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Estética

Material Teórico
Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luis Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Concepções estéticas: A complexidade
do pensamento artístico

·· Introdução
·· Arte e modernidade em Baudelaire
·· Arte e indústria cultural

Discutir o conceito de complexidade e suas implicações para o estudo da Arte.


Apresentar algumas ideias da crítica de arte em Baudelaire.
Estabelecer alguns parâmetros e relações entre a estética de Adorno e de
Benjamin.

Para que você possa usufruir das ideias debatidas nesta unidade, é necessário que você se
aprofunde em alguns aspectos inerentes a ela. É quase impossível compreender plenamente
o conceito de “indústria cultural” se não se conhecer um pouco sobre marxismo, ideologia e
a crise do capitalismo. Você vai perceber com o tempo que a complexidade do pensamento
filosófico se dá também no fato de que é muito difícil fazermos uma análise profunda, seja
do que for, de maneira isolada e isenta. Falar de arte, como diz Baudelaire, também é tomar
uma posição. Reflita sobre isso enquanto realizar seu estudos.

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Contextualização

Nesta unidade, não trataremos estritamente da cultura popular. Mas pensar a complexidade da
arte a partir dela pode ser uma tarefa deveras interessante. No entanto, muitos ainda confundem
a cultura popular com a “cultura de massa”. Este último termo é como a Indústria cultural define
as manifestações artísticas produzidas como mercadorias.
A cultura popular obedece a padrões e regras próprias tecidas nas tradições ancestrais que
brotam em meio ao povo. Dessa maneira, assista ao vídeo produzido pelo Instituto Brincante e
perceba como aquilo que por muitos é considerado simplório pode ser de uma complexidade
de tirar o fôlego.

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Para assistir ao vídeo, acesse:
http://youtu.be/EX8aUTyw2gA

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Introdução

Poesia só pode ser criticada por poesia. Um juízo artístico que não é, ele
próprio, uma obra de arte, seja em seu tema, enquanto exposição da impressão
necessária em seu devir, seja por meio de uma bela forma e um tom liberal no
espírito das velhas sátiras romanas, não tem, em absoluto, direito de cidadania
no reino da arte.

Friedrich Schlegel

Não sei se podemos compreender a afirmação de Schlegel como uma regra. Mas há algo de
provocador em começarmos a pensar a complexidade da estética a partir dela. Pensá-la é, de
certo modo, refletir sobre o alcance dos processos e manifestações artísticas.
Começamos este curso partindo da premissa de que o trabalho da estética filosófica é algo
ligado à compreensão da arte, que é algo, por si só, extremamente difícil de definir. Algumas
perguntas podem estar envolvidas nesse processo: as fronteiras da arte são móveis? Há dissensões
no interior das corrente artísticas? Como compreender esteticamente essas divergências? Porém,
antes de continuarmos, gostaríamos de partir de algumas definições. Sendo assim, no que
consiste o “complexo”?

Figura 1. O complexo é aquilo que é tecido junto.

Complexo significa literalmente “aquilo


que é tecido junto”. Tudo o que é tecido, é
produzido por meio de uma trama e de uma
urdidura. Pensemos, por exemplo, na cestaria
indígena. Há uma estrutura mais resistente
e vertical em que as tramas se entrelaçam
horizontalmente, formando o cesto? Essa
urdidura (estrutura) é o que dá a sustentação
que mantém o formato do cesto. Entretanto, o
que dá a sua beleza é o entrelaçar constante,
quase sem fim, quase sem começo, dado pela
Fonte: publicdomainpictures.net
sutil delicadeza da trama.

Essa imagem é bastante frutífera, visto que esse entrelaçar do complexo também atravessa o
universo das manifestações artísticas. Há alguns cânones, padrões e tendências que estruturam
a arte. No entanto, o processo artístico é a trama que perpassa esse mesmo universo. Da mesma
maneira que as manifestações se multiplicam exponencialmente, existem inúmeras concepções
estéticas. De certa forma, toda reflexão filosófica que trata da arte pode ser considerada uma
reflexão estética. Assim, as obras de Sartre sobre literatura, os escritos de Benjamim sobre a
própria arte são tão necessárias à estética quanto às obras de Kant e de Hegel.

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Arte e modernidade em Baudelaire

Para ilustrar esse pensamento, gostaríamos de recorrer a um trabalho de Charles Baudelaire


intitulado “O pintor da vida moderna”. Nessa obra ele profere considerações sobre um quase
desconhecido pintor francês chamado Constantin Guys.
Figura 2. Charles Baudelaire (1821-1867)
Baudelaire foi um poeta boêmio que viveu em Paris durante
o século XIX. Sua poesia ajudou a delinear o movimento
poético conhecido como Simbolismo. Sua obra mais conhecida
é o livro As flores do mal. No entanto, sua crítica de arte era
extremamente respeitada em seu tempo e influenciou muitos
intelectuais com suas ideias sobre a modernidade.
O autor parte da ideia de que uma crítica da arte não pode
ser isenta, fria e imparcial. Ao contrário, deve ser apaixonada,
política e subjetiva.

Fonte: Wikimedia Commons

Diálogo com o Autor

Na verdade, esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica do belo, em
oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem
uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja uma, pois a dificuldade em discernir
os elementos variáveis do belo na unidade da impressão não diminui em nada a necessidade
da variedade em sua composição. O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja
quantidade é excessivamente difícil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que
será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse
segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro
elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio
qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses dois elementos
(BAUDELAIRE, 1996, pp. 10 e 11.)

Ao discutir a obra de Constantin Guys, Baudelaire também realiza uma crônica de seu tempo.
Para ele o caráter efêmero da modernidade é uma característica presente constantemente no
traço desse pintor. O moderno é o lugar da novidade, da velocidade e do que é transitório.
A vida moderna é assim. A arte como possibilidade de fixação de um instante. Desse modo,
em sua análise, o apego demasiado aos detalhes de um tema é um desperdício de inspiração.

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Atrapalha a fluidez que marca o momento criador e diminui a grandiosidade da obra produzida.
Guys pinta de memória, seu olhar é abreviador e sintético, “muitos detalhes sem importância
tornam-se usurpadores” (BAUDELAIRE, 1996, p. 32). Esse desejo de não deixar escapar a
poeticidade do momento é que permite a possibilidade de produzir obras significativas por meio
de uma memória que ressuscita as impressões e situações históricas e cotidianas, fazendo saltar
aos olhos o impacto de um Lázaro que se levanta ou de um fogo que se agiganta sobre a tela.
Figura 3. Constantin Guys – No teatro (no foyer do teatro; damas e cavalheiros) – Museu
de Arte Walters.

Fonte: Constantin Guys (1802–1892)/Wikimedia Commons

Diálogo com o Autor

[...] G. tem um mérito profundo que lhe é peculiar; desempenhou voluntariamente uma função
que outros artistas desdenharam e que cabia sobretudo a um homem do mundo preencher. Ele
buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor
nos permitiu chamar de Modernidade. Frequentemente estranho, violento e excessivo, mas sempre
poético, ele soube concentrar em seus desenhos o sabor amargo ou capitoso do vinho da vida
(BAUDELAIRE, 1996, p 70).

Para Baudelaire, uma das marcas do homem de gênio é a capacidade de olhar para as coisas
com a curiosidade de uma criança, ou ainda com a vontade de redescobrir o mundo que está
presente na alma de um convalescente. São olhares que se atentam aos detalhes, mas não
se deixam escravizar por eles. A maneira alegre com que uma criança absorve a cor é muito
parecida com a maneira que um pintor observa as matizes e diferenças presentes na coloração
dos objetos, recriando e materializando uma nova interpretação sobre eles.

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Essa visão muito particular presente na estética de Baudelaire contribui muito para pensarmos
o quão complexo é o processo artístico. Nenhuma visão artística, nenhuma concepção estética
é totalmente válida se não a pensarmos entrelaçada a outras. Um entendimento maduro do
processo artístico pressupõe, então, que partilhemos dessas inúmeras concepções e produzamos
uma reflexão autônoma desse universo plural e contrastante que vivenciamos ao nos inserirmos
no mundo das artes.

Arte e indústria cultural

Como vimos, em Baudelaire, o advento da modernidade traz consigo a velocidade e a


mutabilidade das relações e situações presentes. A arte inevitavelmente absorve essas características
e as ressignifica enquanto reflexão sobre os aspectos mais profundos do nosso modo de viver.
No entanto, é necessário que pensemos as implicações políticas, econômicas e tecnológicas
que se aliam, sobretudo, à arte contemporânea a partir da revolução industrial.
Se lembrarmos das aulas de história da época do Ensino médio, certamente já ouvimos que
é a mecanização ocorrida na indústria em meados do século XVIII que permite o surgimento
da produção em larga escala e gera a necessidade de buscar novos mercados consumidores
para esses produtos. A arte, de certa maneira, acompanha esses avanços tecnológicos e sofre os
efeitos desse processo de maneira semelhante.
Algumas formas de arte somente são possíveis com o surgimento de aparatos tecnológicos
que possibilitam sua existência. O cinema é uma forma de arte que não poderia se constituir
se não fosse por meio da tecnologia. Ademais, como vimos, o lugar que o cinema ainda ocupa
nas artes visuais ainda é de certa forma nebuloso. Pois, além de ser uma forma de teatro, é
fotografia em movimento. Muitos o julgam como uma arte completa por juntar a fotografia, a
trilha sonora, a interpretação, a cenografia e os efeitos. Porém, mesmo com tudo isso, ele não
seria possível sem a descoberta da eletricidade como forma de energia.
Da mesma maneira, a música, apesar de ser uma forma milenar de arte, assume outros
caminhos quando se une à tecnologia. Antigamente, ouvir música sem a presença de músicos
e instrumentos musicais era impossível. Toda audição musical se dava simultaneamente à sua
execução. Ou seja, somente era possível escutar música ao vivo. Talvez por isso algumas óperas
sejam tão longas. As pessoas não estavam cercadas por música e não se ouvia música toda
hora. Todavia, com a criação do gravador, qualquer um que possuísse um aparelho reprodutor
de áudio poderia ter uma orquestra ou uma big band à sua disposição. Esse processo também
faz com que seja possível o surgimento da possibilidade de se comprar a execução musical
gravada, isto é, o surgimento da música como mercadoria. Se bem que antigamente já se
vendiam as partituras daquelas músicas que caíam no gosto popular. Porém, convenhamos que
o alcance de uma partitura é bem menor do que o de uma gravação, visto que esta vem pronta,
enquanto aquela ainda necessita de intermediários em sua execução.
Dessa maneira, o termo “indústria cultural” é entendido como o processo partidário da
industrialização que concede a tudo que é produzido culturalmente pela arte adquirir o status
e os fetiches da mercadoria – sob o jugo do capitalismo e de suas relações de produção, com o

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intuito de inserir-se no mercado e gerar consumo de maneira massiva. Os primeiros a utilizarem
esse termo foram os filósofos Adorno e Horkheimer, em seu livro Dialética do Esclarecimento,
de 1947, quando buscaram analisar como se configuravam as formas de expressão da cultura
e da arte no século XX.
O termo “indústria cultural”, dessa maneira, se contrapõe à ideia de “cultura de massa”. O
que se estabelece com essa denominação é a ideia de que a arte midiática e mercadológica não
é produzida pelas massas, mas para as massas. Desse modo, como veremos, cria-se a ideia de
que a mídia e o mercado fabricam uma ideia de gosto a que todos acabam por absorver, sem
ao menos perceber que suas preferências estão sendo manipuladas.
Figura 4. Max Horkheimer à esquerda e Theodor Adorno à direita, em Heidelberg (1965).

Muitas vezes, pode se pensar que as escolhas


que realizamos artisticamente partem apenas
de preferências pessoais. Entretanto, acreditar
apenas nisso é assumir uma postura ingênua,
pautada prioritariamente pelo senso comum.
A arte que é produzida como mercadoria,
ou seja, para ser consumida, é guiada por
parâmetros mercadológicos e é regida por leis
que visam mais o lucro do que a excelência
artística. O que está em jogo, assim, não é
como as concepções estéticas influenciam
a arte, mas como estas podem auxiliar no
Fonte: Wikimedia Commons processo de acúmulo do capital.
Partindo-se desse princípio, toda preferência artística parte de uma escolha que pode ser
determinada por elementos tanto internos quanto por influências externas, pautadas por fatores
sociais, econômicos, de necessidade de integração dentro de um grupo, entre outros.
Porém, agrega-se a essa discussão um fator primordial: a maneira como a mídia influencia a
produção dos signos que perpassam o imaginário das pessoas.
A sociedade de consumo transforma a obra de arte em mercadoria. O valor mercadológico que
lhe é atribuído, na maioria das vezes, suplanta a sedução e o valor estético que lhe é inerente.
Talvez seja interessante pensarmos essa discussão a partir das especificidades da música, sua
apreciação e seu consumo.
A fruição musical acaba por subordinar-se a regras de mercado e às especificidades da
indústria cultural. Partindo-se dessa perspectiva, é a música popular que se estabelece como
um fenômeno de mercado, pelo seu caráter dinâmico e veloz, no sentido de sua difusão em
todos os setores da sociedade e de sua utilização inserida em qualquer contexto cultural que
se possa pensar.
O filósofo alemão Adorno defende, em seu ensaio O Fetichismo na música e a regressão
da audição, que, com o advento do registro sonoro por meio das gravações, a exposição às
manifestações musicais se torna um fator constante. A música permeia todos os espaços e toma
conta de nosso cotidiano de maneira quase involuntária. O deslocamento até um local onde
se produza música não é mais necessário, o meio que nos envolve proporciona experiências

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

musicais constantes e em cada espaço; mesmo nos mais recônditos refúgios somos passíveis de
experimentar a exposição a algum tipo de música, seja nos programas de televisão, no rádio
ou nas lojas de departamento. Assim, a experiência de ir a um concerto de música erudita, por
exemplo, tornou-se um hábito quase esquecido, legado a certa parcela da sociedade que cultiva
de maneira quase monástica o hábito de fruir esse tipo de música.
O foco principal dessa discussão é o de que Adorno afirma que, partindo-se desse quadro,
os nossos hábitos de escuta tornam-se desconexos, desatentos e fragmentados. A esse processo
ele chama de “desconcentração”, que seria a consequente impossibilidade de como ouvintes
modernos mantermos a atenção durante o processo de escuta de determinada obra musical
(ADORNO, 1991, p. 182).
O próprio conceito de gosto está ultrapassado. A arte responsável orienta-se por critérios
que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso.
De resto, não há tempo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém
exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio
indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no polo
oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais
viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançada
no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não
correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar
e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção
de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo
que reconhecê-lo. (pp. 165 e 166.)
Estaríamos, dessa forma, reféns de uma forma de pensamento que nos pasteuriza e nos
inocula. O gosto já não é nosso, assim como a capacidade estética autônoma de escolha também
já não nos pertence. Estamos legados a um bombardeio ideológico efetuado pela mídia e pela
indústria cultural que se caracteriza por converter os bens culturais em mercadoria.
O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias
musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública,
nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo
o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende
apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida. (Ibid.)
A indústria cultural fabrica tendências e estilos que devem ser consumidos por determinado
público em determinado período de tempo, como os parâmetros de sucesso que estabelecem
o que deve ser ouvido durante o verão ou o artista que vai alavancar a trilha sonora de uma
nova novela. Tudo isso concorre para que o gosto musical da massa seja formado a partir
de certa perspectiva de consumo. A mercadoria música, desse modo, impõe o desejo de sua
posse tanto a partir do dado concreto da gravação como a partir do consumo da performance
e da apresentação musical. O que é do âmbito da diversão, da catarse, da idealização ou da
duplicação estaria subordinado aos desígnios da mídia.
Nos últimos anos, porém, com o advento da internet e a possibilidade de podermos baixar e
escolher arquivos eletrônicos de música (mp3), independentemente de um álbum organicamente
pensado, nossos hábitos de escuta se alteraram. Houve uma nova fragmentação além daquela
pensada por Adorno em suas reflexões: cada canção ainda assume a influência que o mercado e
a propaganda exercem sobre ela, no entanto temos o surgimento de um espaço livre para buscar

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alternativas àquilo que nos é imposto, exercitando o direito de escolhermos as manifestações
sonoras que mais nos agradam, independentemente de músicas de “trabalho” impostas por
gravadoras. No entanto, estamos tão saturados e expostos às imposições da mídia e do mercado,
que, ainda assim, acabamos escolhendo ouvir o que nos fazem ouvir, seguindo uma tendência
que também é imposta por uma “ditadura” da maioria.
Adorno afirma sobre a música midiática que ela, ao invés de entreter, parece contribuir “para
o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade
de comunicação” (1991, p. 67). E continua ainda sua reflexão nos seguintes termos:
A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas
deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. Assume ela
em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel que lhe competia ao tempo e na situação
específica do cinema mudo. A música de entretenimento serve ainda - e apenas - como fundo. Se
ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir. (Ibid.)
Temos que levar em consideração que Adorno realiza essas reflexões em meados do século
XX, tendo em vista o público europeu, que pelo advento da possiblidade das gravações começa
a abandonar os salões e teatros, renegando a complexidade da música erudita. Para ele, a
popularização da música por meio de sua reprodução como mercadoria leva a uma inevitável
regressão do gosto musical.
A atualidade dessa discussão é irrefutável. Nunca houve em nossa sociedade tantas
manifestações artísticas de gosto duvidoso e tantos artistas fabricados pela mídia com o simples
intuito de produzir lucro. Mas em que isso se relaciona à estética? Podemos dizer que em tudo.
Na contemporaneidade, é quase impossível pensar a arte sem pensar em suas implicações
mercadológicas e políticas.
Uma voz que dissona ao pensar a possibilidade massiva de reprodução da arte é Walter
Benjamim.

Walter Benjamin (1892-1940)

Wikimedia Commons

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Ele foi um filósofo e ensaísta alemão que, tendo por base as reflexões kantianas sobre a arte,
construiu suas teorias a partir da ideia de crítica presente nesse filósofo. Essa forma de reflexão
acabou por partir de concepções tanto estéticas como políticas, incluindo os sistemas culturais e
também suas bases econômicas.
Porém, antes de entendermos em que as ideias de Walter Benjamin se relacionam com o
conceito de “indústria cultural”, é importante que entendamos o que ele entende por “aura”.
Primeiramente, ele define aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais
e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN,
1994, p. 170). Os seus elementos constituintes são a autenticidade e a unicidade.
A autenticidade pode ser concebida como a substância da obra, enquanto algo que se localiza
no tempo e no espaço, relacionando-se à tradição em que está inserida. Dessa maneira, ela é
constituída não somente pelos seus elementos físicos. Além disso, nela deve-se considerar a história
da obra de arte, presente nas diversas transformações físicas sofridas por ela e pelas relações
de propriedade que se estabeleceram durante o tempo. É a autenticidade que nos permitirá
reconhecer o objeto como algo único e idêntico a si mesmo (BENJAMIN, 1994, p. 167).
Daí decorre o segundo elemento que caracteriza a aura: a unicidade. Esta consiste no caráter
único e tradicional da obra de arte. A ideia de unicidade se fundamenta por meio de algo que
perpassa o tempo e relaciona a ideia de valor de culto e à sacralização. Herança que remonta à
utilização da obra de arte como um instrumento a serviço de cultos e rituais.
Segundo Benjamin (p. 171), “o valor único da obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um
fundamento teológico, por mais remoto que seja (...)”. Esse modo de ser aurático da obra
de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual. Esse uso limitava o alcance de
exposição da obra, levando-a apenas ao conhecimento de um grupo pequeno e seleto.
O caráter transcendental que esses dois elementos concedem à obra de arte retira-a da
realidade histórico-material, inserindo-a em um patamar superior, separado da realidade. Pois,
produzida por uma divindade ou por um “gênio individual”, há uma elevação da obra até o
mundo espiritual, em oposição ao mundo material. Essa idealização da obra de arte, segundo
ele, restringe a atividade cultural, na medida em que a insere em uma esfera superior, absorvida
somente por aqueles que possuem o dom de produzir cultura, excluindo uma série de pessoas
da possibilidade de entendimento e de produção das manifestações artísticas. Com essas
características, a obra de arte aurática rejeita, para Benjamin, qualquer função social, assim
como qualquer possibilidade de determinação objetiva (Ibid.).
Desse modo, Benjamim contesta o caráter negativo da reprodução tecnológica dos objetos
artísticos e diz que a possibilidade de multiplicação torna presente e destitui a arte do seu
caráter sagrado e ritual. Para o autor, “a obra de arte, na era de sua reprodutibilidade técnica
revoluciona o estatuto da cultura, dissolve o conceito burguês de arte, transforma a cultura de
elite em cultura de massa” (1994, p. 217).
A relação que o público tem com a arte sofre uma revolução. Antes da invenção da fotografia,
conhecer os afrescos de Michelangelo na capela Sistina, por exemplo, era um privilégio daqueles
que possuíssem condições financeiras de fazer uma viagem até o Vaticano. Com a reprodução
fotográfica, o acesso aos bens culturais se amplia e se democratiza, o que leva à possibilidade de
que um número infinitamente maior de pessoas tenha contato com a arte de alto nível, gerando
também novas possibilidades de formação cultural. Isto é, a reprodutibilidade técnica permite
a circulação planetária das obras de arte. No entanto, ele nem poderia imaginar o alcance que

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a ideia de reprodutibilidade iria ter algumas décadas depois com as tecnologias digitais que, de
certa forma, produzem uma desmaterialização da fotografia, por exemplo, permitindo que ela
seja compartilhada exponencialmente, como uma reação em cadeia.
Entretanto, voltando ao pensamento de Adorno, é justamente esse processo de massificação
da arte que é problemático, visto que, ao legar à arte o papel da mercadoria, esta perderia o
seu estatuto de arte. Ele denomina esse efeito de semicultura. Pois, como vimos, a arte que
consumimos é oferecida pela indústria cultural e a absorvemos sem maiores reflexões, como se
fosse uma escolha pessoal. Os maiores exemplos desse processo são a música midiática e o cinema
comercial, reforçados pela influência que os programas de televisão exercem sobre as pessoas.

Considerações finais
Como pudemos perceber, não podemos analisar as obras de arte apenas por um aspecto.
Muitos fatores estão envolvidos na compreensão do universo artístico.
A possibilidade de universalização do juízo estético ainda é uma pergunta atual? Podemos
dizer que sim. O mundo da arte é efêmero e mutante, renovando-se a cada instante, produzindo
cotidianamente novas formas de enxergar o mundo. Uma das funções da arte é dotar a nossa
existência de sentido; para seres corruptíveis em um mundo também finito, gotas de eternidade
se acumulam no processo de criação de cada obra. Estas são sorvidas cada vez que uma pessoa
aprecia um quadro em um museu, toca uma canção em seu violão ou vibra com a bela fotografia
de determinada obra cinematográfica.
A estética, sendo uma das faces da filosofia, ao tratar da arte permite que esses caminhos
sejam percorridos e compreendidos, por meio dos meandros dessa atividade tão essencial para
a existência da humanidade sobre a Terra. Assim, gostaríamos de terminar essa discussão com
uma reflexão do esteta italiano Luigi Pareyson.

Diálogo com o Autor

É certo que, na leitura e na crítica, interpretação e juízo são inseparáveis, e se chega à avaliação
universal da obra através da pessoalidade do gosto; e isto torna difícil a formulação e a comunicação
do juízo. Mas uma universalidade que deve desprender-se das condições históricas e pessoais é árdua
e difícil, não impossível: o juízo é o ponto no qual, através da mutabilidade do gosto histórico, se
realiza e pode realizar-se um acordo entre todos os intérpretes. O desempenho desta tarefa não é fácil,
e está confiado ao tino das gerações, mas é consolador ver sucederem-se, na história, as suas diversas
interpretações e, ao mesmo tempo, realizar-se pouco a pouco o acordo sobre o valor de algumas obras:
é a inexaurível riqueza da experiência estética que se desenvolve, ao mesmo tempo em que se afirma
a universalidade do valor artístico. O sentido da crítica é precisamente este: através da mutabilidade
do gosto e da diversidade das interpretações, e apesar de todas incompreensões e divergências, pouco
a pouco vai-se realizando um acordo cada vez mais unânime acerca do valor de certas obras, isto é,
impõe-se a universalidade, a objetividade, a unicidade do juízo (PAREYSON, 1989, p. 180).

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Material Complementar

Textos
ADORNO, T. A filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004.
XAVIER, I. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

Filmes
Janela da alma. Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Brasil/França, 2001
(Duração 73 min.).
Meia-noite em Paris. Direção de Woody Allen. Estados Unidos, 2001 (Duração
94 min.).

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Referências

ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Textos Escolhidos.


São Paulo: Nova Cultural, 1991.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras


escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BAUDELAIRE, C. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1996.

SUBTIL, M. J. D. O consumo musical midiático e a construção de sentidos por crianças


de 9 a 12 anos. In: Comunicação, mídia e consumo, v. 7, n. 20, 2010. Disponível em: <http://
revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/284/259>. Acesso em: 15 dez. 2014.

PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1989.

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Anotações

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