à Ética 20
formulá-las, atingindo assim conhecimentos
que superam os fatos particulares,
em Saúde embora digam respeito a eles.
Isto significa que a observação da realidade
É
com vistas ao conhecimento
tica e conhecimento nos leva a julgamentos acerca desta
própria realidade. É claro que quando
Quando pretendemos situar a ética falamos em julgamentos, nesse sentido,
no contexto das dimensões culturais, queremos dizer apenas que a observação
encontramos de pronto um primeiro problema. nos autoriza a avaliar de forma
Como separá-la de outras manifestações mais ampla e mais geral o comportamento
como, por exemplo, o conhecimento dos fenômenos, o que nos
e a religião? Será possível uma libera do particular e nos abre o vasto
separação tal que a ética se constitua horizonte da legislação da natureza:
como uma instância autônoma da cultura, sabemos não apenas como os fenômenos
claramente definida na sua se comportam, mas também como
especificidade? A relevância da ética nos eles devem se comportar, pois as leis
leva naturalmente a assinalar para gerais valem para todos os fenômenos
ela um campo próprio, a partir do dentro das condições determinadas
qual possamos reconhecer um modo pelos critérios da experiência.
singular de existir, em primeiro lugar É evidente que assim alcançamos
característico do ser humano e, em regras de generalidade e de universalidade
seguida, delimitado com nitidez entre que ultrapassam o mero plano
as dimensões da existência. Podemos dos fatos estritamente considerados.
partir deste pressuposto, mas Atribuímos à natureza um grau de necessidade
quando vamos entender concretamente que nenhuma observação
esta separação e esta particular poderia em si mesma justificar.
especificidade as dificuldades se multiplicam. E quando representamos a natureza
Elas aparecem quando tentamos, desta maneira, entendemos que
por exemplo, fazer a distinção entre possuimos acerca dela um conhecimento
ética e conhecimento. Podemos dizer muito superior àquele que nos
que quando descrevemos o mundo e forneceria a percepção atomizada de
procuramos compreendê-lo efetuamos fatos isolados. Julgamos que o conhecimento
juízos que nos permitem assimilar a progride quando empregamos
verdade dos fatos; para compreender procedimentos intelectuais de ordenação,
estes fatos efetuamos outros juízos, para por meio deles justamente
mais abstratos, acerca da ligação entre inferir a ordem dos fatos.
eles e das razões que sustentam tais Ora, uma das distinções que se
conexões. Conhecer as coisas é costuma fazer para separar conhecimento
descrevê-las e apreender racionalmente e moral é considerar que os
as relações que interligam os fenômenos. juízos que a ciência emite estão na
Dizemos que aí encontram-se ordem do ser e os juízos propriamente
juízos porque se trata de uma atividade morais na ordem do dever ser. Com
que inclui não apenas a mera descrição, isto, se quer dizer que a ciência trata
mas julgamentos acerca da da realidade como ela é, e a moral da
realidade como ela deve ser. A ciência e do todo, a razão da posição de
elaboraria juízos de realidade e a moral cada elemento na articulação geral e
juízos dependentes de o modo pelo qual convergem, na
normatividade. Mas já vimos que a sintonia e na diferença. Não se poderia
ciência atinge justamente os graus dizer a partir daí que inferiríamos,
mais elevados de conhecimento quando ao menos parcialmente, algo como as
apreende as regras de conexão responsáveis normas que governam o real tanto no
pela produção dos fenômenos. sentido do ser quanto no sentido do
Já Aristóteles reconhecia que o dever ser?
saber acerca das coisas inclui necessariamente E, contudo, estaríamos ainda no
o conhecimento das causas plano dos juízos de realidade, no sentido
de seu aparecimento e de seu modo em que os entendemos quando
de ser. E as epistemologias modernas dizemos que a ciência os produz para
enfatizam a constância das relações descrever compreensivamente os seus
causais como um dos mais importantes objetos, articulando as percepções e
requisitos de conhecimento. Remeter sistematizando a experiência. Mas talvez
desta maneira fatos a outros fatos não fiquemos apenas nisto. Por um
para apreender não apenas relações misto de ingenuidade e pretensão,
específicas mas a estrutura dos fenômenos muitas vezes emitimos juízos que qualificam
já é, certamente, avaliar a natureza, a realidade. Dizemos não apenas
se não no sentido de qualificála que as coisas são desta ou daquela
pelo menos na tentativa de compreender maneira, mas também que é bom
na maior generalidade possível que sejam assim, ou que é mau, ou que
a trama tecida pelos fatos. poderiam ser de outra maneira. Talvez,
É preciso lembrar, ainda, que algumas de maneira implícita, isto ocorra sempre,
teorias do conhecimento da sendo impossível olhar as coisas
antiguidade – como a de Aristóteles – sem atribuir a elas um valor, embora a
e da modernidade – como a de Leibniz disciplina da atitude científica nos leve
– incluíam na compreensão desta trama a recalcar este modo de julgamento.
não apenas a eficiência causal da Talvez persista na mentalidade do senso
produção fenomênica como também comum, e naquilo que o cientista
a finalidade a que cada parte está submetida tem de homem comum, algo do
na arquitetônica da totalidade. animismo da relação primitiva com o
Não bastaria entender como os fatos mundo, que fazia com que todas as
se produzem, mas seria preciso compreender coisas aparecessem como propícias ou
a função de cada um no conjunto maléficas, extravasando poderes que
e as razões da ordem estabelecida. interferiam na vida e nas ações humanas.
Embora muitas vezes Conhecer, neste caso, era também
criticada na história das epistemologias saber como aproveitar o caráter benéfico
modernas, a causalidade final e propiciatório ou conjurar o mal
indica que o esforço de conhecimento que as coisas poderiam causar. A ciência
solicita, como que naturalmente, eliminou esta valoração primeiramente
completar-se na formulação pelo conhecimento das causas
21 materiais que regem o comportamento
das indagações relativas ao porquê dos dos seres naturais e, em segundo
fenômenos descritos na estrutura da lugar, estabelecendo leis gerais e necessárias
realidade. E certamente este tipo de que nos permitem prever este
resposta, se fosse possível, permitiria comportamento para, desta forma,
um tipo de conhecimento que não seria dominá-lo. O mundo deixa de ser enigma
somente mais abrangente, mas quando o conhecimento se torna
mais avaliativo, isto é, possibilitaria sinônimo de determinação necessária.
C
julgamentos mais seguros acerca da
totalidade, pois nos faria ver – talvez
com mais clareza – o sentido das partes
ritérios éticos
Quando pela primeira vez se tentou determinada causa? Por que a influência
ligar conhecimento e ética, o problema das emoções nestes casos pode
que surgiu foi justamente o da ser determinante? – e os advogados sabem
determinação necessária, isto é, a dificuldade muito bem utilizar isto, já que se
de estabelecer parâmetros de exercitam em influir nas emoções daqueles
necessidade para as ações e, principalmente, que vão dar o veredicto. É porque
para os critérios pelos quais nestes assuntos não é possível a
conferimos às ações este ou aquele demonstração, ao menos no mesmo
valor. É possível estabelecer condições sentido em que ela pode ser efetuada
gerais e necessárias a partir das quais nas ciências teóricas. O bem e o mal
possamos determinar o valor ético das não aparecem com a mesma imediatez
ações? Aristóteles pensava que não. e o mesmo caráter coercitivo da verdade
Aquele que julga eticamente não o faz e do erro; não chego ao que é
a partir das mesmas condições daquele certo em moral da mesma forma que
que conhece os objetos físicos. Aquele chego à conclusão de um teorema.
que age moralmente não o faz da mesma E no entanto existe o Bem, assim
maneira pela qual avalia a causalidade como existe a Verdade. São critérios
necessariamente presente na ligação que em última instância servem de princípios
entre os fenômenos. Isto ocorre para tudo que é bom e para tudo
porque o universo das ações humanas que é verdadeiro. Mas não se passa do
não é regido pela necessidade. O conhecimento Bem ao bom da mesma forma que se
eventualmente presente na passa da Verdade ao verdadeiro. Melhor
22 dizendo: não encontramos o Bem
esfera da moral pode, portanto, não ser na contingência dos fatos humanos da
também necessário. É conhecida a interrogação mesma forma que encontramos a Verdade
socrática acerca da possibilidade refletida na demonstração das
de se ensinar a virtude. Ensinar conexões necessárias da ciência. Entre
alguma coisa supõe saber com o que é necessário e o que é contingente
certeza o que esta coisa é para poder a diferença está na impossibilidade
transmiti-la com clareza àquele que vai de demonstração; daí a aparente
aprender. O homem de bem sabe com relatividade das coisas humanas e
absoluta segurança teórica o que é o do que se pode conhecer acerca delas.
Bem? A prática do bem supõe este A Política, assim como a Ética,
saber? É possível saber, ensinar e participa deste caráter. Mas isto não
aprender em moral como sabemos, significa um relativismo total, que resultaria
aprendemos e ensinamos geometria? na impossibilidade de critérios
A resposta é não, e a razão disto que não fossem puramente circunstanciais
é a diferença que existe entre conhecimento e subjetivos. A dificuldade da
teórico e conhecimento prático. Ética consiste justamente em introduzir
O conhecimento teórico se constitui normatividade na contingência,
como saber acerca do que é necessário. pois está fora de dúvida que quem age
O conhecimento prático se constitui moralmente o faz a partir de normas
como saber acerca do que é contingente. que não são apenas relativas à pessoa
O saber das coisas humanas e ao momento.
pertence a este segundo tipo. Daí as Dizer que as coisas humanas são
dificuldades e as oscilações que caracterizam relativas é o mesmo que compará-las
os juízos morais. Daí a interferência, a um absoluto que as transcende. Este
nestes juízos, de fatores que absoluto nunca se fará presente no
no conhecimento teórico têm pouca ou universo das ações, de maneira direta,
nenhuma influência. Por que nos julgamentos mas constituirá sempre uma referência,
que envolvem decisões morais pois agir bem significa realizar
as pessoas são sensíveis à persuasão o bem no plano da contingência, isto
derivada da eloqüência e da habilidade é, agir em vista de um Bem que transcende
retórica daquele que defende a desordem humana. O fato de
que não existem regras teóricas para de que se reveste um sinal
isto não afasta inteiramente a ação do desta singularidade complexa. Esta
conhecimento do Bem. Podemos dizer diferença de objeto e de procedimento
23 enfatiza de alguma maneira as propriedades
que quem age moralmente conhece de singulares do universo humano,
certa maneira o Bem, pois o traduz, mostrando que ele é diferente do mundo
por assim dizer, na particularidade de natural, muito embora o homem
sua conduta. A extraordinária dificuldade esteja, por muitos outros aspectos, inserido
que a Ética tem que superar é o na natureza. O que distingue
reconhecimento das mediações que se assim tão fortemente o universo humano
interpõem entre o Bem absoluto e as do mundo natural é o valor, e por
ações particulares e contingentes. Nesta isto a Ética é o domínio dos juízos de
mediação está contido o valor.
discernimento, que é a distinção entre Isto nos leva ao problema da origem
o bem e o mal sem qualquer regra teórica e da especificidade destes juízos.
de identificação. Pois as ações Em geral, pode-se dizer que um juízo é
humanas acontecem sempre numa sempre a subordinação de um particular
confluência complexa de circunstâncias, a um universal. Quando dizemos
no meio das quais é preciso que a água é uma substância, estamos
discernir o modo correto de agir. É sábio referindo um elemento particular do
aquele que possui este mundo físico a uma categoria que,
discernimento. Trata-se de um saber enquanto conceito geral, subordina o
bem diferente do saber teórico, pois particular e o define. O mesmo se poderia
consiste essencialmente em discernir o também dizer da subordinação
verdadeiro em meio à contingência, da espécie ao gênero (o cavalo é um
que não é a ordem ideal das conexões animal). Tais relações servem para ordenar
necessárias da ciência. o real e agrupar os objetos particulares,
ressaltando a estrutura e o
T eoria e prática
teor sistemático do conhecimento. É
possível notar que os conceitos gerais
subordinam particulares empíricos,
É a este saber que denominamos
prático. Não significa que ele seja uma mas relações do mesmo tipo podem ser
aplicação da teoria, mas sim um outro estabelecidas entre entes abstratos, na
saber que versa sobre um objeto matemática e na lógica, como quando
específico: a ação. Esta separação entre dizemos que seis é um número par
o teórico e o prático pode dar a ou que a substância é uma categoria.
entender que a Ética está irremediavelmente 24
relegada a um grau menor de A questão é saber se há um procedimento
certeza, sendo portanto um tipo de saber rigorosamente paralelo quando
inferior. Na verdade, esta distinção dizemos que Pedro é generoso ou que
faz aparecer a autonomia e a a pobreza é uma forma de opressão,
especificidade da Ética. Pois justamente ou que a mentira é um vício.
mostra que ela não é uma teoria de Para que um juízo seja coerente,
segundo grau, uma ciência incompleta deve haver concordância entre os termos
ou um tipo de certeza flutuante. Trata- empregados. Esta concordância
se de um saber de outra natureza, aparece na visão da compatibilidade
com um perfil absolutamente próprio. entre o sujeito e o predicado, para tomarmos
Também a praxis humana ganha, assim, o juízo na sua forma mais simples.
um estatuto específico, já que é Assim, quando dizemos que a
definida não apenas em relação aos água é uma substância ou que o cavalo
objetos da ciência teórica, como alguma é um animal, a relação de subordinação
coisa menor ou mais pobre, mas está corretamente estabelecida
como um domínio singular, afetado por porque, nestes casos, há uma
extrema complexidade, sendo a contingência relação necessária entre os termos, o
que faz com que o juízo exprima um predicado. Suponhamos que Pedro fosse
conhecimento. Aquele elemento que um ser estritamente determinado a
liga cavalo a animal ou água à substância agir generosamente, da mesma forma
é de tal ordem que não permite que os corpos pesados estão determinados
a afirmação contrária como expressão a cair se algo não os sustenta.
de conhecimento. É fácil notar que esta Não haveria, neste caso, moralidade na
relação de necessidade não existe entre generosidade de Pedro – moralidade
os termos da proposição Pedro é supõe vontade e escolha.
generoso. Certamente, podemos dizer Mas supõe, então, da mesma
que quando a formulamos exprimimos maneira, que possamos apontar o ser
que o indivíduo Pedro pode ser incluído que é capaz de escolher a partir da
no conjunto dos indivíduos generosos; vontade, isto é, o ser não submetido
mas isto não corresponde exatamente à necessidade. A tendência a responder
à inclusão do cavalo no conjunto imediatamente que os seres humanos
dos animais. Pois o que faz com são dotados de tal capacidade
que Pedro seja generoso é diverso daquilo não é, de maneira alguma,
que faz com que o cavalo seja tão óbvia quanto se poderia pensar.
um animal. Não podemos entender 25
que cavalo não seja animal, mas podemos O homem não é um ser que se defina
entender que Pedro eventualmente apenas por um aspecto. A expressão
fosse mesquinho, ao invés de animal racional, a mais antiga
generoso. Isto significa que não é necessário definição teórica do homem, mostra
que Pedro seja generoso, da por si mesma a dualidade de aspectos.
mesma forma que é necessário que o Enquanto animal, o homem tem
cavalo seja um animal. algo que o vincula aos seres puramente
O que liga Pedro à generosidade, naturais. Enquanto racional, tem
não sendo da ordem da necessidade, algo que o distingue. Se permanecemos
impediria que a afirmação da generosidade no âmbito da sensação e da percepção,
de Pedro tivesse um caráter estamos falando de modalidades
teórico. O que faz com que Pedro seja de representação que, embora
generoso passa por uma incrível complexidade eventualmente mais aperfeiçoadas
de fatores, entre os quais no homem, não diferem essencialmente
está um que é particularmente importante do que acontece no caso dos
para avaliarmos o significado do animais, que são capazes não apenas
que atribuímos a Pedro. Este fator é a de sentir e perceber como também
vontade. Ainda que esta vontade esteja de estabelecer relações de consecução,
mesclada com mil outros fatores, tais como o cão que foge quando
como a educação e a influência do seu dono pega um bastão, se acaso
meio, os interesses de Pedro e o contexto aconteceu de já ter sido espancado.
das suas ações, há sempre um No entanto, apenas o homem
nível em que a atribuição do predicado pode emitir juízos, isto é, relacionar
moral supõe que o sujeito quis possuílo, um caso particular com uma idéia
decidiu algo a respeito de si, optou geral, por definição não imediatamente
por uma determinada maneira de agir presente na situação empírica
e de posicionar-se diante de si e dos dada. A origem destas idéias gerais,
outros. Ainda que a vontade esteja mesmo no que se refere ao mundo
mais ou menos determinada por múltiplos natural, é problema que foi resolvido
fatores, ela se exerce, e o sujeito de diversas formas na história do pensamento.
projeta-se diante de si mesmo de uma Mesmo assim não há como
certa maneira, a qual depende das escolhas explicar o juízo sem este tipo de
que faz. É este elemento, não vinculação. A questão que se coloca
submetido a uma necessidade estrita, no caso da Ética é: a que espécie de
que confere à generosidade de Pedro generalidade vinculamos o particular
o caráter moral atribuído a este quando formulamos juízos morais?
Como já sabemos que na Ética formulamos mesmo que atinja alturas elevadas
juízos de valor, responderíamos de contemplação da verdade,
que é a valores que remetemos como aconteceu com alguns filósofos
os termos dos juízos morais. gregos, não permite a posse e a fruição
E dizendo isto abrimos uma outra do objeto mais desejado em termos de
questão, que é a da generalidade um saber absoluto, que seria Deus. Pelo
dos valores e do fundamento desta contrário, a aceitação da fé e do mistério
universalidade. da mediação de Cristo na relação
com Deus é que possibilitaria possuir
A questão dos fundamentos
a verdade. A hierarquia que o Cristianismo
estabelece entre a alma e o
mundo redunda numa separação das
da ética
Assim como os juízos acerca de duas instâncias, o que não ocorria
fatos, os juízos de valor também se remetem entre os gregos, para quem o homem
à generalidade. Quando dizemos e sua alma eram parte do mundo. A
que Pedro é generoso, e ainda o separação cristã, propondo o desprezo
admiramos por isto, o que queremos pelas coisas do mundo, concebe a
dizer é que Pedro adota, como diretriz alma como peregrina, isto é, como não
de suas ações, um valor dotado de superioridade integrada ao cosmos no qual ela provisoriamente
em relação aos indivíduos se encontra, já que o seu
particulares. Ainda mais: assim fazendo, destino deve se realizar em outra dimensão.
Pedro se coloca como um exemplo O homem estaria sozinho na
da possibilidade de as ações humanas imensidão do universo, não fôra o contato
particulares encarnarem valores gerais com Deus, e por isto Deus deve
que as transcendem. Quando julgamos ser o único objeto de aspiração. Isto
Pedro por sua generosidade, estamos significa que nada, a não ser Deus,
implicitamente entendendo que o determina como a alma deve agir no
mundo seria melhor se todos fossem itinerário de purificação moral. Determinar-
como ele. Pois se todos os valores remetem se por qualquer objeto sensível
ao Bem, aquele cujas ações ou natural é renunciar à condição sobrenatural
encarnam algum valor está contribuindo que constitui a natureza da
para a realização do Bem no alma. Portanto, somente valores sobrenaturais
mundo humano. Pedro seria aquele são dignos de orientar o homem;
sábio, de que se falou antes, que sabe tomar qualquer outro objeto como
como situar-se no mundo, discernindo valor ou como critério de ação é rebaixar
entre o bem e o mal, e escolhendo a alma. Com isto, a solidão e o
a partir deste conhecimento prático estranhamento da alma num mundo a
– que seria algo como um senso que ela não pertence tornam-se ocasião
moral. O sentido da apreensão de para a afirmação da autonomia, isto é,
valores é um saber prático, que a liberdade da alma perante as coisas.
muitos filósofos chamaram de sabedoria. Assim como a vontade, a autonomia
Não se adquire a sabedoria da constitui também noção central
mesma forma como se adquire o saber na Ética. A moral propriamente cristã
teórico. Por vezes se concebeu que vê esta autonomia da vontade como
as duas coisas se opõem. No início do subordinação a Deus, entendida como
Cristianismo, São Paulo opõe a ciência livre aceitação da condição de criatura
mundana, fruto do orgulho da razão, e dos desígnios de Deus. A
à sabedoria da cruz, fruto da humildade. modernidade vai entender a autonomia
Por isto, a sabedoria cristã como autonomia da razão, e isto
aparece como loucura para os nãocristãos. certamente repercutirá nas teorias éticas.
Mesmo assumindo a finitude e as
Santo Agostinho, em perspec26
limitações humanas, Descartes, no século
tiva semelhante, difere ciência de sapiência
XVII, não admitirá como critério
para mostrar que a atitude teórica,
de verdade em qualquer âmbito senão
a demonstração racional. A autonomia humanas e na expansão da técnica
da razão consuma assim a sua separação como extensão da ciência, que deve
da natureza. Esta é menos a totalidade realizar praticamente o domínio do
na qual o homem está inserido homem sobre o mundo. A prerrogativa
e muito mais algo que ele deve dominar do sujeito intelectual que desta maneira
para seu proveito através do se estabelece contribuirá para
poder que lhe confere o pensamento, obscurecer a especificidade da praxis,
traduzido nos procedimentos racionais já que esta deve forçosamente se submeter
da ciência e da técnica. Por isto, a noção aos critérios da racionalidade
cristã de sabedoria é modificada: técnica. De modo que a predominância
considera-se agora que sabedoria é a de uma perspectiva em princípio
perfeita integração da teoria e da prática humanista, posto que afirmadora da
com a finalidade de conseguir para autonomia da razão, traz consigo esta
o homem a felicidade, isto é, o gozo ambigüidade, ou pelo menos esta
dos bens que podem advir do saber e questão: terá a racionalidade técnica
do domínio racional da natureza. Esta alcance suficiente para cobrir todos os
perfeita integração, numa perpectiva aspectos da vida humana, sobretudo
racionalista, se transforma rapidamente os aspectos éticos? Submeter a totalidade
numa subordinação da prática à do mundo e a totalidade da vida
teoria, na medida em que se concebe a tais critérios não implicaria em reduzir
uma continuidade entre a ciência e a o mundo humano à perspectiva
tecnologia. Neste império da razão, a decorrente dos princípios metafísicos
ética só pode ser concebida a partir e metódicos de uma razão auto-suficiente
de uma perspectiva teórica e mas talvez confinada a um domínio
racionalista. Este é o motivo pelo qual restrito?
a moral aparece em Descartes como A afirmação da autonomia racional
um ramo do saber que depende, para constitui o que ficou conhecido na
a sua constituição, das ciências mais história por Iluminismo. Kant o define
fundamentais que a precederiam, como a maioridade do gênero humano,
como a metafísica, a física e a matemática. isto é, a capacidade de utilização plena
De direito não haveria diferença, da razão, sem a submissão a dogmas
a não ser em termos de grau ou a autoridades; portanto, o exercício
27 maduro da liberdade. Mas como definir
hierárquico, entre a moral e as outras a liberdade? Se analisarmos o que ocorre
ciências. na ciência, verificaremos que a
Assim se perde aquela diferença racionalidade da experiência consiste
entre o teórico e o prático, estabelecida justamente em compreender a necessidade
por Aristóteles. O prático passa a ser que, a partir de princípios lógicos
concebido como o domínio de aplicação do entendimento, governa a natureza.
do teórico, maneira como ainda Isto significa que no âmbito da experiência
hoje o entendemos. As conseqüências de conhecimento, que é o domínio
desta mudança são de largo alcance. da razão teórica, não se pode falar
O que aí se afirma é a unidade de uma em liberdade pois tudo a que temos
racionalidade que doravante deve governar acesso é a uma conexão de fenômenos
todas as instâncias do mundo logicamente sistematizada, mas caracterizada
humano. Esta racionalidade tem um justamente pela inseparabilidade
paradigma e uma finalidade. O de causa e efeito, condição e
paradigma é a exatidão do saber matemático, condicionado. Sempre haverá, na ordem
que a razão clássica considera da experiência, que é a ordem da teoria,
como critério por excelência de fenômenos condicionados, por mais longe
conhecimento e de obtenção de certeza. que formos na cadeia dos eventos
A finalidade é o domínio racional naturais. Isto faz parte do determinismo
que se traduzirá concretamente na subordinação da natureza e é o que possibilita a ciência,
da natureza às necessidades no rigor das suas explicações. Assim,
a liberdade terá que ser procurada critério o faz encontrá-lo somente na
fora do campo da experiência e da razão esfera do formal. Assim, o que Kant
teórica. Kant institui, então, o domínio chama de prático não corresponde à
da razão prática em que é possível esfera da contingência, mas a um mundo
pensar a liberdade e reivindicá-la para inteligível no qual a pura
o sujeito moral, mas nunca para um racionalidade da norma universal garante
objeto natural. Esta separação permite a moralidade do ato. Por isto o
que se fale como que de dois mundos: próprio Kant nos diz que, dentro de tais
um em que as coisas estão estritamente parâmetros, jamais houve um só ato
determinadas, pois não existe efeito sem moral praticado pela humanidade.
causa; outro em que o sujeito moral, no Porém isto não o impede de formular
plano das decisões éticas que nada tem o que o ato moral deve ser, na coerência
a ver com o plano dos eventos empíricos, lógica que teria de caracterizá-lo,
28 independentemente das condições concretas
pode escolher e optar, atuando assim de realização.
F
como causa livre, isto é, como aquele
tipo de causa que nunca se encontra no
universo dos fenômenos. Com isto as
undamento e experiência
ações humanas podem ser remetidas à moral
liberdade do sujeito, quer dizer, a algo O que sobretudo impressiona nesta
que não atua determinadamente, mas concepção formalista da moral é a
que pode iniciar absolutamente uma série separação drástica entre os planos do
de ações. ser e o do dever ser. Não se trata apenas
A esta liberdade corresponde a de separar o conhecimento teórico
autonomia de que deve ser dotado o ou científico da moral, mas de separar
sujeito nas suas decisões morais, autonomia todos os aspectos da vida concreta
que para Kant deve ser absoluta, da realização ética. Independente
ou seja, nenhum motivo de qualquer da apreciação que possamos fazer
ordem pode interferir na decisão da teoria kantiana, o importante é perguntar
do sujeito, sob pena de contaminar a o que isto significa no processo
vontade com elementos que a tornariam histórico da civilização moderna. No
dependente de outra coisa que não limiar da contemporaneidade, numa
ela mesma. Mas, então, qual o critério época em que a ciência calcada no
para a decisão moral, se absolutamente modelo newtoniano alcança a plenitude
nada pode interferir? O critério é a forma de suas possibilidades, o homem é
da universalidade que deve orientar separado como que em dois sujeitos:
a ação. Somente a forma atinge a o teórico, que realiza o ideal de certeza
pureza que o ato moral deve revestir. absoluta no interior dos limites do
Qualquer conteúdo, por mais geral que conhecimento científico, e o moral, que
seja, constituirá uma motivação para compreender-se na esfera de sua
extrínseca e comprometerá a autonomia liberdade é obrigado a colocar esta liberdade
do ato moral. Quando estamos numa altura transcendental
diante de uma decisão moral devemos em que ela se situa distante do plano
perguntar: o que ocorreria se esta ação da experiência. Talvez possamos ver
fosse adotada universalmente? Devemos nesta solução a que chega a filosofia
agir como se o critério de nossa crítica uma espécie de consolidação
ação devesse estender-se universalmente. 29
Qualquer ato que não seja susceptível do caminho tomado pela modernidade.
de universalização se O que Kant percebe é que, na
autocontradiz em termos morais. O que continuidade do teor unitário da
se percebe é o esforço de Kant para racionalidade, instituído por Descartes,
encontrar o critério universal que deveria não seria possível dar conta da
pautar o juízo moral. A moral pois a racionalidade científica
radicalidade com que ele concebe este
não atinge o plano dos requisitos do tudo isto tem causas e explicações que
ato moral, autonomia e liberdade. Isto são fornecidas pela razão e mesmo pela
o levou a conceber uma outra esfera fé. Há uma ordem previamente dada.
de racionalidade na qual os critérios Quando me insiro nela de maneira
de determinação teórica não teriam harmônica, sintonizo com o universo
vigência. E com isto separou o conhecimento e com os seus princípios. Quando se
da ação, ao menos naquilo torna mais difícil descobrir esta origem
que a ação comporta de decisão moral. e esta finalidade, como em Kant,
Podemos medir o alcance deste tenho ainda o recurso da forma, que
acontecimento lembrando que, no caso é também um princípio a que posso
do saber prático preconizado por tentar conformar minhas ações.
Aristóteles, o sujeito discernia no seio Quando não me ponho em sintonia
da contingência o meio de realizar a com a totalidade, não é de todo minha
ação que guardasse alguma correspondência culpa, é antes algo derivado da
com o Bem absoluto. Em Kant finitude que afeta irremediavelmente
este é um princípio formal, que a razão o ser humano. Enfim, há essência,
pensa de maneira isolada do mundo que posso realizar de maneira mais
concreto, que vai decidir acerca da ou menos completa, mas que constitui
moralidade, isto é , da conformidade referência prévia à minha existência.
da ação à moral. Isto significa a tentativa Mesmo quando sinto o universo
de vincular a universalidade formal imenso e estranho, e Deus
à ação. Ora, o mundo da contingência afastado, posso contar ainda com
se distingue de um universo a esperança.
logicamente necessário como o da Mas quando não há mais Deus
ciência exatamente devido à impossibilidade nem valores transcendentes, quando
desta vinculação. Por isto a não há um plano a realizar, que sentido
moralidade kantiana acaba sendo atribuir às contradições, à desordem
muito mais um ideal de que devemos dentro e fora do homem, e à
nos aproximar do que um critério de 30
discernimento para a experiência moral miséria histórica? O Existencialismo
concreta. coloca da maneira mais crua a questão
A época contemporânea sentiu da imanência, isto é, nada existe
mais de perto o impacto da experiência acima do humano com que o homem
moral concreta. Talvez a dramaticidade possa contar para ordenar o seu mundo
da história deste século tenha e para orientar as suas ações. É
manifestado de forma mais intensa apenas diante de si mesmo que ele
certas contradições entre elementos da deverá construir seus critérios e suas
ação moral, com que antes as teorias justificações. A liberdade não é uma
trabalhavam de maneira pacífica. O forma de Deus testar o homem, é a
Existencialismo é seguramente a corrente forma de o homem existir, é o dado
de pensamento em que estes problemas primeiro, não há critérios anteriores de
apareceram de forma mais como utilizá-la, ela se faz na continuidade
aguda. Pois nele, pela primeira vez, a dos atos que a exprimem, cada
liberdade é vista como o exercício doloroso vez que o homem se projeta na construção
da constante invenção de si de si mesmo. A liberdade é um
mesma. Nas teorias clássicas, a liberdade fardo, como foi o destino para o homem
aparece como uma sábia conformação antigo. É isto o que significa dizer
à necessidade. Existe um Deus, que a existência vem antes da essência
existe um mundo transcendente de e que o homem está condenado
valores, existe uma teleologia histórica, a ser livre. A história da humanidade
existem referências que dão sentido e a história de minha vida me colocam
ao mundo e aos homens. Claro, diante de opções. Como enfrentálas
existe a insensatez, o erro, o pecado, a sem critérios absolutos de
desordem, a contingência, enfim, mas discernimento e de escolha? Tenho de
inventar, para cada ato, o valor a partir aparece, assim, de forma mais
do qual eu o escolho, não encontro nítida, pois é a perspectiva histórico-
este valor, ainda que outro mo apresente, sociológica que procura dar conta
tenho que torná-lo meu. Cada do estabelecimento e das mudanças
um é aquilo que se torna, aquilo que dos critérios morais. Existe uma
faz de si em cada momento da existência. racionalidade na prescrição dos valores,
Uma ética com um único critério, mas ela está a serviço da coesão
que se confunde com um dado social. Trata-se de uma figura da
irredutível de realidade: a liberdade. racionalidade técnica que se estrutura
Assumi-la é lucidez e autenticidade; 31
negá-la é má-fé. por parâmetros exclusivamente utilitários.
O Existencialismo está na vertente
das éticas que partem de uma profunda
meditação acerca da situação
humana, tal como a reflexão a apresenta.
É tica e progresso da razão
A modernidade se caracteriza pela
Procura então uma maneira de hegemonia da razão, o que se traduz
proporcionar o encontro do homem no triunfo do seu mais eminente produto,
consigo próprio e com a história a partir a ciência e os seus prolongamentos
da consciência, entendida agora não técnicos. Na verdade, esta
mais como essência, mas como projeto. hegemonia nunca deixou de ser contestada,
Mas há uma outra vertente que faz quase desde o seu aparecimento.
da exterioridade a matriz do pensamento Mas o século XX assiste a uma
ético, e nesta linha estão as éticas crítica procedente de fundamentos historicamente
utilitaristas. Partem, por exemplo, de concretos, que derivam de
uma concepção da evolução dos conceitos uma reflexão acerca da relação entre
éticos para estabelecer a origem meios e fins nas realizações da razão.
prática e utilitária destes conceitos. O Trata-se de um problema ético, mas de
bom teria sido, na origem, o útil, isto certa forma colocado de maneira mais
é, a ação benéfica para o indivíduo e, abrangente. O que se questiona é se
principalmente, para o grupo. Má seria as promessas de emancipação contidas
a ação prejudicial. Com o passar no ideário iluminista foram cumpridas
do tempo e com o progresso da civilização ou estão efetivamente se realizando.
esta utilidade imediata deixou E um olhar crítico sobre a história
de aparecer claramente como critério, da modernidade mostra que não.
mas se manteve a distinção, que foi aos A expectativa de que haveria a união
poucos tornada abstrata e resultou nos entre a teoria e a praxis, que deveria
valores Bem e Mal. Esta posição procura corresponder a uma proporcionalidade
buscar a origem dos valores por entre o progresso científico-técnico e
meio de uma reflexão histórica e psicológica o aumento da felicidade, não se confirmou.
acerca da evolução da humanidade, Isto pode ser constatado de
e utiliza critérios de uma lógica várias maneiras no plano do desenvolvimento
imanente ao desenvolvimento das histórico. O homem da
necessidades humanas. Em última instância, modernidade não mais se encontra
seria a sobrevivência do grupo submetido a injunções que caracterizavam,
a origem dos valores, que são então por exemplo, a ligação do homem
estabelecidos para manter obrigações medieval com as instâncias do
morais que assegurem a sociabilidade, sagrado, concretamente representadas
a cooperação e a coesão necessárias pela imposição dos dogmas e da autoridade
à estabilidade da sociedade. Nesta religiosa. Tampouco se encontra
vertente, a liberdade importa menos submetido às forças naturais, que
do que a adaptação do indivíduo a a ciência explicou e dominou. Mas o
esquemas de conduta que ele já encontra progresso da razão gerou novas formas
prontos e aos quais é coagido a de dominação ideológica, que se manifestam
aceitar. A relatividade cultural dos valores nos campos social, político, econômico
e que somente são possíveis num do progresso técnico como se
mundo em que domina a produção, essencialmente este fosse uma finalidade em si mesmo.
vinculada ao aperfeiçoamento A racionalização do social, do
dos meios técnicos de transformação político, do econômico e até da instância
da natureza. O que se questiona cultural significa a administração
é se, num mundo governado pela razão de todos os aspectos da vida através
liberada das amarras que a prendiam em de parâmetros de objetividade técnica,
épocas passadas, o homem pode viver o que se traduz principalmente na
efetivamente de maneira emancipada, hegemonia da tecnocracia.
isto é, realizar a autonomia enquanto O que evidencia a profundidade da
condição da vida ética. A profunda reflexão crise que afeta o mundo contemporâneo
de Marx a propósito das relações é que, do ponto de vista ético, a
entre racionalidade e ideologia serviu, tecnocracia é uma contradição em termos.
pelo menos, para estabelecer sérias dúvidas A técnica se caracteriza como a
acerca da vinculação iluminista produção de meios. Se ela mesma coordena
entre progresso e liberdade. a aplicação dos meios às finalidades,
O que se nota é que a emancipação esta relação acaba se estabelecendo
não se realizou porque as exigências no interior da própria técnica. Esta é
do progresso técnico fizeram com a razão pela qual a planificação
que as instâncias de controle em todos tecnocrática não produz efeitos fora do
os aspectos da vida se tornassem próprio âmbito técnico. Vistas as coisas
autônomas, o que trouxe como conseqüência no limite, o que caracteriza uma tal cultura
a submissão do indivíduo a é a recusa da ética. Vivemos num
tais mecanismos num mundo totalmente mundo técnica e administrativamente ordenado,
administrado. Tais instâncias de controle de modo unilateral, pela
não pesam sobre o indivíduo alternância entre progresso técnico e satisfação
como a fatalidade das forças naturais de necessidades criadas na própria
ou a autoridade eclesiástica. Elas foram esfera da produção. Nesse sentido,
estabelecidas como mecanismos o consumo não é a finalidade da produção,
racionais absolutamente necessários mas a sua necessária contrapartida
num mundo regido pelo progresso técnico. tecnológica. O que caracteriza a situação
Isto significa que foram presente e torna difícil a busca de
introjetadas na consciência do homem soluções é que a crise da ética provém
moderno como parâmetros naturais de de um desdobramento de atributos e
relacionamento com os outros e com conseqüências inerentes à própria
o mundo. Esta autonomização dos critérios racionalidade técnica e ao progresso científico
de racionalidade provocou uma e tecnológico ocorrido a partir
inversão entre os meios e os fins: o que dela. Por isto, para aqueles que consideram
redundou na dificuldade de se a inevitabilidade dos rumos da história
dimensionar, no mundo contemporâneo, da razão na modernidade, a situação
a capacidade de discernir os fins que estamos vivendo deve ser aceita
32 como conseqüência necessária, mesmo
à possibilidade de mobilizar os meios. porque seria insensato pensar em
Nunca se dispôs de tantos meios, e soluções que representassem retrocesso
nunca eles estiveram tão distanciados em relação ao já conquistado pela ciência
dos fins a que deveriam servir. Ora, estabelecer moderna. A dependência da civilização
a relação entre meios e fins em relação aos produtos da ciência
é problema ético. A característica da e da técnica afasta do horizonte histórico
contemporaneidade é a incapacidade este tipo de hipótese.
C
de estabelecer esta relação pensando
o prático, ou seja, o universo da realização
humana, como finalidade do
rise da razão e ética
progresso técnico. O que se observa, aplicadas
então, é a constante reposição das condições O surgimento das éticas aplicadas,
entre as quais está a ética da saúde, responde do pesquisador e do profissional, principalmente
a uma dupla necessidade: de um quando os fatos indicam
lado, tenta-se diminuir a distância que que a ausência de preocupação ética
se abriu, na modernidade, entre ética e ocasiona a transgressão das fronteiras
conhecimento; de outro, procura-se instrumentos que separam o humano do inumano.
para recolocar questões pertinentes Foi devido a razões como essas
à relação entre ciência e valor, que a Bioética surgiu a partir da pressão
relação esgarçada por conjunturas históricas de fatos históricos, reveladores de
sobretudo contemporâneas, que práticas de pesquisa das quais estava
contribuíram para o aparecimento de ausente qualquer parâmetro de consideração
dúvidas profundas acerca do significado da dignidade do ser humano.
e alcance do progresso científico. Após a Segunda Guerra tomou-se conhecimento
Há nisto algo como uma de práticas experimentais
constatação implícita de que a em seres humanos, conduzidas sob o
hegemonia da racionalidade técnica já nazismo por médicos e cientistas, que
não permite que o pensamento acerca ultrapassavam qualquer expectativa
da vida prática, que os antigos denominavam imaginável de degradação. A primeira
discernimento, realize-se numa manifestação de caráter mais sistemático
instância autônoma, gerando parâmetros e normativo a respeito do assunto
de conduta tais que resultassem consta do Código de Nuremberg, que
33 estabelece regras a serem observadas
numa manutenção da densidade do quanto à experimentação com seres
espaço público, isto é, o plano das relações humanos. Dentre os preceitos formulados
sociais e da ação política. A destacam-se: a necessidade de
esfera da vida prática esvaziou-se na consentimento daqueles que serão submetidos
medida em que a liberdade, nas sociedades ao experimento; o consentimento
capitalistas modernas, passou deve ser dado livremente, por
a ser considerada simples possibilidade pessoas que estejam em plena capacidade
de decidir individualmente sobre de decisão e às quais devem ser
assuntos privados. Mas as causas que explicadas com absoluta clareza todas
contribuíram para isto também suscitaram as condições do experimento, quais sejam,
um tipo de reação que consiste natureza, duração, objetivos, métodos,
em tentativas de adaptar a reflexão ética riscos, efeitos e inconvenientes.
à diversidade dos domínios das especializações. Não se deve optar por experimentos
É claro que o pano de em seres humanos quando houver outros
fundo destas tentativas é uma reflexão procedimentos compatíveis com os
mais abrangente sobre a relação entre resultados esperados. Os experimentos
ciência e valor; mas a impossibilidade em seres humanos, quando absolutamente
de levar a cabo esta reflexão na sua essenciais, devem ser precedidos
generalidade, bem como a urgência de experiências com animais, de
histórica de restabelecer pelo menos modo a prover o pesquisador de um
alguma parcela da dimensão ética do razoável conhecimento acerca do problema
conhecimento, levaram à constituição estudado. Deve-se reduzir ao mínimo
de campos delimitados de reflexão, os incômodos decorridos do experimento,
sobretudo a partir de áreas que se e este não deve ser conduzido
mostraram especialmente problemáticas. se houver risco razoável de dano
Não se pode deixar de dizer que, grave e permanente. O paciente e o
no fundo, trata-se de uma subordinação sujeito de pesquisa humana devem ser
da ética ao processo de especialização protegidos por meio de cuidados especiais,
e de fragmentação do saber. A sob a responsabilidade do pesquisador,
outra face desta atitude nos mostra, no que deve suspender de imediato
entanto, um esforço para recompor, os procedimentos se houver situação
dentro de certos limites, o interesse indicadora de risco grave. O sujeito
ético que deve fazer parte da atuação do experimento deve poder retirar-
se dele a qualquer momento, por grande escala, organizar os meios racionais,
34 isto é, administrativos e científicos
livre decisão. Os riscos devem ser proporcionais para que o extermínio seja eficiente, aplicar
aos benefícios para o indivíduo tais métodos de forma sistemática
e para a sociedade. e calculada, utilizar pessoas como cobaias,
O que estes preceitos indicam é tudo isto está em continuidade
um esforço para estabelecer uma relação com o predomínio da racionalidade técnica
adequada entre meios e fins. Supõe- desde que esta seja concebida como
se que há uma medida humana absolutamente hegemônica, quer dizer,
para avaliar-se os custos do progresso sem qualquer parâmetro externo com o
científico, e isto, por sua vez, pressupõe qual tenha de se confrontar. No contexto
que o destinatário deste progresso de tal situação não há incoerência no
é o homem, o que torna contraditório fato de que seres humanos sejam vistos
que ele seja visto única e exclusivamente como simples cobaias, mormente se se
como meio. Um dos preceitos fundamentais trata de um determinado grupo que se
da ética kantiana diz que quer excluir da categoria da humanidade.
nenhum ser humano será visto como Certamente estamos, neste caso, diante
meio para a obtenção de qualquer finalidade, de uma anomalia, caracterizada
porque a dignidade humana pela situação de barbárie a que os indivíduos
impõe que o homem seja considerado são conduzidos sob um regime
somente como fim. Nesse sentido totalitário. A tendência é recuar ante o
a Declaração de Helsinque é bem horror, mas considerar que foi apenas
mais explícita, mormente na sua segunda um “episódio”, terrivelmente incompreensível,
formulação, ao dizer claramente na escalada histórica em que
que “os interesses do indivíduo devem afinal predomina o progresso da civilização.
prevalecer sobre os interesses da ciência Mas é possível pensar, também,
e da sociedade”. Uma maneira de que os totalitarismos, com tudo o que
compatibilizar esta hierarquia com a trazem de violência e desumanidade, não
necessidade de experiências com seres são interregnos malignos que uma compreensão
humanos é uma avaliação cuidadosa abrangente poderia ajustar à
da relação entre riscos e benefícios, totalidade da história. São, em grande
bem como uma antecipação parte, conseqüências de virtualidades regressivas
criteriosa dos possíveis efeitos resultantes. que o progresso traz entranhadas
Tudo isto decorre de uma concepção em seu percurso.
básica: há direitos humanos, que Esta visão, que pode parecer pessimista,
se situam acima de qualquer outro interesse. auxilia-nos a compreender as
Nada justifica a exposição de 35
qualquer ser humano a situações que ambigüidades do progresso e a prevenir
possam configurar crueldade ou degradação. as monstruosidades que ele pode dar à
Este restabelecimento da preocupação luz. É nesta direção que podemos entender
ética no planejamento e desenvolvimento as preocupações éticas que se expressam
do experimento científico nos códigos de conduta e em
responde à urgência histórica de outros conjuntos de normas aplicadas às
coibir os abusos cometidos pelos nazistas pesquisas e às profissões. A Bioética é
em nome da ciência. Apesar de a ética da vida, quer dizer, de todas as
tratar-se de códigos, isto é, de conjuntos ciências e derivações técnicas que
de normas que disciplinam procedimentos, pesquisam, manipulam e curam os seres
os mesmos devem ser vistos vivos. A ética da saúde ocupa lugar
a partir de uma questão mais proeminente neste conjunto, uma vez
abrangente, que apenas se explicitou que se ocupa de questões que têm a ver
em conseqüências assustadoras. com a manutenção da vida no caso dos
Na verdade, e por mais que nos seres humanos. Sendo a vida o primeiro
seja difícil reconhecê-lo, planejar politicamente de todos os direitos, a ética da saúde
o extermínio de pessoas em enraíza-se profundamente no solo dos
direitos humanos, e no seu estudo vamos bem-estar físico, mental e social e não
encontrar, como regras de apenas a ausência de doença ou enfermidade”,
normatização, alguns dos grandes princípios enfatizando o seu caráter
que vimos aparecer no percurso de direito fundamental.
da ética filosófica. A autonomia, quer Assim, também, a ética da saúde
dizer, o direito à liberdade, o respeito ao deve guiar-se por princípios concretos.
ser humano considerado como fim (que Isto significa que a preservação dos ideais
em Bioética recebe o nome de beneficência) éticos propostos historicamente pelas
e a justiça, isto é, a eqüidade de filosofias implica menos na proclamação
todos os indivíduos inscritos no reino da de idéias do que no compromisso
humanidade. Considerados como princípios com a realização histórica de valores
absolutos não se pode dizer que que encarnem nas condições determinadas
qualquer um deles tenha sido plenamente de situações sociais e políticas diferenciadas
realizado em qualquer época ou circunstância o direito de que todo ser humano
histórica. Ou são proposições deveria primordialmente usufruir.
da ética filosófica ou são ideais presentes Este compromisso se fundamenta
nas grandes transformações políticas, 36
por exemplo, nas grandes revoluções da principalmente no estado de carência de
era moderna, que entretanto os traíram grande parte da humanidade. Nesse sentido,
no próprio ato de tentar realizá-los, a atitude justificacionista, isto é, a
como ocorreu na Revolução Americana, tentativa de simplesmente explicar e compreender
na Revolução Francesa e na Revolução as desigualdades que resultam
Russa. Dir-se-ia que não estão na carência da saúde, é profundamente
dentro das possibilidades humanas, antiética, mesmo e sobretudo quando
embora sejam o motor do progresso assumida por filósofos e eticistas. É preciso
civilizatório e das transformações históricas. conhecer a realidade e as situações
Talvez por isto, na contemporaneidade, sobre as quais se vai exercer o juízo ético;
tentamos realizá-los na escala mas fazer com que este juízo traduza
reduzida de certos aspectos importantes uma mera justificação do que existe é
da vida humana, e a saúde propriamente renunciar à ética.
certamente está entre eles, quando considerada Bibliografia
com suficiente abrangência. Adorno T, Horkheimer M. Dialética do
Na verdade, esta “redução” de princípios esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge
absolutos visa traduzi-los nas condições Zahar, 1986.
concretas da vida histórica e Arendt H. As origens do totalitarismo.
das determinações sociopolíticas e São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
econômicas. Exemplo deste objetivo é Aristóteles. Ética Nicomaquéia. In:
________. Obras Completas. Madri:
a definição de saúde que consta do Aguillar, 1960.
Relatório Final da VIII Conferência Berlinguer G. Ética da saúde. São Paulo:
Nacional de Saúde, realizada em 1986: Hucitec, 1996.
“Em seu sentido mais abrangente, a Descartes R. Obra escolhida. São Paulo:
saúde é a resultante das condições de DIFEL, 1962.
alimentação, habitação, renda, meio Frankena W. Ethics. Englewood Cliff:
ambiente, trabalho, transporte, emprego, Prentice Hall, 1973.
Gracia D. Fundamentos de bioética. Madri:
lazer, liberdade, acesso e posse da Eudema, 1989.
terra e acesso a serviços de saúde”. Heinnemann F. A filosofia contemporânea.
Esta enumeração de condições sociais Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
implica na recusa de um conceito Kant E. Crítica da razão prática. Buenos
abstrato de saúde e na afirmação das Aires: Losada, 1965.
responsabilidades, em todos os níveis, Pessini L; Barchifontaine CP. Bioética e
inerentes à consecução de um “estado saúde. São Paulo: CEDAS, 1989.
Robin L. A moral antiga. Porto: Despertar,
de saúde”, em conformidade com s.d.
a Declaração de Alma-Ata, que define Sartre JP. O existencialismo é um
a saúde como “estado de completo humanismo. Lisboa: Presença, 1969.