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Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. Marcado pelos
processos constituintes da Bolívia (2006-2009) e do Equador (2008), sua principal
característica é a proposta de “refundação do Estado”, com reconhecimento explícito das
raízes milenares dos povos que, por consequência, possibilitou a emergência da figura do
Estado Plurinacional. Nesse ciclo, observa-se o reconhecimento de novos direitos sociais que
incorporam a visão indígena, como o direito ao bem-viver. Para Fajardo (2010), “tales
reformas constitucionales expresan antiguas y nuevas demandas indígenas pero también la
resistencia de antiguos y nuevos colonialismos”. (Grifo nosso).
Trata-se, portanto, de um fenômeno que apresenta diferenças visíveis se observado
desde a perspectiva dos ciclos identificados por Fajardo, especialmente considerando-se que
apenas as Constituições do último ciclo (Equador e Bolívia) representaram, de fato, um giro
paradigmático em relação às experiências constitucionais anteriores, como o
constitucionalismo liberal, o social e, até mesmo, o neoconstitucionalismo do segundo pós-
guerra. No entanto, o que importa aqui é sublinhar seus traços comuns, ainda que se reconheça
que, entre as diversas experiências latino-americanas, algumas são mais avançadas que outras.
Como observa Brandão,
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Para Dussel, o pensamento originário da Filosofia da Libertação foi fortemente influenciado pelos eventos de 1968 e,
também, pela Escola de Frankfurt. (2007, p. 340). A Filosofia da Libertação nunca foi uma simples forma de pensamento
latino-americano, mas representou uma filosofia crítica inserida na periferia, no pensamento dos grupos subalternos.
Mediante obras como a de Fanon, a filosofia posicionou-se em relação às lutas por libertação nos anos 60. Nesse processo,
teoria e prática estavam intimamente articuladas.
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estruturalismo teórico de Foucault e Deleuze2 (SPIVAK, 2010a), especialmente na obra Can the
subaltern speak?, na qual realiza uma importante autocrítica sobre o papel dos intelectuais
pós-colonialistas, pois vinculada ao Grupo de Estudos Subalternos. O questionamento-título
da obra indica a potencialidade das discussões e dos questionamentos gerados pelo texto, no
qual a autora problematiza os perigos da “ontologização” da categoria subalterno, de matriz
gramisciana. A autora também realiza uma importante crítica às bases da teoria antropológica,
que produziu uma forma etnocêntrica de ciência e de apreensão do conhecimento
“excêntrico”. Em Critique of Postcolonial Reason, a partir da categoria de “informante
nativo” (SPIVAK, 2010b), destaca-se o processo não somente de “invisibilização”, mas também
de silenciamento proporcionado pela tradição euroteleológica, na medida em que se negou a
esses sujeitos a possibilidade de traçar por si mesmos sua autobiografia. Conforme a autora, a
tradição antropológica etnocêntrica produziu “autobiografias” mediadas por um investigador
de campo, dominante, que se utilizou desses relatos como provas objetivas para a antropologia
e para a etnolinguística.
Bhabha (2001), em seu texto O local da cultura, propõe a importante denominação de
“espaços in between”, espaços nos quais se articulam as diferenças culturais. Ao entender a
identidade como uma intervenção necessária para construir os lugares de pertencimento das
pessoas, o autor compreende que a ação humana é capaz de construir espaços nos quais – a
partir da comunicação e do intercâmbio cultural – novos signos, novas formas de colaboração
e questionamento possam surgir. Estar-se-ia diante de espaços nos quais as diferenças,
“anteriormente produto de incompreensões e interesses de poder, são solapadas, se transferem,
se ‘desterritorializam’, em definitivo, se desdogmatizam, com o objetivo de poder negociar as
‘diferentes’ experiencias intersubjetivas desde as quais vemos e construimos as realidades nas
quais estamos inseridos”. (HERRERA FLORES, 2005a, p. 262).
Segundo Castro-Gomez e Mendieta (1998), as teorias pós-coloniais encontram-se
articuladas com a crítica radical da metafísica ocidental, especialmente a partir de Nietzsche,
Heidegger, Freud, Lacan, Vattimo, Foucault, Deleuze e Derrida. A vontade irrestrita de poder,
por meio da valorização e exaltação de uma racionalidade meio-fim moderna, portanto, é
também alvo das críticas pós-coloniais, conectadas a esse legado crítico do pensamento
ocidental. No entanto, o pós-colonialismo avança, ao enfrentar os vínculos entre a metafísica
ocidental e o projeto europeu de colonização, aspecto não tematizado pelos autores europeus.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o pensamento pós-colonial reflete acerca das limitações de
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A crítica norteia-se, principalmente, pela vinculação do estruturalismo e pós-estruturalismo com o conceito de “luta dos
trabalhadores”. Na análise da autora, o anseio de desconstruir os mecanismos de poder em qualquer espaço de exercício e
aplicação gerou a reprodução e o reestabelecimento do sujeito legal do capital socializado, porque ignorou a importante
contribuição marxiana acerca dos processos de divisão internacional do trabalho. (SPIVAK, 2010a, p. 23-24). A tentativa de
caracterizar a experiência concreta do oprimido, especialmente em Deleuze, Derrida e Foucault, acaba por consolidar a
divisão internacional do trabalho, na medida em que exclui da perspectiva teórica a necessidade de uma contribuição
ideológica anti-hegemônica. Assim, “por meio de um deslize verbal” (p. 30), acabam por constituir uma posição apolítica e
acrítica quanto à função histórica do intelectual. Essa perspectiva, nas palavras da autora: “Acabou por auxiliar o empirismo
positivista – o princípio justificável de um neocolonialismo capitalista avançado – a definir sua própria arena como a da
‘experiencia concreta’, ‘o que realmente acontece’. De fato, a experiência concreta que agarante o apelo político de
prisioneiros soldados e estudantes é revelada por meio a experiência concreto do intelectual, aquele que diagnostica a
episteme.” (SPIVAK, 2010a, p. 30).
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Estudo pormenorizado acerca da genealogia do Grupo e das divergências políticas e epistemológicas, que ensejaram sua
articulação, pode ser encontrado em Ballestrin (2013). Seus principais membros são o filósofo argentino/mexicano Enrique
Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano e, mais recentemente, o semiótico e teórico cultural argentino/estadounidense
Walter Mignolo. No entanto, já um número crescente de estudiosos associados ao grupo, tais como Edgardo Lander na
Venezuela; Santiago Castro-Gómez, Oscar Guardiola y Eduardo Restrepo na Colômbia; Catherine Walsh no Quito; Zulma
Palermo na Argentina; Jorge Sanjinés na Bolívia; Freya Schiwy, Fernando Coronil, Ramón Grosfogel, Jorge Saldivar, Ana
Margarita Cervantes-Rodríguez, Agustín Lao Montes, Nelson Maldonado-Torres e Arturo Escobar, nos Estados Unidos.
(ESCOBAR, 2003).
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Essa forma de pensar gerou, em diversas outras investigações cunhadas por Dussel e
demais autores do projeto, uma identificação da dominação dos outros povos fora da Europa,
como uma dimensão necessária da modernidade, com a consequente subalternização do
conhecimento e da cultura desses outros grupos. Nesse caminho, a própria concepção de
eurocentrismo pode representar como as formas, os padrões e as medidas do conhecimento
moderno foram concebidos, de acordo com uma condição de universalidade que se confunde
com a hegemonia econômica e política da Europa. (QUIIJANO, 2000, p. 549).
A crítica ao processo etnocêntrico de formação de um pensamento homogêneo e global,
imposto enquanto ferramenta epistemológica para a consolidação de projetos políticos e
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Conjunto de processos e formações sociais que abrangem colonialismo moderno e modernidades coloniais. A história do
sistema-mundo moderno compreende, em grande parte, a história da expansão dos povos e dos Estados europeus pelo resto
do mundo. Segundo Wallerstein (2007), há uma retórica básica que subjaz a este sistema-mundo, pelo menos desde o século
XVI. Esta retórica é composta pelos conceitos de democracia e direitos humanos, de superioridade da civilização ocidental,
porque baseada em valores universais, e da inexorabilidade da submissão às regras do mercado. O autor observa que o que se
usa, hoje, como critério, não é o universalismo global, mas o universalismo europeu, que consiste em um conjunto de
doutrinas e pontos de vista éticos, que derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais.
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Referências
ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN Helen. Key concepts in post-colonial studies. 2nd ed. London:
Routledge, 2007.
BHABHA, Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.
BRANDÃO, Pedro Augusto Domingues Miranda. O novo constitucionalismo pluralista latino-americano:
participação popular e cosmovisões indígenas (pachamama e sumak kawsay). 2013. Dissertação (Mestrado em
Direito) – Faculdade de Direito do Recife/Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2013.
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