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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

RENATO DE LYRA LEMOS

“ANTES DE SER BRASILEIRO EU SOU PRETO”:


Representações de África no Imaginário da música popular brasileira

RECIFE,
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

RENATO DE LYRA LEMOS

“ANTES DE SER BRASILEIRO EU SOU PRETO”:


Representações de África no Imaginário da música popular brasileira

Monografia apresentada à Coordenação do Curso de


História da Universidade Federal de Pernambuco
pelo discente Renato de Lyra Lemos como parte dos
requisitos para obtenção do título de Bacharel em
História.

Orientador: Prof. Dr. José Bento Rosa da Silva

RECIFE,
2013
Dedico esta monografia à Esù, por abrir
os meus caminhos, à Ayrà, por iluminar
meu trajeto, e à minha amada Mariana
Andrade, por ser minha força e meu
motivo de seguir em frente.
AGRADECIMENTOS

O ato de pesquisar não precisa ser uma tarefa solitária, e acima de tudo não costuma ser.
A construção do pensamento comumente é um processo desenvolvido dentro da coletividade,
pois é através da ação do coletivo que o individual é possibilitado. Portanto, a realização desta
pesquisa não seria possível sem a participação direta, ou mesmo indireta, de uma série de
pessoas que se envolveram afetiva ou intelectualmente em seu processo.
Gostaria, portanto de agradecer ao meu orientador, o Professor Dr. José Bento Rosa da
Silva, por me guiar no caminho a seguir e por abrir espaço para que meu raciocínio pudesse
fruir sem maiores amarras; aos professores, José Amaro dos Santos Silva, Sandro Guimarães de
Salles e Isabel Cristina Martins Guillen pelos ensinamentos; à professora Virgínia Almoedo,
pelo carinho que faltava na vida acadêmica; ao NEAB/UFPE, por promover espaços para o
debate das temáticas etnicorraciais na academia e expandir o meu conhecimento; e a Levi
Rodrigues, pela grande força nos momentos de desespero acadêmico e pelos puxões de orelha.
Essa jornada não seria possível também sem o apoio de minha família. Gostaria de
agradecer aos meus pais, Carlos Pery e Maria de Fátima, que foram e continuam sendo meus
pilares de sustentação; ao meu irmão Carlos Pery, que sempre me apoiou, independente de
minhas escolhas; aos meus tios Mauro e Rejane Falcão, que sempre deram muita força e
carinho; ao meu tio Beto, pelas perturbações; à minha tia Teté, pelas palavras de incentivo; aos
meus padrinhos Antônio Saulo e Andreia, pelo amor incondicional; aos meus sogros José
Carlos e Maria do Carmo, que nas horas vagas também fazem papel de pais; à minha cunhada
Maria Júlia pela paciência; e aos meus avós, Arnaldo Lemos e Ayrigenes Fonseca e Moacyr e
Ritinha Lyra, que sei que continuam torcendo por mim de onde estiverem.
Com os amigos tudo também se tornou muito menos árduo. Por isso gostaria de
agradecer à galera de Sweet River e adjacências: Antônio Carlos, Paulo Sano, Rieldo Alves,
Lucio Dias (Campeão), Lidiane Lima, Roberto Luiz, Aroma Bandeira e Rodrigo Galvão; aos
amigos que vem acompanhando desde cedo meu trajeto: Igor Pastl, Carlos Eduardo, Felipe
Cavalcante, Petra Pastl, Mariana Melo e Danielle Felinto; aos companheiros de jornada na
Universidade, que tem dado aquela força: Thiago Parrolas, Jefferson Gonçalo, Frederico Neto,
Caetano Bezerra, Diomedes Oliveira, Matheus Pinheiro, Bianca Alcoforado, Afonso Bezerra;
Estevam Machad; aos amigos Antonio Guido e Mauro Mendes pelos bons momentos; e a todos
os outros que não couberam aqui, mas que estão presentes no coração e nos pensamentos.
E por último e em especial, à minha amada companheira Mariana Andrade, que me fez
enxergar a força que tinha dentro de mim e externá-la, que tornou tudo isto possível, fazendo
meus sonhos virarem realidade. Descobri através de você que só necessitamos de amor pra
viver.
“You Africans, please listen to me as
Africans, And you non-Africans, listen to
me with open mind”

(Fela Anikulapo Kuti)


RESUMO

As representações imagéticas de África são constantemente abordadas na história da


música popular brasileira. Seus registros a partir da criação de uma indústria fonográfica
nacional vão demonstrando-se frequentes, e cada vez mais abrangentes, incluído desde
uma devoção à terra ancestral deixada para trás, à exaltação dos valores construídos
através das identidades afro-brasileiras. Os discursos acerca de África elaborados nos
diferentes períodos de nossa música popular representam importantes materiais de
pesquisa para a análise acerca dos processos de produção de um pensamento
afrocêntrico, assim como para a compreensão da relevância que as culturas de matrizes
africanas possuíram e ainda possuem na formação da identidade nacional. Discutiremos
deste modo, como a formação do imaginário sobre África se processou a partir da
década de 30 na MPB, e como ele se reflete ainda hoje na produção musical brasileira
contemporânea, que aparenta desvelar novos caminhos para a criação de identidades
africanizadas. A música, por ser um dos campos onde é possível perceber mais
referências voltadas à construção destas representações sobre África, torna-se um
campo essencial para a compreensão deste processo, do lugar que a África ocupou, e
que novamente passa a ocupar no pensamento social coletivo. O presente trabalho
busca, portanto, compreender o papel que as culturas de matrizes africanas exercem,
através do imaginário representado na música popular brasileira, para a formação de
identidades nacionais afrocêntricas.

Palavras-chave: África, música, imaginário.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................07

1. IDENTIDADES NEGRO-AFRICANAS NAS DÉCADAS DE 30 A 50...............13


1.1. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo...........................................14
1.2. O espaço social das culturas africanas na década de 30.....................................17
1.3. O Estigma da macumba.........................................................................................20
1.4. Reconfigurações de África no Brasil.....................................................................28
1.5. Melodias de terreiro em tempos de macumba.....................................................31

2. CONFIGURAÇÕES IMAGÉTICAS DE MATRIZES AFRICANAS................34


2.1. Os ecos que vem da África.....................................................................................36
2.2. Afro-sambas............................................................................................................37
2.3. Os jovens sons africanos........................................................................................40
2.3.1. Conexão Brasil/África...........................................................................................43
2.3.2. África Brasil..........................................................................................................45
2.4. Os deuses negros da MPB.....................................................................................46
2.4.1. MPB e religiões afro-brasileiras............................................................................52
2.5. Novas perspectivas de África................................................................................53

3. AS (RE)APROPRIAÇÕES DE ÁFRICA NO SÉCULO XXI..............................56


3.1. Kiko Dinucci e a África macarrônica...................................................................60
3.1.1. Metá Metá: a tríade iorubana................................................................................64
3.2. Afrobeat / afro-brasileiro......................................................................................67
3.3. Reestruturações estéticas......................................................................................76
3.4. Afro-religiosidades................................................................................................78
3.5. A busca de uma reparação à África....................................................................85

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................89

REFERÊNCIAS..........................................................................................................93
INTRODUÇÃO

O Brasil é um país marcado por profundas tradições culturais de origens


africanas, que remontam dos tempos da escravidão e com as quais convivemos até hoje.
Estes traços de africanidade estão presentes na fala, na religião, na culinária, na dança,
nos traços físicos, na música, entre tantos outros. São questões que fazem parte do
cenário nacional desde os tempos da colonização, devido à intensa chegada de escravos
negros ao país, que só cessou após a segunda metade do século XIX. Desde então, as
culturas africanas que aqui restaram, passaram por processos de ressignificações,
algumas das quais mantendo traços que nem mais em África são possíveis de se
encontrar, e outras passando por processo de transfiguração onde torna-se difícil
identificar ali o que resta de africano.
Em meio a este processo, várias identidades pautadas em África foram
construídas e reconstruídas, pautadas em reminiscências culturais africanas no Brasil ou
mesmo em novos valores adquiridos de conhecimentos advindos de uma modernidade
africana, gerando a construção de um imaginário1 singular sobre o continente africano
em nossa sociedade, que remonta às mais infinitas possibilidades. A música, devido ao
seu amplo processo de trocas culturais, torna-se então um vasto campo para a
compreensão destas identidades construídas a partir do imaginário que se estabeleceu
sobre a África na cultura nacional, e que se amplia cada vez mais nos artistas da
contemporaneidade, onde torna-se perceptível a identificação de um imaginário sobre
África completamente novo.
Atualmente, diversos projetos de reparação social são aplicados à população
negra, editais que valorizam o resgate e a manutenção de práticas culturais de origem
afro-brasileiras são lançados constantemente e o ensino da história e cultura afro-
brasileira é tornado item obrigatório nas escolas e universidades. As barreiras existentes
entre o continente africano e o Brasil têm sido gradualmente sobrepostas pela internet, e
com isso, a identificação dos grupos sociais brasileiros com as culturas produzidas pelas
etnias africanas e afrodescendentes ao redor do globo tem tornado-se visíveis.
No Brasil, existe uma longa trajetória de identificação da população com as
sonoridades de matrizes africanas, desde o surgimento do Samba e sua posterior

1
Utilizamos aqui a noção de Imaginário segundo a perspectiva do pesquisador francês Gilbert Durand,
para quem o imaginário seria a construção da percepção do mundo segundo a ótica dos indivíduos, feita
singular ou coletivamente.

7
associação como ritmo nacional durante a era Vargas na década de 30, até as recentes
reapropriações das musicalidades africanas por artistas brasileiros contemporâneos.
Analisar o modo como se processam estes fenômenos ligados à produção do imaginário
acerca de África na produção musical da contemporaneidade é compreender qual a
relevância que as diferentes culturas africanas representam hoje para a sociedade
brasileira.
A música se apresenta como uma importante ferramenta para a compreensão
destas relações de identidade do povo brasileiro para com a África, pois segundo Nestor
Garcia Canclini (2008, p. 62), “Talvez a música seja o ambiente onde mais veloz e
radicalmente estão sendo reformulados os conceitos de local, nacional e global.”
O pesquisador Norman C. Weinstein (1993), em seu livro A night in Tunisia:
imaginings of Africa in jazz, propõe analisar o imaginário sobre África presente no
repertório de 13 músicos americanos de jazz. Este tema se mostrou relevante para o
autor, pois no passar de anos ele foi percebendo como um grupo de músicos de jazz
não-africanos evocavam constantemente a África em suas composições sem, em muitas
casos, terem tido contato real com o continente (WEINSTEIN, 1993). Ele começou
então a analisar como esses músicos conseguiam através apenas do imaginário, trazer
aspectos de um pensamento afrocêntrico em sua obra, fazendo com que suas
composições remetessem aos ouvintes visões de uma África que a maioria deles em
geral também não havia vivenciado. Weinstein (1993) sugere que a palavra
“imaginações” presente no título não implica uma concepção frágil de África para estes
compositores de jazz, mas sim uma energia que gera possibilidades amplas de conceber
a África, sempre “novas e mutáveis”. (WEINSTEIN, 1993, p.VII). As questões
abordadas por Weinstein em seu livro trazem inúmeras possibilidades de reflexão sobre
como estes imaginários de África se processam também na realidade brasileira, visto
que o país acabou, de certo modo, sendo um dos maiores mantenedores das tradições
culturais, sociais e religiosas de matrizes africanas na Diáspora, e que conseguiu
abranger um imaginário muito mais amplo sobre as relações de África com o que era
conservado destas tradições no Brasil, mesmo tendo ciência da distância temporal que
separava a chegada destas tradições no país. O estudo destes aspectos também se mostra
relevante segundo a ótica de Fernando Augusto Albuquerque Mourão (1996), para
quem:
A arte africana, designação genérica de vários gêneros, é um instrumento da
maior importância – enquanto método auxiliar no estudo da História -, na
medida em que seja entendida em seu contexto. Embora os fundamentos da

8
arte africana sejam comuns a todo o continente, cada grupo cultural apresenta
as suas especificidades. Note-se que, durante longo tempo, os estudos sobre a
arte africana centram-se, em geral, ora em trabalhos em que se dava primazia
a aspectos particulares, ora em outros, em que se privilegiavam os aspectos
gerais, ambos permeados por conceitos em que a arte africana surge como
objeto. (MOURÃO, 1996, p.7).

A existência de uma série de manifestações culturais voltadas para as vertentes


africanas no início do século XXI no Brasil, se deve ao fato de um crescente interesse
não só nas manifestações brasileiras de origens africanas, mas também dos processos
culturais surgidos a partir da diáspora africana em todo o mundo e principalmente
devido a uma (re)valorização e (re)descoberta do próprio continente africano.
O fluxo e refluxo entre Brasil e África sempre foi bastante intenso. As relações
de “troca” não ocorreram apenas através do tráfico atlântico de escravos, mas também
de forma significativa após o término deste. Após a abolição ocorreram vários casos no
Brasil de pessoas de descendência africana retornarem à África ou mesmo enviarem os
seus filhos para o continente africano a fim de realizarem estudos e revitalizarem os
seus contatos com as tradições africanas e com as suas ancestralidades, buscando em
alguns casos aprimorarem-se nos conhecimentos das religiões tradicionais, indo
consultar-se diretamente na fonte de onde saíram. Muitos desses indivíduos ao
retornarem para o Brasil chegavam com status de especialistas no assunto, como foi o
caso do descendente de africanos Martiniano Eliseu do Bonfim, que faz viagem com seu
pai à Nigéria em 1875, onde passa 11 anos, e de lá retorna à Bahia como Babalawô 2 de
grande prestígio.
Assim como acontecia dos negros baianos voltarem à África em busca de suas
origens e informações sobre os cultos de seus orixás, também era comum o povo de
santo residente no Rio de Janeiro retornar à Bahia para fazer suas obrigações com os
sacerdotes de lá, assim como afirma Reginaldo Prandi (1990, p. 50-51): “O trânsito de
sacerdotes e aspirantes das religiões dos orixás e encantados entre Bahia e Rio tem-se
mantido constante desde esse passado até os dias de hoje”. Roberto Moura (1995)
também corrobora com esse pensamento de fluxo de negros entre África-Bahia e Rio-
Bahia quando diz que:
Era comum as baianas de maior peso irem à Bahia tratar de suas coisas de
santo e dos negócios de nação, progressivamente centralizados nas casas de
candomblé de Salvador, como os negros baianos iam eventualmente à África,
voltando com informações e mercadorias. (MOURA, 1995, p.93-94).

2
Sacerdote do candomblé responsável pelo culto de Orunmilá-Ifá.

9
Esse fluxo entre Rio de Janeiro e Bahia tornou-se comum a partir do momento
da abolição, pois segundo Roberto Moura (1995), uma grande quantidade de ex-
escravos e libertos rumou para a então capital brasileira na expectativa de encontrar
melhores condições de trabalho, além de que os negros da Bahia estavam encontrando
uma relutância muito grande para que ocorresse sua inserção na sociedade, o que era
corroborado pela política local. Foram estes grupos negros vindos da Bahia, segundo
Roberto Moura (1995), que foram responsáveis por aglutinar ao seu redor a comunidade
negra no Rio de Janeiro, que posteriormente ia concentrar-se ao redor da Praça Onze,
numa região chamada por Heitor dos Prazeres de “Pequena África” (MOURA, 1995,
p.93). É neste reduto negro carioca que irá surgir o Samba, através do auxílio das Tias
Baianas, filhas de santo dos terreiros cariocas que além de venderem comidas
tradicionais baianas, ainda utilizavam suas casas como reduto da boemia, das rodas de
música e para as obrigações de orixá.
É partindo deste ponto de junção dos valores tradicionais africanos das
diferentes regiões brasileiras no Rio de Janeiro que se inicia esta pesquisa.
No primeiro capítulo, analisaremos as percepções de África existentes na música
brasileira a partir da década de 30, período em que a maioria dos autores que serão aqui
abordados mencionam como sendo o surgimento das primeiras gravações da indústria
fonográfica que permeavam estéticas e temáticas de matrizes africanas. Assim,
avaliaremos a construção da identidade nacional concebida durante a era Vargas,
analisando como se dava a relação do Estado com as culturas de matrizes africanas,
pensada inicialmente como detentoras de um atraso, segundo as teorias raciais ainda
vigentes, e a mudança para um paradigma de mestiçagem, baseado na teoria da
“democracia racial”. Serão apontadas e analisadas as relações dos grupos intelectuais
com o Estado, o espaço social das culturas africanas e as relações do Estado perante as
religiões afro-brasileiras, tudo isto entremeado pelo avanço da indústria fonográfica e do
rádio, que acabavam refletindo estes acontecimentos com as culturas negras.
No segundo capítulo, iremos abordar um panorama mais abrangente, tratando
das décadas de 60 e 70, com o surgimento de diversos movimentos musicais no Brasil e
retratando brevemente os ecos da ditadura militar nestas produções. Para isto,
utilizaremos como referência o artigo Foi conta para todo canto: as religiões afro-
brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro de Rita Amaral e Vagner
Gonçalves da Silva (2006), onde estes analisam a presença das religiões de matrizes
africanas na música popular brasileira do século XX. Na parte em que eles tratam da

10
periodização das décadas de 60 e 70, um montante de artistas são elencados para se
analisar a presença das religiões afro-brasileiras em suas obras. São eles: Elis Regina,
Jair Rodrigues, Vinicius de Moraes e Baden Powell, Noriel Vilela, Martinho da Vila,
Clara Nunes, Luiz Américo, Ruy Mauriti, Os Tincoãs, Wando, João Bosco, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa.
Como todos estes compositores e intérpretes são abordados no texto destes
autores, por mais que, devido à sua proposta, alguns só possam ser tratados no texto de
maneira superficial, às vezes apenas citados, decidimos por tratar outros aspectos de
alguns destes músicos, que não sejam analisados no texto de Amaral e Silva (2006), e
trazer elementos de outros músicos e compositores que não são citados no texto, e que
são talvez ainda mais essenciais para a nossa compreensão acerca do imaginário de
África na música popular deste período, como os grupos Tribo Massahi e Vissungo e o
compositor e cantor Marku Ribas, que se propuseram a dialogar com as novas
sonoridades produzidas no continente africano.
No terceiro e último capítulo, no qual serão tratadas as produções fonográficas
realizadas a partir do ano 2000, analisaremos o modo como as percepções construídas
sobre África em períodos anteriores serão refletidas no imaginário dos autores
contemporâneos; as possibilidades do uso da internet e de outras tecnologias para novas
descobertas sobre o continente africano; o papel contemporâneo das religiosidades de
matrizes africanas; além da construção de um discurso de reparação às culturas
africanas. Dentro destas perspectivas, tentaremos compreender a relevância do
pensamento afrocêntrico para a construção da identidade dos artistas aqui analisados.
Nesta pesquisa investigaremos o pensamento de uma série de autores que tentam
compreender os diferentes modos como a África se reprocessou e ainda se reprocessa
dentro da cultura brasileira, seja na música, na religiosidade, na literatura, nas festas
populares, no pensamento político ou no próprio discurso dos afrodescendentes, que
acaba perpassando qualquer questão ligada meramente à “tonalidade da pele” para a
relação de identificação destes indivíduos com as culturas que vem de África.
Além deste projeto se destinar a analisar o modo como se processa o imaginário
de África na música brasileira, pretendemos também resgatar a memória de inúmeros
artistas e discos que foram excluídos da história da MPB, não apenas por não atingirem
sucesso comercial e destaque nas grandes mídias da época, mas por não se encaixarem
nos padrões estético-musicais estabelecidos pelos críticos historiadores da MPB, que
muitas vezes só conseguem enxergar alguma presença de África na música nacional

11
através de características antropológicas folclorizantes pautadas em manifestações
tradicionais de cunho “puramente” africanista.
Os conceitos de África para a civilização ocidental, ainda são incutidos de uma
carga homogeneizante e depreciativa. Para Helenise da Cruz Conceição e Antônio
Carlos Lima da Conceição (2010):
As visões mais comuns sobre a história africana ou se constituíram com base
em preconceitos etnocêntricos, apresentando a África como um lugar
atrasado, inculto ou na posição de dominados criando a falsa idéia de serem
povos passivos, impotentes, incapazes de resistência, de atuação e
intervenção na história. (CONCEIÇÃO; CONCEIÇÃO, 2010, p.3).

É deste modo que o pensamento afrocêntrico acaba se configurando no Brasil.


Composto por uma série de amarras sociais onde, mesmo que o “afro” seja definido
como um modelo a ser seguido, ele acaba sendo inferior, segundo os moldes ocidentais,
aos padrões sociais, culturais, políticos, religiosos e estéticos das tradições ocidentais
brancas judaico-cristãs. O padrão vigente acaba se tornando o “negro de roupagem
branca”, porém, aqui serão analisadas estruturas fora deste paradigma, segundo uma
provável tendência de “africanização” da música brasileira contemporânea.
Portanto, pretendemos aqui demonstrar qual o papel exercido pela África na
memória fonográfica nacional, através de um panorama da produção nacional, e sua
reconfiguração atual, fundamental para a compreensão do cenário musical brasileiro
contemporâneo.

12
1. IDENTIDADES NEGRO-AFRICANAS NAS DÉCADAS DE 30 A 50

Durante a era Vargas o Brasil foi marcado por intensas mudanças sociais,
econômicas e políticas, passando por um momento de adaptação e inserção das classes
sociais menos favorecidas na sociedade brasileira. Estes grupos sociais eram em sua
maioria compostos de negros ou mestiços, descendentes de africanos escravizados que
mesmo com o advento do fim da escravidão e da república continuaram relegados à
margem da sociedade. Ao assumir o poder a partir da revolução de 30, Vargas se
deparou com um povo reticente, fechado às propostas políticas formuladas pelo Estado,
pois, passados mais de 40 anos da abolição da escravatura, não tendo o governo
estabelecido em todo esse tempo nenhum tipo de projeto eficaz de integração social
voltado para grupos populares, estes acabaram estabelecendo seus próprios meios de
inserção na sociedade. Segundo Rachel Soihet (2003), estes grupos negros do período:
Rejeitaram a segregação que se lhes pretendiam impor e, a partir de suas
manifestações, desenvolveram formas alternativas de organização, vinculadas
ao terreno da cultura, elemento de coesão e de construção de identidade,
através da qual buscaram edificar uma cidadania. (SOIHET, 2003, p.305)

Getúlio Vargas identificará nas manifestações populares a oportunidade de


estabelecer um maior vínculo com o povo através da elevação destas manifestações à
qualidade de identidade nacional brasileira, plano estabelecido em seu governo e que
terá respaldo de uma série de intelectuais da elite do país. Mas, para que isso ocorra, o
Estado irá estabelecer medidas restritivas aos movimentos culturais populares, fazendo
com que estes se adequem às propostas de governo de Vargas. Estas limitações
impostas pelo governo farão com que os grupos tradicionais voltados às manifestações
de raízes africanas continuem em parte restritos à marginalidade, e os que estiverem
dispostos a obterem aceitação na nova realidade social do país terão de adequar-se aos
novos tempos.
A permanência das culturas de matrizes africanas como símbolo de identidade
nacional durante a era Vargas tornou-se possível devido a um “branqueamento” das
manifestações populares mantidas pelos grupos negros, através de tentativas de
desvincular estas culturas de suas raízes africanas, moldando-as a padrões europeizados.
O Estado não demonstrava interesse em fazer subsistir uma cultura nacional ligada a
características “bárbaras”, como eram ainda em geral consideradas as tradições
africanas no ocidente. De modo que, para poder conservar uma estética “afro” na
cultura nacional, tornava-se de certo modo necessário o esvaziamento de seu conteúdo,

13
visando adquirir um semblante mais “civilizado”, ou seja, baseado em um padrão
europeu, segundo o ideal ainda recorrente de muitos intelectuais no início do século
XX.
À medida que a identidade nacional é construída pelo Estado com o auxílio de
intelectuais dos mais diversos campos do conhecimento, as características culturais
balanceadas entre o “civilizado” e o “bárbaro” acabam tornando-se “exclusivamente
brasileiras”. Para o Estado, só seria considerado legitimamente brasileiro o que se
encaixasse em suas perspectivas. As massas eram consideradas imaturas pelas elites
intelectuais, despreparadas, incapazes de governar a si próprias, portanto, o Estado seria
responsável por moldar a mente e a vida social delas.

1.1. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo

A pesquisadora Mônica Pimenta Velloso (2003) ao falar do papel das políticas


culturais empreendido pelos intelectuais durante o Estado Novo, diz que com o fim da
1ª Guerra e com a derrocada do mito cientificista, torna-se necessária a busca por um
sentimento nacional, pela busca das raízes brasileiras, e que os intelectuais irão se eleger
como o grupo que tem capacidade para constituir o ideal brasileiro. Segundo a autora:
“[...] imbuídos de vocação messiânica, senso de missão ou dever social, os intelectuais
se auto-elegeram sucessivamente consciência iluminada nacional.” (VELLOSO, 2003,
p.148).
Velloso (2003) também aponta para as diferenças existentes entre a classe
intelectual em períodos antes e após o regime, confrontando seus ideais nesses
momentos distintos. Para a autora, a ideologia da intelectualidade teria passado de uma
mera relação observadora ao papel de agente social. É esta necessidade de ação por
parte dos intelectuais, sua relação com o nacional, que será cobrada pelo Estado e que
acabará sendo correspondida através de uma maior participação política. O que Velloso
pontua como sendo a missão de “[...] ser o representante da consciência nacional.”
(Ibidem, p.153).
É com base nestes intelectuais que será criada a ideologia da “democracia racial”
no Brasil, que corresponderia a um ideal buscado pelo Estado de mascarar os problemas
sociais, fazendo assim com que a população se sentisse incluída nas transformações

14
promovidas por ele e apoiasse o seu projeto social. Entre os intelectuais do período que
participaram dessas discussões, podemos citar o sociólogo Gilberto Freyre, um dos
grandes responsáveis pela criação da teoria de “democracia racial”, discutida através do
seu livro Casa Grande & Senzala, escrito em 1933. Sobre o papel formador do Estado,
Lúcia Lippi Oliveira (2003) comenta:
Diferentes instrumentos de educação coletiva foram criados ou desenvolvidos
visando educar o povo, a promover o ensino de bons hábitos. O rádio, o
cinema educativo, o esporte, a música popular participavam desse objetivo
comum de integrar os indivíduos no novo Estado nacional. (OLIVEIRA,
2003, p.330)

O intuito através destas práticas era o de homogeneizar a população, mascarando


a realidade social brasileira através de um falso prisma de “democracia racial”, fazendo
assim com que o povo se sentisse inserido nas políticas públicas estatais. Sidney
Aguilar Filho (2012) questiona o uso da teoria de “democracia racial” pelo Estado a
partir das práticas eugenistas empregadas por ele num momento anterior, demonstrando
que a mudança no discurso por parte do governo não levou a medidas sociais concretas,
permitindo assim a manutenção de práticas racistas durante a era Vargas:
Um olhar sobre o Brasil de Vargas (1930-1945) revela a segregação racial
como política estatal, implodindo a teoria da “democracia racial” brasileira.
Antes, ao contrário, confirmam o autoritarismo extremado do Estado
brasileiro e de seus detentores contra setores específicos da sociedade. Os
estudos mais recentes sobre a temática mostram, superando os desconfortos,
que a segregação e a desigualdade de direitos entre cidadãos foram
legalizadas, teorizadas e praticadas no país. (AGUILAR FILHO, 2012)

Antonio Ozaí da Silva (2002) também corrobora com este pensamento quando
diz que a condição do negro na sociedade brasileira, mesmo após a revolução de 30, não
sofreu grandes mudanças em comparação à República Velha (denominação dada pelos
golpistas de 30 ao período da república que antecedeu o golpe):
Esta situação não foi modificada com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder:
manteve-se o critério de que a política é uma atividade restrita às elites. E isto
foi ainda mais aprofundado durante o Estado Novo: cabia às camadas
inferiores do povo, sendo a raça negra sua maioria, contentar-se com a função
submissa de colaborar para a harmonia e a manutenção da ordem social,
condições para o progresso e o desenvolvimento econômico brasileiro.
(SILVA, 2002)

Algumas características da cultura negra no Brasil, principalmente as mais


ligadas às tradições africanas, irão sofrer intervenções por parte do Estado. As
atividades carnavalescas serão padronizadas, afastadas de suas características
“selvagens”; as religiões de matrizes africanas e seus adeptos sofrerão perseguições, e
em casos como o de Recife, apenas as casas consideradas tradicionais pelo grupo de

15
intelectuais encabeçados pelo médico e psicólogo Ulysses Pernambucano terão maiores
liberdades de culto; até a figura do malandro será suavizada para se encaixar com a
ideologia pregada pelo regime. Foi visando assegurar estas premissas que foi criado o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Além de órgão de propaganda do
governo, o DIP iria servir também como instrumento de censura, pronto a rechaçar
qualquer atitude que não fosse condizente com os planos que o Estado tinha para as
massas.
Durante o período do Estado Novo, o governo promoveu através do DIP uma
“orientação” aos compositores populares visando o enaltecimento de temas
considerados importantes pelo regime, como a questão do “trabalho”, e ao mesmo
tempo, o abandono de temáticas julgadas impróprias como a boemia e a malandragem.
Os tipos do boêmio e do malandro enaltecidos nas composições do período eram o
retrato dos negros e mestiços que não se submetiam ao sistema ou que por não se
encaixarem na sociedade, que, como falado anteriormente, após a abolição não
promoveu a inserção destes grupos, acabaram encontrando outros meios de
subsistência. Era esta associação à figura do negro que o Estado queria “abolir”.
Este foi o caso de uma canção composta em parceria entre os sambistas Wilson
Batista e Ataulfo Alves. Batista foi um compositor que exaltou a figura do malandro
através de composições como Lenço no Pescoço, gravada por Silvio Caldas em 1933, a
qual gerou uma polêmica com o sambista Noel Rosa, que fez uma resposta à
composição de Batista, intitulada Rapaz Folgado. Em um samba de 1940, Bonde São
Januário, Batista e Alves contam a história de um homem que abandona a vida boêmia
para se tornar trabalhador, enfatizando a importância do trabalho como responsável por
prover a sua felicidade e dignidade. A letra da música diz o seguinte:
Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar

O Bonde São Januário


Leva mais um operário
Sou eu Que vou trabalhar

Antigamente
Eu não tinha juízo
Mas hoje
Eu penso melhor
No futuro
Graças a Deus
Sou feliz

16
Vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
Passe bem!

Nos últimos versos da composição original, porém, os autores faziam uma


crítica a este “nobre” papel do trabalhador proclamado pelo Estado, dizendo: “O bonde
São Januário / leva mais um grande otário3 / sou eu que vou trabalhar”, demonstrando
assim ser a composição, na realidade, uma crítica ao Estado e ao intervencionismo do
DIP, visto que ela passava a perpetrar em sua versão original uma visão contrária à do
governo, desqualificando o papel enaltecedor do trabalho aclamado pelo regime. Porém,
para evitar problemas com o DIP, os compositores acabaram modificando a
composição, que na gravação de Ciro Monteiro de 1940 acabou ficando: “O bonde São
Januário / leva mais um operário / sou eu que vou trabalhar.”. A pressão do Estado era
tão grande que até no imaginário da música popular a figura do malandro converteu-se
em trabalhador, fazendo assim com que a composição de Batista e Alves se adequasse
aos ideais do governo. Rachel Soihet (2003) sintetiza bem o papel do Estado na
conversão do malandro em trabalhador: “Durante o Estado Novo, tempo de
industrialização, de valorização do homem que forja o progresso do país, ocorre uma
mudança nessa imagem: o sambista continuará a ser exaltado, mas agora como
trabalhador.” (SOIHET, 2003, 308).

1.2. O espaço social das culturas africanas na década de 30

Por mais que a malandragem tenha sido representada como um estigma


associado aos grupos negros, a qual o Estado tomou o cargo de “podar as arestas”,
foram provavelmente as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras que se
destacaram entre as manifestações culturais negras mais perseguidas no período da era
Vargas.
As características religiosas e sociais dos cultos africanos não eram condizentes
com o projeto de governo do Estado, que mesmo pregando uma desvinculação com a
Igreja Católica em nome de um Estado laico, utilizava-se a todo o momento do

3
Grifo nosso.

17
imaginário cristão em seus discursos, chegando inclusive a comparar Getúlio Vargas a
Jesus Cristo, devido aos “sacrifícios” que o então presidente teria feito em nome do
povo brasileiro. Porém, há um fato mais importante sobre isto, as religiões de matrizes
africanas e afro-brasileiras eram representativas de grupos tradicionalmente excluídos
da sociedade, considerados de menor importância para o Estado, principalmente se
comparadas com as religiões cristãs, portanto, não se encaixariam como símbolo de uma
identidade brasileira propagada por um regime voltado para a homogeneização das
massas através de um padrão ocidentalizado.
Ao mesmo tempo em que pretendia fazer a inserção dos negros e mestiços na
sociedade, e mesmo propunha a construção de uma identidade nacional voltada em
parte para as manifestações brasileiras de matrizes africanas, o Estado promovia um
“embranquecimento” dessas manifestações, padronizando-as ao seu gosto, numa
adaptação da realidade brasileira aos moldes ocidentais “civilizados”.
A década de 30 foi um período de crescente desenvolvimento da indústria
fonográfica no país, além da radifônica, pois o rádio desempenhou um importantíssimo
papel na divulgação da música feita no Brasil desde a sua inauguração na década de 20,
principalmente através da promoção do samba carioca, ritmo de origem afro-brasileira
que tomava as ruas através do carnaval carioca e que penetrava no dia-a-dia dos
brasileiros através do rádio e dos fonogramas que aos poucos iam fazendo parte do seu
cotidiano. Segundo Hermano Viana (1995):
Nada mais propício para o samba carioca, mais tarde tido como brasileiro,
finalmente se definir como estilo musical. Em sua própria cidade, já havia as
rádios, as gravadoras e o interesse político que facilitariam (mas não
determinariam – isso é outro problema) sua adoção como nova moda em
qualquer cidade brasileira. O samba tem “tudo” a seu dispor para se
transformar em música nacional (VIANNA, 1995, p.110).

O pesquisador Hermano Vianna (1995), em seu livro O mistério do Samba, fala


sobre o processo de “mediação cultural” ocorrido entre grupos intelectuais e populares
no Brasil como fator importante para a formação de uma cultura nacional pautada em
valores populares. Vianna (1995) utiliza como fio condutor um encontro ocorrido entre
intelectuais como os sociólogos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, o
jornalista Prudente de Moraes Neto e o maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, com
músicos populares tradicionais como Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira, num
processo de trocas já existentes em outros períodos da história brasileira, mas que entre
este grupo demonstrou o processo de construção do samba como elemento formador de
uma identidade nacional. Vianna (1995) enfatiza que diferentemente do que foi

18
registrado em grande parte da historiografia do samba, onde o processo que teria
ocorrido entre o samba passar de ritmo marginal a nacional é atribuído apenas ao seu
sucesso imediato no carnaval, a sua aceitação pela sociedade ocorreu gradualmente, e
devido a uma série de outros fatores que não apenas este, demonstrando estas
“mediações culturais” e o interesse do Estado em formar uma identidade nacional
voltada às características populares como fatores importantes nesse processo.
Entre tantos acontecimentos ocorridos na década de 30, um em particular será
essencial para a disseminação e reconhecimento dos aspectos africanos na cultura
nacional. A realização do I Congresso Afro-Brasileiro em Recife, no ano de 1934, e a
do II Congresso Afro-Brasileiro em Salvador no ano de 1937. O fato de que as
temáticas afro-brasileiras estavam inserindo-se de tal modo no campo acadêmico a
ponto de incitarem a realização de congressos demonstra a importância que estas
temáticas haviam adquirido nos meios intelectuais. Muitos dos mais respeitados
pesquisadores brasileiros participaram dos dois congressos. Para termos uma
compreensão da amplitude que o congresso atingiu, entre os presentes da primeira
edição em Recife podemos citar diversos intelectuais como: Gilberto Freyre, Arthur
Ramos, Edson Carneiro, Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Solano Trindade,
Melville J. Herskovits, entre muitos outros. Já na segunda edição do congresso, ocorrida
em Salvador três anos após a primeira, estiveram presentes: os intelectuais Édison
Carneiro, Arthur Ramos, Áydano do Couto Ferraz, Dante de Laytano e Jorge Amado;
representantes dos terreiros da Bahia como Maria Escolástica Nazareth (a Mãe
Menininha do Gantois), Silvino Manuel da Silva (Ogã do Gantois), Eugenia Anna
Santos (Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá) e com presidência de honra do babalaô
Martiniano Eliseu do Bonfim, além também da presença de grupos como a Frente
Negra de Pelotas e a All African Convention.
Muitas temáticas foram debatidas, e a realização dos dois congressos contribuiu
essencialmente para a dinamização dos estudos afro-brasileiros e para a quebra de
alguns preconceitos, mesmo que em geral as suas pesquisas tenham ficado mais restritas
aos meios acadêmicos e intelectuais. As mudanças sociais geradas com a realização do
primeiro congresso já puderam ser sentidas três anos depois com a realização do
segundo, pois conforme Flávio Gonçalves dos Santos (2001):
Este se realiza com uma característica diferente do I Congresso de Recife. Na
edição de 1937, os tributários da cultura afro-brasileira figuram lado a lado
dos estudiosos nacionais e estrangeiros sobre o assunto, com um discurso de
autoridade, usando os sinais diacríticos da cultura dominante, deixando de ser

19
apenas objeto do discurso de outros e passando a produtor de discursos sobre
si mesmos. (GONÇALVES, 2001, p.9)

As culturas de origem africanas encontravam-se em momento de destaque nos


meios intelectuais, porém, de forma ainda muito folclorizante, associadas a práticas de
estudo de reminiscências de povos “exóticos” aportados no Brasil. Algumas destas
características são visíveis principalmente no I Congresso Afro-Brasileiro, onde os as
práticas culturais dos grupos negros eram consideradas apenas como temáticas de
estudo, algo a ser conservado em livros e museus. Já no II Congresso Afro-Brasileiro,
estes temas passam a ter um maior destaque, como práticas sociais de um grupo, onde
os negros deixam de ser apenas o objeto de estudo, e passam eles próprios a serem
protagonistas dos estudos junto aos grupos de intelectuais. Porém, o tipo de interesse
dos intelectuais por estes grupos e práticas sociais não é refletido através das práticas do
Estado, especialmente no que diz respeito às religiões de matrizes africanas.

1.3. O Estigma da macumba

As religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro passaram a ter uma maior


prática a partir do grande fluxo de ex-escravos que para lá rumavam a partir do fim da
escravidão, entre estes um grande número de baianos praticantes destas religiões,
buscando melhores condições de trabalho na então Capital Federal. A mistura de
práticas religiosas africanas aportadas no Rio, com ritos indígenas e católicos, acabaram
sendo denominadas popularmente como Macumba, instrumento musical de origem
africana, que passou a servir como designação genérica da prática urbana destas
religiões no Rio de Janeiro.
Reginaldo Prandi (1997) afirma que os elementos das religiões afro-brasileiras
apareceram pela primeira vez nas letras dos sambas no início dos anos 30, e cita como
referência um disco de 78 rotações do selo Odeon Nº 10.679, gravado por Getúlio
Marinho ”Amor”, Elói Antero Dias e Conjunto Africano em outubro de 1930 onde eles
cantam dois “pontos de macumba4”: Canto de Exú e Canto de Ogum. O mesmo grupo
já havia gravado anteriormente, em setembro do mesmo ano, um outro disco pela

4
Macumba é a denominação genérica dada na primeira metade do século XX às religiões de matrizes
africanas do Rio de Janeiro.

20
Odeon, de Nº 10.690, onde interpretavam dois outros pontos: Ponto de Inhãcã e Ponto
de Ogum. Segundo o pesquisador e compositor Nei Lopes (2005):
Em 1930, Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro em disco de cânticos
rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um
ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. [...] O pioneirismo dos sambistas
Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco
verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos
pontos de macumba, com atabaques etc. (LOPES, 2005, p.5)

O pioneirismo atribuído por Lopes (2005) e Prandi (1997) aos fonogramas se


deve ao fato de que para eles, as temáticas exploradas em composições de períodos
anteriores não poderiam ser consideradas como “músicas rituais”, pois mesmo que
tratassem de valores voltados ao universo religioso afro-brasileiro, acabam adquirindo
ares “apenas de música popular”, portanto, sem nenhum sentido litúrgico. Segundo
Caroline Moreira Vieira (2010):
Além dos pontos, propriamente ditos, Getúlio Marinho gravou músicas
bastante próximas de cânticos sagrados, e não sabemos se foram compostas
por ele para serem cantadas também nos terreiros ou se sua inspiração veio
desses espaços religiosos para serem gravadas. (VIEIRA, 2010, p.126)

Flávia Camargo Toni (2003), analisando a coleção de fonogramas de Mário de


Andrade diz que este classifica o primeiro disco do Conjunto Africano com os
fonogramas Ponto de Exú e Ponto de Ogum como “disco africano”. Porém, outros
discos de sua coleção, entre eles os fonogramas Orobô de Cícero de Almeida, Meus
Orixás de Gastão Viana, Ererê de Getúlio Marinho e vários outros são classificados
como “feitiçaria carioca”. No selo do disco original as composições são creditadas
como domínio público, e a interpretação apenas ao Conjunto Africano, não constando
os nomes de Getúlio Marinho e Elói Antero no disco. É importante verificar que no
disco ambas as faixas abrem com a saudação “Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo”
no que o coro responde: “Para sempre seja louvado” (assim como também no outro
disco do Conjunto Africano), expressão típica das aberturas de gira em terreiros de
Umbanda, religião surgida no início da década de 20 no Rio de Janeiro e que se
caracterizava como uma junção de elementos espíritas, cristãos, indígenas e de religiões
de matrizes africanas. Por que então Mário de Andrade caracterizaria o disco como
sendo “africano”? Provavelmente, devido não só à língua iorubá cantada nos pontos,
nem só à denominação do conjunto como “Africano”, mas também ao fato de que os
terreiros poderiam ser vistos como o que de mais “africano” se mantinha no Brasil.
De certo modo, o fato da abertura dos fonogramas acima ser feita com uma
louvação a Jesus Cristo facilitava a possibilidade de gravação de musicalidades

21
pautadas numa tradição religiosa de origem africana, visto que as quatro gravações
tratam de orixás do candomblé que foram absorvidos pela Umbanda, como também
uma maior possibilidade de aceitação desse tipo de música no mercado. A Umbanda
surgiu na década de 20 como uma espécie de “branqueamento” dessas manifestações
africanas, suavizando a sua ritualística com a inserção de elementos de outras religiões,
além de retirar os elementos considerados pela visão eurocentrista como “não
civilizados”, a exemplo da curiação5. Segundo Livio Sansone (2003)
A umbanda tem sido comumente vista pelos antropólogos (por exemplo,
Bastide, 1967; Ortiz, 1988) como uma forma “poluída” e “embranquecida”
de religião negra, uma vez que seu panteão inclui, além de um conjunto de
divindades de origem africana, elementos do espiritismo inspirados em Alain
Kardec, filósofo esotérico do fim do século XIX, diferentes tipos de magias e
alguns elementos do catolicismo popular. A umbanda continua muito popular
na classe baixa e na classe média baixa, mas raras vezes é tida como típica da
cultura negra. Na verdade, como me disse certa vez um umbandista, “a
umbanda é o Brasil, o candomblé é a África”. (SANSONE, 2003, p.105)

Portanto, a Umbanda seria, em parte, útil ao Estado devido ao seu caráter


“civilizador” das religiões de matrizes africanas, além de sua característica de
representatividade de uma religião mais “nacional”, questão que também é apontada por
José Henrique Motta de Oliveira (2009) quando este afirma que “[...] enquanto os
adeptos das religiosidades mais africanizadas buscavam legitimar suas práticas
exaltando a pureza das tradições nagô, os líderes do “movimento umbandista” fizeram
questão de apresentá-la como uma religião brasileira.” (OLIVEIRA, 2009, p.60). Era
este tipo de associação que o Estado almejava.
Sobre o gradual espaço adquirido por estes tipos de composição, Rita Amaral e
Vagner Gonçalves da Silva (2006) afirmam que: “Ainda que passível de polêmicas, o
registro destes gêneros demonstra o reconhecimento e a importância que vinham
assumindo como estilos próprios no mercado fonográfico a partir dos anos de 1930.”
(AMARAL; SILVA, 2006, p.197).
Outra gravação feita anteriormente a estas e que também trazia elementos das
religiões afro-brasileiras é Orobô. Composta por Cícero de Almeida e gravada por
Gusmão Lobo em março de 1930, a música foi catalogada pela gravadora Odeon como
“ponto de macumba”. A letra da música tem como personagem central a figura de um
preto-velho, designação dada a ancestrais africanos escravizados e que são cultuados na
umbanda, e ressalta em sua letra elementos característicos do cotidiano das religiões
afro-brasileiras. A composição diz o seguinte:

5
Processo de oferecimento de animais votivos aos orixás, chamado popularmente de sacrifício.

22
Preto véio fio do congo
Fica contente quando dança o jongo
Bate tamborim com a mão canhota
Lá vem a negraria de canela torta

Preto véio fica assanhado


Chama os campônio e vai pro terreiro
Oi sinhô, uma toda nesse mundo inteiro
Oi sinhô, uma toda nesse mundo inteiro

Mãe de samba lá de aruanda


Bebe jurema e dança de banda
Preto véio fica consolado
Se vê a mãe de samba com os ôios virado

Ê jerecum, e obí orobô


Maracutemba da lei de Nagô
Nesse terreno que papai chegou
Preto véio diz obí odò

Analisando o trecho da música que diz: “mãe de samba lá de aruanda / bebe


jurema e dança de banda / preto-velho fica consolado / se vê a mãe de samba com os
ôios virado”, podemos encontrar sinais de realização de culto seguido de transe. Mãe de
samba é um termo que pode ser utilizado para designar as Tias Baianas do Rio de
Janeiro, que ao mesmo tempo em que fazem em suas casas os rituais litúrgicos da
macumba (nome genérico atribuído inicialmente às religiões de matrizes africanas no
Rio de Janeiro), também são responsáveis pela parte profana destas tradições,
misturando música, comida e bebida em ambiente que, segundo Roberto Moura (1995)
e Hermano Vianna (1998) , teria dado origem ao samba. Quando o compositor diz: “O
preto-velho fica consolado se vê a mãe de samba com os ôios virado”, significa que o
fato da mãe-de-samba estar com os “ôios virado” demonstra que ela estaria realmente
incorporada, e que não se tratava de fingimento. A composição também traz outros
elementos relacionados às religiões afro-brasileiras como, por exemplo, a palavra
“Aruanda”, porto de partida dos escravos em Angola que acabou sendo concebido no
imaginário da diáspora como local mítico onde viviam os orixás; “Jurema”, planta
sagrada que dá origem a uma bebida ritualística de mesmo nome, e que também é um
reino místico e mítico onde vivem os encantados, segundo tradição religiosa nordestina;
além de apresentar também outros elementos rituais como o uso do Obí e do Orobô,
frutos dos quais as sementes são utilizadas nos rituais do candomblé.
Segundo Hermano Vianna (1995, p. 111): “Foi só nos anos 30 que o samba
carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo da
nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil passaram a ser considerados

23
regionais.”. Logo, dentro dos padrões de classificação musical do período, vários estilos
musicais que poderiam ser classificados como samba, devido, muitas vezes, à
predominância de elementos considerados “africanos”, acabaram assim recebendo
outras denominações, visando uma normatização do samba moldada segundo padrões
ocidentais. Já que agora o samba era considerado música nacional, teria de representar
então o “verdadeiro” viés nacional, que, segundo o padrão das elites, passava longe das
culturas tradicionais mantidas pelos negros.
O etnomusicólogo Carlos Sandroni (2010), ao analisar alguns fonogramas da
década de 30 que seriam pertencentes ao gênero samba, mas que foram catalogados na
época com outras designações como macumba, batuque e jongo, diz que:
Existe pois um certo número de gravações realizadas no período em exame,
que tem como tema principal o universo das religiões afro-brasileiras. Não
encontrei nenhuma cuja designação de gênero fosse ‘samba’. Estas gravações
envolveram personagens de destaque do mundo do samba, como
Pixinguinha, Donga e João da Baiana, pessoas que são geralmente
classificadas no Brasil como negros ou mulatos escuros. Nestas gravações a
designação de gênero escolhida é batuque, macumba, e jongo, mas não
samba. Isso acontece apesar do fato de que musicalmente não parece, numa
primeira abordagem, haver grande diferença em relação aos sambas gravados
no mesmo período (esta questão sugere a necessidade de um aprofundamento
da pesquisa). Demarca-se assim um domínio fonográfico onde a associação
com o africanismo é mais intensa, como sendo diferente do domínio do
samba. (SANDRONI, 2010, p.4)

Sandroni (2010), fala na possibilidade de um duplo pertencimento étnico de


indivíduos pertencentes ao mundo do samba, onde nos momentos em que estes faziam
músicas com temáticas voltadas para as religiões afro-brasileiras estas seriam
catalogadas com os rótulos citados acima, o que aproximaria estas músicas do gênero
folclore, designando assim uma identidade negra destes compositores, e ao comporem
sobre situações comuns do cotidiano, em temáticas que se aproximassem de um
universo não litúrgico, ou ao menos não voltado para as representações culturais
africanas, seriam estas composições rotuladas como samba e, portanto demonstraria
uma identidade “mulata” associada a estes compositores, mais condizente com um
padrão branco europeu.
A música Yaou africano de Pixinguinha e seu irmão Gastão Vianna é um
exemplo desse tipo de caso. Gravada em 1938 por Patricio Teixeira na RCA Victor, e
catalogada como Lundu (o que é corroborado por Xavier (2007) e Sandroni (2010)), o
estilo musical da canção não parece fugir muito ao padrão de outras feitas por
Pixinguinha e Gastão Viana no mesmo período, como é o caso do lado B do mesmo
disco, a música Mulata Baiana, também composta pela mesma dupla e gravada por

24
Patrício Teixeira, numa musicalidade relativamente próxima da outra composição,
porém aqui registrada como Samba Jongo, pois mesmo sendo considerada uma
musicalidade mais tradicional, por tratar de uma temática cotidiana, ela não é
relacionada diretamente com religiões de matrizes africanas. É importante notar que
enquanto as composições de Pixinguinha na década de 30 eram em parte catalogadas
como choro e samba, sendo Yaou Africano e algumas outras composições tradicionais
feitas em parceria com Donga e João da Baiana um caso à parte, a maioria das
composições feitas por Gastão Viana no período foi catalogada como Samba. Fora Yaou
Africano, as poucas que fogem a essa regra são exatamente as suas composições que
tratam de temática religiosa afro-brasileira, como nos casos de No Terreiro de Alibibi e
Mironga de Moça Branca, gravadas pelo Conjunto Tupi em 1932, e Meus Orixás,
gravada por Francisco Sena em 1933, que são catalogadas como Macumba. Marcelo
Xavier diz que: “[...] o compositor Gastão Viana tinha o hábito de utilizar palavras
africanas em suas letras.” (XAVIER, 2007), no caos específico em yorubá, idioma
africano dos grupos sudaneses, utilizado nos rituais litúrgicos dos terreiros de
candomblé. Isso fica evidente na composição Yaou Africano:
Akikó no terreiro
oi Pelu adié
Faz inveja pra gente
Que não tem mulhé

No jacutá de preto véio


Tem uma festa de yaô
Lá tem nega de Ogum
de Oxalá, de Iemanjá
Mucama de Oxóssi ,ê caçador
Ora, viva Nanã, Nanã Buruku

Yô, Yô
No terreiro de preto véio, Iaiá
Vamos saravá
A quem meu pai?
Xangô

A música fala na vivência do terreiro através de uma festa de Yaô, ritual de


iniciação dos neófitos no candomblé, utilizando termos yorubás como Akicó (galo), pelu
adié (peru que roda entre as galinhas) e jacutá (casa). Segundo Rita Amaral e Vagner
Gonçalves da Silva (2006):
Percebe-se, ainda, nessa composição, valores religiosos sendo afirmados para
o próprio grupo e para a sociedade mais ampla, um dos processos pelos quais
parcelas de significado religioso foram, aos poucos, transmitidas para outros
espaços, mais abertos, da cultura. (AMARAL; SILVA, 2006, p.196)

25
A inserção de elementos culturais africanos e das religiões afro-brasileiras ainda
era em uma escala pequena nas décadas de 30 e 40, devido, provavelmente, à
dificuldade de aceitação desses grupos na sociedade. As práticas modernizadoras do
Estado impeliam as manifestações populares tradicionais de cunho africano cada vez
mais para as periferias, promovendo uma verdadeira “limpeza” étnica nos grandes
centros urbanos, como ficou evidente no Rio de Janeiro desde as reformas empreendias
por Pereira Passos. Mesmo o apoio advindo de alguns grupos de intelectuais,
interessados na manutenção de certas tradições populares, não foi o suficiente para
conter o aumento do controle estatal sobre estes grupos.
Muitas práticas culturais mantidas por grupos negros e mestiços foram
marginalizadas e perseguidas pelos órgãos de repressão durante a era Vargas. Mário
Ribeiro dos Santos (2011) ao discutir a perseguição aos cultos afro-brasileiros ocorridas
no bairro recifense de Afogados durante as décadas de 30 e 40 demonstra como os
reflexos da intentona comunista (tentativa de golpe contra o governo de Vargas ocorrida
em 1935, durante a qual foram travadas batalhas no bairro) modificaram ainda mais as
práticas da localidade:
O acontecimento alterou significativamente o cotidiano do bairro, com a
circulação diária de soldados da Polícia Militar pelas ruas e becos; uma forma
de vigilância do comportamento social dos moradores, intensificando,
sobretudo, as perseguições e as proibições aos momentos de lazer e outras
práticas socioculturais protagonizados pela população afro-descendente. As
freqüentes batidas policiais nos Xangôs, o número de prisões de religiosos do
candomblé e o funcionamento clandestino de muitas casas de culto
constituem reflexos da atuação da imprensa e da ideologia defendida pelo
Estado no período. (SANTOS, 2011, p.3)

Em Pernambuco, as perseguições aos cultos de matrizes africanas e afro-


brasileiras tornam-se ainda mais intensas durante o Estado Novo, especialmente no
período o qual Agamenon Magalhães foi nomeado interventor. Esta política de
perseguição e normatização das práticas populares será constante durante todo o Estado
Novo, e em especial às religiões de matrizes africanas, visto que, como dito
anteriormente, o Estado mesmo desligado diretamente da Igreja utiliza-se a todo o
momento de referenciais cristãos em seus discursos, permitindo assim a criação do
imaginário de uma identidade nacional afastada dos cultos afros. Sobre esta época no
Recife, Francisco Mateus Carvalho Vidal (2008) diz que:
[...] os maracatus e xangôs vêem-se diante de um período de grandes
dificuldades para realização de suas práticas culturais com uma perseguição
ainda mais profilática contrabalanceada por um discurso de participação
popular no governo, de favorecimento das massas trabalhadoras. (VIDAL,
2008, p.5)

26
Deste modo, mais uma vez, é possível verificar que o discurso perpetuado pelo
Estado de um governo voltado para as massas seria apenas o de legitimar-se através de
pequenas concessões necessárias para fazer o povo sentir-se acolhido pelo regime. Este
ideário pode ser verificado no livreto Catecismo cívico do Brasil Novo, publicado em
1937, espécie de cartilha com perguntas e respostas destinada à “formação cívica das
crianças” (CAPELATO, 2003, p.124), num trecho de resposta que faz a seguinte
afirmação: “Obedecendo, portanto, ao Chefe que o representa, o povo, apenas, se
conforma com aquilo que ele próprio deseja e é executado pelo depositário de uma
autoridade por ele conferida.” (apud CAPELATO, 2003, p.124). Ou seja, o governo
sabe o que o povo “deseja” e, portanto, suas políticas públicas são voltadas para o
cumprimento da “vontade” das massas, homogeneizando assim suas vontades ao redor
dos próprios interesses do Estado.
Mesmo assim, é importante observarmos que o Estado foi um grande apoiador
do Samba e do Carnaval. Rachel Soihet (2003) afirma isto quando assinala que:
Vargas, a partir de sua ascensão, percebe o potencial do quadro vigente,
buscando valer-se da música popular e das agremiações carnavalescas como
veículo para a integração dos populares no projeto de construção da
nacionalidade. (SOIHET, 2003, p.309).

Porém, ainda segundo a autora, “[...] o carnaval constituía-se na manifestação


máxima dos populares, quando, de forma irreverente, utilizando-se da paródia, do
deboche, da inversão, traziam à tona suas tensões e insatisfações contra a opressão e a
discriminação que sofriam.” (SOIHET, 2003, p.302), tornando-se necessário deste
modo uma intervenção por parte do Estado nestas práticas populares, devido ao grande
poder questionador que agregavam em si. As “formas alternativas de organização”
criadas pelos populares através de suas manifestações culturais não teriam espaço no
governo de Vargas, visto que desta vez o povo teria no governo alguém que os
representasse, “o pai dos pobres” como ficou conhecido o presidente.
Apesar de todos os empecilhos criados pela máquina do Estado e à existência
ainda de um entrave nas classes médias a estes tipos de manifestações negras,
principalmente as religiosas, alguns compositores e intérpretes conseguiram se
sobressair nesse período e abrir espaço para estas temáticas nas companhias de disco,
mesmo em sua grande maioria não tendo obtido grande sucesso. Várias composições
serão ainda gravadas nesse período, a exemplo de: Candomblé (Oduré-Eriuá) e
Candomblé (Canto de Exú - Canto de Ogum) compostas por Felipe Neri da Conceição e

27
gravadas pelo conjunto Filhos de Nagô em 1931; Quilombô e Pisa no Toco de Getúlio
Marinho “Amor”, gravadas por João Quilombô em 1932; Palavra de Caboco, Rei do
Fogo, Nego de Pé Espaiado e Cadê Viramundo, compostas por J.B. de Carvalho e
gravas pelo Conjunto Tupi entre os anos 1931 e 1932; Sereia e Folha por Folha, de
Getúlio Marinho e João da Baiana, gravadas pelo próprio João da Baiana em 1938;
Lamento Negro de Humberto Porto & Constantino Silva, pelo Trio de Ouro em 1939;
Promessa de pescador de Dorival Caymmi, gravada por ele próprio em 1939 (sendo
esta sua primeira gravação como intérprete solo); entre algumas outras mais compostas
e gravadas no período e que abririam espaço na indústria fonográfica para um campo
cada vez mais crescente de músicas voltadas para as religiosidades de matrizes
africanas.
É importante identificarmos que a grande maioria dos compositores desse
período que abordam as religiões de matrizes africanas em suas obras são pertencentes
aos grupos sociais que as praticam. Alguns foram Pais-de-santo, como Elói Antero Dias
(o Mano Elói); muitos deles foram frequentadores das casas das tias baianas na Praça
Onze, como Pixinguinha6 e Getúlio Marinho, ou mesmo filhos delas, como Donga e
João da Baiana, criados dentro da vida social dos terreiros, participando das festas,
vivenciando a religiosidade e as tradições africanas. Fiéis ou ao menos frequentadores
esporádicos, convivem em seus cotidianos com estas manifestações, afinal, a música
popular (diga-se de passagem, o samba e suas vertentes) deve uma parte de suas origens
aos terreiros de macumba, local onde possivelmente se mantiveram mais vivas as
tradições culturais africanas.

1.4. Reconfigurações de África no Brasil

O início da década de 40 é marcado no Rio de Janeiro pela vinda do maestro


inglês Leopold Stokowski e da gravação do disco Native Brazilian Music7. Stokowski,
um entusiasta da música brasileira, veio ao Brasil à bordo do navio S.S. Uruguay com o
intuito de gravar músicas “tradicionais”, incumbindo o maestro brasileiro Heitor Villa-

6
Caroline Moreira Viana (2010) diz que “Pixinguinha, por exemplo, fora ogã de terreiro de candomblé”
(VIANA, 2010, p.127)
7
Traduz-se: Música nativa brasileira.

28
Lobos da tarefa de reunir a nata dos músicos populares brasileiros. Entre os convidados
para as sessões de gravação, que ocorreram no próprio navio, estavam os músicos
Pixinguinha, João da Baiana, Jararaca, Ratinho, Zé da Zilda, Janir Martins, Cartola (em
sua primeira gravação como intérprete) e Zé Espinguela. As gravações foram realizadas
entre os dias 7 e 8 de agosto de 1940 e lançadas em disco no ano de 1942, porém apenas
no exterior. O disco traz um importante registro do sambista, jornalista e pai-de-santo
Zé Espinguela, um dos fundadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira,
acompanhado pelo Grupo do Pai Alufá8. Entre as composições gravadas por Zé
Espinguela, três foram lançadas no disco: os pontos de macumba Macumba de Ochóce
e Macumba de Inhaçan, e o corimá9 Cantiga de festa, todas parcerias suas com Donga.
O jornalista Cristiano Bastos (2012) ao falar sobre o contexto histórico em que
estas sessões foram produzidas, pontua que:
A iniciativa que levou à gravação desses registros foi parte da chamada
“Política de Boa Vizinhança”, colocada em prática pelos Estados Unidos no
período de aproximação diplomática com países da América Latina, no
contexto da Segunda Guerra Mundial. (BASTOS, 2012)

Por mais que o disco Native Brazilian Music não tenha sido lançado no Brasil
até 1987, a gravação destas composições torna-se não só um importante registro do
período (são os únicos fonogramas lançados de Zé Espinguela), como também marcam
através de Stokowski o crescente interesse dos estrangeiros pela cultura dos grupos
tradicionais (que já era evidente em períodos anteriores através de figuras como o
maestro francês Darius Milhaud e o poeta Blaise Cendrars).
Os anos 40 marcam uma abrangência da intelectualidade negra em diversos
setores culturais e políticos. A formação da Orquestra Afro-Brasileira em 1942; a
criação do grupo Teatro Experimental do Negro em 1944, idealizado e dirigido por
Abdias do Nascimento; A ampliação das publicações da chamada Imprensa Negra, com
o lançamento do célebre jornal Quilombo, também dirigido por Abdias do Nascimento;
a formação de grupos antirracistas como a União dos Homens de Cor; entre vários
outros episódios. Gradualmente os grupos negros iam conquistando seu espaço na
sociedade, ainda que a duras cargas.
A Orquestra Afro-Brasileira, fundada pelo maestro mineiro Abigail Moura em
1942, é pioneira no contexto de abertura de novos espaços para as culturas musicais

8
O termo Alufá era utilizado na Bahia para designar os líderes religiosos mulçumanos, assim como para
designar os sacerdotes do culto de Ifá. Após a Revolta dos Malês na Bahia o uso desse termo passou a ser
proibido, passando assim os sacerdotes yorubás a serem designados como Babalaôs.
9
Ritmo tradicional de origem afro-brasileira, associado aos pontos de terreiro.

29
negras. Em um panfleto assinado pelo maestro e criador da Orquestra, ela era assim
definida:
A Orquestra Afro-Brasileira é um conjunto que divulga a arte e cultura
musical do negro no Brasil. Tem a sua estrutura rítmica nos instrumentos
bárbaros (de percussão), e harmônica nos instrumentos civilizados - piano-
saxofones-pistons e trombone. A minha música, creio, não sente a influência
do Jazz. Obedece, sim, a suas escolas: primitiva e contemporânea. (MOURA,
s.d.)

Ao afirmar a não identificação do grupo ao Jazz, ritmo desenvolvido por


comunidades afro-americanas nos Estados Unidos, o maestro conecta a sua
musicalidade a uma categorização afro-brasileira, voltada para as tradições de matrizes
africanas. Ao escrever sinfonias e outras peças eruditas pautadas nas tradições negras, o
maestro promove uma colonização da música “branca” pela negra, impondo os
instrumentos “bárbaros” sobre os “civilizados”.
A proposta mais restrita do grupo em ressaltar em suas composições e récitas um
repertório todo baseado nas culturas negro-africanas do Brasil levarão o grupo a ser
definido por Ricardo Cravo Albin (2006), em seu Dicionário Cravo Albin da Música
Popular Brasileira, como: “[...] um dos primeiros estritamente ligados à música afro-
brasileira.” (ALBIN, 2006). Entre os temas populares apresentados nos espetáculos do
grupo podemos encontrar: Jongos, Frevos, Maracatús, Lamentos, Batuques, motivos
folclóricos e temas de rituais afro-brasileiros. A relevância do grupo devido aos seus
padrões estético-musicais é apontada por Nei Lopes:
Utilizando trajes e instrumentos sacralizados, a orquestra executava, antes de
cada récita, rituais de purificação e propiciação, e sua proposta de trabalho foi
vista por Abdias do Nascimento como uma tentativa de abrir caminho a outra
etapa da música afro-brasileira, com a integração e a assimilação dos recursos
sonoros fornecidos por instrumentos "até então estranhos à África, mas não
ao Brasil.” (LOPES, 2004, p.124)

Abigail Moura, juntamente com Abdias do Nascimento e o poeta Solano


Trindade estiveram no centro de um movimento de tomada dos espaços culturais pelos
grupos negros, pautados na busca por suas heranças africanas. As estreitas ligações
entre estes grupos podem ser conferidas quando do lançamento da Orquestra no
auditório da UNE (União Nacional dos Estudantes) por Solano Trindade em 1944, e da
abertura feita por Abdias de Nascimento na apresentação do espetáculo do grupo no
Teatro Municipal, em 10 de dezembro de 1946. Abdias mantinha estreita ligação com a
Orquestra, chegando a utilizar os seus membros como músicos dos espetáculos
desenvolvidos pelo Teatro Experimental do Negro, além das constantes menções ao
grupo em seu jornal Quilombo, onde Abdias diz que a Orquestra realiza "[...] uma obra

30
das mais uteis e interessantes no setor da expressão musical do negro."
(NASCIMENTO, 1948, p.6).
Mesmo com a boa repercussão que a Orquestra Afro-Brasileira teve, fazendo
espetáculos na Escola Nacional de Música, na UNE, na Associação Brasileira de
Imprensa, no Teatro Municipal, entre outros, só terá seu primeiro registro gravado em
1957, o disco Obaluayê10, que entre os temas apresentados faz exaltações às
ancestralidades, religiosidades e elementos culturais africanos, representados através da
diáspora e da escravidão. Na música Saudação ao Rei Nagô, a letra inicia dizendo o
seguinte: "Rei vem logo da corte imperial / Vamos saudar nosso rei Xangô / Salve o
reino da linha yorubá / Salve o trono do meu rei nagô...”, evocando não só a questão da
religiosidade, através do orixá Xangô, como também ao exaltar o próprio orixá como
rei, rememorando a existência de reis, reinos e cortes na África, um passado que o
colonizador tentou apagar dos africanos escravizados, mas que nunca foi realmente
esquecido.

1.5. Melodias de terreiro em tempos de macumba

Em 1955 a Companhia Brasileira de Discos, Sinter, Lançou no mercado


fonográfico um disco intitulado Melodias de Terreiro – Pontos e Rituais, o qual se
propunha a apresentar “pontos rituais, curimbas e danças“ de terreiros, nesse caso, os de
Umbanda. O disco era composto de interpretações de quatro artistas, são eles: João da
Baiana, Heitor dos Prazeres, Ataulfo Alves e Jorge Fernandes. Os três primeiros são
conhecidos sambistas, enquanto o último era intérprete de músicas folclóricas. O disco
faz uma representação das religiões de matrizes africanas como pertencentes à
categorização de “folclore”, caracterizando assim as composições de cunho religioso
como algo exótico, assim como pode ser visto no texto de apresentação contido em seu
verso:
Entre as músicas do nosso folclore, encontram-se as originais do chamado
ritual de Umbanda, cuja prática se verifica em quase tôdas as localidades de
nossa terra. [...] Eis aqui, portanto, as composições que integram este LP.
Como pode se observar, trata-se de uma coletânea duplamente importante,
em seu aspecto musical e folclórico. (MELODIAS DE TERREIRO, 1955)

10
Orixá iorubano relacionado à varíola e às doenças infectocontagiosas. Também conhecido como
Omolú.

31
Podemos verificar que no período, as músicas rituais de origem afro-brasileira já
passam a ser categorizadas como Umbanda, por mais que atreladas a uma categorização
folclorizante. As composições contidas no disco caracterizam bem a Umbanda ao
transitar por temáticas tão distintas como os orixás africanos, os santos católicos, deuses
indígenas e entidades afro-brasileiras. Porém, o espaço atribuído a cada uma dessas
características pelo texto de apresentação acaba seguindo uma visão eurocêntrica, ao
afirmar que:
Nesses cantos de origem litúrgica e sentimental, estão entrelaçados à poesia
do europeu, em sua religiosidade católica, a súplica e o lamento dos negros
africanos, sob jugo do cativeiro, e tôda a nobreza dos ameríndios, com sua
índole guerreira e selvagem. Foi, nesta fonte tão rica de motivos, que foram
recolhidos, selecionados e ambientados, os pontos rituais, curimbas e danças
que compõem este Long-playing. Houve nesta escolha, o cuidado de agrupá-
los e cruzá-los dentro da mesma fôrça a que cada qual está ligado, evitando
assim, o chamado "choque de fôrças". (MELODIAS DE TERREIRO,
1955)

Como podemos verificar, o espaço de destaque nas influências formadoras de


um caráter afro-brasileiro é atribuído ao elemento europeu, que é apresentado em
primeiro lugar, ou seja, como característica primária, enquanto os outros elementos
constituidores são “entrelaçados” a este.
Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) apontam os fonogramas
lançados entre as décadas de 30 e 50 como perpetradores do modo exotizante como as
religiões de matrizes africanas eram vistas no Brasil, quando pontuam que:
Nesse período as músicas abordam a religiosidade afro-brasileira em termos
de seu caráter exótico, instrumental e misterioso. Esse universo, quando visto
nas letras das músicas, aparece ainda desorganizado e fragmentado, mas
deixando-se pressentir pelas alusões, pelo ritmo, pelo tom, pelas entrelinhas.
(AMARAL; SILVA, 2006, p.204)

O disco Melodias de Terreiro – Pontos e Rituais acabará ganhando três anos


depois uma nova edição, revisitada, composta por fonogramas adicionais e agora
intitulada como Macumba. Se o caráter exótico da primeira edição era em parte
amenizado pela definição das composições como pertencentes à categorização de
pontos de Umbanda, este novo disco, assim como as suas reedições11 nos anos
seguintes, irá perpetuar um estigma depreciativo referente às religiões de matrizes
africanas, o qual ainda é presente na sociedade brasileira.

11
O disco Macumba foi lançado no ano de 1958 pela Sinter e reeditado em 1968 pelo selo Fantasia. Em
1972 foi relançado na coleção No Tempo dos Bons Tempos da Phonogram, com o título Em Tempo de
Macumba.

32
Ao analisar o espaço existente na indústria para gravações com temáticas afro-
religiosas, além também da receptividade dos intérpretes e da inspiração dos
compositores, entre as décadas de 30 e 50, Rita Amaral e Vagner Gonçalves (2006)
afirmam:
Entre as décadas de 1930 e 1950 o crescimento das indústrias fonográfica e
cinematográfica e da radiodifusão trouxe consigo um grande impulso na
produção da música popular brasileira. Neste contexto as referências ao
universo religioso afro-brasileiro cresceram e praticamente todos os grandes
intérpretes gravaram alguma canção aludindo ao tema. (AMARAL; SILVA,
2006, p.203)

Porém, mais do que apenas compositores populares que eventualmente


gravavam alguma composição de inspiração afro-religiosa, e que em muitos casos isto
era apenas mais um artífice em suas grandes discografias, muitas pessoas ligadas mais
diretamente ao universo religioso dos cultos afro-brasileiros passaram também a
despontar na indústria fonográfica, chegando a gravar discos inteiramente voltados para
estas temáticas, como é o caso de João Alves de Torres Filho, o Joãozinho da Goméia e
Uruçu Silva do Amaral, o Sussu ou Baba Okê Sussu, líderes religiosos que tornaram-se
importantes intérpretes destas tradições musicais dos terreiros em discos. Fora estes,
intérpretes importantes ligados ao mundo do samba, mas também de tradição de
terreiro, como Heitor dos Prazeres e João da Baiana12, também fizeram uma série de
gravações voltadas às temáticas afro-religiosos, mantendo deste modo os vínculos com
suas ancestralidades africanas. Marília Flores Seixas de Oliveira e outros (2010), no
artigo Candomblé, natureza e sociedade: reinvenção da África mítica no Brasil,
apontam o papel desempenhado pelas religiosidades de matrizes africanas na
preservação e ressignificação de África na cultura brasileira:
A religião do candomblé atuou numa dimensão de fundamental importância
para os africanos trazidos para o Brasil, constituindo-se em espaço de
liberdade e recriação da vida simbólica. Como em outras formas de
resistência cultural, também na religião a identidade étnica afrobrasileira
permaneceu vinculando-se continuamente à ancestralidade original africana,
atualizando e reinventando sentidos de pertencimento à África mítica de
referência. Mitos, cantos e ritos negros atravessaram séculos de escravidão
ancorados em espaços sagrados, chegando até os dias de hoje, num processo
de vigorosa reelaboração da vida africana, permitindo a preservação de um
ethos específico que sobreviveu a várias pressões dos grupos dominantes,
como verdadeiros nichos de resistência cultural, espaços de re-organização de
suas estruturas sociais e culturais. (OLIVEIRA et al, 2010, p.14)

12
João da Baiana chegou a gravar um disco em parceria com Sussu, Batuques e Pontos de Macumba,
lançado pelo selo Odeon, no ano de 1957.

33
2. CONFIGURAÇÕES IMAGÉTICAS DE MATRIZES AFRICANAS

As décadas de 60 e 70 foram um período muito conturbado para as culturas


negras brasileiras. Havia uma cada vez maior identificação dos brasileiros enquanto
negros e pardos, o que pode ser verificado através do Censo Demográfico Brasileiro e
uma crescente identificação dos brasileiros com as culturas de matrizes africanas,
através da música, da culinária, das religiosidades, movimento que pode ser sentido em
todo o mundo neste período, e que teve grande influência através dos movimentos pelos
direitos humanos nos Estados Unidos, com grande relevo para os movimentos negros e
dos movimentos de independência dos países africanos.
A década de 60 é um período de grande ebulição cultural no Brasil, marcado
pelo surgimento de diversos movimentos artísticos, principalmente musicais,
influenciados em parte, por ritmos americanos como Jazz, Blues, Rock, Soul e Funk,
que ganhariam as suas próprias vertentes nacionais, além de uma maior valorização do
samba e de outros ritmos brasileiros considerados regionais. Neste período surgem
movimentos como a Bossa Nova, a Jovem Guarda, Tropicalismo e o Movimento Black
Rio, que são auxiliados por um amplo desenvolvimento dos meios de comunicação
como o rádio e a televisão, além de uma ampliação da indústria fonográfica.
A redescoberta das raízes africanas nas culturas americanas acaba firmando no
Brasil um processo de reafricanização das religiões de matrizes africanas, fazendo um
processo contrário ao que ocorreu a partir do surgimento da Umbanda, visto que agora a
referência principal para muitos religiosos voltava a ser a África. Sobre esta questão,
Rosalira dos Santos Oliveira (2009) afirma:
Não mais se busca o “nacional”, o “mestiço” e o “autenticamente brasileiro”
– representado, no imaginário, pela umbanda. Mas, sim, o “puro”, o
“autêntico”, o “exótico” e o “diferente”, apresentado agora pelo candomblé.
A própria denominação de “matriz africana” parece ter como objetivo
destacar essa vinculação direta entre a origem (matriz) e a
contemporaneidade dessas religiões. Desse modo, elas passam a ser pensadas
em função da sua contigüidade para com uma tradição específica e não mais
como um “mix” de tradições culturais distintas, tal como expressa o termo
“afro-brasileiro”. Enfim, não mais religiões sincréticas, mas, sim, africanas.
(OLIVEIRA, 2009, p.96)

O retorno à África, previsto por muitos líderes pan-africanistas, acabou


ocorrendo também no Brasil, mas aqui, muito mais através de um modelo imaginário do
que propriamente geográfico.

34
O movimento negro brasileiro acaba adquirindo grande respaldo em meio a estes
movimentos culturais e políticos, porém, as graduais conquistas ocorridas nos campos
étnico raciais acabam sendo esvaziadas a apartir do golpe militar de 1964. Segundo
Petrônio Domingues (2007):
O golpe militar de 1964 representou uma derrota, ainda que temporária, para
a luta política dos negros. Ele desarticulou uma coalizão de forças que
palmilhava no enfrentamento do “preconceito de cor” no país. Como
conseqüência, o Movimento Negro organizado entrou em refluxo. Seus
militantes eram estigmatizados e acusados pelos militares de criar um
problema que supostamente não existia, o racismo no Brasil. (DOMINGUES,
2007, p.111).

O estado passa então a mascar a questão do preconceito racial, através da tática


de negação de tal acontecimento no Brasil, resgatando os valores da “democracia
racial”, promovendo a exaltação da pátria e o resgate dos valores nacionais. Portanto,
para o regime militar, era como se não mais houvessem negros no Brasil, ainda mais
pessoas que identificassem-se com as culturas africanas. Todos agora eram brasileiros.
Verena Alberti e Amilcar Araújo Pereira (2007), afirmam que:
A idéia de que existe incompatibilidade entre a "afirmação como brasileiro" e
o "retorno à África" aparece com frequência na discussão sobre a questão
racial no Brasil [...] Muitos movimentos negros têm sido acusados, em
diferentes momentos, de "importar" questões estranhas à nacionalidade
brasileira, como se houvesse uma contradição entre afirmar-se como
descendentesde africanos e ser brasileiro. Essa tensão torna o processo de
constução da identidade de negro particularmente denso, especialmente no
caso de militantes do movimento. (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.28)

Todavia, se o movimento negro perde espaço na política, assim como iriam


perder também outros movimentos no Brasil, consegue alcançar seu espaço nos campos
da cultura, promovendo uma política cultural de exaltação ao negro e às ancestralidades
africanas, sua forma de afirmação e imposição perante o regime imposto pelos militares.
Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) apontam que um dos modos de
encontrados para burlar a censura do Estado no período por grupos intelectuais era
justamente a utilização das músicas temáticas religiosas afro-brasileiras:
A partir de 1964, com a instauração do Regime Militar, o meio artístico
musical mais engajado politicamente usou os temas da religiosidade afro-
brasileira como forma de falar às classes populares, seja em termos de
potencial de união e mobilização dessas religiões, seja como referência para
ação transformadora mais efetiva. (AMARAL; SILVA, 2006, p.205)

35
2.1. Os ecos que vem da África

As diferentes possibilidades de processamento do imaginário sobre África na


música brasileira demonstram como é ampla a gama de compreensões que podem ser
realizadas acerca do continente africano, baseadas não só no parco conhecimento
existente sobre este continente na história do país, como também na grande variedade de
culturas dos povos que aqui aportaram. E a partir disto, também, em como essas
musicalidades e culturas se processaram nos diferentes locais do Brasil, reprecessando-
se posteriormente como verdadeiras representantes das tradições de África. Segundo
Livio Sansone (2003):
No Brasil, em outras palavras, a “África” tem sido basicamente um produto
do sistema de relações raciais, mais do que uma entidade essencial e
imutável. A aceitarmos essa visão, portanto, não surpreende que essas forças
sociais tenham resultado na criação de uma África singularmente brasileira,
com a qual o conformismo e o protesto se identificaram, criando sua própria
“África”. (SANSONE, 2003, p.91).

A partir da década de 60, mesmo com um processo de Reafricanização13 nas


religiões afro-brasileiras, na busca de uma pureza pautada nas raízes africanas, há um
grande aumento na indústria fonográfica de discos produzidos com temáticas da
Umbanda, como pudemos observar em nossas pesquisas. Discos não só voltados ao
mercado afro-religioso, como também à música popular brasileira. Vagner Gonçalves
da Silva e Rita Amaral (2006) ressaltam o espaço alcançado por estas temáticas dentro
do amplo universo musical brasileiro deste período:
Nos anos de 1960, a música popular brasileira se encontrava num ponto
privilegiado de seu desenvolvimento. Absorvendo musicalidades de várias
origens e gêneros (como o rock, pop, black music, baladas italianas, etc.) e
diversificando seus próprios caminhos, surgem os movimentos da Jovem
Guarda, Bossa Nova, Tropicalismo, a “música de protesto” e de vanguarda
dos Festivais, entre outros. Os elementos das religiões afro-brasileiras
aparecem nas músicas de praticamente todos esses movimentos. (AMARAL;
SILVA, 2006, p.204).

Na década de 60, em tempos de Bossa Nova, movimento que Nei Lopes (2005)
definiu como uma tentativa de desafricanização da música negra nacional, devido a uma
redução da parte rítmica em sua musicalidade, surge o disco Coisas do maestro
pernambucano Moacir Santos, lançado em 1965, uma suíte afro-jazzística, dividida em
10 partes, todas chamadas de Coisas, o equivalente do maestro para o termo musical

13
Movimento de retomada das tradições religiosas consideradas de caráter mais puramente africanas.

36
Opus14. Santos foi um importante arranjador de discos de Bossa Nova, e nessa série de
composições apresenta um resgate das tradições africanas na música nacional, através
de uma roupagem orquestral que aproxima as peças do Jazz e da música erudita, um
disco que se aproxima da musicalidade Samba-Jazz15, mas que vai além deste rótulo,
chegando a lembrar em alguns momentos o disco Kenya, lançado em 1957, do jazzista
cubano Machito, que foi influente no cenário do Jazz afro-cubano em Nova York.
João Marcelo Zanoni Gomes (2009) em sua dissertação “Coisas” de Moacir
Santos realiza uma análise histórica e musical deste disco, demonstrando em alguns
momentos como as musicalidades desta obra conseguem remeter a um imaginário de
África, através do depoimento de diversos especialistas. O próprio autor comenta esta
atribuição do disco em relação ao montante da obra de Santos:
De fato, especialmente em relação ao Coisas, muito se fala a respeito da
linguagem harmônica particular do compositor, do uso da polirritmia de
origens africanas em seus arranjos e da forte presença de elementos da
música popular brasileira e latina em suas músicas [...]" (GOMES, 2009,
p.29).

As primeiras gravações da série Coisas, no entanto, foram feitas pelo violonista


Baden Powell de Aquino, em seu disco Baden Powell Swings With Jimmy Pratt,
lançado em 1962. Neste disco, Powell gravou as duas primeiras peças da série, Coisa
No. 1 e Coisa No. 2. Powell inclusive foi aluno de Santos, e atribuiu aos exercícios
musicais feitos pelo mestre a origem de seus Afro-sambas16, sobre o que João Marcelo
Zanoni Gomes (2009) afirma: “É frequente também vermos ambos os discos, Coisas e
Os afro-sambas, relacionados como pertencentes a um nicho de produção musical
ligado à valorização da cultura negra, que marcam forte presença nas composições de
ambos os discos.” (GOMES, 2009, p.42-43).

2.2. Afro-sambas

No ano de 1962, o poeta e compositor Vinícius de Moraes ganhou de seu amigo,


o compositor baiano Carlos Coqueijo, o disco Sambas de Roda e Candomblés da Bahia,
que tinha no seu lado A, gravações de toques de candomblé feitos por Olga de Alaketu,

14
Opus vem do latim, e significa obra, termo utilizado na música erudita para definir uma série de peças
conectadas umas às outras, e de numeração definida a partir de ordem cronológica das composições.
15
Gênero desenvolvido no Brasil na década de 1960, que apresenta uma síntese da Bossa Nova e dos
ritmos de Samba com Jazz norte-americano, particularmente Bebop e Cool Jazz. Disponível em:
<http://rateyourmusic.com/genre/Samba-Jazz/>. Acesso em: 22 jul. 2013. Tradução nossa.
16
POWELL, 2000 apud GOMES, 2009, p. 42. Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo,
Segundo caderno, de 24 de março de 2000.

37
do terreiro Ilé Axé Mariolajé, acompanhada por um coro, e no lado B, capoeiras e
sambas de roda interpretados por Mestre Bimba e coro. Moraes ficou tão impressionado
por aquelas musicalidades que apresentou o disco ao seu parceiro, o violonista Baden
Powell, que posteriormente em excursão pela Bahia, acabou tendo a oportunidade de
presenciar as manifestações culturais presentes naquele disco. O historiador da MPB,
Luiz Américo Lisboa Junior (2005), fala sobre este contato de Baden Powell com a
cultura negra baiana:
Em 1962 Baden visita a Bahia para apresentar um show com Silvia Teles no
Country Club, familiariza-se com artistas e intelectuais baianos, demonstra
seu interesse pelas tradições afro baianas e acaba sendo apresentado ao
capoeirista Canjiquinha que o leva a terreiros, rodas de capoeira e o mais
importante interpreta para ele os cânticos e sons do candomblé. Baden fica
fascinado, não propriamente pelo sentido místico do que vira, mas sim pela
beleza das harmonias do que ouvira. (JUNIOR, 2005).

Em seu retorno ao Rio de Janeiro, Powell acaba compondo o samba Berimbau,


com letra de Moraes, e a partir deste, inicia-se uma série de composições feitas pela
dupla toda com temática voltada às tradições culturais negro-brasileiras, com destaque
para as religiões de matrizes africanas. Algumas das composições deste período
entraram no disco Baden Powell à Vontade, de 1963, composto apenas por temas
instrumentais, entre os quais figuram Berimbau e Cadomblé. Outras ainda entraram no
disco Vinicius e Odette Lara, de 1963, como Labareda, Samba da Bênção e a versão
com letra de Berimbau, disco que contou com os arranjos do maestro Moacir Santos. Os
outros temas da série voltados a esta temática e compostos neste período, no entanto, só
vieram a serem gravados pela dupla em 1966, no disco Os Afro-Sambas. Mesmo que a
inspiração inicial para estas composições tenha vindo das religiosidades afro-baianas,
principalmente do Candomblé, outras referências religiosas também podem ser vistas,
através de composições voltadas a temáticas da Umbanda, como o Canto de Pedra
Preta, que fala sobre o caboclo Pedra Preta, e de Labareda, homenagem à pombagira
Labareda.
O disco Os Afro-Sambas, é considerado por Vagner Gonçalves da Silva e Rita
Amaral (2006) como “[...] um marco da presença das religiões afro-brasileiras na
MPB.” (AMARAL; SILVA, 2006, p.207), e por Luiz Américo Lisboa Junior (2005)
como “[...] definitivamente inserido como um dos mais importantes discos da música
popular brasileira [...]” (JUNIOR, 2005), não só pelo tratamento das temáticas,
praticamente todas voltadas às entidades afro-religiosas do Candomblé e da Umbanda,
mas principalmente pela sua estética musical, trazendo os instrumentos dos rituais de

38
terreiro, tocado usualmente por ogãs17 ou alagbês, para a musicalidade da MPB. O
próprio Vinícius de Moraes (1966), no texto da contra capa do disco, ressalta a
importância desta musicalidade construída por Baden Powell:
Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para
a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do
espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo
tempo uma dimensão mais universal. Tirante algumas experiências
características - como fez, por exemplo, meu querido e saudoso
amigo Jayme Ovalle com os "Três Pontos de Santo" - nunca os temas negros
de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza
rítmica como por exemplo esse "duende da floresta afro-brasileira de sons"
como eu disse de Baden Powell numa frase feliz. (MORAES, 1966).

O pesquisador Frank Michael Carlos Kuehn (2002), em seu artigo Estudo sobre
os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de Vinícius de Moraes e
Baden Powell: os “afro-sambas”, comenta sobre a associação da musicalidade do disco
com os terreiros de Candomblé:
Composição e arranjo do Canto de Xangô parecem recriar um ambiente de
terreiro. Nos ritos do candomblé, o agogô e os atabaques – distintos tanto em
tamanho e afinação quanto em sua função – são indispensáveis para a
realização do culto, fato que também esclarece porque estes instrumentos
participam de praticamente todas as faixas do disco. (KUEHN, 2002, p.12)

A busca pelas raízes africanas da música brasileira através das religiões de


matrizes africanas é algo perceptível na concepção das composições de Os Afro-
Sambas. No documentário Saravah, de 1969, dirigido pelo músico francês Pierre
Barouh, este afirma que Baden teria escrito canções de inspiração “tipicamente
africanas”, citando como exemplo a música Iemanjá, presente do disco Os Afro-
Sambas. Após ser feito este questionamento, Powell confirma: “completamente
africana18” (POWELL apud BAROUH, 1969). No documentário Powell figura como
fio condutor entre a geração da velha guarda, representada no filme por Pixinguinha,
João da Baiana e Clementina de Jesus, e a nova geração da MPB, representada aqui por
Maria Bethânia e Paulinho da Viola. O filme inicia e termina com a composição Samba
de Bênção, de Powell e Moraes, cantada no filme por Barouh e Powell, e gravada
originalmente por Moraes em 1963, no disco Vinicius & Odette Lara, que em sua letra,
traz os seguintes versos:
...Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração...

17
Designação genérica atribuída a diversas funções masculinas dentro dos terreiros de Candomblé, porém
mais comunmente associada às funções musicais litúrgicas. Também denominado de Alagbê.
18
Entrevista com Baden Powell presente no filme Saravah (1969), dirigido por Pierre Barouh.

39
Nestes versos podemos perceber a ligação feita pelo poeta entre as
manifestações negras tradicionais da Bahia e o Samba, denotando que a Bahia seria o
berço das musicalidades de matrizes africanas no Brasil, especialmente do Samba. Na
composição, também há a presença da saudação Saravá, típica de religiões de matrizes
africanas, um pedido de bênção, que Moraes faz na composição à Iyalorixá Mãe
Senhora, do terreiro baiano Ilê Axé Opô Afonjá, e a diversos sambistas tradicionais
como Pixinguinha, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, entre outros. Da letra da canção,
Barouh tirou o nome de sua gravadora e título do seu filme, Saravah, uma saudação à
música brasileira de raízes africanas, representadas aqui através das musicalidades e dos
artistas apresentados através de Baden Powell.
O trio de sambistas tradicionais presentes no filme de Barouh, representantes da
velha guarda do samba, Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus, foi
responsável um ano antes pela gravação do disco Gente da Antiga, lançado em 1968, e
produzido por Hermínio Bello de Carvalho. O disco é uma tentativa de resgatar as
raízes da música popular brasileira, através de suas vertentes africanas, e é composto
por choros, sambas, batucadas e curimás. Clementina de Jesus, que estreou em
gravações através do registro do espetáculo Rosa de Ouro, de 1965, lançou seu primeiro
disco solo em 1966, pela Odeon, e segundo Hugo Sukman (2005), ela faria “[...] a ponte
entre a moderna música brasileira e suas mais recônditas raízes africanas: a música dos
escravos, os batuques e pontos de candomblé.” (SUKMAN, 2005 apud GOMES, 2009,
p.44). Clementina pode ser vista como a reencarnação de uma África ancestral
diretamente pros palcos, e daí para o mercado fonográfico. Segundo Nei Lopes (2005):
Descoberta para a vida artística já sexagenária, afirmou-se como uma espécie
de “elo perdido” entre a ancestralidade musical africana e o samba urbano.
Seu trabalho de maior expressão fez-se através da interpretação de jongos,
lundus, sambas da tradição rural e cânticos rituais recriados, como o já
mencionado “Benguelê”, de Pixinguinha. (LOPES, 2005, p.6)

2.3. Os jovens sons africanos

Em 1972 a companhia de discos Riversong lançou no mercado o disco Tribo


Massáhi Estrelando Embaixador, um disco de produção precária, de pouca
receptividade para a época, mas que num processo de redescoberta dos sons africanos a
partir do ano 2000 virou um precioso item nas mãos dos colecionadores. O disco têm

40
dois grandes temas, Timolô Timodê no Lado A e Lido’s Square no Lado B, em formato
de jam session, duas grandes faixas contínuas subdivididas cada uma em quatro
composições. O disco da Tribo Massáhi é notável por propor tocar a ”música jovem
africana”, o que o certifica certo destaque em comparação com outros discos do
período, visto que enquanto a maioria dos artistas que tinham algum interesse nas
culturas africanas estavam mais preocupados com a questão da ancestralidade, o grupo
se identificava com o afro-funk feito no continente africano, absorvido de musicalidades
modernas vindas da América do Norte, como o Funk e o Soul. Não que a Tribo Massáhi
deixasse de lado a questão da ancestralidade, visto que entre seus temas são tratadas
personagens míticos ancestrais da cultura negra brasileira, como os preto-velhos, mas o
seu intuito de se conectar com o que estava acontecendo de novo nas sonoridades
africanas já demonstra um imaginário de África bem distinto do que era concebido no
período. O contato dos músicos brasileiros com a música moderna africana ainda era
muito restrito.
Outros grupos e artistas do período também incursionaram nessas novas sendas
da música funk e soul americana, misturando com musicalidades nacionais como o
samba, no movimento que ficou conhecido como Samba-rock. Porém alguns
penetraram mais forte nas levadas percussivas do groove, chegando a construir
sonoridades afro-funk e afro-rock, próximas aos estilos tocados por grupos jovens
africanos que despontavam por toda a África, em países como Nigéria, Ghana, Benin,
Costa do Marfim, Guiné, Angola, Togo e diversos outros. O grupo Free-Son foi um
destes. Em 1971 eles lançaram o disco Bengulê, repleto de guitarras psicodélicas,
teclados progressivos e instrumentos percussivos usuais no mundo do samba, como a
cuíca. Composto todos por temas instrumentais, as faixas possuem títulos como
Bahobab, Africana e Batá-Cotô, claras referências à tentativa de construir um
imaginário africano em torno do grupo, assim comoo título do disco, Bengulê,
corruptela de Benguela, cidade litorânea de Angola, que no Brasil também serviu para
designar os escravos vindos desta região (LOPES, 2005, p.114). Benguelê também é o
título de uma composição de Pixinguinha e Gastão Viana, e tem o sentido de um canto
de nostalgia, de saudade da terra africana deixada para trás.
Outro nome do período também foi muito importante para a percepção das
musicalidades vindas do continente africano. O cantor e compositor mineiro Marku
Ribas iniciou sua carreira solo lançando alguns discos durante a década de 70,
utilizando-se de vocalizações onomatopaicas e percussão corporal, e viajando para o

41
Caribe e para a África a fim de estabelecer contatos com a música desses locais. O
primeiro disco do cantor, Underground, lançado em 1973, tem levada Samba-Rock,
ritmo que estava em voga no período, misturando Samba, Rock, Jazz e Soul, e tem entre
suas músicas a canção N´biri N´biri, uma adaptação feita por Ribas para essa música
tradicional angolana. Inclusive as vocalizes e os títulos das canções presentes nos discos
de Ribas são bem próximas de idiomas angolanos como o Kimbundu e o Kikongo.A
ligação do cantor com a África era tão forte que ele foi o único brasileiro a participar
das festividades de independência da Namíbia, em 199019. Como ressalta o jornalista
Diego Ponce de Leon (2013): “Será pela raiz africana que Marku Ribas será lembrado.”
20
(LEON, 2013)
Outros artistas, porém, mesmo com o desejo de aproximarem-se de uma estética
sonora moderna africana, devido à dificuldade de terem acesso a essas sonoridades, só
puderam desenvolver algo similar posteriormente a essa época. É o caso do Grupo
Vissungo. Fundado em 1975, o grupo surge inicialmente com a ideia de pesquisar a
música negra feita por grupos tradicionais, e baseados na cultura angolana da qual dois
de seus membros fundadores seriam descendentes, os irmãos Luiz Antônio e Antônio
José do Espírito Santo, o Spirito Santo.
Antônio José do Espírito Santo (2007), pesquisador e vocalista do grupo, assim
caracteriza a proposta do Vissungo no período:
[...] a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de construir, a partir
desta pesquisa, um conceito de música negra brasileira moderna, coisa
impensável naquela época contraditória, onde a onda vanguardista da MPB
não chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra, espécie de
‘reserva técnica’ do folclore nacional. (SANTO, 2007)

Com apoio do historiador José Maria Nunes Pereira o grupo começa a ter maior
contato com as culturas africanas, percebendo após algum tempo a “grande similaridade
existente entre a cultura negra tradicional do Brasil e o que, em termos musicais, ocorria
na África contemporânea - notadamente Angola e Moçambique (SANTO, 2007). Após
algum tempo de vivência musical e de participar ativamente do Movimento Negro, os
membros do grupo acabam aproximando-se de artistas nacionais ligados às
manifestações negras tradicionais como a cantora Clementina de Jesus e o partideiro

19
Retirado do clipping de Marku Ribas no site Música Minas. Disponível em:
<http://musicaminas.com/uploads/listas/plusfiles/Marku_Ribas.pdf>. Acessado em: 22 de julho de 2013.
20
Matéria de Diego Ponce de Leon escrita por ocasião do falecimento de Marku Ribas no Correio
Braziliense. Publicada em 7 de abril de 2013. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2013/04/07/interna_brasil,359006/morre-em-
decorrencia-de-um-cancer-o-cantor-e-compositor-marku-ribas.shtml>. Acesso em: 15 jul. 2013.

42
Aniceto do Império. O grupo ainda chega a participar da trilha sonora do filme Chico
Rei, juntamente com Wagner Tiso, o único registro em disco na história do grupo.
Porém, só no final da década de 80 e início de 90, e através de excursões do grupo pelo
exterior é que eles conseguem se aproximar da sonoridade pop africana tão almejada
pelo grupo, o que levou-os a serem considerados como precursores do Afrobeat no
Brasil.

2.3.1. Conexão Brasil/África

A experiência africana, para os que tiveram acesso a ela, tornou-se um elemento


essencial para muitos compositores forjarem uma África diferente das concepções
tradicionalmente construídas no Brasil. O continente africano na década de setenta ainda
era caracterizado por um imaginário exotizante, de uma África selvagem, tribal,
miserável, o que contrastava com as experiências dos que chagavam lá e acabavam
enxergando uma realidade social bem próxima do Brasil. Foi o caso dos músicos
Gilberto Gil e Caetano Veloso, que acostumados com a África que eles percebiam na
Bahia, através das religiões de matrizes africanas e das tradições culturais negras,
impressionaram-se com a música jovem que era feita no continente, através de
sonoridades que envolviam o rock e o funk, através da utilização de instrumentos
elétricos, que os aproximavam dos novos sons forjados pelas periferiais globais que
tiveram acesso a estes instrumentos.
Gil e Caetano estiveram presentes na Nigéria, no ano de 1977, por ocasião do
FESTAC, Black and African Festival of Arts and Culture, realizado pelo governo
nigeriano e que reunia atrações de toda a África, além das vindas de outros países fora
do continente. Lá, além das atrações do festival, os músicos também tiveram contato
com outras atrações locais, como no caso em que Gil assistiu a um show do músico
nigeriano Fela Anikulapo Kuti, que estava boicotando o FESTAC, e que durante o
evento realizou espetáculos em sua própria casa de shows, o Shrine. As experiências
vividas por estes dois compositores na África refletiram-se nos discos que os artistas
lançaram naquele mesmo ano.
Após a experiência africana Caetano Veloso lançou Bicho, disco de 1977, que o
aproximou não só das culturas africanas como também do movimento Black Rio que

43
estava acontecendo no Brasil. Sobre sua experiência africana e o disco lançado a partir
desta Ana Maria Bahiana (2006) comenta:
Um dos álbuns mais controvertidos de Ceatano na década de 70 começou
com uma inocente e estimulante visita à África. A convite de Gilberto Gil,
frequentador do evento, Caetano foi a Lagos, na Nigéria, participar, em
janeiro de 1977, do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra. Foi uma
epifania - a música de raiz do continente africano não era estranha a Caetano,
é claro, mas foi o contato com a moderna música pop da Nigéria que operou
um verdadeiro curto-circuito criativo em sua mente inquieta. Com o rótulo
genérico de juju music, a moderna música africana, ao mesmo tempo tambor
e guitarra, metais e eletricidade, começava uma jornada que, dez anos depois,
dominaria a chamada worl music. (BAHIANA, 2006)

O disco de Caetano abre com a música Odara, palavra iorubana que significa
alegria, paz. A música, assim como as demais do disco, é um chamado à celebração, à
integração das etnias, repleto de um sentimento colaborativo africano que o músico
encontrou durante sua estadia na África.
A influência estética da experiência africana, no entanto é muito mais
perceptível no disco de Gil. Em 1977, após o retorno da África, Gilberto Gil gravou o
disco Refavela, uma declaração de amor às culturas africanas e afro-brasileiras, através
de muitos pontos culturais e sociais em comum encontrados pelo músico entre o Brasil
e a África. A ancestralidade africana é celebrada na obra pelo compositor através da
composição Babá Alapalá, sobre o Egun (espírito ancestral) de mesmo nome, ligado à
tradição familiar do orixá Xangô Aganjú. José Jorge de Carvalho (2003) no entanto, em
seu artigo A tradição musical iorubá no Brasil, em trecho em que fala sobre a presença
da influência iorubana na música popular brasileira, analisa a canção de Gil como
ausente destes traços característicos:
De Gilberto Gil tomemos a canção “Babá Alapalá”, do álbum Refavela , o qual reflete,
até nas fotos da capa, a viagem de Gil à Nigéria em 1977, por ocasião do FESTAC,
momento auge, portanto, de sua conexão com a cultura iorubá. A canção é
uma homenagem ao orixá Xangô Aganju e a Babá Alapalá, nome de um egun
muito conhecido na Nigéria e cujo culto continua vivo na Bahia, na Ilha de Itaparica, no
templo Ilê Agboula. A letra utiliza os sons da língua iorubá. Quando escutei essa música
pela primeira vez, no final do filme Tenda dos Milagres , de Nelson Pereira dos Santos,
pareceu-me fortemente “africana”, como se fosse um ícone da própria presença iorubá no
Brasil. Contudo, uma audição mais analítica permite constatar que sua textura rítmica é
inteiramente binária, não muito distante da música pop dançante, próxima do rock nacional.
Os poucos elementos de acentuação estão a cargo do contrabaixo e da guitarra,
porém todos os instrumentos obedecem ao compasso binário sem sequer
quebrarem os acentos em contratempos. A percussão não joga papel nenhum
no arranjo da canção. A impressão de influência iorubá se restringe, de fato,
às palavras Xangô Aganju e Babá Alapalá. (CARVALHO, 2003, p.14)

Porém, mais do que registrar apenas a ancestralidade cultural afro-brasileira em


sua obra, Gil teve o intuito de conectar-se com as novas influências culturais negras que
estavam surgindo no continente africano e no Brasil, como o próprio afirma em
44
entrevista: “O disco era pra isso, para registrar os ´afrorismos´ que havia na época –
como era a juju music de Balafon e os blocos afro-baianos de Ilê Ayê.” (GIL apud
FRÓES, 2002). No documentário África, Mundo Novo, dirigido por Hermano Penna,
que fala sobre o FESTAC 77, e que foi apresentado pela TV Cultura no mesmo ano da
realização do festival, o jornalista Sérgio Chapelin narra um texto sobre a participação
de Gil no festival que resume, em parte, a proposta do compositor no período:
Gil e seus companheiros cantam o reconhecimento de pertencerem a este
universo fascinante, África, mundo negro. No seu disco Refazenda, Gil
participa do mesmo impulso que move a atualiade cultural africana: refazer
suas bases e renascer. Ao mesmo tempo que afirma as origens africanas de
um fenômeno de origem moderna, o rock. (CHAPELIN apud PENNA,
1977).

No mesmo documentário, Gil também narra um pouco dessa sua odisseia


africana durante o festival, nos permitindo deste modo compreender o quanto as
experiências culturais adquiridas nesta viagem em particular, iriam refletir não só em
seu disco Refavela, mas em todos os momentos posteriores da carreira deste músico,
permitindo assim a constituição de um novo imaginário africano em sua obra:
Eu vim aqui cantar, cantei. Vi muita coisa. Gostei muito do povo, da gente. é
uma raça muito bonita, muito forte, muito íntegra. Muito monolítica. É uma
coisa muito bonita aqui na África. O meu trabalho, quer dizer, outro dia tava
conversando com o Perinho e ele dizia assim: a gente agora vai ter pelo
menos um ano agora para digerir essa África, esse mês de FESTAC. Eu tava
dizendo é mesmo, é muito pano pra manga, muita coisa a repensar, muita
coisa a reconstituir, depois que a gente estiver em casa, com os quadros da
integridade da nossa terra, cercados da nossa própria realidade, a gente vai
ver isso aqui, vai refletir sobre isso aqui. (GIL apud PENNA, 1977)

2.3.2. África Brasil

O compositor carioca Jorge Ben, ficou famoso na década de 60 pela batida


característica de seu violão e seu suíngue samba-rock, conseguindo desde lançamento
do seu primeiro disco em 1963 construir uma carreira sólida na MPB. Jorge Ben, no
entanto, passou na metade da década de 70 a fazer álbuns mais conceituais, esotéricos,
experimentais, como A Tábua de Esmeralda, de 1974; Gil & Jorge: Ogum, Xangô de
1975, em parceria com Gilberto Gil; e Solta o Pavão de 1975, todos discos sem grande
sucesso comercial no período, e que já iam demonstrando uma mudança conceitual na
obra deste autor. É no ano de 1976, porém, com o lançamento do disco África Brasil,
que essa mudança é mais aprofundada, através da troca definitiva do seu violão pela
guitarra elétrica, aproximando bastante o seu som do funk americano, que estava

45
bastante em voga também na África neste período. Luciana Xavier Oliveira (2012) fala
sobre esta mudança estética na sonoridade de Ben, ao apontar que:
Em relação aos temas abordados em África Brasil, mesmo que nem todas as
faixas falem sobre a questão afro-brasileira diretamente, esta ligação está
fortemente representada pela seleção de instrumentos e de procedimentos
rítmicos usualmente presentes nas músicas de matriz africana desenvolvidas
no Brasil. Assim, podemos compreender também como forma de
engajamento a esta proposta a constância na utilização do atabaque,
instrumento de percussão típico do candomblé brasileiro, e de congas e
tumbas, oriundos da tradição afro-cubana, empregados de forma a conferir
uma sonoridade mais acústica em contraposição aos outros instrumentos
eletrificados. (OLIVEIRA, 2012, p.166)

Este disco é marcado também pela presença de alguns músicos que seriam
responsáveis por forjar os novos sons negros da década de 70, como o saxofonista
Oberdan Magalhães, o baterista Wilson das Neves e o percussionista Djalma Correa.
A musicalidade de Ben vai modificando-se com o tempo, à medida que lança novos
trabalhos, porém, as temáticas tratadas em suas composições sempre transparecem
aspectos da cultura afro-brasileira, entremeados por temáticas falando de amor e da
brasilidade. Ao longo das décadas de 60 e 70 ele vai aos poucos ressaltando
características culturais da negritude e personagens negros históricos em canções como:
Dandara, Hei; Jeitão de Preto Velho; O Nascimento de Um Príncipe Africano; Maria
Conga; Negro é Lindo; Zumbi entre outras. É em África Brasil, no entanto que estas
temáticas serão mais explicitadas, em um disco que já em seu título evidencia a
proposta temática a ser abordada. Embora seja marcado também por temas filosóficos e
esotéricos, voltados para a orientalidade, como nas canções Hermes Trimegisto
Escreveu, O Filósofo e Taj Mahal, as canções voltadas a temáticas afro-brasileiras são
bem marcantes, como em Xica da Silva21, que fala sobre Francisca da Silva de Oliveira,
uma escrava brasileira que foi alforriada e casou-se com um rico contratador de
diamantes, atingindo grande ascensão social; Ponta de Lança Africano
(Umbabarauma), que fala sobre um jogador de futebol africano; África Brasil (Zumbi),
uma regravação de sua música Zumbi, lançada originalmente em 1974, que fala sobre o
líder quilombola Zumbi dos Palmares, que lutou contra a escravidão no Brasil; além de
duas composições que tratam sobre o santo católico São Jorge, A História de Jorge e
Cavaleiro do Cavalo Imaculado, bastante cultuado pela Umbanda e sincretizado com os
orixás Ogum e Oxóssi.

21
A canção foi composta para o filme homônimo, lançado em 1976 e dirigido por Cacá Diegues.

46
2.4. Os deuses negros da MPB

As religiões afro-brasileiras são os elementos de africanidade que são mais


facilmente observáveis nos registros fonográficos do período aqui analisado.
Constantemente exaltadas nas temáticas das composições do período, acabam firmando-
se como nicho mercadológico, e obtendo, o que a princípio nos aparenta, bons
resultados, devido ao montante de LP’s e Compactos lançados na época os quais nós
tivemos acesso.
O pesquisador de música negra Antônio José do Espírito Santo (2007), nos dá
um indicação do espaço existente no mercado fonográfico do período para estes tipos de
manifestações, ao assinalar que:
[...] apesar de se estar vivendo uma época (1978) de grande efervescência
cultural, musical principalmente, havia muita restrição - e até um certo
desprezo - por parte do meio musical em geral (e do mercado fonográfico em
particular), por abordagens artísticas voltadas, diretamente e de forma mais
aprofundada, para a cultura negra. Tolerava-se o Samba convencional e
algumas poucas propostas de forma genérica denominadas ‘Música Afro’,
geralmente adaptações de pontos religiosos tradicionais, extraídos do
Candomblé e da Umbanda. (SANTO, 2007)

O pesquisador Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos (2009) em artigo As Fontes


Fonográficas na Pesquisa da Música Tradicional, aponta a possibilidade de análise da
musicalidade das religiões de matrizes africanas através de seus registros fonográficos,
demonstrando como este tipo de material é escasso, algumas vezes mal registrado, e
como os acervos são muitas vezes sucateados, demonstrando porém algumas iniciativas
de preservação destes materiais, muitas vezes por pessoas ligadas a essas religiões. Em
meio à sua análise, Vasconcelos pontua o papel que a música popular brasileira exerce
sobre a divulgação destas religiões ao asseverar que:
Constatando uma certa precedência dos estudos literários e temáticos desses
diversos elementos presentes como referências nas canções populares, isto é,
das análises de sua contribuição na construção das letras dessa forma artística
muito peculiar, considero importante enfatizar a contribuição realmente
musical dos elementos afro-religiosos dentre os muitos que plasmaram essa
variada paleta de estilos que é a música popular do Brasil. Assim destacar os
elementos sonoros da música dos candomblés e religiões afro-brasileiras em
geral que podem ser detectados nas produções de música popular e entender
como se apresentam. Produções que tiveram e continuam a ter um elevado
grau de penetração em vários segmentos da sociedade brasileira e
consequentemente uma forte colaboração na construção de símbolos e
sentidos daquilo que possamos chamar de “imaginário popular”. E que, dessa
forma, fizeram com que muitos ouvintes desse gênero musical - ou
poderíamos até dizer “desses gêneros musicais”, considerando que a
abrangência do conjunto de seu repertório é muito ampla - tivessem os
primeiros conhecimentos sobre elementos da religiosidade afro-brasileira ou

47
a curiosidade aguçada sobre os mesmos a partir da fruição de suas obras.
(VASCONCELOS, 2009, p.14).

As citações às religiões afro-brasileiras na música popular brasileira são


constituídas de uma série de referências que vão desde a interpretação ou adaptação de
cantos, toques e pontos tradicionais de orixás, caboclos e mestres a pequenas inserções
dos elementos afro-religiosos em composições que versam sobre questões do cotidiano,
como “feitiços” e “despachos”, comunmente atribuídos a grupos religiosos de matrizes
africanas. Esse período da história brasileira começa a destacar-se como um período de
legitimação destes grupos religiosos, questão que ganha destaque através do Samba e da
MPB. Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) percebem a presença destes
universos afro-religiosos na música do período ao constatar que:
No final da década de 1960, o considerável aumento do número de músicas
que usavam de alguma forma termos do universo religioso afro-brasileiro
constituiu um amplo repertório que, visto em conjunto, pode ser entendido
como uma forma de “pedagogia” das religiões afrobrasileiras. (AMARAL;
SILVA, 2006, p.209).

Mesmo com havendo ligação de muitos compositores com terreiros de


Candomblé, os elementos da Umbanda em geral são os mais presentes na música deste
período, devido a uma série de motivos como: mais fácil assimilação pela parte leiga da
população, provavelmente devido à grande quantidade de elementos de outras religiões
utilizados nela; do grande número de adeptos da Umbanda; e pelo fato de que em geral
as casas de Umbanda são mais comunmente procuradas para atendimento à população
sobre questões tanto espirituais como físicas. É muito comum verificarmos a presença
de características sincréticas nas composições deste período. O compositor Wando, por
exemplo, lançou em 1976 uma composição chamada Jesus (Negro Bonito Dos Olhos
Azuis), na qual afirma que Jesus é Oxalá, sincretismo que é usualmente feito na
Umbanda, e que é simbolizado através da festa do Senhor do Bonfim. A dupla Gilberto
Gil e Caetano Veloso, também promoveram o discurso sincrético através da
composição São João, Xangô Menino, lançada em compacto em 1976 pelo conjunto
Doces Bárbaros, do qual Gil e Caetano participaram junto com Maria Bethânia e Gal
Costa.
Bethânia também teve esta característica do sincretismo presente em sua obra.
Bethânia foi iniciada no Candomblé em 1981, como filha de Iansã, porém, sempre teve
uma forte ligação com a Igreja Católica, conseguindo cultuar igualmente santos e
orixás. Em 1971, no disco A Tua Presença, Bethânia gravou a composição Dia 4 de

48
Dezembro, do compositor soteropolitano Tião Motorista, a qual fala sobre a festa
realizada no dia 4 de Dezembro em Salvador, em homenagem à santa católica Santa
Bárbara, quando também e celebrado o orixá Iansã, num momento em que as liturgias
católicas, candomblecistas e umbandistas se misturam:
No dia 4 de dezembro
Vou no mercado levar
Na baixa do sapateiro
Flores pra santa de lá

Bárbara santa guerreira


Quero a você exaltar
É Iansã verdadeira
A padroeira de lá...
Marlon de Souza Silva (2008), em artigo A religiosidade popular na obra de
Maria Bethânia, atribui entre outros, ao grupo de artistas baianos composto por
Bethânia e Caetano, a proliferação dos elementos das religiões afro-brasileiras na
música popular da década de 60, juntamente com Baden Powell e Vinícius de Moraes,
porém, as composições gravadas ou compostas por estes artistas com temáticas afro-
religiosas, tirando algumas exceções, não tiveram tanta repercussão no meio popular
quanto as composições de outros autores e intérpretes, mais voltados às temáticas
populares, como os pertencentes aos gêneros samba e brega.
Martinho da Vila e Clara Nunes estão entre os grandes disseminadores destas
temáticas. Pertencentes ao universo do samba, ambos possuem em suas obras
discográficas constantes referências ao universo afro-religioso brasileiro e ao continente
africano. Em seu disco Canta Canta, Minha Gente, de 1974, Martinho canta Festa de
Umbanda, uma seleção de toques de Umbanda onde são saudadas diversas entidades,
como Exu Tranca Rua, em O Sino da Igrejinha, e o Caboclo Sete Flechas, em Ponto de
Oxóssi, ou Ponto de Sete Flechas. Os temas afro-religiosos são constantes em sua obra,
como na música Jubiabá (1972), que fala sobre o Babalorixá baiano Severiano Manoel
de Abreu, e Camafeu (1971) sobre o capoeirista e filho de santo Camaféu de Oxóssi.
Matinho da Vila também tinha grande ligação com a música africana, principalmente
com os sons vindos de Angola, tendo gravado em 1973, Som Africano, música do
folclore angolano, e em 1977 Muadiakime, composição dos angolanos Bonga e Landa.
A cantora Clara Nunes, que no início de sua carreira transitou entre o bolero, a
música romântica e a jovem guarda, só conseguiu obter algum êxito em sua carreira
após ingressar no gênero samba e estabelecer relações com o universo das religiões
afro-brasileiras. Segundo Silvia Brügger (2008), essa mudança em sua carreira teria sido
iniciada após a viagem que a cantora realizou à África em 1971:

49
No início de 1971 fez sua primeira viagem à África, visitando Moçambique,
África do Sul e Angola, onde apresentou seu canto no primeiro concurso de
miss do país e conheceu danças populares. De volta, trouxe na bagagem
roupas, colares, peças de artesanato e muita inspiração para dar à África lugar
de destaque em sua carreira. (BRUGGER, 2008)

A influência dessa viagem torna-se perceptível na carreira da cantora através da


busca de uma identidade pautada na ancestralidade africana, período durante o qual ela
conta com o auxílio do radialista Adelzon Alves para a formulação desta nova identidade em
sua carreira, o que pode ser verificado principalmente a partir do disco Clara Nunes,
lançado em 1971, que entre outras, continha a música Misticismo da África ao Brasil,
composta por João Galvão, Vilmar Costa e Mário Pereira, a qual diz o seguinte:
Eu venho de Angola
Sou rei da magia
Minha terra é muito longe
Meu gongá é na Bahia
Agô ô ô ô
Lua alta
Som constante
Ressoam os atabaques
Lembrando a África distante...

Através desta composição podemos perceber a perpetuação do discurso da


cantora pautado na busca de uma África ancestral, berço da cultura brasileira com a qual
a cantora passa cada vez mais a se identificar, que é associada por ela constantemente às
questões religiosas, sendo representada principalmente através dos orixás. Clara Nunes
passa nesse período a apresentar-se em seus shows vestida de branco, como é
costumeiro nas celebrações de terreiros de Umbanda e Candomblé e a ressaltar
constantemente as temáticas do Candomblé e da Umbanda em sua obra, além de
assumir um discurso público de divulgadora das religiosidades afro-brasileiras. Segundo
Rachel Rua Baptista Bakke (2007) “O “retorno à África”, como fonte de tradição e de
legitimidade, foi tão significativo para a carreira de Clara Nunes, como foi, e ainda é,
para as religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé.” (BAKKE, 2008, p.88). Foi
realmente através dessa jornada à África que a cantora conseguiu estabelecer seu lugar
no mercado fonográfico, recorrendo constantemente aos temas afro-religiosos em sua
obra, o que levou Clara Nunes a receber o epíteto de "cantora de macumba" (BAKKE,
2008, p. 87), por mais que esta fosse apenas uma das características de seu amplo
repertório.
Outro que se destacou na divulgação das religiosidades ancestrais africanas foi o
trio vocal baiano Os Tincoãs. Surgido na década de 60, o trio era formado por Erivaldo,
Heraldo e Dadinho, todos da cidade de Cachoeira, e era voltado principalmente à

50
interpretação de boleros. Em 1962, com a saída de Erivaldo e a entrada de Mateus
Aleluia, o grupo passa a assumir uma identidade voltada à interpretação de cantos
sacros católicos e do Candomblé, e de tradições típicas baianas como o samba de roda e
a capoeira. Com o lançamento do seu primeiro disco, em 1973, o grupo assume
definitivamente a sua associação com a música afro-religiosa e afro-baiana, auxiliados
pela produção de Adelzon Alves, o mesmo que produzia Clara Nunes. Esta ligação do
trio com os aspectos do cotidiano baiano, associado aqui especificamente às tradições
culturais negras de origem afro-brasileira, é que permite a integração do grupo em um
espaço de evidência, como representantes de uma identidade afro-baiana que tinha
significativo destaque no período, por ser considerada como detentora mais fiel das
tradições africanas no Brasil. Segundo Livio Sansone (2003)
O estado da Bahia sempre desempenhou um papel central na construção da
“África” no Brasil. No passado, esse estado e a região que circunda sua
capital, Salvador (o Recôncavo), nem que fosse pelo simples tamanho de sua
população negra, despertou a atenção de viajantes, que a retrataram em seus
relatos como a “Roma Negra” — o maior conglomerado do que era
considerado como traços e tradições culturais africanos fora da África.
(SANSONE, 2003, p.93)

O trio chegou a gravar ainda mais 3 LP’s: O Africanto dos Tincoãs, de 1975, Os
Tincoãs, de 1977 e Afro Canto Coral Barroco, de 1983, este último ficando inédito por
20 anos, e a passar uma temporada em Angola, participando de projetos desenvolvidos
pela Secretaria de Estado da Cultura de Angola, e onde estabeleceram estreitas ligações
com as religiões tradicionais africanas (JUNIOR, 2005).
O percussionista pernambucano Naná Vasconcelos é outro legítimo
representante das tradições culturais de origem africana. Em 1971, início da
consolidação de sua carreira internacional, Vasconcelos gravou o disco Africadeus, pelo
selo francês Saravah, de propriedade do músico Pierre Barouh. O disco, basicamente
todo construído à base do berimbau, tem em seu lado A a composição Africadeus
(Concerto para Mãe Bio), na qual o percussionista presta homenagem a Severina
Paraíso da Silva, a Mãe Biu, Iyalorixá do Terreiro Santa Bárbara - Ilê Axé Oyá Meguê,
da Nação Xambá, comunidade que é categorizada como quilombo urbano, na cidade de
Olinda, Pernambuco, e da qual o músico foi ogã. A composição reassalta a tradição
ancestral afro-religiosa do músico, vivenciada no terreiro da Nação Xambá, através do
berimbau, instrumento africano de origem angolana. O próprio Naná Vasconcelos
(1971), em nota de apresentação, assim define o disco: “Africadeus marca uma etapa de

51
meu trabalho com o “Berimbau”, instrumento que é uma das bases musicais da
mitológica afro-brasileira.22” (VASCONCELOS, 1971).
2.4.1. MPB e religiões afro-brasileiras

A quantidade de composições com temáticas afro-religiosas do período é tão


intensa que mesmo alguns trabalhos acadêmicos voltados ao mapeamento destas obras
não conseguiram abranger amplamente o grosso da desta produção. Rita Amaral e
Vagner Gonçalves da Silva (2006), em seu texto Foi conta para todo canto: As
religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro, fazem um
breve panorama destas relações, mas a proposição do formato de artigo apenas nos
permite um vislumbre desta produção. Reginaldo Prandi (2005) também propõe
estabelecer um panorama das composições do período em sua pesquisa Orixás na
música popular brasileira, diretório de 761 letras da MPB com referências a orixás e
outros elementos das religiões afro-brasileiras, que abrange o recorte temporal de 1902
a 2000, porém, a dificuldade de acesso a muitos fonogramas, além do fato de que
muitos acervos fonográficos ainda não foram digitalizados, dificultam a realização de
uma pesquisa ainda mais ampla, necessitando muitas vezes da transcrição de letras de
composições que se encontram em péssimo estado de conservação, ou que tiveram
condições inferiores de registro. Ainda segundo Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos
(2009), falando sobre os acervos fonográficos dedicados à música afro-religiosa:
Tendo uma distribuição bastante irregular e restrita, são muitos vezes
oferecidos no mercado de produtos religiosos como itens de suporte ao
aprendizado de cantigas e toques, frequentemente em forma de cópias
irregulares, pirateadas e, conseqüentemente, com a escassez de referências e
informações confiáveis, já citadas acima, num grau extremo. Todavia
podemos dizer que esta também é uma característica semelhante às de muitos
segmentos de menor interesse comercial, em que se incluem os acervos de
música chamada “folclórica” ou “world music” ou outros termos como são
rotulados os registros sonoros de música tradicional em geral.
(VASCONCELOS, 2009, p.2).

Além de uma série de outros artistas que abordavam estas temáticas em seus
LP’s, os quais não pudemos abordar aqui, como João Donato, Candeia, Ruy Mauriti,
Sérgio Mendes, Cláudia, Zezé Motta, Noriel Vilela, Antonio Carlos & Jocafi, Osvaldo
Nunes, Bezerra da Silva, MPB-4, entre outros, boa parte desta produção afro-religiosa
das décadas de 60 e 70 foi lançado no formato de Compacto, através de artistas que
muitas vezes não conseguiram nem ao menos chegar a gravar no formato LP. Entre

22
“Africadeus marque une étape de mon travail avec le "Berimbau", instrument qui est une des bases
musicales de la mythologie afro-brésilienne.” (VASCONCELOS, 1971). Tradução nossa.

52
alguns destes fonogramas menos conhecidos do grande público, podemos citar: Maria
Creuza - Padê (1968), Osvaldo Nunes - Segura este Samba Ogunhê (1968), José
Ventura - Filho de Umbanda (1969), Matheus - Yemanjá (1971), Elymar - Prece a
Oxalá (1972), Barbosa - Seára de Oxalá (1973), Vanja Orico - Janaina (1974), Almir
Ricardi - Lá vem vovó (1975), Dora Lopes - Pai Edu (1976), Biga - Cao Cao Oba
(1977), Sosó da Bahia - A deusa das águas (1977), Raimundo José - Tá na hora do meu
santo baixar (1977), Amaro Jose - Obatala (1977), Dinalva - Reza do Congo (1977),
Carlos Jair - Berekete (1978), Vera de Ogum - O cantico de Nanã (1978), Fernando
Santos - As Iabás (1979), Ibejy - Ogun Yê segurou (197?), entre uma série de diversos
outros fonogramas, dos quais muitas vezes não é possível obter informações muito
precisas, quanto à data de lançamento e fichas técnicas das gravações, além da evidente
ausência de dados biográficos acessíveis sobre estes artistas.

2.5. Novas perspectivas de África

O final da década de 70 e início de 80 trazem novas perspectivas para o campo


das artes negras. O governo militar começar a arrefecer suas intervenções na sociedade
e os diferentes movimentos sociais, políticos e culturais começam a ganhar força
novamente. Segundo Lívio Sansone (2003):
A redemocratização do Brasil, a partir do início dos anos oitenta, trouxe uma
nova onda étnica e preparou o terreno para o surgimento de políticas de
identidade numa sociedade que, até esse momento, vivenciara uma poderosa
tradição universal. Essa nova “política da identidade” chega a receber apoio
dos aparelhos de Estado, mas também celebrada na arte e na cultura popular
através de inúmeras reinterpretações do “mito das três raças”. (SANSONE,
2003, p.98)

O ritmo Reggae, originário da Jamaica, ganhava força no país, ao mesmo tempo


em que surgiam em Salvador os primeiros blocos Afro, voltados à absorção das
musicalidades e de valores estéticos africanos, além da celebração da “Mãe África”. A
religião deixava de ser o principal meio de absorção de valores africanos no Brasil,
buscando-se agora outras referências externas para a compreensão deste fenômeno,
entre as quais várias vindas da própria África. Rachel Rua Baptista Bakke (2007)
analisa a mudança desses paradigmas no período ao constatar que:
Nos anos de 1970 e 1980 o candomblé ganhou as ruas, tornou-se enredo de
escola de samba, alegoria de blocos carnavalescos em Salvador, elemento de
trama de “novela das oito”, tema de música interpretadas por cantores
populares da MPB etc. O “retorno à África”, nesse contexto, ganhou outros

53
contornos que extrapolaram os limites da religião. Nesse período, muitos
artistas, assim como os sacerdotes de outrora, dirigiram-se à África, uma
África muitas vezes mítica e idealizada, no afã de redescobrir uma essência
de brasilidade, sobretudo negra, que passou a ser cantada nas rádios e TVs.
(BAKKE, 2007, p.88)

De fato, a construção de novas identidades africanizadas estava em voga, e podia


ser identificada através de cabelos, roupas, adereços, música, dança, pintura e tudo o
mais que pudesse remeter o imaginário dos indivíduos ao continente africano, pois,
segundo Livio Sansone (2003), no Brasil, “’Parecer africano’ ou ‘soar como africano’
são, na verdade, o que torna as coisas ‘africanas’.” (SANSONE, 2003, p.100).
A Bahia mais uma vez vira referencial nesse movimento de retorno a uma
estética africana, que ao mesmo tempo que busca a valorização dos antepassados
negros, procura vincular-se a uma África moderna, de grandes certos urbanos. Nesse
foco, além dos referenciais caribenhos de negritude, como o que fez surgir o Samba
Reggae, busca-se adquirir as referências diretamente da experiência africana. É o caso
do episódio citado por Goli Guerreiro (2000) no livro A trama dos tambores: a música
afro-pop de Salvador, em que Vera Lacerda, então presidente do bloco afro Ara Ketu,
teria sido enviada para o Senegal, e presenciado ao vivo uma apresentação do cantor
senegalês Yossou N’Dour, com uma banda formada por 30 percussionistas que atuavam
junto a instrumentos elétricos, como guitarra e contrabaixo, e que utilizava modernos
equipamentos eletrônicos (GUERREIRO, 2000, p.105). Guerreiro (2006) também
afirma a importância das viagens ao continente africano feito por dirigentes dos blocos
afro para a formação do imaginário construído pelos grupos de Samba Reggae:
O intercâmbio com os países africanos foi fundamental não somente para
ampliar a informação musical dos grupos negros, que conceberam o gênero,
mas também para o delineamento das diversas áfricas que alimentam o
imaginário dos blocos afro.

Porém, a informação vinda das musicalidades modernas feitas no continente


africano ainda era muito escassas, produto de uma indústria fonográfica nacional pouco
aberta a sonoridades consideradas como “não-convencionais” e que estivessem distante
dos largos padrões de consumo do abrangente mercado norte-americano. Lívio Sansone
(2003), ao abordar a questão do acesso a essas sonoridades no Brasil, afirma que:
A música pop africana moderna fez algumas incursões no mercado musical
brasileiro e, na verdade, quase não se encontra à venda, com a exceção
ocasional de algumas adaptações estilísticas adequadamente comercializadas,
como o disco Music for the Saints, compilado por Paul Simon. Em outras
palavras, os sons africanos — fonte importante de inspiração para a maioria
dos músicos brasileiros — são mais imaginados do que ouvidos. Os músicos
brasileiros só têm acesso à música africana quando viajam ao exterior, onde,

54
em muitos casos, residem e produzem seus discos. (SANSONE, 2003, p.120-
121).

Mesmo em uma época em que as barreiras internacionais começavam a serem


quebradas pela globalização, as musicalidades produzidas em um continente como o
africano, de onde foram retiradas muitas de nossas raízes musicais, ainda não eram
acessíveis no mercado brasileiro, restando aos músicos que ansiavam em conhecer estas
sonoridades, apelar ao mercado internacional, ou então construir os seus próprios
imaginários de África, com o que dispusessem ao seu redor.
Com o final dos anos 80, será a vez dos rappers assumirem esses discursos de
louvores à África, espelhados no movimento americano, e promovidos da através da
cultura de rua propagada nas periferias. As letras dos grupos passaram logo a deflagrar
uma consciência social das camadas mais pobres, falando sobre as condições inumanas
em que os negros vivam nas favelas, da discriminação, da violência, do racismo e da
possibilidade de conscientização dos negros, através da vivência da cultura Black. O
movimento Hip-hop, assim como o Reggae, estão entre os grande exaltadores da África
nas décadas de 80e 90, em um movimento mundial que vai adquirir um repercussão de
menor nível no Brasil, mas mesmo assim de abrangência considerável.
É partindo destes movimentos da década de 80, e com percepções voltadas para
os movimentos musicais de décadas anteriores, que nos anos 90 ocorre o surgimento de
uma série de grupos musicais voltados à junção das mais diversas referências sonoras,
capazes de misturar numa mesma proporção ritmos como: samba, funk, rock, jazz,
maracatu, rap, baião, punk, metal e reggae. Diversos movimentos musicais de períodos
anteriores a exemplo da Tropicália, da Jovem Guarda e do Movimento Black Rio foram
revisitados. Referências globais eram buscadas a todo o tempo, porém, mantendo ênfase
nas tradições locais. Foi esta mistura de referências que possibilitou a artistas da década
de 90 como Chico Science & Nação Zumbi, Planet Hemp, O Rappa, Mundo Livre S/A,
Mestre Ambrósio, Pedro Luís e a Parede, entre muitos outros, abrirem o caminho para
novas possibilidades de utilização das musicalidades de matrizes africanas, além de
possibilitarem a compreensão de novos meios de se chegar à África através da música.
O grupo pernambucano Chico Science & Nação Zumbi, surgido na década de
90, na cidade de Olinda, Pernambuco, era integrado por músicos vindos em sua maioria
da periferia. Promovendo uma mistura de estilos tradicionais como o maracatu, a
ciranda e o coco, todos de origens afro-brasileiras, como ritmos elétricos como o rock, o
funk e o rap, de origem afro-americana, o grupo foi um dos grandes disseminadores das

55
tradições culturais de matrizes africanas na década de 90. As músicas do grupo falam
em geral de situações do cotidiano, abordando o cotidiano da Região Metropolitana do
Recife e com um forte teor de crítica social. Chico Science & Nação Zumbi foram
responsáveis, junto a outros grupos surgidos no movimento cultural Manguebeat, por
resgatar tradições locais negras e dar-lhes uma roupagem global.
Diferente do proposto por Nei Lopes (2005), para quem o Manguebeat teria sido
responsável por uma modernização dos ritmos afro-nordestinos com o intuito de torná-
los menos “boçais” (LOPES, 2005, p.8), a proposta coletiva do movimento segue um
rumo distinto, não apenas de modernização do tradicional, mas também de
tradicionalização do moderno. Ao montar a Nação Zumbi, Chico Science, um grande
admirador da música negra norte-americana, tentou adaptar os arranjos de metais do
grupo do cantor James Brown, o JB’s, para as alfaias. Não seria este um modo de
adaptação do moderno, os metais funk do JB’S, para o tradicional, as alfaias tocadas
pelos centenários maracatus? Portanto, longe da “Intenção desafricanizadora” proposta
por Lopes (LOPES, 2005, p.8), este movimento, assim como outros subsequentes,
percebem muitas vezes uma África moderna, composta de culturas de uma
complexidade ainda distante de ser compreendida pela lógica ocidental.

56
3. AS (RE)APROPRIAÇÕES DE ÁFRICA NO SÉCULO XXI

A existência de uma série de manifestações culturais voltadas para as vertentes


africanas no início do século XXI se deve ao fato de um crescente interesse não só nas
tradições brasileiras de origens africanas, mas também dos processos culturais surgidos
a partir da diáspora africana em todo o mundo e principalmente devido a uma
(re)valorização e (re)descoberta do próprio continente africano.
Segundo o etnomusicólogo Paulo Dias (2009), foram as práticas de origem
africanas mantidas desde o fim do tráfico de escravos que foram responsáveis por
recriar esse interesse nas tradições e culturas africanas. Para ele:
A africanidade na música brasileira se deu sempre a partir da presença de
africanos no Brasil, e não de uma ligação direta com África. [...] Hoje
praticamente não há mais netos de africanos escravizados no Brasil. A
distância geracional da África se acentua. O que permanece de africano nas
musicalidades brasileiras vem sendo mantido pela memória, pelos pés e
gargantas, no que pode ser chamado de tradição viva afro-brasileira –
congadas, batuques de terreiro, religiões de matriz africana, sambas, bois,
quilombos etc. Trata-se de um universo vastíssimo, que tem corrido desde
sempre paralelo à cultura dominante, oficial ou dita “de mercado”, e só muito
recentemente, e a partir da década de 90 sobretudo, tem aparecido nas
mídias23. (DIAS, 2009)

Além destas tradições mantidas pelos folguedos populares, as religiosidades de


matrizes africanas também constituem elementos muito importantes nesse processo de
reconhecimento dos valores e estéticas africanos. A estrutura das manifestações
tradicionais existentes a partir dos terreiros é compreendia por Rita Amaral e Vagner
Gonçalves Silva (2006) como elemento aglutinador das culturas afro-brasileiras:
Sendo a música e a dança eixos centrais nas religiões afro-brasileiras, as
expressões culturais que lhes são afins, ainda que aparentemente entendidas
como não-religiosas, permanecem reconhecíveis também por essas vias.
Capoeira, carnaval, afoxé, maracatu, jongo, congada, etc. são algumas destas
expressões que, vistas de perto e em profundidade, podem revelar-se como
variações de uma estrutura que se repete em diferentes contextos e espaços.
Desse modo, a religião é capaz de aglutinar essas expressões ao seu redor,
constituindo um conjunto mais ou menos orgânico de referências passíveis de
serem entendidas e utilizadas como definidoras de uma “cultura afro-
brasileira”. A música popular brasileira, ao buscar os elementos mais
significativos dessa cultura, reafirma o papel da religiosidade como fundante
de um modo de ser brasileiro no qual sagrado e profano — expressos na
dança, na música, na magia, na festa, na comida, na luta etc. — não se
apartam. (AMARAL; SILVA, 2006, p.234)

23
Depoimento concedido por Paulo Dias para o Jornalista Jean-Yves de Neufville por ocasião de matéria
publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada "Africanidade musical brasileira". Publicada em:
maio de 2009. Disponível em:
<http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=258:african
idademusicabrasileira&catid=80:escritos&Itemid=89>.

57
Como podemos verificar, esse processo de busca dos elementos culturais de
origem africana no Brasil abarca não só os folguedos populares, como também as
religiões tradicionais, atingindo ainda outras áreas do conhecimento e de interação
social dos indivíduos, através de publicações especializadas no assunto e de revistas e
blogs na internet. A internet, aliás, torna-se uma ferramenta essencial para a
disseminação de conhecimentos sobre África na contemporaneidade. Mesmo que esta
presença de elementos africanos esteja tornando-se nesse período algo, para nós, cada
vez mais característico da produção musical brasileira, alguns especialistas, como é o
caso de Nei Lopes (2005) consideram exatamente o contrário, que está ocorrendo um
processo de desafricanização na música popular brasileira:
A presença africana na música brasileira, pelo menos em referências
expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita. Aparece, via Jamaica, no
carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas enredo das escolas cariocas e
paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades. Mas nada de
modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba e em outros
países do Caribe. [...] Acreditamos que a música popular brasileira, de raízes
tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo de
desafricanização ainda em curso. (LOPES, 2005, p.8).

O contraste apontado por alguns autores e músicos, sobre as representações de


africanidade na nova produção musical brasileira tem rendido uma série de discussões
que garantem uma renovação nas pesquisas da área. Numa época em que projetos de
reparação social são aplicados à população negra, editais que valorizam o resgate e a
manutenção de práticas culturais de origem afro-brasileiras são lançados
constantemente, em que o ensino da história e cultura afro-brasileira é tornado item
obrigatório nas escolas e universidades e em que as barreiras entre o continente africano
e o Brasil são gradualmente sobrepostas pela internet, a identificação dos diferentes
grupos sociais com as culturas produzidas pelas diversas etnias africanas e
afrodescendentes ao redor do globo tornam-se visíveis. Para Nestor Garcia Canclini
“Talvez a música seja o ambiente onde mais veloz e radicalmente estão sendo
reformulados os conceitos de local, nacional e global.” (GARCIA CANCLINNI, 2008,
p.62)
O etnomusicólogo Paulo Dias (2009), ao falar sobre as presenças de
africanidades na produção musical brasileira contemporânea, em paralelo com os
“grandes compositores” da MPB, afirma que:
A era dos grandes compositores parece que terminou. Não acho que, por isso,
“perdemos” o veio seminal da africanidade. Talvez estejamos atravessando
um interregno. De fato não há artistas do porte de Tom, Chico e Paulinho.

58
Porém, do lado de fora da música estritamente mercadológica, pipocam na
internet, no My Space, uma pequena multidão de artistas que bebem
diretamente do tradicional. Branquinhos classe média com formação na
Berklee (é assim que se escreve?) lado a lado com jovens oriundos de
comunidades negras, dos pontos de cultura que o Gil sabiamente ideou. O
acesso ao digital multiplica por mil os compositores, os cineastas, os poetas
(veja-se os saraus poéticos da periferia paulistana como o da Cooperifa e do
Panelafro). A rede é dos peixes miudos; foi-se o tempo em que reinavam só
os graúdos. Quem tem voz ativa hoje nas periferias superpopulosas de São
Paulo são os rappers, que se voltam cada vez mais para a África, ainda que
espiritual e ideologicamente em princípio – nem todos eles têm acesso aos
ancestrais saberes da África no Brasil, pois nas metrópoles, a tradição
mercantilizada já se torna conhecimento privativo dos acadêmicos e da
juventude bem-nascida e bem-informada da Vila Madalena e de Santa
Tereza24. (DIAS, 2009)

O número de artistas contemporâneos que se encaixam em um perfil de


disseminadores das culturas africanas é extenso. Provenientes de diversas classes sociais
e tendo variados níveis de formação, todos acabam em geral compactuando de um
interesse em comum: descobrir novas percepções de África. As línguas, as
religiosidades, as questões políticas, as tradições, os costumes, as musicalidades e mais
diferentes expressões artísticas servem de mote para a compreensão de um continente
tão amplo e tão complexo, cujas barreiras geográficas se estendem para além do
atlântico, desaguando através da diáspora nos mais diversos pontos do globo.
Neste capítulo discutiremos os sentidos de África atribuídos pelos artistas
contemporâneos através de suas obras fonográficas, e com base principalmente em seus
discursos, no intuito de que através destes possamos identificar aspectos contundentes
de um anseio em redescobrir as diversas Áfricas disseminadas pelo imaginário coletivo.
Entre os diversos artistas e grupos que iremos abordar aqui, podemos citar: Kiko
Dinucci, Juçara Marçal, Sambanzo, Rodrigo Campos, Criolo, Metá Metá, Afroelectro,
Nação Zumbi, Otto, Monjolo, Junio Barreto, Letieres Leite & Orquestra Rumpillez,
Digitaldubs, Anelis Assumpção, Abaymoy Afrobeat Orquestra, Bixiga 70, Iara Rennó,
Iconili, Pipo Pegoraro, Tibless, Tiganá Santana, entre alguns outros.

24
Depoimento concedido por Paulo Dias para o Jornalista Jean-Yves de Neufville por ocasião de matéria
publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada "Africanidade musical brasileira". Publicada em:
maio de 2009. Disponível em:
<http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=258:african
idademusicabrasileira&catid=80:escritos&Itemid=89>.

59
3.1. Kiko Dinucci e a África macarrônica

Em idos de 2004 surge em São Paulo o Bando Afromacarrônico, projeto de um


grupo de músicos paulistas que pretendiam fazer o “genuíno samba paulista”. Com o
andar dos shows e a gradual mudança de alguns integrantes, o Bando passou aos poucos
a incluir outras referências musicais em seu repertório: jongo, caxambú, cumbia, jazz,
macumba... moldando um som próprio, universal, mas sem nunca deixar de ser paulista.
O líder do grupo, o músico, compositor, artista plástico e cineasta, Kiko Dinucci,
nasceu em São Paulo em 1977 e foi criado em Guarulhos. Durante a infância ouvia os
sons que eram tocados pelos seus pais: música caipira, Samba, MPB... passou a ouvir
rock nacional por influência da irmã. Em sua adolescência cresceu ouvindo Rock e
Punk. Tocou guitarra em diversas bandas do bairro, e ainda jovem veio a se deparar
com o tradicional samba paulista, através de uma coleção de discos lançada pela Editora
Abril e distribuída em bancas de jornal, que entre os seus números tinha um dedicado
aos compositores Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Autênticos representantes do
samba paulista, tanto Adoniran como Vanzolini eram tradicionais cronistas urbanos,
que compunham sobre coisas do cotidiano de São Paulo.
Aos poucos, Dinucci foi moldando o seu som, trocando a guitarra pelo violão e
moldando um jeito próprio de tocar. Abandonou o meio do rock por achá-lo “limitado e
repetitivo25”, e acabou abraçando o samba, “Achava que punk mesmo era o Noel
Rosa26”. Porém, nunca abandonou completamente o rock, incorporando o seu estilo de
tocar guitarra, através de riffs, para o violão. Passou a ver no samba tocado pelos jovens
paulistas uma reprodução do modelo carioca: no repertório, no jeito de tocar, no visual.
Passou então a exaltar o samba tipicamente paulista, aquele feito por Paulo Vanzolini,
Adoniran Barbosa, Geraldo Filme, Germano Mathias... Juntamente a estas influências,
Dinucci vai somando à lista outros compositores paulistas, como Eduardo Gudin, Itamar
Assumpção, Arrigo Barnabé, o grupo Premeditando o Breque, entre outros, todos
responsáveis por moldar um som tipicamente paulista, e que segundo Dinucci
“cantaram São Paulo de um jeito espontâneo, natural e que além da crônica, também

25
Entrevista de Kiko Dinucci cedida Adriana Alves da Revista Rolling Stone por ocasião da matéria
Samba urbano sem caricatura , na Edição 12. Publicada em: setembro de 2007. Disponível em:
<http://rollingstone.com.br/edicao/12/kiko-dinucci>.
26
Idem.

60
narraram a cidade através dos sons, ou seja, a parte instrumental de suas canções
também traduziam sampa.27”
Junto a esse jeito paulista, do samba e da crônica urbana, da influência italiana
típica de bairros como o Bixiga, Kiko Dinucci foi criando interesse pelas influências
mais tradicionais, dos sons negros que ecoavam nas plantações de café paulistas.
Segundo Julio de Paula (2011):
A prática de ouvir sambas antigos, “de rádio”, como Donga e João da
Baiana, o levou a perceber uma forte aproximação dessas músicas com a
tradição dos terreiros. Antes, já acompanhava as danças negras de São Paulo,
como jongo e congada. Foi além. Passou a visitar as festas em casas
religiosas, escutando com atenção as batidas dos tambores e “tendo algumas
ideias”. (PAULA, 2011)

Em suas andanças por terreiros de candomblé e umbanda em São Paulo,


procurando referenciais musicais nestes universos, acabou se deparando bastante e
ficando extasiado com a figura de Exu28.
Em 2002, estava muito desanimado com a música, porque é uma arte onde
tudo é muito demorado, tudo é muito penoso. Nessa mesma época comecei a
ter interesse pelo candomblé, que é onde está grande parte do que usamos na
música brasileira. Ouvia muita música do candomblé e aí descobri que era
Exu de verdade. Porque todo mundo pensa que Exu é diabo, e na verdade
significa o movimento do mundo, é a energia vital, o que faz o mundo girar.
Então resolvi fazer o documentário sobre isso. Exu é o meu super-heroi, tem
todo um elemento transformador, está em todos os extremos. Botei na cabeça
que minha trajetória tem que ser que nem a dele, ter que ter dinâmica,
conversar com tudo!29 (DINUCCI, 2011)

De suas pesquisas sobre Exu, resolveu fazer um documentário, pois segundo ele:
“Me incomodava a falta de conhecimento e esclarecimento sobre Exu em todos os
sentidos. Sabemos que no imaginário brasileiro Exu é comparado ao Diabo do mundo
cristão, tudo isso apoiado numa grande falta de informação.30” Em dezembro de 2005
ele iniciou as filmagens do documentário Dança das Cabaças – Exu no Brasil, no qual
se propôs a fazer “[...] uma investigação poética sobre a divindade africana Exu no
imaginário brasileiro.31” A ideia inicial de Dinucci era fazer algo referente a isso na
esfera musical, ou mesmo textual, mas segundo o autor :

27
Entrevista de Kiko Dinucci concedida ao blog EuOvo. Publicada em: 28 de feverereiro de 2010.
Disponível em: <http://euovo.blogspot.com.br/2009/04/o-samba-manco-de-kiki-dinucci-e-o-bando.html>.
28
Orixá mensageiro, protetor dos caminhos, aquele que guarda as encruzilhadas. Além de ser cultuado
como orixá no Candomblé, Exú também é cultuado como entidade em outras religiões, como Umbanda,
Quimabanda, Jurema, etc...
29
Entrevista cedida a Larissa Saram do Colherada Cultural - 21 de julho de 2011.
30
Trecho do texto Por Que Exu? de Kiko Dinucci, postado no blog do documentário Dança das Cabaças
– Exu no Brasil. Publicado em: Setembro de 2006. Disponível em:
<http://dancadascabacas.blogspot.com.br/2006/09/idia-inicial-de-realizar-o-documentrio.html>.
31
Trecho do release do documentário de 2006. Disponível em: <http://vimeo.com/1436330>.

61
[...] optei pelo formato audiovisual, já que existiam bons textos escritos por
sociólogos, antropólogos e etnologos, à exemplo de Roger Bastide, Pierre
Fatumbi Verger, Arthur Ramos, Nina Rodrigues, , Sergio Ferretti, Reginaldo
Prandi, Juana Elbein dos Santos entre outros. 32(DINUCCI, 2006)

Da vivência nos terreiros durante as filmagens foram surgindo uma série de


inspirações para as suas composições. Foi segundo o compositor nesse período que
foram surgindo suas ligações mais profundas com as questões “afro”:
[...] na época que eu tava fazendo o filme eu fiquei acho que, uns dez meses
sem compor nada né, depois começou a vir coisas relacionadas ao
candomblé, meu samba não tinha ligação nenhuma com o candomblé assim,
ele era muito na linha do Vanzolini, do Adoniran, né, era de certa maneira
muito branco assim, muito italianado mesmo né, o afro do afromacarrônico
veio depois assim, ele chegou depois33. (DINUCCI, 2008)

Entre as composições surgidas no período, algumas eram consideradas pelo


autor como “vinhetas”, as quais ele acreditava que não renderiam num disco. Porém,
ainda em 2006 ele inicia o processo de gravação de um disco, junto com a cantora
Juçara Marçal, surgido de um projeto que havia sido iniciado em 2005 com o espetáculo
"A toda hora rola uma história", composto de clássicos da música brasileira e
composições de Dinucci. O disco reunia algumas das composições criadas por Kiko
Dinucci a partir da experiência do documentário, e foi intitulado Padê34. O Padê é a
comida votiva de Exu, o qual segundo a tradição tem de comer sempre antes dos outros
orixás. Exu é o responsável por abrir os caminhos, por isso se oferece primeiro o seu
alimento para em seguida dar início a qualquer atividade ou trabalho religioso. E é
seguindo essa lógica que Juçara e Kiko abrem o disco:
Abre o caminho
Sentinela está na porta

Abre o caminho
Pro mensageiro passar

Laroyê

As temáticas compostas por Dinucci para este trabalho transitam entre o


Candomblé e a Umbanda, através do sincretismo presente nas letras das canções que
misturam orixás e santos católicos, juntando São Jorge com Ogum e Xangô com São

32
Trecho do texto Por Que Exu? de Kiko Dinucci, postado no blog do documentário Dança das Cabaças
– Exu no Brasil. Publicado em: setembro de 2006. Disponível em:
<http://dancadascabacas.blogspot.com.br/2006/09/idia-inicial-de-realizar-o-documentrio.html>.
33
Entrevista cedida ao programa Radiola Urbana 62, com André Maleronka, Filipe Luna e Ramiro
Zwetsch. 2008. Disponível em: <http://blog.revistaurbana.com.br/?p=959>.
34
Comida votiva de Exu. Segundo a tradição, Exu é o Orixá que come primeiro, pois ele é o responsável
por abrir os caminhos. Só depois que lhe for oferecido o Padê (farofa feita com dendê) é que os trabalhos
podem ter início.

62
João Batista na canção Machado de Xangô,35 e mesmo tratando de outras entidades
como os caboclos, em Cabocla Jurema36, características presentes nos cultos paulistas
da Umbanda; ou mesmo na louvação às formas de culto dos orixás yorubanos como em
Atotô, música em homenagem ao orixá Omolu.
Após a gravação de Padê, Kiko Dinucci dará continuidade ao Bando
Afromacarrônico gravando o primeiro registro do grupo, o Afro – EP – Macarrônico,
com uma pegada forte nos ritmos afro-brasileiros tradicionais do sudeste, tendo o samba
como fio condutor. As influências africanas ficam mais visíveis aos poucos como na
composição Santa Bamba, parceria de Dinucci com Fabiano Ramos Torres, inspirada
nos candomblés de tradição Angola-Congo e composta em Kimbundo37. Lançado de
forma independente, o EP38 abrirá espaço para o lançamento do primeiro disco do
grupo, Pastiche Nagô, sob o nome de Kiko Dinucci e Bando Afromacarrônico. O disco
é composto de seis músicas inéditas, mais as 4 músicas do EP como bônus.
O nome do disco faz uma brincadeira de mistura que está incutida no próprio
nome do grupo. O termo Afromacarrônico é uma miscelânea de africano com o
macarrônico (língua mal falada, misturada, assim como o macarrão), uma espécie de
mistura entre as tradições negras brasileiras de origens africanas com o paulistano de
ascedência italiana. Já o nagô traria incluso em si a mesma lógica, de mistura, assim
como o gênero literário e fílmico Pastiche, uma colagem composta de diversas
referências, o nagô africano como parte dessa mistura heterogênea, onde torna-se difícil
discernir o que é africano e o que é brasileiro. Kiko Dinucci define o disco da seguinte
forma:
O CD Pastiche Nagô é voltado à sonoridade paulistana, no qual os ritmos são
nitidamente influenciados pela música africana e se manifestam de maneira
cosmopolita, trafegando pelo samba, maxixe, música caribenha e
principalmente por heranças da cultura bantu e yoruba oriunda dos cultos
afro-religiosos difundidos no Brasil39. (DINUCCI, junho de 2008)

Os africanismos ficam mais presentes na obra de Kiko Dinucci a partir deste


disco, principalmente devido às parcerias com o compositor Douglas Germano. Rainha

35
No final da canção Machado De Xangô é cantado um tradicional ponto de Umbanda, Meu Pai São
João Batista é Xangô.
36
A Jurema é uma planta sagrada da qual é feita uma bebida ritualística de origem indígena, além de ser
uma religião sincrética nordestina que mistura características religiosas negras, europeias e indígenas, e
também o reino sagrado onde habitam os encantados, caboclos e mestres com os quais a Jurema trabalha.
A chegada desta tradição no sudeste acabou antropomorfizando a Jurema na figura de uma cabocla.
37
Idioma pretencente ao grupo lingústico bantu, falado no noroeste de Angola.
38
Sigla de Extended-Play, formato de disco que fica entre o Single (ou Compacto) e o Álbum.
39
Release do disco Pastiche Nagô escrito por Kiko Dinucci em seu blog Afromacarrônico. Publicado em:
junho de 2008. Disponível em: <http://afromacarronico.blogspot.com.br/2008/06/pastiche-nag.html>.

63
das Cabaças, parceria entre Dinucci e Germano, fala sobre o orixá Yemanjá, rainha de
todas as cabeças (ori), exaltando uma qualidade específica do orixá, Awoió, qualidade
mais antiga do orixá. Outro orixá exaltado no disco é mais uma vez Exu, dessa vez
numa composição escrita por Douglas Germano, Padê Onã, na qual diz:
Laroyê Bará
Abra o caminho dos passos
Abra o caminho do olhar
Abra caminho seguro para eu passar

Laroyê Eleguá
Tomba o mal de joelhos
Só levantando o Ogó
Dobra a força dos braços que eu vou só

Laroyê Legbá
Guarda Ilê, Onã, Orum
Coba xirê deste funfum
Cuida de mim que eu vou pra te saudar!

No início de cada estrofe da música é feita a saudação a Exu, Laroyê, seguida da


qualidade do Exu a que se saúda: Bará, Eleguá, Legbá. De cada Exu que se fala vão
sendo feitos os pedidos respectivos: pede-se a Bará que abra os caminhos; a Eleguá que
tombe o mal de joelho levantando o Ogó (ferramenta ritual de Exú, representando o
falo, símbolo da virilidade masculina) e que dê forças; a Legbá que guarde o Ilê (casa),
o Onã (caminho) e o Orum (plano supremo, onde vivem os orixás). É estabelecida uma
relação de troca, onde o filho cuida do Orixá, o saúda, faz suas obrigações, em troca de
que este o ajude. O título da composição estabelece bem essa relação de troca: Padê
Onã, ou seja, a comida votiva que é oferecida para Exu, a cerimônia feita em sua
celebração, o Padê, em troca de que este abra os caminhos (Onã).

3.1.1. Metá Metá: a tríade iorubana

Após o Pastiche Nagô Dinucci montou e participou de outros projetos, como o


Duo Moviola, com o parceiro Douglas Germano, e o Na Boca dos Outros, disco de
composições suas interpretadas por outras pessoas, porém ambos projetos são voltados
mais para o lado de cronista urbano do compositor. Porém, a continuidade da parceria
nos palcos com Juçara Marçal acabou rendendo um projeto que iria fincar as matrizes
africanas na carreira de ambos, quando após uma série de shows do Padê em que
tocaram apenas os dois juntos, decidiram chamar o saxofonista Thiago França (que fez

64
os arranjos de sopro do Na Boca dos Outros) para fazer participação em um show, daí
surgiu o mote para o Metá Metá.
O termo metá-metá vem do iorubá, e tem o significado de tríade. O orixá
iorubano Logunedé é considerado um orixá metá-metá, pois este possui características
do seu pai Oxóssi e de sua mãe Oxum, que são acrescidas às características do próprio
Logunedé, formando uma espécie de três em um. Assim é a tríade do grupo Metá Metá,
reunindo a voz de Juçara Marçal, o violão de Kiko Dinucci e o sax e flauta de Thiago
França.
Os shows iniciais do projeto serviram como uma continuidade do Padê,
explorando as temáticas africanas a partir dos orixás iorubanos, com referências à
umbanda e ainda às crônicas urbanas. O Metá-Metá tem dois discos lançados: Metá
Metá (2011) e MetaL MetaL (2012). O primeiro disco do grupo praticamente define
uma linha divisória entre a crônica e o imaginário religioso afro-brasileiro, como dois
lados de um mesmo disco. Na segunda parte, a louvação aos orixás é acrescida de ritmo,
bateria e percussão (tocadas por Sergio Machado e Samba Sam respectivamente),
evocando a ancestralidade africana através de Oranian, Xangô, Oxum e Obatalá. Porém,
não apenas a parte rítmica caracteriza o universo africano presente no disco, mas
também a melódica, através da polifonia presente na musicalidade dos povos bantus.
Segundo o próprio Dinucci falando sobre o primeiro disco do Metá Metá:
É engraçado, mas se for prestar atenção, o lado A é mais africano que o B,
porque trabalhamos com uma polifonia mais intensa e sem nenhum auxílio
de percussão. Aqui no Brasil, a tradição oral deve ser encarada de um jeito
menos romântico. Se soubermos escrever, vamos escrever, anotar, cantar
yoruba correto nos templos, isso é possível hoje. Na Nigéria, o pessoal já
escreve em yoruba nas universidades, vamos levar isso pra frente40.
(DINUCCI, 2011)

O segundo disco do grupo, batizado de MetaL MetaL, além de ser tocado agora
pela banda completa (Marcelo Cabral no baixo, Sérgio Machado na bateria e Samba
Sam na percussão), traz em todas as suas músicas, exceto uma (Tristeza Não, de Itamar
Assumpção), a presença do universo religioso afro-brasileiro. O disco abre com Exu,
canção composta em iorubá por Kiko Dinucci, evocando o mensageiro dos orixás.
Assim como nas cerimônias do candomblé, o orixá aqui é evocado solicitando a
abertura dos caminhos, a continuidade dos trabalhos, evocando o respeito à tradição da
hierarquia presente nos terreiros de candomblé. O universo da mitologia ancestral

40
Entrevista cedida por Kiko Dinucci a Júlio Rennó para a revista Outros Críticos. Publicada em 26 de
outubro de 2011. Disponível em: <http://outroscriticos.blogspot.com.br/2011/10/entrevista-kiko-dinucci-
meta-meta.html>.

65
africana é representado no disco através elementos característicos de cada orixá
representado, como pode ser visto na composição Orunmila, parceria de Kiko Dinucci e
Douglas Germano:
O destino desenhou
Traço de odu
Adivinhação
Dança circular
Voz oracular
Onda vai e vem
Futuro também

Se o presente já morreu
Um segundo atrás
Quem matou fui eu
Chão, pegada, rastro
De quem já passou
Um enredo a mais
Em 16 finais

Palavra de Ifá
Ikin e opelê
Ou erindilogun
No pó de ierosun
Palavra de Ifá
Jogada no opon
Direto do orun

O destino desvendou
Quantos eu serei
Do mais pobre ao rei
Com o olho avante
Que enxerga atrás
E que compreende
Todos os sinais

Se o presente renasceu
Um segundo a frente
Quem gerou fui eu
E o tempo reluta
Como um embrião
Perseguindo a vida
Solto na amplidão

Palavra de Ifá
Ikin e opelê
Ou erindilogun
No pó de ierosun
Palavra de Ifá
Jogada no opon
Direto do orun

Orunmila é o orixá da sabedoria, do conhecimento e do destino. É ele que


através do oráculo de Ifá desvenda os destinos dos homens, e de como fazer para mudá-
los. O sistema de adivinhação é feito pelo Babalawo, e consiste em sua base num jogo
com 16 conchas ou nozes. Cada caída de conchas abertas ou fechadas representa um

66
odu (destino), dum total de 16 odus maiores, que se desmembram em 256 possíveis
situações baseadas nas histórias dos orixás, que é de onde o Babalawo tira a resposta
para encontrar uma solução para o consulente. Ou seja, o caminho e vivência dos orixás
se repetem em seus filhos, e de suas experiências são retirados os exemplos que devem
ser seguidos por estes.
Além das temáticas afro-religiosas abordadas no disco do Metá Metá, outra
questão importante é a musicalidade. O disco apresenta polirritmias que são presentes
nas tradições musicais africanas, além de uma influência forte do Afrobeat, em faixas
como Oyá e Orunmila. O Afrobeat acaba se demonstrando como uma importante
conexão entre diversos grupos desta cena, que mesmo não sendo caracterizada
exclusivamente por este estilo musical, tem nele um fio condutor que permeia a obra da
grande maioria, e acaba sendo muitas vezes o elemento que faz com que estes artistas
criem um vínculo maior com a África, uma sensação de pertencimento, e daí partam
para desvendá-la, assim como aconteceu com e elo que se estabeleceu através das
religiões afro-brasileiras com os compositores e músicos de períodos anteriores.

3.2. Afrobeat / afro-brasileiro

O Afrobeat é um gênero musical desenvolvido pelo nigeriano Fela Anikulapo


Kuti, durante a década de 70, um misto de Funk e Soul norte-americanos com música
tradicional africana. Mais do que apenas um gênero musical, o Afrobeat possui uma
gênese politizada, de contestação, levando o pesquisador Albert Oikelome (2010) a
considerá-lo como uma “[...] arma de luta e emancipação política.” (OIKELOME, 2010,
p.5).
Um dos motivos para tantas influências do Afrobeat no Brasil a partir desta nova
geração de músicos, visto que já se passaram 16 desde a morte de Fela Kuti, pode ser
identificado através de um revival global do gênero, iniciado a partir de Nova York no
final de década de 90. Discos são relançados, livros e matérias são escritos,
documentários são produzidos e até um musical foi feito na Broadway com a pretensão
de ser lançado um filme. Cada vez mais grupos são influenciados pelo gênero criado por
Kuti em escala global, porém, com o tempo, chegando a desenvolver características
próprias que levam o gênero a outros caminhos, no que concerne não só a seus padrões

67
musicais mas também do conteúdo de suas letras, o que levou o pesquisador Albert
Oikelome (2010), em seu artigo Stylistic Analysis of Afrobeat Music of Fela Anikulapo Kuti,
a constatar que:
With the benefit of hindsight, there will be much development in Afrobeat
music in the near future. Since we have exponents springing up from all over
the world, there is no doubt that the fusion of the music will include materials
from other countries where the genre is being performed. The lyrical content
of Afrobeat will receive a deviation from the massive political messages
typical of Felá’s Afrobeat. At present, there is the down-playing of political
songs in favour of love songs. An example is the Antibalas Afrobeat group in
New York. They started with oppositional music but met with brick walls
with their listening audience who wanted music for relaxation instead of
war.41 (OIKELOME, 2010, p.16)

No Brasil o crescimento do estilo é bastante visível. O espaço que a mídia vem


dando a Fela Kuti e ao Afrobeat nos últimos anos chama atenção. Soma-se a isso o fato
da abrangência da internet no acesso a novas descobertas sonoras e as possibilidades de
reelaboração do gênero segundo padrões brasileiros. O produtor americano Victor Rice,
em entrevista ao jornalista José Flávio Júnior (2012), faz um paralelo entre os
acontecimentos políticos em Nova York e São Paulo quando do surgimento de uma
cena musical Afrobeat nestas cidades:
Produtor do álbum da Bixiga 70 e baixista da Antibalas em algumas ocasiões,
o norte-americano Victor Rice lembra que a febre afrobeat em Nova York
começou durante a gestão do prefeito linha-dura Rudolph Giuliani e traça um
paralelo com a capital paulista: “Faz sentido que o afrobeat esteja forte em
São Paulo agora, pois a cidade passa por um momento conservador, sob o
governo de Gilberto Kassab. Na tentativa de compensar o clima pesado, os
artistas produzem coisas mais vibrantes. Dançar é necessário para aliviar a
tensão – uma resposta natural”42. (JÚNIOR, 2012, p.2)

Um dos projetos da cena paulista que bebe nessa fonte do Afrobeat é o


Sambanzo. Capitaneado pelo saxofonista Thiago França, e tendo Kiko Dinucci nas
guitarras, o grupo mistura gafieira, jazz, afrobeat, latinidades e pontos de terreiro,
fazendo referências às matrizes africanas de muitas das sonoridades pelas quais ele
percorre seu repertório. Sambanzo pode ser interpretado como um samba nostálgico,

41
Com o benefício da retrospectiva, haverá grande desenvolvimento na música Afrobeat num futuro
próximo. Uma vez que temos expoentes surgindo de todo o mundo, não há dúvida de que a fusão da
música incluirá elementos provenientes de outros países em que o género está tocado.O conteúdo lírico
do Afrobeat receberá um desvio do conteúdo político das mensagens típicas do Afrobeat de Fela. No
momento, está havendo uma diminuição do significado das canções políticas em favor de canções de
amor. Um exemplo é o grupo Antibalas Afrobeat de Nova York. Eles começaram fazendo música de
oposição, mas depararam-se com uma barreira diante de seus ouvintes que preferiam música para relaxar
ao invés de guerra. (Tradução nossa)
42
Entrevista de Victor Rice concedida a José Flávio Júnior por ocasião da matéria Bandas revivem o
afrobeat de Fela Kuti. Publicada em 9 de março de 2012. Disponível em:
<http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/entretenimento/noticias/bandas-revivem-o-afrobeat-de-fela-
kuti?page=3>.

68
que louva as suas origens africanas e afro-brasileiras, assim como faz a incorporação de
outros ritmos que tem suas origens na diáspora, como o Afrobeat, que foi criado em
África, mas que partiu de referências diaspóricas como o Funk, o Soul e o Jazz.
Ao mesmo tempo em que o Afrobeat é apresentado como uma inspiração
musical, como quando Thiago França diz que “O afrobeat no Sambanzo não é estudado.
É deixar tocar.43” (FRANÇA, 2011), ele também é concebido apenas enquanto
representação estética, como pode ser visto na fala de França sobre o Metá Metá:
[...] nosso afrobeat é o avesso do afrobeat. O que é isso? Acho que a única
coisa que a gente pegou do afrobeat foi assim: ‘Putz, a música tem 15
minutos! A gente pode fazer uma música de 15 minutos também.’ O
Afrobeat tem os elementos muito definidos, a levada de batera, as dinâmicas.
O Fela [Kuti] é muito performático, a composição dos arranjos é muita coisa
de performance. Faz muito sentido você assistindo. É meio cênico e tal. E a
gente não tem isso, é uma coisa mais orgânica. É muito mais misturadão, é
mais orgia, é meio selvagem44. (FRANÇA, 2012)

Através de duas falas distintas deste músico, podemos perceber a amplitude de


sentidos que são possíveis de atribuir ao Afrobeat, de uma função musical a estética,
passando pela sua função política, dependendo do que o interlocutor almeja através de
sua utilização.
Uma das marcas características do Afrobeat é exatamente a musicalidade. A
junção de ritmos tradicionais africanos com os da diáspora, a exemplo do Funk, é o que
moldam a marca da sonoridade criada por Fela Kuti. E é exatamente na parte rítmica
que se destaca o seu referencial, e que acaba servindo de molde para a apropriação e
ressignificação por muitos artistas brasileiros. A gênese rítmica deste estilo é
concentrada justamente no baterista de Fela, Tony Allen, que é quem vai moldar o ritmo
do Afrobeat. E essa influência do baterista será sentida em diversos artistas que rodeiam
o gênero, como é possível identificar na fala do rapper Bernardo Santos, o Bnegão,
membro do Planet Hemp e líder do grupo Seletores de Frequência:
O impressionante é o RG da batida dele. Sinceramente, acho que o afrobeat
não seria como conhecemos hoje se Fela tivesse outro baterista ao seu lado.
O Tony Allen era o cara do ritmo e os dois estavam juntos nos Estados
Unidos quando pensaram no conceito do afrobeat45. (SANTOS, 2012)

43
Entrevista de Thiago França concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
44
Entrevista do Metá Metá concedida a Renan Simão do blog e-colab. Publicada em 13 de maio de 2012.
Disponível em: <http://e-colab.blogspot.com.br/2012/05/entrevista-meta-meta.html>.
45
Depoimento de Bnegão cedido ao jornalista e DJ Ramiro Zwetsch, por ocasião da matéria Tony Allen:
o RG do Afrobeat, publicada no Estadão em 28 de abril de 2012. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,tony-allen-o-rg-do-afrobeat,866477,0.htm>.

69
O baterista Pupillo, da banda pernambucana Nação Zumbi, também se declarou
fã do trabalho de Tony Allen, do qual é possível perceber alguma influência na
sonoridade desenvolvida por ele. Em entrevista feita em 2003, ao ser perguntado sobre
as suas influências sonoras mais recentes ele afirmou:
Pupillo: Eu tenho pirado muito em afrobeat. Tenho escutado muito Fela Kuti,
muito Tony Allen (o baterista de Fela Kuti). Eles fizeram um som maneiro
pra caramba, uma mistura de jazz com afrofunk. Eu tenho pirado muito nisso.
Sem falar no dub que é uma parada que a banda inteira ouve pra caramba.
Ska, música jamaicana, basicamente música negra. Onde a música negra
estiver espalhada tenho pirado muito porque é muito forte ritmicamente 46.
(PUPILLO, 2003)

Estas influências também são visíveis em seu próprio grupo, a Nação Zumbi,
que chegou a fazer no palco referência direta a Fela Kuti, tocando um trecho da música
de Kuti, Mr. Follow Follow, em show com o projeto paralelo Orquestra Manguefônica,
em 2005, no SESC Pompéia. Pupillo chegou ainda a participar com Allen do evento
Brasilintime: Batucada com Discos, ocorrido no ano de 2006, em São Paulo, projeto
que juntava em suas apresentações renomados bateristas com um time de DJ’s
especialistas na arte dos toca-discos.
Outro músico que ressalta a influência do ritmo em sua obra é o maestro baiano
Letieres Leite. Famoso por fazer arranjos para artistas de Axé Music, Leite teria tido
contato com o som de Fela ainda na década de 70 em Salvador, mas em seus discos o
que fica mais latente são as sonoridades afro-baianas e o afro-jazz, por mais que o
maestro ainda pretenda montar um grupo mais voltado ao Afrobeat47. Sobre a
proximidade sonora e afetiva de Letieres com Fela Kuti e com o Afrobeat, ele afirma:
Não é necessariamente na estética musical que pode estar a coincidência, mas
na intenção subjetiva. É aí que acontecem as semelhanças. A nossa
preocupação de mostrar a nossa música afro-cêntrica dentro de uma visão de
rigor, organização e elaboração é uma atitude de missão. Não tocamos com a
influência da música pop do momento, como o Fela tinha com o soul music
ou o groove. Mas eu percebo na música da Rumpilezz muito de linhas
repetitivas de baixo, que é uma característica do afrobeat.48 (LEITE, 2012,
p.2)

Ao ser indagado sobre a repercussão do Afrobeat nos últimos anos no Brasil,


Leite faz um questionamento sobre como se dá o acesso e a identificação dos diferentes
grupos sociais com o estilo, quando diz que:

46
Entrevista realizada com Pupillo em 2003, retirada do site Nordesteweb. Disponível em:
<http://www.nordesteweb.com/not10_1203/ne_not_20031228a.htm>.
47
Entrevista de Letieres Leite concedida a Vinicius Gorgulho da Revista Raça Brasil Ed. 168, por ocasião
da matéria Modernizando a ancestralidade afro-baiana. Publicada em junho de 2012. Disponível em:
<http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/168/artigo262454-2.asp>.
48
Idem

70
Negros longe do afrobeat é um fato, isso merece uma boa discussão, um
entendimento. Acontece no Rio e em São Paulo, aqui em Salvador menos. O
pessoal que produz o afrobeat de Salvador está na periferia, vem do final da
década de 70, num bairro da Liberdade, em Salvador, onde tiveram alguns
músicos. É ao contrário de São Paulo onde só a classe média teve acesso à
música afro, porque as informações estão circulando dentro desse ambiente
virtual, então as pessoas privilegiadas no acesso à internet conhecem
primeiro49. (LEITE, 2012)

As referências do Afrobeat em geral no Brasil acabam sendo mais visíveis


através de seu caráter estético do que político. A abordagem da questão política de Fela
Kuti através dos músicos brasileiros acaba então tomando outro viés, não mais de um
discurso panfletário contra o poder vigente, mas mesmo assim não deixa de ser política.
Ela é política na medida em que busca a afirmação de uma estética africana, das
tradições negras tão renegadas pela sociedade ocidental, elevando as culturalidades
africanas ao status de um saber primordial. É esta escolha pela afirmação das
identidades africanas, um engajamento pela valorização da cultura, que caracteriza em
geral o fazer político do discurso brasileiro acerca do Afrobeat. Stuart Hall aborda a
questão da quebra do paradigma dessas identidades tradicionais no mundo moderno
quando diz que:
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social,
estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
individuo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim
chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo
de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2005, p.7)

A internet, assim como identificamos na fala de Letieres Leite, torna-se um


veículo privilegiado no acesso à informação. Ela torna-se um fator elementar no auxílio
a essa quebra de paradigmas da sociedade moderna, nutrindo no mundo digital uma
gama de possibilidades de formação de identidades múltiplas, heterogêneas,
caracterizadoras de uma modernidade onde é possível assumir uma determinada
identidade mesmo sem possuir vínculos físicos com os elementos que a caracterizam. A
formação identitária de muitos desses músicos brasileiros com a África, portanto, acaba
surgindo deste modo, além de em uma natural vivência com as manifestações culturais
afro-brasileiras, através também de uma afetividade via meios digitais.

49
Entrevista de Letieres Leite concedida a Guileherme Ribeiro do Portal MTV. Publicada em 06 de
janeiro de 2012. Disponível em: <http://mtv.uol.com.br/musica/letieres-leite-negros-estao-longe-desse-
afrobeat>.

71
Néstor García Canclini (2008), em seu livro sobre os Leitores, espectadores e
internautas na contemporaneidade, ao citar o sociólogo Manuel Castells sobre novas
formas de interatividade na era digital, assinala que:
A observação da “tecnosociabilidade” mostra que os recursos de
comunicação sem fio não são apenas ferramentas, mas, sim, “contextos,
condições ambientais, que tornam possíveis novas maneiras de ser, novas
cadeias de valores e novas sensibilidades sobre o tempo, o espaço e os
acontecimentos culturais. (CASTELLS et all, 2007 apud GARCIA
CANCLINI, 2008, p.53)

Este discurso de interação social através dos meios digitais corrobora com um
pensamento acerca da construção identitária musical de novos audiófilos com a África.
A percepção dos artistas brasileiros acerca da heterogeneidade musical do universo que
os cerca pode ser representada através da fala de Kiko Dinucci, quando este afirma que:
A maioria dos músicos da nossa geração têm algum namoro com a África.
Seja no ritmo, na linha melódica... Não acho que existem grupos de música
africana e nem tem que ter. Está bom assim. Cada um fazendo seu some a
gente vai parar na África ou no Japão. Ou em qualquer lugar que a gente
queira, porque a gente tem internet e pode ouvir músicas do mundo inteiro. 50
(DINUCCI, 2011)

O músico Thiago França deixa entrever uma ideia coletivizada de uma África
vivenciada através da internet, segundo o panorama musical de uma cena paulista
constituída por um conjunto de amigos integrantes de grupos como o Metá Metá, o
Sambanzo, da banda do rapper Criolo, entre outros dos quais ele participa, ao afirmar
sua vivência sobre a África: “A gente nunca foi lá. É YouTube, Wikipédia... Foi a
internet. A gente foi sacar Fela Kuti vendo essas coisas, vídeos de shows... Foi o
YouTube51.” (FRANÇA, 2011).
Muitos destes músicos também captam estas transmissões de africanidades
através das interferências de outros artistas brasileiros, os quais segundo eles seriam
detentores desta vertente africanista. As percepções de África, por conseguinte podem
perpassar uma gama múltipla de referências musicais à medida que possibilitem aos
ouvintes a identificação de seus elementos como constituintes de uma noção de África,
através de um referencial que estes já possuam ou mesmo que sejam construídos
imageticamente através dos elementos sonoros presentes nas composições. Para o
guitarrista Cris Scabello, do grupo Bixiga 70, por exemplo, “o afrobeat veio mais

50
Entrevista de Kiko Dinucci concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
51
Entrevista de Thiago França concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.

72
travestido pelo Gilberto Gil, pelo Chico Science, pelos ‘Afro-Sambas’, mesmo sendo
anterior ao Fela.52” (SCABELLO, 2011).
Outras percepções de proximidade musical podem ser também sentidas no
diálogo de Maurício Fleury do Bixiga 70 com Kiko Dinucci, quando falam sobre a
possível presença de uma musicalidade afro-brasileira próxima ao Afrobeat:
Kiko: Tem coincidências no Brasil.
Mauricio: Tem a música ‘Saudação a Toco Preto’, do Candeia.
Kiko: Essa música é um ponto de terreiro.
Mauricio: Mas tem arranjo de afrobeat, com metais.53
(DINUCCI; FLEURY, 2011, p.4)

O grupo paulistano Bixiga 70 é um dos que fez referências diretas ao Afrobeat e


à Fela Kuti. A ideia do grupo surgiu durante as sessões de gravação do disco Táxi Imã,
do compositor Pipo Pegoraro, que traz na musicalidade do disco várias referências ao
Afrobeat e a uma estética lírica africana, o que levou o jornalista Marcos Xi a considerá-
lo como “[...] uma verdadeira volta às origens africanas que existem em nós, tanto em
54
letra quanto em arranjo [...] “ (XI, 2012). O nome Bixiga 70 é uma homenagem à
banda Afrika 70 de Fela Kuti, e foi retirado do endereço do local onde eles tocaram:
Bairro do Bexiga, número 7055. A primeira apresentação do grupo foi em 2010, ainda
sob o nome de Grupo Malaika, durante a Festa Fela, realizada dentro da programação
do Fela Day, evento realizado mundialmente no dia 15 de Outubro em comemoração ao
nascimento do músico Fela Kuti. Porém, depois desta ligação inicial com o Afrobeat em
seu surgimento, o grupo acabou fazendo a inserção de outros ritmos em seu repertório,
abrangendo a sonoridade da banda à influência dos outros projetos compostos por seus
integrantes. Maurício Fleury, tecladista do grupo, fala sobre as influências no som do
grupo:
Nosso interesse não é tocar só afrobeat, menos ainda de maneira
"tradicional". O que fazemos é seguir o hibridismo inerente ao afrobeat, a
fusão de ritmos tradicionais com instrumentos elétricos e a linguagem
ocidental do jazz, da música latina etc. A polirritmia africana é muito

52
Entrevista de Cris Scabello concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
53
Trecho da Entrevista com Kiko Dinucci e Maurício Fleury concedida a Douglas Vieira por ocasião da
matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada
em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
54
Matéria de Marcos Xi sobre o disco Táxi Imã de Pipo Pegoraro para o site RockinPres. Publicada em 9
de maio de 2012. Disponível em: <http://www.rockinpress.com.br/2012/05/09/o-disco-solo-da-banda-
pipo-pegoraro-taxi-ima/>.
55
Entrevista do Bexiga 70 concedida a Mariana Caldas do Portal MTV. Publicada em 25 de agosto de
2011. Disponível em: < http://mtv.uol.com.br/musica/bixiga-70-faz-show-no-studio-sp-nesta-quinta>.

73
presente no Brasil, acaba sendo natural para os artistas aliar essas influências
às que temos.56 (FLEURY, 2011)

A gente começou com sonoridades afro. Mas quando a banda começou a


andar, e a gente sempre buscou um trabalho autoral, a galera foi voltando
para o que já tinha. É sempre falar da gente. Não é ficar tentando reproduzir o
Fela. Isso não passa nem perto da gente. São 10 caras, cada um com um
background diferente. Todos procuravam esse suingue e todo mundo está
feliz de colocar isso no Bixiga.57 (FLEURY, 2011)

Como podemos perceber, o discurso construído por alguns artistas quanto às


referências do Afrobeat em seus trabalhos demonstra algumas vezes certo receio quanto
à sua identificação com o estilo. Outros grupos porém fazem questão de frisar sua
relação com o gênero, chegando a intitularem-se como legítimos representantes do
gênero no país, como o grupo carioca Abayomy Afrobeat Orquestra, intitulado como” a
primeira orquestra de afrobeat do Brasil58”, e que assim como o Bixiga 70, também
surgiu a partir do Fela Day, na realização da 1ª edição carioca do evento. Além de
executar diversas versões de Fela Kuti em seus espetáculos, a banda chegou a gravar
uma música com o lendário baterista Tony Allen, que o levou a dizer que “fora os filhos
do Fela ninguém faz Afrobeat assim, nem na Nigéria.59”.
O primeiro show de Tony Allen no Brasil inclusive, realizado em 26 de junho de
2004, no SESC Pompéia, foi um dos motivos pelo crescente interesse dos brasileiros
sobre o gênero, trazendo a possibilidade de ver de perto um dos criadores do Afrobeat.
Nesta mesma data, nove anos depois, em 2013, Tony Allen voltou a tocar em São Paulo
depois de algumas outras vindas à cidade, como no evento Brasilintime e na Virada
Cultural, só que desta vez para fazer um show com o grupo Metá Metá na Serralheria. A
formação atual do Metá Metá inclusive, com a adição de baixo, bateria e percussão,
passou a ser integrada ao grupo quando da abertura que Kiko Dinucci fez do show de
Femi Kuti, filho de Fela Kuti, no evento Batuque - Conexão África-Brasil, em
dezembro de 2010, no SESC Santo André. Allen também estabeleceu relação com
outros grupos brasileiros como o Mamelo Sound System, grupo paulista de Rap que

56
Entrevista de Maurício Fleury concedida a Bruno Natal de O Globo, por ocasião da matéria
Transcultura: As múltiplas influências de Pipo Pegoraro. Publicada em 25 denovembro de 2011.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/transcultura-as-multiplas-influencias-de-pipo-pegoraro-
3315277>.
57
Entrevista de Maurício Fleury concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
58
Retirado do release escrito por Lucio Branco e presente no site oficial do grupo. Disponível em: <
http://abayomy.com/site/index.php/banda>.
59
Citação de Tony Allen presente em release do grupo. Disponível em:
<http://www.pqpproducoes.com/Abayomy_Release.pdf>.

74
teve participação de Allen na faixa Bença, Balanço & Chumbo Grosso do disco Velha-
Guarda 22, lançado em 2006, que rende homenagem a Fela Kuti e aos Afro-Sambas e
que conta com a participação dos integrantes da Nação Zumbi.
O cantor pernambucano Otto também possui influência do Afrobeat em seu
trabalho. O último disco do cantor, The Moon 1111, é referenciado por ele como uma
mistura entre Fela Kuti, ao que ele atribui ser devido à pegada do baterista e produtor
Pupillo, e o disco The Wall do grupo de rock progressivo inglês Pink Floyd60. Otto
inclusive chegou a fazer uma dobradinha no palco com a banda Abayomy Afrobeat
Orquestra na festa África, na ladeira do Vidigal no Rio de Janeiro, que em sua primeira
edição recebeu o guitarrista nigeriano Oghene Kologbo, que tocou no grupo Afrika 70
de Fela Kuti, acompanhado no show pela Abayomy, e que também desenvolve
trabalhos com outros grupos brasileiros como o Iconili e o Amplexos.
No meio do revival a Fela Kuti, a organização internacional Red Hot, dedicada à
luta contra a AIDS, e que lança constantemente coletâneas musicais temáticas visando
angariar fundo à sua causa, lançou em 2002 o disco Red Hot + Riot - The Music and
Spirit of Fela Kuti, que entre diversos artistas internacionais renomados, contava com a
participação dos brasileiros Jorge Ben Jor, Lenine, Monaural e o produtor Mario
Caldato Jr.
Outros grupos ainda pertencentes a vários cenários da música brasileira
contemporânea também se identificam com o Afrobeat ou ao menos trazem alguma
influência estética ou sonora em seus trabalhos, entre eles: Otto, Monjolo, Afroelectro,
Iconili, Tibless, Anelis Assumpção, Seu Jorge & Almaz, Iara Rennó, Coletivo Instituto,
Lucas Santtana, Bruno Morais, Afrobombas, A Roda, Rael da Rima, Afrika Gumbe,
André Abujamra, Guardaloop, Orquestra Contemporânea de Olinda, André Sampaio &
os Afromandinga, Mariana Aydar, Burro Morto, Aláfia, Zebrabeat Orquestra,
Abeokuta, entre tantos outros.

60
Depoimento de Otto no teaser de lançamento do disco The Moon 1111. Disponível em:
<http://vimeo.com/31933801>. Acesso em: 18 ago. 2013.

75
3.3. Reestruturações estéticas

Devido a um processo colaborativo existente entre artistas dessa geração de


músicos brasileiros, o ideário de África presente na obra de alguns autores acaba
reverberando na de outros, que somados às suas próprias vivências e concepções
anteriores de África acabam possibilitando a criação de novas identidades africanizadas,
que devido ao montante de obras coletadas por nós que se encaixam nestes referenciais,
nos permite visar à existência de um panorama musical contemporâneo pautado em
matrizes africanas.
Um dos processos de busca destas matrizes africanas é aplicado através da
percepção da presença destas influências na própria música brasileira. O projeto Goma-
Laca61, desenvolvido pela radialista Biancamaria Binazzi e pelo jornalista Ronaldo
Evangeslita, é responsável por fazer um resgate de músicas brasileiras registradas em
discos de 78 RPM do início do século XX. Além de desenvolver um programa
radiofônico voltado à divulgação das descobertas feitas pelo projeto, que foram
realizadas na Discoteca Pública Municipal Oneyda Alvarenga, criada em 1934, pelo
pesquisador Mário de Andrade, e a exposição de discos originais em 78 RPM, foi
realizado em dezembro de 2011 um show no Centro Cultural São Paulo onde uma série
de cantores, acompanhados pelo grupo Sambanzo, fizeram releituras das canções
encontradas no acervo. Entre os cantores convidados estavam Luisa Maita, Bruno
Morais, Juçara Marçal, Marcelo Pretto, Emicida e Rodrigo Brandão.
Podemos utilizar este projeto como um ponto de partida para nossas
elucubrações acerca do processo de identificação do grupo de compositores
contemporâneos o qual estamos tratando, com o universo fonográfico de temáticas afro-
brasileiras, além de um processo de releituras destas canções com base em outros
universos musicais africanos, fazendo a ponte contrária na diáspora. Ronaldo
Evangelista fala sobre o processo de escolha dos músicos e do repertório para o
espetáculo, demonstrando o processo de aproximação entre estes dois universos
musicais tão distante temporalmente:
Quando resolvemos fazer esse Volume I, de saída decidimos que um
primeiro foco de interesse era a variedade rítmica e a riqueza daquele
repertório além de sambas e marchinhas. Claro que ouvimos todas as Aracys
de Almeida e Almirantes que pudemos encontrar, mas nos concentramos
especialmente em caçar pontos de macumba estilizados, cantos de trabalho

61
Mais informações em: <http://www.goma-laca.com/>.

76
adaptados, citações africanas na música pop das primeiras décadas do século
XX. Também logo percebemos que uma das possibilidades mais
interessantes era investigar a contemporaneidade das músicas: não um
trabalho meramente de tributo museológico, mas sim de recontextos.
Nomes como Thiago França e Kiko Dinucci eram perfeitos para essa
abordagem, e o Sambanzo em si tem desenvolvido um trabalho
impressionante entre jazz, afrobeat, música brasileira, latina, criação
espontânea e coletiva. Tudo fez sentido.62 (EVANGELISTA, 2011)

O grupo Metá Metá, por exemplo, retirou do repertório do show especial do


Goma-Laca a composição Man Feri Man, gravada originalmente em 1956, pelo grupo
Jorge da Silva e Seu Terreiro, e interpretada no espetáculo por Juçara Marçal, para
integrar ao seu repertório, chegando a gravá-la em seu segundo disco. A música é
derivada de um toque de Candomblé ao orixá Oxum, porém em um andamento rítmico
diferente dos tocados em terreiros, e foi a partir deste arranjo que o grupo desenvolveu o
seu próprio. Já o grupo Sambanzo, que é formado por membros do Metá Metá, fez o
processo contrário, incorporou ao show uma composição de seu repertório. O grupo
fazia a abertura de seus shows com a música O sino da igrejinha, um tradicional ponto
de umbanda de Exu Tranca-Rua, e que durante as pesquisas do Goma-Laca foi
encontrado sob o título Tranca-Rua, num fonograma de 1954, gravado por J.B. de
Carvalho. Outro fonograma adaptado para o espetáculo foi Ogum-Yára, gravada
originalmente por Jorge Fernandez em 1956, composição que trata sobre uma falange
do orixá Ogum cultuada na Umbanda, com qualidades do orixá Iemanjá, aqui
denominada de Yara (ou Iara), fazendo um sincretismo com esta entidade indígena que
assume a forma de sereia, visto que em alguns locais do Brasil este orixá também é
cultuado nesta forma antropozoomórfica, metade peixe, metade humano. No show, o
arranjo da composição que foi originalmente catalogada como pontos-cruzados, virou
um groove com levada Afrobeat, promovendo uma renovação estilística de uma
sonoridade afro-religiosa produzida na diáspora, com base em sonoridades vindas do
continente africano, através de outra sonoridade que sofreu processo inverso, que é o
caso do afrobeat, que originado na África, sofreu influência contrária, a partir de ritmos
diaspóricos trazidos de volta à matriz africana.
Uma série de outras referências sonoras de outros períodos também são visíveis
nas obras destes artistas, explícitas ou implícitas. Juçara Marçal e Kiko Dinucci
gravaram no disco Padê, de 2007, uma versão da música Cabocla Jurema, lançada

62
Entrevista com Ronaldo Evangelista concedida a Ramiro Zwetsch do blog Radiola Urbanda. Publicado
em: 2 de dezembro de 2011. Disponível em:<http://blog.revistaurbana.com.br/?p=762>. Acesso em: 17
set. 2012.

77
originalmente em 1977 pelo sambista Candeia, importante representante das tradições
de matrizes africanas no mundo do samba, um constante em sua obra, e também
responsável pela gravação da música Saudação a Toco Preto, considerada por muitos
como uma das precursoras do afrobeat no Brasil, como citado anteriormente.
Diversas composições da década de 70, de artistas que tinham em trabalhos uma
forte ligação com a África, também foram incluídas no repertório de artistas
contemporâneos. Entre elas estão a regravação da música Pai João, gravada
originalmente em 1972 pelo grupo Tribo Massáhi, e regravada em 2010 pelo cantor Seu
Jorge e o grupo Almaz, formado pelos músicos Lucio Maia e Pupillo da Nação Zumbi e
multi-instrumentista Lincoln Antonio; a música Cordeiro de Nanã, gravada
originalmente pelo trio Os Tincoãs em 1977 e regravada pela cantora Thalma de Freitas
em 2004; Meus Filhos, gravada originalmente por Jorge Ben em 1976, no disco África
Brasil, e regravada pela Abayomy Afrobeat Orquestra em 2013, com participações do
rapper Bnegão e do baterista nigeriano Tony Allen; os Afro-sambas de Baden Powell e
Vinícius de Moraes, que renderam discos completos como Mares Profundos, da cantora
Virgínia Rodrigues; além de uma série de outras regravações que nos ajudam a
corroborar a importância que estes artistas atribuem às presenças de África na música
popular brasileira.

3.4. Afro-religiosidades

Provavelmente a temática mais abordada entre os artistas que aqui analisamos,


concernente às concepções de África construídas por estes, seja a das relações afro-
religiosas. O imaginário mítico das religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras é
em si muito complexo e diversificado, e as possibilidades de acesso a essas informações
têm sido ampliadas devido a uma cada vez maior abrangência que estas religiões tem
tido nos últimos anos na sociedade brasileira.
Percebemos aqui um interesse cada vez mais crescente e constante dos artistas
aqui analisados com estas temáticas, como vai sendo perceptível ao longo deste texto,
chegando a conceber projetos ou mesmo discos inteiros voltados aos universos afro-
religiosos. A invocação às divindades africanas e afro-brasileiras é recorrente em suas
composições, demonstrando em geral certa afinidade com este meio, não se restringindo

78
apenas ao processo de observação participante, mas também uma participação
observativa, integrando músicos criados dentro dos terreiros com outros que devido às
suas pesquisas acabam se integrando às comunidades religiosas.
Esse é o caso de uma série de grupos que tem em geral, entre os seus
percussionistas, ogãs de terreiros tradicionais, com inserção desde jovem no cotidiano
dos terreiros, muitas vezes por tradição familiar. O papel do ogã é essencial nos
terreiros, pois através dele é feita a invocação às entidades, através do toque específico
de cada uma. O papel do ogã e dos instrumentos no ritual do Candomblé é assinalado
por Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (1992) ao afirmarem que:
No candomblé, os atabaques ou "couros" (tambores) com os quais se
invocam as divindades são tidos como seres vivos e sua utilização reservada
apenas aos ogãs alabês (instrumentistas iniciados). Cabe a eles a execução do
repertório apropriado a cada divindade, que compreende um conjunto de
cantigas diferenciadas, com ritmos próprios. (AMARAL; SILVA, 1992,163)

Podemos perceber, portanto, através desta afirmação a importância central que


os ogãs representam na parte litúrgica do Candomblé. O papel da música e da cerimônia
nas religiões de matrizes africanas também é descrito por Amaral e Silva (1992):
"Toque" é o nome que se dá, genericamente, à cerimônia pública de
candomblé. Como o próprio nome revela, "toque", esta é uma cerimônia
essencialmente musical. Seu objetivo principal é a presença dos orixás entre
os mortais. Sendo a música uma linguagem privilegiada no diálogo dos
orixás, o toque pode ser entendido como um chamado, ou uma prece,
pedindo aos deuses que venham estar junto a seus filhos, seja por motivo de
alegria ou de necessidade destes. (AMARAL; SILVA, 1992, p.162)

A presença do toque portanto, mesmo que aqui aplicada a um ato profano, do


espetáculo, ou à música não-sacra, têm também papel essencial na invocação às
entidades, através de um meio singular de se louvar ou se comunicar com elas. Isso é
garantido em alguns grupos pela presença de ogãs em suas formações, ou quando não,
no estudo dos toques de terreiro, chegando em algumas propostas a incorporar aqueles
ritmos ancestrais em outras instrumentações, que não apenas os instrumentos
percussivos tradicionais dos terreiros, como Ilú, Atabaque, Abê, Agogô, etc.
O músico pernambucano Otto é um exemplo da presença da religiosidade no
palco. Sua banda é composta por dois percussionistas, André Malê e Marcos Axé, que
são ogãs de terreiro em Recife, de tradição Jeje Nagô, e por vezes também tem a
participação de Valter Pessoa de Melo, percussionista da Nação Zumbi e ogã com
tradição no Candomblé Angola, que utiliza o nome artístico Toca Ogan. Essa presença
de percussionistas com formação na música sacra dos terreiros acaba transparecendo na
sonoridade da banda, tanto nos shows quanto nos discos, chegando a incorporar alguns

79
toques tradicionais de orixás e de caboclos em suas músicas. Em alguns momentos, a
percussão parece invocar o início do xirê63, ou da gira64, como na música Anjos do
Asfalto, do disco Condom Black de 2001, na qual Otto invoca o orixá Exu:
Ah, Exu mandou avisar
Que os anjos do asfalto
Tão em todo lugar

A letra surgiu de uma ida do compositor ao carnaval de Salvador, onde ele


vivenciou experiências em terreiros de Candomblé. Na rua, Otto viu os bombeiros
utilizando vermelho e preto, cores que representam o orixá Exu, daí surgiu a ideia da
composição, onde Exu avisa que os “anjos do asfalto”, os bombeiros, estão em todo
lugar65, como que anunciando uma jornada segura.
Outros orixás vão sendo invocados ainda ao longo do disco, como Xangô e
Iemanjá em Cuba, e Oxalá em Retratista. O próprio nome do disco é bem imagético,
Condom Black, um trocadilho entre Candomblé e camisinha preta (black condom),
sobre o que o cantor diz:
É camisinha preta, é vestir a camisa. Não é a preta que gosta de mim, sou eu
que gosto da preta. Precisava de uma coisa diferente, não sabia mais o que
fazer. Pintei de preto. A única coisa interessante que via no país era esse
cisma dos 80%: na favela, na cadeia e no Brasil, 80% das pessoas são pardas
ou pretas. [...] Condom Black não é black music, é um ser humano cantando
música popular brasileira, que é 80% preta.66 (MAXIMILIANO, 2001)

No intuito de fazer essa representação imagética, o cantor se pintou de preto para


a sessão de fotos do Condom Black, representando a estética negra, que é a inspiração
do seu disco67. Esta estética negra voltada às raízes afro-brasileiras é presente em todos
os discos de Otto, um legado do movimento Manguebeat, que propunha a fusão de
ritmos locais tradicionais, como o Maracatu, Coco e Ciranda, ritmos de origens negro-
brasileiras, profundamente conectados com as tradições africanas, juntamente com o
Funk, Rock e Hip hop, ritmos negros da América do Norte, que modernizam as
tradições culturais africanas.

63
Cerimônia ritual do Candomblé em homenagem aos orixás, composta de música, dança e canto.
64
Termo designativo das sessões de Umbanda
65
Saiba mais na matéria Otto perde a cor, de Pedro Alexandre Sanche, publicada na Folha de São Paulo
em 22 de outubro de 2001. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2210200106.htm>.
66
Entrevista com o cantor Otto Maximiliano concedida a Pedro Alexandre Sanches da Folha de São
Paulo, por ocasião da matéria Otto perde a cor. Publicada em 22 de outubro de 2001. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2210200106.htm>.
67
Saiba mais em: http://www.terra.com.br/musica/entrevista_otto.htm

80
É interessante notar em como esse vasto universo afro-religioso se conecta ao
repertório destes artistas, e no caso específico dos que são ogãs, em como esta vivência
se mantém em seus repertórios. Os três percussionistas de Otto, por exemplo, sem
encontram em processo de gravação de discos solo, e em todos os projetos estas
referências religiosas fazem parte do processo de composição, ou mesmo ditam a
temática do disco, como é o caso de Toca Ogan, que está em processo de gravação do
seu trabalho Desatando o Laço, voltado à instrumentação do berimbau, e de profundas
raízes com o Candomblé. Sobre o nome do trabalho, o músico diz: “Isso vem do
candomblé do qual eu faço parte, o Nação Angola. Nele, tudo é feito na base do laço.
Quando alguém está com algum problema e consegue resolver, a gente diz que ele
conseguiu desatar o laço, desatar o problema.68” (OGAN, 2012). O músico André Malé,
está em produção do disco com o seu Coco de Malê, voltado às tradições do coco de
roda, aprendido em sua vivência nos terreiros de Candomblé. Já Marcos Axé, a
princípio não segue uma referência específica, mas utiliza ritmos como o samba, o
Reggae e o Afrobeat. Ogan, Axé e Malê já participaram de outros projetos voltados às
musicalidades negras como o Coco de Mazuca, “[...] totalmente inspirado nos trabalhos
realizados pela ex-mãe-de-santo Maruca e pelos pais-de-santo Seu Marinho e Seu
Humberto [...]”69 (MYSPACE, 2006), e que segue a cartilha do mestre João da Ciência,
tradicional ogã que foi mestre de Toca Ogan, e do grupo Pra Mateuz Poder Dançar, que
além de ritmos tradicionais afro-brasileiros, toca ritmos caribenhos e africanos.
No grupo Nação Zumbi, Toca Ogan demonstra através de suas composições
uma ligação muito forte com a Jurema, religião de tradição afro-indígena, exaltado a
semente da jurema, essencial nos rituais da religião, como na música Vai Buscar: “Não
fale dessa Jurema se você não a conhece”; e exaltando as entidades afro-indígenas dos
caboclos, na canção Remédios. Toca Ogan é citado na composição de Otto, Único Sino,
lançada no disco Condom Black em 2001, que demonstra esta relação existente entre o
ogã e a religião:
Único sino tocava
Anjo vermelho cuida de mim
Vem combater
Eu combatia

68
Entrevista com Toca Ogan concedida a AD Luna do Jornal do Commercio. Publicada em: 30 de
setembro de 2012. Disponível em:
<http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2012/09/30/toca-ogan-da-nacao-zumbi-
grava-album-solo-58011.php?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter>. Acesso em: 8 de julho de
2013.
69
Release do grupo Coco de Mazuca no Myspace. Disponível em:
<http://www.myspace.com/cocodemazuca>. Acesso em: 26 de fevereiro de 2007.

81
Meu pai dizia
Vou proteger
E o tambor tocava
Bonitas melodias
Como é lindo
Ver o Toca Ogan tocar

Único Sino pode nos remeter ao Adjá, sineta de metal utilizada no ritual de
Candomblé com intuito de provocar o transe. O anjo vermelho pode corresponder ao
orixá Exú, sendo assim uma representação de transe no rito, através da invocação do
orixá com o uso da percussão e do adjá. Ou ainda, numa leitura de Otto: “Único sino é a
última chance de sermos um país, o anjo vermelho remonta ao nosso presidente, Lula.
Isto seria um dos caminhos por onde esta música vai. Enfim justiça, xangô!”
(MAXIMILIANO apud LIMA, 2008, p.111). Portanto, a música concebe também um
caráter político, representada pela primeira eleição de Luís Inácio Lula da Silva como
presidente, no período em que a composição foi feita, representando a justiça social
contida neste ato através da eleição de um homem que veio do povo, sendo o vermelho
a cor do partido representante do presidente, o PT, ao mesmo tempo em que representa
também o orixá Xangô, que tem como uma de suas principais características ser o orixá
ligado à justiça.
Xangô é um orixá de culto muito tradicional no Brasil, chegando a ter seu nome
como denominador do culto dos orixás no Nordeste. Esta tradição afro-religiosa do
orixá acaba se estendendo para a música, sendo talvez o orixá mais mencionado na
música popular brasileira. A música Afoxoque, do compositor paulista Curumin, lançada
no disco Arrocha de 2012, é um exemplo deste culto a xangô na MPB, descrevendo na
composição o uso de elementos característicos deste orixá, como o Oxé, martelo que
possui lâminas nos dois lados, que corta em duas direções opostas, símbolo da justiça,
demonstrando a sua imparcialidade, pois qualquer lado pode sair perdendo ou
ganhando; o choque, dado pelo raio, pois Xangô é senhor dos raios; e a pimenta,
elemento sempre presente em suas comidas votivas:
Se me andam a falar na liberdade
Isso cheira bem, cheira a pimenta
Palavra que me arde dentro da boca
Língua que faísca como um machado

Machado de dois gumes que é igual pros dois lados


Bate o machado que é igual pros dois lados

Afoxoque ê
Afoxoque ê...

82
Outra composição que fala sobre este orixá, mas composta de elementos que
deixam ainda menos aparente esta menção do que a música anterior é Raio Negro,
gravada pelo grupo pernambucano Monjolo em 2006. A letra fala sobre a invocação e
chegada do orixá, misturando elementos litúrgicos do orixá com linguagem musical,
como o delay do space eco, que é um efeito musical produzido por um pedal, no caso
aqui representado através da energia do raio de Xangô:
Alguém mandou chamar, eu vim
Alguém mandou chamar

Trago chuva de raios pra saudar a multidão


Vim de longe voando no espaço
Trago vida, esperança e a saudade das flores
Pra curar todos os males, aliviar todas adores

Alguém mandou chamar, eu vim


Alguém mandou chamar

Trago o delay do space eco


Sou a voz do trovão
Surfando ondas sônicas
Harmonia atômica
No beat acelerado um coração
Descompassado até o fim dessa canção
Eu trago a paz

Outra parte importante nestas religiões afro-brasileiras é a festa, a celebração,


momento máximo de aproximação dos homens com os orixás. Rita Amaral (2005)
afirma que: “É na festa que os orixás vem à terra, no corpo de suas filhas, com a
finalidade de dançar, de brincar no xirê, termo que em Ioruba significa exatamente isto:
brincar, dançar, divertir-se.” (AMARAL, 2005, P.48) A música Janaína, composta por
Otto e lançada no disco Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, de 2009, feita em
homenagem ao orixá Iemanjá, a Rainha do Mar, como também é conhecida, fala sobre a
tradicional festa realizada na Praia do Rio Vermelho, bairro da cidade de Salvador na
Bahia, no dia dois de fevereiro de cada ano, onde uma série de oferendas são entregues
no mar por milhares de pessoas, tendo à frente uma colônia de pescadores da localidade.
Disse um velho orixá pra oxalá
Pra acreditar
Pra não temer, temer, temer
Desses tempos verdadeiros
Tempos maus

Dia 2 de fevereiro
Dia de Iemanjá
Vá pra perto do mar
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá
Pra perto do mar
Leve mimos pra sereia

83
Janaína Iemanjá

Havia rosas no mar


Havia ondas na areia

Lá em Rio Vermelho
Em Salvador
Vamos dançar
Dia 2 de fevereiro
Dia de Iemanjá
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá

Disse um velho orixá pra oxalá


Pra não temer
Pra não temer
Dia 2 de fevereiro
Festa lá no Rio Vermelho
Em Salvador vamos dançar
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá

Havia rosas no mar


Havia ondas na areia
Vá brincar no Rio Vermelho
A festa de Iemanjá
Salvador está em festa
Vou cantar

Vou cantar
Pra saudar sereia
Vai brincar na areia
Para acreditar

Pra saudar sereia


Vista azul e branco
Dia de lua cheia

A letra da composição começa falando um conselho de Iemanjá ao orixá Oxalá,


seu esposo segundos algumas tradições iorubanas, para não temer, que tudo vai dar
certo. Em seguida ela fala sobre a realização da festa, em como o orixá deve ser
saudado, aqui no caso também representado pela sereia, uma simbologia mais
comunmente utilizada pela Umbanda. Presentes são ofertados ao orixá, para que tudo dê
certo. Jogar rosas, vestir azul e branco, são alguns “mimos” para saudar o orixá. Em
certo momento a composição anuncia: “Vai brincar na areia, para acreditar”, falando
sobre a possibilidade de percepção da fé através da participação da festa, de ver para
crer, de sentir a energia pulsante causada pelo êxtase coletivo.
Como podemos ver, a música e a festa tem papéis importantes no rito de
incorporação dos orixás, que é o momento em que os homens tem a possibilidade de
conviver em meio a eles novamente. É o momento em que os orixás saem de sua
morada mítica em uma África ancestral, e vem ensinar os homens através da dança, da
84
música, do rito. Mais do que elemento meramente “cenográfico”, portanto, a música
tem papel essencial na ritualística do terreiro, o que é corroborado por Rita Amaral e
Vagner Gonçalves da Silva (1992), quando dizem que:
A música, no candomblé, tem um papel mais significativo que o mero
fornecimento de estímulos sonoros aos diversos rituais. Ela pode ser
entendida como elemento constitutivo do culto, dando forma a conteúdos
inexprimíveis em outras linguagens, termo aqui entendido como articulação
de signos e símbolos. Todos os rituais do culto estão apoiados também na
música, que mostra um caráter estruturante das diversas experiências
religiosas vividas por seus membros. Do paó (seqüência rítmica de palmas
usada para reverência) ao toque (xirê), a música continua sendo parte de cada
cerimônia, constituindo-a, delimitando situações e ordenando o conjunto das
práticas extremamente detalhadas. (AMARAL; SILVA, 1992, p.162).

3.5. A busca de uma reparação à África

As reflexões acerca do continente africano e de suas influências para a cultura


nacional também são representadas neste novo cenário da música nacional. As relações
destes compositores com a diáspora africana chegam a causar opiniões um tanto
controversas. Se por um lado, em parte, eles reclamam que as mazelas causadas às
etnias negras se devem ao tráfico de escravos, retirando seus antepassados à força de
“mãe África” e impondo toda série de maus tratos e restrições ao seu povo, também são
observados aspectos positivos da diáspora, através do vigor demonstrado pelo povo
negro em não deixar-se escravizar passivamente, e pela força de suas culturas, que se
sobrepuseram às tradições europeias que lhes eram impostas, garantido deste modo a
perpetuação de seus saberes ancestrais.
A composição Diáspora, do cantor carioca Mc Bigulí, presente no disco Brasil
Riddims Vol. 1 de 2006, do grupo Digitaldubs Soundsystem, fala sobre o sentimento de
pertencimento dos negros com a África, modificado a partir de suas relações com o
continente americano através da diáspora:
Estou aqui por um acaso, mas não é o caso de reclamar
Sou preto e por isso podia estar em qualquer lugar
Faço parte da diáspora negra, fui tirado do outro lado do mar
E de uma forma ou de outra eu podia estar em qualquer parte da América

Sou preto e por isso me sinto preto e livre pra fazer música de gueto
Seja em Kingston, Nova York ou no Rio de Janeiro
Música de preto, Samba, Hip-hop, Reggae, Dub de qualquer espécie
Música de gueto, Samba, Hip-hop, Funk, o groove está no sangue
Música de preto, música de preto

85
Antes de ser preto eu sou brasileiro
Antes de ser brasileiro eu sou preto

Meu canto vem do lamento, mas é alimento pra mente


Porque só é constantemente sorridente quem é consciente
Do seu sofrimento, do seu sofrimento

Pode soar antagônico no seu aparelho estereofônico


Mas não há dualidade na realidade
Ela é única está dentro de você
Só você pode ver
Só você pode ver

Podemos identificar aqui uma gama de pertencimentos, ligando as tradições


musicais negras americanas através de uma procedência única, vinda a partir do
continente africano. Stuart Hall afirma que, “Na situação da diáspora, as identidades se
tornam múltiplas.” (HALL, 2011, p. 26), possibilitando assim uma identificação dos
indivíduos não só com as culturas afro-brasileiras, mas afro-americanas em geral, pois
no processo diaspórico, os negros escravizados podiam acabar tomando diversos rumos
diferentes em seus desembarques nos portos atlânticos. Este processo possibilitou a
formação de uma ampla série de gêneros musicais, entre os quais alguns são citados na
composição, como o Reggae e o Dub, surgidos em Kingston, na Jamaica; o Funk e o
Hip-hop, surgidos em Nova York, nos Estados Unidos; e o Samba, surgido no Rio de
Janeiro, no Brasil, todos associados a tradições negras desenvolvidas nas Américas a
partir do processo de diáspora, e que são de grande identificação com os jovens negros
destes grandes centros urbanos. Sobre o papel da música na diáspora, Paul Gilroy
(2001) enfatiza:
Examinar o lugar da música no mundo do Atlântico negro significa observar
a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso
simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações
sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a
música constitui um elemento central e mesmo fundamental. (GILROY,
2001, p.161)

O papel da música nesse processo de diáspora e da formação de uma identidade


cultural partindo de matrizes africanas é bem particularizado por esta nova geração de
compositores brasileiros, como na composição Zumbi/Zulu de 2006, do grupo de Rap
paulistano Mamelo Sound System, que menciona o processo de formação da música
ancestral africana e suas influências culturais para a formação das musicalidades da
diáspora, aqui especificamente na cultura Hip hop:
A história se inicia num momento bem distante
Do tempo atuante, num cenário em que elefantes
Mamutes e mutantes, eram coadjuvantes
Mas pra ser preciso, preciso citar o exato instante:

86
Foi na primeira vez que um africano tocou tambor
Lançou o ritmo da batida ancestral
Que tal? Tamo ai até hoje o orador e mais
o produtor da percussão digital
Pois em algum ponto além do mar azul
entre o sul do Bronx e a África do Sul
foi forjada a fundação da Nação Zulu...

A Nação Zulu aqui mencionada se refere ao coletivo de Hip hop do Bronx, Zulu
Nation, formado pelo DJ americano Kevin Donovan, mais conhecido pelo seu nome
artístico, Afrika Bambaataa, retirado de um chefe da etnia Zulu sul-africana chamado
Bambatha kaMancinza, que no ano de 1906 liderou uma revolta armada contra as tropas
coloniais sul-africanas devido a uma política econômica recém implantada e
considerada injusta por seu povo. Este imaginário africano é constantemente
representado no universo do Hip hop, e no Brasil se processa de modo semelhante,
aproximando as barreiras que separam as culturas africanas tradicionais das concebidas
na diáspora.
A música Nossa África, do músico e produtor Alfredo Bello, também conhecido
como DJ Tudo, lançada em 2008 no disco Garrafada, traz um discurso panfletário
sobre o espaço social do negro no Brasil, um espaço minimizado devido aos esforços
das elites brancas em solapar do negro qualquer possibilidade de crescimento social,
intelectual ou econômico, no intuito de utilizá-los como mão de obra barata após o fim
da escravidão, apontando índices que demonstram a situação de inferioridade social em
que vivem os negros no país até hoje:
Nossa África!
Nossa África!

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão negra


O Brasil é o segundo é o segundo país no mundo em população africana,
somente a Nigéria tem mais negros
Foi também o país que mais importou africanos para serem escravizados, 4 milhões
80% dos negros moram em favelas ou locais insalubres
87% das crianças fora das escolas são negras
Somente 47% dos negros concluíram o ensino médio
Somente 8% dos negros completa a faculdade
A renda de uma família negra é duas vezes inferior à de uma família branca
40% dos homens negros são analfabetos, contra 18,5% dos brancos

Nossa África!
Nossa África!

Mesmo com o racismo histórico, somos o país onde mais tradições africanas se recriaram
Pois o tráfico trouxe também as suas culturas
Temos a oportunidade de fazer essas culturas se perpetuarem
pois várias áfricas existem em nossas almas
A nossa música popular tem uma grande dívida com a cultura negra
Todo brasileiro tem a proteção de um deus africano
Quase todas as cidades do país existem festas públicas pra estes deuses

87
Todo o preconceito contra as religiões de origem africana
reside na ignorância, na total falta de conhecimento
Somos mais negros e índios do que pensamos
E negamos esta essência
Até quando, até quando?

Laroyê Exú!

A composição também aborda o papel das culturas negras africanas na formação


da cultura brasileira, em como estes elementos estão presentes em nosso cotidiano, e
que mesmo assim há uma grande dificuldade de aceitação do brasileiro enquanto negro
ou mesmo descendente de africanos. Helenise da Cruz Conceição e Antônio Carlos
Lima da Conceição (2010) ao discutirem A construção da identidade afrodescendente,
afirmam que:
Ser negro, muitas vezes está relacionado com a escravidão e a cor da pele,
razão porque há uma série de expressão que disfarçam a condição de origem
étnicoracial da população negra, a saber: marrons bombons, morenos claros,
morenos escuros, pardos, café com leite, escurinho, canela, café, dentre
outros que fazem parte de uma certa formalidade das relações sociais. É
como se fosse deselegante se referira alguém como negro ou preto, a
tentativa é de criar um certo eufemismo quanto a origem e de branquear o
conteúdo identificatório. (CONCEIÇÃO; CONCEIÇÃO, 2010, p.3)

Este processo identificação com as cultuas de origens africanas transcende aqui


o lugar comum da auto-aceitação do indivíduo enquanto negro, procurando legitimar-se
através da busca de suas origens, cedendo lugar à necessidade de uma conscientização
geral sobre a importância do continente africano para a humanidade, do papel que suas
etnias e culturas exerceram desde o berço da civilização e que possibilitaram novamente
no processo de diáspora, do legado que estas civilizações forneceram e sobre o qual
temos grande dívida, assim como aponta a composição Rainha, da cantora paulista Céu,
presente em seu disco homônimo de 2005:
Dê água pra Ela beber
Dê roupa pra Ela vestir
Saúde pra dar e vender

Dê paz pra Ela descansar


Adubo pra Ela crescer
Dê rosas pra Ela enfeitar

África,
Cadê?
Seu trono de Rainha
Cadê?
Dona da Realeza
Cadê?
Mãe da matéria-prima
Cadê?
Vai levar a vida inteira pra lhe agradecer

88
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ato de apagar a África da memória de seus indivíduos foi algo constante


dentro do processo de diáspora negra. Os traficantes de escravos faziam com que os
negros cativos dessem voltas ao redor do Baobá, árvore considerada sagrada para
muitas etnias africanas, antes destes embarcarem nos navios negreiros, gesto ritual que
simbolizava que a partir dali suas histórias e seu passado deveriam ser esquecidos. Isso
faria com que eles ressurgissem então como indivíduos cristãos, prontos a redimirem
suas almas “pecaminosas” através de trabalhos pesados do outro lado do Atlântico.
Porém, mesmo com a incessante imposição de valores culturais judaico-cristãos
sobre os escravos africanos, suas memórias de África nunca foram esquecidas, sendo
mantidas da maneira que fosse possível, muitas vezes chegando a serem adaptadas
devido à nova realidade social em que se encontravam, e mesmo sendo ressignificadas
através do processo de repasse oral destas tradições, mas sem permitir que sua essência
fosse completamente perdida.
O ato de rememoração de África constitui um processo reflexivo de
identificação dos sujeitos sociais através de sua conexão com a ancestralidade, gerando
a difusão de um pensamento afrocêntrico e permitindo a reconstrução de identidades
anteriormente pautadas em valores culturais e sociais ocidentalizados.
Perceber o continente africano e suas diversas culturas como caracterizadores de
valor e importante apreensão demonstra-se um passo à diante no processo de reparação
e reafirmação das identidades étnicas afro-brasileiras. As percepções de África
existentes hoje na música popular brasileira estabelecem novos padrões de concepções
acerca do continente africano, que nos permitem a revisão de grande parte dos
estereótipos e preconceitos firmados na história da sociedade brasileira acerca das etnias
e culturas de matrizes africanas aqui estabelecidas.
A mudança nessas percepções tem demonstrado-se muito mais visíveis a partir
dos últimos anos, como constata Livio Sansone (2003) ao afirmar que:
No último século, verificaram-se grandes mudanças nos usos da “África” no
Brasil. Os aspectos “primitivos” da cultura africana, que antes eram algo a
exorcizar, adquiriram status na cultura popular e da elite. “África” passou a
significar cultura e tradição dentro da cultura negra. “Afro” é um termo que
representa um estilo de vida, que incorpora elementos da “África” ou da
cultura africana na formação da identidade negra e na vida cotidiana — o
acréscimo de um toque africano à experiência da modernidade. (SANSONE,
2003, p.133-134).

89
Como pudemos perceber ao longo do texto, os imaginários sobre África são
temas constantes na música brasileira, presentes nos diversos períodos aqui abordados,
mas que apresentam características sócio-culturais distintas de acordo com a época em
são explorados. Assim como Norman Weinstein (1993) afirma sobre as representações
imagéticas de África no jazz em A Night in Tunia:
Não é uma questão de decidir qual estilo de Jazz não é verdadeiramente
“africano”, tanto quanto reconhecer que todos estes estilos musicais
representam movimentos de um imaginário afrocentrista. Eles foram
experimentos musicais tentando conceber a África através de praias
distantes.70 (WEINSTEIN, 1993, p.182).

Do mesmo modo que Weinstein, não pretendemos aqui também perceber qual
período na música popular brasileira seria responsável por trazer representações mais
substanciais acerca de África, mas sim compreender que em todos estes períodos
existiram tentativas concretas de representação de África através do imaginário da obra
destes artistas, baseados em um pensamento afrocêntrico.
Porém, se para alguns pesquisadores quanto mais distantes ficamos
temporalmente das últimas levas de africanos que chegaram ao Brasil antes da proibição
do tráfico de escravos e da abolição da escravatura, ou seja, dos últimos negros
africanos que aportaram aqui na condição de cativos, teríamos portanto menos traços de
África em nossas culturas, novas gerações de artistas brasileiros demonstram um
caminho contrário a esse pensamento através de suas obras, num sentido de manter
acesa a chama da verve africanista no país, celebrando aqueles descendentes de
africanos que foram responsáveis por sustentar a tradição de seus antepassados no
Brasil, assim como buscando novos meios de deter conhecimentos sobre a África, seja
ela mítica, ancestral ou mesmo contemporânea.
Mesmo que estas representações dos artistas contemporâneos se encontrem
distantes do ideal africanista propagado por alguns historiadores da música popular
brasileira -- ainda muito calcados em um pensamento tradicionalista -- não quer dizer
por isso que elas sejam menos importantes, ou mesmo menos africanas, podendo ser na
realidade talvez até mais representativas de África do que outros nichos “africanistas”
da MPB. Conservar as tradições musicais de origens africanas não significa apenas
manter preservadas estas tradições do modo em que foram concebidas ou mesmo da
maneira em que foram trazidas para o Brasil, mas também recriá-las através de suas

70
“It is not a question of deciding which jazz style is not truly “African” as much as recognizing that all
of these musical styles have represented movements of afrocentric imagination. They were musical
experiments in conceiving of Africa from distant shores.” (Tradução nossa).

90
capacidades de re-adequação e re-incorporação na sociedade. Habitualmente, as
tradições que tentam ser sustentadas pelas comunidades da maneira em que foram
geradas, se não são modificadas para adequarem-se às novas regras sociais de vivência
dos grupos, acabam sendo extintas. Manter em atividade ou mesmo tentar recuperar
uma tradição que não possua mais significado ou uso social para determinado grupo
étnico demonstra-se apenas um ato de conservação museológica.
A conservação destas práticas não delimita a compreensão que podemos
construir sobre práticas africanas. A própria carga mítica africana impregnada em nosso
cotidiano, mesmo quando de maneira subjetiva, nos permite tecer imaginários acerca de
África que são capazes de constituir por si só a manutenção de práticas africanistas.
Tornar a África como referencial de identificação é objetivar a construção de um
modelo não conformista perante os padrões anglo-saxões. É eleger o que antes era
margem como centro.
Os caminhos percorridos em nossa pesquisa demonstraram que ao longo do
recorte temporal por nós analisado, foram constantes as elaborações acerca de África
evocadas pelo imaginário da música popular brasileira. A recorrência a esta temática é
algo constante no trajeto de nossa música popular, estabelecendo conexões
contemporâneas e ancestrais com a África, e usualmente propondo uma continuidade
nesse longo processo de trocas culturais.
Em alguns momentos da historiografia da música popular brasileira, é possível
vislumbrar através das análises de alguns pesquisadores uma espécie de processo de
quebra temporal dessas trocas culturais, como se após a escravidão os laços de conexão
com o continente africano tivessem sido extintos.
Partindo desta premissa podemos construir então uma teoria onde seriam
considerados dois momentos de influência africana na música popular brasileira: um
nacional, composto pelos valores culturais trazidos pelos cativos africanos
anteriormente ao fim da escravidão; e um estrangeiro, marcado pelas influências
culturais africanas ocorridas após a abolição. As influências nacionais, portanto seriam
mais autênticas, visto que são afro-brasileiras, tendo sido construídas em solo nacional,
e mais adaptadas assim ao conteúdo pregado pelo ideal ufanista brasileiro. Já as
influências africanas seriam estrangeiras, à medida que não se adequariam à realidade
nacional, e que devido às distâncias temporais e geográficas não mais corresponderiam
a uma compreensão de África constituída no Brasil, e deste modo, seriam menos
importantes à compreensão de uma identidade nacional. Porém, ao longo de nossa

91
pesquisa, pudemos verificar o quanto as influencias construídas a partir de referenciais
colhidos diretamente da matriz africana foram importantes para a construção de uma
formação identitária com a África, e em alguns casos, tomando como ponto de
referência a África, até para uma maior apreciação das próprias culturas afro-brasileiras.
A representatividade que a África exerce nas obras dos artistas aqui analisados
nos permite visualizar o quão é importante o seu papel no processo de valorização das
culturas de matrizes africanas. Estes artistas auxiliam, através de suas composições, a
preencher as diversas lacunas existentes na história da formação da sociedade brasileira,
dando o devido crédito ao papel exercido pelo continente africano na construção de
nossas culturas, e deste modo contribuindo para a compreensão de que a África vai
muito além do alcance da nossa imaginação.

92
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