentais, antecipa muitas dificuldades para querer reestruturar o financiamento
que a Constituição de 1988 sufragou implantar a proposta. do ensino superior público. A pro-
e que reclamam a sua defesa intran- posta, todavia, quer levar o governo
sigente já por lealdade à soberania a escapar da vinculação constitucio- 47
popular que se manifestou de modo
“Dá-se agora a
nal que obriga o Estado a financiar a
constituinte, já por compromisso manutenção e o funcionamento das
histórico conforme acima acentu-
ado: a autonomia universitária e a investida mais universidades públicas e, enquanto
aparentemente amplia a participa-
liberdade de ensinar.
sutil porque ção de verbas privadas no orçamen-
to universitário, retira a instituição
IHU On-Line - Como o Future- disfarçada de sua função estratégica pública
e social e a entrega, com seu patri-
se será operacionalizado?
José Geraldo  de Sousa - Na
em ilusão mônio, seu capital de conhecimento
e seu acervo cultural à ganância de
proposta, apenas anunciada e de
modo unilateral, pois não houve,
de reforma acumulação e de capitalização. Por
isso o jogo de palavras: Fature-se ao
diferentemente de todos os grandes
projetos anteriores — Reuni, Prou-
aperfeiçoadora invés de Future-se. 

ni, Enem, Fies, Ciência sem Fron-


teiras — nenhuma discussão prévia
do sistema”  
IHU On-Line - Qual tende a
ser o impacto do Future-se na
ou grupos de trabalho com reitores
pesquisa, no fazer científico
e reitoras para sua construção, nem
das universidades federais?
como ocorreu nesses anos, a formu- IHU On-Line - Em que consis-
lação de agendas entre a Presidência José Geraldo de Sousa - Con-
te a proposta de criação de Fun-
da República e o conjunto de rei- cordo com Boaventura de Sousa
dos de Investimento, segundo o
tores e reitoras — há a previsão de Santos, desde escritos anteriores e
programa?
abertura para consulta pública geral, mais recentemente (Exposição na
nos próximos 30 dias, pela internet, José Geraldo  de Sousa - Esse Conferência Regional de Educação
sem espaço entretanto para debate é um dos eixos destacados da pro- Superior da América Latina e o Ca-
ou diálogo, limitada a consulta à sua posta, o Eixo 1: Gestão, governança ribe. Córdoba: CRES, 2018), quando
leitura “na íntegra na página da con- e empreendedorismo. Segundo ma- caracterizou o assédio neoliberal às
sulta pública. Em seguida, é possível téria publicada no site do IHU, esse universidades, para fazer uma séria
acessar, separadamente, os nove tre- eixo é a principal ancoragem para advertência: “A ideia de que o úni-
chos do texto e, para cada um deixar, o capital privado nas instituições. co valor do conhecimento é o valor
um comentário e dizer se acha que O programa defende que institutos de mercado é o que irá matar a uni-

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TEMA DE CAPA

versidade. Uma universidade que José Geraldo de Sousa - Eu pró- o programa pode pôr em xeque
é ‘sustentável’ porque financia a si prio, como reitor, vivenciei todo o a autonomia de pesquisa das
mesma é uma universidade insus- processo de constituição da empresa universidades. O senhor con-
tentável como bem comum, porque pública de gestão hospitalar. Somen- corda com esse tipo de crítica?
se transformou em uma empresa”.  te no formato a criação da empresa Sim, não, por quê? 
remeteu ao formato de uma entidade José Geraldo  de Sousa  - Con-
modelada pelo sistema privado. Em cordo inteiramente e retomo aqui a
IHU On-Line - Quais são os
seus estatutos, em seu funcionamen- crítica feita por Boaventura de Sou-
tipos de parcerias público
to e em seus objetivos, a Empresa sa Santos sintetizada acima para
-privadas que já existem nas
Brasileira de Serviços Hospitalares - compartilhá-la por inteiro, a exem-
universidades federais hoje e
qual tem sido o impacto des- EBSERH manteve-se como uma ini- plo de como o fiz em exposição na
sas parcerias? ciativa de interesse público de modo Associação Nacional dos Reitores
que seus impactos alcançaram mais das Instituições Federais de Ensino
José Geraldo  de Sousa  - Men- a eficiência da gestão, aquisições em Superior - Andifes. Ao final do ano
cionei algumas delas atrás. Tivesse escala, planejamento global. Mas passado (2018), a Andifes organi-
havido um estudo prévio para cons- contribuiu para a regularização  dos zou um importante seminário para
truir a proposta, como foi feito com serviços; por exemplo, vincular como marcar 70 anos da Declaração Uni-
o Reuni, e um bom catálogo de par- celetistas servidores precarizados ti- versal dos Direitos Humanos e 30
cerias, seus tipos, seu alcance na sus- dos como admissão irregular pelos anos da Constituição de 1988. Um
tentabilidade das instituições e seus órgãos de controle. dos temas em exposição  foi o que
impactos nos programas e projetos proferi, “A Universidade Pública,
acadêmicos  teriam permitido um Autonomia e Liberdade de Ensi-
desenho razoável dessa experiência.
Tudo depende de cada modelagem “A ideia de que nar: Valores que a Constituição de
1988 Consagrou”. Na conclusão de
o único valor do
de cooperação, mas em geral, além minha exposição, aludindo aos de-
dos pagamentos diretos — aluguéis, safios e às tarefas que se colocam
48
de imóveis e de equipamentos, de
prestação de serviços (aqui não cabe conhecimento na  conjuntura,  em face dos impas-
ses que põem a Constituição numa
o exemplo, por causa da natureza pú-
blica da prestação de serviços, mas é o valor de encruzilhada, implicam em tomar
consciência e posição, ao que Bo-
tenha-se em mente as universidades
que mantêm hospitais e que os inte- mercado é o aventura de Sousa Santos, desde
escritos anteriores e mais recente-
gram cem por cento no sistema SUS,
o quanto reverte para elas, para apli-
que irá matar a mente (Exposição na Conferência
Regional de Educação Superior da
cação nos próprios hospitais, o valor
dos contratos de prestação de servi-
universidade” América Latina e o Caribe. Córdo-
ba: CRES, 2018), caracterizou como
ços, ainda mais sabendo-se que em assédio neoliberal às universidades:
geral esses hospitais conservam sua “A ideia de que o único valor do co-
dupla função de serviços e de ensino IHU On-Line - É possível esta- nhecimento é o valor de mercado
e pesquisa) —, as negociações têm belecer algum tipo de aproxima- é o que irá  matar  a universidade.
permitido atividades cooperadas de ção ou semelhança entre a par- Uma universidade que é ‘susten-
ensino, extensão e pesquisa (caso da ceria público-privada realizada tável’ porque financia a si mesma
UnB e da Fiocruz instalada no cam- para fazer a gestão dos hospitais é uma universidade insustentável
pus universitário), com financia- e a proposta do Future-se? como bem comum, porque se trans-
mento de bolsas, estágios, tudo sem formou em uma empresa”. 
perder a dimensão pública, social, José Geraldo  de Sousa - So-
republicana dessas parcerias. Assim, mente quanto aos requisitos ope- Para ele o presente, controlado
cada projeto revela o alcance de seu racionais e de funcionamento. pelo neoliberalismo, é uma época
objetivo cooperado e o impacto que Diferentemente da visão de empre- plena de perigos para a universida-
proporciona à relação acadêmica a endedorismo e de transferência do de pública: em face do ciclo global
que ele visa em última razão. público para o privado que o Futu- conservador e reacionário, isto é, “o
re-se propõe, na gestão hospitalar a domínio total do capital financeiro”.
empresa criada EBSERH permane- O projeto neoliberal, segundo ele,
IHU On-Line - Nos governos busca a construção de um “capitalis-
ceu pública no programa e na reali-
passados foram feitas parcerias mo universitário”: “Começou com a
zação de seus objetivos.
público-privadas para a gestão ideia de que a universidade deveria
dos hospitais públicos universi- ser relevante para criar as compe-
tários. Qual foi o impacto dessa IHU On-Line - Alguns críticos tências que o mercado exige”, seguiu
parceria na gestão dos hospitais? ao Future-se argumentam que com as propostas de tributação e

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privatização. “A fase final é a ideia que as universidades possam com- matéria do IHU acima citada e re-
de que a universidade deve ser ela prar produtos acadêmicos em todo tomo o posicionamento de Daniel
mesma um mercado, a universidade o mundo”. Finaliza, repito, convo- Cara, aliás bastante consistente.
como empresa”. Se a universidade é cando o espírito de Córdoba e da Ainda que possa haver experiências
uma mercadoria a mais, precisa ser Reforma de 1918, para pensar polí- valiosas no âmbito das experiências
medida: daí os rankings globais. Por tica e epistemologicamente modos em instituições privadas, esse even-
isso, a  ideologia neoliberal  colide de romper as limitações impostas tual “sucesso” não tem correlação
assim com a ideia de “universidade pelo neoliberalismo e radicalizar a com o âmbito público do modelo
como um bem comum”, uma das utopia democratizadora: a univer- constitucional universitário brasi-
conquistas obtidas a partir da  Re- sidade, concluiu, deve se restituir, leiro. Por isso que ponto considera-
forma de Córdoba (1918). “É um fazer um uso contra-hegemônico do “perverso” pelo educador (Cara)
momento difícil por várias razões, e de sua autonomia e “transformar- é “o de utilizar o patrimônio acumu-
uma delas é que não há um ataque se em uma pluriversidade”, teórica lado pelas universidades públicas
político, mas, sim, um ataque despo- e politicamente. como moeda de troca para estraté-
litizado. É um ataque que tem duas gias de comercialização e financei-
dimensões: cortes orçamentários e a rização. Isso é um crime de lesa-pá-
luta contra a suposta ineficiência ou tria, ataca a Ciência e precisamos
corrupção, uma luta muito seletiva, “As ter clareza disso. As universidades

universidades,
porque se sabe que as universidades hoje funcionam como um anteparo
públicas são em geral muito bem ge- à política de Jair Bolsonaro, com a
renciadas em comparação com ou-
tras instituições. como as sua capacidade crítica. Justamente
por isso a ideia de enfraquecê-las a
Conforme Boaventura, há três
razões pelas quais a universidade
igrejas, as partir de um modelo de gestão que
incorpora elementos privatistas e
é um alvo desejado pelo regime corporações, o provoca a demolição da autonomia
universitária e da capacidade de de-
neoliberal: 1. Sua produção de co-
nhecimento independente e crítico país inteiro tem mocratizar o Ensino Superior com
qualidade”, atesta. 49
refletido essa
questiona “a ausência de alterna-
tivas que o neoliberalismo tenta “Atacar a universidade pública
produzir em nossas cabeças todos
os dias. Se não há alternativas, não polarização brasileira é atacar a soberania do
país e precisamos atuar de manei-
há política, porque a política é só
alternativas. É por isso que muitas de visões de ra muito inteligente e conjunta para
barrar esse projeto no Congresso.
das medidas contra a universidade
não parecem políticas, mas, sim,
mundo que Não é a educação que vai fazer com
que a economia tenha dinamismo,
econômicas, os cortes financeiros,
ou jurídicos, a luta contra a corrup-
acontece hoje tampouco a economia vai fazer com
que a educação se realize. O que
ção. O que está por trás é a ideia
de que a universidade pode ser um
no Brasil e precisamos no Brasil é de um pro-
jeto de desenvolvimento que articu-
fermento de alternativas e resis-
tência”; 2. O pensamento neolibe-
no mundo” le todas as áreas: educação, saúde,
economia, assistência social, acesso
ral busca um presente eterno, quer à moradia. Um projeto que garan-
evitar toda tensão entre passado, ta um País com qualidade de vida,
presente e futuro. E a  universida- IHU On-Line - Como a propos- mas esse não é o objetivo do gover-
de  sempre foi, com todas as limi- ta do Future-se já vem sendo no Bolsonaro”, finaliza. 
tações, a possibilidade de criticar o desenvolvida, em alguma medi-  
presente em relação ao passado e da, nas universidades privadas IHU On-Line - O modelo de
com vistas a um futuro diferente”; 3. e quais as consequências disso? gestão sugerido pelo Future-se
“A universidade ajudou a criar pro-
José Geraldo de Sousa - Essa é uma tendência nas universi-
jetos nacionais (obviamente, exclu-
questão tem que ser aferida na ava- dades públicas e privadas mun-
dentes dos povos originários) e o
liação de cada situação que possa diais? Quais são as semelhanças
neoliberalismo não quer projetos
ser carreada para um quadro de mo- e diferenças dessa proposta em
nacionais. Por sua vez, a universi-
delagem. Não existe esse estudo e a relação ao modelo de gestão de
dade sempre foi internacionalmen-
universidades de outros países?
te solidária, com base na ideia de preparação da proposta, feita desde
um bem comum. Mas o  capitalis- cima, desprezou qualquer discus- José Geraldo  de Sousa - Não
mo universitário  quer outro tipo são ou argumentação. É uma aposta creio que seja uma tendência. Ao
de internacionalismo: a franquia, cega. No plano opinativo, remeto à contrário, o que temos assistido é a

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TEMA DE CAPA

uma volta estratégica ao modelo pú- biente acadêmico para uma ação de José Geraldo de Sousa - Ape-
blico na organização e no financia- erosão privatizante que mina a estrutu- nas o que venho sustentan-
mento a partir dos países de maior ra do interesse social que a universida- do, junto com meus colegas de
PIB no Norte Global. de pública insiste em preservar. Esses pesquisa do Coletivo O Direito
setores estão certamente eufóricos em Achado na Rua, em face das exi-
face da possibilidade de fortalecer seus gências da conjuntura.  Contra
IHU On-Line - Como a pro-
grupos de pesquisa, sua carteira de ser- tudo isso opõe-se a história mi-
posta do Future-se está reper-
viços, de se tornarem, como disse o Se- lenar da universidade ocidental
cutindo entre os profissionais
cretário na apresentação da proposta, que soube manter-se leal aos
que atuam nas universidades
“o professor universitário (que) poderá seus fundamentos civilizatórios
federais? Que comentários e
ser muito rico. Vai ser a melhor profis- e sempre soergueu-se aos assal-
análises o senhor tem visto nes-
são do Brasil”.  tos da barbárie, de inquisidores,
te sentido?
dos múltiplos fascismos, de to-
De um modo geral, porém, a recep-
José Geraldo de Sousa - As uni- das as formas de autoritarismo
ção mais nítida da proposta é crítica,
versidades, como as igrejas, as corpo- e contra a ganância do mercado.
no sentido de que ela representa uma
rações, o país inteiro tem refletido essa A educação ainda é valor social,
tragédia para a concepção  constitu-
polarização de visões de mundo que bem público, não é negócio. O
cional de uma universidade públi-
acontece hoje no Brasil e no mundo. que se espera é que os movimen-
ca, de qualidade, com compromisso
Nas universidades, especificamente, tos sociais e a institucionalidade
social, laica. Para o princípio de que
grupos leais ao modelo neoliberal tam- estruturada no sistema legisla-
educação, incluindo a educação su-
bém se formaram e tive a notícia re- tivo e judicial compreendam o
perior, é um bem social, não é uma
cente de formação de uma associação alcance e toda a dimensão e sig-
mercadoria.
de professores de direita e que ponti- nificado desses valores inscritos
ficam a crença neoliberal. Já há muito nos princípios constitucionais,
tempo, o capitalismo universitário de IHU On-Line - Deseja acres- para protegê-los e para defender
que fala Boaventura se instala no am- centar algo? a própria Constituição.
50

Leia mais
- Lava Jato: os riscos da “jogadinha ensaiada” que põe juiz e promotor do mesmo lado.
Entrevista especial com Lenio Streck e José Geraldo de Sousa Junior, publicada nas No-
tícias do Dia de 13-6-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/302XAoh;
- Direitos não são quantidades, são relações. Entrevista com José Geraldo de Sousa Ju-
nior, publicada na revista IHU On-Line número 494, de 3-10-2016, disponível em http://bit.
ly/2GwKo5b.
- O julgamento e os impactos políticos da condenação do ex-presidente Lula. Algumas
leituras. Entrevista com José Geraldo de Sousa Junior, publicada nas Notícias do Dia de
25-1-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q4SeIZ.
- A Constituição e a construção de direitos. Entrevista especial com José Geraldo de Sou-
sa Junior, publicada nas Notícias do Dia de 3-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q3Qqze.

19 DE AGOSTO | 2019
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Future-se: uma proposta de quem não


conhece a realidade da universidade
Renato Janine Ribeiro reforça que “educação em qualquer nível
é algo extremamente importante para o desenvolvimento
econômico e social do país, precisa ter uma estabilidade”
João Vitor Santos

N
ão deveria, mas é comum, com querem utilizar esse recurso”, aponta.
a troca de governos, haver Além disso, descolar o financiamen-
uma série de realinhamentos to das universidades dos orçamentos
de prioridades e rupturas. Entretanto, estatais e associar a fundos de inves-
no Governo Bolsonaro, essas rupturas timentos gera instabilidade. Para Re-
e mudanças de rotas têm sido radicais. nato, com instabilidade não se pode
O campo da Educação é mais um que assegurar o desenvolvimento de ensino
vem sendo atingido em cheio por esses e pesquisa nas universidades. “Educa-
reveses. Além dos ataques e críticas às ção em qualquer nível, seja na educação
universidades públicas, o governo lança das crianças, que é um direito humano,
agora um programa: o Future-se, que, seja em nível de pós-graduação, que é
para muitos especialistas, fere a liber- algo extremamente importante para o
dade e autonomia e compromete o fi- desenvolvimento econômico e social
nanciamento das instituições públicas. 51
do país, precisa ter uma estabilidade”,
O ex-ministro da Educação, professor reforça.
Renato Janine Ribeiro, é um dos que
teme essas mudanças. “Essa proposta Renato Janine Ribeiro é professor
revela um desconhecimento da realida- de Filosofia, escritor e colunista. Foi
de universitária”, destaca, na entrevista ministro da Educação, entre abril e se-
concedida por telefone à IHU On-Li- tembro de 2015. Atua como professor-
ne. “Fala-se muito, é um discurso mais titular da cadeira de Ética e Filosofia
ou menos automático de quem não política da Faculdade de Filosofia, Le-
conhece a universidade, de que a uni- tras e Ciências Humanas da Universi-
versidade não quer cooperar. Mas não dade de São Paulo - FFLCH-USP. Entre
é essa a realidade. Já existe uma série os seus livros recentemente publicados,
de mecanismos que podem ser bem uti- destacamos A Pátria Educadora em
colapso - reflexões de um ex-ministro
lizados”, acrescenta.
sobre a derrocada de Dilma Rousseff
Segundo o professor, o desconheci- e o futuro da educação no Brasil (São
mento da realidade das instituições se Paulo: Três Estrelas, 2018), A boa po-
revela por duas formas. Na primeira, lítica - Ensaios sobre a democracia na
por essa insistência da necessidade era da Internet (São Paulo: Companhia
de cooperação com o setor privado. O das Letras, 2017) e A imprensa entre
Future-se aponta uma outra fórmu- Antígona e Maquiavel: a ética jorna-
la, desconsiderando as parcerias que lística na vida real das redações (São
já ocorrem, em outros moldes, dentro Paulo: ESPM, 2015).
das universidades. Como exemplo, cita
as bolsas de estudos via CNPQ e leis e A entrevista foi publicada nas Notí-
regulamentações, que colocam estu- cias do Dia em 05-08-2019, atualiza-
dantes e pesquisadores em conexão das diariamente na página do Instituto
com a realidade do mercado. “Já exis- Humanitas Unisinos – IHU, disponível
tem essas cooperações. É um problema em http://bit.ly/31zMY0i
delicado, mas nem sempre as empresas Confira a entrevista.

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TEMA DE CAPA

IHU On-Line — Qual sua avalia- uma garantia de financiamento que Aí fica o receio que muita gente
ção sobre o Programa Institutos estabilize tudo isso. Necessitamos tem, a partir da proposta de que a
e Universidades Empreendedo- ter certeza de que algo que vai co- questão do financiamento iria de-
ras e Inovadoras - Future-se, re- meçar terá continuidade. E isso vale pender só das universidades, da
cém-lançado pelo Ministério da para todas as ações de governo. capacidade delas de tirar recursos
Educação - MEC? mediante seu vínculo com o setor
privado e pagando um preço alto
Renato Janine Ribeiro — Esse
caso ocorram equívocos. Se isso
programa é preocupante, primeiro,
porque sabemos poucos detalhes so- “Fala-se muito, der errado, como vamos fazer? Se
não se conseguir o rendimento es-
bre ele; segundo, porque cria formas
de regulação como, por exemplo, um
é um discurso perado, se os fundos caírem, vão

mais ou menos
demitir professores? Vão dar ca-
comitê gestor. Não sabemos como
lote nas contas de luz e água? Vão
vai ser composto esse comitê, se será
uma autoridade sobre as universi-
dades federais que poderá inibir a
automático parar de comprar reagentes? Vão
deixar de assinar os periódicos in-
autonomia delas. Assim como este,
há vários pontos sobre os quais não
de quem não ternacionais que são fundamentais
às pesquisas mais desenvolvidas?
sabemos o que vai ser feito. conhece a Isso tudo é um risco muito grande.
Temos que ter, dentro do governo,
O terceiro ponto — e talvez o prin-
cipal —, é que na hora em que o fi-
universidade, certas áreas mais preservadas do
que outras porque elas têm um pa-
nanciamento da educação passa a
depender de aplicações de fundos,
de que a pel fundamental para podermos ter
que são de natureza especulativa,
fica complicado dar a estabilidade
universidade todo o resto. Se não tivermos uma
boa formação de mão de obra, te-
necessária para o financiamento da
Educação. Educação em qualquer
não quer remos muita dificuldade em desen-
volver a economia. Assistindo a um
52 nível, seja na educação das crianças, cooperar. Mas programa de televisão, me chamou
atenção a explicação de que, para
que é um direito humano, seja em
nível de pós-graduação, que é algo não é essa a muitos empregos, atualmente, se
requer o Ensino Médio. Então, se
extremamente importante para o
desenvolvimento econômico e social realidade” não tiver um bom Ensino Médio, se
limita a capacidade da pessoa de su-
do país, precisa ter uma estabilida- bir na vida.
de. O problema desse projeto é que
ele deixa uma instabilidade muito IHU On-Line — É nesse finan- Financiamento e avaliação
grande no sistema educacional. Esse ciamento empregado a partir
é o ponto que assinalo como o mais de fundos que se manifesta a Não quer dizer que a universidade
preocupante no projeto do governo. lógica do mercado na Educa- deva apenas entregar a conta para o
ção? E que outros riscos podem governo, que a universidade seja ir-
emergir dessa perspectiva? responsável. Ela tem que ser avalia-
IHU On-Line — O senhor quer
da e temos que saber se está fazendo
destacar que um dos riscos de Renato Janine Ribeiro — Pode- bem seu trabalho. E isso tanto as uni-
vincular o financiamento da
mos ter muita cooperação de merca- versidades públicas quanto as priva-
educação aos fundos é que se os
do na área da Educação, não tem a das. A universidade privada tem que
fundos não vão bem, não tem
menor dúvida. Hoje, cada vez mais ser avaliada, porque os alunos pagam
rendimento, não há recursos
se considera que a Educação é um – eventualmente até entram bolsas
para a educação?
dos principais insumos para melho- do setor público, como a Coordena-
Renato Janine Ribeiro — Sim. rar a produtividade do trabalhador, ção de Aperfeiçoamento de Pessoal
Isto é, há certos tipos de atuação em a competitividade da economia e a de Nível Superior - Capes na pós-gra-
que é preciso ter uma estabilidade, remuneração das pessoas. Então, duação ou o Programa Universidade
por exemplo, quando lidamos com Educação passa a ser algo que é mui- para Todos - ProUne na graduação
crianças, idosos, educação e saúde. to positivo do ponto de vista econô- – e também para sabermos se es-
Esses quatro setores necessitam ter mico, até por isso ela tem que ser tão fazendo um bom trabalho. E as
uma estabilidade muito grande. resguardada de intempéries. Assim, universidades públicas têm que ser
não podemos, de um ano para o ou- avaliadas também para ver se estão
Não podemos, de um ano para o
tro, tirar a criança da creche ou cor- usando bem o dinheiro da sociedade.
outro, fechar um, dois ou três anos
do curso de graduação porque não tar a sequência de uma graduação ou Uma coisa não exclui a outra, ou
houve financiamento. É preciso ter de uma pós-graduação. seja, não se trata de dizer que as uni-

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versidades não devam ser responsá- cobre, quem faz o estudo científico sido testada para as condições do
veis pelos seus gastos, mas elas têm de como a pobreza atrasa um país? É couro do gado brasileiro. Esse gado
que demonstrar que são capazes de a Sociologia, eventualmente em coo- tem suas particularidades, em razão
ter um bom desempenho. E como peração com a Economia. de solo, de clima e cruzamento de
vemos isso? Pelos resultados que raças de outras nações. Então, essa
elas apontam. O que uma universi- Investimento na Educação, cola era boa, mas não era 100% para
dade tem que entregar? Pessoas bem retorno em todas as áreas a realidade da produção brasileira. E
formadas nos cursos de graduação do que precisávamos? De pesquisa
e, sobretudo nas melhores universi- Se hoje olharmos, por exemplo, a científica para ter uma cola melhor e
dades, pesquisa de qualidade. Isso é área de Educação, veremos que há que reduzisse o desperdício, que era
avaliado há muito tempo, pois a Ca- um bom número de economistas que da ordem de 5% desse produto. Esse
pes e o Conselho Nacional de Desen- estão debruçados sobre essa área, é um exemplo importante, porque
volvimento Científico e Tecnológico estão interessados em ver como a precisamos de uma pesquisa que
- CNPq fazem esse trabalho. Educação melhora a Economia – ajuste as questões aos interesses e
Ricardo Paes de Barros talvez seja realidades brasileiros.
Riscos da “universidade-em- o mais conhecido deles no Brasil.
Agora, se olharmos as publicações Outro exemplo, na área das Ciên-
presa” cias Agrárias: o Brasil tem pouca
internacionais de fonte liberal, como
a revista The Economist ou o Finan- produção de trigo e muita produ-
Com isso, entramos em outro pro-
cial Times e mesmo os relatórios do ção de soja por razões climáticas.
blema: o projeto todo, o Future-se,
Banco Mundial, veremos que todos Se olharmos as pesquisas interna-
está muito ligado à ideia de uma uni-
– que não têm nada de esquerdistas, cionais, elas são mais voltadas para
versidade que seja vinculada com o
muito ao contrário – vão dar uma o trigo. Logo, não precisamos tanto
setor empresarial e não prevê o que
importância muito grande à Educa- das pesquisas sobre trigo, mas de
ocorrerá com áreas que não sejam
ção. Essa importância faz com ela pesquisas sobre soja. E quem faz
de tanto interesse empresarial. Ora,
precise ser valorizada. essas pesquisas? Nós, somos nós os
nesse ponto há vários problemas:
bons pesquisadores de soja.
veja o caso da Sociologia, por exem-
plo, tão criticada pelo presidente Quando estive no Ministério da Quando se realiza pesquisa, em 53
[Jair] Bolsonaro. A Sociologia é a ci- Educação, tive três encontros com o qualquer área ou ramo, sempre há
ência que estuda a sociedade. Como ministro da Educação da Coreia do riscos. Às vezes, quanto maior é o
alguém quer governar um país, um Sul, que era também vice-primeiro risco, mais profunda e promissora é
estado, sem ter elementos científi- ministro, o que mostra a importân- a pesquisa. Mas é grande o risco de
cos? Assim como precisamos ter ele- cia que a Coreia do Sul dá à Educa- ela dar errado, pois está se entran-
mentos científicos para, por exem- ção. Ele me contou que quando ti- do em caminhos não trilhados. En-
plo, melhorar a produção agrícola, veram uma crise séria, alguns anos tão, para fazer uma pesquisa de boa
precisamos de elementos científicos atrás, eles cortaram verbas em mui- qualidade, é preciso entender que há
para saber como se governa um país, tas áreas, mas a área mais preserva- chances tanto de ela dar certo como
e a Sociologia permite que se tenham da foi a da Educação. de dar errado. Mas se ela prosperar,
esses elementos. pode fazer o país crescer, ficar me-
Educação é futuro, mas não de uma lhor economicamente etc. Esse é um
A Sociologia se ocupa muito da de- forma muito elementar, quando se dos pontos cruciais da pesquisa que
sigualdade social. Com isso, ela dá investe só nas áreas que aumentam precisa ser compreendido.
contribuições importantes de como a produção. Se for feito um bom tra-
se pode aumentar as oportunidades balho na Educação, todas as áreas
das pessoas, como se pode tornar IHU On-Line – De que forma
serão impactadas positivamente.
mais justa a competição profissional o programa Future-se pode im-
e como se pode aproveitar talentos pactar a autonomia da univer-
em uma sociedade desigual em que IHU On-Line — Quais os ris- sidade pública, tanto no sentido
eles são desperdiçados. A sociedade cos do desenvolvimento apenas do ensino como na pesquisa?
de pesquisas que visem atender
brasileira, com a dimensão da mi- Renato Janine Ribeiro — O es-
ao mercado, como o senhor re-
séria e da pobreza que tem, é uma tado de São Paulo adotou um bom
feriu anteriormente?
sociedade que desperdiça muitos método, já faz 30 anos, que foi des-
talentos que nem descobrimos que Renato Janine Ribeiro — Lem- tinar às universidades estaduais
existem, é uma quantidade grande bro de um amigo, um empresário, um percentual levemente abaixo
de crianças pobres e miseráveis ou que infelizmente teve uma morte de 10% da arrecadação do Imposto
de adultos pobres e miseráveis que trágica, Nei de Bittencourt Araújo, sobre Circulação de Mercadorias e
poderiam ser profissionais bons e que nos anos 1990 costumava dar Serviços - ICMS, que é um imposto
rentáveis em várias áreas, só que não um exemplo: a cola usada no calça- que reflete muito bem a inflação e,
tiveram a oportunidade. Quem des- do brasileiro era uma que não tinha portanto, dá uma certa estabilidade

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TEMA DE CAPA

financeira. E veja que as três uni- trumentos para cooperar com o se- Renato Janine Ribeiro — A
versidades estaduais estão entre as tor privado. A Lei é do Ministério de proposta traz de novidade o fato de
melhores do Brasil: Universidade Ciência e Tecnologia, mas afeta tam- que, aparentemente, pelo que foi
de São Paulo - USP, Universidade bém o MEC e outras áreas. dito até agora, desresponsabiliza o
Estadual de Campinas - Unicamp governo pelos recursos da univer-
Trago isso tudo para demonstrar
e Universidade Estadual Paulista - sidade. Eu acho que esse é o ponto
que já existem essas cooperações. preocupante. Como fazer para lidar
Unesp. Quando se emprega esse tipo
de ação numa universidade que tem É um problema delicado, mas nem com uma desresponsabilização des-
uma cultura de qualidade forte, fun- sempre as empresas querem utilizar sa ordem? Isso é muito complicado.
ciona bem, pois a universidade não esse recurso. Às vezes, as empresas
tem que ir ao MEC quando precisa preferem já comprar a tecnologia
pronta, vinda de fora. E, com isso, IHU On-Line – Mas, nesses
consertar algo ou construir um pré-
fica bem complicado para o país, três aspectos, nos três eixos,
dio novo, por exemplo.
pois se tem uma tecnologia que já não há nada de novo?
É o contrário do que ocorre no se- foi testada em outros lugares, é boa, Renato Janine Ribeiro — Sim,
tor federal. E isso não é de agora. Por mas que nem sempre é a melhor e essas perspectivas que já estão
exemplo: pegou fogo num prédio da para o Brasil, o que, às vezes, pode presentes, sempre podem ser am-
Universidade Federal da Bahia, há trazer algum problema. pliadas. Se a intenção do governo
mais de dez anos, e reconstruir o é ampliar, tudo bem. Agora, o que
prédio dependia de uma alocação Fala-se muito, é um discurso mais
ou menos automático de quem não não pode fazer é ignorar tudo que
de verbas do MEC. Em São Paulo, foi feito, todo o conhecimento já
o reitor teria de ver como ele tiraria conhece a universidade, de que a
existente, desrespeitar as pessoas
recurso para essa obra do orçamen- universidade não quer cooperar.
que trabalharam e trabalham nisso
to dele. Poderia até eventualmente Mas não é essa a realidade. Já existe
e também propor uma única saída
pedir um aporte adicional, mas ele uma série de mecanismos que po-
para toda a complexidade da vida
teria que gerir isso. dem ser bem utilizados.
universitária.
Entretanto, isso funciona muito Há algo que praticamente não te-
54 bem quando está associado com uma
cultura da avaliação, quando se sabe “Esse governo mos no Brasil, mas é presente na In-
glaterra e na França: os principais
que a universidade está cumprindo
bem sua tríplice missão. Primeiro, se elege sem museus têm área de pesquisa sobre a
Mesopotâmia, sobre os países onde
formação de aluno; segundo, nas me-
lhores universidades, a pesquisa; e ter um projeto se dão os primórdios da escrita, so-
bre países como Babilônia, Assíria.
terceiro, a extensão, a transmissão de
conhecimento à sociedade. É nesse
educacional, No Brasil, há um trabalho, que até
deveria ter mais envergadura, que é
terceiro aspecto que se pode incluir
toda a cooperação com empresas.
a não ser o o de conhecer as línguas indígenas.
São coisas mais recentes, mas muito
Na medida em que essa extensão vai
se desenvolvendo bem, vai havendo
Escola sem importantes, porque muitas dessas

Partido, um
línguas estão em extinção, outras já
maior possibilidade de cooperação. se extinguiram. E isso é importante

Cooperação não é novidade projeto de porque é conhecimento sobre o ser


humano. Não temos apenas a biodi-
E já existe essa cooperação com
empresas. Desde os anos 1980, o
certa forma versidade amazônica, temos a “hu-
manodiversidade”, por assim dizer.
CNPQ tem as bolsas RHAE [Progra-
ma de Formação de Recursos Hu-
repressivo” Algumas dessas áreas têm um
processo muito demorado até que
manos em Áreas Estratégicas]. Esse haja um impacto, um retorno eco-
programa foi criado, em 1987, para nômico. Mesmo na área científica
a inserção de mestres e doutores na IHU On-Line – O programa é isso pode ocorrer. Por exemplo:
iniciativa privada, essencialmente centrado em três eixos: gover- pegando a taxonomia, que designa
em empresas de micro, médio e pe- nança, gestão e empreendedo- a classificação das espécies, pode-
queno porte. Ou seja, já existe um rismo; pesquisa e inovação; e se descobrir uma nova espécie de
sistema que, há tempos, prestigia internacionalização. Mas, até uma planta, mas se demora muito
essa cooperação entre a iniciativa pelo que o senhor nos trouxe tempo para trabalhar essa planta,
privada e as universidades. No go- até agora, isso já existe nas uni- identificá-la, verificar se é uma es-
verno Lula, houve a chamada Lei do versidades federais. Afinal, o pécie nova ou não. É um processo
Bem, nº. 11.196/05, que já permitia que o Future-se traz de novida- muito lento e isso tem um custo, e
que os pesquisadores tivessem ins- de nesses aspectos? nós, que temos essa biodiversidade

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incrível na Amazônia, precisamos exige um cuidado constante das ga- que tudo que estava sendo feito é
constantemente identificar novos rantias para que os cursos sejam re- errado e que elas sabem tudo. E não
seres vivos. Como se faz tudo isso? almente bons. Se já naquela época, é assim, pois há toda uma constru-
Dificilmente uma área empresarial muitos cursos ruins eram ministra- ção laboriosa pelo próprio mundo
vai querer financiar uma pesquisa dos, hoje, com oito milhões, a situa- acadêmico ao longo dos anos, mui-
desse tipo, é uma pesquisa típica de ção exige mais controle. Tanto que, ta coisa de positivo foi construída e
governo. Mas que pode, depois, ter quando eu estava no MEC, havia o foram feitas tentativas, às vezes na
efeitos ótimos para a economia. projeto de transformar a Secreta- direção mesma do que está sendo
ria de Regulação do Ensino supe- proposto, e que não deram certo.
rior privado em instituto, bem mais Não por falha da universidade, mas
IHU On-Line – Qual deve ser
forte e numeroso. Isso iria permitir porque outros lados não quiseram
o impacto do Future-se nas
que se analisassem mais rapida- as mudanças.
universidades privadas, espe-
mente os pedidos de cursos novos e
cialmente as privadas com fins Veja, também, que o presidente da
também uma avaliação mais rápida
públicos? República fez sua campanha elei-
no que diz respeito à qualidade.
toral sem, em nenhum momento,
Renato Janine Ribeiro — É in-
apontar a Educação como algo po-
teressante fazer essa distinção, pois
IHU On-Line – Como o Fu- sitivo. Ele apresentava a Educação
nem todas as pessoas conhecem a
ture-se tem repercutido entre como algo preocupante, era crítico
diferença entre privada e particu-
quem atua nas universidades com relação a ela e dizia que a Edu-
lar. De um lado temos universida-
federais ou estuda o tema? cação era responsável, e Paulo Frei-
des com finalidade lucrativa que, no
termo técnico, são as particulares, Renato Janine Ribeiro — Há re em especial, por uma espécie de
e, de outro, as universidades priva- muita preocupação, mais ou me- perda da moralidade no Brasil. Você
das sem fins lucrativos, como a pró- nos nos termos que procurei de- pode achar o que quiser do PSDB,
pria Unisinos. De modo geral, são senvolver. E há ainda fatores como do PT, dos partidos que disputaram
as universidades confessionais e as a instabilidade de financiamento há anos a hegemonia no Brasil, mas
comunitárias. Há muitas universi- e uma redução da autonomia das todos eles tinham um projeto edu-
dades comunitárias no sul do país, universidades, que passariam a ter cacional nas campanhas. E esse go- 55
mas também em São Paulo. O que cada vez mais seus horizontes di- verno se elege sem ter um projeto
encontramos nessas universidades tados a partir de Brasília, ou seja, educacional, a não ser o Escola sem
que têm espírito público é que elas Brasília demais e Brasil de menos. Partido, um projeto de certa forma
sempre tiveram um compromisso Essas são algumas das preocupa- repressivo.
educativo forte. ções que as pessoas têm. Inclusive, Quer dizer: vamos tirar da escola
saiu um decreto de que a nomea- a capacidade de atuar. Isso apare-
Uma das coisas positivas que vejo
ção de pró-reitor agora competirá cia em algumas faixas e cartazes
em várias universidades particula-
ao governo federal e não mais ao do então candidato, que veio a ser
res é que elas foram se preocupan-
reitor ou reitora. Isso tudo dei- eleito, em dizeres como: família
do mais com a qualidade de ensino.
xa as pessoas preocupadas, pois educa, professor ensina. Demons-
Isso até pelas medidas adotadas
se um reitor não puder montar tra assim um grande desconheci-
por sucessivos governos, pois co-
a equipe dele, se essa equipe foi mento sobre o papel da educação,
meçaram a fazer avaliações, a dar
escolhida em Brasília, como vai pois uma parte é a socialização da
vantagens para universidades que
fazer funcionar? Como vai haver pessoa para lidar com o mundo.
têm boa qualidade e, claro, também
harmonia de administração numa A família é ótima, tem um papel
acompanhar mais de perto univer-
universidade em que o pró-reitor insubstituível, mas a família en-
sidades e instituições de ensino su-
não obedece ao reitor? sina você a lidar com as pessoas
perior que tem má qualidade.
que estão muito próximas. Ela não
Agora, o impacto dessas medidas ensina a lidar com uma sociedade
IHU On-Line – O que a pro-
para o setor privado sem fins lu- complexa. E é por isso que a crian-
posta do Future-se revela acer-
crativos pode ser também delicado, ça sai de casa e vai ter amiguinhos,
ca do entendimento do atual
pois se o governo deixar de finan- coleguinhas, professores, isso
governo sobre o trabalho do
ciar a pesquisa e a boa formação do tudo é um microcosmos da socie-
professor e do pesquisador
aluno, haverá um sofrimento geral dade, a criança está aprendendo a
universitários?
no sistema de ensino. Todo o sis- viver em sociedade.
tema superior vai ser prejudicado, Renato Janine Ribeiro — Essa
porque passamos de três milhões proposta revela um desconheci- Homeschooling
de alunos, no tempo do Governo mento da realidade universitária. É
Fernando Henrique Cardoso, para normalmente quando ocorrem es- Aliás, esse é o erro do homescho-
oito milhões de alunos nos últimos ses processos de mudanças e ruptu- oling, a educação domiciliar. Apa-
anos. Esse aumento muito grande ras. As pessoas que entram acham rentemente existem cinco mil de-

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

mandas no Brasil para que isso seja mas foi muito mais difícil em escala a prioridade seria a Educação Bási-
autorizado – há quem diga 20 mil nacional. O que o Ceará introduziu ca, e para isso iria tirar dinheiro do
–, mas, de qualquer forma, é mui- basicamente? Avaliações permanen- Ensino Superior, mas que não tem
to pouco se comparado a 40 mi- tes do aprendizado de leitura, escri- proposta para as principais pautas da
lhões de alunos do Ensino Básico. ta e operações matemáticas, que é o Educação Básica.
A ideia de homeschooling poderia conjunto que chamamos hoje de al-
até funcionar para ensinar maté- fabetização, e recompensa no ICMS IHU On-Line – Deseja acres-
rias, mas ela não socializa, não faz para os municípios que atingirem centar algo?
a pessoa aprender a lidar com quem melhores resultados. Além disso,
está fora da família. Além do fato de investe na formação de professores Renato Janine Ribeiro — O
que é muito difícil uma família ter como alfabetizadores, que é algo que Brasil construiu, desde o Governo
condição de ensinar tudo que está os cursos de Pedagogia nem sempre Itamar Franco, uma aproximação
no Ensino Fundamental II [de 6º a dão, e acompanhamento atento e en- muito grande entre as pessoas que
9º ano], em que já tem uma divisão fático dos atrasos, para ver onde está se ocupam de Educação, pessoas que
de matérias bastante grande. E será atrasando, porque está atrasando e vêm mais da direita e pessoas que vêm
que uma família vai ser capaz de dar como corrigir isso. Essa é a priorida- mais da esquerda foram convergindo.
aula, ao mesmo tempo, de Ciências, de absoluta e até agora não tivemos Sobre o quê? A prioridade absoluta da
História, Geografia, Português, Ma- proposta concreta do governo nesse Educação Básica Pública, a importân-
temática? É muito difícil. sentido. cia dos mecanismos de avaliação para
detectar falhas e ver onde ela pode ser
Ausência de propostas A segunda coisa é o Fundeb, que melhorada, a melhora na formação do
ajuda a remunerar melhor os profes- professor, a valorização da carreira e
Então, é um governo que assumiu sores da Educação Básica dos estados do prestígio do professor, a melhora
com uma agenda precária sobre edu- mais pobres e, sobretudo, dos mu- do material didático. Ou seja, hou-
cação. Se for para dizer o que é priori- nicípios. O Fundo vence no ano que ve uma convergência para além das
dade zero na educação, destaco duas vem e não há proposta do governo questões políticas. É importante que
coisas: a primeira é a alfabetização para ele. Há propostas, no Congres- essa convergência, que talvez não te-
56 na idade certa. Há um projeto que so, de emenda constitucional para nha paralelo em nenhum outro setor
o Ceará emplacou, no Governo Cid reconduzir o Fundeb, mas o governo da administração pública, seja respei-
Gomes, em 2007, e que o Brasil ten- nem sequer se posicionou a respeito. tada. Ela é um trunfo, um patrimônio,
tou, através do MEC, nacionalizar, Temos um governo que anunciou que que não pode ser destruído. ■

Leia mais
- Eleições 2018: momento de o Brasil enfrentar os retrocessos deflagrados a partir do
impeachment de Dilma Rousseff. Entrevista com Renato Janine Ribeiro publicada nas
Notícias do Dia de 2-9-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/33DfU9p;
- Num Brasil sem diálogo, escola vira arena para disputas. Entrevista com Renato Janine
Ribeiro, publicada na revista IHU On-Line número 516, de 4-12-2017, disponível em http://
bit.ly/2JKchEh.
- “A intolerância cresceu brutalmente na política”. Entrevista com Renato Janine Ribeiro,
publicada nas Notícias do Dia de 2-9-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2B7evd3.
- Dá para pensar a política eticamente, sim ou não? Entrevista com Renato Janine Ri-
beiro, publicada na revista IHU On-Line número 398, de 11-8-2012, disponível em http://bit.
ly/2jNwLEp.
- “PT permitiu que agenda social se dissociasse da agenda moral”. Entrevista especial
com Renato Janine Ribeiro, publicada nas Notícias do Dia de 27-3-2013, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2AZBvtz.
- A essência da técnica não é nada de técnico. Entrevista especial com Renato Janine Ri-
beiro, publicada nas Notícias do Dia de 14-10-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2A1KN9g.

19 DE AGOSTO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Future-se propiciará o
“darwinismo educacional”
Para Andréa Caldas, além da financeirização da educação e da perda
de autonomia, as universidades públicas podem se tornar ambientes
de extrema concorrência, prejudicial ao desenvolvimento científico
João Vitor Santos

C
omo a maioria dos especialistas nacional ficará seriamente comprome-
em Educação, a professora An- tida. “É reconhecido que a universidade
dréa Caldas não vê com bons pública é responsável pela maior parte
olhos o programa Future-se. Associar o da produção científica e tecnológica. E
investimento a lógicas de mercado, na isto tem a ver com investimento públi-
sua opinião, compromete a qualidade co, com regime e condições de trabalho
de ensino e até o desenvolvimento da e com um ambiente mais plural e autô-
pesquisa nas universidades. “Isto signi- nomo”, lembra. E avalia: “transformar
fica abortar qualquer possibilidade de professores em horistas ou mesmo em
ciência básica e de produção tecnológica empreendedores pode, à primeira vista,
soberana e transformar a educação su- fazer com que se aumente a produção
perior em um grande shopping center quantitativa de serviços mas, fatalmen-
de venda de serviços e fornecimento de te, desestimulará pesquisas e processos
estagiários de baixo custo”, dispara, em de mais longo prazo, ou mesmo que en-
entrevista concedida por e-mail à IHU volvam mais riscos e ousadia”. 57
On-Line. Mas ela ainda vai além: acre- Andréa Caldas é professora asso-
dita que esse programa pode desenfrear ciada na Universidade Federal do Pa-
uma concorrência alucinante entre os raná - UFPR, graduada em Pedagogia,
pesquisadores e professores, que pas- mestra e doutora em Educação pela
sariam a agir e a produzir somente de mesma instituição. Atua como pesqui-
acordo com ações mais rentáveis. sadora e consultora na área de políticas
Andréa recorda que se vivem tempos educacionais e movimentos sociais, foi
de muita dificuldade financeira e contin- diretora do Setor de Educação da UFPR
genciamentos severos nas universidades. e exerceu a presidência do Fórum de
Enquanto isso, o governo acena com um Diretores das Faculdades de Educação
projeto de educação neoliberal que pode das Universidades Públicas. Atualmen-
conceder os recursos, e inclusive ganhos te, realiza estágio pós-doutoral no Pro-
extras, condicionados a uma alta produ- grama de Pós-Graduação em Educação
tividade. “Estimula-se, com isto, a com- na UFRGS, pesquisando as relações
petitividade interna entre setores, uni- público e privado na educação. Entre
versidades e institutos. E, obviamente, as suas publicações, destacamos Tecendo
regiões e áreas mais dinâmicas e próxi- Caminhos da Gestão Democrática: a
mas do mercado lograrão mais êxito, em formação dos conselheiros municipais
uma espécie de “darwinismo educacio- de educação do Paraná (Curitiba: Bra-
nal”, antítese de qualquer projeto nacio- sil Publishing, 2016) e O plano nacio-
nal e mais igualitário”, analisa. nal de educação e o sistema nacional
Por isso, a professora acredita que, sem de educação (Paraná: reflexões e pro-
investimento público, não só a forma- vocações. Curitiba: Appris, 2015).
ção, mas também a produção científica Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as ques- Andréa Caldas – O projeto lan- contra o contingenciamento de re-
tões de fundo no projeto Futu- çado pelo MEC, após as várias mobi- cursos das universidades, apesar de
re-se? lizações que ocorreram em protesto ser apresentado como uma propos-

EDIÇÃO 539
TEMA DE CAPA

ta de fortalecimento da “autonomia ampliou ainda mais os mecanismos Andréa Caldas – O problema,


financeira das universidades e dos destas possibilidades, incluindo ar- a meu ver, não é a relação entre as
institutos federais”, deixa claro, no recadação financeira, através das pesquisas e potenciais resultados
próprio texto, sua pretensão de trans- Fundações e compartilhamento de econômicos. É salutar e desejável
ferir a gestão das instituições públicas espaços das universidades por em- que a universidade esteja articulada
para a iniciativa privada e fomentar a presas. O Future-se pretende criar a um projeto de desenvolvimento
captação de recursos externos. um intermediário destas relações econômico e social. Aliás, este é um
na figura das Organizações Sociais dos pressupostos da Lei de Inovação
- OS, a serem credenciadas pelo go- Tecnológica de 2004. O problema é
“O MEC tem verno federal. condicionar o financiamento da pro-
dução da ciência e da tecnologia aos
vendido o IHU On-Line – O Future-se
interesses de quem está disposto a
pagar. Ou seja, é possível que algu-
Future-se pode comprometer a autonomia
das universidades públicas?
mas pesquisas, desenvolvimento de
produtos ou prestação de serviços
como uma Andréa Caldas – Sem dúvida, encontrem patrocinadores, como já
ocorre hoje. Mas o que ocorrerá com
oportunidade uma vez que as OS, escolhidas pelo
governo, assumirão as funções de ge- aquelas atividades – de ensino, pes-
quisa, extensão, cultura e produção
para rir os recursos e o patrimônio das uni-
versidades, bem como apoiar as ativi- tecnológica – que não obtiverem fi-

professores e dades de ensino, pesquisa e extensão e nanciamento privado?


promover captação de recursos.
estudantes da Além disso, o projeto sinaliza que IHU On-Line – Por que é im-
portante o financiamento pú-
universidade as instituições que aderirem ao Fu-
ture-se devem adotar as diretrizes e blico de pesquisas de base?

58 ganharem governança “futuramente” definidas


pelo MEC. Ou seja, a universidade
Andréa Caldas – As chamadas
pesquisas básicas são fundamen-
mais, se estará subordinada a estas diretri-
zes, que sequer se sabem quais se-
tais para o desenvolvimento de pes-
quisas mais instrumentais ou de-
venderem seus rão, e à ingerência de uma Organi-
zação Social, conforme indicado no
senvolvimento de produtos. E, no
mundo inteiro, estas pesquisas que
produtos ou texto abaixo: demandam mais tempo de desen-
volvimento e maturação, além de
suas pesquisas” “Ao aderir ao FUTURE-SE, a Ifes
se compromete a: i. Utilizar a or- envolverem mais riscos e terem re-
ganização social contratada para sultados mais incertos, contam com
o suporte à execução de atividades o financiamento estatal. Ademais, é
IHU On-Line – Como se dão relacionadas aos eixos de gestão, preciso lembrar que nem tudo o que
as relações público-privadas governança e empreendedorismo; a universidade deve produzir está
nas universidades federais atu- pesquisa e inovação; e internacio- vinculado aos interesses do mundo
almente? E o que muda na pro- nalização; ii. Adotar as diretrizes de produtivo, no sentido estrito. Sua
posta do Future-se? governança que serão futuramente função social envolve várias áreas da
definidas pelo Ministério da Edu- formação humana.
Andréa Caldas – Atualmente,
ocorrem diversas parcerias entre as cação; iii. Adotar programa de in-
universidades e empresas privadas. tegridade, mapeamento e gestão de IHU On-Line – Em uma das
Estas relações se dão pelo intermé- riscos corporativos, controle inter- suas análises, a senhora avalia
dio das Fundações de Apoio, regi- no e auditoria externa.” (Future-se, que a adesão ao Future-se pode
das pela Lei 8.958 de 1994. A Lei MEC, 2019). ser sedutora para alguns seg-
de Inovação Tecnológica de 2004 já mentos da universidade. Gos-
pretendia criar ambientes coopera- taria que detalhasse essa pers-
IHU On-Line – Uma das críti-
tivos para a produção científica, tec- pectiva e avaliasse quais são os
cas ao Future-se é o condiciona-
nológica e de inovação, incentivando riscos para a instituição?
mento das pesquisas aos seus
a interação entre as instituições de
potenciais resultados econômi- Andréa Caldas – O MEC tem ven-
ciência e tecnologia – aí incluídas as
cos. Como a senhora observa dido o Future-se como uma oportu-
universidades – e as empresas.
essa questão? E como essa nova nidade para professores e estudantes
O novo marco legal da inovação, forma de financiamento deve da universidade ganharem mais, se
estabelecido pela Lei 13.243/2016, impactar o campo científico? venderem seus produtos ou suas pes-

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quisas. Apresenta, ainda, a proposta mento humano. É inegável que a Andréa Caldas – O discurso go-
da criação de um fundo financeiro universidade pública precisa pres- vernamental quer fazer parecer que
que seria constituído por venda de tar contas à sociedade da sua pro- através do Future-se teremos uma
serviços, capitalização financeira e dução, mas a estandardização não grande união cívica da sociedade
eventuais doações de pessoas físicas e é o melhor caminho. E, de novo, a brasileira, do empresariado nacio-
jurídicas, inclusive de “outros países, grande questão aqui é para quê e nal e internacional e das pessoas
organismos internacionais e organis- para quem pretende-se que a uni- beneméritas em favor da educação,
mos multilaterais”. Em um quadro de versidade dirija o seu trabalho. ciência e tecnologia do país. E isto
corte de recursos, de congelamento ocorre, precisamente após o gover-
de salários e cancelamento de bolsas, no celebrar um acordo com a União
é possível sim, que este apelo seja se- IHU On-Line – O que difere a
Europeia para venda de grãos e
dutor para algumas pessoas, segmen- universidade pública da priva-
compra de produtos industrializa-
tos e mesmo instituições. da no Brasil hoje? E, especial-
dos e tecnologia.
mente, o que difere a pesquisa,
Estimula-se, com isto, a compe- a produção científica, numa e
titividade interna entre setores, noutra instituição? Neste contexto de crise econômica e
universidades e institutos. E, ob-
Andréa Caldas – É reconhecido de ausência de um projeto autônomo
viamente, as regiões e áreas mais
que a universidade pública é respon- de desenvolvimento econômico e so-
dinâmicas e próximas do mercado
sável pela maior parte da produção cial, o caminho mais provável é que
lograrão mais êxito, em uma espé-
científica e tecnológica. E isto tem a se houver investimentos privados nas
cie de “darwinismo educacional”,
ver com investimento público, com universidades e institutos federais,
antítese de qualquer projeto nacio-
regime e condições de trabalho e com eles estarão imediatamente relacio-
nal e mais igualitário.
um ambiente mais plural e autôno- nados aos interesses de lucratividade
mo. Transformar professores em ho- imediata do mercado. E de um mer-
IHU On-Line – Atualmente, ristas ou mesmo em empreendedores cado de um país dependente. Nesta
levando em conta as ferramen- pode, à primeira vista, fazer com que perspectiva, ficarão de fora todas as
tas que quantificam e avaliam a se aumente a produção quantitativa pesquisas de base que não possam
de serviços mas, fatalmente, desesti- produzir resultados de curto prazo e
59
produção científica no Brasil,
já não se vive em lógica de pro- mulará pesquisas e processos de mais todas as atividades de ensino e exten-
dução mercadológica? longo prazo, ou mesmo que envolvam são que não tragam dividendos.
mais riscos e ousadia.
Andréa Caldas – Existem vários Isto significa abortar qualquer pos-
problemas na lógica meramente sibilidade de ciência básica e de pro-
quantitativa da produção científica IHU On-Line – Uma vez entran- dução tecnológica soberana e trans-
e o maior deles é justamente a uni- do em vigor, como imagina que formar a educação superior em um
formização de critérios e padrões o Future-se deverá incidir sobre grande shopping center de venda de
para algo que é intrinsecamente a formação docente, os futuros serviços e fornecimento de estagiá-
diverso e plural, como o conheci- professores da escola básica? rios de baixo custo. ■

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TEMA DE CAPA

Educação é bem social que precisa


manter a natureza pública
Para Flávio Nunes, a gestão estatal é fundamental para
assegurar o acesso universal à formação integral do sujeito
João Vitor Santos

P
ela aposta até agora apresentada para financiar o programa mostra que
pelo Governo Federal, o progra- o Estado começa a colocar em prática a
ma Future-se deve compreender ideia de dividir a responsabilidade pela
não só as Universidades, mas também oferta de uma educação pública, na me-
os Institutos Federais de Educação. As dida que este fundo terá variações de
instituições são referência na formação acordo com o mercado e que, portanto,
técnica e de nível médio. Segundo o rei- incidirão sobre as atividades das insti-
tor do Instituto Federal de Educação, tuições”, analisa. E isso, para o reitor,
Ciência e Tecnologia Sul-rio-granden- é uma ameaça ao acesso universal à
se - IFSul, Flávio Nunes, os bons indi- educação de qualidade. “Potencializar
cadores desses colégios se dão porque ações de gestão, governança, empreen-
o foco é na “formação completa do ser dedorismo, pesquisa, invocação e in-
humano, não apenas os conhecimentos ternacionalização, é importante, mas o
técnicos como também uma formação que questiono é a forma como está sen-
humanística e cidadã”. Mas para o pro- do proposta, onde um fundo de investi-
60 fessor isso não basta. É preciso assegu- mentos privado ficaria responsável pela
rar que as pessoas menos favorecidas manutenção destas e outras ações a
economicamente tenham acesso a essa serem definidas no futuro”, acrescenta.
educação de ponta. Meta que, para Flá- Flávio Luis Barbosa Nunes é rei-
vio, só é alcançada se o Estado estiver à tor e professor do Instituto Federal
frente dessas instituições. “A educação Sul-rio-grandense - IFSul, técnico em
tem que ser considerada como bem so- eletrônica formado pela Escola Técnica
cial e que, portanto, precisa ser de na- Federal de Pelotas - ETFPel e gradua-
tureza pública, assim a sua manutenção do no curso superior de Tecnologia em
precisa ser de responsabilidade do Es- Processamento de Dados pela Univer-
tado Brasileiro”, destaca, na entrevista sidade Católica de Pelotas - UCPel. Pos-
concedida por e-mail à IHU On-Line. sui especialização em Informática pelo
É uma perspectiva que, segundo Flá- Centro Federal de Educação Tecnológi-
vio, é diretamente atacada pela pro- ca do Paraná - CEFET-PR e em Educa-
posta do Future-se, pois não se trata ção Continuada e a Distância pela Uni-
somente de privatizar a educação, mas versidade de Brasília - UNB. Também é
também de atrelar suas fontes de fi- mestre em Educação pela Universidade
nanciamento ao mercado. “A criação Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
de um fundo a ser gerido pelo mercado Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que concepção do ser humano, não apenas os co- novas tecnologias que surgem ou se
de educação e formação pro- nhecimentos técnicos como também atualizam constantemente.
fissional e acadêmica inspira e uma formação humanística e cida-
baseia a atuação dos Institutos dã. No atual mundo em que vivemos
também é importante um saber refle- IHU On-Line – Qual a impor-
Federais?
xivo sobre os fatos que nos cercam, tância da manutenção dos Ins-
Flávio Nunes – Uma Educação um livre pensar, o que contribui para titutos Federais como institui-
que contemple a formação completa enfrentar os desafios de adaptação às ções públicas?

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REVISTA IHU ON-LINE

“O Future-se não traz nada diretamente


relacionado à política educacional da
formação básica e profissionalizante”

Flávio Nunes – A concepção que muitas das ações que já realizamos atu- Ao avaliar tais itens em conjunto,
defendo é que a educação tem que ser almente. Potencializar ações de gestão, percebe-se claramente a possibili-
considerada como bem social e que, governança, empreendedorismo, pes- dade de as IFES que aderirem terem
portanto, precisa ser de natureza pú- quisa, invocação e internacionalização que implantar qualquer diretriz de
blica, assim a sua manutenção preci- é importante, mas o que questiono é a governança a ser definida no futuro
sa ser de responsabilidade do Estado forma como está sendo proposta, onde pelo MEC, inclusive nas áreas de en-
Brasileiro. É preciso pensar que para um fundo de investimentos privado sino, pesquisa e extensão. Isto fere
a esmagadora maioria da sociedade ficaria responsável pela manutenção diretamente a autonomia institucio-
brasileira uma educação pública é o destas e outras ações a serem definidas nal pedagógica e administrativa, o
único caminho para buscar a constru- no futuro. Um projeto de tal enver- que no caso do IFSul são fatores que
ção de conhecimentos, que permitam gadura deveria ter a sua concepção e estão ligados diretamente à qualidade
a busca de suas transformações de elaboração melhor debatida com a so- dos cursos que ofertamos aos nossos
vida. Portanto, é vital que a sua oferta ciedade e em especial por aqueles que estudantes e comunidades atendidas,
seja de responsabilidade de nossos go- estão envolvidos, ou seja, os Institutos na medida em que estando em contato
vernos em todas as suas esferas. e Universidades Federais. direto com as comunidades onde esta-
mos inseridos, nos nossos 14 campus,
61
Uma consulta pública, nos moldes temos a possibilidade de melhor aten-
IHU On-Line – Como se dão atu- que está sendo realizado, não é fer- der as demandas destas comunidades.
almente as relações entre público ramenta suficiente para este debate.
e privado dentro dos Institutos? O aprofundamento das ideias e de Percebe-se, ainda, que a criação de
tudo que está envolvido na questão um fundo a ser gerido pelo mercado
Flávio Nunes – As parcerias com o para financiar o programa mostra que
deveria ser de uma forma mais am-
setor produtivo são importantes para o estado começa a colocar em prática
pla, o que poderia gerar novas ideias,
que possamos manter o contato com a a ideia de dividir a responsabilidade
mais adequadas a um modelo de
realidade das tecnologias utilizadas no pela oferta de uma educação públi-
educação que privilegie a sociedade
seu dia a dia e, assim, possamos cada ca, na medida em que este fundo terá
como um todo.
vez mais preparar melhor nossos es- variações de acordo com o mercado
tudantes para estas realidades. Outro e que, portanto, incidirão sobre as
fator importante é a realização de pes- IHU On-Line – O senhor já de- atividades das instituições. É preciso
quisas que busquem a geração de ino- clarou que o Future-se é uma compreender que a educação tem que
vação tecnológica, contribuindo com o ameaça à autonomia institucio- ser tratada como um bem social e não
avanço do país nas mais diversas áreas nal pedagógica e administrativa financeiro, tem que ser um dever do
do conhecimento. das instituições. Por quê? estado brasileiro a sua manutenção.
Estas relações hoje ocorrem de for- Flávio Nunes – Percebe-se algu- Desta forma me coloco contrário à
ma tímida, elas precisam avançar, mas “entrelinhas” que são muito preo- proposta apresentada.
ser intensificadas. E isso se dá muito cupantes para as instituições que ade-
por causa de ambos os lados que não rirem, criando possibilidades de uma
despertaram, em sua maioria, para a IHU On-Line – O que o pro-
ingerência direta na gestão do ensino,
importância desta relação. grama Future-se revela acerca
pesquisa e extensão. Entre elas estão:
da concepção do atual governo
Item 1 ii - Adotar as diretrizes de go- sobre formação básica e profis-
IHU On-Line – O que o progra- vernança que serão futuramente defi- sionalizante?
ma Future-se prevê acerca dos nidas pelo Ministério da Educação;
Flávio Nunes – O Future-se não
Institutos Federais?
Item 3 ii - Apoiar a execução de pla- traz nada diretamente relacionado à
Flávio Nunes – O Future-se prevê nos de ensino, pesquisa e extensão política educacional da formação bá-
uma nova forma de financiamento para das IFES. sica e profissionalizante. O projeto

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TEMA DE CAPA

é voltado para a educação superior. res oportunidades profissionais no de Pisa mostrou que o Brasil aplica
Ocorre que a rede dos Institutos Fe- mundo do trabalho. Esta realidade de o equivalente a aproximadamente
derais no Brasil oferta 62% de suas qualidade, que mostramos com resul- 40% do que é investido em média
matrículas para a educação básica, tados e é reconhecida pela sociedade, nos países desenvolvidos. Os nos-
através de nossos cursos técnicos fica ameaçada quando não podemos sos governos precisam pensar que a
de nível médio. Ou seja, o Future-se mais realizar todas as ações que con- educação tem que ser vista como in-
também irá financiar a educação bá- tribuem para chegarmos neste nível; vestimento e não como custo para a
sica. Como já descrito antes, somos quando, por falta de orçamento, dei- nação. Entendo ser este o grande de-
contra este tipo de proposta, por en- xamos de apoiar projetos de ensino, safio para melhorar a qualidade da
tendermos que a educação deve ser pesquisa e extensão, que na sua in- educação como um todo no Brasil e
obrigação do Estado brasileiro. dissociabilidade ocorrendo desde a a reconhecer como o caminho priori-
educação básica, contribui sobrema- tário para avançarmos como nação.
neira com a melhoria da qualidade da
IHU On-Line – Os Institutos
educação como um todo. IHU On-Line – Qual o papel das
Federais são reconhecidos pela
excelência em educação. Mas Atualmente vivemos uma ameaça instituições privadas, escolas
qual a realidade das institui- direta ao nosso trabalho, quando es- de formação básica e universi-
ções atualmente? tamos com orçamentos contingencia- dades, nesse contexto de inten-
dos na ordem de 37% do previsto para sos debates acerca da necessi-
Flávio Nunes – Esta excelência é dade de reformas no sistema de
2019, deixando assim de realizar mui-
comprovada de várias formas, entre educação do país?
tas de nossas ações, indo até ao peri-
elas podemos citar resultados que
goso ponto de não poder arcar com Flávio Nunes – Um dos caminhos
nossos estudantes obtêm no Exame
despesas básicas para concluir o ano. que usamos para encontrar as melho-
Nacional do Ensino Médio - Enem.
Além dos resultados de projetos res soluções para um problema ou para
apresentados em Mostras e Feiras definirmos caminhos de um projeto,
IHU On-Line – Qual o impacto
de Ciências e Tecnologias, tanto em qualquer que seja, é o debate entre os
da formação, da remuneração,
nível nacional como internacional. participantes de uma equipe, que atra-
62 do plano de carreira e desen-
vés de conhecimentos diferentes, pen-
Um capítulo à parte poderia se fazer volvimento acadêmico dos pro-
samentos diferentes, visões diferentes,
para o Exame de Programa Internacio- fessores dos IFES na qualidade
chegam a ideias diferentes das origi-
nal de Avaliação de Estudantes - Pisa1: do ensino? Quais os desafios
nais, buscando o seu aperfeiçoamento
se os estudantes da rede federal fossem para extrapolar essa realidade
e definindo os melhores caminhos a
um país, ocupariam na área de Leitura para carreira de professores
serem seguidos. Desta forma, entendo
o 2º lugar, enquanto o Brasil, a 63º po- em outras escolas públicas de
que as reformas e aperfeiçoamentos
sição. Seguindo esta linha, na área de nível médio?
na educação deveriam seguir o mesmo
Ciências, seríamos 11º país e em Mate-
Flávio Nunes – Um dos motivos da caminho, envolvendo todos os que par-
mática o 30º. Isto mostra que investir
qualidade da rede passa pela valoriza- ticipam desta caminhada.
em educação de qualidade gera resul-
ção da carreira de todos os servidores,
tados como um todo para o país. Estes Mais um grande desafio, pois para
sejam docentes ou técnicos-adminis-
resultados também indicam um cami- um país de dimensões continentais
trativos, que atuam na mesma. Atual-
nho que está dando certo e, portanto, como o nosso esta tarefa não é nada
mente, mais de 50% dos docentes da
deveriam servir de exemplo positivo fácil, mas tem que ser perseguida. O
rede possuem mestrado e 26% douto-
para contribuir como um todo para Plano Nacional de Educação indica
rado, isto indica o potencial de geração
melhoria da educação básica no país. alguns objetivos mais imediatos que
de conhecimento que pode ocorrer em podem e deveriam ser seguidos para
Além destes resultados, podemos sala de aula, sempre buscando a inte- alcançar as melhorias necessárias na
citar milhares de transformações de gração do ensino, pesquisa e extensão. Educação do nosso Brasil.
vidas que a educação profissional e
O desafio de podermos contar com
tecnológica realiza, através da oferta
planos de carreira próximos ao da
de cursos nos mais variados níveis IHU On-Line – Deseja acres-
de ensino (básico, médio e superior), rede federal passa pelo reconheci-
centar algo?
onde nossos estudantes após a con- mento de que é através de uma edu-
clusão de seus cursos buscam melho- cação de qualidade que o país conse- Flávio Nunes – Fica o destaque,
guirá avançar. Esta valorização que mais uma vez, que precisamos pen-
1 Programa Internacional de Avaliação de Alunos: ocorre em países que tiveram cresci- sar a educação como um bem social,
em inglês: Programme for International Student mentos econômicos gigantescos em portanto de natureza pública e as-
Assessment – Pisa, é uma rede mundial de ava-
liação de desempenho escolar, realizado pela pri- pouco tempo, como por exemplo a sim de responsabilidade do Estado
meira vez em 2000 e repetido a cada três anos. É
coordenado pela Organização para a Cooperação Coreia do Sul, porque entre outras Brasileiro, que deve enxergar a edu-
e Desenvolvimento Econômico – OCDE, com vista ações, investiram maciçamente em cação como um investimento e não
a melhorar as políticas e resultados educacionais.
(Nota da IHU On-Line) educação de qualidade. O exame como custo para a nação.■

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Base Nacional Comum Curricular – O futuro


da educação brasileira
Edição 516 – Ano XVII – 04/12/2017

No final de 2017, quando o governo brasileiro acelerava a votação de


uma nova versão da Base Nacional Comum Curricular – BNCC – sem
novo debate, a revista IHU On-Line trouxe o tema através de análises
de pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas do conhecimento que
pensam os desafios da escola brasileira do século XXI.

Os desafios da Escola, hoje


63

Edição 281 – Ano XVIII – 10/08/2008

Em 2008, celebrava-se os 50 anos do curso de Pedagogia da Unisinos.


Para comemorar esse cinqüentenário, a IHU On-Line desta semana
procurou descrever os desafios da educação no Brasil e as características
de algumas correntes pedagógicas que marcaram esses cinquenta anos,
como Piaget, Vygotsky, Montessori. Reflexões sobre a educação a partir
de autores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu também compõem
esta edição.

Que universidade o País necessita?

Edição 90 – Ano IV – 01/03/2004

Que universidade o país necessita? Como a universidade se insere na


construção de um projeto nacional? Quais são as inflexões e ênfases que o
ensino universitário deve atribuir à formação acadêmica propriamente
dita e às responsabilidades sociais inerentes aos egressos de cursos supe-
riores? Essas questões, que se renovam frente os atuais debates sobre os
rumos do país e de seu governo, percorrem os depoimentos que a IHU
On-Line traz nessa edição.

EDIÇÃO 539
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