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AULA 3

Contratualismo, Liberalismo
e Comunitarismo

Minicurso gratuito
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Contratualismo, Liberalismo e Comunitarismo

1.1 Contratualismo e cooperação cobrisse que por causa de uma grande


catástrofe o governo entrou em colapso
James Rachels, na obra Os elementos da e, portanto, as leis, a polícia ou o tribu-
filosofia da moral, nos faz a seguinte nal não estão funcionando? Ademais,
provocação: suponha que re�rássemos as nações do mundo, sem uma lei inter-
todo o suporte tradicional da moralida- nacional significa�va, funcionam em
de e da legalidade. Assuma, primeiro, relação umas às outras, como os indiví-
que não existe Deus para disponibilizar duos em seu “estado de natureza”,
mandamentos e premiar a virtude; ameaçando constantemente “uns aos
segundo, que não há “fatos morais” outros”, armados e desconfiados.
construídos de acordo com a natureza
das coisas. Além disso, suponha que Claramente, para escapar do “estado de
negássemos que os seres humanos são natureza” deve-se encontrar alguma
naturalmente altruístas – vemos as pes- maneira de as pessoas cooperarem
soas como essencialmente mo�vadas a umas com as outras. Primeiro, deve
buscar seus próprios interesses. De haver garan�as de que as pessoas não
onde vem, então, a jus�ça? machucarão umas as outras – elas
devem ser capazes de trabalhar juntas
Hobbes tentou mostrar que a jus�ça sem o medo de ataque, roubo ou trai-
não depende de nenhuma dessas ção. Segundo, as pessoas devem ser
coisas. Em vez disso, ela deveria ser capazes de contar umas com as outras
entendida como a solução de um pro- na manutenção de seus acordos.
blema prá�co que surge para os seres
humanos interessados em si mesmos. Com a fundação do direito, das leis e do
Todos nós queremos viver da melhor Estado, o que a “voz da obrigação”
maneira possível, mas nenhum de nós exige que esse novo homem faça? Ela
pode prosperar a menos que tenhamos exige que ele coloque de lado suas “in-
uma ordem social pacífica e coopera�- clinações” privadas e autocentradas em
va. E não podemos ter uma ordem detrimento de regras que promovam de
social pacífica sem regras. As regras uma forma imparcial o bem-estar de
morais, portanto, são simplesmente as todos igualmente. Mas ele é capaz de
regras necessárias no caso de adquirir- fazer isso somente porque os outros
mos os bene�cios da vida social. concordaram em fazer a mesma coisa –
esta é a essência do “contrato”. Assim,
Como seria se não houvesse regras, leis, podemos resumir a concepção de con-
polícia, tribunal? O que você faria trato social da seguinte maneira: o
amanhã de manhã se acordasse e des- direito consiste em um conjunto de
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regras que ditam como as pessoas e ao caos da comunidade primi�va.


devem tratar umas às outras, as quais
as pessoas racionais concordarão em Para Locke, a monarquia não se funda-
aceitar, pois há bene�cio mútuo, sob a menta no direito divino. A sociedade e
condição de que os outros também o Estado nascem do direito natural, que
aceitem as regras. coincide com a razão, a qual diz que,
sendo todos os homens iguais e inde-
Para Hobbes, o homem, embora viven- pendentes, ninguém deve prejudicar os
do em sociedade, não possui o ins�nto outros na vida, na saúde, na liberdade e
natural de sociabilidade, conforme nas posses. São, portanto, direitos natu-
defendia Aristóteles. Cada homem rais o direito à vida, à liberdade, à pro-
sempre encara seu semelhante como priedade e à defesa desses direitos. O
um concorrente que precisa ser domi- fundamento da gênese do Estado é a
nado. Onde não houve o domínio de razão e não, como em Hobbes, o ins�n-
um homem sobre outro exis�rá sempre to selvagem. Reunindo-se em uma
uma compe�ção intensa até que esse sociedade, os cidadãos renunciam uni-
domínio seja alcançado. A consequên- camente ao direito de se defenderem
cia óbvia dessa disputa infindável dos cada qual por sua conta própria, com o
homens entre si teria gerado um per- que não enfraquecem e sim fortalecem
manente estado de guerra e de matan- os outros direitos. O Estado tem o
ça nas comunidades primi�vas. O poder de fazer as leis (poder legisla�vo)
homem é lobo do próprio homem e de impô-las e fazer com que sejam
(homo homini lupus). Só havia uma cumpridas (poder execu�vo). Os limites
solução para dar fim à brutalidade do poder do Estado são estabelecidos
social primi�va: a criação ar�ficial da por aqueles mesmos direitos dos cida-
sociedade polí�ca, administrada pelo dãos para cuja defesa nasceu. Portanto,
Estado. Para isso, os homens �veram os cidadãos mantêm o direito de se
que firmar um contrato entre si, pelo rebelarem contra o poder estatal,
qual cada um transferia seu poder de quando este atua contrariamente às
governar a si próprio a um terceiro – o finalidades para as quais nasceu. E os
Estado – para que esse Estado gover- governantes estão sempre sujeitos ao
nasse a todos, impondo ordem, segu- julgamento do povo. Ao contrário do
rança e direção à conturbada vida que sustentava Hobbes, para Locke o
social. Hobbes apresentou essas ideias Estado não deve ter ingerência nas
no Leviatã, no qual o Estado é compara- questões religiosas. E, visto que a fé não
do a uma criação monstruosa do é uma coisa que possa ser imposta, é
homem, des�nada a pôr fim à anarquia preciso ter respeito e tolerância para
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com as várias fés religiosas. fruto de um pacto de união que, ins�tu-


ído entre iguais, dá lugar a um corpo
Para Rousseau, no estado de natureza moral e cole�vo: a vontade geral não é,
influi o mito quinhen�sta do bom selva- portanto, a soma das vontades de todos
gem, o homem que é originariamente os componentes, mas uma realidade
íntegro, biologicamente sadio e moral- que brota da renúncia de cada um aos
mente reto; mau e injusto apenas próprios interesses em favor da cole�vi-
depois, por um desiquilíbrio de ordem dade. Essa é, portanto, uma socializa-
social; é um estado aquém do bem e do ção radical do homem, de sua total
mal: a natureza humana, deixada a seu cole�vização, voltada a impedir a emer-
livre desenvolvimento, leva ao triunfo gência e afirmação de interesses priva-
dos ins�ntos, dos sen�mentos e da dos: a vontade geral, encarnada no e
autoconservação e não da reflexão, da pelo Estado, é tudo. “O vínculo social
razão e da aniquilação. “Vagando pela decorre daquilo que há de comum
floresta, sem trabalho, sem palavra, nesses interesses diferentes; se não
sem domicílio, sem guerra e sem laços, houvesse algum ponto no qual concor-
o selvagem nada mais �nha que os sen- dam todos os interesses, a sociedade
�mentos e os conhecimentos próprios não poderia exis�r. Ora, é unicamente a
daquele estado, só experimentava as base desse interesse comum que a
necessidades verdadeiras. Se, por sociedade deve ser governada. Estamos
acaso, fazia alguma descoberta, nem diante de uma socialização radical do
podia transmi�-la, visto que sequer homem, de sua total cole�vização. Nin-
reconhecia seus filhos. Não havia edu- guém deve obedecer ao outro e sim a
cação nem progresso”. O contrato é um lei, sagrada para todos porque fruto e
pacto alterna�vo que, diferentemente expressão da vontade geral”. O único
do acordo firmado para assegurar a caminho para remediar a decadência
propriedade, terá por finalidade “tomar humana e a rela�va falta de liberdade é
os homens tais como eles são e as leis a es�pulação de um novo contrato
tais como podem ser”. “O homem social, em vista de um renovado estado
nasceu livre e, todavia, em todo lugar civil: “cada um de nós põe em comum
encontra-se em cadeias”. O obje�vo do sua pessoa e todo seu poder sob a dire-
novo contrato social delineado por Rou- ção suprema da vontade geral. Trata-se
sseau é o de libertar o homem das de uma alienação total de cada associa-
cadeias e res�tuí-lo à liberdade. O prin- do com todos os seus direitos por meio
cípio que legi�ma o poder e garante a da qual se produz imediatamente um
transformação social é a vontade geral, corpo moral e cole�vo unitário, cujos
amante do bem comum, que é associados tomam cole�vamente o
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nome de povo e singularmente se o anarcocapitalismo e o minarquismo.


chamam cidadãos, enquanto par�ci- O anarcocapitalismo é uma filosofia po-
pantes da autoridade soberana e súdi- lí�ca capitalista que promove a anar-
tos enquanto submissos às leis do quia entendida como a eliminação do
Estado”. Estado e a proteção à soberania do indi-
víduo através da propriedade privada e
1.2 O debate entre liberais e comunita- do mercado livre.
ristas
Em uma sociedade anarcocapitalista, a
1.2.1 O ideal liberal educação, a saúde, a polícia, os tribu-
nais e todos os outros serviços de segu-
A liberdade individual é o valor supre- rança pública seriam fornecidos por
mo do liberalismo, que defende o direi- concorrentes privados, em vez de subsi-
to dos indivíduos de agir e falar como diados por impostos. O minarquismo é
bem entendem. O ideal liberal implica a teoria polí�ca que prega que a função
deixar o indivíduo livre para perseguir do Estado é assegurar os direitos bási-
sua ideia da vida boa, independente do cos da população, inferindo que as
que ela envolva, sem interferência do únicas funções do Estado seriam a pro-
Estado. O libertarismo ou libertarianis- moção da segurança pública, da jus�ça
mo é uma filosofia polí�ca que possui o e do poder de polícia, além da criação
Princípio da Não-Agressão como de legislação necessária para assegurar
axioma fundamental e uma certa con- o cumprimento destas funções. Dife-
cepção de direitos de propriedade pri- rencia-se do anarcocapitalismo por este
vada como seu núcleo. (anarco) não admi�r nem mesmo um
Estado mínimo.
A direita libertária refere-se às filosofias
polí�cas libertárias que defendem a Suas maiores influências literárias
auto propriedade, alegando que este incluem John Locke, Frédéric Bas�at,
conceito também preconiza o direito David Hume, Alexis de Tocqueville,
que o indivíduo possui de apropriar-se Adam Smith, David Ricardo, Rose
de quan�dades desiguais de partes do Wilder Lane, Lysander Spooner, Milton
mundo exterior. Libertários da direita Friedman, David Friedman, Ayn Rand,
defendem vigorosamente a proprieda- James McGill Buchanan Jr., Friedrich
de privada, o modo de produção capita- von Hayek, Ludwig von Mises, Hans-
lista e as polí�cas de livre mercado. -Hermann Hoppe e Murray Rothbard.
Entre as correntes mais proeminentes Existem, contudo, divergências signifi-
desta vertente libertária, encontram-se ca�vas em termos de epistemologia,
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ontologia e metodologia na interpreta- riam incidir sobre a propriedade da


ção dos fenômenos sociais e econômi- terra); (3) escola Steiner-Vallentyne –
cos entre esses diversos autores. autores como Hillel Steiner e Peter Val-
lentyne, que não consideram que se
A esquerda libertária é uma denomina- possa deduzir a propriedade de recur-
ção para variadas abordagens relacio- sos naturais, e que os proprietários
nadas (porém dis�ntas), no âmbito da devem alguma compensação aos não
teoria polí�ca e social, que enfa�zam proprietários (nesse aspecto asseme-
tanto a liberdade individual quanto a lham-se aos georgistas); (4) agorismo:
igualdade social. A esquerda libertária teorizado por Samuel Edward Konkin,
discorda de sua contraparte direi�sta que rejeitava a ação polí�ca propondo
em relação aos direitos de propriedade, antes que os libertários se dedicassem
argumentando que os indivíduos não ao mercado negro (agora=mercado), a
possuem direitos de propriedade ine- que chamava “contra-economia”; (5)
rentes aos recursos naturais - ou seja, le�-libertarianism (libertarianismo de
que a gestão destes recursos deveria esquerda de livre mercado) – a corrente
ser feita igualitariamente através de um que nos EUA usa a designação de le�-li-
modelo de propriedade cole�va. O bertarianism, representada por autores
libertarianismo de esquerda não é uma como Kevin Carson, Roderick T. Long,
posição polí�ca homogênea. Antes, Charles Johnson, Brad Spangler, Shel-
designa diferentes abordagens de ques- don Richman, Chris Ma�hew Sciabarra
tões polí�cas e sociais num contexto e Gary Char�er, que se dis�ngue da
teórico nos quais diferentes teorias direita libertária por um maior ênfase
relacionam-se. nas questões “sociais” (casamento ho-
mossexual, aborto, etc.) e por uma posi-
Deste modo, falar em libertários de ção bastante crí�ca às grandes empre-
esquerda pode-se referir aos seguintes sas, enfa�zando as suas ligações com o
grupos teóricos: (1) esquerda libertária: Estado.
socialistas an�-esta�stas, como os
anarcocomunistas, anarcossocialistas e 1.2.2 John Rawls e a teoria da jus�ça
anarcossindicalistas tradicionais ou
marxistas an�-leninistas, como Rosa John Rawls nasceu em Bal�more, estu-
Luxemburgo ou Anton Pannekoek; (2) dou em Princeton e, depois de uma
georgismo (geoísmo – que defendem a estadia em Oxford, voltou para os Esta-
propriedade privada sobre os bens pro- dos Unidos, passando a ensinar na Uni-
duzidos mas não sobre a terra, conside- versidade de Harvard, onde também
rando assim que os impostos só deve- ensina seu mais aguerrido e leal adver-
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sário: Robert Nozick. Rawls é conhecido sustentar uma sociedade livre e justa.
por ter publicado em 1971 um dos “A jus�ça – escreve Rawls – é o primeiro
livros mais discu�dos – e mais influen- requisito das ins�tuições sociais, assim
tes – nos úl�mos tempos: Uma teoria como a verdade o é dos sistemas de
da jus�ça. Karl Popper definiu a obra de pensamento”. E logo acrescenta: “uma
John Rawls como “um livro importan�s- teoria, por mais simples e elegante que
simo sob muitos aspectos”, e apreciou seja, deve ser abandonada ou modifica-
muito a ideia de Rawls segundo o qual é da, se não for verdadeira”. Pois bem,
um projeto de vida “que caracteriza as “do mesmo modo as leis e as ins�tui-
intenções ou as finalidades que fazem ções, não importa o quanto sejam
de um homem ‘uma pessoa moral unifi- eficientes e bem urdidas, devem ser
cada, consciente’”. reformadas ou abolidas se forem injus-
tas”.
Por sua vez, justamente Robert Nozick
escreveu que Uma teoria da justiça “é Mas quando é que leis e ins�tuições são
uma fonte de ideias iluminadoras, fun- justas? Os u�litaristas – pensemos, jus-
didas em um conjunto agradável. Ora, tamente, em Bentham ou em Mill – per-
os filósofos devem trabalhar dentro da seguiram o ideal do maior bem-estar
teoria de Rawls, ou então explicar por para o maior número de pessoas; por
que não o fazem [...]. Também quem conseguinte, defenderam uma concep-
não es�ver convencido do desencontro ção tal que no fim, de fato, comportava
com a visão sistemá�ca de Rawls apren- a submissão do indivíduo a sociedade.
derá muito, estudando-o aprofundada- Rawls combate tal impostação, enquan-
mente”. Essas coisas, ditas por seu to, a seu ver, nenhum homem deve
adversário mais temível, cons�tuem o sofrer privações em vantagem de algum
melhor elogio da obra de Rawls. outro ou da “maior parte da socieda-
de”.
Desde os inícios de seu livro Uma teoria
da justiça, Rawls é claro sobre o fato de Rawls, na pesquisa de Uma teoria da
que sua teoria é de “natureza profunda- justiça, parte daquela que ele chama de
mente kan�ana”; e isso no sen�do de posição originária. Esta posição origina-
que ele põe sua obra na esteira do con- ria é o estado em que se encontram os
tratualismo (Locke, Rousseau, Kant), em indivíduos que devem determinar o
contraste com a tradição do u�litarismo contrato. Ela é um expediente heurís�-
(Hume, Bentham e Mill). O intento de co imaginado “de modo a obter a solu-
fundo da obra de Rawls está na propos- ção desejada”. Na posição originária, os
ta e no exame de princípios em grau de indivíduos par�culares se encontram
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os indivíduos que devem determinar o a tendência ao pessimismo ou ao o�-


contrato. Ela é um expediente heurís�- mismo. Além disso, assumo que as
co imaginado “de modo a obter a solu- partes não conheçam as circunstâncias
ção desejada”. Na posição originária, os especificas de sua sociedade”.
indivíduos par�culares se encontram
em uma situação de equidade, isto é, Pois bem, em uma situação desse �po,
de igualdade; e tal equidade deve-se ao nessa posição originária, o véu de igno-
véu de ignorância que caracteriza a con- rância torna todos iguais. O véu de igno-
dição dos indivíduos que se põem na rância não beneficia ninguém; portan-
posição originária. to, nenhum dos contraentes poderá
propor uma sociedade futura ou ins�-
Escreve Rawls: “Devemos de algum tuições em sua própria vantagem; nin-
modo zerar os efeitos das consequên- guém sabe qual é ou será seu próprio
cias par�culares que põem em dificul- interesse ou privilégio par�cular. A posi-
dade os homens, e que os impelem a ção originária faz com que todos sejam
desfrutar em sua própria vantagem as igualmente racionais e reciprocamente
circunstâncias naturais e sociais. Com desinteressados; é uma situação que
este obje�vo, assumo que as partes obriga todos a escolher princípios uni-
estão situadas por trás de um véu de versais de jus�ça, ou, para dizer com
ignorância. As partes não sabem de que Kant – ao qual Rawls se remete –, prin-
modo as alterna�vas influenciarão em cípios de uma moral autônoma que nós
seu caso par�cular, e são por isso obri- mesmos nos damos não como seres
gadas a avaliar os princípios apenas interessados nisto ou naquilo, ou como
com base em considerações gerais. membros desta ou daquela sociedade,
Assume-se, portanto, que as partes não mas como seres livres e racionais.
conhecem alguns �pos de fatos par�cu-
lares. Primeiramente, ninguém conhece “O véu de ignorância priva a pessoa na
seu próprio lugar na sociedade, sua po- posição originária dos conhecimentos
sição de classe ou seu status social; o que a colocariam em grau de escolher
mesmo vale na distribuição dos dotes e princípios heterônomos. As partes
das capacidades naturais, sua força, chegam juntas à sua escolha, enquanto
inteligência e semelhantes. Além disso, pessoas livres, racionais e iguais, conhe-
ninguém conhece sua própria concep- cendo apenas as circunstâncias que
ção do bem, nem os par�culares dos fazem surgir a necessidade de princí-
próprios planos racionais de vida e nem pios de jus�ça”. Os indivíduos que se
as próprias caracterís�cas psicológicas encontram na posição originária não
par�culares, como a aversão ao risco ou podem propor princípios ou pensar em
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uma sociedade em que poderão ser Direito e da Democracia Cons�tucional.


favorecidos eles mesmos ou talvez seus Esse princípio é o mais importante, ou
amigos, e desfavorecidos os outros. seja, considerações sobre o crescimen-
Ninguém sabe nada nem de si mesmo to econômico ou oportunidades não
nem dos outros. A única escolha possí- tem prioridades sobre a liberdade.
vel é, então, a que deverá se referir a
todos; tratar-se-á, portanto, de uma 2) As desigualdades sociais e econômi-
escolha de princípios universais de jus�- cas devem ser tais que...
ça.
i) nos limites de um justo princípio de
Na base da proposta dos princípios que poupança, garantam a maior vantagem
cons�tuem “a estrutura fundamental possível aos menos favorecidos [princí-
da sociedade” há, portanto, um contra- pio da diferença: maximin (maximum
to. As partes contraentes são todos os minemorum: máximo do mínimo)].
indivíduos – não conta aqui o tempo Esse princípio refere-se à distribuição
nem tem importância nenhuma as de bens materiais, à repar�ção equili-
gerações – que se põem na posição ori- brada dos bens primários, dos encargos
ginária. Objeto do contrato são os dois públicos, dos deveres e das vantagens
princípios de jus�ça. E a mo�vação que sociais. As desigualdades são aceitáveis
está por trás do contrato e da proposta desde que beneficiem em primeiro
dos dois princípios é principalmente a lugar os mais desfavoráveis na escala
de se proteger contra a possibilidade de social;
se encontrar amanhã entre os desfavo-
recidos. Os dois princípios são os ii) sejam ligadas a cargos e posições
seguintes: acessíveis a todos em função de uma
justa igualdade de oportunidades. Esse
1) igual liberdade para todos: cada princípio admite a desigualdade nos
pessoa deve ter direito ao sistema mais encargos públicos e nas vantagens, con-
largo de liberdades e base iguais para tanto que se respeite uma condição:
todos, compa�vel com o sistema similar que todos os cidadãos tenham igual
para todos os outros. Entre as pessoas oportunidade de acesso a esses postos
deve vigorar os direitos humanos fun- (do princípio da desigualdade, esse é o
damentais: direitos de par�cipação po- mais importante).
lí�ca, de opinião, de reunião, de consci-
ência, de religião etc. Este é de fato o No plano teórico, costuma-se reconhe-
impera�vo categórico da filosofia de cer que as normas jurídicas tendem a
Rawls e o fundamento do Estado de realizar os ideais de jus�ça. Ou seja, a
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jus�ça seria o obje�vo que dá sen�do à dade precisa mais que direitos e liber-
existência da norma jurídica. Do contrá- dades individuais: a solidariedade diz
rio, ela não seria uma norma legí�ma, e respeito ao fortalecimento dos vínculos
sim arbitrária. Daí a necessidade de que unem concidadãos, grupos, comu-
defender a desobediência civil, que é nidades. Um sindicato ou um Estado de
um “ato polí�co, não violento e cons- bem-estar social são expressões ins�tu-
ciente contra a lei, realizado com o fim cionais da solidariedade entre as pesso-
de provocar uma mudança nas leis ou as.
na polí�ca de governo. Ao agir assim,
quem o pra�ca se dirige ao senso de O primeiro promove a união entre os
jus�ça da maioria da comunidade e trabalhadores, permi�ndo-lhes melho-
declara que em sua opinião ponderada rar sua condição de emprego. O segun-
os princípios da cooperação social entre do simboliza a ideia de que os cidadãos
homens livres e iguais não estão sendo são parte de uma só comunidade e res-
respeitados”. A desobediência civil é ponsáveis uns pelos outros. Os comuni-
jus�ficada se: “i) a injus�ça é substan- taristas retomam a crí�ca que Hegel fez
cial e clara e se cons�tuir em obstáculo a Kant. Enquanto Kant aludia a existên-
para a remoção de outras injus�ças; ii) cia de certas obrigações universais que
se todos recursos normais tenham sido deviam prevalecer sobre aquelas mais
feitos, de boa-fé, à maioria polí�ca e con�ngentes derivadas de nosso per-
tenham sido recusados; iii) se não exis- tencimento a uma comunidade par�cu-
�rem muitos outros grupos minoritá- lar, Hegel inver�a aquela formulação
rios com queixas igualmente semelhan- para outorgar prioridade aos laços
tes válidas, porque desobediência civil comunitários. Na corrida da vida, os
generalizada pode desestruturar o con- comunitaristas visam fornecer oportu-
ceito cons�tucional”. nidades e não resultados iguais. A meta
é eliminar a injus�ça, não a desigualda-
1.2.3 O ideal comunitarista de. Numa pista de corrida, os corredo-
res nas raias mais externas se posicio-
O liberalismo enfa�za a importância da nam mais à frente, para que todos
escolha individual, vendo o Estado tenham chances iguais – mas nem
como uma ins�tuição que deve salva- todos vencerão.
guardar o direito de escolha e manter-
-se neutra com relação ao que cons�tui O comunitarismo é uma corrente teóri-
uma boa escolha. Essa visão é contesta- ca que emerge durante a década de
da pelos filósofos chamados comunita- 1980 e tem por obje�vo resgatar a
ristas. Para o comunitarista, a boa socie- importância da ideia de comunidade
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Contratualismo, Liberalismo e Comunitarismo

(especialmente nas discussões acerca coexistência pacífica entre os indivídu-


dos fundamentos filosóficos da polí�ca os. Já a postura comunitarista, movi-
e da é�ca). Essa movimentação se dá mento polí�co filosófico surgido nos
sobretudo nos Estados Unidos e seus anos de 1980, insere o indivíduo em
principais teóricos são Michael Sandel, uma comunidade polí�ca. Assim, o indi-
Robert Bellah, Michael Walzer, Alasdair víduo tem obrigações é�cas para com a
MacIntyre e Charles Taylor. O comunita- finalidade social e deve viver para a sua
rismo está muito presente nas discus- comunidade, organizada em torno de
sões sobre os diferentes princípios que uma ideia substan�va de bem comum.
regem a jus�ça. Surgindo no contexto Subjacentes a esses princípios comuni-
pós Guerra Fria, ele busca fazer um con- taristas, encontramos é�cas substan-
traponto ao individualismo exacerbado ciais que determinam que uma teoria
presente no pensamento liberal. Entre- moral só pode desenvolver-se a par�r
tanto, de forma alguma o comunitaris- de uma concepção específica do bem,
mo rompe com o liberalismo, sendo ou mesmo, de uma hierarquia de bens.
apenas uma tenta�va crí�ca de restau-
rá-lo a par�r da promoção de interesses Para os liberais, a figura do “eu autôno-
comunitários. mo” é central. Eles priorizam os direitos
individuais. A jus�ça é decidida impar-
O individualismo e o cole�vismo mais cialmente, ou seja, as pessoas são
uma vez estão em choque. A grande tomadas de forma descontextualizadas.
questão con�nua sendo se os seres hu- O justo (ou correto) tem prioridade
manos são independentes uns em rela- sobre o bem e sobre o contexto. O
ção aos outros com caracterís�cas sujeito descomprome�do e atomizado
únicas ou se são seres sociais moldados é uma valorização do indivíduo em rela-
pelo grupo em que estão inseridos. ção à comunidade. Isso conduz a crí�-
Enquanto os liberais se sentem herdei- cas ferozes por parte dos filósofos
ros dos sofistas, dos epicuristas, dos comunitaristas, nas quais se podem
estoicos, de Locke, Hobbes, Stuart Mill encontrar pelo menos três dimensões
e Kant, os comunitaristas têm suas ou perspec�vas de abordagem: antro-
raízes no aristotelismo, em Hegel e na pológica, em que se cri�ca a concepção
tradição republicana da Renascença. A liberal de um sujeito descomprome�do
postura liberal defende que a polí�ca e atomizado; norma�va, ao se ques�o-
não está vinculada com a é�ca. Portan- nar o princípio moral sobre o qual se
to, o Estado, que surgiu a par�r do con- rege a moral polí�ca – valorização da
trato social, é um instrumento que tem liberdade individual; e sociológica,
como obje�vo assegurar a ordem e a porque a sociedade induz os membros
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Contratualismo, Liberalismo e Comunitarismo

de sua comunidade a uma a�tude indi- ralmente. Ao adotar a concepção ato-


vidualista, egocêntrica que tem defeitos mista de pessoa, Rawls acaba dando
desestruturantes sobre a iden�dade prioridade ao justo sobre o bem. Uma
individual e do grupo. O fato de que as teoria da jus�ça não deve priorizar
pessoas razoáveis têm concepções de direitos abstratos (como fez Kant e os
bem e de vida boa divergentes faz com liberais), mas valorizar concepções
que os interesses, as vontades e os valo- substanciais do bem comum. O conteú-
res entrem em conflito em esferas da do dos direitos fundamentais somente
vida em sociedade. Por isso, é necessá- é compreendido se for contextualizado
rio regras e princípios gerais para evitar a par�r de sua contribuição para os
choques inevitáveis de concepções membros de uma comunidade.
divergentes de bem. Como é possível
uma sociedade justa e estável diante de Sandel argumenta que a concepção de
tantas divergências, muitas delas irre- pessoa defendido por Rawls é vazia,
conciliáveis? que ela fere nossa autopercepção,
ignora nossa incorporação em prá�cas
Rawls, ao apresentar sua concepção comunitárias, desconsidera nossa
acerca da “posição original”, tendo necessidade de recebermos o reconhe-
como base o contratualismo, foi pronta- cimento social de nossas iden�dades
mente cri�cado pelos comunitaristas individuais. Em contraposição a isso,
como atomista, pois os princípios que afirma que a iden�dade de cada pessoa
surgem a par�r do “véu de ignorância” deveria ser entendida a par�r da sua
são individualistas e abstratos. Há duas inclusão na práxis cultural de uma
grandes divergências apontadas pelo comunidade, no horizonte significa�vo
comunitarista Sandel em relação à de valores, tradições e formas de vida
teoria liberal de Rawls: 1) a concepção culturais. Portanto, a iden�dade da
atomista de pessoa moral (a crí�ca do pessoa não é anterior aos seus fins,
“eu desvinculado”); 2) a prioridade da como teria afirmado Ralws, mas forma-
jus�ça (ou dos direitos) diante do bem -se na socialização com os outros e no
comum. vínculo com uma concepção de vida
boa.
A ideia de pessoa moral e de procedi-
mento neutro de jus�ficação centrais Nesse sen�do, a norma�vidade das
na teoria de Rawls empobrece a vida sociedades modernas não poderia
social. Por isso, não é possível compre- par�r de um conceito inverossímil de
ender a formação da iden�dade pesso- pessoa desincorporada e neutra e�ca-
al e o modo como as pessoas agem mo- mente. Pelo contrário, teria de par�r de
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que já estão situadas radicalmente. Isto seja uma pessoa, ela extrai sua auto-
é, de pessoas que se autocompreen- compreensão de si mesma a par�r do-
dem como pessoas situadas no horizon- contexto cultural de orientações valora-
te de configurações de valores específi- �vas compar�lhadas intersubje�va-
cos e que julgam e agem no interior mente. Seria impossível conceber o self
dessas configurações. Dado que a confi- como um ser solipsista, pré-social.
guração de valores é somente adquirida Taylor (assim como Alasdair MacIntyre,
intersubje�vamente nos processos de Michael Walzer e Michael Sandel) está
socialização cultural e integração social associado a uma crí�ca comunitária ao
mediados comunica�vamente, o pres- entendimento liberal sobre o eu, ou o
suposto subjacente de sujeitos inde- “self”. Os comunitaristas enfa�zam a
pendentes que estão isolados uns dos importância das ins�tuições sociais no
outros seria insustentável em termos desenvolvimento do significado indivi-
teóricos. Por mais individualizada que dual e da iden�dade.

Bibliografia completa do Minicurso

1. A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn


2. Dialética para Principiantes, de Carlos Cirne Lima
3. A República, de Platão
4. Conjecturas e Refutações, de Karl Popper
5. Discurso do Método, de Descartes
6. Curso de Filosofia Positiva, de Comte
7. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant
8. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
9. Uma introdução aos Princípios da Moral e da Legislação, de Bentham
10. Sobre a Liberdade, de Stuart Mill
11. Uma Teoria da Justiça, de Rawls
12. Leviatã, de Hobbes
13. O Príncipe, de Maquiavel
14. Segundo Tratado sobre o Governo, de Locke
15. Anarquia, Estado e Utopia, de Nozick

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