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A JORNADA

EM BUSCA DE UMA
TEOLOGIA RELEVANTE

Aula 1
18 de março de 2021

YAGO MARTINS

Transcrição: Júlia Costa | Revisão e adaptação: Alana Lins | Diagramação: Loanny Costa
A JORNADA EM BUSCA DE UMA TEOLOGIA RELEVANTE

Aula 1
A jornada em busca de uma teologia relevante

A Escola de Teologia do Instituto Schaeffer talvez seja o passo mais importante que já
demos na área de atuação teológica até o momento. Você, que já é nosso aluno de outro
curso, já conhece a qualidade do trabalho que temos desenvolvido há dois anos através de
educação teológica na internet. A Academia de Missionários, o Teologia Descomplicada e o
Descomplicando o Grego Bíblico foram nossos três primeiros cursos na internet e mudaram
a vida de muita gente.

O Teologia Descomplicada, como um curso de iniciação teológica, que existe para intro-
duzir as pessoas à vida da fé, fez com que milhares de alunos pudessem conhecer temas
teológicos, antes desconhecidos por eles, a partir do zero. Na Academia de Missionários, con-
seguimos usar o conhecimento teológico para que o mundo fosse servido, preparar pessoas
para levarem o evangelho para longe do conforto pessoal da própria casa. No Simplificando o
Grego Bíblico, conseguimos o que nunca imaginamos ser possível na internet: ensinar grego
a homens e mulheres comuns, pessoas que nunca foram a um seminário, sem interesse em
se tornarem pastores, mas com o desejo de aprender sobre Deus e conhecer o Novo Testa-
mento de uma forma mais especial e íntima através do Senhor. Entrando nesses cursos, você
tem acesso às aulas com módulos e mentoria durante um ano. Pensamos em uma forma de
conseguir fazer mais, e a ideia era poder criar um ambiente contínuo de aprendizado. Em sua
igreja, você nunca se forma. Na escola bíblica dominical, você nunca recebe seu diploma ou
certificado. O que você tem é uma reunião semanal para ouvir a Palavra sendo pregada, ouvir
o ensino teológico, tirar suas dúvidas e continuar crescendo, se aprofundando e aprendendo.

A pandemia veio, e 2020 foi um ano de isolamento social. Em março de 2021, esta-
mos mais isolados do que antes. Com isso, muitas igrejas não estão realizando a escola
bíblica, algumas mal conseguem ter reuniões semanais. Seminários teológicos não têm
capacidade de manter seus institutos para cristãos comuns que querem aprender mais,
apenas o bacharel.

Entendemos que era o momento de, dentro do Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura,
fornecermos um espaço que fosse barato, acessível e continuado. Nossa intenção é dar à
Igreja uma forma de elevar o próprio nível. Eu tenho 28 anos e já sei que não serei o novo D.A.
Carson. Aos 28 anos, escrevendo teologia, com 9 livros publicados e mestrado em teologia,
você já conhece mais os seus limites. Já entende o que você não vai conseguir ser. Já sei que
não serei halterofilista ou um engenheiro espacial. Como professor, a vaidade é conseguir for-

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mar um novo D.A. Carson, inspirar um novo Darrell L. Bock, ser o professor de um novo John
Piper ou Paul Washer. A vaidade dos professores, ao perceberem que não podem mais ser tão
grandes, é conseguir formar alguém grande. Sinceramente, essa nunca foi minha pretensão.

Com tudo que temos produzido na internet, o Dois Dedos de Teologia, o Instituto Schaeffer,
o Fórum de Cosmovisão Cristã, a Missão GAP, o Review Clube, a Editora 371, nosso objetivo
é um só: a ideia não é pegar poucos e transformá-los em pessoas com grande capacidade
ou habilidade, mas alcançar pessoas comuns. Nosso interesse sempre foi aumentar o nível
do cristão comum, dos irmãos comuns que não tiveram um treinamento teológico e nunca
foram ao seminário, ajudando-os a entender a Palavra de Deus. Para que o cristão comum
não seja enganado pelo charlatanismo ou seja ofendido por alguém que tenta dominar sua fé.

Tiago Cavaco publicou um livro intitulado Arame farpado no paraíso, no qual ele fala que
religião, no Brasil, é definida em termos de you stop counting — as igrejas são incontáveis. Nis-
so, muitos homens tentam abusar dos fiéis, se impondo contra pessoas que amam a Deus,
se aproveitando da falta de conhecimento do povo para tentar lucrar às custas dele. Como
nos protegemos disso? Deus fala, através do profeta menor, que o povo perece por falta de
conhecimento (Oséias 4.6). Muitas vezes, perecemos porque não temos conhecimento de
Deus. Nossa vida perece porque não nos aproximamos da Palavra.

Muitas vezes, não sabemos ou não entendemos por falta de meios. Não há quem nos en-
sine e instrua. Somos como o eunuco no livro de Atos que não conseguia entender o livro de
Isaías porque não tinha quem o ensinasse (Atos 8.26-39). Talvez Deus não precise transladar
alguém a fim de ensinar, mas, através de recursos que existem na internet, podemos aprender
a Palavra de Deus de uma forma que não está disponível no seminário de sua cidade, caso
haja algum.

A ideia não é reunir um grupo de frustrados para falarem mal de suas igrejas, mas fazer
com que você aprenda de uma forma que não seria possível se você está em um ambiente
onde falta instrução — a fim de que você tenha o que oferecer para esse contexto. Um livro
muito interessante publicado pela editora Vida Nova é o Igreja centrada no Evangelho, no qual
os autores dizem que, quando o Evangelho começa a trabalhar em alguém, ele nunca encer-
ra seu trabalho nessa pessoa. O Evangelho sempre continua seu trabalho para além desse
alguém. Quando o Evangelho começa a trabalhar em nós, ele também continua trabalhando
para além de nós. Aprender de Deus nos faz levar Deus a outras pessoas. Aquele que aprende
é aquele que ensina. Aquele que é instruído é aquele que instrui.

Minha intenção não é formar pastores, e sim fazer com que o cristão comum tenha aces-
so ao conteúdo de um seminário teológico, receba conteúdos, informações, esteja por den-

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tro de debates em um nível de profundidade que seria equivalente a um seminário teológico.


Tudo isso de uma forma que o cristão comum possa entender e que seja relevante para sua
vida. É para isso que a Escola de Teologia do Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura existe.

Queremos falar hoje sobre a jornada em busca de uma teologia relevante. Esse é nosso
esforço por entender teologia. Estamos aquecendo os motores. A aula de hoje é introdutória
sobre o que pretendemos fazer nesta escola.

Teologia é um termo antiquado. Ao falarmos essa palavra, parece que evocamos um sen-
timento muito antigo, escolástico, coisa da Idade Média... Parece que o mundo moderno não
precisa disso (é um assunto para monges ou seminaristas), então os homens tentam atuali-
zar a teologia.

Dentro das teologias atuais, temos a Teologia Liberal, que tentou ser uma teologia científi-
ca e fazer uma atualização para os padrões naturalistas de um tempo, tirando das Escrituras
os milagres e o sobrenatural, e buscando o Jesus histórico, ou seja, retirando dele tudo o que
era divino e mantendo apenas seus aspectos humanos. Temos também a Teologia Latino-
Americana, que tentou converter Jesus a uma justiça social específica na qual ele se torna,
basicamente, um justiceiro socialista, um revolucionário ou algo parecido, e não o Deus vivo.
Hoje, também temos acesso a teologias científicas: existem teologias darwinistas, freudia-
nas, uma teologia que se adapta às necessidades e às implicações econômicas, políticas e
teológicas de determinado tempo e cultura — nenhuma delas provém da Escritura.

As tentativas de fazer com que a teologia soasse menos arcaica romperam, muitas vezes,
com o significado real do texto bíblico. Não valorizaram aquilo que Deus tinha a dizer, mas,
simplesmente, transformaram a Escritura em uma máquina de soluções de problemas de um
tempo específico. Esses foram esforços fracassados de fazer uma teologia relevante.

Foram esforços fracassados, porque não respeitaram o próprio significado de teologia.


Quando falamos de teologia, estamos falando sobre Deus, e estudar Deus depende e limita-
-se à própria revelação de Deus. Não somos nós que chegamos a esse Deus, simplesmente,
mas ele desce até nós através de Jesus. Esse Deus rasga o véu e sai do Santo dos Santos em
direção a cada um de nós. Quando olhamos para a Escritura e tentamos criar o nosso pró-
prio Deus e fé, formamos uma espécie de cânon dentro do cânon — um termo muito famoso
na teologia — onde se escolhe, dentro do cânon, os livros que julgamos mais inspirados em
detrimento de alguns outros livros do próprio cânon na tentativa de tornar as Escrituras mais
aceitáveis para um mundo que rejeita Deus.

Se teologia é o estudo de Deus e o mundo odeia Deus, consequentemente, o mundo não


quer saber sobre teologia. Portanto, para fazer com que o mundo se sinta atraído por ela, mui-

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tos teólogos tornam a teologia mundana, tirando dela tudo aquilo que ofende o mundo sem
Deus. Com isso, as pessoas rejeitam a teologia bíblica, que é o esforço de encontrar o que
cada um dos livros bíblicos diz, buscar a teologia e linguagem de cada autor e agrupar todas
essas informações em uma unidade (essa é a missão da Teologia Sistemática).

Muitos liberais dizem que não existe teologia sistemática porque Tiago discorda de Pedro,
que discorda de Paulo, que discorda de Jesus e daí por diante. Nega-se a teologia histórica
(olhar para trás e entender o que a Igreja criou e produziu ao longo dos séculos e como esse
conteúdo foi se aperfeiçoando e se acumulando para nós até hoje). Rejeita-se também a teo-
logia filosófica, na qual tentamos meditar acerca da natureza e da existência, sobre questões
da filosofia a partir dos elementos das narrativas da revelação. Ignoram a teologia pastoral,
também conhecida como teologia prática, que se propõe a responder as perguntas da vida
cotidiana, lidando com questões do coração, da psique, do pecado.

Muitas vezes, o esforço de fazer uma teologia relevante ignora aquilo que é a teologia
pública. Esse é um termo que faremos uso muitas vezes nesta aula. Teologia pública é o es-
forço de falar de Deus para o mundo. Por meio dela, damos respostas à psicologia, ciência,
virologia, política, economia e muitas outras áreas a partir da Palavra de Deus. Isso está dis-
ponível a todo cristão com sua Bíblia em mãos, pois trata-se de Deus falando em sua Palavra
e do nosso esforço pessoal para compreendê-la, não como alguém que disseca um sapo em
laboratório, mas como um amante olhando para a pessoa amada tentando entendê-la para
agradá-la com uma vida que a represente. Um casal estuda um ao outro, pais estudam seus
filhos. Tenho uma filha de quase dois anos e eu a estudo. Ao fazer isso ou aquilo, ela chora.
Hoje ela não quis comer o lanchinho da tarde e eu percebi que, se desse ao ursinho antes, ela
veria e ia querer comer também. Isso é estudar alguém que amamos. Eu quero que Catarina,
minha filha, coma e cresça nutrida e eu vou procurar saber como isso pode acontecer. Estu-
dando, percebendo, aprendendo. No matrimônio, percebemos as palavras que incomodam e
machucam o cônjuge e as que lhe dão prazer. Nós estudamos Deus não simplesmente para
aquecer nossas mentes, mas porque o amamos. Nós estudamos Deus porque queremos
agradá-lo. Estudamos Deus porque ele é nosso amado. Somos sua noiva e queremos conhe-
cê-lo mais e melhor.

Nos comentários, o João Marcos fez uma pergunta muito boa:

Yago, quais cuidados devemos ter para não criarmos ou não sermos enganados
por uma teologia mundana e como perceber se estivermos seguindo uma?

A resposta sempre está na submissão a Deus e a sua Palavra. É claro que homens submis-
sos a Deus e a sua Palavra podem discordar em teologia, mas uma teologia mundana torce
a Palavra, desacredita que a Bíblia seja a Palavra de Deus e que Deus está se revelando nela,

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nega questões básicas do sobrenatural, assume perspectivas científicas, políticas, sociais e


econômicas para explicitamente lançar no texto bíblico. Esse é o caminho mais claro de uma
teologia mundana que rejeita o que é dado na Palavra de Deus.

Por que as pessoas, muitas vezes, não têm essa paixão por Deus na teologia e não conse-
guem ter um coração aquecido por Deus no processo de fazer teologia?

Nós, como cristãos, alimentamos pessoas. Alimentamos e ensinamos com a Palavra


como um bolo que é feito em sua cozinha enquanto suja os utensílios e desorganiza o am-
biente. O bolo é a Palavra de Deus, e as pessoas têm fome. E quem tem fome precisa de
comida. As pessoas precisam ouvir palavras sobre a graça e o amor de Deus, respostas para
os desafios de suas vidas, porque o mundo tem dúvidas. O nosso problema é que passamos
tempo demais mostrando a cozinha, pois, às vezes, só temos receitas para dar. Às vezes, pes-
soas estão famintas e achamos que estamos dando o bolo, mas, na verdade, estamos con-
fundindo as pessoas. Precisamos dominar tudo o que é concernente à cozinha, temos que
saber usar os utensílios, temos que decorar as receitas. Por vezes, nesse processo, até sobra
alguma coisa que não vai servir para dar aos convidados, mas pode ser a massa de bolo que
você dará aos filhos sobre um conhecimento das Escrituras e que também vai alimentar você
antes de ensinar a todos. O que o mundo precisa é se alimentar da Palavra, sentar à mesa e
comer do pão da vida, e isso nós podemos dar. O mundo rejeita a boa teologia porque nós não
estamos dando boa teologia. Estamos simplesmente cansando o mundo de pessoas fracas
e necessitadas com informações legais que encontramos na internet.

Como teólogos, corremos o risco de não saber sequer apreciar um bom bolo, pois só sa-
bemos discutir fórmulas. Julgamos o bolo do outro como maravilhosos degustadores que
somos da teologia, ouvimos a pregação em nossas igrejas, degustamos e pontuamos o que
faltou acentuar na receita. Somos apenas avaliadores e julgadores. Como um sommelier, não
comemos, apenas apreciamos. Aprender a nutrir a alma faz parte do processo de aprendiza-
do teológico. Se não aprendermos a nutrir nossa própria alma, como iremos nutrir a alma de
outras pessoas? Como iremos servir a um mundo que precisa da Palavra de Deus? Muitos
bons teólogos não sabem servir bolo, só sabem discutir as receitas.

O desafio é criar uma teologia que não é feita na janela. Essa ideia vem do livro de E.T.A
Hoffmann chamado A janela de esquina do meu primo. Cito esse livro no início do meu livro
A máfia dos mendigos. O livro de Hoffmann narra a história de um homem que está condi-
cionado a uma cadeira de rodas e observa e descreve minuciosamente tudo que ocorre na
esquina. Muitas vezes, o nosso processo de fazer teologia também é do parapeito. Somos
paraplégicos que falam de longe. Não nos sentamos na calçada para ouvir as necessidades
das pessoas. Nosso construto teológico se resume em discutir temas polêmicos na internet.

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Tudo que fazemos é a partir da janela, sem gerar nenhum impacto real, transformação real,
nas nossas vidas. Enchemos nossa cabeça, temos um avivamento da teologia reformada, jo-
vens ávidos pelo conhecimento reformado. O que isso gerou? Quais frutos estamos colhendo
de todo um avivamento por teologia reformada? Se o movimento e avivamento teológico não
se converterem em escolas teológicas, agências missionárias e em igrejas locais, Deus vai
nos varrer e nos punir por ter nos dado tanto e não termos feito nada com o que ele nos deu.
Precisamos transformar o mundo à nossa volta através do conhecimento, e isso só é possível
se estivermos em contato com esse mundo, se não estivermos na janela, sentados no para-
peito, discutindo na internet e pouco envolvidos na igreja local. Se não estivermos falando
sobre avivamento, teologia e calvinismo nas redes sociais, ao passo que não fazemos o culto
doméstico em nossas casas e estamos com vida devocional fraca, simplesmente vivendo de
qualquer jeito.

Um dos grandes planos que tenho para a Escola de Teologia é termos um processo de
mentoria para leitura anual. Se não há intimidade com Deus e vida de oração, se não há pre-
gação do Evangelho e serviço às pessoas, o que você está fazendo com sua vida? Você não
está fazendo teologia da forma correta, está apenas observando pela janela, dando respostas
corretas a perguntas erradas. Discutindo sobre assuntos, mas sem tirar dos textos e dos au-
tores as respostas para as perguntas deste século. Martinho Lutero disse que é covarde o rei
que, quando sua cidade está sendo invadida em um portão, manda todo o seu exército para
outro. Você finge que está na guerra, mas está entregando tudo ao inimigo. Nossos jovens es-
tão sendo atacados na universidade por materialismos, ateísmos e doutrinas laicas de eman-
cipação humana, por utopia política. Nossas mulheres são bombardeadas nas redes sociais
com discursos sobre serem donas de casa ou feministas. Ideologias que, muitas vezes, são
deturpadas ou que fingem ser de Deus, mas não são. Maridos aprendendo a ser homens
em páginas de marketing digital, com homens que estereotipam a verdadeira masculinidade.
Nossos filhos estão sendo criados pela televisão e estamos simplesmente ignorando o fato
de que precisamos dar respostas para as demandas do nosso tempo. Temos igrejas que
sabem tudo, mas que não sabem responder a perguntas de um adolescente, não sabem lidar
com a pergunta da dona de casa. Precisamos sair da janela, sair da arquibancada.

George J. Stigler, em seu livro O intelectual e o mercado (falando sobre economia), diz que
a erudição não é um esporte para ser praticado da arquibancada. Eu acho que o que ele fala
sobre erudição vale também para a teologia. Esta não é feita para ser estudada e vivida da ar-
quibancada. O jogo da vida cristã está rolando e você se isola num monastério. Quando você
está no mercado de trabalho, envolvido na produção acadêmica, focado na criação dos filhos
e assumindo o papel de pastor de sua casa, a teologia faz sentido. Teologia é muito mais do
que todos esses arrazoados da internet. Ela acontece quando você sai da arquibancada e
começa a ser discipulado e a discipular.

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Quando escrevi o livro Faça discípulos ou morra tentando, eu falei sobre discipulado rela-
cional, sobre um tipo de discipulado que precisa fazer parte do nosso cotidiano de forma rele-
vante e comum, no qual a teologia é feita através das demandas da igreja e para as demandas
da igreja, através da existência comum. Em meu terceiro livro, da série da grande comissão,
Os sermões dos maricas, eu falo sobre como a igreja local é o lugar para onde a teologia de-
sagua, ou seja, a sua teologia deve estar respondendo às demandas da igreja ou lidando com
as questões da sua vida. Sendo um jovem, você já responde às perguntas das crianças de
sua igreja? Sendo uma senhorinha comum, você já cumpre o que é dito em Tito 2 (mulheres
mais velhas instruem as mulheres mais novas ensinando-as a serem boas esposas e a cria-
rem bem os filhos)? Isso se responde teologicamente. Você pode ser uma dona de casa e
teóloga, ser um jovem teólogo, um pai de família trabalhador e teólogo, que dá respostas às
questões de sua família. Todos nós precisamos de uma teologia que responda às demandas
de discipulado da nossa existência. Precisamos dar teologia para pessoas reais.

Esse foi o grande interesse no meu processo de escrita de A máfia dos mendigos, onde nar-
ro minha experiência em dormir com mendigos em Fortaleza durante um ano para entender
o que estava acontecendo. Uma teologia que é feita no chão da calçada. Uma teologia feita
dormindo no banco da praça. Há uma teologia que é feita quando você se relaciona com a
vida comum. Você não precisa participar de coisas tão extremas, precisa apenas chamar os
jovens da sua igreja para almoçar em sua casa, entrar na vida de um casal, fazer parte de um
grupo de mocidade, estar em relacionamento com outros membros, participar do encontro
de mulheres e contribuir se relacionando com os irmãos da fé. Ir além do simples saber teoló-
gico daquilo que você escuta em um sermão ou que vê na escola dominical. Existe toda uma
vida para ser vivida em torno de Deus. Existem muitas vidas para serem apontadas a Deus, e
você pode ser instrumento disso. Deus colocou você aqui para se capacitar a fim de ser um
instrumento nas mãos dele, servindo outras pessoas.

O aluno João Marcos falou sobre ter medo de ser essa pessoa que só entrega receitas
de bolo. A nossa mentalidade precisa ser de quem está interessado em servir. Eu não quero
aprender para cultivo de mim, para ser mais inteligente, para que as pessoas me vejam me-
lhor, mas para que os outros sejam ensinados. Aprender para servir. Aprender a cozinhar bolo
não por gostar de bolo, mas porque as pessoas precisam ter o que comer. Se o seu coração
for entregue àqueles que precisam, se você estuda grego para servir às pessoas que vão ser
edificadas pelo seu conhecimento de grego, seu coração está no caminho certo. Quando
você simplesmente quer saber mais e sua identidade está naquilo que as pessoas pensam de
você como um pregador, ministro e cristão, esse será o seu fim. A resposta para isso é joelho
no chão, arrependimento e pedir para que o Senhor mude seu caminho.

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O aluno Linkon perguntou:

Como um membro comum de igreja pode construir verdadeiramente para o


ensino de sua igreja?

De muitas formas: tanto no ministério da Palavra, auxiliando o pastor na pregação, quanto


no ministério do ensino na escola bíblica dominical, discipulados, pequenos grupos, encon-
tros temáticos. A Bíblia manda que nós ensinemos uns aos outros, então você pode contribuir
para o ministério da sua igreja sendo um bom membro, relacionando-se com as pessoas da
igreja, vivendo a vida comum para que as pessoas possam ser aconselhadas por você, tirar
dúvidas teológicas e encontrar em você um amigo e confidente. Isso cabe a cada um de nós.
Com mais ou menos habilidade, mas todos nós somos mestres e professores da Palavra.
Todos nós somos instrumentos do Deus vivo para abençoar outras pessoas e para servi-las.
Temos que assumir isso como algo importante.

Aslaine comentou:

Num momento de grande dificuldade, comecei a ler a Bíblia e, depois daquele


momento, nunca mais deixei de ler. Já li mais de 7 vezes pois entendi a neces-
sidade disso para minha existência. É meu ar...

Excelente! Vamos juntos aprender mais do Senhor e do que ele tem a nos dar.

Artur comentou:

O serviço na igreja local é o melhor ambiente para formar líderes. Seminários


teológicos, por mais abençoados que sejam, não têm obrigação bíblica de for-
mar bons líderes. A igreja tem.

João falou:

Aprender para servir!!! Vou ficar me falando isso durante os estudos para não
cair na soberba.

Amém, esse é o processo!

Quando escrevi A máfia dos mendigos, que citei há pouco, eu tinha feito, no manuscrito ori-
ginal, toda uma preparação, um arrazoado técnico sobre o que eu estava fazendo no livro. A
tentativa era de instruir as pessoas que lessem sobre as minhas metodologias sociológicas.
Isso não está mais no livro publicado, mas falei muito sobre Theodore Dalrymple e alguns
outros autores muito famosos da sociologia, como Clifford Geertz e Bronislaw Malinowski.
Vocês encontrarão as citações no material que será disponibilizado para download.

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Theodore Dalrymple tem um livro chamado A vida na sarjeta, no qual ele diz:

O médico é um acadêmico que passa metade do tempo em pesquisa e eu


estarei disposto a apostar uma boa quantia de dinheiro que a extensão dos
problemas dos desabrigados com doença mental em nossa cidade não dimi-
nuirá na proporção do número de artigos acadêmicos escritos ou do número
de conferências acadêmicas em que o médico comparecerá. (...) É justo pre-
sumir que não muito menos de 50 mil pessoas ganham o sustento por conta
dos desabrigados nessas ilhas. Compaixão para alguns é sem dúvida, uma
boa jornada na carreira.

O que Dalrymple lê no mundo secular é útil no modo como interpretamos o mundo teo-
lógico. Um médico realiza um serviço muito prático: curar doentes. Mas, dentro de alguns
ambientes, segundo Theodore Dalrymple, onde existia simplesmente um esforço acadêmico
e técnico sobre a mendicância, o médico não era a pessoa da linha de frente dando remédios
e diagnosticando doenças, mas alguém que escrevia artigos acadêmicos, coloria slides, ia a
congressos e somente isso. Ele ganhava dinheiro para não mudar nem uma palha na vida do
necessitado. Ele apenas pesquisava, escrevia, publicava para outras pessoas que também
publicavam e escreviam. Será que isso não fala alguma coisa sobre nossos ambientes de
teologia, onde passamos a acreditar que teologia não é feita na trincheira? Que teologia não
é feita para a vida real? Leia as cartas de Paulo. As cartas paulinas não foram escritas em um
gabinete nem em um belo escritório, mas a partir do campo missionário. As cartas de Paulo
foram escritas na prisão. O apóstolo não precisou de um período sabático para ficar recluso e
escrever à igreja. Ele estava no meio da obra missionária, no meio do serviço a Deus, levando
a mensagem do Evangelho aos perdidos e instruindo teologicamente todo o povo de Deus.

Como você imagina o fazer teológico? Quando você pensa em um teólogo, pensa em um
homem barbado, uma biblioteca de livros grossos, um computador, um canal no YouTube, um
Instagram, um curso online? Como você imagina um teólogo?

Um(a) teólogo(a) é uma pessoa que está em viagem escrevendo cartas na prisão. Uma
pessoa que está vivendo para a vida real. Nós precisamos ser pessoas na vida real, que não
acham que teologia é decorar livros ou colorir slides, mas que entendem que teologia é levar
a mensagem de Deus aos necessitados em nossa igreja, em nossa família, no mundo afora
— um mundo que agora morre em decorrência do coronavírus. Não telefonamos, não faze-
mos videochamadas, não cuidamos dos nossos. Tenho, neste momento, um colega pastor,
cujo pai estava na UTI por causa da Covid-19 e veio a falecer. Dois dias depois que o pai havia
falecido, nasceu seu filho. Dez dias depois do falecimento de seu pai, sua mãe também veio
a falecer por Covid-19. Ele agora está na UTI por complicações da infecção pelo coronavírus.
Com um bebê em casa nascido há menos de um mês. Perdeu os pais e, agora, ele mesmo,

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está intubado. Digo, com muita tristeza, que talvez eu nunca mais veja esse amigo. Estamos
fazendo campanha de oração para que isso não ocorra, mas é possível que eu nunca mais
o veja. Iríamos nos encontrar, celebrar juntos e não conseguimos sequer conversar. O que
temos feito em um período tão crítico como o que estamos vivendo para levar o Evangelho e
a palavra de Deus a quem está do nosso lado?

Paulo, próximo da morte, pede para que Timóteo leve a ele livros e pergaminhos para que
ele possa estudar. Eu tenho certeza de que Paulo não queria estudar apenas para ele, mas
para transmitir algo a alguém. A vida é frágil, breve. Todos nós somos temporários, passagei-
ros. Todos nós precisamos sentir a urgência da pregação do Evangelho para aqueles que pre-
cisam. Não simplesmente ficar colorindo mais slides, nem escrevendo cada vez mais textos
para o Instagram, nem pensando em criar mais um canal do YouTube. Nada disso é ruim, eu
mesmo faço essas coisas. Mas é preciso fazer essas coisas como fruto de uma vida vivida
em torno de servir quem precisa. Uma teologia relevante para o século 21 está centrada nas
realidades do século 21. Dormindo com mendigos, sentado no chão da praça, ouvindo pesso-
as comuns, recebendo jovens da igreja, visitando idosos, vivendo a existência do presídio, no
hospital, na escola, na vida acadêmica. Fora dos debates que não levam a nada, mas dentro
da existência real da fé.

Uma teologia relevante do século 21 é uma jornada em que entramos para mudar a forma
que pensamos a teologia. Não simplesmente para aquecer a mente, mas para nos levar a
quem precisa.

Clifford Geertz, num texto chamado Uma descrição densa: Por uma teologia interpretati-
va da cultura, escreve:

O que um etnógrafo enfrenta? O etnógrafo enfrenta uma multiplicidade e estru-


turas conceituais complexas. Muitas delas, sobrepostas ou amarradas umas às
outras que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas. Ele tem de
alguma forma, primeiro aprender, depois apresentar. Isso é verdade em todos os
níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro.

Não sou sociólogo, mas o que se faz na sociologia é tentar compreender multiplicidades
de estruturas conceituais complexas. Ideias sobrepostas, teias de significado, estranhas e
irregulares, inexplícitas, em um mundo em que as pessoas têm ideias, compreensões e valo-
res. Elas têm acesso a mídias diferentes, com diferentes visões políticas, interpretam o amor
de forma diferente, passaram por abusos e traumas. Existem os mais variados históricos de
construções de vida. São teias estranhas de significado que não são explícitas, as pessoas
não sabem explicar, e que precisamos, por vezes, desvendar.

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O nosso processo de fazer teologia não é somente de compreender o texto bíblico, mas
também de entender a pessoas para a qual falamos. É sobre responder a demandas de uma
cultura que não se entende, não sabe, não crê. Uma cultura que é cheia de ideias e signifi-
cados, que não consegue perceber os motivos de crer como crê ou de fazer o que faz. O
homem sem Deus só vive pelos padrões reproduzidos pela cultura. As pessoas compram
suas narrativas políticas, escolhem as teias de significado e acaba nisso mesmo. Cabe a nós,
como cristãos, ler a cultura para dar a ela a resposta única e cabal, a resposta da revelação
do Evangelho de Deus.

Você deve ter o coração feliz e aquecido por isso. Você deve se sentir motivado a ler so-
bre economia, sociologia, psicologia, dentro do seu próprio grupo de amigos, entendendo as
questões de cada um, suas histórias, posições políticas para dar respostas coerentes a nossa
cultura, as respostas da Palavra de Deus. Somos pequenos etnógrafos, entendendo a socie-
dade para respondê-la a partir da Bíblia.

O crente deve ter a Bíblia em uma mão e o jornal na outra. Esse é um dos grandes motes do
Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura, tratar a exegese bíblica com respeito, não tomando
o discurso religioso, conservador, e dando a ele um nome cristão para torná-lo cosmovisão
cristã. Mas respeitando a Palavra de Deus e usando a exegese bíblica para dar respostas
sérias e racionais paras as questões e os dilemas do nosso tempo. Precisamos fazer isso
tendo o jornal do dia na outra mão, entendendo para quem nós estamos falando, quais são
as grandes questões da nossa cultura, quais as grandes polêmicas políticas, quais são os pe-
cados sociais em que a Igreja está se envolvendo. Entendendo isso, conseguiremos ter uma
teologia que fala, responde e que pode ser questionada, pois não teme os questionamentos
da cultura.

Clifford Geertz, continua falando algo muito interessante sobre o processo do etnógrafo:

Entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, tra-


çar linhas de propriedade, fazer o senso doméstico, escrever seu diário. Fazer
etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elip-
ses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos escritos não
com sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de compor-
tamento modelado.

O que estamos fazendo é quase impossível. Entender a cultura e o mundo em que vivemos
é muito difícil. Por isso crentes brigam por causa de política. Por isso crentes dão respostas
completamente diferentes sobre a questão do isolamento social, lockdown, fechamento de
igrejas, por exemplo. Discordamos o tempo inteiro porque estamos envoltos em coisas com-
pletamente difíceis e incoerentes. Não entendemos bem a cultura.

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Há uma missão para entender a cultura num esforço de cosmovisão cristã, mas, acima
de tudo, temos a resposta cabal, final e perfeita para a cultura, que é a resposta da teologia.
Você pode não entender a cultura, mas, se entende a Palavra, no mínimo, você tem a prega-
ção do Evangelho que vai transformar corações. No mínimo, você tem a verdade de quem
Deus é para entregar àqueles que estão engendrados em teias de significado que nem eles
entendem. Quando compreendemos a cultura, podemos dar respostas e produzir coisas com
eficácia e acurácia muito maior.

O outro autor e antropólogo polonês criador do conceito de observação participante, Bro-


nislaw Malinowski, fala que o trabalho do bom etnógrafo é o trabalho de se ver sem os outros,
de se ver no meio dos nativos sem os seus iguais. Ele monta uma cena imaginária em que
estamos sozinhos, cercados dos nossos equipamentos de pesquisa em uma aldeia tropical,
em uma praia nativa, enquanto a lancha ou o barco inflável se afasta até sumir de vista. Entra-
mos em uma cultura, um novo povo, e não temos como fugir.

Os antigos missionários tinham base missionária. Essa base era um pedaço do país de
origem naquele local. Na base de um grupo de americanos no Ceará, por exemplo, tinha Co-
ca-Cola, TV a cabo americana e tudo o que era parte da vida normal de antes. Eles eram
outsiders da cultura, não estavam dentro da cultura percebendo o que acontecia diretamente
na vida das pessoas. Nós, dentro da nossa própria cultura, somos autóctones, já somos do
nosso povo, entendemos as nuances, as piadas, o que ofende ou não, a geografia, o estatuto
social, os pequenos símbolos de comportamento.

Dentro da nossa própria cultura, podemos ser teólogos que produzem conhecimento para
transformação de vidas de uma forma que John Piper e Paul Washer não conseguiriam, que
eu não seria capaz de fazer em sua casa. Você pode falar para seu filho, cônjuge, pai, colegas
de trabalho, amigos e parentes de uma forma que eu, em um vídeo, nunca conseguirei falar,
pois você está aí, você os conhece e entende. Você pode aprender aqui, ouvir o conhecimento
que quero transmitir, acessar o time de professores, aumentar sua informação e, então, trans-
mitir isso àqueles que somente você consegue ler.

Podemos ter a Bíblia em uma mão, ler fenômenos culturais maiores, mas, em sua casa, em
seu trabalho, em sua própria vida, isso é um esforço que você vai poder desenvolver ao levar o
Evangelho a quem está do seu lado. É uma participação observante, é adentrar a vida comum.

Como disse anteriormente, Malinowski criou o termo observação participante, mas um ou-
tro autor, chamado Marek Capinski (que, em seus estudos sobre a cultura prisional da Po-
lônia comunista de 1985) desenvolveu o termo participação observante. Capinski escreveu
sobre prisioneiros políticos, sendo um prisioneiro político. Em sua obra, ele caracteriza essa
participação observante, contrastando com a observação participante de Malinowski como

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dependente da entrada em uma comunidade e sujeição aos mesmos processos sociais e


seus outros membros. Sujeito a regras semelhantes, mas sem deixar de se ver como um pes-
quisador interessado no que vê.

Podemos ser pessoas de dentro da cultura, cada vez mais inseridos na cultura, participan-
do, observando e dando as respostas necessárias para o nosso tempo. Precisamos nos en-
volver, como Eric Voegelin se envolveu como um refugiado fugindo do nazismo. Nos envolver
como o neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl, que escreveu sobre o sentido da vida no meio
do sofrimento, após ser prisioneiro de Auschwitz (ele fundou a logoterapia, que é uma psico-
logia a partir do espiritual, justamente porque viveu o mais profundo caos que um ser humano
pode viver, que era a situação dos prisioneiros de Hitler). Viktor Frankl sobreviveu e escreveu
a partir da perspectiva de quem está perto, de quem sente.

No livro Páginas ampliadas: O livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatu-


ra, de Edvaldo Pereira Lima, ele escreve que o autor de um livro de reportagem precisa ir a
campo, ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes que circulam seus personagens. Não
estamos escrevendo ficção. Ao fazer teologia, não estamos escrevendo um conto, uma crô-
nica puramente imaginativa. Estamos fazendo reportagem. Um teólogo é um jornalista. Um
membro da igreja é alguém que está percebendo a existência a sua volta e dando respostas.

Já comparei o nosso ofício com o trabalho de um amante, um cozinheiro, um etnógrafo e um


jornalista. Fazer teologia e dar respostas a partir dela é algo que encontra paralelos em muitas
áreas. Aprendemos isso nos textos de Paulo, quando ele foi um teólogo para a sua realidade.
Quando Paulo olhou para o mundo à sua volta e respondeu a ele. Ele não deixou, simplesmen-
te, que o seu saber teológico fosse feito de forma escondida. Paulo usa em suas cartas uma
variada riqueza de vocabulário. Ele usa um vocabulário escrevendo aos Tessalonicenses, outro
vocabulário escrevendo aos Colossenses e um outro quando escreve aos Romanos. Paulo não
tem cartas muito parecidas, porque ele usa uma linguagem que alcança especificamente o pú-
blico que está ouvindo. Paulo não se permitiu falar do mesmo jeito a públicos distintos.

Nós respondemos às necessidades das pessoas entendendo que nossa linguagem muda.
Ao falarmos a uma criança, a linguagem muda; falando a seus colegas, a linguagem é outra.
Você vê as necessidades de um cristão que é traído e de um cristão que traiu. A linguagem é
completamente diferente.

Fazer teologia na nossa realidade é o que importa. Muitos dos meus livros são respostas
à minha realidade. O meu livro Pecados aceitáveis foi escrito para resolver pecados da mi-
nha igreja. Os pecados abordados eram os que a minha igreja cometia. Poderia ter escrito
sobre outros pecados, mas eu não queria escrever para resolver os problemas do mundo, eu
queria responder aos pecados da Igreja Batista Maanaim. É isso que faz com que possamos

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produzir uma teologia que é relevante, porque a teologia que fala a necessidades específicas
concretas é uma teologia que fala a outras realidades.

Os melhores sermões que já preguei foram para duas pessoas. Não havia câmeras me fil-
mando, muitas visualizações no YouTube ou uma plateia me ouvindo. Eu tinha uma pessoa
em mente e queria consolar aquele irmão. O sermão inteiro, em todos os exemplos, era para
aquela pessoa. Outras pessoas que não tinham a ver com o assunto falavam, ao final do culto,
que o sermão tinha sido para elas. Foi apenas porque Deus fez ser para todos. Deus pode usar
a mesma faca para cortar todos os que precisam ser feridos por ela. Mas uma teologia real-
mente relevante, real e útil é aquela que está preocupada em resolver problemas que são reais,
quando há uma imagem em sua cabeça para você responder aos desafios. Paulo usa a mesma
imagem nas suas cartas de múltiplas formas, com diferentes ênfases, de acordo com as ne-
cessidades do contexto. Paulo usa até mesmo uma figura igual para falar de assuntos distintos,
muitas vezes. Paulo usa uma dimensão contextual tão ampla que ajuda a explicar por que um
símbolo ou um tema aparece, predominantemente, em uma carta, e não em outra.

Por que Paulo falou tanto sobre a primazia de Cristo como criador de tudo aos Colossenses,
mas, aos Romanos, passa muito mais tempo discutindo sobre os efeitos práticos da vida da
fé? Porque os colossenses precisavam saber daquilo, pois a seita gnóstica estava negando a
pessoa de Jesus. Enquanto, para os romanos, Paulo apresenta o Evangelho para que aqueles
irmãos pudessem ser mais missionários. Necessidades diferentes, respostas diferentes.

A internet ou um livro que você compra não pode lhe dar isso, mas você pode dar isso a
quem está ao seu lado. Você pode dar isso a si quando ouve a pregação do Evangelho. A
flexibilidade de Paulo o capacitava a se apropriar da linguagem tradicional das suas imagens
sobre o guiar do Espírito. Paulo usa linguagem política, social, poética; ele faz uso de palavras
comuns a várias realidades para responder questões diferentes. Tudo o que temos está en-
volvido na propagação do Evangelho.

Adriana Lopes perguntou nos comentários:

Como posso contribuir para introduzir um ensino mais aprofundado da Palavra


na minha igreja local? Sinto que a minha igreja está muito presa ao “leite” (como
Paulo define) e não quer se aprofundar.

O segredo não é ser uma grande professora, é ser uma grande aluna primeiro. É contagiar
as pessoas à sua volta com sua paixão por Deus, contagiar as pessoas com sua paixão por
aprendizado. Alimentar as pessoas não do que você tem a dizer, mas do que você quer muito
ouvir, arrastando-as pelo exemplo e, a partir daí, ter meios para ensinar mais fazendo as pes-
soas quererem ser ensinadas.

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O Alef disse:

Às vezes, somos engolidos pela teologia teórica e esquecemos a prática.


Teologia é prática em humildade e submissão ao Senhor no serviço a igreja!

Rodrigo comenta:

Yago, estamos recebendo enxurradas de informações, até nossos líderes estão


se perdendo no processo. A polarização no debate está deturpando a mente
dos cristãos, isso é, os que não tem como se defender por falta do conheci-
mento bíblico.

O nosso processo de aprendizado teológico consiste em fazer cosmovisão cristã para


uma cultura em necessidade, para um povo que precisa entender o que temos a dizer. A cul-
tura tem valores, instituições, ideologias, comportamentos e muitas outras coisas. Responder
à cultura é entender cada um desses elementos culturais. Pense em uma árvore. A parte de
cima de uma árvore, quando ela está acima do solo, são os comportamentos e costumes que
você pode observar. Mas a raiz da árvore são instituições, casamentos, leis, acessos educa-
cionais. Abaixo, onde a raiz da árvore nem consegue alcançar e há um solo mais pedregoso,
temos os valores e a moral, todo o objetivo para onde o mundo está indo. Mais abaixo disso
tudo, estão as cosmovisões, ideologias, cosmogonias, cosmologias. Ainda mais abaixo, te-
mos a inclinação do coração (se os homens estão inclinados a Deus ou não). Escrevo isso
nos últimos três capítulos da segunda parte do meu livro No alvorecer dos deuses.

Agostinho escreve, em Cidade de Deus, que existem duas cidades: uma dos homens e
uma de Deus. A cidade de Deus é inclinada ao amor, enquanto a dos homens é inclinada ao
egoísmo. Formamos toda a nossa cultura em torno de uma inclinação do coração. Qual é a
resposta que podemos dar ao mundo que está com o coração separado de Deus?

No episódio 14 da segunda temporada do seriado Gotham, Bruce Wayne escreve uma


carta ao Alfred:

Alfred, eu saí de casa por um tempo para viver nas ruas com a Celina. Por favor,
espere e escute antes de reagir. Você não precisa ficar preocupado se estou em
perigo ou se perdi a cabeça. Estive pensando com afinco e por muito tempo so-
bre essa decisão e eu sei que este é o caminho certo. Você só pode lutar contra
essas coisas onde elas estão. Nas ruas, nas favelas, nas partes ruins da cidade.
Então, é para lá que eu estou indo. Eu não vou começar a lutar contra assaltantes
ou algo assim, mas um dia, eu vou fazer algo para ajudar o povo. Não sei o que é
ainda, mas eu vou. Entretanto, eu preciso aprender coisas. Em primeiro lugar, eu
preciso aprender no mesmo mundo que as outras pessoas vivem.

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Essa é uma citação que me marca, porque, embora seja uma linguagem cinematográfica
baseada em histórias em quadrinhos, me faz ver que nós precisamos desse contato mais
íntimo com a realidade. Se nós queremos dar respostas reais a partir da Palavra de Deus ao
mundo que precisa, temos que sair de casa, do conforto de um lar aconchegante, para entrar
na vida dos outros. Ir à casa do pobre, do necessitado, do irmão da igreja com quem eu não
tenho muito contato, para dar algo, para ler a cultura e ter uma teologia que fala com relevân-
cia ao tempo que estamos vivendo.

Uma citação menos nerd e um pouco mais forte vem de um teólogo croata chamado Boris
Gunjevic, em seu livro escrito em parceria com um filósofo marxista chamado Slavoj Zižek.
Embora eu não goste dos escritos de Zižek, ele escreve algo muito importante acerca do
começo da fé na Croácia no livro O sofrimento de Deus: Inversões do Apocalipse. Sobre os
primeiros teólogos que levaram o Evangelho até lá, Boris diz o seguinte:

A teologia deles é escrita com o próprio sangue.


Do contrário, não seria teologia.

Houve mártires que morreram por causa da pregação do Evangelho e que, por isso, fizeram
teologia no martírio. Assim como Paulo, que fez teologia na prisão, vários homens fizeram teo-
logia em ambientes de pregação e ensino muito intensos. Fizeram teologia quando sangravam.

Você talvez sangre muito (contas a pagar, alguns desarranjos familiares, uma saúde que não
é das melhores etc.). Enquanto você sangra, o que você está produzindo? O que está jorrando
do seu sangrar? Quando Jó sofreu, deu a nós o livro com sua história. Desde o Antigo Testa-
mento, ele foi um tipo do ministério de Cristo Jesus como nosso intercessor, como um servo
sofredor. O que seu sofrimento dá ao mundo? Você está escrevendo teologia com sangue? Te-
ologia só é teologia se for feita com sangue. Se você não sangrar a Palavra de Deus, você ainda
não estará fazendo teologia de verdade, on the road, na estrada. A teologia de gabinete é uma
exceção. Nós fazemos teologia na vida comum, na vida de igreja, na existência real.

Preguei meus principais sermões na calçada, ouvindo irmãos da igreja e dando respostas
para necessidades comuns. Discipulei na fila do banco, trazendo pessoas para minha casa para
comermos, jogar um vídeo game. Fui em casa de pessoas para jantar, mas unicamente para
podermos compartilhar algo da Palavra. É isso que Paulo escreve aos romanos, com o desejo
de ir para compartilhar com eles um dom. Precisamos fazer teologia relevante. Fazer teologia
relevante para o nosso tempo é estar sentado na existência do nosso tempo. Sangrar a Palavra.

O livro de Hebreus diz que a Palavra de Deus é espada e, por ser espada, ela nos fere.
Quando ela nos fere, sangramos e, quando sangramos por termos sidos feridos pela Palavra,
sangramos teologia relevante.

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Agostinho disse: “Feriste-me o coração com a Tua palavra e eu te amei”. Quando somos
feridos pela Palavra de Deus e pela boa teologia, aí é que amamos. Quando somos feridos, o
que jorra de nós é mais conhecimento de Deus para aqueles que precisam.

Tudo que desejamos fazer ao longo desse período de estudos é feri-los para que vocês
sangrem. Sangrem na Palavra para que jorre teologia. Teologia para os outros, para que nos-
sos filhos tenham mais intimidade com Deus, para que saibamos como discipliná-los e edu-
ca-los, teologia para que saibamos amar nossas mulheres, para que saibamos nos relacionar
com nossos patrões e com os desafios da família e da vida.

Teologia sangrada, mas sangrada pela cruz de Cristo para dar respostas ao mundo que
precisa. Que possamos mudar nossas compreensões de teologia e sermos transformados,
de fato, pelo Deus vivo.

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