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Viagens • Literatura Portuguesa • 10.

° ano Transcrição de registos áudio 1

 Registos áudio – SEQUÊNCIA 1


(Manual, pág. 100)

“As cantigas de escárnio e maldizer”,


de António José Saraiva e Óscar Lopes
As cantigas de escárnio e maldizer ocupam grande espaço nos Cancioneiros da Vaticana e da
Biblioteca Nacional de Lisboa, mal se distinguindo entre si. Têm por assunto, na sua grande
maioria, certos aspetos particulares da vida de corte e especialmente da boémia jogralesca.
A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam jograis
de corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham
um estatuto social de marginais. Eram “artistas” da boémia, e por isso mesmo permitiam-
-se-lhes liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isto
explica que os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos sur-
jam assoalhados escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina versátil, os
sapatos dourados de um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor enrouquecida pelos abu-
sos do álcool, etc., não faltando mesmo uma abadessa elogiada ou satirizada por um segrel
quanto à sua experiência sexual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos e
até reis no mundo da boémia; vemo-los misturados nos mesmos mexericos, usando a
mesma linguagem, com grande abundância de termos hoje considerados obscenos. É uma
explosão carnavalesca com raízes antiquíssimas e típica da Idade Média.
Raro se encontram nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos muitos
casos anedóticos a que se referem, distinguem-se certos motivos frequentes, condicionados
pelo ambiente. Toda uma massa de composições espelha os problemas típicos da vida jogra-
lesca. Numerosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice dos ricos-homens, da misé-
ria envergonhada dos infanções: à escassez das classes nobres são, naturalmente, muito sen-
síveis os jograis que, em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. Outro
grupo de cantigas mostra-nos as disputas entre os jograis e os trovadores fidalgos: aqueles
porque pretendiam ultrapassar a sua condição, que era, pelo menos convencionalmente, de
simples executantes musicais, metendo-se também a compor versos; estes porque defen-
diam a jerarquia, que limitava o papel do jogral ao acompanhamento instrumental e ao
canto da composição já criada pelo trovador. Patenteia-se nestes conflitos que o jogral era
um vilão, e o trovador, na maior parte dos casos, um indivíduo da classe nobre. Não admira
por isso que também a ideologia da nobreza se exprima em numerosas cantigas satíricas.
[…]
Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntá-
rio de uma ideologia, a sátira trovadoresca completa os Livros das Linhagens; em muitos
casos o gosto, por assim dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece
mesmo sobre a intenção trocista. E assim perpassam, já só por si interessantes, o velho que
desesperadamente se pinta e enroupa muito caro; a rapariga que a mãe antes ensina a sara-
cotear-se do que a coser e fiar; um cavalo faminto abandonado […], mas que se refaz com
erva fresca depois das chuvas; gabarolices de falsos romeiros à Terra Santa; fracassos impre-
vistos por um astrólogo; um juiz que se deixa peitar; agoiros e superstições; incidentes
variados de viagem e hospitalidade; uma ex-soldadeira queixando-se, no confessionário,
não dos antigos pecados, mas da velhice; raparigas casadas (o poeta considera que vendidas)
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à força, ou impunemente raptadas; abadessas cheias de condescendências, etc. Estas peque-


nas iluminuras entrudescas de costumes são apresentadas com uma cordialíssima satisfa-
ção pelos simples factos, ou com uma desfaçatez, um amoralismo, uma real ou imaginária
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autorridicularização pelos seus protagonistas que contrastam surpreendentemente com a

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pudicícia moralizante de quase toda a posterior literatura portuguesa.
Contam-se pelos dedos as composições em que os poetas cultivaram a sátira como
género de interesse geral, versando temas morais ou sociais […].
Como arma política, instrumento de ação sobre a opinião pública, também a sátira foi
entre nós pouco brandida. Sobressaem, no entanto, as cantigas compostas por Afonso X,
o Sábio, acerca dos fidalgos que desertaram numa campanha contra Granada […].
Quer as composições anedóticas quer as de interesse geral usam de processos métricos e
estilísticos que estão longe de ser espontâneos. […] Abunda, não só o trocadilho malicioso,
que serve mesmo de ossatura a várias composições mais escabrosas, mas uma variadíssima
técnica servindo toda a gama de humor a que a matéria de facto pode ser sujeita.

SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, 2005.


História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora (17.ª ed.)

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