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A Mocidade nasceu da bateria. Ritmistas metidos a jogadores de futebol que batucavam após
pelejas de várzea nas quais – quase sempre – tomavam sacodes formidáveis dos adversários. O
ritmo depois do jogo (este, sim) era campeoníssimo e não tardou para o grupo de boleiros
virar grêmio de samba: de Independente Futebol Clube a G.R.E.S. Mocidade Independente de
Padre Miguel. Foi assim que desceu ao centro no balanço do trem e conquistou o Rio, nos pra
lá de idos dos anos 50. O líder da companhia trazia batuta e chapéu especial – Mestre André –
um gênio genioso de ouvidos apurados, e com fraco por inovações impensáveis, como a
Paradinha da bateria.
Ocorre que a mesma glória de nascer a partir da mão no couro... Também fez grudar um
estigma. Sim, já louvada por povão e intelectuais na década de 60, a bateria ganhou ar
controverso: maior do que a própria agremiação. Nas palavras dos diários da época, “a bateria
que carrega uma escola”. Pronto! Estava armado o divã para autoanálise. Com a chegada do
bicheiro Castor de Andrade e um consequente vitaminar financeiro - logo após a folia de 1973
- baixou em Padre Miguel o “psicanalista” que resolveria este drama todo com muita arte:
Arlindo Rodrigues.
Tanto que, na estreia (1974 – “A Festa do Divino”), a Mocidade faturou o seu primeiro
Estandarte de Ouro de Melhor Samba. Aliás, o sonhado título de campeão do carnaval não
veio por obra de um causo inexplicável. Pouco antes da apresentação, um incêndio no galpão
onde estavam guardadas várias fantasias destruiu boa parte do material de desfile, que teve
de ser refeito às pressas. À época, sambistas concorrentes comentaram ironicamente que
nunca viram fogo tão grande ser apagado com copo d’água, dando a entender que a história
havia sido forjada para colocar a agremiação nas primeiras páginas dos diários de toda a
cidade. Na Avenida, o povo de Padre Miguel deu de ombros para a confusão e foi aclamado
pelo público aos gritos de “já ganhou”.
Durante os preparativos para o desfile, Mãe Menininha enviou um aviso que repercutiu como
bomba: para a agremiação sair vitoriosa, os ritmistas – até as mulheres! – teriam de desfilar
com as cabeças raspadas. A receita do sucesso não parava aí: os cabelos deveriam ser levados
ao mar, como oferenda. Foi um trabalho danado para o mestre Coteca (André havia brigado
com a direção e se ausentado dos desfiles) convencer os seus comandados: afinal de contas,
vivia-se uma década em que a fartura capilar (do capacete aos lambidos) ditava a moda, mas
acabaram por acatar o pedido.
Em meio à festança que marcou a raspagem, a segunda parte da receita que partira do Gantois
acabou descumprida: os cabelos não foram oferecidos em praia alguma. Bem, com a sabedoria
de Mãe Menininha não se brinca, e algumas figuras do candomblé, geniosas toda vida,
resolveram externar a insatisfação logo na concentração. O carro de Ogum (uma escultura
feita de sucata) não conseguiu suportar o próprio peso e ficou por ali mesmo, engessado.
Também tiveram problemas as alegorias dos Eguns (que prestava uma homenagem a 36 pais e
mães de santo célebres) e do já citado Xangô. Pois bem, esta, aparentemente intacta,
emperrou sem qualquer explicação. E se há mais coisa entre o céu e a terra – com mediação
da Mãe homenageada – do que julga nossa vã filosofia, diretores e até um reboque não
conseguiram movê-la nem à base de reza brava. As horas passavam, o clima esquentava, e
nada de o Orixá estabelecer um ponto final em sua greve e inércia. Desesperado, Arlindo
Rodrigues viu seu carro preferido ser deixado, assim como havia ocorrido com os cabelos dos
ritmistas. Mal sabia o carnavalesco que existia uma relação de causalidade entre os dois
abandonos...
E chegou a hora do desfile! “Já raiou o dia/ A Passarela vai se transformar/ Num cenário de
magia/ Lembrando a velha Bahia e o famoso Gantois...”. Todas as arquibancadas dançaram ao
som dos acordes de Tôco e Djalma Crill, levantando-se quando passava a figura perfeita de
Mãe Menininha, sustentada pela mão de degura, a mão de Oxum, o que provocou lágrimas em
toda a pista. Com as alas limitadas de cada lado por ferramentas e contas dos orixás, a Estrela
fez um desfile mostrando no pé o samba puxado por Elza Soares e Ney Vianna, auxiliados
apenas por um cavaquinho e um violão. Desde as folhas e ervas de Ossain, a fecha de Oxóssi
(orixá da Mocidade) passando pelos defumadores simbolizando cada dia da semana, até os
animais empalhados por um entomologista especialmente contratado, praticamente tudo
estava lá. Assim como ocorrera no enredo “Festa do Divino”, foi aclamada aos gritos de “já
ganhou”, dividindo as atenções com uma reinventada Beija-Flor – “Sonhar com rei dá leão” –,
estreia de Joãosinho Trinta em Nilópolis.
Com a virada para 1980, imaginava-se que a Mocidade não ousaria mexer no time que estava
ganhando. Ora, Arlindo não escondia de ninguém que estava feliz com a gestão e o estilo da
Padre Miguel: “Eu frequento muito a escola, sim. E meu relacionamento é o melhor possível. O
meu trabalho deve ser bom, bonito, para ganhar, mas respeitando as características da escola
de samba, das raízes brasileiras e das pessoas, para que elas possam desfilar numa boa, não
apenas em favor de uma exibição puramente minha” (Jornal do Brasil, 04 de março de 1979).
Uma reviravolta no comando da Verde-e-branca (saiu o presidente Osman Pereira Leite,
deixando um vácuo momentâneo de poder), contudo, fez o artista desembarcar em outra
escola de mesma coloração – a Imperatriz Leopoldinense –, localizada em Ramos e, à época,
ainda pequena, cuja maior glória até ali esteve relacionada à escolha para servir de cenário à
novela Bandeira 2 (1972), da Rede Globo de Televisão.