O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Artigo 2) e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (Artigo 2) estabelecem o dever do Estado de garantir o exercício dos direitos humanos sem discriminação de qualquer natureza, incluindo a socioeconomica. A Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em seu artigo 2 (g), determina que todos os países derroguem todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher. As leis contra o aborto e a sua aplicação discriminatória em relação às mulheres mais pobres , e sem escolaridade, perpetuam a discriminação em razão de gênero, raça, e por condições socioeconomicas. A criminalização das mulheres pela prática do aborto, procedimento médico que somente as mulheres utilizam, é em si uma violação ao princípio de não discriminação em razão do sexo e do direito à saúde. O Comitê que monitora o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, em resposta ao informe sobre a implementação do tratado,apresentado pelo governo brasileiro, pronunciou-se no parágrafo 51 das suas Observações Conclusivas: “O Comitê solicita ao Estado parte tomar medidas legislativas e outras, incluindo revisar a sua presente legislação, para proteger as mulheres dos efeitos de abortos clandestinos e inseguros e assegurar que as mulheres não recorram a tais procedimentos danosos. O Comitê solicita ao Estado parte a oferecer no próximo relatório periódico informação, baseada em dados comparativos sobre mortalidade materna e aborto no Brasil.” Aborto Inseguro sob a Perspectiva dos Direitos Humanos no Brasil Aplicando-se para os dados brasileiros do ano 2000 a metodologia proposta pelo Instituto Alan Guttmacher para a estimativa do número de abortos clandestinos, o resultado indicaria um total de abortos clandestinos que poderia variar de 750 mil a 1 milhão e 400 mil, considerando-se apenas os dados de internação do Sistema Único de Saúde (SUS). Fonte www.redesaude.org.br Essa proposta de estimativa atribui em torno de 85% das internações por aborto no SUS às complicações por abortos provocados ou clandestinos. Fonte www.redesaude.org.br Os dados oficiais demonstram que as taxas de mortalidade materna no Brasil continuam altas e praticamente estáveis desde 1985. A prática do aborto em condições inseguras está diretamente relacionada à alta incidência de mortes maternas no Brasil, pois o aborto é considerado a quarta causa de mortalidade materna. Além disso, a maioria das mortes maternas no Brasil (mais de 90%) ocorre por causas evitáveis. Segundo a a perspectiva dos direitos humanos, este cenário revela revelar negligência e a omissão sistemática do Estado em implementar políticas eficazes em saúde, apontando para uma violação dos direitos humanos das mulheres. Segundo dados da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a mortalidade materna no Brasil (2001), as mulheres que morrem de morte materna, na sua maioria, são de baixa renda, mestiças ou afrodescendentes, com baixa escolaridade, e que possuem acesso deficiente às políticas de planejamento familiar para prevenção de uma gravidez indesejada. As taxas de mortalidade materna podem estar relacionadas às condições sociais, econômicas e culturais nas quais as mulheres vivem. Tais condições podem contribuir para aumentar o risco de morrer de causas associadas à mortalidade materna1. Consequentemente, as condições de vida destas mulheres, igualmente aumentam o seu risco de adoecer ou morrer por complicações derivadas de abortos inseguros. Diante deste panorama e injustiça social, o Estado deve implementar políticas de saúde que garantam a atenção de qualidade para o tratamento das complicações derivadas de abortos praticados de forma insegura no país para a proteção dos direitos humanos das mulheres. Que aspectos devem ser observados para uma atenção pós aborto de qualidade? O que são direitos humanos e como aplicá-los na área da saúde sexual e reprodutiva? Quais são os direitos humanos em jogo na atenção pós aborto? Direito à Vida, à Liberdade e à Segurança Direito à Privacidade Direito de não ser vítima de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes Direito a uma vida livre de violência 1 23 A atenção de qualidade inclui: a) o acesso a todos os recursos humanos2 e institucionais3, adequados; b) o respeito aos direitos humanos das mulheres; c) e a adoção de certos critérios éticos pelos profissionais de saúde para a promoção do seu direito à saúde, à vida, à segurança, à integridade física, à privacidade, entre outros direitos humanos à autodeterminação sexual e reprodutiva das mulheres. Algumas práticas e rotinas nos serviços de saúde podem representar uma situação de desrespeito e trato desumano, violando direitos humanos das pacientes: por exemplo, a demora injustificada no atendimento da mulher em abortamento; o não reconhecimento imediato de uma situação de urgência e de risco de vida; o interrogatório sobre se o aborto foi espontâneo ou provocado; e a denúncia da prática do auto-aborto para as autoridades policiais. Tais práticas revelam a ocorrência de discriminação em relação às mulheres que estão em situação de abortamento. Os direitos humanos são um arcabouço ético e jurídico que reflete o consenso mundial sobre valores e princípios universalmente válidos após a Segunda Guerra Mundial. Em 1968, na Primeira Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada em Teerã, estabeleceu-se que os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte dos direitos humanos, e compreendem o direito de planejar o tamanho da família, o número e o intervalo dos nascimentos dos filhos para homens e mulheres. Porém, o exercício efetivo destes direitos depende de condições sociais, econômicas e culturais adequadas, livre de discriminação, coerção e violência. Os direitos humanos são inerentes a todas as pessoas, sem distinção de sexo, raça, etnia, cor, religião, estado civil, idade, grupo social, cultura, posição econômica ou política e incluem o acesso de homens e mulheres à atenção e à informação em saúde de qualidade. Para a vigência dos direitos humanos na atenção à saúde, é necessário observar critérios de igualdade, equidade, justiça e o reconhecimento da saúde como um direito humano. O Programa de Ação do Cairo, documento final da Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento realizada no Cairo em 1994, estabeleceu que a saúde reprodutiva é um estado geral de bem estar físico, mental e social e não a mera ausência de enfermidades ou doenças , em todos os aspectos relacionados com o sistema reprodutivo bem como suas funções e processos. A Plataforma de Ação de Beijing, documento final da Quarta Conferência Internacional da Mulher realizada em Beijing em 1995, conclama aos governos que considerem a possibilidade de revisar as leis que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que tenham realizado abortos ilegais. Tanto na Conferência do Cairo, quanto na Conferência de Beijing, o aborto em condições inseguras foi tratado como um problema de saúde pública, reafirmando o compromisso dos Estados de garantir políticas de qualidade na atenção à saúde sexual e reprodutiva conforme os parâmetros de direitos humanos.: “(...) Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso à qualidade nos serviços para tratamento de complicações derivadas do aborto. Aconselhamento pós aborto, serviços de educação e planejamento familiar deveriam ser oferecidos imediatamente, o que também contribuirá na prevenção a outros abortos”. (Programa de Ação do Cairo Parágrafo 8.25) São direitos humanos previstos nos tratados internacionais de direitos humanos: direito à vida, à liberdade, à segurança, à saúde, à privacidade, a não ser vítima de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, direito a uma vida livre de violência, direito a não ser discriminada, entre outros. Os tratados são fontes de direito internacional que vinculam juridicamente os Estados que os ratificam e contraem obrigações perante a comunidade internacional. Os Comitês de supervisão e monitoramento do cumprimento dos tratados são instâncias que avaliam se os governos estão implementando os tratados por eles ratificados. Tais órgãos emitem recomendações que ampliam a interpretação de artigos específicos mencionados nos tratados, e são importantes diretrizes para o desenho e a implementação de programas e políticas públicas na área da saúde sexual e reprodutiva pelos governo. No que se refere especificamente ao cenário da mortalidade materna em nosso país, o referido Comitê DESC, em suas Observações Conclusivas4 sobre o primeiro relatório do Estado brasileiro, analisado no seu 30º período de A falta de acesso a serviços de planejamento familiar adequados é uma das principais causas da prática do aborto no Brasil. A maioria dos abortos inseguros é realizada em condições inadequadas de higiene, tendo como consequências as complicações como, por exemplo infecções, lacerações cervicais ou vaginais, hemorragias, perfuração uterina, doenças pélvicas crônicas inflamatórias e infertilidade secundária. Nos piores casos, tais abortos acarretam a morte materna. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) estabelece a proteção do direito à vida no artigo 6O e em seu artigo 9º estabelece que todo indivíduo tem direito à liberdade e segurança pessoal. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, que monitora a implementação do PIDCP, na sua Observação Geral número 28, parágrafo 10, interpretou que o direito à vida das mulheres inclui o dever dos Estados de adotar medidas para evitar que elas recorram a abortos inseguros e clandestinos que ponham em risco a sua vida e a sua saúde, especialmente quando se tratar de mulheres pobres e afrodescendentes. O Pacto de Direitos Civis e Políticos declara que ninguém será objeto de ingerências arbitrárias o ilegais em sua vida privada, sua família, domicílio ou correspondência, nem ataques ilegais a sua honra e reputação. (Artigo 17.1). “Diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, não pode o médico comunicar o fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em razão de estar diante de uma situação típica de segredo médico.” (Parecer no. 24.292/00 CREMESP). Fonte: Ética em Ginecologia e Obstetrícia, Cadernos CREMESP, São Paulo, 2002, página 45. Esta relação de confiança não deve ser quebrada sob nenhuma circunstância na atenção ao pós aborto, sob pena de violar os direitos humanos das pacientes. O Comitê de Direitos Humanos da ONU- Comentário Geral No. 28, sobre igualdade de direitos entre homens e mulheres, parágrafo 20: “(...) Outra área em que o Estado pode falhar em respeitar o direito das mulheres à privacidade relaciona-se às suas funções reprodutivas, por exemplo, (...) quando os Estados impuserem uma obrigação legal sobre médicos e outros profissionais de saúde para reportar casos em que mulheres realizaram aborto.” O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece no seu Artigo 7º que: “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes...” A falta de qualidade nestes serviços pode significar tratamento desumano e falta de respeito à dignidade das mulheres. A baixa qualidade na atenção às mulheres que recorrem aos serviços de saúde após o aborto pode ser equivalente a uma situação de tratamento desumano e degradante, tendo em vista a fragilidade emocional em que elas se encontram. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, ONU, 1994), “toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada”. A Convenção define violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause sessões, entre 5 e 23 de maio de 2003, expressou “preocupação com as altas taxas de mortalidade materna devido a abortos ilegais, particularmente nas regiões ao Norte do país, onde as mulheres têm acesso insuficiente aos equipamentos de saúde pública” (parágrafo 27, grifos nossos). E, ainda, recomendou ao Estado “que empreenda medidas legislativas e outras, incluindo a revisão de sua legislação atual, a fim de proteger as mulheres dos efeitos de abortos clandestinos e inseguros e assegure que as mulheres não recorram a tais procedimentos prejudiciais”. morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Art. 1º). A violência contra a mulher pode ocorrer em serviços públicos de saúde. O trato desumano ou negligente de uma mulher na atenção pós aborto pode ser caracterizado como uma situação de violência institucional e violação aos seus direitos humanos.