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A RELATIVIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA:

UMA ANÁLISE A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E POLÍTICAS PÚBLICAS


ADOTADAS NO ESTADO DO AMAZONAS

Rafaela Freire dos Santos¹


Os direitos fundamentais por serem normas Quando o Estado adota medidas temporárias
principiológicas, formam a base e a essencialidade de forma proporcional às ameaças imediatas, tendo
para qualquer Constituição, uma vez que seus como base a ciência, não se pode ultrapassar os
preceitos guiam a elaboração das demais normas de direitos fundamentais. Decretar que as pessoas devem
forma a garantir o direito à vida, à liberdade, à cumprir a quarentena, o isolamento ou
igualdade, à fraternidade e a dignidade humana. Em distanciamento social restringe a liberdade que por
2019 iniciou-se a proliferação de um vírus letal, que natureza o homem é livre e social, tornando o seu
rapidamente se propagou e contaminou milhares de estado de direito violado.
pessoas ao redor do mundo. Frente ao cenário Haja vista que a liberdade é direito básico de
pandêmico instalado pelo novo coronavírus, os primeira geração, Chevalier (2002, p. 230-231) nos
direitos fundamentais previstos na Carta Magna diz que “A liberdade é o direito de fazer tudo quanto
Brasileira se tornam relativos por se tratar de uma as leis permitem; e, se um cidadão pudesse fazer o que
pandemia que põe em risco a humanidade, assim os elas proíbem, não mais teria liberdade, porque os
direitos fundamentais deixam de ser absolutos em outros teriam idêntico poder.” ou seja, a liberdade
prol do bem-estar coletivo. A OMS aponta as consiste cumprir o que está estabelecido pela
diferenças entre a quarentena, o isolamento e o Constituição, que expõe uma visão limitada em
distanciamento social da seguinte forma: Quarentena atender o bem coletivo e não só o bem do indivíduo,
significa restringir atividades ou separar pessoas que de modo particular, mas dentro do contexto social.
não estão doentes, mas que podem ter sido expostas Outros autores entendem que a liberdade pode ser
ao vírus. O objetivo é impedir a propagação da distinta em duas formas: liberdade interna, de modo
doença no momento em que as pessoas começam a subjetivo, como simples manifestação da vontade do
mostrar sintomas. Isolar significa separar as pessoas indivíduo, e liberdade externa, de modo objetivo, que
que estão doentes com sintomas da COVID-19 e consiste no querer pessoal, de poder fazer porém, de
podem ser disseminadoras do vírus com o objetivo de forma restrita e objetiva, pois está ligada a uma
impedir a propagação da doença. E o Distanciamento limitação legal.
Social significa estar fisicamente separado. A OMS Entretanto, seguindo este entendimento, a
recomenda manter uma distância de pelo menos um liberdade somente pode ser suprimida de qualquer ser
metro dos outros. É uma medida geral que todos humano em ultima ratio, devendo sempre serem
devem tomar, mesmo que estejam bem e não tenham observados os princípios garantistas consignados na
tido uma exposição. Lei Maior e a posição de origem em que se encontra
Deste modo, vem sendo discutido as ações a Liberdade frente ao Estado Democrático de Direito.
orientadas pela OMS frente aos direitos humanos que Para adentrarmos no campo da Saúde, em
não podem ser negligenciados em tempos de diversas publicações no site da ONU News, os
enfrentamento da maior crise epidemiológica das representantes alertam que durante a pandemia estão
últimas gerações. É inegável que o vírus não afetando diretamente os direitos humanos, assim
discrimina, não escolhe e não segrega os indivíduos, como a alta comissária das Nações Unidas para os
mas os seus impactos sim, sujeitando as profundas Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse que a
debilidades na prestação de serviços públicos e as COVID-19 “está criando sofrimento e danos em todas
desigualdades estruturais que impedem o acesso a as regiões” e “representa uma grande ameaça para os
estes serviços, que também são direitos prestacionais direitos humanos.” Ela lembrou que “muitos
sociais do Estado para com o indivíduo. governos estão tomando decisões difíceis.” Medidas
de emergência são necessárias, mas “uma emergência
1. Estudante de Direito da Faculdade Estácio de Sá. não é um cheque em branco para não ter em conta
Email: rafaelafds12@gmail.com. obrigações de direitos humanos.”
Para Miguel Moratinos, representante da este um dos direitos fundamentais que devem ser
Aliança das Civilizações das Nações Unidas, diante respeitados pela sociedade e pelo poder público.
de medidas como distanciamento social, o pedido é Embora se viva uma condição atípica, não há como
que haja “solidariedade social, construção de pontes afastar a necessária relativização dos princípios
de bondade e compaixão para transpor as paredes fundamentais ora absolutos em si, cabendo neste caso
erguidas pelo homem”. Especialistas afirmam que ao Estado, o bom senso de atribuir a importância,
uso de poderes extraordinários em tempos de crise peso ou valor à dignidade de um em detrimento da
deve ser proporcional e que restrições durante surto dignidade do outro, ou seja, obrigar os cidadãos que
de novo coronavírus não podem ser usadas para precisam sair de casa, para trabalhar (serviços
controlar os desacordos na política. Em situação de essenciais) ou para suprir suas necessidades básicas
estado de necessidade, o próprio ordenamento (supermercado ou farmácia) ao uso de máscaras e em
jurídico reconhece medidas excepcionais e de modo caso de descumprimento, aplicar-se-á uma sanção,
temporário, para superar o período vivenciado a fim preservando deste modo a saúde integral do indivíduo
de manter a paz e a proteção dos direitos e diminuindo a possibilidade de transmissão do vírus,
fundamentais. Cabe ao Poder Público, esclarecer aos visando o bem estar de todos.
cidadãos que o Estado pode intervir nos direitos Em contrapartida, ainda com as medidas
fundamentais todas as vezes que tivermos a existência obrigatórias, é possível perceber por meio do
de uma lei que por um motivo maior, intervenha no aumento dos números de óbitos que o cidadão não
bem-estar de todos. está fazendo a sua parte, e por isso vemos o grande
Especificamente para o Estado do Amazonas, colapso no sistema de saúde do Estado Amazonense,
o primeiro caso suspeito foi divulgado na primeira onde não há leitos suficientes para atender toda a
semana do mês de março e a partir de então, a demanda de pacientes acometidos pelo novo
Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, coronavírus .
passou a monitorar todos os casos identificados. De acordo com os dados apresentados no site
Segundo as informações postadas no site da da FVS/AM, tem-se o Hospital Delphina Abdel Aziz,
FVS/AM, a rede de vigilância e assistência do estado que é referência para o atendimento da COVID-19 e
estava preparada para contenção de crises gripas possui 350 leitos, porém está com sua totalidade em
desde novembro de 2019, onde o estado já se uso, o Hospital de Campanha do Combate à COVID-
preocupava com as síndromes respiratórias agudas 19, na Universidade Nilton Lins possui 100 leitos
sazonais, contempladas neste plano de contingência, ainda em ativação e também o Hospital de Campanha
porém o que não se esperava era o crescimento dos Municipal Gilberto Novaes na zona norte da cidade
número de casos em um curto espaço de tempo. de Manaus, com 156 leitos para internação dos
Em decorrência disso, o Estado determinou o pacientes acometidos pelo vírus. Trazendo esses
fechamento de bares, restaurantes, praça de números para um exemplo concreto, em apenas um
alimentação e similares, suspendendo suas atividades mês após a confirmação da primeira infecção pelo
pelo prazo de 15 dias, de acordo com o Decreto nº novo coronavírus em Manaus, o sistema de saúde do
42.099/2020, com o objetivo de proteger o cidadão, Amazonas entrou em colapso, onde os pacientes em
evitando assim a aglomeração de pessoas, seja em estado grave são obrigados a competir por uma vaga
ambientes públicos ou privados. Em dois meses o nos leitos UTI, ferindo neste momento o direito à
número de óbitos ocasionados pela COVID-19 saúde, previsto no Art. 6º da CF/88, onde é direito do
alcançou a marca de mil pacientes infectados e com cidadão e dever do Estado propor o acesso.
isso a FVS/AM vem reforçando o pedido de Outro setor que é afetado diretamente por esta
distanciamento social. O Estado em vista dos Pandemia é o Sistema Funerário, de competência
acontecimentos adota medidas mais rígidas para que administrativa da Prefeitura de Manaus. Este vem
esse distanciamento seja eficaz ampliando o trabalho enterrando em grande escala os corpos dos pacientes
de fiscalização para o cumprimento das medidas portadores do coronavírus que passaram a ser
adotadas, como por exemplo: o uso obrigatório de sepultados em valas comuns, como se não bastasse ao
máscaras, alegando que quanto maior for o ente que chora não poder velar agora precisa lidar
distanciamento e/ou isolamento, mais rápido será com a situação de nem saber qual o corpo do seu ente
possível voltar às rotinas e, a quem descumprir as dentro do jazigo.Frise-se que além das mazelas
medidas, serão aplicadas sanções previstas em lei. decorrentes da pandemia, as populações urbanas já
Com este cenário, entra em conflito a enfrentam naturalmente outras problemáticas sociais,
dignidade da pessoa humana, prevista no Art. 1º, III tais como desigualdade, saneamento básico
da CF/88 que preserva a liberdade individual, sendo insuficiente, falta de recursos para aquisição de
produtos necessários à desinfecção de mãos, 13. PENSAMENTO VERDE. Reciclagem -
impossibilidade de aderir ao isolamento social por Legislação e classificação de lixo hospitalar.
parte daqueles com menor renda e trabalhadores Disponível em:
informais. Tais situações potencializam as <https://www.pensamentoverde.com.br/reciclagem/l
dificuldades advindas no período da pandemia. egislacao-e-classificacao-de-lixo-hospitalar/ >
Por fim, é preciso resguardar sobretudo a Acesso em 13 maio 2020.
dignidade da pessoa humana mesmo que em tempos 14. PIRES, Manoel. Observatório de Economia
atípicos como este, permitindo que o ser humano seja Fiscal - As políticas que estão sendo adotadas para o
protegido em seus direitos mais íntimos, inerentes à combate ao Covid-19: Experiência internacional e o
sua natureza humana. Brasil, 23 de março de 2020. Disponível em :
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