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RECIFE,
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
RECIFE,
2013
Dedico esta monografia à Esù, por abrir
os meus caminhos, à Ayrà, por iluminar
meu trajeto, e à minha amada Mariana
Andrade, por ser minha força e meu
motivo de seguir em frente.
AGRADECIMENTOS
O ato de pesquisar não precisa ser uma tarefa solitária, e acima de tudo não costuma ser.
A construção do pensamento comumente é um processo desenvolvido dentro da coletividade,
pois é através da ação do coletivo que o individual é possibilitado. Portanto, a realização desta
pesquisa não seria possível sem a participação direta, ou mesmo indireta, de uma série de
pessoas que se envolveram afetiva ou intelectualmente em seu processo.
Gostaria, portanto de agradecer ao meu orientador, o Professor Dr. José Bento Rosa da
Silva, por me guiar no caminho a seguir e por abrir espaço para que meu raciocínio pudesse
fruir sem maiores amarras; aos professores, José Amaro dos Santos Silva, Sandro Guimarães de
Salles e Isabel Cristina Martins Guillen pelos ensinamentos; à professora Virgínia Almoedo,
pelo carinho que faltava na vida acadêmica; ao NEAB/UFPE, por promover espaços para o
debate das temáticas etnicorraciais na academia e expandir o meu conhecimento; e a Levi
Rodrigues, pela grande força nos momentos de desespero acadêmico e pelos puxões de orelha.
Essa jornada não seria possível também sem o apoio de minha família. Gostaria de
agradecer aos meus pais, Carlos Pery e Maria de Fátima, que foram e continuam sendo meus
pilares de sustentação; ao meu irmão Carlos Pery, que sempre me apoiou, independente de
minhas escolhas; aos meus tios Mauro e Rejane Falcão, que sempre deram muita força e
carinho; ao meu tio Beto, pelas perturbações; à minha tia Teté, pelas palavras de incentivo; aos
meus padrinhos Antônio Saulo e Andreia, pelo amor incondicional; aos meus sogros José
Carlos e Maria do Carmo, que nas horas vagas também fazem papel de pais; à minha cunhada
Maria Júlia pela paciência; e aos meus avós, Arnaldo Lemos e Ayrigenes Fonseca e Moacyr e
Ritinha Lyra, que sei que continuam torcendo por mim de onde estiverem.
Com os amigos tudo também se tornou muito menos árduo. Por isso gostaria de
agradecer à galera de Sweet River e adjacências: Antônio Carlos, Paulo Sano, Rieldo Alves,
Lucio Dias (Campeão), Lidiane Lima, Roberto Luiz, Aroma Bandeira e Rodrigo Galvão; aos
amigos que vem acompanhando desde cedo meu trajeto: Igor Pastl, Carlos Eduardo, Felipe
Cavalcante, Petra Pastl, Mariana Melo e Danielle Felinto; aos companheiros de jornada na
Universidade, que tem dado aquela força: Thiago Parrolas, Jefferson Gonçalo, Frederico Neto,
Caetano Bezerra, Diomedes Oliveira, Matheus Pinheiro, Bianca Alcoforado, Afonso Bezerra;
Estevam Machad; aos amigos Antonio Guido e Mauro Mendes pelos bons momentos; e a todos
os outros que não couberam aqui, mas que estão presentes no coração e nos pensamentos.
E por último e em especial, à minha amada companheira Mariana Andrade, que me fez
enxergar a força que tinha dentro de mim e externá-la, que tornou tudo isto possível, fazendo
meus sonhos virarem realidade. Descobri através de você que só necessitamos de amor pra
viver.
“You Africans, please listen to me as
Africans, And you non-Africans, listen to
me with open mind”
INTRODUÇÃO.............................................................................................................07
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................89
REFERÊNCIAS..........................................................................................................93
INTRODUÇÃO
1
Utilizamos aqui a noção de Imaginário segundo a perspectiva do pesquisador francês Gilbert Durand,
para quem o imaginário seria a construção da percepção do mundo segundo a ótica dos indivíduos, feita
singular ou coletivamente.
7
associação como ritmo nacional durante a era Vargas na década de 30, até as recentes
reapropriações das musicalidades africanas por artistas brasileiros contemporâneos.
Analisar o modo como se processam estes fenômenos ligados à produção do imaginário
acerca de África na produção musical da contemporaneidade é compreender qual a
relevância que as diferentes culturas africanas representam hoje para a sociedade
brasileira.
A música se apresenta como uma importante ferramenta para a compreensão
destas relações de identidade do povo brasileiro para com a África, pois segundo Nestor
Garcia Canclini (2008, p. 62), “Talvez a música seja o ambiente onde mais veloz e
radicalmente estão sendo reformulados os conceitos de local, nacional e global.”
O pesquisador Norman C. Weinstein (1993), em seu livro A night in Tunisia:
imaginings of Africa in jazz, propõe analisar o imaginário sobre África presente no
repertório de 13 músicos americanos de jazz. Este tema se mostrou relevante para o
autor, pois no passar de anos ele foi percebendo como um grupo de músicos de jazz
não-africanos evocavam constantemente a África em suas composições sem, em muitas
casos, terem tido contato real com o continente (WEINSTEIN, 1993). Ele começou
então a analisar como esses músicos conseguiam através apenas do imaginário, trazer
aspectos de um pensamento afrocêntrico em sua obra, fazendo com que suas
composições remetessem aos ouvintes visões de uma África que a maioria deles em
geral também não havia vivenciado. Weinstein (1993) sugere que a palavra
“imaginações” presente no título não implica uma concepção frágil de África para estes
compositores de jazz, mas sim uma energia que gera possibilidades amplas de conceber
a África, sempre “novas e mutáveis”. (WEINSTEIN, 1993, p.VII). As questões
abordadas por Weinstein em seu livro trazem inúmeras possibilidades de reflexão sobre
como estes imaginários de África se processam também na realidade brasileira, visto
que o país acabou, de certo modo, sendo um dos maiores mantenedores das tradições
culturais, sociais e religiosas de matrizes africanas na Diáspora, e que conseguiu
abranger um imaginário muito mais amplo sobre as relações de África com o que era
conservado destas tradições no Brasil, mesmo tendo ciência da distância temporal que
separava a chegada destas tradições no país. O estudo destes aspectos também se mostra
relevante segundo a ótica de Fernando Augusto Albuquerque Mourão (1996), para
quem:
A arte africana, designação genérica de vários gêneros, é um instrumento da
maior importância – enquanto método auxiliar no estudo da História -, na
medida em que seja entendida em seu contexto. Embora os fundamentos da
8
arte africana sejam comuns a todo o continente, cada grupo cultural apresenta
as suas especificidades. Note-se que, durante longo tempo, os estudos sobre a
arte africana centram-se, em geral, ora em trabalhos em que se dava primazia
a aspectos particulares, ora em outros, em que se privilegiavam os aspectos
gerais, ambos permeados por conceitos em que a arte africana surge como
objeto. (MOURÃO, 1996, p.7).
2
Sacerdote do candomblé responsável pelo culto de Orunmilá-Ifá.
9
Esse fluxo entre Rio de Janeiro e Bahia tornou-se comum a partir do momento
da abolição, pois segundo Roberto Moura (1995), uma grande quantidade de ex-
escravos e libertos rumou para a então capital brasileira na expectativa de encontrar
melhores condições de trabalho, além de que os negros da Bahia estavam encontrando
uma relutância muito grande para que ocorresse sua inserção na sociedade, o que era
corroborado pela política local. Foram estes grupos negros vindos da Bahia, segundo
Roberto Moura (1995), que foram responsáveis por aglutinar ao seu redor a comunidade
negra no Rio de Janeiro, que posteriormente ia concentrar-se ao redor da Praça Onze,
numa região chamada por Heitor dos Prazeres de “Pequena África” (MOURA, 1995,
p.93). É neste reduto negro carioca que irá surgir o Samba, através do auxílio das Tias
Baianas, filhas de santo dos terreiros cariocas que além de venderem comidas
tradicionais baianas, ainda utilizavam suas casas como reduto da boemia, das rodas de
música e para as obrigações de orixá.
É partindo deste ponto de junção dos valores tradicionais africanos das
diferentes regiões brasileiras no Rio de Janeiro que se inicia esta pesquisa.
No primeiro capítulo, analisaremos as percepções de África existentes na música
brasileira a partir da década de 30, período em que a maioria dos autores que serão aqui
abordados mencionam como sendo o surgimento das primeiras gravações da indústria
fonográfica que permeavam estéticas e temáticas de matrizes africanas. Assim,
avaliaremos a construção da identidade nacional concebida durante a era Vargas,
analisando como se dava a relação do Estado com as culturas de matrizes africanas,
pensada inicialmente como detentoras de um atraso, segundo as teorias raciais ainda
vigentes, e a mudança para um paradigma de mestiçagem, baseado na teoria da
“democracia racial”. Serão apontadas e analisadas as relações dos grupos intelectuais
com o Estado, o espaço social das culturas africanas e as relações do Estado perante as
religiões afro-brasileiras, tudo isto entremeado pelo avanço da indústria fonográfica e do
rádio, que acabavam refletindo estes acontecimentos com as culturas negras.
No segundo capítulo, iremos abordar um panorama mais abrangente, tratando
das décadas de 60 e 70, com o surgimento de diversos movimentos musicais no Brasil e
retratando brevemente os ecos da ditadura militar nestas produções. Para isto,
utilizaremos como referência o artigo Foi conta para todo canto: as religiões afro-
brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro de Rita Amaral e Vagner
Gonçalves da Silva (2006), onde estes analisam a presença das religiões de matrizes
africanas na música popular brasileira do século XX. Na parte em que eles tratam da
10
periodização das décadas de 60 e 70, um montante de artistas são elencados para se
analisar a presença das religiões afro-brasileiras em suas obras. São eles: Elis Regina,
Jair Rodrigues, Vinicius de Moraes e Baden Powell, Noriel Vilela, Martinho da Vila,
Clara Nunes, Luiz Américo, Ruy Mauriti, Os Tincoãs, Wando, João Bosco, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa.
Como todos estes compositores e intérpretes são abordados no texto destes
autores, por mais que, devido à sua proposta, alguns só possam ser tratados no texto de
maneira superficial, às vezes apenas citados, decidimos por tratar outros aspectos de
alguns destes músicos, que não sejam analisados no texto de Amaral e Silva (2006), e
trazer elementos de outros músicos e compositores que não são citados no texto, e que
são talvez ainda mais essenciais para a nossa compreensão acerca do imaginário de
África na música popular deste período, como os grupos Tribo Massahi e Vissungo e o
compositor e cantor Marku Ribas, que se propuseram a dialogar com as novas
sonoridades produzidas no continente africano.
No terceiro e último capítulo, no qual serão tratadas as produções fonográficas
realizadas a partir do ano 2000, analisaremos o modo como as percepções construídas
sobre África em períodos anteriores serão refletidas no imaginário dos autores
contemporâneos; as possibilidades do uso da internet e de outras tecnologias para novas
descobertas sobre o continente africano; o papel contemporâneo das religiosidades de
matrizes africanas; além da construção de um discurso de reparação às culturas
africanas. Dentro destas perspectivas, tentaremos compreender a relevância do
pensamento afrocêntrico para a construção da identidade dos artistas aqui analisados.
Nesta pesquisa investigaremos o pensamento de uma série de autores que tentam
compreender os diferentes modos como a África se reprocessou e ainda se reprocessa
dentro da cultura brasileira, seja na música, na religiosidade, na literatura, nas festas
populares, no pensamento político ou no próprio discurso dos afrodescendentes, que
acaba perpassando qualquer questão ligada meramente à “tonalidade da pele” para a
relação de identificação destes indivíduos com as culturas que vem de África.
Além deste projeto se destinar a analisar o modo como se processa o imaginário
de África na música brasileira, pretendemos também resgatar a memória de inúmeros
artistas e discos que foram excluídos da história da MPB, não apenas por não atingirem
sucesso comercial e destaque nas grandes mídias da época, mas por não se encaixarem
nos padrões estético-musicais estabelecidos pelos críticos historiadores da MPB, que
muitas vezes só conseguem enxergar alguma presença de África na música nacional
11
através de características antropológicas folclorizantes pautadas em manifestações
tradicionais de cunho “puramente” africanista.
Os conceitos de África para a civilização ocidental, ainda são incutidos de uma
carga homogeneizante e depreciativa. Para Helenise da Cruz Conceição e Antônio
Carlos Lima da Conceição (2010):
As visões mais comuns sobre a história africana ou se constituíram com base
em preconceitos etnocêntricos, apresentando a África como um lugar
atrasado, inculto ou na posição de dominados criando a falsa idéia de serem
povos passivos, impotentes, incapazes de resistência, de atuação e
intervenção na história. (CONCEIÇÃO; CONCEIÇÃO, 2010, p.3).
12
1. IDENTIDADES NEGRO-AFRICANAS NAS DÉCADAS DE 30 A 50
Durante a era Vargas o Brasil foi marcado por intensas mudanças sociais,
econômicas e políticas, passando por um momento de adaptação e inserção das classes
sociais menos favorecidas na sociedade brasileira. Estes grupos sociais eram em sua
maioria compostos de negros ou mestiços, descendentes de africanos escravizados que
mesmo com o advento do fim da escravidão e da república continuaram relegados à
margem da sociedade. Ao assumir o poder a partir da revolução de 30, Vargas se
deparou com um povo reticente, fechado às propostas políticas formuladas pelo Estado,
pois, passados mais de 40 anos da abolição da escravatura, não tendo o governo
estabelecido em todo esse tempo nenhum tipo de projeto eficaz de integração social
voltado para grupos populares, estes acabaram estabelecendo seus próprios meios de
inserção na sociedade. Segundo Rachel Soihet (2003), estes grupos negros do período:
Rejeitaram a segregação que se lhes pretendiam impor e, a partir de suas
manifestações, desenvolveram formas alternativas de organização, vinculadas
ao terreno da cultura, elemento de coesão e de construção de identidade,
através da qual buscaram edificar uma cidadania. (SOIHET, 2003, p.305)
13
visando adquirir um semblante mais “civilizado”, ou seja, baseado em um padrão
europeu, segundo o ideal ainda recorrente de muitos intelectuais no início do século
XX.
À medida que a identidade nacional é construída pelo Estado com o auxílio de
intelectuais dos mais diversos campos do conhecimento, as características culturais
balanceadas entre o “civilizado” e o “bárbaro” acabam tornando-se “exclusivamente
brasileiras”. Para o Estado, só seria considerado legitimamente brasileiro o que se
encaixasse em suas perspectivas. As massas eram consideradas imaturas pelas elites
intelectuais, despreparadas, incapazes de governar a si próprias, portanto, o Estado seria
responsável por moldar a mente e a vida social delas.
14
promovidas por ele e apoiasse o seu projeto social. Entre os intelectuais do período que
participaram dessas discussões, podemos citar o sociólogo Gilberto Freyre, um dos
grandes responsáveis pela criação da teoria de “democracia racial”, discutida através do
seu livro Casa Grande & Senzala, escrito em 1933. Sobre o papel formador do Estado,
Lúcia Lippi Oliveira (2003) comenta:
Diferentes instrumentos de educação coletiva foram criados ou desenvolvidos
visando educar o povo, a promover o ensino de bons hábitos. O rádio, o
cinema educativo, o esporte, a música popular participavam desse objetivo
comum de integrar os indivíduos no novo Estado nacional. (OLIVEIRA,
2003, p.330)
Antonio Ozaí da Silva (2002) também corrobora com este pensamento quando
diz que a condição do negro na sociedade brasileira, mesmo após a revolução de 30, não
sofreu grandes mudanças em comparação à República Velha (denominação dada pelos
golpistas de 30 ao período da república que antecedeu o golpe):
Esta situação não foi modificada com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder:
manteve-se o critério de que a política é uma atividade restrita às elites. E isto
foi ainda mais aprofundado durante o Estado Novo: cabia às camadas
inferiores do povo, sendo a raça negra sua maioria, contentar-se com a função
submissa de colaborar para a harmonia e a manutenção da ordem social,
condições para o progresso e o desenvolvimento econômico brasileiro.
(SILVA, 2002)
15
intelectuais encabeçados pelo médico e psicólogo Ulysses Pernambucano terão maiores
liberdades de culto; até a figura do malandro será suavizada para se encaixar com a
ideologia pregada pelo regime. Foi visando assegurar estas premissas que foi criado o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Além de órgão de propaganda do
governo, o DIP iria servir também como instrumento de censura, pronto a rechaçar
qualquer atitude que não fosse condizente com os planos que o Estado tinha para as
massas.
Durante o período do Estado Novo, o governo promoveu através do DIP uma
“orientação” aos compositores populares visando o enaltecimento de temas
considerados importantes pelo regime, como a questão do “trabalho”, e ao mesmo
tempo, o abandono de temáticas julgadas impróprias como a boemia e a malandragem.
Os tipos do boêmio e do malandro enaltecidos nas composições do período eram o
retrato dos negros e mestiços que não se submetiam ao sistema ou que por não se
encaixarem na sociedade, que, como falado anteriormente, após a abolição não
promoveu a inserção destes grupos, acabaram encontrando outros meios de
subsistência. Era esta associação à figura do negro que o Estado queria “abolir”.
Este foi o caso de uma canção composta em parceria entre os sambistas Wilson
Batista e Ataulfo Alves. Batista foi um compositor que exaltou a figura do malandro
através de composições como Lenço no Pescoço, gravada por Silvio Caldas em 1933, a
qual gerou uma polêmica com o sambista Noel Rosa, que fez uma resposta à
composição de Batista, intitulada Rapaz Folgado. Em um samba de 1940, Bonde São
Januário, Batista e Alves contam a história de um homem que abandona a vida boêmia
para se tornar trabalhador, enfatizando a importância do trabalho como responsável por
prover a sua felicidade e dignidade. A letra da música diz o seguinte:
Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar
Antigamente
Eu não tinha juízo
Mas hoje
Eu penso melhor
No futuro
Graças a Deus
Sou feliz
16
Vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
Passe bem!
3
Grifo nosso.
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imaginário cristão em seus discursos, chegando inclusive a comparar Getúlio Vargas a
Jesus Cristo, devido aos “sacrifícios” que o então presidente teria feito em nome do
povo brasileiro. Porém, há um fato mais importante sobre isto, as religiões de matrizes
africanas e afro-brasileiras eram representativas de grupos tradicionalmente excluídos
da sociedade, considerados de menor importância para o Estado, principalmente se
comparadas com as religiões cristãs, portanto, não se encaixariam como símbolo de uma
identidade brasileira propagada por um regime voltado para a homogeneização das
massas através de um padrão ocidentalizado.
Ao mesmo tempo em que pretendia fazer a inserção dos negros e mestiços na
sociedade, e mesmo propunha a construção de uma identidade nacional voltada em
parte para as manifestações brasileiras de matrizes africanas, o Estado promovia um
“embranquecimento” dessas manifestações, padronizando-as ao seu gosto, numa
adaptação da realidade brasileira aos moldes ocidentais “civilizados”.
A década de 30 foi um período de crescente desenvolvimento da indústria
fonográfica no país, além da radifônica, pois o rádio desempenhou um importantíssimo
papel na divulgação da música feita no Brasil desde a sua inauguração na década de 20,
principalmente através da promoção do samba carioca, ritmo de origem afro-brasileira
que tomava as ruas através do carnaval carioca e que penetrava no dia-a-dia dos
brasileiros através do rádio e dos fonogramas que aos poucos iam fazendo parte do seu
cotidiano. Segundo Hermano Viana (1995):
Nada mais propício para o samba carioca, mais tarde tido como brasileiro,
finalmente se definir como estilo musical. Em sua própria cidade, já havia as
rádios, as gravadoras e o interesse político que facilitariam (mas não
determinariam – isso é outro problema) sua adoção como nova moda em
qualquer cidade brasileira. O samba tem “tudo” a seu dispor para se
transformar em música nacional (VIANNA, 1995, p.110).
18
registrado em grande parte da historiografia do samba, onde o processo que teria
ocorrido entre o samba passar de ritmo marginal a nacional é atribuído apenas ao seu
sucesso imediato no carnaval, a sua aceitação pela sociedade ocorreu gradualmente, e
devido a uma série de outros fatores que não apenas este, demonstrando estas
“mediações culturais” e o interesse do Estado em formar uma identidade nacional
voltada às características populares como fatores importantes nesse processo.
Entre tantos acontecimentos ocorridos na década de 30, um em particular será
essencial para a disseminação e reconhecimento dos aspectos africanos na cultura
nacional. A realização do I Congresso Afro-Brasileiro em Recife, no ano de 1934, e a
do II Congresso Afro-Brasileiro em Salvador no ano de 1937. O fato de que as
temáticas afro-brasileiras estavam inserindo-se de tal modo no campo acadêmico a
ponto de incitarem a realização de congressos demonstra a importância que estas
temáticas haviam adquirido nos meios intelectuais. Muitos dos mais respeitados
pesquisadores brasileiros participaram dos dois congressos. Para termos uma
compreensão da amplitude que o congresso atingiu, entre os presentes da primeira
edição em Recife podemos citar diversos intelectuais como: Gilberto Freyre, Arthur
Ramos, Edson Carneiro, Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Solano Trindade,
Melville J. Herskovits, entre muitos outros. Já na segunda edição do congresso, ocorrida
em Salvador três anos após a primeira, estiveram presentes: os intelectuais Édison
Carneiro, Arthur Ramos, Áydano do Couto Ferraz, Dante de Laytano e Jorge Amado;
representantes dos terreiros da Bahia como Maria Escolástica Nazareth (a Mãe
Menininha do Gantois), Silvino Manuel da Silva (Ogã do Gantois), Eugenia Anna
Santos (Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá) e com presidência de honra do babalaô
Martiniano Eliseu do Bonfim, além também da presença de grupos como a Frente
Negra de Pelotas e a All African Convention.
Muitas temáticas foram debatidas, e a realização dos dois congressos contribuiu
essencialmente para a dinamização dos estudos afro-brasileiros e para a quebra de
alguns preconceitos, mesmo que em geral as suas pesquisas tenham ficado mais restritas
aos meios acadêmicos e intelectuais. As mudanças sociais geradas com a realização do
primeiro congresso já puderam ser sentidas três anos depois com a realização do
segundo, pois conforme Flávio Gonçalves dos Santos (2001):
Este se realiza com uma característica diferente do I Congresso de Recife. Na
edição de 1937, os tributários da cultura afro-brasileira figuram lado a lado
dos estudiosos nacionais e estrangeiros sobre o assunto, com um discurso de
autoridade, usando os sinais diacríticos da cultura dominante, deixando de ser
19
apenas objeto do discurso de outros e passando a produtor de discursos sobre
si mesmos. (GONÇALVES, 2001, p.9)
4
Macumba é a denominação genérica dada na primeira metade do século XX às religiões de matrizes
africanas do Rio de Janeiro.
20
Odeon, de Nº 10.690, onde interpretavam dois outros pontos: Ponto de Inhãcã e Ponto
de Ogum. Segundo o pesquisador e compositor Nei Lopes (2005):
Em 1930, Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro em disco de cânticos
rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um
ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. [...] O pioneirismo dos sambistas
Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco
verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos
pontos de macumba, com atabaques etc. (LOPES, 2005, p.5)
21
pautadas numa tradição religiosa de origem africana, visto que as quatro gravações
tratam de orixás do candomblé que foram absorvidos pela Umbanda, como também
uma maior possibilidade de aceitação desse tipo de música no mercado. A Umbanda
surgiu na década de 20 como uma espécie de “branqueamento” dessas manifestações
africanas, suavizando a sua ritualística com a inserção de elementos de outras religiões,
além de retirar os elementos considerados pela visão eurocentrista como “não
civilizados”, a exemplo da curiação5. Segundo Livio Sansone (2003)
A umbanda tem sido comumente vista pelos antropólogos (por exemplo,
Bastide, 1967; Ortiz, 1988) como uma forma “poluída” e “embranquecida”
de religião negra, uma vez que seu panteão inclui, além de um conjunto de
divindades de origem africana, elementos do espiritismo inspirados em Alain
Kardec, filósofo esotérico do fim do século XIX, diferentes tipos de magias e
alguns elementos do catolicismo popular. A umbanda continua muito popular
na classe baixa e na classe média baixa, mas raras vezes é tida como típica da
cultura negra. Na verdade, como me disse certa vez um umbandista, “a
umbanda é o Brasil, o candomblé é a África”. (SANSONE, 2003, p.105)
5
Processo de oferecimento de animais votivos aos orixás, chamado popularmente de sacrifício.
22
Preto véio fio do congo
Fica contente quando dança o jongo
Bate tamborim com a mão canhota
Lá vem a negraria de canela torta
23
regionais.”. Logo, dentro dos padrões de classificação musical do período, vários estilos
musicais que poderiam ser classificados como samba, devido, muitas vezes, à
predominância de elementos considerados “africanos”, acabaram assim recebendo
outras denominações, visando uma normatização do samba moldada segundo padrões
ocidentais. Já que agora o samba era considerado música nacional, teria de representar
então o “verdadeiro” viés nacional, que, segundo o padrão das elites, passava longe das
culturas tradicionais mantidas pelos negros.
O etnomusicólogo Carlos Sandroni (2010), ao analisar alguns fonogramas da
década de 30 que seriam pertencentes ao gênero samba, mas que foram catalogados na
época com outras designações como macumba, batuque e jongo, diz que:
Existe pois um certo número de gravações realizadas no período em exame,
que tem como tema principal o universo das religiões afro-brasileiras. Não
encontrei nenhuma cuja designação de gênero fosse ‘samba’. Estas gravações
envolveram personagens de destaque do mundo do samba, como
Pixinguinha, Donga e João da Baiana, pessoas que são geralmente
classificadas no Brasil como negros ou mulatos escuros. Nestas gravações a
designação de gênero escolhida é batuque, macumba, e jongo, mas não
samba. Isso acontece apesar do fato de que musicalmente não parece, numa
primeira abordagem, haver grande diferença em relação aos sambas gravados
no mesmo período (esta questão sugere a necessidade de um aprofundamento
da pesquisa). Demarca-se assim um domínio fonográfico onde a associação
com o africanismo é mais intensa, como sendo diferente do domínio do
samba. (SANDRONI, 2010, p.4)
24
Patrício Teixeira, numa musicalidade relativamente próxima da outra composição,
porém aqui registrada como Samba Jongo, pois mesmo sendo considerada uma
musicalidade mais tradicional, por tratar de uma temática cotidiana, ela não é
relacionada diretamente com religiões de matrizes africanas. É importante notar que
enquanto as composições de Pixinguinha na década de 30 eram em parte catalogadas
como choro e samba, sendo Yaou Africano e algumas outras composições tradicionais
feitas em parceria com Donga e João da Baiana um caso à parte, a maioria das
composições feitas por Gastão Viana no período foi catalogada como Samba. Fora Yaou
Africano, as poucas que fogem a essa regra são exatamente as suas composições que
tratam de temática religiosa afro-brasileira, como nos casos de No Terreiro de Alibibi e
Mironga de Moça Branca, gravadas pelo Conjunto Tupi em 1932, e Meus Orixás,
gravada por Francisco Sena em 1933, que são catalogadas como Macumba. Marcelo
Xavier diz que: “[...] o compositor Gastão Viana tinha o hábito de utilizar palavras
africanas em suas letras.” (XAVIER, 2007), no caos específico em yorubá, idioma
africano dos grupos sudaneses, utilizado nos rituais litúrgicos dos terreiros de
candomblé. Isso fica evidente na composição Yaou Africano:
Akikó no terreiro
oi Pelu adié
Faz inveja pra gente
Que não tem mulhé
Yô, Yô
No terreiro de preto véio, Iaiá
Vamos saravá
A quem meu pai?
Xangô
25
A inserção de elementos culturais africanos e das religiões afro-brasileiras ainda
era em uma escala pequena nas décadas de 30 e 40, devido, provavelmente, à
dificuldade de aceitação desses grupos na sociedade. As práticas modernizadoras do
Estado impeliam as manifestações populares tradicionais de cunho africano cada vez
mais para as periferias, promovendo uma verdadeira “limpeza” étnica nos grandes
centros urbanos, como ficou evidente no Rio de Janeiro desde as reformas empreendias
por Pereira Passos. Mesmo o apoio advindo de alguns grupos de intelectuais,
interessados na manutenção de certas tradições populares, não foi o suficiente para
conter o aumento do controle estatal sobre estes grupos.
Muitas práticas culturais mantidas por grupos negros e mestiços foram
marginalizadas e perseguidas pelos órgãos de repressão durante a era Vargas. Mário
Ribeiro dos Santos (2011) ao discutir a perseguição aos cultos afro-brasileiros ocorridas
no bairro recifense de Afogados durante as décadas de 30 e 40 demonstra como os
reflexos da intentona comunista (tentativa de golpe contra o governo de Vargas ocorrida
em 1935, durante a qual foram travadas batalhas no bairro) modificaram ainda mais as
práticas da localidade:
O acontecimento alterou significativamente o cotidiano do bairro, com a
circulação diária de soldados da Polícia Militar pelas ruas e becos; uma forma
de vigilância do comportamento social dos moradores, intensificando,
sobretudo, as perseguições e as proibições aos momentos de lazer e outras
práticas socioculturais protagonizados pela população afro-descendente. As
freqüentes batidas policiais nos Xangôs, o número de prisões de religiosos do
candomblé e o funcionamento clandestino de muitas casas de culto
constituem reflexos da atuação da imprensa e da ideologia defendida pelo
Estado no período. (SANTOS, 2011, p.3)
26
Deste modo, mais uma vez, é possível verificar que o discurso perpetuado pelo
Estado de um governo voltado para as massas seria apenas o de legitimar-se através de
pequenas concessões necessárias para fazer o povo sentir-se acolhido pelo regime. Este
ideário pode ser verificado no livreto Catecismo cívico do Brasil Novo, publicado em
1937, espécie de cartilha com perguntas e respostas destinada à “formação cívica das
crianças” (CAPELATO, 2003, p.124), num trecho de resposta que faz a seguinte
afirmação: “Obedecendo, portanto, ao Chefe que o representa, o povo, apenas, se
conforma com aquilo que ele próprio deseja e é executado pelo depositário de uma
autoridade por ele conferida.” (apud CAPELATO, 2003, p.124). Ou seja, o governo
sabe o que o povo “deseja” e, portanto, suas políticas públicas são voltadas para o
cumprimento da “vontade” das massas, homogeneizando assim suas vontades ao redor
dos próprios interesses do Estado.
Mesmo assim, é importante observarmos que o Estado foi um grande apoiador
do Samba e do Carnaval. Rachel Soihet (2003) afirma isto quando assinala que:
Vargas, a partir de sua ascensão, percebe o potencial do quadro vigente,
buscando valer-se da música popular e das agremiações carnavalescas como
veículo para a integração dos populares no projeto de construção da
nacionalidade. (SOIHET, 2003, p.309).
27
gravadas pelo conjunto Filhos de Nagô em 1931; Quilombô e Pisa no Toco de Getúlio
Marinho “Amor”, gravadas por João Quilombô em 1932; Palavra de Caboco, Rei do
Fogo, Nego de Pé Espaiado e Cadê Viramundo, compostas por J.B. de Carvalho e
gravas pelo Conjunto Tupi entre os anos 1931 e 1932; Sereia e Folha por Folha, de
Getúlio Marinho e João da Baiana, gravadas pelo próprio João da Baiana em 1938;
Lamento Negro de Humberto Porto & Constantino Silva, pelo Trio de Ouro em 1939;
Promessa de pescador de Dorival Caymmi, gravada por ele próprio em 1939 (sendo
esta sua primeira gravação como intérprete solo); entre algumas outras mais compostas
e gravadas no período e que abririam espaço na indústria fonográfica para um campo
cada vez mais crescente de músicas voltadas para as religiosidades de matrizes
africanas.
É importante identificarmos que a grande maioria dos compositores desse
período que abordam as religiões de matrizes africanas em suas obras são pertencentes
aos grupos sociais que as praticam. Alguns foram Pais-de-santo, como Elói Antero Dias
(o Mano Elói); muitos deles foram frequentadores das casas das tias baianas na Praça
Onze, como Pixinguinha6 e Getúlio Marinho, ou mesmo filhos delas, como Donga e
João da Baiana, criados dentro da vida social dos terreiros, participando das festas,
vivenciando a religiosidade e as tradições africanas. Fiéis ou ao menos frequentadores
esporádicos, convivem em seus cotidianos com estas manifestações, afinal, a música
popular (diga-se de passagem, o samba e suas vertentes) deve uma parte de suas origens
aos terreiros de macumba, local onde possivelmente se mantiveram mais vivas as
tradições culturais africanas.
6
Caroline Moreira Viana (2010) diz que “Pixinguinha, por exemplo, fora ogã de terreiro de candomblé”
(VIANA, 2010, p.127)
7
Traduz-se: Música nativa brasileira.
28
Lobos da tarefa de reunir a nata dos músicos populares brasileiros. Entre os convidados
para as sessões de gravação, que ocorreram no próprio navio, estavam os músicos
Pixinguinha, João da Baiana, Jararaca, Ratinho, Zé da Zilda, Janir Martins, Cartola (em
sua primeira gravação como intérprete) e Zé Espinguela. As gravações foram realizadas
entre os dias 7 e 8 de agosto de 1940 e lançadas em disco no ano de 1942, porém apenas
no exterior. O disco traz um importante registro do sambista, jornalista e pai-de-santo
Zé Espinguela, um dos fundadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira,
acompanhado pelo Grupo do Pai Alufá8. Entre as composições gravadas por Zé
Espinguela, três foram lançadas no disco: os pontos de macumba Macumba de Ochóce
e Macumba de Inhaçan, e o corimá9 Cantiga de festa, todas parcerias suas com Donga.
O jornalista Cristiano Bastos (2012) ao falar sobre o contexto histórico em que
estas sessões foram produzidas, pontua que:
A iniciativa que levou à gravação desses registros foi parte da chamada
“Política de Boa Vizinhança”, colocada em prática pelos Estados Unidos no
período de aproximação diplomática com países da América Latina, no
contexto da Segunda Guerra Mundial. (BASTOS, 2012)
Por mais que o disco Native Brazilian Music não tenha sido lançado no Brasil
até 1987, a gravação destas composições torna-se não só um importante registro do
período (são os únicos fonogramas lançados de Zé Espinguela), como também marcam
através de Stokowski o crescente interesse dos estrangeiros pela cultura dos grupos
tradicionais (que já era evidente em períodos anteriores através de figuras como o
maestro francês Darius Milhaud e o poeta Blaise Cendrars).
Os anos 40 marcam uma abrangência da intelectualidade negra em diversos
setores culturais e políticos. A formação da Orquestra Afro-Brasileira em 1942; a
criação do grupo Teatro Experimental do Negro em 1944, idealizado e dirigido por
Abdias do Nascimento; A ampliação das publicações da chamada Imprensa Negra, com
o lançamento do célebre jornal Quilombo, também dirigido por Abdias do Nascimento;
a formação de grupos antirracistas como a União dos Homens de Cor; entre vários
outros episódios. Gradualmente os grupos negros iam conquistando seu espaço na
sociedade, ainda que a duras cargas.
A Orquestra Afro-Brasileira, fundada pelo maestro mineiro Abigail Moura em
1942, é pioneira no contexto de abertura de novos espaços para as culturas musicais
8
O termo Alufá era utilizado na Bahia para designar os líderes religiosos mulçumanos, assim como para
designar os sacerdotes do culto de Ifá. Após a Revolta dos Malês na Bahia o uso desse termo passou a ser
proibido, passando assim os sacerdotes yorubás a serem designados como Babalaôs.
9
Ritmo tradicional de origem afro-brasileira, associado aos pontos de terreiro.
29
negras. Em um panfleto assinado pelo maestro e criador da Orquestra, ela era assim
definida:
A Orquestra Afro-Brasileira é um conjunto que divulga a arte e cultura
musical do negro no Brasil. Tem a sua estrutura rítmica nos instrumentos
bárbaros (de percussão), e harmônica nos instrumentos civilizados - piano-
saxofones-pistons e trombone. A minha música, creio, não sente a influência
do Jazz. Obedece, sim, a suas escolas: primitiva e contemporânea. (MOURA,
s.d.)
30
das mais uteis e interessantes no setor da expressão musical do negro."
(NASCIMENTO, 1948, p.6).
Mesmo com a boa repercussão que a Orquestra Afro-Brasileira teve, fazendo
espetáculos na Escola Nacional de Música, na UNE, na Associação Brasileira de
Imprensa, no Teatro Municipal, entre outros, só terá seu primeiro registro gravado em
1957, o disco Obaluayê10, que entre os temas apresentados faz exaltações às
ancestralidades, religiosidades e elementos culturais africanos, representados através da
diáspora e da escravidão. Na música Saudação ao Rei Nagô, a letra inicia dizendo o
seguinte: "Rei vem logo da corte imperial / Vamos saudar nosso rei Xangô / Salve o
reino da linha yorubá / Salve o trono do meu rei nagô...”, evocando não só a questão da
religiosidade, através do orixá Xangô, como também ao exaltar o próprio orixá como
rei, rememorando a existência de reis, reinos e cortes na África, um passado que o
colonizador tentou apagar dos africanos escravizados, mas que nunca foi realmente
esquecido.
10
Orixá iorubano relacionado à varíola e às doenças infectocontagiosas. Também conhecido como
Omolú.
31
Podemos verificar que no período, as músicas rituais de origem afro-brasileira já
passam a ser categorizadas como Umbanda, por mais que atreladas a uma categorização
folclorizante. As composições contidas no disco caracterizam bem a Umbanda ao
transitar por temáticas tão distintas como os orixás africanos, os santos católicos, deuses
indígenas e entidades afro-brasileiras. Porém, o espaço atribuído a cada uma dessas
características pelo texto de apresentação acaba seguindo uma visão eurocêntrica, ao
afirmar que:
Nesses cantos de origem litúrgica e sentimental, estão entrelaçados à poesia
do europeu, em sua religiosidade católica, a súplica e o lamento dos negros
africanos, sob jugo do cativeiro, e tôda a nobreza dos ameríndios, com sua
índole guerreira e selvagem. Foi, nesta fonte tão rica de motivos, que foram
recolhidos, selecionados e ambientados, os pontos rituais, curimbas e danças
que compõem este Long-playing. Houve nesta escolha, o cuidado de agrupá-
los e cruzá-los dentro da mesma fôrça a que cada qual está ligado, evitando
assim, o chamado "choque de fôrças". (MELODIAS DE TERREIRO,
1955)
11
O disco Macumba foi lançado no ano de 1958 pela Sinter e reeditado em 1968 pelo selo Fantasia. Em
1972 foi relançado na coleção No Tempo dos Bons Tempos da Phonogram, com o título Em Tempo de
Macumba.
32
Ao analisar o espaço existente na indústria para gravações com temáticas afro-
religiosas, além também da receptividade dos intérpretes e da inspiração dos
compositores, entre as décadas de 30 e 50, Rita Amaral e Vagner Gonçalves (2006)
afirmam:
Entre as décadas de 1930 e 1950 o crescimento das indústrias fonográfica e
cinematográfica e da radiodifusão trouxe consigo um grande impulso na
produção da música popular brasileira. Neste contexto as referências ao
universo religioso afro-brasileiro cresceram e praticamente todos os grandes
intérpretes gravaram alguma canção aludindo ao tema. (AMARAL; SILVA,
2006, p.203)
12
João da Baiana chegou a gravar um disco em parceria com Sussu, Batuques e Pontos de Macumba,
lançado pelo selo Odeon, no ano de 1957.
33
2. CONFIGURAÇÕES IMAGÉTICAS DE MATRIZES AFRICANAS
34
O movimento negro brasileiro acaba adquirindo grande respaldo em meio a estes
movimentos culturais e políticos, porém, as graduais conquistas ocorridas nos campos
étnico raciais acabam sendo esvaziadas a apartir do golpe militar de 1964. Segundo
Petrônio Domingues (2007):
O golpe militar de 1964 representou uma derrota, ainda que temporária, para
a luta política dos negros. Ele desarticulou uma coalizão de forças que
palmilhava no enfrentamento do “preconceito de cor” no país. Como
conseqüência, o Movimento Negro organizado entrou em refluxo. Seus
militantes eram estigmatizados e acusados pelos militares de criar um
problema que supostamente não existia, o racismo no Brasil. (DOMINGUES,
2007, p.111).
35
2.1. Os ecos que vem da África
Na década de 60, em tempos de Bossa Nova, movimento que Nei Lopes (2005)
definiu como uma tentativa de desafricanização da música negra nacional, devido a uma
redução da parte rítmica em sua musicalidade, surge o disco Coisas do maestro
pernambucano Moacir Santos, lançado em 1965, uma suíte afro-jazzística, dividida em
10 partes, todas chamadas de Coisas, o equivalente do maestro para o termo musical
13
Movimento de retomada das tradições religiosas consideradas de caráter mais puramente africanas.
36
Opus14. Santos foi um importante arranjador de discos de Bossa Nova, e nessa série de
composições apresenta um resgate das tradições africanas na música nacional, através
de uma roupagem orquestral que aproxima as peças do Jazz e da música erudita, um
disco que se aproxima da musicalidade Samba-Jazz15, mas que vai além deste rótulo,
chegando a lembrar em alguns momentos o disco Kenya, lançado em 1957, do jazzista
cubano Machito, que foi influente no cenário do Jazz afro-cubano em Nova York.
João Marcelo Zanoni Gomes (2009) em sua dissertação “Coisas” de Moacir
Santos realiza uma análise histórica e musical deste disco, demonstrando em alguns
momentos como as musicalidades desta obra conseguem remeter a um imaginário de
África, através do depoimento de diversos especialistas. O próprio autor comenta esta
atribuição do disco em relação ao montante da obra de Santos:
De fato, especialmente em relação ao Coisas, muito se fala a respeito da
linguagem harmônica particular do compositor, do uso da polirritmia de
origens africanas em seus arranjos e da forte presença de elementos da
música popular brasileira e latina em suas músicas [...]" (GOMES, 2009,
p.29).
2.2. Afro-sambas
14
Opus vem do latim, e significa obra, termo utilizado na música erudita para definir uma série de peças
conectadas umas às outras, e de numeração definida a partir de ordem cronológica das composições.
15
Gênero desenvolvido no Brasil na década de 1960, que apresenta uma síntese da Bossa Nova e dos
ritmos de Samba com Jazz norte-americano, particularmente Bebop e Cool Jazz. Disponível em:
<http://rateyourmusic.com/genre/Samba-Jazz/>. Acesso em: 22 jul. 2013. Tradução nossa.
16
POWELL, 2000 apud GOMES, 2009, p. 42. Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo,
Segundo caderno, de 24 de março de 2000.
37
do terreiro Ilé Axé Mariolajé, acompanhada por um coro, e no lado B, capoeiras e
sambas de roda interpretados por Mestre Bimba e coro. Moraes ficou tão impressionado
por aquelas musicalidades que apresentou o disco ao seu parceiro, o violonista Baden
Powell, que posteriormente em excursão pela Bahia, acabou tendo a oportunidade de
presenciar as manifestações culturais presentes naquele disco. O historiador da MPB,
Luiz Américo Lisboa Junior (2005), fala sobre este contato de Baden Powell com a
cultura negra baiana:
Em 1962 Baden visita a Bahia para apresentar um show com Silvia Teles no
Country Club, familiariza-se com artistas e intelectuais baianos, demonstra
seu interesse pelas tradições afro baianas e acaba sendo apresentado ao
capoeirista Canjiquinha que o leva a terreiros, rodas de capoeira e o mais
importante interpreta para ele os cânticos e sons do candomblé. Baden fica
fascinado, não propriamente pelo sentido místico do que vira, mas sim pela
beleza das harmonias do que ouvira. (JUNIOR, 2005).
38
terreiro, tocado usualmente por ogãs17 ou alagbês, para a musicalidade da MPB. O
próprio Vinícius de Moraes (1966), no texto da contra capa do disco, ressalta a
importância desta musicalidade construída por Baden Powell:
Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para
a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do
espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo
tempo uma dimensão mais universal. Tirante algumas experiências
características - como fez, por exemplo, meu querido e saudoso
amigo Jayme Ovalle com os "Três Pontos de Santo" - nunca os temas negros
de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza
rítmica como por exemplo esse "duende da floresta afro-brasileira de sons"
como eu disse de Baden Powell numa frase feliz. (MORAES, 1966).
O pesquisador Frank Michael Carlos Kuehn (2002), em seu artigo Estudo sobre
os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de Vinícius de Moraes e
Baden Powell: os “afro-sambas”, comenta sobre a associação da musicalidade do disco
com os terreiros de Candomblé:
Composição e arranjo do Canto de Xangô parecem recriar um ambiente de
terreiro. Nos ritos do candomblé, o agogô e os atabaques – distintos tanto em
tamanho e afinação quanto em sua função – são indispensáveis para a
realização do culto, fato que também esclarece porque estes instrumentos
participam de praticamente todas as faixas do disco. (KUEHN, 2002, p.12)
17
Designação genérica atribuída a diversas funções masculinas dentro dos terreiros de Candomblé, porém
mais comunmente associada às funções musicais litúrgicas. Também denominado de Alagbê.
18
Entrevista com Baden Powell presente no filme Saravah (1969), dirigido por Pierre Barouh.
39
Nestes versos podemos perceber a ligação feita pelo poeta entre as
manifestações negras tradicionais da Bahia e o Samba, denotando que a Bahia seria o
berço das musicalidades de matrizes africanas no Brasil, especialmente do Samba. Na
composição, também há a presença da saudação Saravá, típica de religiões de matrizes
africanas, um pedido de bênção, que Moraes faz na composição à Iyalorixá Mãe
Senhora, do terreiro baiano Ilê Axé Opô Afonjá, e a diversos sambistas tradicionais
como Pixinguinha, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, entre outros. Da letra da canção,
Barouh tirou o nome de sua gravadora e título do seu filme, Saravah, uma saudação à
música brasileira de raízes africanas, representadas aqui através das musicalidades e dos
artistas apresentados através de Baden Powell.
O trio de sambistas tradicionais presentes no filme de Barouh, representantes da
velha guarda do samba, Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus, foi
responsável um ano antes pela gravação do disco Gente da Antiga, lançado em 1968, e
produzido por Hermínio Bello de Carvalho. O disco é uma tentativa de resgatar as
raízes da música popular brasileira, através de suas vertentes africanas, e é composto
por choros, sambas, batucadas e curimás. Clementina de Jesus, que estreou em
gravações através do registro do espetáculo Rosa de Ouro, de 1965, lançou seu primeiro
disco solo em 1966, pela Odeon, e segundo Hugo Sukman (2005), ela faria “[...] a ponte
entre a moderna música brasileira e suas mais recônditas raízes africanas: a música dos
escravos, os batuques e pontos de candomblé.” (SUKMAN, 2005 apud GOMES, 2009,
p.44). Clementina pode ser vista como a reencarnação de uma África ancestral
diretamente pros palcos, e daí para o mercado fonográfico. Segundo Nei Lopes (2005):
Descoberta para a vida artística já sexagenária, afirmou-se como uma espécie
de “elo perdido” entre a ancestralidade musical africana e o samba urbano.
Seu trabalho de maior expressão fez-se através da interpretação de jongos,
lundus, sambas da tradição rural e cânticos rituais recriados, como o já
mencionado “Benguelê”, de Pixinguinha. (LOPES, 2005, p.6)
40
dois grandes temas, Timolô Timodê no Lado A e Lido’s Square no Lado B, em formato
de jam session, duas grandes faixas contínuas subdivididas cada uma em quatro
composições. O disco da Tribo Massáhi é notável por propor tocar a ”música jovem
africana”, o que o certifica certo destaque em comparação com outros discos do
período, visto que enquanto a maioria dos artistas que tinham algum interesse nas
culturas africanas estavam mais preocupados com a questão da ancestralidade, o grupo
se identificava com o afro-funk feito no continente africano, absorvido de musicalidades
modernas vindas da América do Norte, como o Funk e o Soul. Não que a Tribo Massáhi
deixasse de lado a questão da ancestralidade, visto que entre seus temas são tratadas
personagens míticos ancestrais da cultura negra brasileira, como os preto-velhos, mas o
seu intuito de se conectar com o que estava acontecendo de novo nas sonoridades
africanas já demonstra um imaginário de África bem distinto do que era concebido no
período. O contato dos músicos brasileiros com a música moderna africana ainda era
muito restrito.
Outros grupos e artistas do período também incursionaram nessas novas sendas
da música funk e soul americana, misturando com musicalidades nacionais como o
samba, no movimento que ficou conhecido como Samba-rock. Porém alguns
penetraram mais forte nas levadas percussivas do groove, chegando a construir
sonoridades afro-funk e afro-rock, próximas aos estilos tocados por grupos jovens
africanos que despontavam por toda a África, em países como Nigéria, Ghana, Benin,
Costa do Marfim, Guiné, Angola, Togo e diversos outros. O grupo Free-Son foi um
destes. Em 1971 eles lançaram o disco Bengulê, repleto de guitarras psicodélicas,
teclados progressivos e instrumentos percussivos usuais no mundo do samba, como a
cuíca. Composto todos por temas instrumentais, as faixas possuem títulos como
Bahobab, Africana e Batá-Cotô, claras referências à tentativa de construir um
imaginário africano em torno do grupo, assim comoo título do disco, Bengulê,
corruptela de Benguela, cidade litorânea de Angola, que no Brasil também serviu para
designar os escravos vindos desta região (LOPES, 2005, p.114). Benguelê também é o
título de uma composição de Pixinguinha e Gastão Viana, e tem o sentido de um canto
de nostalgia, de saudade da terra africana deixada para trás.
Outro nome do período também foi muito importante para a percepção das
musicalidades vindas do continente africano. O cantor e compositor mineiro Marku
Ribas iniciou sua carreira solo lançando alguns discos durante a década de 70,
utilizando-se de vocalizações onomatopaicas e percussão corporal, e viajando para o
41
Caribe e para a África a fim de estabelecer contatos com a música desses locais. O
primeiro disco do cantor, Underground, lançado em 1973, tem levada Samba-Rock,
ritmo que estava em voga no período, misturando Samba, Rock, Jazz e Soul, e tem entre
suas músicas a canção N´biri N´biri, uma adaptação feita por Ribas para essa música
tradicional angolana. Inclusive as vocalizes e os títulos das canções presentes nos discos
de Ribas são bem próximas de idiomas angolanos como o Kimbundu e o Kikongo.A
ligação do cantor com a África era tão forte que ele foi o único brasileiro a participar
das festividades de independência da Namíbia, em 199019. Como ressalta o jornalista
Diego Ponce de Leon (2013): “Será pela raiz africana que Marku Ribas será lembrado.”
20
(LEON, 2013)
Outros artistas, porém, mesmo com o desejo de aproximarem-se de uma estética
sonora moderna africana, devido à dificuldade de terem acesso a essas sonoridades, só
puderam desenvolver algo similar posteriormente a essa época. É o caso do Grupo
Vissungo. Fundado em 1975, o grupo surge inicialmente com a ideia de pesquisar a
música negra feita por grupos tradicionais, e baseados na cultura angolana da qual dois
de seus membros fundadores seriam descendentes, os irmãos Luiz Antônio e Antônio
José do Espírito Santo, o Spirito Santo.
Antônio José do Espírito Santo (2007), pesquisador e vocalista do grupo, assim
caracteriza a proposta do Vissungo no período:
[...] a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de construir, a partir
desta pesquisa, um conceito de música negra brasileira moderna, coisa
impensável naquela época contraditória, onde a onda vanguardista da MPB
não chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra, espécie de
‘reserva técnica’ do folclore nacional. (SANTO, 2007)
Com apoio do historiador José Maria Nunes Pereira o grupo começa a ter maior
contato com as culturas africanas, percebendo após algum tempo a “grande similaridade
existente entre a cultura negra tradicional do Brasil e o que, em termos musicais, ocorria
na África contemporânea - notadamente Angola e Moçambique (SANTO, 2007). Após
algum tempo de vivência musical e de participar ativamente do Movimento Negro, os
membros do grupo acabam aproximando-se de artistas nacionais ligados às
manifestações negras tradicionais como a cantora Clementina de Jesus e o partideiro
19
Retirado do clipping de Marku Ribas no site Música Minas. Disponível em:
<http://musicaminas.com/uploads/listas/plusfiles/Marku_Ribas.pdf>. Acessado em: 22 de julho de 2013.
20
Matéria de Diego Ponce de Leon escrita por ocasião do falecimento de Marku Ribas no Correio
Braziliense. Publicada em 7 de abril de 2013. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2013/04/07/interna_brasil,359006/morre-em-
decorrencia-de-um-cancer-o-cantor-e-compositor-marku-ribas.shtml>. Acesso em: 15 jul. 2013.
42
Aniceto do Império. O grupo ainda chega a participar da trilha sonora do filme Chico
Rei, juntamente com Wagner Tiso, o único registro em disco na história do grupo.
Porém, só no final da década de 80 e início de 90, e através de excursões do grupo pelo
exterior é que eles conseguem se aproximar da sonoridade pop africana tão almejada
pelo grupo, o que levou-os a serem considerados como precursores do Afrobeat no
Brasil.
43
estava acontecendo no Brasil. Sobre sua experiência africana e o disco lançado a partir
desta Ana Maria Bahiana (2006) comenta:
Um dos álbuns mais controvertidos de Ceatano na década de 70 começou
com uma inocente e estimulante visita à África. A convite de Gilberto Gil,
frequentador do evento, Caetano foi a Lagos, na Nigéria, participar, em
janeiro de 1977, do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra. Foi uma
epifania - a música de raiz do continente africano não era estranha a Caetano,
é claro, mas foi o contato com a moderna música pop da Nigéria que operou
um verdadeiro curto-circuito criativo em sua mente inquieta. Com o rótulo
genérico de juju music, a moderna música africana, ao mesmo tempo tambor
e guitarra, metais e eletricidade, começava uma jornada que, dez anos depois,
dominaria a chamada worl music. (BAHIANA, 2006)
O disco de Caetano abre com a música Odara, palavra iorubana que significa
alegria, paz. A música, assim como as demais do disco, é um chamado à celebração, à
integração das etnias, repleto de um sentimento colaborativo africano que o músico
encontrou durante sua estadia na África.
A influência estética da experiência africana, no entanto é muito mais
perceptível no disco de Gil. Em 1977, após o retorno da África, Gilberto Gil gravou o
disco Refavela, uma declaração de amor às culturas africanas e afro-brasileiras, através
de muitos pontos culturais e sociais em comum encontrados pelo músico entre o Brasil
e a África. A ancestralidade africana é celebrada na obra pelo compositor através da
composição Babá Alapalá, sobre o Egun (espírito ancestral) de mesmo nome, ligado à
tradição familiar do orixá Xangô Aganjú. José Jorge de Carvalho (2003) no entanto, em
seu artigo A tradição musical iorubá no Brasil, em trecho em que fala sobre a presença
da influência iorubana na música popular brasileira, analisa a canção de Gil como
ausente destes traços característicos:
De Gilberto Gil tomemos a canção “Babá Alapalá”, do álbum Refavela , o qual reflete,
até nas fotos da capa, a viagem de Gil à Nigéria em 1977, por ocasião do FESTAC,
momento auge, portanto, de sua conexão com a cultura iorubá. A canção é
uma homenagem ao orixá Xangô Aganju e a Babá Alapalá, nome de um egun
muito conhecido na Nigéria e cujo culto continua vivo na Bahia, na Ilha de Itaparica, no
templo Ilê Agboula. A letra utiliza os sons da língua iorubá. Quando escutei essa música
pela primeira vez, no final do filme Tenda dos Milagres , de Nelson Pereira dos Santos,
pareceu-me fortemente “africana”, como se fosse um ícone da própria presença iorubá no
Brasil. Contudo, uma audição mais analítica permite constatar que sua textura rítmica é
inteiramente binária, não muito distante da música pop dançante, próxima do rock nacional.
Os poucos elementos de acentuação estão a cargo do contrabaixo e da guitarra,
porém todos os instrumentos obedecem ao compasso binário sem sequer
quebrarem os acentos em contratempos. A percussão não joga papel nenhum
no arranjo da canção. A impressão de influência iorubá se restringe, de fato,
às palavras Xangô Aganju e Babá Alapalá. (CARVALHO, 2003, p.14)
45
bastante em voga também na África neste período. Luciana Xavier Oliveira (2012) fala
sobre esta mudança estética na sonoridade de Ben, ao apontar que:
Em relação aos temas abordados em África Brasil, mesmo que nem todas as
faixas falem sobre a questão afro-brasileira diretamente, esta ligação está
fortemente representada pela seleção de instrumentos e de procedimentos
rítmicos usualmente presentes nas músicas de matriz africana desenvolvidas
no Brasil. Assim, podemos compreender também como forma de
engajamento a esta proposta a constância na utilização do atabaque,
instrumento de percussão típico do candomblé brasileiro, e de congas e
tumbas, oriundos da tradição afro-cubana, empregados de forma a conferir
uma sonoridade mais acústica em contraposição aos outros instrumentos
eletrificados. (OLIVEIRA, 2012, p.166)
Este disco é marcado também pela presença de alguns músicos que seriam
responsáveis por forjar os novos sons negros da década de 70, como o saxofonista
Oberdan Magalhães, o baterista Wilson das Neves e o percussionista Djalma Correa.
A musicalidade de Ben vai modificando-se com o tempo, à medida que lança novos
trabalhos, porém, as temáticas tratadas em suas composições sempre transparecem
aspectos da cultura afro-brasileira, entremeados por temáticas falando de amor e da
brasilidade. Ao longo das décadas de 60 e 70 ele vai aos poucos ressaltando
características culturais da negritude e personagens negros históricos em canções como:
Dandara, Hei; Jeitão de Preto Velho; O Nascimento de Um Príncipe Africano; Maria
Conga; Negro é Lindo; Zumbi entre outras. É em África Brasil, no entanto que estas
temáticas serão mais explicitadas, em um disco que já em seu título evidencia a
proposta temática a ser abordada. Embora seja marcado também por temas filosóficos e
esotéricos, voltados para a orientalidade, como nas canções Hermes Trimegisto
Escreveu, O Filósofo e Taj Mahal, as canções voltadas a temáticas afro-brasileiras são
bem marcantes, como em Xica da Silva21, que fala sobre Francisca da Silva de Oliveira,
uma escrava brasileira que foi alforriada e casou-se com um rico contratador de
diamantes, atingindo grande ascensão social; Ponta de Lança Africano
(Umbabarauma), que fala sobre um jogador de futebol africano; África Brasil (Zumbi),
uma regravação de sua música Zumbi, lançada originalmente em 1974, que fala sobre o
líder quilombola Zumbi dos Palmares, que lutou contra a escravidão no Brasil; além de
duas composições que tratam sobre o santo católico São Jorge, A História de Jorge e
Cavaleiro do Cavalo Imaculado, bastante cultuado pela Umbanda e sincretizado com os
orixás Ogum e Oxóssi.
21
A canção foi composta para o filme homônimo, lançado em 1976 e dirigido por Cacá Diegues.
46
2.4. Os deuses negros da MPB
47
a curiosidade aguçada sobre os mesmos a partir da fruição de suas obras.
(VASCONCELOS, 2009, p.14).
48
Dezembro, do compositor soteropolitano Tião Motorista, a qual fala sobre a festa
realizada no dia 4 de Dezembro em Salvador, em homenagem à santa católica Santa
Bárbara, quando também e celebrado o orixá Iansã, num momento em que as liturgias
católicas, candomblecistas e umbandistas se misturam:
No dia 4 de dezembro
Vou no mercado levar
Na baixa do sapateiro
Flores pra santa de lá
49
No início de 1971 fez sua primeira viagem à África, visitando Moçambique,
África do Sul e Angola, onde apresentou seu canto no primeiro concurso de
miss do país e conheceu danças populares. De volta, trouxe na bagagem
roupas, colares, peças de artesanato e muita inspiração para dar à África lugar
de destaque em sua carreira. (BRUGGER, 2008)
50
interpretação de boleros. Em 1962, com a saída de Erivaldo e a entrada de Mateus
Aleluia, o grupo passa a assumir uma identidade voltada à interpretação de cantos
sacros católicos e do Candomblé, e de tradições típicas baianas como o samba de roda e
a capoeira. Com o lançamento do seu primeiro disco, em 1973, o grupo assume
definitivamente a sua associação com a música afro-religiosa e afro-baiana, auxiliados
pela produção de Adelzon Alves, o mesmo que produzia Clara Nunes. Esta ligação do
trio com os aspectos do cotidiano baiano, associado aqui especificamente às tradições
culturais negras de origem afro-brasileira, é que permite a integração do grupo em um
espaço de evidência, como representantes de uma identidade afro-baiana que tinha
significativo destaque no período, por ser considerada como detentora mais fiel das
tradições africanas no Brasil. Segundo Livio Sansone (2003)
O estado da Bahia sempre desempenhou um papel central na construção da
“África” no Brasil. No passado, esse estado e a região que circunda sua
capital, Salvador (o Recôncavo), nem que fosse pelo simples tamanho de sua
população negra, despertou a atenção de viajantes, que a retrataram em seus
relatos como a “Roma Negra” — o maior conglomerado do que era
considerado como traços e tradições culturais africanos fora da África.
(SANSONE, 2003, p.93)
O trio chegou a gravar ainda mais 3 LP’s: O Africanto dos Tincoãs, de 1975, Os
Tincoãs, de 1977 e Afro Canto Coral Barroco, de 1983, este último ficando inédito por
20 anos, e a passar uma temporada em Angola, participando de projetos desenvolvidos
pela Secretaria de Estado da Cultura de Angola, e onde estabeleceram estreitas ligações
com as religiões tradicionais africanas (JUNIOR, 2005).
O percussionista pernambucano Naná Vasconcelos é outro legítimo
representante das tradições culturais de origem africana. Em 1971, início da
consolidação de sua carreira internacional, Vasconcelos gravou o disco Africadeus, pelo
selo francês Saravah, de propriedade do músico Pierre Barouh. O disco, basicamente
todo construído à base do berimbau, tem em seu lado A a composição Africadeus
(Concerto para Mãe Bio), na qual o percussionista presta homenagem a Severina
Paraíso da Silva, a Mãe Biu, Iyalorixá do Terreiro Santa Bárbara - Ilê Axé Oyá Meguê,
da Nação Xambá, comunidade que é categorizada como quilombo urbano, na cidade de
Olinda, Pernambuco, e da qual o músico foi ogã. A composição reassalta a tradição
ancestral afro-religiosa do músico, vivenciada no terreiro da Nação Xambá, através do
berimbau, instrumento africano de origem angolana. O próprio Naná Vasconcelos
(1971), em nota de apresentação, assim define o disco: “Africadeus marca uma etapa de
51
meu trabalho com o “Berimbau”, instrumento que é uma das bases musicais da
mitológica afro-brasileira.22” (VASCONCELOS, 1971).
2.4.1. MPB e religiões afro-brasileiras
Além de uma série de outros artistas que abordavam estas temáticas em seus
LP’s, os quais não pudemos abordar aqui, como João Donato, Candeia, Ruy Mauriti,
Sérgio Mendes, Cláudia, Zezé Motta, Noriel Vilela, Antonio Carlos & Jocafi, Osvaldo
Nunes, Bezerra da Silva, MPB-4, entre outros, boa parte desta produção afro-religiosa
das décadas de 60 e 70 foi lançado no formato de Compacto, através de artistas que
muitas vezes não conseguiram nem ao menos chegar a gravar no formato LP. Entre
22
“Africadeus marque une étape de mon travail avec le "Berimbau", instrument qui est une des bases
musicales de la mythologie afro-brésilienne.” (VASCONCELOS, 1971). Tradução nossa.
52
alguns destes fonogramas menos conhecidos do grande público, podemos citar: Maria
Creuza - Padê (1968), Osvaldo Nunes - Segura este Samba Ogunhê (1968), José
Ventura - Filho de Umbanda (1969), Matheus - Yemanjá (1971), Elymar - Prece a
Oxalá (1972), Barbosa - Seára de Oxalá (1973), Vanja Orico - Janaina (1974), Almir
Ricardi - Lá vem vovó (1975), Dora Lopes - Pai Edu (1976), Biga - Cao Cao Oba
(1977), Sosó da Bahia - A deusa das águas (1977), Raimundo José - Tá na hora do meu
santo baixar (1977), Amaro Jose - Obatala (1977), Dinalva - Reza do Congo (1977),
Carlos Jair - Berekete (1978), Vera de Ogum - O cantico de Nanã (1978), Fernando
Santos - As Iabás (1979), Ibejy - Ogun Yê segurou (197?), entre uma série de diversos
outros fonogramas, dos quais muitas vezes não é possível obter informações muito
precisas, quanto à data de lançamento e fichas técnicas das gravações, além da evidente
ausência de dados biográficos acessíveis sobre estes artistas.
53
contornos que extrapolaram os limites da religião. Nesse período, muitos
artistas, assim como os sacerdotes de outrora, dirigiram-se à África, uma
África muitas vezes mítica e idealizada, no afã de redescobrir uma essência
de brasilidade, sobretudo negra, que passou a ser cantada nas rádios e TVs.
(BAKKE, 2007, p.88)
54
em muitos casos, residem e produzem seus discos. (SANSONE, 2003, p.120-
121).
55
tradições culturais de matrizes africanas na década de 90. As músicas do grupo falam
em geral de situações do cotidiano, abordando o cotidiano da Região Metropolitana do
Recife e com um forte teor de crítica social. Chico Science & Nação Zumbi foram
responsáveis, junto a outros grupos surgidos no movimento cultural Manguebeat, por
resgatar tradições locais negras e dar-lhes uma roupagem global.
Diferente do proposto por Nei Lopes (2005), para quem o Manguebeat teria sido
responsável por uma modernização dos ritmos afro-nordestinos com o intuito de torná-
los menos “boçais” (LOPES, 2005, p.8), a proposta coletiva do movimento segue um
rumo distinto, não apenas de modernização do tradicional, mas também de
tradicionalização do moderno. Ao montar a Nação Zumbi, Chico Science, um grande
admirador da música negra norte-americana, tentou adaptar os arranjos de metais do
grupo do cantor James Brown, o JB’s, para as alfaias. Não seria este um modo de
adaptação do moderno, os metais funk do JB’S, para o tradicional, as alfaias tocadas
pelos centenários maracatus? Portanto, longe da “Intenção desafricanizadora” proposta
por Lopes (LOPES, 2005, p.8), este movimento, assim como outros subsequentes,
percebem muitas vezes uma África moderna, composta de culturas de uma
complexidade ainda distante de ser compreendida pela lógica ocidental.
56
3. AS (RE)APROPRIAÇÕES DE ÁFRICA NO SÉCULO XXI
23
Depoimento concedido por Paulo Dias para o Jornalista Jean-Yves de Neufville por ocasião de matéria
publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada "Africanidade musical brasileira". Publicada em:
maio de 2009. Disponível em:
<http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=258:african
idademusicabrasileira&catid=80:escritos&Itemid=89>.
57
Como podemos verificar, esse processo de busca dos elementos culturais de
origem africana no Brasil abarca não só os folguedos populares, como também as
religiões tradicionais, atingindo ainda outras áreas do conhecimento e de interação
social dos indivíduos, através de publicações especializadas no assunto e de revistas e
blogs na internet. A internet, aliás, torna-se uma ferramenta essencial para a
disseminação de conhecimentos sobre África na contemporaneidade. Mesmo que esta
presença de elementos africanos esteja tornando-se nesse período algo, para nós, cada
vez mais característico da produção musical brasileira, alguns especialistas, como é o
caso de Nei Lopes (2005) consideram exatamente o contrário, que está ocorrendo um
processo de desafricanização na música popular brasileira:
A presença africana na música brasileira, pelo menos em referências
expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita. Aparece, via Jamaica, no
carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas enredo das escolas cariocas e
paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades. Mas nada de
modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba e em outros
países do Caribe. [...] Acreditamos que a música popular brasileira, de raízes
tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo de
desafricanização ainda em curso. (LOPES, 2005, p.8).
58
Porém, do lado de fora da música estritamente mercadológica, pipocam na
internet, no My Space, uma pequena multidão de artistas que bebem
diretamente do tradicional. Branquinhos classe média com formação na
Berklee (é assim que se escreve?) lado a lado com jovens oriundos de
comunidades negras, dos pontos de cultura que o Gil sabiamente ideou. O
acesso ao digital multiplica por mil os compositores, os cineastas, os poetas
(veja-se os saraus poéticos da periferia paulistana como o da Cooperifa e do
Panelafro). A rede é dos peixes miudos; foi-se o tempo em que reinavam só
os graúdos. Quem tem voz ativa hoje nas periferias superpopulosas de São
Paulo são os rappers, que se voltam cada vez mais para a África, ainda que
espiritual e ideologicamente em princípio – nem todos eles têm acesso aos
ancestrais saberes da África no Brasil, pois nas metrópoles, a tradição
mercantilizada já se torna conhecimento privativo dos acadêmicos e da
juventude bem-nascida e bem-informada da Vila Madalena e de Santa
Tereza24. (DIAS, 2009)
24
Depoimento concedido por Paulo Dias para o Jornalista Jean-Yves de Neufville por ocasião de matéria
publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada "Africanidade musical brasileira". Publicada em:
maio de 2009. Disponível em:
<http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=258:african
idademusicabrasileira&catid=80:escritos&Itemid=89>.
59
3.1. Kiko Dinucci e a África macarrônica
25
Entrevista de Kiko Dinucci cedida Adriana Alves da Revista Rolling Stone por ocasião da matéria
Samba urbano sem caricatura , na Edição 12. Publicada em: setembro de 2007. Disponível em:
<http://rollingstone.com.br/edicao/12/kiko-dinucci>.
26
Idem.
60
narraram a cidade através dos sons, ou seja, a parte instrumental de suas canções
também traduziam sampa.27”
Junto a esse jeito paulista, do samba e da crônica urbana, da influência italiana
típica de bairros como o Bixiga, Kiko Dinucci foi criando interesse pelas influências
mais tradicionais, dos sons negros que ecoavam nas plantações de café paulistas.
Segundo Julio de Paula (2011):
A prática de ouvir sambas antigos, “de rádio”, como Donga e João da
Baiana, o levou a perceber uma forte aproximação dessas músicas com a
tradição dos terreiros. Antes, já acompanhava as danças negras de São Paulo,
como jongo e congada. Foi além. Passou a visitar as festas em casas
religiosas, escutando com atenção as batidas dos tambores e “tendo algumas
ideias”. (PAULA, 2011)
De suas pesquisas sobre Exu, resolveu fazer um documentário, pois segundo ele:
“Me incomodava a falta de conhecimento e esclarecimento sobre Exu em todos os
sentidos. Sabemos que no imaginário brasileiro Exu é comparado ao Diabo do mundo
cristão, tudo isso apoiado numa grande falta de informação.30” Em dezembro de 2005
ele iniciou as filmagens do documentário Dança das Cabaças – Exu no Brasil, no qual
se propôs a fazer “[...] uma investigação poética sobre a divindade africana Exu no
imaginário brasileiro.31” A ideia inicial de Dinucci era fazer algo referente a isso na
esfera musical, ou mesmo textual, mas segundo o autor :
27
Entrevista de Kiko Dinucci concedida ao blog EuOvo. Publicada em: 28 de feverereiro de 2010.
Disponível em: <http://euovo.blogspot.com.br/2009/04/o-samba-manco-de-kiki-dinucci-e-o-bando.html>.
28
Orixá mensageiro, protetor dos caminhos, aquele que guarda as encruzilhadas. Além de ser cultuado
como orixá no Candomblé, Exú também é cultuado como entidade em outras religiões, como Umbanda,
Quimabanda, Jurema, etc...
29
Entrevista cedida a Larissa Saram do Colherada Cultural - 21 de julho de 2011.
30
Trecho do texto Por Que Exu? de Kiko Dinucci, postado no blog do documentário Dança das Cabaças
– Exu no Brasil. Publicado em: Setembro de 2006. Disponível em:
<http://dancadascabacas.blogspot.com.br/2006/09/idia-inicial-de-realizar-o-documentrio.html>.
31
Trecho do release do documentário de 2006. Disponível em: <http://vimeo.com/1436330>.
61
[...] optei pelo formato audiovisual, já que existiam bons textos escritos por
sociólogos, antropólogos e etnologos, à exemplo de Roger Bastide, Pierre
Fatumbi Verger, Arthur Ramos, Nina Rodrigues, , Sergio Ferretti, Reginaldo
Prandi, Juana Elbein dos Santos entre outros. 32(DINUCCI, 2006)
Abre o caminho
Pro mensageiro passar
Laroyê
32
Trecho do texto Por Que Exu? de Kiko Dinucci, postado no blog do documentário Dança das Cabaças
– Exu no Brasil. Publicado em: setembro de 2006. Disponível em:
<http://dancadascabacas.blogspot.com.br/2006/09/idia-inicial-de-realizar-o-documentrio.html>.
33
Entrevista cedida ao programa Radiola Urbana 62, com André Maleronka, Filipe Luna e Ramiro
Zwetsch. 2008. Disponível em: <http://blog.revistaurbana.com.br/?p=959>.
34
Comida votiva de Exu. Segundo a tradição, Exu é o Orixá que come primeiro, pois ele é o responsável
por abrir os caminhos. Só depois que lhe for oferecido o Padê (farofa feita com dendê) é que os trabalhos
podem ter início.
62
João Batista na canção Machado de Xangô,35 e mesmo tratando de outras entidades
como os caboclos, em Cabocla Jurema36, características presentes nos cultos paulistas
da Umbanda; ou mesmo na louvação às formas de culto dos orixás yorubanos como em
Atotô, música em homenagem ao orixá Omolu.
Após a gravação de Padê, Kiko Dinucci dará continuidade ao Bando
Afromacarrônico gravando o primeiro registro do grupo, o Afro – EP – Macarrônico,
com uma pegada forte nos ritmos afro-brasileiros tradicionais do sudeste, tendo o samba
como fio condutor. As influências africanas ficam mais visíveis aos poucos como na
composição Santa Bamba, parceria de Dinucci com Fabiano Ramos Torres, inspirada
nos candomblés de tradição Angola-Congo e composta em Kimbundo37. Lançado de
forma independente, o EP38 abrirá espaço para o lançamento do primeiro disco do
grupo, Pastiche Nagô, sob o nome de Kiko Dinucci e Bando Afromacarrônico. O disco
é composto de seis músicas inéditas, mais as 4 músicas do EP como bônus.
O nome do disco faz uma brincadeira de mistura que está incutida no próprio
nome do grupo. O termo Afromacarrônico é uma miscelânea de africano com o
macarrônico (língua mal falada, misturada, assim como o macarrão), uma espécie de
mistura entre as tradições negras brasileiras de origens africanas com o paulistano de
ascedência italiana. Já o nagô traria incluso em si a mesma lógica, de mistura, assim
como o gênero literário e fílmico Pastiche, uma colagem composta de diversas
referências, o nagô africano como parte dessa mistura heterogênea, onde torna-se difícil
discernir o que é africano e o que é brasileiro. Kiko Dinucci define o disco da seguinte
forma:
O CD Pastiche Nagô é voltado à sonoridade paulistana, no qual os ritmos são
nitidamente influenciados pela música africana e se manifestam de maneira
cosmopolita, trafegando pelo samba, maxixe, música caribenha e
principalmente por heranças da cultura bantu e yoruba oriunda dos cultos
afro-religiosos difundidos no Brasil39. (DINUCCI, junho de 2008)
35
No final da canção Machado De Xangô é cantado um tradicional ponto de Umbanda, Meu Pai São
João Batista é Xangô.
36
A Jurema é uma planta sagrada da qual é feita uma bebida ritualística de origem indígena, além de ser
uma religião sincrética nordestina que mistura características religiosas negras, europeias e indígenas, e
também o reino sagrado onde habitam os encantados, caboclos e mestres com os quais a Jurema trabalha.
A chegada desta tradição no sudeste acabou antropomorfizando a Jurema na figura de uma cabocla.
37
Idioma pretencente ao grupo lingústico bantu, falado no noroeste de Angola.
38
Sigla de Extended-Play, formato de disco que fica entre o Single (ou Compacto) e o Álbum.
39
Release do disco Pastiche Nagô escrito por Kiko Dinucci em seu blog Afromacarrônico. Publicado em:
junho de 2008. Disponível em: <http://afromacarronico.blogspot.com.br/2008/06/pastiche-nag.html>.
63
das Cabaças, parceria entre Dinucci e Germano, fala sobre o orixá Yemanjá, rainha de
todas as cabeças (ori), exaltando uma qualidade específica do orixá, Awoió, qualidade
mais antiga do orixá. Outro orixá exaltado no disco é mais uma vez Exu, dessa vez
numa composição escrita por Douglas Germano, Padê Onã, na qual diz:
Laroyê Bará
Abra o caminho dos passos
Abra o caminho do olhar
Abra caminho seguro para eu passar
Laroyê Eleguá
Tomba o mal de joelhos
Só levantando o Ogó
Dobra a força dos braços que eu vou só
Laroyê Legbá
Guarda Ilê, Onã, Orum
Coba xirê deste funfum
Cuida de mim que eu vou pra te saudar!
64
os arranjos de sopro do Na Boca dos Outros) para fazer participação em um show, daí
surgiu o mote para o Metá Metá.
O termo metá-metá vem do iorubá, e tem o significado de tríade. O orixá
iorubano Logunedé é considerado um orixá metá-metá, pois este possui características
do seu pai Oxóssi e de sua mãe Oxum, que são acrescidas às características do próprio
Logunedé, formando uma espécie de três em um. Assim é a tríade do grupo Metá Metá,
reunindo a voz de Juçara Marçal, o violão de Kiko Dinucci e o sax e flauta de Thiago
França.
Os shows iniciais do projeto serviram como uma continuidade do Padê,
explorando as temáticas africanas a partir dos orixás iorubanos, com referências à
umbanda e ainda às crônicas urbanas. O Metá-Metá tem dois discos lançados: Metá
Metá (2011) e MetaL MetaL (2012). O primeiro disco do grupo praticamente define
uma linha divisória entre a crônica e o imaginário religioso afro-brasileiro, como dois
lados de um mesmo disco. Na segunda parte, a louvação aos orixás é acrescida de ritmo,
bateria e percussão (tocadas por Sergio Machado e Samba Sam respectivamente),
evocando a ancestralidade africana através de Oranian, Xangô, Oxum e Obatalá. Porém,
não apenas a parte rítmica caracteriza o universo africano presente no disco, mas
também a melódica, através da polifonia presente na musicalidade dos povos bantus.
Segundo o próprio Dinucci falando sobre o primeiro disco do Metá Metá:
É engraçado, mas se for prestar atenção, o lado A é mais africano que o B,
porque trabalhamos com uma polifonia mais intensa e sem nenhum auxílio
de percussão. Aqui no Brasil, a tradição oral deve ser encarada de um jeito
menos romântico. Se soubermos escrever, vamos escrever, anotar, cantar
yoruba correto nos templos, isso é possível hoje. Na Nigéria, o pessoal já
escreve em yoruba nas universidades, vamos levar isso pra frente40.
(DINUCCI, 2011)
O segundo disco do grupo, batizado de MetaL MetaL, além de ser tocado agora
pela banda completa (Marcelo Cabral no baixo, Sérgio Machado na bateria e Samba
Sam na percussão), traz em todas as suas músicas, exceto uma (Tristeza Não, de Itamar
Assumpção), a presença do universo religioso afro-brasileiro. O disco abre com Exu,
canção composta em iorubá por Kiko Dinucci, evocando o mensageiro dos orixás.
Assim como nas cerimônias do candomblé, o orixá aqui é evocado solicitando a
abertura dos caminhos, a continuidade dos trabalhos, evocando o respeito à tradição da
hierarquia presente nos terreiros de candomblé. O universo da mitologia ancestral
40
Entrevista cedida por Kiko Dinucci a Júlio Rennó para a revista Outros Críticos. Publicada em 26 de
outubro de 2011. Disponível em: <http://outroscriticos.blogspot.com.br/2011/10/entrevista-kiko-dinucci-
meta-meta.html>.
65
africana é representado no disco através elementos característicos de cada orixá
representado, como pode ser visto na composição Orunmila, parceria de Kiko Dinucci e
Douglas Germano:
O destino desenhou
Traço de odu
Adivinhação
Dança circular
Voz oracular
Onda vai e vem
Futuro também
Se o presente já morreu
Um segundo atrás
Quem matou fui eu
Chão, pegada, rastro
De quem já passou
Um enredo a mais
Em 16 finais
Palavra de Ifá
Ikin e opelê
Ou erindilogun
No pó de ierosun
Palavra de Ifá
Jogada no opon
Direto do orun
O destino desvendou
Quantos eu serei
Do mais pobre ao rei
Com o olho avante
Que enxerga atrás
E que compreende
Todos os sinais
Se o presente renasceu
Um segundo a frente
Quem gerou fui eu
E o tempo reluta
Como um embrião
Perseguindo a vida
Solto na amplidão
Palavra de Ifá
Ikin e opelê
Ou erindilogun
No pó de ierosun
Palavra de Ifá
Jogada no opon
Direto do orun
66
odu (destino), dum total de 16 odus maiores, que se desmembram em 256 possíveis
situações baseadas nas histórias dos orixás, que é de onde o Babalawo tira a resposta
para encontrar uma solução para o consulente. Ou seja, o caminho e vivência dos orixás
se repetem em seus filhos, e de suas experiências são retirados os exemplos que devem
ser seguidos por estes.
Além das temáticas afro-religiosas abordadas no disco do Metá Metá, outra
questão importante é a musicalidade. O disco apresenta polirritmias que são presentes
nas tradições musicais africanas, além de uma influência forte do Afrobeat, em faixas
como Oyá e Orunmila. O Afrobeat acaba se demonstrando como uma importante
conexão entre diversos grupos desta cena, que mesmo não sendo caracterizada
exclusivamente por este estilo musical, tem nele um fio condutor que permeia a obra da
grande maioria, e acaba sendo muitas vezes o elemento que faz com que estes artistas
criem um vínculo maior com a África, uma sensação de pertencimento, e daí partam
para desvendá-la, assim como aconteceu com e elo que se estabeleceu através das
religiões afro-brasileiras com os compositores e músicos de períodos anteriores.
67
musicais mas também do conteúdo de suas letras, o que levou o pesquisador Albert
Oikelome (2010), em seu artigo Stylistic Analysis of Afrobeat Music of Fela Anikulapo Kuti,
a constatar que:
With the benefit of hindsight, there will be much development in Afrobeat
music in the near future. Since we have exponents springing up from all over
the world, there is no doubt that the fusion of the music will include materials
from other countries where the genre is being performed. The lyrical content
of Afrobeat will receive a deviation from the massive political messages
typical of Felá’s Afrobeat. At present, there is the down-playing of political
songs in favour of love songs. An example is the Antibalas Afrobeat group in
New York. They started with oppositional music but met with brick walls
with their listening audience who wanted music for relaxation instead of
war.41 (OIKELOME, 2010, p.16)
41
Com o benefício da retrospectiva, haverá grande desenvolvimento na música Afrobeat num futuro
próximo. Uma vez que temos expoentes surgindo de todo o mundo, não há dúvida de que a fusão da
música incluirá elementos provenientes de outros países em que o género está tocado.O conteúdo lírico
do Afrobeat receberá um desvio do conteúdo político das mensagens típicas do Afrobeat de Fela. No
momento, está havendo uma diminuição do significado das canções políticas em favor de canções de
amor. Um exemplo é o grupo Antibalas Afrobeat de Nova York. Eles começaram fazendo música de
oposição, mas depararam-se com uma barreira diante de seus ouvintes que preferiam música para relaxar
ao invés de guerra. (Tradução nossa)
42
Entrevista de Victor Rice concedida a José Flávio Júnior por ocasião da matéria Bandas revivem o
afrobeat de Fela Kuti. Publicada em 9 de março de 2012. Disponível em:
<http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/entretenimento/noticias/bandas-revivem-o-afrobeat-de-fela-
kuti?page=3>.
68
que louva as suas origens africanas e afro-brasileiras, assim como faz a incorporação de
outros ritmos que tem suas origens na diáspora, como o Afrobeat, que foi criado em
África, mas que partiu de referências diaspóricas como o Funk, o Soul e o Jazz.
Ao mesmo tempo em que o Afrobeat é apresentado como uma inspiração
musical, como quando Thiago França diz que “O afrobeat no Sambanzo não é estudado.
É deixar tocar.43” (FRANÇA, 2011), ele também é concebido apenas enquanto
representação estética, como pode ser visto na fala de França sobre o Metá Metá:
[...] nosso afrobeat é o avesso do afrobeat. O que é isso? Acho que a única
coisa que a gente pegou do afrobeat foi assim: ‘Putz, a música tem 15
minutos! A gente pode fazer uma música de 15 minutos também.’ O
Afrobeat tem os elementos muito definidos, a levada de batera, as dinâmicas.
O Fela [Kuti] é muito performático, a composição dos arranjos é muita coisa
de performance. Faz muito sentido você assistindo. É meio cênico e tal. E a
gente não tem isso, é uma coisa mais orgânica. É muito mais misturadão, é
mais orgia, é meio selvagem44. (FRANÇA, 2012)
43
Entrevista de Thiago França concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
44
Entrevista do Metá Metá concedida a Renan Simão do blog e-colab. Publicada em 13 de maio de 2012.
Disponível em: <http://e-colab.blogspot.com.br/2012/05/entrevista-meta-meta.html>.
45
Depoimento de Bnegão cedido ao jornalista e DJ Ramiro Zwetsch, por ocasião da matéria Tony Allen:
o RG do Afrobeat, publicada no Estadão em 28 de abril de 2012. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,tony-allen-o-rg-do-afrobeat,866477,0.htm>.
69
O baterista Pupillo, da banda pernambucana Nação Zumbi, também se declarou
fã do trabalho de Tony Allen, do qual é possível perceber alguma influência na
sonoridade desenvolvida por ele. Em entrevista feita em 2003, ao ser perguntado sobre
as suas influências sonoras mais recentes ele afirmou:
Pupillo: Eu tenho pirado muito em afrobeat. Tenho escutado muito Fela Kuti,
muito Tony Allen (o baterista de Fela Kuti). Eles fizeram um som maneiro
pra caramba, uma mistura de jazz com afrofunk. Eu tenho pirado muito nisso.
Sem falar no dub que é uma parada que a banda inteira ouve pra caramba.
Ska, música jamaicana, basicamente música negra. Onde a música negra
estiver espalhada tenho pirado muito porque é muito forte ritmicamente 46.
(PUPILLO, 2003)
Estas influências também são visíveis em seu próprio grupo, a Nação Zumbi,
que chegou a fazer no palco referência direta a Fela Kuti, tocando um trecho da música
de Kuti, Mr. Follow Follow, em show com o projeto paralelo Orquestra Manguefônica,
em 2005, no SESC Pompéia. Pupillo chegou ainda a participar com Allen do evento
Brasilintime: Batucada com Discos, ocorrido no ano de 2006, em São Paulo, projeto
que juntava em suas apresentações renomados bateristas com um time de DJ’s
especialistas na arte dos toca-discos.
Outro músico que ressalta a influência do ritmo em sua obra é o maestro baiano
Letieres Leite. Famoso por fazer arranjos para artistas de Axé Music, Leite teria tido
contato com o som de Fela ainda na década de 70 em Salvador, mas em seus discos o
que fica mais latente são as sonoridades afro-baianas e o afro-jazz, por mais que o
maestro ainda pretenda montar um grupo mais voltado ao Afrobeat47. Sobre a
proximidade sonora e afetiva de Letieres com Fela Kuti e com o Afrobeat, ele afirma:
Não é necessariamente na estética musical que pode estar a coincidência, mas
na intenção subjetiva. É aí que acontecem as semelhanças. A nossa
preocupação de mostrar a nossa música afro-cêntrica dentro de uma visão de
rigor, organização e elaboração é uma atitude de missão. Não tocamos com a
influência da música pop do momento, como o Fela tinha com o soul music
ou o groove. Mas eu percebo na música da Rumpilezz muito de linhas
repetitivas de baixo, que é uma característica do afrobeat.48 (LEITE, 2012,
p.2)
46
Entrevista realizada com Pupillo em 2003, retirada do site Nordesteweb. Disponível em:
<http://www.nordesteweb.com/not10_1203/ne_not_20031228a.htm>.
47
Entrevista de Letieres Leite concedida a Vinicius Gorgulho da Revista Raça Brasil Ed. 168, por ocasião
da matéria Modernizando a ancestralidade afro-baiana. Publicada em junho de 2012. Disponível em:
<http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/168/artigo262454-2.asp>.
48
Idem
70
Negros longe do afrobeat é um fato, isso merece uma boa discussão, um
entendimento. Acontece no Rio e em São Paulo, aqui em Salvador menos. O
pessoal que produz o afrobeat de Salvador está na periferia, vem do final da
década de 70, num bairro da Liberdade, em Salvador, onde tiveram alguns
músicos. É ao contrário de São Paulo onde só a classe média teve acesso à
música afro, porque as informações estão circulando dentro desse ambiente
virtual, então as pessoas privilegiadas no acesso à internet conhecem
primeiro49. (LEITE, 2012)
49
Entrevista de Letieres Leite concedida a Guileherme Ribeiro do Portal MTV. Publicada em 06 de
janeiro de 2012. Disponível em: <http://mtv.uol.com.br/musica/letieres-leite-negros-estao-longe-desse-
afrobeat>.
71
Néstor García Canclini (2008), em seu livro sobre os Leitores, espectadores e
internautas na contemporaneidade, ao citar o sociólogo Manuel Castells sobre novas
formas de interatividade na era digital, assinala que:
A observação da “tecnosociabilidade” mostra que os recursos de
comunicação sem fio não são apenas ferramentas, mas, sim, “contextos,
condições ambientais, que tornam possíveis novas maneiras de ser, novas
cadeias de valores e novas sensibilidades sobre o tempo, o espaço e os
acontecimentos culturais. (CASTELLS et all, 2007 apud GARCIA
CANCLINI, 2008, p.53)
Este discurso de interação social através dos meios digitais corrobora com um
pensamento acerca da construção identitária musical de novos audiófilos com a África.
A percepção dos artistas brasileiros acerca da heterogeneidade musical do universo que
os cerca pode ser representada através da fala de Kiko Dinucci, quando este afirma que:
A maioria dos músicos da nossa geração têm algum namoro com a África.
Seja no ritmo, na linha melódica... Não acho que existem grupos de música
africana e nem tem que ter. Está bom assim. Cada um fazendo seu some a
gente vai parar na África ou no Japão. Ou em qualquer lugar que a gente
queira, porque a gente tem internet e pode ouvir músicas do mundo inteiro. 50
(DINUCCI, 2011)
O músico Thiago França deixa entrever uma ideia coletivizada de uma África
vivenciada através da internet, segundo o panorama musical de uma cena paulista
constituída por um conjunto de amigos integrantes de grupos como o Metá Metá, o
Sambanzo, da banda do rapper Criolo, entre outros dos quais ele participa, ao afirmar
sua vivência sobre a África: “A gente nunca foi lá. É YouTube, Wikipédia... Foi a
internet. A gente foi sacar Fela Kuti vendo essas coisas, vídeos de shows... Foi o
YouTube51.” (FRANÇA, 2011).
Muitos destes músicos também captam estas transmissões de africanidades
através das interferências de outros artistas brasileiros, os quais segundo eles seriam
detentores desta vertente africanista. As percepções de África, por conseguinte podem
perpassar uma gama múltipla de referências musicais à medida que possibilitem aos
ouvintes a identificação de seus elementos como constituintes de uma noção de África,
através de um referencial que estes já possuam ou mesmo que sejam construídos
imageticamente através dos elementos sonoros presentes nas composições. Para o
guitarrista Cris Scabello, do grupo Bixiga 70, por exemplo, “o afrobeat veio mais
50
Entrevista de Kiko Dinucci concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
51
Entrevista de Thiago França concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
72
travestido pelo Gilberto Gil, pelo Chico Science, pelos ‘Afro-Sambas’, mesmo sendo
anterior ao Fela.52” (SCABELLO, 2011).
Outras percepções de proximidade musical podem ser também sentidas no
diálogo de Maurício Fleury do Bixiga 70 com Kiko Dinucci, quando falam sobre a
possível presença de uma musicalidade afro-brasileira próxima ao Afrobeat:
Kiko: Tem coincidências no Brasil.
Mauricio: Tem a música ‘Saudação a Toco Preto’, do Candeia.
Kiko: Essa música é um ponto de terreiro.
Mauricio: Mas tem arranjo de afrobeat, com metais.53
(DINUCCI; FLEURY, 2011, p.4)
52
Entrevista de Cris Scabello concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
53
Trecho da Entrevista com Kiko Dinucci e Maurício Fleury concedida a Douglas Vieira por ocasião da
matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada
em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
54
Matéria de Marcos Xi sobre o disco Táxi Imã de Pipo Pegoraro para o site RockinPres. Publicada em 9
de maio de 2012. Disponível em: <http://www.rockinpress.com.br/2012/05/09/o-disco-solo-da-banda-
pipo-pegoraro-taxi-ima/>.
55
Entrevista do Bexiga 70 concedida a Mariana Caldas do Portal MTV. Publicada em 25 de agosto de
2011. Disponível em: < http://mtv.uol.com.br/musica/bixiga-70-faz-show-no-studio-sp-nesta-quinta>.
73
presente no Brasil, acaba sendo natural para os artistas aliar essas influências
às que temos.56 (FLEURY, 2011)
56
Entrevista de Maurício Fleury concedida a Bruno Natal de O Globo, por ocasião da matéria
Transcultura: As múltiplas influências de Pipo Pegoraro. Publicada em 25 denovembro de 2011.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/transcultura-as-multiplas-influencias-de-pipo-pegoraro-
3315277>.
57
Entrevista de Maurício Fleury concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um,
publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011.
Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>.
58
Retirado do release escrito por Lucio Branco e presente no site oficial do grupo. Disponível em: <
http://abayomy.com/site/index.php/banda>.
59
Citação de Tony Allen presente em release do grupo. Disponível em:
<http://www.pqpproducoes.com/Abayomy_Release.pdf>.
74
teve participação de Allen na faixa Bença, Balanço & Chumbo Grosso do disco Velha-
Guarda 22, lançado em 2006, que rende homenagem a Fela Kuti e aos Afro-Sambas e
que conta com a participação dos integrantes da Nação Zumbi.
O cantor pernambucano Otto também possui influência do Afrobeat em seu
trabalho. O último disco do cantor, The Moon 1111, é referenciado por ele como uma
mistura entre Fela Kuti, ao que ele atribui ser devido à pegada do baterista e produtor
Pupillo, e o disco The Wall do grupo de rock progressivo inglês Pink Floyd60. Otto
inclusive chegou a fazer uma dobradinha no palco com a banda Abayomy Afrobeat
Orquestra na festa África, na ladeira do Vidigal no Rio de Janeiro, que em sua primeira
edição recebeu o guitarrista nigeriano Oghene Kologbo, que tocou no grupo Afrika 70
de Fela Kuti, acompanhado no show pela Abayomy, e que também desenvolve
trabalhos com outros grupos brasileiros como o Iconili e o Amplexos.
No meio do revival a Fela Kuti, a organização internacional Red Hot, dedicada à
luta contra a AIDS, e que lança constantemente coletâneas musicais temáticas visando
angariar fundo à sua causa, lançou em 2002 o disco Red Hot + Riot - The Music and
Spirit of Fela Kuti, que entre diversos artistas internacionais renomados, contava com a
participação dos brasileiros Jorge Ben Jor, Lenine, Monaural e o produtor Mario
Caldato Jr.
Outros grupos ainda pertencentes a vários cenários da música brasileira
contemporânea também se identificam com o Afrobeat ou ao menos trazem alguma
influência estética ou sonora em seus trabalhos, entre eles: Otto, Monjolo, Afroelectro,
Iconili, Tibless, Anelis Assumpção, Seu Jorge & Almaz, Iara Rennó, Coletivo Instituto,
Lucas Santtana, Bruno Morais, Afrobombas, A Roda, Rael da Rima, Afrika Gumbe,
André Abujamra, Guardaloop, Orquestra Contemporânea de Olinda, André Sampaio &
os Afromandinga, Mariana Aydar, Burro Morto, Aláfia, Zebrabeat Orquestra,
Abeokuta, entre tantos outros.
60
Depoimento de Otto no teaser de lançamento do disco The Moon 1111. Disponível em:
<http://vimeo.com/31933801>. Acesso em: 18 ago. 2013.
75
3.3. Reestruturações estéticas
61
Mais informações em: <http://www.goma-laca.com/>.
76
adaptados, citações africanas na música pop das primeiras décadas do século
XX. Também logo percebemos que uma das possibilidades mais
interessantes era investigar a contemporaneidade das músicas: não um
trabalho meramente de tributo museológico, mas sim de recontextos.
Nomes como Thiago França e Kiko Dinucci eram perfeitos para essa
abordagem, e o Sambanzo em si tem desenvolvido um trabalho
impressionante entre jazz, afrobeat, música brasileira, latina, criação
espontânea e coletiva. Tudo fez sentido.62 (EVANGELISTA, 2011)
62
Entrevista com Ronaldo Evangelista concedida a Ramiro Zwetsch do blog Radiola Urbanda. Publicado
em: 2 de dezembro de 2011. Disponível em:<http://blog.revistaurbana.com.br/?p=762>. Acesso em: 17
set. 2012.
77
originalmente em 1977 pelo sambista Candeia, importante representante das tradições
de matrizes africanas no mundo do samba, um constante em sua obra, e também
responsável pela gravação da música Saudação a Toco Preto, considerada por muitos
como uma das precursoras do afrobeat no Brasil, como citado anteriormente.
Diversas composições da década de 70, de artistas que tinham em trabalhos uma
forte ligação com a África, também foram incluídas no repertório de artistas
contemporâneos. Entre elas estão a regravação da música Pai João, gravada
originalmente em 1972 pelo grupo Tribo Massáhi, e regravada em 2010 pelo cantor Seu
Jorge e o grupo Almaz, formado pelos músicos Lucio Maia e Pupillo da Nação Zumbi e
multi-instrumentista Lincoln Antonio; a música Cordeiro de Nanã, gravada
originalmente pelo trio Os Tincoãs em 1977 e regravada pela cantora Thalma de Freitas
em 2004; Meus Filhos, gravada originalmente por Jorge Ben em 1976, no disco África
Brasil, e regravada pela Abayomy Afrobeat Orquestra em 2013, com participações do
rapper Bnegão e do baterista nigeriano Tony Allen; os Afro-sambas de Baden Powell e
Vinícius de Moraes, que renderam discos completos como Mares Profundos, da cantora
Virgínia Rodrigues; além de uma série de outras regravações que nos ajudam a
corroborar a importância que estes artistas atribuem às presenças de África na música
popular brasileira.
3.4. Afro-religiosidades
78
apenas ao processo de observação participante, mas também uma participação
observativa, integrando músicos criados dentro dos terreiros com outros que devido às
suas pesquisas acabam se integrando às comunidades religiosas.
Esse é o caso de uma série de grupos que tem em geral, entre os seus
percussionistas, ogãs de terreiros tradicionais, com inserção desde jovem no cotidiano
dos terreiros, muitas vezes por tradição familiar. O papel do ogã é essencial nos
terreiros, pois através dele é feita a invocação às entidades, através do toque específico
de cada uma. O papel do ogã e dos instrumentos no ritual do Candomblé é assinalado
por Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (1992) ao afirmarem que:
No candomblé, os atabaques ou "couros" (tambores) com os quais se
invocam as divindades são tidos como seres vivos e sua utilização reservada
apenas aos ogãs alabês (instrumentistas iniciados). Cabe a eles a execução do
repertório apropriado a cada divindade, que compreende um conjunto de
cantigas diferenciadas, com ritmos próprios. (AMARAL; SILVA, 1992,163)
79
toques tradicionais de orixás e de caboclos em suas músicas. Em alguns momentos, a
percussão parece invocar o início do xirê63, ou da gira64, como na música Anjos do
Asfalto, do disco Condom Black de 2001, na qual Otto invoca o orixá Exu:
Ah, Exu mandou avisar
Que os anjos do asfalto
Tão em todo lugar
63
Cerimônia ritual do Candomblé em homenagem aos orixás, composta de música, dança e canto.
64
Termo designativo das sessões de Umbanda
65
Saiba mais na matéria Otto perde a cor, de Pedro Alexandre Sanche, publicada na Folha de São Paulo
em 22 de outubro de 2001. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2210200106.htm>.
66
Entrevista com o cantor Otto Maximiliano concedida a Pedro Alexandre Sanches da Folha de São
Paulo, por ocasião da matéria Otto perde a cor. Publicada em 22 de outubro de 2001. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2210200106.htm>.
67
Saiba mais em: http://www.terra.com.br/musica/entrevista_otto.htm
80
É interessante notar em como esse vasto universo afro-religioso se conecta ao
repertório destes artistas, e no caso específico dos que são ogãs, em como esta vivência
se mantém em seus repertórios. Os três percussionistas de Otto, por exemplo, sem
encontram em processo de gravação de discos solo, e em todos os projetos estas
referências religiosas fazem parte do processo de composição, ou mesmo ditam a
temática do disco, como é o caso de Toca Ogan, que está em processo de gravação do
seu trabalho Desatando o Laço, voltado à instrumentação do berimbau, e de profundas
raízes com o Candomblé. Sobre o nome do trabalho, o músico diz: “Isso vem do
candomblé do qual eu faço parte, o Nação Angola. Nele, tudo é feito na base do laço.
Quando alguém está com algum problema e consegue resolver, a gente diz que ele
conseguiu desatar o laço, desatar o problema.68” (OGAN, 2012). O músico André Malé,
está em produção do disco com o seu Coco de Malê, voltado às tradições do coco de
roda, aprendido em sua vivência nos terreiros de Candomblé. Já Marcos Axé, a
princípio não segue uma referência específica, mas utiliza ritmos como o samba, o
Reggae e o Afrobeat. Ogan, Axé e Malê já participaram de outros projetos voltados às
musicalidades negras como o Coco de Mazuca, “[...] totalmente inspirado nos trabalhos
realizados pela ex-mãe-de-santo Maruca e pelos pais-de-santo Seu Marinho e Seu
Humberto [...]”69 (MYSPACE, 2006), e que segue a cartilha do mestre João da Ciência,
tradicional ogã que foi mestre de Toca Ogan, e do grupo Pra Mateuz Poder Dançar, que
além de ritmos tradicionais afro-brasileiros, toca ritmos caribenhos e africanos.
No grupo Nação Zumbi, Toca Ogan demonstra através de suas composições
uma ligação muito forte com a Jurema, religião de tradição afro-indígena, exaltado a
semente da jurema, essencial nos rituais da religião, como na música Vai Buscar: “Não
fale dessa Jurema se você não a conhece”; e exaltando as entidades afro-indígenas dos
caboclos, na canção Remédios. Toca Ogan é citado na composição de Otto, Único Sino,
lançada no disco Condom Black em 2001, que demonstra esta relação existente entre o
ogã e a religião:
Único sino tocava
Anjo vermelho cuida de mim
Vem combater
Eu combatia
68
Entrevista com Toca Ogan concedida a AD Luna do Jornal do Commercio. Publicada em: 30 de
setembro de 2012. Disponível em:
<http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2012/09/30/toca-ogan-da-nacao-zumbi-
grava-album-solo-58011.php?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter>. Acesso em: 8 de julho de
2013.
69
Release do grupo Coco de Mazuca no Myspace. Disponível em:
<http://www.myspace.com/cocodemazuca>. Acesso em: 26 de fevereiro de 2007.
81
Meu pai dizia
Vou proteger
E o tambor tocava
Bonitas melodias
Como é lindo
Ver o Toca Ogan tocar
Único Sino pode nos remeter ao Adjá, sineta de metal utilizada no ritual de
Candomblé com intuito de provocar o transe. O anjo vermelho pode corresponder ao
orixá Exú, sendo assim uma representação de transe no rito, através da invocação do
orixá com o uso da percussão e do adjá. Ou ainda, numa leitura de Otto: “Único sino é a
última chance de sermos um país, o anjo vermelho remonta ao nosso presidente, Lula.
Isto seria um dos caminhos por onde esta música vai. Enfim justiça, xangô!”
(MAXIMILIANO apud LIMA, 2008, p.111). Portanto, a música concebe também um
caráter político, representada pela primeira eleição de Luís Inácio Lula da Silva como
presidente, no período em que a composição foi feita, representando a justiça social
contida neste ato através da eleição de um homem que veio do povo, sendo o vermelho
a cor do partido representante do presidente, o PT, ao mesmo tempo em que representa
também o orixá Xangô, que tem como uma de suas principais características ser o orixá
ligado à justiça.
Xangô é um orixá de culto muito tradicional no Brasil, chegando a ter seu nome
como denominador do culto dos orixás no Nordeste. Esta tradição afro-religiosa do
orixá acaba se estendendo para a música, sendo talvez o orixá mais mencionado na
música popular brasileira. A música Afoxoque, do compositor paulista Curumin, lançada
no disco Arrocha de 2012, é um exemplo deste culto a xangô na MPB, descrevendo na
composição o uso de elementos característicos deste orixá, como o Oxé, martelo que
possui lâminas nos dois lados, que corta em duas direções opostas, símbolo da justiça,
demonstrando a sua imparcialidade, pois qualquer lado pode sair perdendo ou
ganhando; o choque, dado pelo raio, pois Xangô é senhor dos raios; e a pimenta,
elemento sempre presente em suas comidas votivas:
Se me andam a falar na liberdade
Isso cheira bem, cheira a pimenta
Palavra que me arde dentro da boca
Língua que faísca como um machado
Afoxoque ê
Afoxoque ê...
82
Outra composição que fala sobre este orixá, mas composta de elementos que
deixam ainda menos aparente esta menção do que a música anterior é Raio Negro,
gravada pelo grupo pernambucano Monjolo em 2006. A letra fala sobre a invocação e
chegada do orixá, misturando elementos litúrgicos do orixá com linguagem musical,
como o delay do space eco, que é um efeito musical produzido por um pedal, no caso
aqui representado através da energia do raio de Xangô:
Alguém mandou chamar, eu vim
Alguém mandou chamar
Dia 2 de fevereiro
Dia de Iemanjá
Vá pra perto do mar
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá
Pra perto do mar
Leve mimos pra sereia
83
Janaína Iemanjá
Lá em Rio Vermelho
Em Salvador
Vamos dançar
Dia 2 de fevereiro
Dia de Iemanjá
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá
Vou cantar
Pra saudar sereia
Vai brincar na areia
Para acreditar
Sou preto e por isso me sinto preto e livre pra fazer música de gueto
Seja em Kingston, Nova York ou no Rio de Janeiro
Música de preto, Samba, Hip-hop, Reggae, Dub de qualquer espécie
Música de gueto, Samba, Hip-hop, Funk, o groove está no sangue
Música de preto, música de preto
85
Antes de ser preto eu sou brasileiro
Antes de ser brasileiro eu sou preto
86
Foi na primeira vez que um africano tocou tambor
Lançou o ritmo da batida ancestral
Que tal? Tamo ai até hoje o orador e mais
o produtor da percussão digital
Pois em algum ponto além do mar azul
entre o sul do Bronx e a África do Sul
foi forjada a fundação da Nação Zulu...
A Nação Zulu aqui mencionada se refere ao coletivo de Hip hop do Bronx, Zulu
Nation, formado pelo DJ americano Kevin Donovan, mais conhecido pelo seu nome
artístico, Afrika Bambaataa, retirado de um chefe da etnia Zulu sul-africana chamado
Bambatha kaMancinza, que no ano de 1906 liderou uma revolta armada contra as tropas
coloniais sul-africanas devido a uma política econômica recém implantada e
considerada injusta por seu povo. Este imaginário africano é constantemente
representado no universo do Hip hop, e no Brasil se processa de modo semelhante,
aproximando as barreiras que separam as culturas africanas tradicionais das concebidas
na diáspora.
A música Nossa África, do músico e produtor Alfredo Bello, também conhecido
como DJ Tudo, lançada em 2008 no disco Garrafada, traz um discurso panfletário
sobre o espaço social do negro no Brasil, um espaço minimizado devido aos esforços
das elites brancas em solapar do negro qualquer possibilidade de crescimento social,
intelectual ou econômico, no intuito de utilizá-los como mão de obra barata após o fim
da escravidão, apontando índices que demonstram a situação de inferioridade social em
que vivem os negros no país até hoje:
Nossa África!
Nossa África!
Nossa África!
Nossa África!
Mesmo com o racismo histórico, somos o país onde mais tradições africanas se recriaram
Pois o tráfico trouxe também as suas culturas
Temos a oportunidade de fazer essas culturas se perpetuarem
pois várias áfricas existem em nossas almas
A nossa música popular tem uma grande dívida com a cultura negra
Todo brasileiro tem a proteção de um deus africano
Quase todas as cidades do país existem festas públicas pra estes deuses
87
Todo o preconceito contra as religiões de origem africana
reside na ignorância, na total falta de conhecimento
Somos mais negros e índios do que pensamos
E negamos esta essência
Até quando, até quando?
Laroyê Exú!
África,
Cadê?
Seu trono de Rainha
Cadê?
Dona da Realeza
Cadê?
Mãe da matéria-prima
Cadê?
Vai levar a vida inteira pra lhe agradecer
88
CONSIDERAÇÕES FINAIS
89
Como pudemos perceber ao longo do texto, os imaginários sobre África são
temas constantes na música brasileira, presentes nos diversos períodos aqui abordados,
mas que apresentam características sócio-culturais distintas de acordo com a época em
são explorados. Assim como Norman Weinstein (1993) afirma sobre as representações
imagéticas de África no jazz em A Night in Tunia:
Não é uma questão de decidir qual estilo de Jazz não é verdadeiramente
“africano”, tanto quanto reconhecer que todos estes estilos musicais
representam movimentos de um imaginário afrocentrista. Eles foram
experimentos musicais tentando conceber a África através de praias
distantes.70 (WEINSTEIN, 1993, p.182).
Do mesmo modo que Weinstein, não pretendemos aqui também perceber qual
período na música popular brasileira seria responsável por trazer representações mais
substanciais acerca de África, mas sim compreender que em todos estes períodos
existiram tentativas concretas de representação de África através do imaginário da obra
destes artistas, baseados em um pensamento afrocêntrico.
Porém, se para alguns pesquisadores quanto mais distantes ficamos
temporalmente das últimas levas de africanos que chegaram ao Brasil antes da proibição
do tráfico de escravos e da abolição da escravatura, ou seja, dos últimos negros
africanos que aportaram aqui na condição de cativos, teríamos portanto menos traços de
África em nossas culturas, novas gerações de artistas brasileiros demonstram um
caminho contrário a esse pensamento através de suas obras, num sentido de manter
acesa a chama da verve africanista no país, celebrando aqueles descendentes de
africanos que foram responsáveis por sustentar a tradição de seus antepassados no
Brasil, assim como buscando novos meios de deter conhecimentos sobre a África, seja
ela mítica, ancestral ou mesmo contemporânea.
Mesmo que estas representações dos artistas contemporâneos se encontrem
distantes do ideal africanista propagado por alguns historiadores da música popular
brasileira -- ainda muito calcados em um pensamento tradicionalista -- não quer dizer
por isso que elas sejam menos importantes, ou mesmo menos africanas, podendo ser na
realidade talvez até mais representativas de África do que outros nichos “africanistas”
da MPB. Conservar as tradições musicais de origens africanas não significa apenas
manter preservadas estas tradições do modo em que foram concebidas ou mesmo da
maneira em que foram trazidas para o Brasil, mas também recriá-las através de suas
70
“It is not a question of deciding which jazz style is not truly “African” as much as recognizing that all
of these musical styles have represented movements of afrocentric imagination. They were musical
experiments in conceiving of Africa from distant shores.” (Tradução nossa).
90
capacidades de re-adequação e re-incorporação na sociedade. Habitualmente, as
tradições que tentam ser sustentadas pelas comunidades da maneira em que foram
geradas, se não são modificadas para adequarem-se às novas regras sociais de vivência
dos grupos, acabam sendo extintas. Manter em atividade ou mesmo tentar recuperar
uma tradição que não possua mais significado ou uso social para determinado grupo
étnico demonstra-se apenas um ato de conservação museológica.
A conservação destas práticas não delimita a compreensão que podemos
construir sobre práticas africanas. A própria carga mítica africana impregnada em nosso
cotidiano, mesmo quando de maneira subjetiva, nos permite tecer imaginários acerca de
África que são capazes de constituir por si só a manutenção de práticas africanistas.
Tornar a África como referencial de identificação é objetivar a construção de um
modelo não conformista perante os padrões anglo-saxões. É eleger o que antes era
margem como centro.
Os caminhos percorridos em nossa pesquisa demonstraram que ao longo do
recorte temporal por nós analisado, foram constantes as elaborações acerca de África
evocadas pelo imaginário da música popular brasileira. A recorrência a esta temática é
algo constante no trajeto de nossa música popular, estabelecendo conexões
contemporâneas e ancestrais com a África, e usualmente propondo uma continuidade
nesse longo processo de trocas culturais.
Em alguns momentos da historiografia da música popular brasileira, é possível
vislumbrar através das análises de alguns pesquisadores uma espécie de processo de
quebra temporal dessas trocas culturais, como se após a escravidão os laços de conexão
com o continente africano tivessem sido extintos.
Partindo desta premissa podemos construir então uma teoria onde seriam
considerados dois momentos de influência africana na música popular brasileira: um
nacional, composto pelos valores culturais trazidos pelos cativos africanos
anteriormente ao fim da escravidão; e um estrangeiro, marcado pelas influências
culturais africanas ocorridas após a abolição. As influências nacionais, portanto seriam
mais autênticas, visto que são afro-brasileiras, tendo sido construídas em solo nacional,
e mais adaptadas assim ao conteúdo pregado pelo ideal ufanista brasileiro. Já as
influências africanas seriam estrangeiras, à medida que não se adequariam à realidade
nacional, e que devido às distâncias temporais e geográficas não mais corresponderiam
a uma compreensão de África constituída no Brasil, e deste modo, seriam menos
importantes à compreensão de uma identidade nacional. Porém, ao longo de nossa
91
pesquisa, pudemos verificar o quanto as influencias construídas a partir de referenciais
colhidos diretamente da matriz africana foram importantes para a construção de uma
formação identitária com a África, e em alguns casos, tomando como ponto de
referência a África, até para uma maior apreciação das próprias culturas afro-brasileiras.
A representatividade que a África exerce nas obras dos artistas aqui analisados
nos permite visualizar o quão é importante o seu papel no processo de valorização das
culturas de matrizes africanas. Estes artistas auxiliam, através de suas composições, a
preencher as diversas lacunas existentes na história da formação da sociedade brasileira,
dando o devido crédito ao papel exercido pelo continente africano na construção de
nossas culturas, e deste modo contribuindo para a compreensão de que a África vai
muito além do alcance da nossa imaginação.
92
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