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Antropologia Cultural

I – INTRODUÇÃO
Esta apostila destina-se aos alunos da FAETEL - Faculdade de Educação Teológica Logos , dos
cursos Seriado e Especial, e apresenta uma visão sintética da Antropologia Cultural.

II - ANTROPOLOGIA CULTURAL
Antropologia é a soma de Antropo + logia. Antropo = o homem; Logia = estudo. Portanto,
significa:“Estudo do Homem”. Antropologia Cultural é o ramo da Antropologia que trata das características
culturais do homem, dos costumes, das crenças, do comportamento e da organização social e relaciona-se,
portanto, com várias ciências. Ela é, etimologicamente, ciência do homem; ciência que estuda os homens.
Esta ciência registra-se em Gênesis 2.7: “E formou Deus o homem do pó da terra” ; e em Mateus 19.4:
“Aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez”.
Examinando mais de perto o conceito de cultura, verifica-se que:
1) Sendo um modo de vida, pode ser generalizado, ampliado a toda a humanidade num certo período, ou
reduzido a sociedades similares, com maior ou menor grau de interação;
2) Restrito a um só grupo humano, representa a totalidade dos padrões de comportamento, aprendidos e
integrados, peculiares àquele grupo e não derivados da hereditariedade biológica.
Não sendo geneticamente predeterminada, forçosamente é aprendida, seja nos primeiros anos da
vida através do processo de socialização, seja pelo mecanismo da educação, e se estrutura em padrões
(pattenrs, no sentido de modos específicos de comportamento de uma cultura dada) ideais, que são as
formas de procedimento individual exigidas ou esperadas por um grupo em cada circunstância (lealdade à
pátria, respeito aos pais, polidez com as senhoras, etc.). Esses padrões ideais são integrados entre si num
sistema interdependente por meio de categorias abstratas, explícitas ou implícitas, diversamente
denominadas de impulsos (drives, Benedict), temas (Opler), configurações ou postulados. Por sua vez esses
temas, raramente verbalizados, operando freqüentemente no nível do subconsciente, conduzem a
manifestações culturais ostensivas ou encobertas, o que traz vantagens e inconvenientes: se de uma lado
libertam o ser humano de pensar conscientemente em seu comportamento normal, por outro lado esse
arraigamento aos padrões de sua cultura dificulta-lhe a adaptação ao que é novo e estranho em outras
culturas.
A cultura é superorgânica, pois, como as instituições sociais, preexiste a cada indivíduo e subsiste
após a morte. Assim, cada indivíduo, ao nascer e se desenvolver, é permeado, amoldado, condicionado ou
influenciado por seus padrões característicos.
A divisão tradicional da Antropologia Cultural:
1) Lingüística
2) Etnologia
3) Arqueologia
Nota: A Etnologia, que compreende nada menos de três importantes ramos, decorre do fato de ser a
cultura um complexo de formas de comportamento:
a) É acumulada por muitos ao longo de numerosas gerações, variando no tempo, contínua, embora
paulatinamente;
b) Transmite-se graças à capacidade humana de simbolizar, enraizada na linguagem articulada e

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c) Varia de grupo para grupo humano, embora se destine a resolver os mesmos problemas
fundamentais.

1. LINGÜÍSTICA
Estuda e analisa cientificamente a linguagem articulada. Forma de comunicação por excelência entre
os indivíduos, a linguagem, por ser simbólica, está na base da cultura; daí sua importância para a
Antropologia Cultural.
Língua “é um sistema de símbolos vocais arbitrários por meio dos quais os membros de um grupo
social cooperam e interagem” (Sturtevant). O antropólogo aprende e estuda a língua do grupo que pesquisa
no campo, organizando dicionários, gramáticas, registrando-lhe os sons, transcrevendo-os num alfabeto
fonético com símbolos especiais internacionalmente aceitos, etc. Não se limita, como o filólogo ou o poliglota,
a estudar ou a falar um certo número de línguas, geralmente civilizadas, de povos que possuam a escrita e
tradições literárias, mas enfrenta os árduos problemas das línguas faladas por grupos humanos que
desconhecem a escrita, não civilizados, como os de tribos indígenas em qualquer parte do mundo. Por
exemplo: os bororós, do Brasil; os boximanes, da África; os arundas, da Austrália; ou os Kwakiutl, do Canadá
Ocidental.
A linguagem falada é universal, sendo encontrada plenamente evoluída em sua matizada
complexidade, em todos os grupos humanos, mesmo os mais atrasados. Esse alto grau de desenvolvimento
e diferenciação mostra que ela é extremamente antiga. A linguagem de um grupo é transmitida às crianças na
infância, as quais a aprendem, em geral, até cinco anos e meio de idade. Relativamente autônoma dentro da
cultura correspondente, é convencional, sendo arbitrárias as relações de suas palavras com a experiência:
cão em português é hund em alemão; dog em inglês; was em kwakiult; dió-ró-ça em carajá, etc. Sabe-se hoje
que cada língua possui uma estrutura característica, seja de sons (fonemas) distintivos cuja variação altera o
significado (faz, jaz, paz só diferem pelo fonema inicial), seja no modo pelo qual se combinam, em palavras e
frases, os morfemas, que são os menores elementos significativos de uma língua (mel, morfema livre, que
tem significado próprio, e as desinências + aço, + ado, + ão, + ar, morfemas livres ou ligados, que o
modificam dando melaço, melado, melão, melar). As escrituras lingüisticas, rígidas em dado momento,
evoluem lentamente, modificando-se; basta ver a diferença gramatical entre a fala brasileira e o português
falado em Portugal, e a que se observa entre este e o latim medieval.
As línguas foram estimadas em 2.796 (Pei), sem incluir as variações locais, ou dialetos, mas hoje só
13 idiomas são falados por mais de 50 milhões de pessoas cada uma. Há línguas faladas apenas por grupos
de algumas pessoas. Estudando-as, a lingüistica procura classificá-las em famílias (por exemplo, a indo-
européia, compreendendo as línguas neo-latinas [inclusive o português], germânicas, balto-eslávicas,
célticas, indo-iranianas, o grego, o armênio e o albanês, todas vivas, e entre as extintas o hitita, o tocariano, o
itálico, o godo e outros).
A lexicoestatística, ou grotocronologia (Swadesh e Lees), procura determinar, através de técnicas
especiais, o tempo que medeia entre a separação de duas línguas de origem comum; a psicolingüística
pesquisa a influência da língua sobre a mundivisão, ou a concepção do mundo tida pelo indivíduo. Como não
é viável traduzir exatamente uma língua para outra, é possível que a língua utilizada condicione a
mentalidade. Whorf mostrou como a língua hopi, de certos índios norte-americanos, facilita a estes, melhor
que o inglês, conceber idéias de física moderna, relativista.

2. ETNOLOGIA
Estuda o comportamento dos povos da Terra; é um dos campos mais importantes de toda a
Antropologia. Divide-se comumente em etnografia, etnologia propriamente dita e antropologia social.
A ETNOGRAFIA é a coletora dos dados básicos, descrevendo e estudando, com todos os detalhes, a
cultura dos vários grupos sociais existentes no planeta, sempre que possível, de maneira completa, sob seus
múltiplos aspectos, em monografias, com dados obtidos diretamente em trabalhos de campo, quando o

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antropólogo vive durante certo tempo em contato com o grupo que está estudando, aprendendo a língua e
observando minuciosamente seus costumes.

A observação e a descrição compreendem todas as manifestações da cultura: materiais, sociais ou


não materiais. Assim, quanto à cultura dita material, serão examinados os instrumentos e ferramentas
fabricados e utilizados, quanto ao material (pedra, metal, barro, etc.), ao tipo, forma e função, às técnicas de
fabricação e ao uso; e do mesmo modo os utensílios (recipientes, inclusive potes, cestos, etc.), a
indumentária e os artigos de adorno, a habitação e o abrigo, a forma de agrupamento em aldeias, os modos
de acender e conservar o fogo, os transportes usados, todos esses aspectos na totalidade de suas técnicas
diversificadas.
No que respeita a componente social de cultura do grupo, examina o antropólogo a sua organização
econômica, incluindo a divisão do trabalho por idade e sexo - a quem incumbe fazer o que e quando - os
sistemas de produção, troca, distribuição e consumo dos bens; os conceitos relativos à propriedade dos
mesmos, etc.; a organização social; quais os usos e costumes pertinentes ao ciclo da vida individual, como as
cerimônias apropriadas ao nascimento, puberdade, casamento e morte - precisamente as crises na vida do
indivíduo - e os ritos que lhes são peculiares à idade e ao sexo; a constituição do grupo familiar; os sistemas
de parentesco, por vezes muito complexos (na civilização ocidental, o homem conta sua linhagem
duplamente, pelo lado paterno e pelo materno, herdando e sucedendo em ambas as linhas; muitos grupos
são, ao contrário, unilineares, contando parentesco, herdando ou sucedendo somente por um dos lados - o
paterno - patrilineares, como entre os xerentes e provavelmente os tupinambás - ou o materno - matrilineares,
como entre os canelas e os apinajés); as extensões da família, relacionadas com as formas de casamento -
poliginia, de um homem com várias mulheres, ou poliandria, de uma só mulher com vários homens - ou com o
lugar de residência, conforme o novo casal vá morar com os parentes do marido - patrilocal - ou da mulher -
matrilocal - a formação de outros grupos, como os clãs, cujos membros presumem descender unilinearmente
de um antepassado comum, mítico muitas vezes, ou as metades em que se divide comumente uma tribo,
unidades sociais também exógamas, à maneira dos clãs; as normas que regem a proibição, permissibilidade
ou preferência nos casamentos (regras de incesto, por exemplo); as associações voluntárias ou de interesse,
inclusive as sociedades secretas tribais; os princípios de estratificação social ou hierarquia etc., a organização
política (como o grupo é governado, problemas de guerra e paz, formação de ligas ou alianças com outras
tribos, etc.) e o controle social (sistemas educacionais; processos de socialização - cuja definição é “conjunto
de fatores, influências e processos, formalizados ou implícitos, que a cultura do grupo, através dos pais,
adultos mais idosos ou outras crianças, faz agir sobre o nenato e continua a inculcar ao longo da maturação
até a adolescência, a fim de moldar gradualmente a matéria-prima da natureza humana numa conformidade
aos padrões de pensamento, sentimento e comportamento do grupo” [Ernest e Pearl Beaglehole; Slotkin] -
destinados, pois, a transmitir às novas gerações a cultura do grupo e o seu sistema de valores, integrando-as
nele - normas tradicionais de direito e de moral; atitude perante o criminoso, etc.).
Quanto ao aspecto não-material da cultura, estudam-se nos vários grupos a arte, a religião, a
mitologia e as lendas, a recreação, a magia, todas altamente complexas, buscando penetrar a mundivisão ou
ideologia de cada qual deles.
A ETNOLOGIA propriamente dita, baseada nos dados que lhe são fornecidos pela etnografia,
arqueologia, lingüistica e antropologia física, busca analisar as diferenças e semelhanças entre culturas, e
examinar sua evolução ao longo do tempo, dando-lhes assim perspectiva histórica em seu desenvolvimento
individual ou nas relações entre as diversas culturas. Surgem destarte, em seu campo, os problemas de
comparação e correlação interculturais, e os da formulação de conceitos teóricos explicativos, sempre com
ênfase nos aspectos pertinentes ao largo processo histórico-cultural.
A ANTROPOLOGIA SOCIAL, finalmente, utilizando os mesmos dados da etnologia propriamente dita,
procura frisar os aspectos das inter-relações sociais entre os diversos membros do grupo, com maior grau de
generalização científica. Isto implica aproximá-la da Sociologia e, portanto, do estudo de sociedades mais
evoluídas e complexas, como as das nações modernas, permitindo a elaboração de sínteses teóricas mais
amplas, a exemplo das tentadas por Slotkin desde 1950.
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Na prática, confunde-se com a etnologia propriamente dita, em seus pontos-de-vista mais largos e
gerais.

Ambas se preocupam, embora com acento ligeiramente diverso, com problemas tais como os de
difusão de conhecimentos e técnicas; de migração de pessoas e de idéias; de dinâmica cultural, ou seja, de
questões de estabilidade e mudança cultural; de aculturação ou fenômenos causados pelo contato de
culturas diversas, acarretando inovações, ou aceitação de traços e elementos culturais (unidades irredutíveis
de padrões de comportamento aprendidos, ou socialmente transmitidos, ou suas manifestações materiais) e
rejeição, perda ou reformulação desses elementos e dos valores a eles ligados; do papel da intervenção
estranha nesses fenômenos, conduzindo à desintegração ou reintegração cultural; do estudo das relações
entre cultura e personalidade (problema interdisciplinar, envolvendo conceitos e dados sociológicos e de
psicologia social); da elaboração de modelos e da formação de esquemas teóricos, como o funcionalismo
(Malinowski, Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard), o difusionismo (W. Schmidt, Koppers), o evolucionismo
(Darwin, Howells, White, Childe, etc.)

3. ARQUEOLOGIA
Destina-se a descobrir, pesquisar e reconstruir, pelos seus restos, culturas e civilizações
desaparecidas. Divide-se em arqueologia pré-histórica e arqueologia clássica. A primeira pertence à
antropologia cultural, pois aquelas culturas ainda não possuíam a escrita; a segunda é ciência auxiliar da
história, que é baseada em documentos escritos.
Observemos que, como no caso do Antigo Testamento, a função da Arqueologia não é tanto
confirmar datas e personagens mencionados nas Escrituras, como esclarecer o ambiente em que se
desenrolou a história bíblica. Não é de se esperar que cada afirmação histórica de um escritor bíblico possa
ser validada por uma descoberta arqueológica. Conhecer o ambiente político e cultural em que o Cristianismo
foi primeiro pregado, pode ser tão importante como saber se há ou não confirmação extrabíblica para o fato
de Pôncio Pilatos ter sido o procurador da Judéia ao começar João Batista sua pregação no deserto, como
afirma o evangelho de Lucas.
Transcrevemos, a seguir, o diálogo entre o autor do livro O Despontar de uma Nova Era , de S. Júlio
Schwantes e Dr. Pettinato, da Universidade de Roma, sobre o tema Arqueologia.
- Poderia V.Sa. explicar o que significam as siglas A.C. e A.D. que acompanham muitas datas nos
livros de história?
- Sua pergunta enseja ótimo ponto de partida para o assunto. A sigla A.C. vem da expressão latina
ante Cristo e significa “antes de Cristo”. Aplica-se a datas anteriores a era cristã. A sigla A.D., por sua vez,
provém do latim annus Domini, e quer dizer “ano do Senhor”. Aplica-se a datas posteriores ao nascimento de
Cristo, que é tomado como ponto de partida de uma nova era.
- Já usavam siglas na antigüidade?
- Sim, escritores latinos faziam amplo uso de siglas. Aparentemente, o desejo de economizar palavras
é tão antigo quanto a raça humana. Em muitas inscrições latinas lê-se, por exemplo, a sigla S.Q.P.R., que
eram iniciais da frase Senatus Que Populus Romanus, “o senado e o povo romano”. Era a frase usada para
indicar que uma lei ou um decreto era a expressão da vontade do senado e do povo romano. Outra sigla
muito empregada era A.U.C. do latim ab urbe condita, que significava “desde a fundação da cidade” . Para os
romanos, o dia da fundação de Roma era naturalmente a data que servia de ponto de partida para sua
cronologia.
- Com quem se originou a idéia de datar os acontecimentos do nascimento de Cristo?
- Foi o monge Dionísio que, por volta do ano 500 A.D., concebeu a idéia de datar todos os
acontecimentos em referência ao evento que, para os cristãos, é o principal momento da história.
- Quer isto dizer que o ano 1 A.D. corresponde ao ano do nascimento de Cristo?
- Era o que Dionísio tinha em mente. Segundo seus cálculos, Jesus teria nascido no ano 753 A.U.C.,
isto é, no ano 753 depois da fundação de Roma. Infelizmente, Dionísio cometeu um erro de quatro ou cinco

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anos; de modo que Jesus realmente nasceu no ano 748 ou 749 depois da fundação de Roma. Como este
erro só foi descoberto no século XVI, achou-se melhor não alterar os milhares de datas computadas na base

do ano 753 A.U.C. O transtorno que isto causaria seria enorme. Para sermos estritamente corretos,
deveríamos dizer que Jesus nasceu no ano 4 A.C.
- Mas isto parece contradição!
- Sem dúvida, parece uma contradição dizer que Jesus nasceu quatro anos antes da era cristã. Mas,
para os historiadores, era melhor abrir uma exceção do que alterar todas as datas históricas tradicionais.
Como soaria, por exemplo, dizer que o Brasil foi descoberto no ano 1496 em vez de 1500?
- Pareceria estranho, por certo, para quem desde a infância se habituou com a data de 1500. Mas
poderia V.Sa. esclarecer com fatos concretos o que levou os estudiosos a concluir que Dionísio cometeu um
erro de quatro ou cinco anos?
- Com muito prazer, se o amável leitor não for avesso a questões de cronologia. O evangelho de
Mateus deixa bem claro que Jesus nasceu em Belém antes da morte do rei Herodes, o Grande. Este, quando
informado do nascimento de alguém fora de sua família, que um dia poderia ser “rei dos judeus”, planejou e
levou a efeito o massacre dos inocentes, registrado em Mateus, capítulo 2. Se o massacre ocorreu no último
ano da vida de Herodes, então Jesus provavelmente nasceu antes de 749 da fundação de Roma, que é a
data da morte deste monarca.
- Há alguma significação religiosa em saber-se que Jesus nasceu no ano 4 A.C. em vez do ano 1
A.D.?
- Há, realmente, e esta é a razão de termos demorado em esclarecer o assunto. Quando Lucas
afirma que Jesus tinha “cerca de trinta anos ao começar o seu ministério” (Lc 3.23), então foi no ano 27 A.D.
que seu ministério começou, visto ter nascido cerca de quatro anos antes de nossa era. E esta é justamente a
data que obtemos ao estudarmos uma importante profecia do livro de Daniel, concernente à data do
aparecimento do Messias.
- Começo a perceber que há uma relação íntima entre o Antigo e o Novo Testamento. O assunto
parece-me cada vez mais interessante.
- A unidade do Antigo e do Novo Testamento jaz à própria raiz da fé cristã. O Antigo Testamento era
a única Bíblia que havia no tempo de Jesus, e era a ele que Jesus apelava para confirmar a origem divina de
sua missão. Foi do Antigo Testamento que Jesus disse certa vez: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter
nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim” (Jo 5.39). Na conversação com dois
discípulos no caminho de Emaús, após sua ressurreição, Jesus citou passagens de três divisões tradicionais
do Antigo Testamento, a saber: Lei, Profetas e Salmos, para convencê-los de que os eventos que culminaram
no Calvário transcorreram em cumprimento das Escrituras (Lc 24.44). O Antigo Testamento é, em suma, uma
preparação para o Evangelho de Cristo.
- Não seria mais correto dizer que toda a história da humanidade até Cristo foi essencialmente uma
preparação para o Evangelho?
- Correto. Já Eusébio de Cesaréia, o primeiro grande historiador cristão, assim pensava. É de sua
autoria uma obra intitulada Praeparatio Evangelica, na qual expõe o conceito que V.Sa. mencionou, de que
toda história da humanidade foi primordialmente uma preparação para o Evangelho, isto é, para a vinda de
Cristo.
- Este é um conceito notável pela sua profundidade. Como deve ele ser realmente entendido?
- Deve se entendido à luz do texto no qual o apóstolo Paulo afirma que vindo “a plenitude dos
tempos, Deus enviou seu Filho” (Gl 4.4). Na longa procissão dos séculos, a divina Providência presidia sobre
a marcha da História de modo a preparar o estágio deste mundo para a recepção do Filho de Deus.
- Poderia V.Sa. ser mais específico? O assunto me interessa profundamente.
- Quero dizer que Ciro, Alexandre, Júlio César e todos os demais vultos históricos foram, num sentido
transcendental, instrumentos da providência divina. É verdade que travaram suas batalhas, conquistaram
outros povos, alteraram o mapa do mundo. Eles o fizeram como seres mortais e livres, responsáveis por suas
decisões. Mas acima do tinido das armas e do tumulto das guerras, Deus guiava o curso dos acontecimentos
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discretamente, no sentido de preparar o ambiente para o advento de Jesus Cristo. Ciro, por exemplo, a quem
o profeta Isaías chama o “meu ungido”, conquistou o Oriente Próximo para todos os medos e persas. Mas, ao

fazê-lo, introduziu um clima mais humano entre vencidos e vencedores. Destruiu o império da Babilônia, cujo
progresso religioso estava atravancado por superstições milenares. Permitiu aos cativos judeus retornarem à
Terra Prometida e lá acender mais uma vez o fanal de uma religião mais pura. Unificando o mundo oriental,
contribuiu Ciro para a difusão da língua aramaica, que por sua vez se tornou veículo para a disseminação de
uma cultura e de concepções religiosas mais elevadas. Além disso, os persas, estabilizando o cenário
internacional durante dois séculos, deram tempo ao povo judeu de consolidar suas convicções religiosas num
clima mais favorável.
- Concordo com o que V.Sa. disse de Ciro. Mas qual teria sido, então, o papel de Alexandre no drama
divino?
- Alexandre, filho de Felipe II da Macedônia, o maior gênio militar da época, e educado por
Aristóteles, filósofo e cientista genial, planejou conquistar o império persa movido não somente pela sede de
glória e despojos, mas com o intuito de difundir a cultura grega no Oriente Próximo. Sua carreira vitoriosa
durou apenas 12 anos, mas seus feitos alteraram permanentemente o curso da História. O resultado foi a
helenização da bacia oriental do Mediterrâneo. A cultura superior da Grécia impôs-se em toda a parte.
Gregos tornaram-se os costumes, grega a língua falada em toda parte. Até os judeus das grandes cidades
adotaram o grego como o vernáculo. Menos de um século depois da morte de Alexandre, os judeus de
Alexandria reclamavam a tradução do Antigo Testamento para o grego. E era na versão grega, conhecida
como a Septuaginta, que o Antigo Testamento circulava entre os judeus dispersos pelo Império Romano, nos
dias do apóstolo Paulo. A língua grega, com sua maravilhosa flexibilidade, foi o grande instrumento para a
pregação do Evangelho entre os gentios. Os diferentes livros que compõem o Novo Testamento foram
originalmente escritos em grego, pois esta era a língua da maioria dos cristãos fora da Palestina. Alexandre,
indiretamente, contribuiu, pelas suas conquistas, para a difusão espetacular do Cristianismo.
O efeito da helenização da bacia do Mediterrâneo foi além da implantação de uma língua universal.
Sob o impacto de novas idéias, homens em toda a parte começaram a libertar-se do provincialismo que
cercava seu horizonte mental e espiritual. Os laços multisseculares que os prendiam aos costumes e à
religião ancestral, começaram a ceder ante o novo espírito que fazia cada qual sentir-se cidadão do mundo,
livre na escolha de sua profissão, sua moradia, sua opinião filosófica, e, mais importante de tudo, livre na
escolha de sua religião. O novo indivisualismo que se propagou por toda a parte, com seu efeito catalisador
sobre a mente humana, foi também um elemento vital na preparação do mundo para a recepção do
Evangelho.
- V.Sa. mencionou Júlio César, sem dúvida o maior dos estadistas romanos. Qual foi o papel de
Roma no grande plano que V.Sa. convencionou chamar “preparação evangélica”?
- Bem, devo confessar que a expressão não é minha, mas de Eusébio de Cesárea. E certamente
concordamos ser uma expressão feliz. Júlio César é o símbolo de Roma e da Pax Romana. O império
romano, sonhado por Júlio César, mas só efetivado por seu sobrinho Otávio Augusto, proporcionou ao mundo
antigo duzentos anos de paz e prosperidade. O clima de lei e ordem, imposto por Augusto e seus sucessores,
criou condições excepcionalmente favoráveis à propagação da fé cristã. Boas estradas ligavam as partes
mais distantes do império. Banditismo e pirataria foram, em grande parte, eliminados. Podia-se viajar em
segurança do Helesponto às Colunas de Hércules, como de Roma a Alexandria. Além disso, cidadãos
romanos e provinciais podiam respirar seguros sob a proteção das leis e dos tribunais romanos. Apesar da
displicência de alguns imperadores, e da venalidade de certos magistrados, a humanidade não gozava até
então de maior paz e prosperidade. Quando os arautos do Evangelho se espalharam pelo império, eles o
fizeram em condições de liberdade e segurança com as quais não se podia sequer sonhar em épocas
anteriores. Não fossem as autoridades romanas na Palestina, o próprio ministério de Cristo teria terminado
prematuramente. Basta lembrar quantas vezes as autoridades judaicas tentaram tirar-lhe a vida.
- Mas sempre pensei que os cristãos fossem severamente reprimidos pelas autoridades romanas!

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- Há nisto um mal entendido. Até o tempo do imperador Marco Aurélio, os cristãos não foram, como
regra, perseguidos por causa de suas convicções religiosas. A perseguição desencadeada por Nero
não se estendeu fora de Roma e não visava extirpar a religião cristã. Os cristãos, talvez acusados

pelos judeus - sabe-se que Popília, esposa de Nero, era judia - serviram de bode expiatório para
desviar a ira da população, que se voltava contra o próprio Nero, suspeito de ter provocado um
incêndio em Roma, com grandes prejuízos para as classes mais pobres. Mesmo trinta anos depois,
no tempo do imperador Domiciano, em cujo governo o apóstolo João teria sido exilado na ilha de
Patmos, a perseguição dos cristãos não foi generalizada. No tempo do imperador Trajano, por volta
do ano 110 A.D., Plínio, o Moço, governador da Bitínia, dirigiu-lhe uma carta perguntando o que fazer
com os cristãos em sua província. A carta é uma das fontes mais antigas a mencionar a existência de
cristãos, e nada contém de derrogatório contra eles. Cita algumas de suas práticas religiosas e sua
boa conduta cívica. Provavelmente, o que ocorria é que judeus enciumados denunciavam os cristãos,
por não queimarem incenso ao imperador, ou recusavam prestar-lhe culto divino, como era costume
em certas províncias da Ásia. A resposta de Trajano é que os cristãos não deviam ser objeto de
busca policial, a não ser que houvesse uma denúncia. Nesse caso, deviam ser intimados ao tribunal
e julgados de acordo com as leis vigentes, relativas ao culto do imperador. O parecer de Trajano
estabeleceu um precedente observado pelos imperadores seguintes até Marco Aurélio.
- Ora, justamente Marco Aurélio, o imperador-filósofo, que no meio de suas campanhas militares
achava tempo para compor meditações sobre o estoicismo!
- Não se surpreenda, porém. Precisamente os imperadores mais conscienciosos é que começaram a
tomar nota dos cristãos. Seu desinteresse pela carreira militar, sua despreocupação por cargos públicos, sua
ausência habitual nas festividades pagãs em que motivos políticos e religiosos se misturavam, tudo isto
indicava uma incompatibilidade profunda entre o império, com sua estrutura político-religiosa, e a igreja cristã.
Dia viria em que alguns imperadores se convenceriam de que a unidade monolítica do império estava
ameaçada pela atitude intransigente dos cristãos que se consideravam cidadãos do reino dos céus. Mas isto
já nos leva ao terceiro século de nossa era; portanto, além do período da Pax Romana. Além deste ponto, a
preservação do império já não era essencial à sobrevivência da igreja cristã.
- E as catacumbas de Roma? Pensava-se que eram um lugar de refúgio dos cristãos em tempo de
perseguição.
- É o que muitos têm imaginado. Mas já considerou a impossibilidade prática de alguns cristãos
perseguidos abrirem estas extensas galerias subterrâneas, como as catacumbas de São Calixto e Santo
Estêvão? E isto mesmo, junto dos muros da cidade, como pode verificar quem visita Roma hoje? Não. Essas
galerias foram abertas legalmente pelos cristãos, valendo-se de certas leis que protegiam comunidades
religiosas fundadas com o fim de prover a seus membros um funeral decente. Temos no Brasil ordens
religiosas e beneficentes com finalidade idêntica. Naturalmente, as catacumbas, além de prover lugar para o
sepultamento dos mortos, tornavam-se um ponto conveniente de reunião num tempo em que ainda não havia
igrejas. É possível que as catacumbas fossem posteriormente usadas como lugares de refúgio, em tempo de
perseguição, mas isto só no terceiro século.
- Há outros exemplos de como a História ou a Arqueologia elucidam costumes ou acontecimentos
mencionados no Novo Testamento?
- Certos nomes que figuram nas páginas do Novo Testamento podem ser confirmados por fontes
históricas independentes, tais como Flávio Josefo, Tito Lívio, Suetônio, Tácito, etc. Assim, o nome de Quirino,
governador da Síria quando se fez um recenseamento em sua província, é mencionado por Josefo (Lc 2.2;
Flávio Josefo, Antiquities of the Jews, XVIII, 1:1). O mesmo acontece no caso dos nomes de Pôncio Pilatos,
Herodes Agripa, o rei Aretas de Damasco, os procuradores Festo e Félix, o procônsul Gálio de Corinto, etc.
Certos eventos recebem confirmação independente, como a fome que ocorreu no tempo do imperador
Cláudio, ou a existência de politarcas em Tessalônica. Evidentemente, não podemos esperar que todo
pormenor histórico do Novo Testamento seja igualmente tratado por algum historiador secular. A importância

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do que se passava na Palestina no tempo de Cristo não foi plenamente percebida senão muitas décadas
mais tarde.
- Quem é o primeiro autor secular a mencionar o nome de Cristo?

- Flávio Josefo é o primeiro a citá-lo em sua obra, originalmente escrita em grego, As Guerras
Judaicas, embora a passagem em questão tenha sido considerada um interpolação por alguns estudiosos.
Ninguém, porém, duvida da autenticidade do parágrafo em que ele menciona o martírio de Tiago. Se
excluirmos Josefo, então Tácito, em seus Anais, é o primeiro a referir-se a Cristo; e Plínio, o Jovem, seria
cronologicamente o seguinte.
- É ainda possível identificar os lugares ligados à vida e à morte de Jesus Cristo?
- Sim, muitos desses lugares continuaram a ser habitados até hoje, e sua identidade nunca se
perdeu. Entre eles poder-se-iam mencionar Jerusalém, Belém, Jericó e Nazaré. Em outros casos, cidades
desaparecerem ou decaíram até se tornarem aldeias insignificantes. Além disso, a ocupação árabe alterou
muitos dos nomes originais, e só especialistas conseguem reconhecê-los. O que ocorreu na Palestina é
semelhante ao que aconteceu com os nomes latinos em Portugal e alhures. Só pessoas familiarizadas com
os princípios da evolução fonética reconheceriam Tejo no antigo nome de Tagus, ou Lisboa em Olissipum.
Felizmente, um grande auxílio é provido por uma obra de Eusébio de Cesaréia, conhecida como
Onomastikon, e que é realmente um dicionário de geografia bíblica. Nesse volume, Eusébio, que vivia na
Palestina no quarto século de nossa era, identifica centenas de lugares bíblicos de acordo com a tradição
corrente em seus dias, dando posição relativa a outras localidades vizinhas. Noutros casos, é preciso
combinar as informações fornecidas pela Bíblia ou por Eusébio, em seu dicionário, com pesquisas
arqueológicas, para se chegar a resultados positivos. Pode-se, no entanto dizer que, de 1.500 localidades
mencionadas no Antigo ou no Novo Testamento, um terço está identificado definitivamente, outro terço está
identificado em caráter provisório, e o restante aguarda esclarecimentos futuros.
- Bem, o que tenho em mente não é a identificação de cidades, o que penso não ser difícil, mas, sim,
a de lugares específicos como a estrebaria onde Jesus nasceu; a sinagoga de Nazaré, onde pregou; o
pretório de Pilatos, em Jerusalém, onde Cristo foi julgado; o lugar de sua sepultura. Em outras palavras, são
os “lugares santos” passíveis de identificação?
- Muitos dos chamados “lugares santos” estão hoje abrigados sob alguma igreja. Há, por exemplo, a
Igreja da Natividade, em Belém, onde é mostrada ao visitante a caverna na qual Jesus teria nascido. Anexa a
essa igreja, há outra, protegendo a cela monástica onde Jerônimo teria traduzido a Bíblia para o latim. O mais
que se pode dizer é que estas igrejas ocupam o lugar aproximado em que ocorreram os acontecimentos em
questão. Acontece, porém, que a igreja apostólica não estava interessada particularmente em “lugares
santos”. Ela tinha sua atenção voltada para o Céu, para onde Cristo tinha ascendido após a ressurreição, e
de onde aguardava sua volta para breve. Além disso, os cristãos eram pobres demais para construir igrejas
nos primeiros dois séculos. O Novo Testamento mais de uma vez fala de igrejas que se reuniam em alguma
casa particular. O apóstolo Paulo, por exemplo, escrevendo a Filemom, referiu-se à “igreja que está em tua
casa” (Fm 2). Some-se ainda o fato de que na Palestina os cristãos sofreram repetidas perseguições da parte
dos judeus. Conseqüentemente, havia pouco interesse e inclinação para dispensar aos “lugares santos”
particular atenção. Lembre-se, de outro lado, o leitor, que a vida na Judéia foi violentamente alterada pela
guerra que devastou o país entre os anos 66 e 71 de nossa era, e que culminou com a destruição de
Jerusalém. Quando dois ou três séculos mais tarde a igreja começou a se interessar nos “lugares santos”, em
vários casos a identidade do local original não podia mais ser afiançada.
- Já li algo a respeito da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, de propriedade conjunta da Igreja
Católica Romana, da Grega Ortodoxa e da Armênia Ortodoxa. Não foi esta construída no lugar exato da
crucifixão e sepultura de Jesus?
- Quando Helena, mãe do imperador Constantino, mandou erigir essa igreja, três séculos já haviam
decorrido desde a crucifixão. Jerusalém já tinha sido devastada em duas guerras desastrosas. Segundo a
profecia de Cristo, registrada em Mateus 24, não devia ficar pedra sobre pedra, como resultado dessas
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guerras. Se, depois desse caos, a comissão encarregada de erigir a Igreja do Santo Sepulcro a edificou no
lugar exato, é ainda matéria controvertida. O assunto é complicado, pelo fato de que a topografia da cidade
moderna de Jerusalém não é precisamente a do tempo de Cristo. Sabemos que os muros atuais foram

construídos pelo sultão turco Solimão, o Magnificente, no século XVI, e não seguem com exatidão a linha dos
muros existentes no tempo de Cristo.
- Bem, reconheço que a identificação exata de um “lugar santo” não tem significado religioso. O
acontecimento é muito mais vital do que o lugar em que o mesmo transcorreu. Mas a curiosidade leva-me a
fazer outra pergunta. Compreendo, por leituras recentes, que escavações arqueológicas puseram a
descoberto o pavimento, diante do pretório de Pilatos, onde Jesus foi julgado (Jo 19.13). É esta identificação
correta?
- Sim, há boas razões para crer que essa identificação seja correta. Quem visita hoje o convento de
São Francisco, ao lado da Via Dolorosa, em Jerusalém, é levado a descer a um subterrâneo no qual há um
pavimento, feito com grandes lajes, que mostram marcas e inscrições tipicamente romanas. Parece
corresponder ao lithostrotos mencionado no evangelho de João, em conexão com o julgamento de Jesus.
Visíveis, sobre as lajes, há ranhuras delineando um jogo que servia de passatempo aos soldados da
guarnição romana. Correta, também, como não podia deixar de ser, é a identificação da área do antigo
templo, construído por Herodes, cujo esplendor enchia de orgulho os judeus do tempo de Cristo. Hoje, parte
dessa área é ocupada por uma mesquita maometana de cujos minaretes soa cinco vezes ao dia o chamado
aos fiéis para oração. Reconhecíveis, também, como do tempo de Herodes, são as enormes pedras que
formavam um muro de suporte para a plataforma sobre a qual se erguia o templo. Durante séculos os judeus
vinham lamentar, junto desse muro, sua passada glória.
- Ouvimos bastante sobre a identificação dos “lugares santos”, e sua exposição convenceu-me, acima
de qualquer dúvida, de que a religião cristã está firmemente ancorada na História e na Geografia. Diga-me,
por favor, tem a Arqueologia projetado alguma luz sobre o ambiente cultural do tempo de Jesus e seus
discípulos?
- Folgo em saber que o assunto o interessa. Quanto ao ambiente cultural daquela época distante,
estamos cada vez mais informados, graças a estudos históricos e arqueológicos que progridem. Sabe-se, por
exemplo, que a Palestina não era uma província tacanha do império romano. Sua posição estratégica, na rota
de comunicações entre a Ásia e a África, conferia-lhe importância excepcional. O interesse demonstrado por
Marco Antônio e Otávio, ao coroarem Herodes rei da Judéia no ano 40 A.C., é evidência de como a Palestina
ocupava posição vital na estrutura do império. Situada na encruzilhada das nações, a Palestina não escapou
ao processo de helenização que alterou o estilo de vida no Oriente Próximo, depois de Alexandre. A antiga
cidade de Samaria, destruída por João Hircano no segundo século antes de nossa era, foi reconstruída em
estilo helenístico por Herodes, que lhe deu o nome de Sebaste, em honra ao imperador Augusto. Fórum,
templo, pórticos, estádios dão evidência de sua riqueza imensa. A cidade de Siquém, cuja existência remonta
ao período patriarcal, foi igualmente reconstruída sob o nome de Neápolis, “cidade nova”. Hoje, é ainda uma
cidade florescente, com o nome de Nablus. Na Transjordânia floresciam, no tempo de Cristo, dez cidades
ligadas a Decápolis, por tratados comerciais e políticos. Eram todas cidades fortemente helenizadas, e uma
delas, Geresa, quarenta quilômetros ao norte da moderna Amã, foi cognominada a “Pompéia do Oriente”,
pois suas ruínas rivalizam em profusão com as de sua cognata italiana.
O ambiente cultural na Palestina do tempo de Cristo criava, para os arautos do Evangelho, problemas
tão difíceis como os criados pela nossa civilização sofisticada. Havia nos maiores centros os simpatizantes
das filosofias epicúrea e estóica. Havia os discípulos de Diógenes, conhecidos como “cínicos”, e que
correspondiam aos nossos modernos “hippies”, em seu desprezo pelas convenções sociais. Se o
Cristianismo triunfou sobre as filosofias correntes e sobre os sistemas religiosos que clamavam por atenção,
foi por seu mérito superior, sua qualidade de uma revelação autenticamente divina.
- Poderia V.Sa. dizer algo sobre o valor histórico do livro dos Atos dos Apóstolos? É a narrativa de
Lucas fidedigna?
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- Viveu no século passado um inglês, com o nome de William Ramsay, que na sua mocidade foi
tocado pelo espírito do racionalismo e ceticismo da época. Resolveu atacar o livro de Atos, como Strauss e
Renan tinham atacado os evangelhos, e demonstrar que não podia resistir o rigor de um exame científico.
Para tanto, era preciso conhecer a fundo a geografia da Ásia Menor, pois aí se desenrolou uma boa parte da

história narrada no livro de Atos. William Ramsay passou anos familiarizando-se com a geografia, topografia e
história de cada uma das cidades relacionadas com as viagens missionárias do apóstolo Paulo. O resultado
desse estudo intenso, de vários anos, foi que William Ramsay se convenceu da autenticidade do livro de
Atos, pois, na sua opinião, somente um companheiro de Paulo poderia descrever os fatos com tanta precisão.
O cético de outrora, tornara-se um dos mais ardorosos defensores do livro de Atos e legou à posteridade
valiosos comentários sobre este. Haja vista o título raro de “politarca” aplicado aos magistrados de
Tessalônica (At 17.6, no grego). Este título, ignorado pelos autores clássicos, aparece em 19 inscrições
encontradas em Tessalônica e vizinhança. O mesmo é verdade do título “asiarca”, aplicado a certas
autoridades de Éfeso, que se tinham tornado amigas de Paulo. Não só as ruínas de Éfeso têm sido
extensamente investigadas, revelando um magnífico anfiteatro, uma biblioteca e o famoso templo de Diana,
como o título “asiarca” também foi confirmado por inscrições (At 19.31).
Além disso, somente um contemporâneo de Paulo poderia saber que, quando o apóstolo visitou
Chipre, cerca do ano 47 A.D., esta ilha era governada por um procônsul e não um protetor, como o foi em
outras ocasiões. O caso de prisioneiros romanos poderem apelar a César, se julgassem prejudicados, como o
fez Paulo perante o tribunal de Festo, é reconhecido no direito romano. Na viagem que levou Paulo até
Roma, são mencionadas as cidades de Siracusa, na Silícia; de Régio, na Calábria; e de Putéoli, onde Paulo
desembarcou e de onde seguiu a pé até Roma. Ora todas essas localidades são conhecidas, e algumas
delas são florescentes até hoje. Quanto à prisão em que Paulo passou seus últimos dias antes de ser
decapitado por ordem de Nero, a tradição a identifica com a mamertina, próxima ao Fórum Romano. Em
conclusão, podemos afirmar que os fatos até hoje acumulados pela pesquisa imparcial atestam a
autenticidade histórica do livro de Atos.
- Permita-me V.Sa. uma pergunta final. Não pertence o livro do Apocalipse, o último do Novo
Testamento, a uma categoria à parte, uma vez que encerra visões e profecias e não propriamente história?
- Sua observação é a propósito. O livro do Apocalipse é, de fato, diferente. É o livro profético por
excelência, dentro do Novo Testamento. Isto, porém, não significa que não tenha um fundo histórico. Foi
descrito pelo apóstolo João em circunstâncias históricas bem definidas. O autor esteve exilado em Patmos no
tempo de uma perseguição religiosa. Esta ilha é bem conhecida e fica no mar Ageu, não distante da antiga
cidade de Éfeso. Era usada como colônia penal na época. A perseguição desencadeada pelo imperador
Domiciano ocorreu, segundo as melhores indicações, no tempo em que o apóstolo João era bispo em Éfeso.
Domiciano insistia em ser chamado deus ac dominus (deus e senhor), títulos que um cristão só podia atribuir
em sã consciência a Cristo, e nunca a um mero mortal. Acontecia, porém, que a província da Ásia, da qual
Éfeso era a principal cidade, era o centro do culto ao imperador, e já no ano 29 A.C. foi aí erigido um templo
em honra a Roma e ao imperador divinizado. De outro lado, essa província era também a mais intensamente
evangelizada da Ásia, visto que Paulo ali trabalhara cerca de três anos. O choque da fé cristã com as práticas
pagãs era inevitável. Dessa incompatibilidade resultou a prisão e banimento do apóstolo João.
- Pergunto, porém: O conteúdo do Apocalipse tem qualquer fundamento histórico?
- O livro do Apocalipse abre-se com as sete cartas às sete igrejas da província da Ásia. São cartas
autênticas, escritas às igrejas bem conhecidas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e
Laodicéia. A origem de comunidades cristãs em três dessas cidades pode ser estudada nas epístolas de
Paulo. Duas dessas cidades ainda são florescentes: Esmirna e Filadélfia. As ruínas das outras têm sido
identificadas. Não há dúvidas, pois, de que as sete foram igrejas históricas confrontadas com perigos e
problemas reais. O fundo histórico do livro do Apocalipse fornece uma base sólida para as revelações
proféticas que encerra.

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III - ANTROPOLOGIA APLICADA
Tornam-se cada vez mais importantes as aplicações da Antropologia em todos os setores
relacionados com contatos entre grupos humanos, especialmente quando diferindo consideravelmente em

grau de adiantamento, pela multiplicação desses contatos num mundo cujas distâncias a tecnologia moderna
vem reduzindo.
Daí a atualidade dos estudos de aculturação, valiosos e mesmo indispensáveis para administradores,
políticos, militares, médicos, missionários, diplomatas, técnicos diversos, sejam formuladores ou executores
de diretrizes sobre quaisquer aspectos relacionados com esses contatos culturais com grupos de culturas
diferentes.
Assim, na política imigratória, educacional, econômica, social, etc., há de ter em conta essas
particularidades e diversidades culturais. Tais aplicações da Antropologia ampliam-se e vêm-se
desenvolvendo aceleradamente desde a II Guerra Mundial.

IV - À SEMELHANÇA DA IMAGEM DE DEUS (Gn 1.26,27)

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” .

É, portanto, o homem a coroa da criação, pois somente ele foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Verifiquemos agora como a Filosofia trata esta semelhança de Deus no homem.
HUMANISMO TEOCÊNTRICO. O que se destrói a si mesmo por sua própria natureza não pode ser
fim em si. O que, como a vida, é esforço de conquista que termina no fracasso de toda individualidade que o
intenta, longe de poder considerar-se como termo ideal, longe de poder erigir-se em final da existência, é a
demonstração de sua própria inanidade. (A existência como caridade).
A idade moderna é a época do humanismo antropocêntrico em todas as ordens da cultura. Dando as
costas ao ser - ao ser de Deus e ao ser do Universo - volta os olhos para o homem e postula a imanência
contra a transcendência. Mas tendo fechado os olhos do espírito ao ser e suas exigências ontológicas, o
modernismo terminou num grito de angústia quando o objeto supremo de seus afãs (o homem) se evaporou.
A história desta gradual evaporação começa com o Renascimento que, se não nega a realidade sobrenatural,
pelo menos a afasta abismalmente do homem.
Exalta-se o natural, o temporal, o material e se relega ao olvido o sobrenatural, eterno, o espiritual. O
processo do que se pôde chamar “a perda de Deus” e cujas etapas são as da época moderna, inicia-se com
Ockham. Se Deus não é razão, mas somente onipotência, livre-arbítrio, então a razão humana é algo que
unicamente tem valor “por dentro das portas” do homem. “Sozinho, pois, sem mundo e sem Deus - expressa
Xavier Zubiri - o espírito humano começa a sentir-se inseguro no Universo” .
Divinizado o homem e fechado todo acesso ao Ser transcendente, a imanência vazia de qualquer
realidade, mesmo da própria, terminou por se devorar a si mesma. Em vez de acudir à única fonte capaz de
saciar suas ânsias infinitas de verdade e de bem e de lhe outorgar sua autêntica plenitude, o homem se
encarcerou em sua pobreza total e na finitude obscura de uma imanência sem ser.
O humanitarismo, a religião da espécie, o amor à posteridade remota e feliz, amor paternal a nossos
descendentes, melhores do que nós, creu que a vida haveria de vencer as misérias inerentes à contingência
da individualidade. Como Comte, amava-se a Deus “no conjunto dos seres humanos progressivos” . Mas a
espécie - triste fetiche - não é substância primeira, não tem entidade. Como universal, só existe formalmente
na inteligência; fundamentalmente em todos e em cada um dos indivíduos. Além disso, como observa o
mestre Caso, o progresso (pro, para adiante; e gressus, marcha), não se pode afirmar como lei da
humanidade. O progresso físico não existe. Moralmente somos tão inferiores como sempre. A arte não
progride. O que é, então, que resta? A indústria, as ciências especiais, o econômico e interessado da vida.
Progredimos no aumentar nossas relações utilitárias com as coisas, proporcionando-nos novos desejos
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insaciáveis; mas tal progresso é um bem? De qualquer maneira, se só assim é que se progride, o progresso
da humanidade não é um bem absoluto.
Afortunadamente o mundo contemporâneo já deixou de ser moderno. O humanismo antropocêntrico
começa já a desaparecer da cena, não pelo que tem de humanismo, senão por ser antropocêntrico.

Hoje se escutam preclaras e potentes vozes que pugnam por entronizar um humanismo teocêntrico,
um humanismo integral, sulcado pelo duplo movimento contínuo do descenso de Deus para o homem e da
ascensão do homem para Deus. Como no Medioevo, os filósofos cristãos de hoje lutamos por construir um
imenso castelo em cujo cimo se havia de assentar Deus; preparamos-lhe um trono sobre a terra porque o
amamos. Até uma antroposofia metafísica que conhece as coisas do homem desde o ponto-de-vista do
homem exige um teocentrismo natural que possa depois ser aperfeiçoado pela Teologia.
Todas as forças do nosso espírito convergem para o sol da transcendência do Ser divino. Desde
nossas mais profundas raízes e com o ímpeto mais forte, padecemos de uma ânsia infinita de verdade e de
bem que só em Deus encontra repouso. “Em todo o âmbito de sua vida espiritual, o homem - diz Octávio
Nicolás Derisi - não se centra nem encontra a sua perfeição - nem sequer a via para ela, portanto; a não ser
em saindo de si em busca do ser transcendente. Também ele é uma potência em busca do seu Ato... Na
habilidade do ser natural criado que o circunda, no mundo que o rodeia - mistura de ser e de não ser, de ato
e de potência - a inteligência faz seu primeiro alto rumo à sua perfeição; e lendo nele as pegadas do Ser que
plenamente é, encontra seu caminho para a infinitude divina, centro e plenitude do próprio ser” .
Para a antroposofia metafísica, o homem não é um mero ser essencial, mas um ser teleológico; seu
ser não se reduz a um mero “consistir em”, senão que adquire cabal sentido com sua significação funcional
de “ser para”. O ser humano ama seu ser e sente como que uma “fome de imortalidade”, fome que põe de
manifesto uma etapa inferior do amor que consiste no amar-se a si mesmo. Por isso diz Santo Agostinho:
“Nam et sumus et nos esse novimus et id esse ac nosse diligimus” . (Nós somos e sabemos ser e amamos
este ser e saber.)
Mas o caso é que o homem não se satisfaz consigo mesmo, nem esgota seu ser no próprio ser.
Radicalmente indigente, seu ser necessita de uma alteridade - mundo, Deus - para a qual, por outra parte,
está constitutivamente aberto. Para ser em plenitude, o homem requer o alimento essencial de um cosmos
retamente ordenado para Deus.
O homem meramente natural, pretentido por Rousseau, se alguma significação tem é animalidade ou
selvajeria. A plenitude humana supõe sempre uma superação dos instintos meramente biológicos pela
realização de toda uma tábua de valores morais, artísticos, religiosos, etc. Cultura é melhoramento de natura.
Todo ser contingente é projeto e realização ou frustração de projetos . O projeto está desenhado e
contido de antemão no próprio ser; imagem da idéia divina.
Em ressaltante contraste com os seres irracionais que realizam sua idéia a golpes de impulsos
cegos, o homem tem em seu poder o realizar ou não realizar sua plenitude, seu projeto. É claro que, para
querer sua plenitude, o homem necessita conhecê-la. Ainda que também seja certo que, mesmo antes deste
conhecimento, há um afã de plenitude substancial, que é pré-intelectual e que emerge das capas mais
profunda do ser. De qualquer modo “temos, com efeito, como diz Santo Agostinho, um sentido muito mais
nobre que este (refere-se ao instinto animal) no homem interior, mediante o qual conhecemos o justo e o
injusto”. E não somente nos basta conhecer o bem, senão que precisamos amá-lo. A plenitude do ser se
encontra pelo caminho amoroso.
Se “à imagem e semelhança de Deus” foi criado o homem, a idéia divina do mesmo é o próprio Deus,
mas, note-se bem, que é “à imagem e semelhança”. Santo Tomás explica:
1) A imagem perfeita de Deus está só em seu filho primogênito, como a imagem do rei no filho conatural a
ele. No homem, cuja natureza é diferente, não pode existir esta imagem senão ao modo do rei em uma
moeda de prata.
2) No homem, a imagem de Deus existe não perfeita por necessidade, mas imperfeita, como semelhança,
sem igualdade entre o original e a cópia ou representação.
3) Mediante a preposição a (ad) expressa-se uma certa aproximação e, por isso, distância.
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São três os aspectos que o Doutor Angélico considera no homem como imagem de Deus:
a) A natureza mesma do espírito, que é comum a todos os homens, possui uma aptidão natural para
conhecer e amar a Deus;

b) Devido à graça o homem conhece e ama a Deus atual ou habitualmente, ainda que de modo muito
imperfeito;
c) O conhecimento e o amor de Deus na imagem segundo a semelhança da glória. O primeiro caso
corresponde a todos os homens, o segundo se refere aos que estão em estado de graça (justos) e o
terceiro exclusivamente aos bem-aventurados.
Mesmo partindo da ignorância da religião católica e do sobrenatural, chega-se ao conceito do ser do
homem, como esforço que brota de sua existência para lograr sua plenitude essencial, como tendência de
realizar sua enteléquia. O ser humano se apresenta como realizado ou fracassado, segundo tenha ou não
conseguido perfazer seu tipo expresso historicamente em toda unidade de cultura. O processo vital de todos
os seres irracionais tende para a equação com a idéia. Mas este amor - que é cego nestes seres - no homem
é livre e logra sua mais alta expressão ao querer conscientemente realizar a idéia homem que Deus forjou em
sua mente. Neste sentido, afastar-se da idéia divina é afastar-se do ser para sumir-se no nada. Santo
Agostinho - a quem seguimos fundamentalmente neste capítulo - afirma que “não seria um mal afastar-se de
Deus se à natureza não competisse ser com Deus, daí que este afastar-se seja um mal” . O afastamento de
Deus é uma caída consciente no não-ser, que apresenta como sanção o vazio de Deus, na vacuidade
metafísica.
Assunto grave, se existe um, é este voluntário querer o nada e o vazio de Deus. É de sobra
conhecido o conceito que São Tomás tem do mal: ausência ou privação de um bem que normalmente se
devia ter. O mal, conseqüentemente, não é natureza, senão vício da natureza, defeito de bem que se verifica
nos seres por causa de sua mutabilidade. “O mal - como diz o Dr. Fernández Miranda, catedrático da
Universidade de Oviedo - é sempre um não fazer essencial; o qual não é obstáculo para que o homem realize
este não ser fazendo muitas coisas... Propriamente falando, ele está só no homem, porque é somente no
homem que ele pode frustrar o seu ser. O homem foi criado livre, foi-lhe dado o poder realizar-se ou não, de
forjar ou não sua equação de ser ou idéia. O homem não quis sua equação por querer outra impossível ao
querer realizar em si, não a idéia homem da mente divina, senão a idéia por ele mesmo forjada em caminho
de soberba. Não quis ser homem por querer ser Deus. E sendo impossível tal equação, perdeu seu autêntico
ser, sem lograr o ser impossível que se propunha: o jejuno de Deus e farto de si, forjou seu ser falta essencial
de ser”. Este texto faz-nos recordar a “soberba da vida” de que nos fala o apóstolo João e que no fundo não
consiste senão na vã pretensão de constituir-se em centro da criação suplantando a Deus e esquecendo
nossa essencial religação.
A vida cessa de ser naufrágio e perplexidade quando se sabe que os quefazeres da existência hão
de consistir em ser limpa imagem de Deus. O homem sem Deus nada pode, porque o bem é um fazer e não
cabe fazer fora de Deus. Mas para não fazer não se necessita de nenhum poder e é por isso que o homem
pode converter-se em autor do mal. Agora aparece também claro por que o homem pode escolher entre seu
desamparo ontológico, em que se submerge por sua própria decisão, e seu afã de plenitude substancial, que
pode realizar com suas próprias forças nos limites do natural e no sobrenatural - diria o teólogo - com o
auxílio da graça.
Se sai da esfera teocêntrica, “o homem não sabe em que plano coloca-se . Está visivelmente
estranhado, caído do seu verdadeiro lugar, sem poder reencontrá-lo. Busca-o com inquietude em todas as
partes, sem êxito e em meio a trevas impenetráveis” , diz Pascal. Entre uma infinitude cósmica e um nada
absoluto, o ser humano aparece assim perdido. Perplexo ante esta situação limite, ser-lhe-á preciso recorrer
à transcendência para salvar sua desesperança eterna. Ante tão angustiante posição, Pascal se acolhe à via
da fé: “O conhecimento de Deus (fim e princípio), sem o da miséria do homem (meio ineficaz), engendra a
desesperação. O conhecimento de Jesus Cristo é o meio (eficiente), porque nele achamos Deus e nossa
miséria”.

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Com Ricardo de São Victor, pensamos que o conhecimento de Deus e do homem se esclarecem
mutuamente. O homem, conhecemo-lo mediante a experiência, e o que nele achamos nos serve de ponto de
apoio para inferir - mutatis mutandis - algumas determinações do ente divino; e, ao inverso, o que o raciocínio
nos ensina sobre a Divindade se aplica a conhecer em seu ser mais profundo o homem, imagem sua. Este

agudo método intelectual de contemplação alternativa é de pura cepa augustiniana. Não há de esquecer que
a abadia de São Victor era augustiniana. Situando a realidade divina em frente à sua imagem humana,
Santo Agostinho situava o homem-mentira em frente do Deus-verdadeiro; o homem-pobreza em frente do
Deus-plenitude; o homem-abatimento em frente do Deus-excelsitude; o homem-mendigo em frente do Deus
benfeitor.
Nosso integralismo metafísico existencial busca o estabelecimento de uma concepção integradora do
homem. A missão primordial da antroposofia metafísica deve repousar na mostração precisa de como uma
ontologia determinada do homem explica todas as funções e operações especificamente humanas. O homem
é algo mais do que mera “natureza” e para chegar aos seus estratos mais profundos cumpre juntar ao rigor
científico uma acendrada religiosidade. O ser multidimensional do homem reclama uma visão compreensiva
de todos os seus planos. Não se trata de perspectivismo, mas de oniperspectivismo.
Um autêntico humanismo não pode deixar de tomar a seu cargo o programa íntegro e pessoal de
existência, porque nosso mais íntimo ser é nossa vocação e nossa invocação.

V - O QUE A BÍBLIA AFIRMA SOBRE A SEMELHANÇA DE EUS NO HOMEM E POR


QUE DEUS COLOCA A ETERNIDADE NO CORAÇÃO DO HOMEM? (Ec 3.11; Jr 10.10; At
17.28)
A alma do homem não pode morrer (Mt 10.28; seu espírito é incorruptível (1 Pe 3.4); somente seu
corpo material é mortal (Jo 5.28,29; At 24.15).
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.” (Vide Gênesis 5.1; Eclesiastes
7.29; Isaías 43.7; Atos 17.26,28,29; 1 Coríntios 11.7; 2 Coríntios 3.18; 4.4; Efésios 2.10; 4.24; Colossenses
1.15; 3.10 e Tiago 3.9).O homem foi criado à semelhança de Deus, foi feito como Deus em caráter e
personalidade. E em todas as Escrituras o ideal e alvo exposto diante do homem é o de ser semelhante a
Deus (Lv 19.2; Mt 5.45-48; Ef 5.1). E ser como Deus significa ser como Cristo, que é a imagem do Deus
invisível.
Consideramos alguns dos elementos que constituem a imagem divina no homem:
a) PARENTESCO COM DEUS
A relação de Deus com as primeiras criaturas viventes consistia em essas, de maneira inflexível,
obedecerem aos instintos implantados pelo Criador; mas a vida que inspirou ao homem foi resultado
verdadeiro da personalidade de Deus. O homem, na verdade, tem um corpo feito do pó da terra, mas Deus
soprou nas narinas o sopro da vida (Gn 2.7); dessa maneira dotou-o de uma natureza capaz de conhecer,
amar e servir a Deus. Por causa dessa imagem divina todos os homens são, por criação, filhos de Deus. Mas,
desde que essa imagem foi manchada pelo pecado, os homens devem ser recriados ou nascidos de novo (Ef
4.24), para que sejam em realidade filhos de Deus.
Um erudito da língua grega aponta o fato de uma das palavras gregas traduzidas por “homem”
(anthropos) ser uma combinação de palavras significando literalmente “aquele que olha para cima”. O homem
é criatura de oração, e há ocasião na vida dos mais perversos quando eles invocam a algum poder supremo
para socorrê-los. O homem pode não entender a grandeza da sua dignidade, e assim se tornar semelhante
aos irracionais que perecem (Sl 49.20), mas ele não é irracional. Mesmo na sua degradação, o homem é
testemunha da sua origem nobre, pois o animal não pode degradar-se. Por exemplo, ninguém pensaria em
ordenar a um tigre dizendo: “Sê tigre!”. Ele sempre foi e sempre será tigre! Mas a ordem: “Sê homem” leva
um verdadeiro significado àquele que se degradou. Por mais que se tenha o homem degradado, ainda ele

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reconhece que deveria estar em plano elevado.

b) CARÁTER MORAL
O reconhecimento do bem e do mal pertence ao homem. A um animal pode-se ensinar a não fazer
certas coisas, mas é porque essas coisas são contrárias à vontade do dono e não porque o animal saiba

que estas coisas são sempre corretas e outras sempre erradas. Em outras palavras, os animais não possuem
natureza religiosa ou moral; não são capazes de ser instruídos nas verdades concernentes a Deus e à
moralidade. Assim escreve um grande naturalista: Concordo plenamente com a opinião dos escritores que
asseguram ser o sentido moral, ou seja, a consciência, a mais importante de todas as diferenças entre o
homem e os animais inferiores. Esse sentido está resumido naquele curto mas imperioso “deve”, tão cheio de
significado. É o mais nobre de todos os atributos do homem.

c) RAZÃO
O animal é meramente uma criatura da natureza; o homem é senhor da natureza. Ele é capaz de
refletir sobre si próprio e arrazoar a respeito das causas das coisas. Pensem nas invenções maravilhosas
que surgiram da mente do homem - o relógio, o microscópio, o vapor, o telégrafo, o rádio, a máquina de
somar, e outras numerosas demais para se mencionar. Olhem a civilização construída pelas diversas
artes. Considerem os livros que foram escritos, a poesia e a música que foram compostas. E então
adorem ao Criador por esse dom maravilhoso da razão! A tragédia da história é esta que o homem tem
usado esse dom para propósitos destrutivos, até mesmo para negar o Criador que o fez uma criatura
pensante.

d) CAPACIDADE PARA A IMORTALIDADE


A existência da árvore da vida no Jardim do Éden indica que o homem nunca teria morrido, se não
tivesse desobedecido a Deus. Cristo veio ao mundo para colocar a Alimento da Vida ao nosso alcance,
para que não pereçamos, mas vivamos para sempre.

e) DOMÍNIO SOBRE A TERRA


O homem foi designado para ser a imagem de Deus com respeito à soberania; e como ninguém pode
ser monarca sem súditos e sem reino, Deus deu-lhe tanto um “império” como um “povo”. Deus os
abençoou, e lhes disse: “Frutificai, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeita-a; dominai sobre os peixes do
mar, sobre as aves do céu e sobre os animais que se arrastam sobre a terra” (Gn 1.28; Sl 8.5-8). Em
virtude dos poderes implícitos em ser o homem formado à imagem de Deus, todos os seres viventes sobre
a terra estavam entregues na sua mão. Ele devia ser o representante visível de Deus em relação às
criaturas que o rodeavam.
O homem tem enchido a terra com as sua produções. É um privilégio especial do homem subjugar o
poder da natureza à sua própria vontade. Ele, o homem, obrigou o relâmpago a ser o seu mensageiro,
tem circundado o globo, subido até às nuvens e desvendado as profundezas do mar. Ele tem jogado as
forças da natureza umas contra as outras, mandando os ventos ajudá-lo em enfrentar o mar. Se é tão
maravilhoso o domínio do homem sobre a natureza externa e inanimada, mais maravilhoso ainda é o seu
domínio sobre a natureza animada. Vejam o falcão treinado derribar a presa aos pés do seu dono e voltar
quando os grandes espaços o convidam à liberdade; vejam o cão usar a sua velocidade a serviço do
dono, tomar a presa que não será sua; vejam o camelo transportar o homem através do deserto, sua
própria habitação. Todos eles mostram a capacidade criadora do homem e a sua semelhança com Deus o
Criador.

A queda do homem resultou na perda e no desfiguramento da imagem divina. Isto não quer dizer que
os poderes mentais e psíquicos (a alma) foram perdidos; mas que a inocência original e a integridade moral,

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nas quais foi criado, foram perdidas por sua desobediência. Portanto, o homem é absolutamente incapaz de
salvar-se a si mesmo e está sem esperança, a não ser por um ato de graça que lhe restaure a imagem divina.

 Bibliografia:
 KLUCKOHN, Elyde. Antropologia - “espelho para o homem”. Belo Horizonte: Editora Italiaia, 1969.

 MELLO, D.L.G. Antropologia Cultural. Petropólis: Editora Vozes, 1982.

 DEL VALLE, Rasave. Filosofia do Homem. Ed. Convívio.

VI - DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR

 PRESIDENTE
do CONSELHO DE EDUCAÇÃO E CULTURA RELIGIOSA DA CGADB
do CONSELHO DE EDUCAÇÃO E CULTURA RELIGIOSA DA CONFRADESP
 DIRETOR EXECUTIVO
da FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA LOGOS-FAETEL
 PROFESSOR
de VÁRIAS ESCOLAS BÍBLICAS COM MATÉRIAS DIVERSAS
de VÁRIAS MATÉRIAS
 GRANDE OFICIAL
da ORDEM DE JORNALISMO DE SÃO PAULO
 FORMAÇÃO
- BACHAREL EM TEOLOGIA
- MESTRE EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
- LICENCIATURA EM FILOSOFIA
- LICENCIATURA EM PEDAGOGIA
-LICENCIATURA EM ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR
-ACADÊMICO EM DIREITO

Autor:
Pr. ALCINO LOPES DE TOLEDO

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