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INGOLD, Tim.

Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e


descrição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

Parte I – Limpando o terreno

 Antropologia não é considerada uma ciência experimental porque


situações e formas de vida observadas e descritas por antropólogos não
são, à princípio, criadas pontualmente para tal finalidade (p. 43)
Contudo, participam das situações que observam, o que é tomado,
comumente, como fonte potencial de problemas, em razão do envolvimento
poder se desdobrar em etnocentrismo (p. 43)
Ingold afirma, no entanto, a dimensão experimental da prática
antropológica, uma vez que transcorre por meio do envolvimento prático,
tendo-se como guia o trabalho dos mais experientes: “[...] Não é, pois, a
experimentação tão fundamental para a investigação antropológica quanto o é
para as formas de vida que ela busca entender?” (p. 43)

 Os experimentos antropológicos situam o pesquisador no fluxo das coisas:


“[...] A experimentação na vida cotidiana, por outro lado, é uma questão
não de testar conjecturas em arenas de prática, mas de se inscrever na
atividade prática no processo mesmo de seguir uma linha de pensamento.
É pensar no aberto, do lado de fora. Isso, também, é o que a antropologia
faz. [...]” (p. 44)
Justamente por ser uma forma de ciência que não se adequa às regras
instituídas para esse campo, antropólogos hesitam em assumir esse caráter
experimental, que consiste em se juntar aos interlocutores “em uma busca de
respostas para questões fundamentais da vida”, reduzindo sua atividade à
coleta de dados para posterior análise (p. 44)

 Ingold propõe 3 experimentos nesta parte do livro, cada qual


correspondente a um capítulo: 1) molhar uma pedra; 2) andar descalço; 3)
ver através de uma prancha de madeira (p. 44)
1) Direciona a atenção da pedra como objeto material para o que acontece
com ela, “[...] no curso de uma troca de substância em toda a sua
superfície com o meio envolvente de ar. [...]” (p. 44)
2) Desperta a atenção para a composição heterogênea do chão, “[...] não tanto
uma plataforma isotrópica para a vida quanto um pano grosso ou de
retalhos tecido a partir das idas e vindas de seus múltiplos habitantes. [...]”
(p. 44)
3) “O terceiro experimento nos mostra como a habilidade prática, reunindo as
resistências de materiais, gestos corporais e dos fluxos da experiência
sensorial, ritmicamente acopla ação e percepção ao longo de caminhos de
movimento. [...]” (p. 44)

 Apresentação dos capítulos que compõe a Parte I


- Capítulo 2: irá se contrapor ao conceito abstrato de materialidade dos
objetos, cotejando uma adequada abordagem dos materiais e suas
propriedades:
“[...] Aprenderíamos mais envolvendo-nos diretamente com os próprios
materiais, seguindo o que acontece com eles quando circulam, misturam-
se uns aos outros, solidificam-se e se dissolvem na formação de coisas mais
ou menos duráveis. Descobrimos, então, que os materiais são ativos. Apenas
colocando-os dentro de objetos fechados eles são reduzidos à matéria morta
ou inerte. É essa tentativa de encerramento que deu origem ao chamado
“problema da agência”. [...]” (p. 45)
Para Ingold, o ideia de agência é como se fosse um atributo
adicionado aos objetos para explicar o seu poder de ação. Nesse sentido,
agência “[...] É a suposta causa que movimenta a matéria de outra forma inerte.
Mas se seguirmos os materiais vivos, ao invés de reduzi-los à matéria morta,
então não teremos que invocar uma “agência” estranha para animá-los de
novo. [...]” (p. 45)

Capítulo 3: aborda os fluxos de pessoas, para interpelar a ideia de que a


cognição humana é produzida por “[...] uma mente estacionária, encerrada em
um corpo em movimento. [...]”, a qual é produto do uso de calçados,
pavimentação de estradas (p. 45) e deslocamentos por meio de transportes (p.
46)
= três aspectos que forjaram a ideia de que “[...] o deslocamento é um
movimento mecânico do corpo humano através da superfície da terra, de um
ponto a outro, e que o conhecimento é montado a partir de observações feitas
a partir destes pontos. [...]” (p. 46)
Ingold defende que o conhecimento é construído no ato em si de
movimentar-se, “[...] não no processamento de dados coletados de múltiplos
lugares de observação [...]” = “[...] Locomoção e cognição são, portanto,
inseparáveis, e uma explicação da mente deve estar tão preocupada com o
trabalho dos pés quanto aquele da cabeça e das mãos.” (p. 46)

Capítulo 4: propõe uma “compreensão adequada da habilidade técnica”, a


partir da articulação processual entre profissional, ferramentas e materiais e “ao
acoplamento de percepção e ação.” (p. 46)
A habilidade técnica supõe uma intensa concentração, que extrapola
uma consciência confinada em uma mente autocontida no cérebro, “[...] mas se
estende para o meio ambiente ao longo de múltiplas vias de participação
sensorial. [...]” (p. 47)

Capítulo 2 – Materiais contra materialidade


 Ingold inicia já tecendo uma crítica à obras da área de antropologia e
arqueologia que tratam a materialidade sem, no entanto, abordar os
materiais e suas propriedades = artefatos como uma materialização de
ideações prévias (p. 50)
Descrição etnográfica, mesmo engajada nas práticas cotidianas, aborda
apenas os aspectos externos aos materiais = “[...] Não poderia tal engajamento
– trabalhar praticamente com materiais – também oferecer à antropologia um
procedimento mais poderoso de descoberta do que uma abordagem
empenhada na análise abstrata das coisas já feitas? [...]” (p. 51)
 Reação, nas últimas décadas, “[...] contra a excessiva polarização da mente
e da matéria que levou gerações de teóricos a supor que a substância
material do mundo se apresenta à humanidade como uma lousa em branco,
uma tábula rasa para a inscrição de formas ideacionais. [...]” (p. 51)
Colin Renfrew: representações, julgamentos e princípios de pensamento
não são inseridos na atividade prática (de fora para dentro), mas antes
emergem dentro delas, por ocasião da interação dos seres humanos com
substâncias materiais = engajamento colocaria mentes imateriais em contato
com um mundo material (p. 52)
 Ingold se questiona sobre o que seria esse mundo material, então?
Christopher Gosden: teria dois componentes, paisagens e artefatos =
mente humana x mundo material = Ingold: definição deixa de fora uma série de
elementos importantes, como luz, ar, céu, etc. (p. 52)
Além disso, é possível uma definição segura de artefato? = objetos
ocupam uma “escala de artificialidade”, a partir das diferentes intensidades de
interação com humanos (p. 53)
= é pertinente dividir o mundo material apenas em paisagem e artefatos?
Onde se encaixariam outros elementos que compõe o mundo da vida animal,
vegetal, etc.? (p. 53

 Alternativa apresentada por James Gibson para definir o mundo material:


teria 3 componentes: meio, substâncias e superfícies (p. 53)
O meio para os humanos geralmente é o ar, e proporciona movimento e
percepção
Substâncias seriam coisas mais ou menos sólidas, resistentes ao
movimento e percepção, materiais que “[...] fornecem os fundamentos físicos
necessários para a vida [...]” (p. 53)
Superfícies seriam a interface entre meio e substância = possuiriam
“[...] um grau de resistência à deformação e à desintegração, uma forma
distintiva e uma textura caracteristicamente não homogênea. [...]” (p. 54)
 Ingold: “É muito fácil, no entanto, resvalar da separação física entre o meio
gasoso e a substância sólida para a separação metafísica entre a mente e a
matéria. [...]” (p. 54)
“[...] De fato a própria noção de cultura material, que ganhou um novo
impulso na sequência da sua longa hibernação nos porões da museologia,
baseia-se na premissa de que, como as encarnações de representações
mentais, ou como elementos estáveis em sistemas de significação, os
objetos já se solidificaram ou se precipitaram dos fluxos geradores do meio
que lhes deu a luz. [...]” (p. 54) [ou seja, Ingold critica aqui o conceito de cultura
material]
 Ingold novamente retoma a problemática de como estabelecer uma fronteira
segura entre os objetos e seu meio?! (p. 55)
À partir das diferentes formas de habitar (casa construída na superfície x
casas entalhadas em rochas ou cavernas), faz uma crítica à dicotomia interior x
exterior, afirmando que o que existem são superfícies dos mais diversos tipos e
graus de estabilidade e permeabilidade, que são interfaces entre um material e
outro, e não entre o material e o imaterial (p. 56)
 “[...] Como todas as outras criaturas os seres humanos não existem no
“outro lado” da materialidade, mas nadam em um oceano de materiais.
Uma vez que reconheçamos nossa imersão, o que este oceano revela para
nós não é a homogeneidade branda de diferentes tons de matéria, mas um
fluxo no qual materiais dos mais diversos tipos, através de processos
de mistura e destilação, de coagulação e dispersão, e de evaporação e
precipitação, sofrem contínua geração e transformação. As formas das
coisas, longe de terem sido impostas desde fora sobre um substrato inerte,
surgem e são suportadas – como, aliás, também o somos – dentro desta
corrente de materiais. Com a própria Terra, a superfície de todo sólido é
apenas uma crosta, o mais ou menos efêmero congelamento de um
movimento generativo.” (p. 57)

 Imersos em um oceano de materiais, tanto humanos como criaturas não


humanas incidem sobre sua transformação, sendo que geralmente os
humanos prosseguem de onde os não humanos param (p. 57)
Tanto animais como plantas “[...] fornecem uma fonte inesgotável de
material para posterior processamento e transformação. [...]” (p. 58)
“Muitos materiais comumente utilizados são obtidos a partir da
combinação improvável de ingredientes de uma variedade surpreendente
de fontes. [...]” (p. 58)

 O foco na materialidade dos objetos impede “[...] seguir as múltiplas trilhas


de crescimento e transformação [...]”, inerentes aos processos criativos,
simplificando tudo a “[...] um substrato generalizado sobre o qual diz-se que
as formas de todas as coisas são impostas ou inscritas. [...]” = mudar o foco
para as propriedades dos materiais, sendo necessário que estes sejam
abordados não “[...] como símbolos de alguma essência comum –
materialidade – que dota cada entidade mundana com a sua inerente
“objetividade”, ao contrário, eles participam dos processos mesmos de
geração e regeneração contínua do mundo, do qual coisas como
manuscritos ou fachadas são subprodutos impermanentes. [...]” (p. 59)
 Estudos de cultura material tem enfatizado mais o consumo que a
produção, focando um mundo de objetos já consolidados, e não nos
materiais que os constituem = “[...] Na realidade, é claro, os materiais estão
ainda lá e continuam a misturar-se a reagir como já o fizeram, sempre
ameaçando as coisas que eles assimilam com a dissolução ou mesmo a
“desmaterialização”. [...]” (p. 60)
 Exemplo do escultor David Nash, que faz coisas a partir de troncos vivos,
ainda enraizados... (p. 61)
Remete à uma concepção de materiais não como algo inanimado, mas
sim como “[...] os componentes ativos de um mundo-em-formação. Onde
quer que a vida esteja acontecendo, eles estão incansavelmente em
movimento – fluindo, se deteriorando, se misturando e transformando. A
existência de todos os organismos vivos é apanhada neste incessante
intercâmbio respiratório e metabólico entre suas substâncias corporais e os
fluxos do meio. Sem isso eles não poderiam sobreviver. Isso obviamente
aplica-se a nós, seres humanos, tanto quanto a organismos de outros tipos.
Juntamente com todos os vertebrados terrestres, precisamos ser capazes de
respirar.” (p. 61-62)
 Teóricos da cultura material, no entanto, abordam os objetos a partir da
sua solidez, não do fluxo dos materiais, daí só conseguirem trazê-los à
vida a partir do conceito de agência para designar a capacidade de agir
tanto de pessoas como de coisas, umas sobre as outras (p. 62)
Ingold refere Peter Pels para afirmar que se trata aqui de uma lógica
animista, pois “[...] este princípio animador é entendido aqui como adicional ao
objeto material ao qual foi concedido.” (p. 62)
Ainda de acordo com Pels, uma alternativa a esse animismo seria o
fetichismo: “[...] Isso quer dizer que o espírito que as anima não está na, é de
matéria. Nós, portanto, não olhamos para além da constituição material dos
objetos a fim de descobrir o que os constitui; ao contrário, o poder da agência
encontra-se com a sua materialidade mesma. [...]” (p. 62)
Ingold: proposta de Pels permanece presa à dicotomia mental x material
 Conceito convencional de animismo supõe vida nas coisas, tomadas
como objetos inertes, e não que as coisas estão na vida, tal como é a
proposta de Ingold: “Trazer coisas à vida, portanto, não é uma questão de
acrescentar a elas uma pitada de agência, mas de restaurá-las aos fluxos
geradores do mundo de materiais no qual elas vieram à existência e
continuam a subsistir. [...]” (p. 63)
 Em cosmologias que a literatura antropológica trata comumente como
animistas, não existem objetos inanimados:
“[...] As coisas estão vivas e ativas, não porque estão possuídas de
espírito – seja na ou da matéria – mas porque as substâncias de que são
compostas continuam a ser varridas em circulações dos meios circundantes
que alternadamente anunciam a sua dissolução ou – caracteristicamente como
seres animados – garantem a sua regeneração. O espírito é o poder de
regeneração desses fluxos circulatórios que, em organismos vivos, estão
ligados em feixes ou tramas firmemente tecidos de extraordinária
complexidade. Todos os organismo são feixes desse tipo. [...]” = inclusive os
seres humanos! (p. 63)

 Refere David Pye, designer que irá examinar a ideia de que cada material
possui propriedades inerentes, que podem ser exprimidas ou suprimidas no
seu uso (p. 63-64)
Como ser fiel a um material se este possui propriedades que variam de
acordo com seu manuseio? = Pye: o que o artista explora e expressa não
são propriamente as propriedades dos materiais, sim suas qualidades, as
quais são subjetivas (p. 64)
 Diferença entre o projeto de um engenheiro e a prática de um artífice
(pedreiro, carpinteiro, etc.): conhecimento deste “[...] vem da experiência de
uma vida de trabalho com o material. Esse é um conhecimento nascido da
percepção sensorial e do engajamento prático, não com uma preocupação
com o mundo material [...] mas da participação de um profissional
qualificado de um mundo de materiais.” (p. 65)
 Pye: propriedade x qualidade = retoma a dicotomia mente x matéria. Por
isso, Ingold retoma Gibson na definição que faz dos componentes do
ambiente: substâncias, meios e superfícies entre eles (p. 65)
No interior de um ambiente, os materiais não existem, mas sim,
ocorrem: “[...] Portanto, as propriedades dos materiais consideradas como
constituintes de um ambiente, não podem ser identificadas como atributos
essenciais fixos de coisas, mas são, ao contrário, processuais e relacionais.
Elas não são nem objetivamente determinadas nem subjetivamente
imaginadas, mas praticamente experimentadas. Nesse sentido, toda
propriedade é uma estória condensada. Descrever as propriedades dos
materiais é contar as histórias do que acontece com eles enquanto fluem,
se misturam e se modificam.” (p. 65)
 Retoma novamente Christopher Tilley e o arqueólogo Joshua Pollard para
apresentar os limites do conceito de materialidade, uma vez que este
contrapõe materialidade bruta x agência humana (p. 66-67)
Ingold opta pela expressão “mundo de materiais” ao invés de
“mundo material” justamente para escapar dessa oscilação, de forma tanto a
recolocar as pessoas no continuum da vida orgânica, como de reconhecer
que esta sofre contínuas transformações (p. 67)
“[...] Mas no mundo dos materiais, os humanos figuram tanto no
contexto das pedras quanto as pedras no contexto dos humanos. E esses
contextos, longe de mentirem sobre os níveis díspares de existência,
respectivamente social e natural, são estabelecidos como regiões
sobrepostas do mesmo mundo. [...]” (p. 67)

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