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FILOSOFIA E ALTERIDADE:
EXPERIÊNCIAS COM O RECONHECIMENTO EM SALA DE AULA
CAICÓ/RN
2019
JACKISLANDY MEIRA DE MEDEIROS SILVA
FILOSOFIA E ALTERIDADE:
EXPERIÊNCIAS COM O RECONHECIMENTO EM SALA DE AULA
CAICÓ/RN
2019
JACKISLANDY MEIRA DE MEDEIROS SILVA
FILOSOFIA E ALTERIDADE:
EXPERIÊNCIAS COM O RECONHECIMENTO EM SALA DE AULA
Banca Examinadora
___________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Paiva de Carvalho - Orientador
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
___________________________________________________________
Prof. Dr. José Renato de Araújo Sousa - Examinador Externo
Universidade Federal do Piauí - UFPI
___________________________________________________________
Profª. Drª. Silvana Maria Santiago - Examinador Interno
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
À minha esposa Silmara pelo apoio e paciência.
AGRADECIMENTOS
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 ALTERIDADE E ENSINO DE FILOSOFIA ................................................................... 16
2.1 A FACE DA GUERRA, A RUPTURA COM A TOTALIDADE E O ENSINO DE
FILOSOFIA .......................................................................................................................... 17
2.2 ENSINO DE FILOSOFIA COMO RELAÇÃO DE ABERTURA AO OUTRO .......... 24
2.3 ENSINO DE FILOSOFIA E O OUTRO COMO ACONTECIMENTO ÉTICO .......... 31
2.4 ENSINO DE FILOSOFIA E RESPONSABILIDADE POR OUTREM ....................... 38
2.5 ENSINO DE FILOSOFIA E O RESPEITO PELO OUTRO ......................................... 46
2.5.1 O feminino e o ensino da diferença ...................................................................... 55
3 RECONHECIMENTO E ENSINO DE FILOSOFIA ...................................................... 61
3.1 SOCIALIDADE E ENSINO DE FILOSOFIA .............................................................. 62
3.2 IDENTIDADE E INTERSUBJETIVIDADE NO ENSINO DE FILOSOFIA .............. 70
3.3 AS TRÊS FORMAS DE RECONHECIMENTO E O ENSINO DE FILOSOFIA PARA
A EMANCIPAÇÃO ............................................................................................................. 78
3.4 RECONHECIMENTO E EMANCIPAÇÃO FEMININA ............................................. 88
4 EXPERIÊNCIAS COM O RECONHECIMENTO EM SALA DE AULA ................... 94
4.1 AS OFICINAS FILOSÓFICAS: UM ACONTECIMENTO ......................................... 94
4.2 UM APANHADO DA VISÃO COMUM DOS ALUNOS SOBRE O FEMININO ..... 98
4.3 O RECONHECIMENTO A PARTIR DA PERSPECTIVA FILOSÓFICA ................ 104
4.4 UM APRENDIZADO DE DISTÂNCIAS ................................................................... 109
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 118
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 121
ANEXOS ............................................................................................................................... 126
ANEXO A – Texto 1 .......................................................................................................... 127
ANEXO B – Texto 2 .......................................................................................................... 128
ANEXO C – Texto 3 .......................................................................................................... 129
ANEXO D – Texto 4 .......................................................................................................... 131
ANEXO E – Texto 5 .......................................................................................................... 133
ANEXO F – Texto 6........................................................................................................... 134
ANEXO G – Texto 7 .......................................................................................................... 135
ANEXO H – Texto 8 .......................................................................................................... 136
ANEXO I – Texto 9 ........................................................................................................... 137
ANEXO J – Texto 10 ......................................................................................................... 138
9
1 INTRODUÇÃO
1
Adotamos a grafia “Outro” com a inicial maiúscula, de acordo com o uso do autor em sua obra Totalidade e
Infinito, para destacar o seu sentido metafísico e para não confundirmos com o pronome “outro”. Contudo, tanto
nessa obra quanto em outras, o autor costuma variar entre o maiúsculo e o minúsculo, tendendo ao uso dessa
segunda forma (SUSIN, 1984).
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reconhecendo de suas diferenças, sua singularidade, sua individualidade, para assim, promover
seu desenvolvimento, seu sucesso e realização pelas três formas de reconhecimento
intersubjetivo: a que nos proporciona autoconfiança é o amor; a que nos proporciona
autorrespeito é o direito e a que nos proporciona autoestima é a solidariedade ou a estima social.
Em certa medida, com as experiências de reconhecimento escritas pelos alunos nessa
investigação, nossa proposta é expor as concepções filosóficas decorrentes do reconhecimento
da alteridade, por meio da figura humana e social, a mulher. A ideia é priorizarmos o nosso
modo de pensar ou de conduzir o ensino de filosofia, pela atenção que se pode dar ao Outro e
pela relação de responsabilidade ética, em vez de priorizar um modo de pensar no Mesmo2,
fechado numa lógica totalizante de dominação e desprezo do Outro.
Assim em Levinas, a nossa subjetividade é constituída pela relação de alteridade. A
identidade em Honneth é confirmada ou reconhecida numa relação de intersubjetividade. No
entanto, reconhecer a debilidade do Outro independe que sejamos ou não reconhecidos de
maneira recíproca, mas deve ser uma exigência da alteridade radical, altruísta e irredutível, na
concepção de Levinas.
Dessa forma, importa a Levinas ser responsável frente à vulnerabilidade do Outro, que
solicita uma resposta. Se existe um reconhecimento em Levinas, é sempre o reconhecimento
do Outro. Ao passo que para Honneth, o reconhecimento exige a reciprocidade do outro para
fazer valer a busca por identidade que é intersubjetividade. Nesse sentido, é imprescindível a
existência de um nós para existir um eu, ou seja, o sujeito deseja ser reconhecido pelo Outro
em relação a ele e deseja, também, ser reconhecido pelo Outro em relação a ele como humano,
em sua dimensão individual e coletiva.
Desde que a sociedade experimentou o fracasso em reconhecer a humanidade do Outro
com as atrocidades ocorridas no Holocausto, bem como a inúmeras tragédias e calamidades que
marcaram todos nós ao longo do século XX, o ser humano ainda é incapaz de reconhecer o
fracasso de um projeto de poder que perpassou praticamente todo esse século, de modo a
permanecer indiferente ao Outro e ao que de mais significa como intriga, separação,
interioridade, singularidade, segredo e tudo aquilo que nos escapa porque excede nossa
compreensão. Somente ao prestarmos atenção ao Outro e acolhê-lo na sua infinita liberdade é
2
Quando nos referimos ao “Mesmo” com a inicial maiúscula, queremos assinalar que: “Damos-lhe o nome de o
Mesmo porque, na representação, o eu perde precisamente a sua oposição ao seu objeto; ela apaga-se para fazer
ressaltar a identidade do eu apesar da multiplicidade dos seus objetos, isto é, precisamente o caráter inalterável do
eu. [...] Ser inteligível é ser representado e, por isso mesmo, ser a priori. Reduzir uma realidade ao seu conteúdo
pensado é reduzi-la ao Mesmo” (LEVINAS, 2008, p. 117-118. Grifo do autor).
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enquanto Outro, na sua singularidade, em sua subjetividade, fomentando uma análise mais
crítica dessas concepções.
A vitalidade da filosofia de Levinas é alimentada por um questionamento que está
sempre vindo ou que está por vir, mediante a relação com outrem, e essa exige resposta, palavra,
discurso pela presença interpeladora do rosto. A partir do Outro vem à tona uma relação, a
alteridade humana, movida à interpelação que requer uma resposta. A maneira como
justificamos a quem respondemos constitui a grandeza da nossa responsabilidade por ele.
É com essa demanda de saída de si para outrem, abertos a uma relação de alteridade, de
respeito, responsabilidade e reconhecimento do outro que devemos potencializar nossas
atitudes no ambiente da sala de aula, no tocante ao seu ensino de filosofia, porque os problemas
do ensino da disciplina, como considera Tomazetti (2015), estão atrelados a uma determinada
concepção filosófica. Logo, no ensino filosófico, nossas concepções filosóficas são
inescapáveis. Por isso, tais concepções, com as quais nós professores de filosofia nos
identificamos, certamente nos acompanharão em sala de aula. Portanto, é urgente uma busca
pela identidade filosófica; uma busca subjetiva de construção e reconstrução filosófica.
Daí, a responsabilidade para com o ensino dessa atividade, por se tratar de trazer algo
que ficou esquecido pela tradição filosófica ocidental por centenas de anos. A preocupação com
o Outro, tal como Levinas (2008) sugere ao promover um ensino de uma ausência, movido a
encontro subjetivo com outrem que expressa desejos, palavras, sentimentos. Quem sabe
possamos dar a oportunidade, por meio das experiências de relação com Outrem em sala de
aula, com o objetivo de fazer emergir a presença de uma ausência, ou seja, permitir a voz dos
que não têm voz; o rosto dos sem-rosto; a identidade do humano; o reconhecimento da
humanidade do Outro; o verdadeiro sentido do Outro.
Nessa direção, já podemos vislumbrar na segunda seção desse trabalho uma perspectiva
de ensino de filosofia que se reflete num confronto do pensamento fundamentado no princípio
de guerra, totalidade, - o qual alimentou as experiências pré-filosóficas de Levinas e coincide
com o domínio que o ser humano exerce sobre os processos naturais e sociais, possibilitando
ainda, que a transformação das condições materiais da vida ocupasse um lugar de destaque em
suas preocupações - pelo pensamento ético-filosófico de “outro modo que ser” de Levinas. Isso
provoca também a interface com Heidegger, cuja ontologia fundamental considera o ser
inseparável de seu pensamento. Essa superação consiste numa ruptura do ser para um novo
caminho proposto por Levinas diferente de ser, persistente em ser, que se excede numa saída
de si para outrem.
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Ainda nessa segunda seção, chamamos a atenção para o sentido da experiência como
algo que nos afeta, que nos passa, que nos acontece, conforme afirma Larrosa e da relação com
o que nos acontece em sala de aula. Assim, precisamos vivenciar a experiência do filosofar
expostos ao acontecimento do outro, vindo talvez pelo desejo de realidade que é também desejo
de acontecimento e de alteridade que, a partir da ideia de infinito e transcendência, inquieta e
estremece nossa subjetividade. Aqui também destacamos a dimensão do “religare”, uma
espécie de relação sem relação em Levinas para mostrar como se institui a socialidade pela
relação irredutível à compreensão.
Também, nessa segunda seção, acreditamos que o ensino de filosofia nos introduz algo
novo posto em questão pela estranheza, pela perturbação ou inquietação de uma altura que
significa o rosto do Outro, de um absolutamente novo que nos concerne como Outrem. Enuncia
o filósofo que a introdução do novo num pensamento é acolher a ideia do infinito, pois é o que
caracteriza a obra da razão e não se opõe ao experimentado, mas rompe com um movimento
nostálgico de retorno ao Mesmo, surpreendendo-nos com algo novo pela fecundidade, produzir-
se pela potencialidade do dizer, isto é, renovar-se.
A terceira seção surge como ponto de interseção entre a ética da alteridade de Levinas
e o problema do reconhecimento na ótica de Axel Honneth com algumas contribuições
oportunas de Nancy Fraser. De modo que alteridade e reconhecimento acabem convergindo
para um problema ético de ordem social e política. Dois conceitos filosóficos que devem estar
no horizonte de nossas relações em sala de aula, no tocante ao ensino de filosofia, pois
reconhecer e ser reconhecido por outro sujeito é a possibilidade necessária tanto para o
desenvolvimento humano, quanto para a formação de uma subjetividade sólida, realizada e
bem-sucedida.
Assim, dos prolongamentos das discussões sobre o ensino de filosofia em tensão com
diferentes formas de alteridade em Levinas, bem como dessas intrigas, traumas ou perturbações
éticas, eis que emerge a partir disso a necessidade de compreender a luta por justiça social de
mãos dadas com a ética, de uma mediação mais especificamente política da socialidade
humana.
Essa terceira seção, expõe a necessidade da entrada política em nossa discussão, não
que implique numa recusa dos pressupostos éticos no ensino de filosofia, mas, pelo contrário,
se institui, ainda mais como exigência radical e irrenunciável à nossa responsabilidade em face
do Outro, enquanto indivíduo, e de todos os outros, enquanto coletividade. Sem dúvida, o
reconhecimento entendido do ponto de vista intersubjetivo e social é decorrente também da
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interpelação ética lançada a cada indivíduo pela simples presença do Outro (BARCELOS,
2011).
Ademais, guardadas as devidas distâncias entre Levinas e Honneth, a fenomenologia e
a teoria crítica, assim como do rompimento do círculo fechado de si mesmo, do Eu, emerge a
abertura para a alteridade; pela busca por identidade, da jornada por si mesmo ou da luta por
reconhecimento no âmbito da família, do direito e da sociedade. Todos esses conflitos com os
outros, contra os outros, contra as subjetividades também emerge a consciência crítica e social,
humana e política.
De qualquer forma, o viés de diálogo entre Levinas e Honneth parece ser a chave de
leitura, uma via de reconhecimento de identidades individuais e coletivas, como consequência
posta pela ocorrência ou evidências de ações de desrespeito e falta de reconhecimento nas
relações sociais e humanas que exigem reconhecimento. Para Levinas, reconhecer outrem é
respeitar sua humanidade. A luta cada vez mais social e, por isso, política por reconhecimento
é impulsionada e motivada por uma força ética que, pelo seu acontecimento, produz
desdobramentos sociais.
Na terceira seção, procuramos mostrar como o ensino de filosofia pode vir embarcado
pelas ideias filosóficas de Honneth em sala de aula, na qual os alunos terão uma oportunidade
única de experimentar conceitos e valores, oriundos de sua busca por reconhecimento, segundo
os quais, estão esboçados desta maneira: socialidade e ensino de filosofia; identidade e
intersubjetividade no ensino de filosofia; as três formas de reconhecimento e o ensino de
filosofia para a emancipação; reconhecimento e emancipação feminina.
A quarta seção, por sua vez, trata da descrição específica de como os alunos
experimentaram a problemática conceitual sobre o reconhecimento em Levinas e Axel Honneth
por meio de uma temática acessível e polêmica, também conhecida e bastante recorrente nas
discussões de sala de aula, a respeito da mulher. A partir da discussão, os alunos puderam
pensar, dialogar e escrever sob a perspectiva do reconhecimento à luz da alteridade, culminando
com as três formas de reconhecimento, fundamentadas por Honneth.
Consideramos a escola como o ambiente por excelência da sociedade organizada, na
qual é possível reunir uma parcela significativa de sujeitos, dispostos a passar por uma boa parte
de suas vidas juntos, encontrando-se entre si, e em relação com a filosofia, com um pensar
reflexivo e crítico, numa intensa intersubjetividade. Nossa proposta de pesquisa é a de
identificar um movimento de aproximação e distanciamento como forma de afirmar um
“aprendizado de distâncias”.
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Fizemos com isso o resultado da observação dos conteúdos dos textos, a partir dos
pontos de vista dos alunos, dos seus conhecimentos prévios e do modo como introduzimos a
filosofia da alteridade em Levinas, balizada ao entendimento e reconhecimento em Axel
Honneth, tentarmos analisar e articular a percepção dos discentes do ensino médio com esses
problemas por meio da abordagem do feminino.
Em virtude do ensino de filosofia tal como admite Cerletti (2009, p. 19) que, oportuniza
ao aluno a vivência dessa experiência do filosofar junto com seus colegas e com o professor
“desde uma posição filosófica”. Descrevemos nessa quarta seção, o funcionamento das oficinas
em forma de roda de diálogo. Isso nos permitiu a execução da intervenção filosófica que
havíamos planejado.
Essa atividade de fazer filosofia ou forma de intervenção filosófica quer “sobre textos
filosóficos, sobre problemáticas filosóficas tradicionais”, quer “até mesmo sobre temáticas não
habituais da filosofia, enfocadas desde uma perspectiva filosófica” (CERLETTI, 2009, p. 19),
consistem nessa pesquisa em oficinas filosóficas que se constituem num espaço oportuno de
construção de reflexão, por meio da produção inquieta de perguntas e busca por respostas
fundamentadas em formas de argumentos bem construídos de relacionar teoria e prática, assim
como ensino de filosofia e aprendizagem.
Sendo assim, seguimos o caminho metodológico de tipo qualitativo de abordagem
fenomenológica, para chegarmos aos objetivos pretendidos que foram: analisar a concepção de
alteridade em Levinas; retomar o conceito de reconhecimento em Honneth; trabalhar conteúdos
com os alunos do ensino médio sobre a alteridade e o reconhecimento, a partir da perspectiva
filosófica; analisar a visão dos alunos do ensino médio sobre a alteridade e o reconhecimento,
levando em consideração o aprendizado de conteúdos de filosofia relacionados com essas
temáticas.
Por fim, demos à quarta seção a seguinte estrutura: as oficinas filosóficas: um
acontecimento; um apanhado da visão comum dos alunos sobre o feminino; o reconhecimento
a partir da perspectiva filosófica; um aprendizado de distâncias.
16
A filosofia da alteridade de Emmanuel Levinas, entendida como relação com outro ser
humano, ruptura com a face da guerra, como acontecimento ético, respeito, responsabilidade e
reconhecimento por Outrem, é uma perspectiva que se traduz no encontro com outro indivíduo,
no face a face, por isso, não podemos reduzí-lo à compreensão. Se por um lado, a tradição
filosófica coloca o indivíduo inseparável de sua compreensão, por outro lado, Levinas o
reposiciona inseparável de sua anterioridade ética.
Nesse sentido, o princípio de dominação de um ser humano sobre o Outro é confrontado
aqui pela descrição da relação com outro ser humano, com outra pessoa, empenhada a
desconstruir a primazia do ser, de um único ser, pela primazia do Outro, instaurando uma
origem anárquica de todo sentido. Fundamental afirmarmos que para o pensador a filosofia
primeira é a ética3.
Mas o que significa isso? Significa admitir em meio à resistência de hoje, ao mundo
fechado em si mesmo e cego em seus próprios interesses e realizações individuais, que é
possível, sim, interromper uma corrida frenética, porém cansada do ser humano para suas
intenções muito particulares, egoístas, incapaz de reconhecer a humanidade do Outro, incapaz
de identificá-lo na massa, no rebanho, na multidão. Nesse aspecto, é como se não houvesse
nada de estranho, provocante, interessante ou absolutamente surpreendente na outra pessoa.
Vivemos embarcados num mundo onde os humanos se tornaram espectros para si mesmos e,
talvez, por isso, habitemos um mundo sem reconhecimento de outros.
Sendo assim, pensamos em estruturar essa seção a partir da obra Totalidade e Infinito
(2008) de Emmanuel Levinas, em virtude de uma possível articulação entre sua filosofia e o
ensino de filosofia, embora este filósofo não tenha uma explícita elaboração de um ensino de
filosofia em sua larga produção filosófica. Porém, nosso empreendimento é o de tentar mostrar
que vale ensinar a filosofar pela matriz filosófica da alteridade em contraposição a um ensino
marcado pela tradição tecnicista, reprodutivista e sistemática, preso a estratégias de assimilação
de teorias filosóficas. Ensinar a filosofar pela alteridade exige despertar nos alunos a
3
De que ética estamos tratando aqui? De uma ética, assim como está descrita logo no prefácio de Totalidade e
Infinito, que, já por si mesma, seja uma ótica (LEVINAS, 2008, p. 15), cujas relações éticas devam nos levar a
uma intenção transcendente de responsabilidade pelo rosto do Outro, devam nos levar a uma relação com
absolutamente Outro ou com a verdade, “da qual a ética é a via real”. Por isso, o que pressupõe, o que sustenta a
filosofia de Levinas é essa relação face a face com uma outra pessoa; uma anterioridade ética que não pode ser
reduzida à compreensão, constituindo assim a ideia chave de seu pensamento, isto é, a ética como filosofia
primeira.
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possibilidade de pensar de um modo diferente, isto é, de pensar não apenas pelas questões
filosóficas tradicionais, mas de pensar abalado por uma condição ética, proveniente das
situações sociais de vulnerabilidade do Outro.
A fim de delinear essas como também outras abordagens, estruturamos a seção, a partir
da temática central: Alteridade e ensino de filosofia. Depois, o texto ficou dividido em subtemas
como desdobramentos para o alcance e fortalecimento da temática proposta: a face da guerra,
a ruptura com a totalidade e o ensino de filosofia; ensino de filosofia como relação de abertura
ao Outro; o ensino de filosofia e o Outro como acontecimento ético; ensino de filosofia e
responsabilidade por Outrem; ensino de filosofia e respeito pelo Outro.
voltada para a formação de um saber que reproduz a submissão da natureza, de algo que está
aí, aos interesses estabelecidos pelo ser humano, e este passa a ser visto como sujeito na medida
em que se impõe sobre sua alteridade (ALVES; GHIGGI, 2011).
Por isso é tragicamente concebido para o filósofo que “a face do ser que se mostra na
guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental”, de modo que “os
indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem o saberem”. Daí, a
própria racionalidade e educação moderna “vão buscar nessa totalidade o seu sentido”
(LEVINAS, 2008, p. 08).
Nessa direção, o discurso filosófico de Levinas em Totalidade e Infinito, melhor ainda
nas suas primeiras páginas, como que abrindo a possibilidade do questionamento à guerra,
perturba a ordem instalada da razão Ocidental, uma “ordem” que aniquila as diferenças do
absolutamente Outro4. Do estado de guerra advém a constatação do choque dos contrários de
Heráclito de Éfeso, a exemplo do confronto militar em que as obrigações e tudo o mais fica
suspenso, sem durabilidade, permanecendo apenas a nua e dura realidade da guerra, de modo a
sobrar daí o Ser5 em meio a dor, de um peso do anonimato da existência que se traduz pelo “il
y a”, um esforço humano em tentar existir.
Como se não bastasse, mais uma constatação dessa situação, onde se vislumbra a face
da guerra, é a instalação ou consolidação de um projeto racional que reduz tudo ao saber
técnico-científico-experimental, cujo saber racional é próprio do clima de guerra em que toda
concepção da diferença já é tomada como um atentado à verdade. Ora, essa realidade acaba
contaminando os sistemas de ensino até hoje, de modo que os meios técnicos instrumentais de
aprendizagem se tornaram o diferencial e o modelo das concepções educacionais neoliberais.
Com efeito, a totalidade é, para Levinas, a face da guerra que reduz as individualidades
a sistemas de interesses mais vastos e autoritários, traduzindo-se numa atmosfera de violência
sobre o Outro e, ainda como conceito, que perpassa a história do pensamento ocidental. Nesses
termos, a guerra “totaliza tanto ou mais do que o Estado ou o ser” e, além disso, sua violência
totalizante não está só no desaparecimento da realidade que pretende persistir e que se consuma
4
Remetemo-nos aqui ao que afirma Levinas (1993, p. 52) em sua obra Humanismo do outro homem: “O
‘absolutamente outro’ não se reflete na consciência”. E mais: “O questionamento de si é precisamente o
acolhimento do absolutamente outro. A epifania do absolutamente outro é rosto em que o Outro me interpela e me
significa uma ordem, por sua nudez, por sua indigência. Sua presença é uma intimação para responder”
(LEVINAS, 1993, p. 53).
5
Que não é o nada, tampouco angústia, mas sua própria condição de horror, o “há”. Para Levinas, “defende que o
horror é o Ser. No silêncio da noite parece que não há nada, mas, na verdade, o que há não é o nada senão o Ser,
o ‘há’ [Il y a]” (ALVES, 2013, p. 95).
20
na morte das pessoas que se opõem, porém o que é pior, “pode subtrair estas mesmas pessoas
aos seus engajamentos originários pondo-as a serviço da guerra” (SUSIN, 1984, p. 132).
Por isso, o filosofar levinasiano opera uma ruptura dessa totalidade dominante, que se
configura na ontologia do Mesmo, numa espécie de fusão do Outro ao Mesmo,
consequentemente, no pressuposto da guerra. O que é anterior no filosofar de Levinas é a
possibilidade de deixar que o Outro seja como o eu não é, de permitir ser o Outro que jamais
pode ser eu, mas “ser de outro modo que ser”. O filosofar da filosofia primeira de Levinas não
é a guerra, mas a ética que questiona e depõe a soberania do Mesmo. Não é a morte, tampouco
a violência e a guerra pressupostos da filosofia de Levinas, mas o Outro como anterioridade do
seu filosofar, seu filosofar primeiro.
Considerando que o ensino de filosofia, para Levinas, consiste numa orientação que
vem da exterioridade, na qual a alteridade do Outro não domina, não é hegemônica que opera
no seio de uma totalidade, mas que se constitui num modo de ser com os outros e numa ação,
deve, nesse sentido, com sua presença que faz romper o círculo fechado da totalidade,
contrapor-se à tirania do Mesmo e abrir-se à transcendência, uma vez que, pela transcendência,
o ensino de filosofia possibilita que o Outro não se reduza ao Mesmo e não se torne um ensino
colonizado ao doutrinamento e à domesticação. Sendo assim, o ensino de filosofia “é
essencialmente acolhimento e responsabilidade pelo Outro que resiste infinitamente aos
poderes do Mesmo” (FABRI apud ALVES, 2013, p. 95).
Assim como a guerra nos remete para a possibilidade de desconstrução, através das
ações da totalidade pela maestria do Mesmo. Da mesma forma, remete-nos também para a
tentativa de uma ética, a partir da filosofia de Levinas, no sentido de confrontar a educação
baseada no saber técnico-instrumental que visa “ampliar indefinidamente a capacidade de
domínio técnico do ser humano sobre a natureza e a sociedade”. Esse saber está obstinado em
fazer da educação moderna, do próprio ensino, um produto como resultado de sua mediação,
de modo que “a construção da história passa a ser controlada, dirigida e orientada pelo próprio
ser humano”. Para a vida humana, a maior consequência disso é “a redução de toda práxis ao
fazer”. (ALVES; GHIGGI, 2011, p. 96).
Dessa forma, o confronto de um ensino filosófico assentado na ética, enquanto
acolhimento e respeito para com a alteridade frente a uma educação, converge “para a
construção de um processo de saber que coincide com a submissão da natureza aos fins
estabelecidos pelo ser humano, e este se constitui magistralmente, sujeito na medida em que se
impõe sobre o outro de si”. Sendo assim, vale afirmar que o grande desafio não é fácil. É
possibilitar ao ser humano uma experiência real com outro ser humano, um “humanismo do
21
outro homem”, expressão cara a Levinas que se traduz numa experiência cujo ensino de
filosofia se abre à atenção, ao respeito, à responsabilidade e ao reconhecimento pela alteridade.
(ALVES; GHIGGI, 2011, p. 98).
Com efeito, a compreensão desse filosofar como uma atitude pautada na ética da
alteridade visa humanizar nossas relações sociais, nossas relações de poder que, inclusive, nos
proporciona condições de humanização e compromisso ético com a transformação da
sociedade. Nessa direção de desconstrução da barbárie e de um estado de guerra presente na
sociedade é que se constitui o fim último do ensino de filosofia para Ghedin (2009, p. 38):
“Assim, o fim último do ensino de filosofia, da educação, da própria filosofia, do conhecimento,
dos paradigmas epistemológicos da ciência e da política é proporcionar condições de
humanização, e não a supremacia da barbárie”.
Daí, certamente, tem início um movimento de resgate de uma filosofia que não se
permite mais ficar girando em torno de si mesma, de suas antinomias, de suas dicotomias
tradicionais, entre ser e não-ser, saber e não-saber, idealismo e realismo, alma e corpo,
racionalismo e empirismo, pensamento e vida, e assim por diante. Levinas, contrário a essa
alteridade puramente formal da filosofia que permanece presa ao funcionamento da razão
“como um poder de manipulação, uma vez que só conquista a si mesma através de uma relação
objetivante com a Alteridade”. Pensa a educação contemporânea, por conseguinte o ensino de
filosofia, a partir de uma matriz ética de acolhimento e respeito para com a alteridade. (ALVES;
GHIGGI, 2011, p. 97).
Diante disso, após a devastação da guerra e diante de uma Europa destroçada e sem
esperança no pós-guerra, com aquele sentimento do “il y a” (há); uma espécie de sensação de
que não há mais nada, de horror, de humilhação, de vazio, de ausências de si e do Outro,
irreconhecivelmente desprovido de subjetividade, de sentido, na opacidade da destruição. De
tal modo que Levinas vai em busca de algo diferente, de uma experiência filosófica como saída,
como êxodo, como exterioridade, diferentemente daquela que o devastou e esvaziou a Europa
de humanidade. Assim podemos asseverar que:
É muito importante lembrar que Levinas está em busca de uma experiência como
saída. É a experiência como saída – e não, por exemplo, uma teologia negativa – que
tem aqui um significado importante para o conjunto de seu pensamento. Frente ao ser
não coloca um não-ser, e frente ao saber não coloca um nihilismo. Está, na verdade,
insinuando o que posteriormente será colocado como o ‘diferentemente’ de ser, que
não-ser e que saber. (COSTA, 2000, p. 45).
22
Essa nova experiência filosófica coloca em xeque o poder da razão sobre o outro. Essa
reflete as relações entre os homens de um modo diferente, despolariza a nossa relação com a
filosofia. Não é mais a razão ou o pensamento que dita a última palavra sobre o ser, mas a nossa
relação com o outro que não quer mais parar de falar. Não dá mais para filosofar preso às regras
do sujeito, numa visão autoritária cujos domínios fazem desaparecer o ser do outro ou o próprio
acontecimento do ser.
Por essa razão, tais concepções filosóficas que rompam com um pensamento conduzido
pela totalidade e guiado pelo instinto de guerra precisam nortear o ensino de filosofia em sala
de aula, à medida que dermos oportunidades para que os sujeitos, em relação uns com os outros,
tenham autonomia e, a partir de si, de suas subjetividades, expressem o sentido de suas vidas
em detrimento da totalidade.
Do mesmo modo, abrir espaço para a discussão filosófica em sala de aula caracteriza
um possível ensino de filosofia que implica estar comprometido com a atitude de hospitalidade
em Levinas. Hospitalidade esta que a vincule à noção de levar adiante, traduzir, reproduzir as
duas palavras que a precederam: “atenção” e “acolhimento”, como bem entendia Derrida (2015,
p. 40), e acrescenta: “[...] A intencionalidade, a atenção à palavra, o acolhimento do rosto, a
hospitalidade são o mesmo, mas o mesmo enquanto acolhimento do outro, lá onde se subtrai ao
tema”. Com efeito, Levinas nos desafia a receber o outro para além da capacidade de
ensinamento. Ensinar é acolher de fato o outro sem sugerir-lhe algo ou explicação. É a acolhida
de uma debilidade que ultrapassa a capacidade de um tema que dele tiraria.
Em vez do “eu penso” cartesiano, do “espírito absoluto” hegeliano, do sujeito anônimo
e inseparável de sua compreensão em Heidegger e em vez de uma “consciência de” em Husserl;
em Levinas, funciona muito mais uma filosofia voltada para a atenção e a acolhida do rosto do
Outro, hospitalidade, que não admite transformar-se em objeto, coisa ou tema. Um filosofar
que se abre à intencionalidade, desde que esteja voltada para atenção à palavra ou acolhimento
do rosto, hospitalidade e não tematização, mas que resista à tematização. Desse modo,
adquirir poder e respeito do ponto de vista social, Levinas reafirma o princípio de hospitalidade
que, em certa medida, é já uma reação ao “fechar a porta, a inospitalidade, a guerra, a alergia”
e que implica “uma declaração de paz original, mais precisamente pré-originária” (DERRIDA,
2015, p. 66).
Em virtude disso, o que se constitui aqui como paz, segundo Levinas, é a viabilidade da
paz perpétua e de uma hospitalidade universal que visem a interromper um estado de natureza
belicoso, bem como o recrutamento de indivíduos para o seu serviço, ou seja, e a de romper
com uma natureza que só conhece a guerra atual ou virtual.
Sendo assim, a atitude de hospitalidade reage às demais atitudes de perseguição e
exclusão ao outro, resiste ao dado mais originário de todos nós, de que a violência, a guerra é a
lei do ser e que o define essencialmente com base na filosofia da totalidade, cujo pensamento
pode nos conduzir à eclosão de uma guerra.
Daí a importância de um ensino de filosofia voltado para o sentido de acolher e dar
atenção ao outro, ao que nos é estranho, estrangeiro, exterior, ao que nos excede, ao que não
podemos conter, tampouco compreender ou abarcá-lo por conceitos ou pelo pensamento,
porque quanto mais assim nos dirigimos ao outro, mais afirmamos sua alteridade, sua diferença
talvez mais subjetiva, sua singularidade, uma vez que a guerra: “Instaura uma ordem em relação
à qual ninguém se pode distanciar. Nada, pois, é exterior. A guerra não manifesta a
exterioridade e o outro como outro; destrói a identidade do Mesmo” (LEVINAS, 2008, p. 08).
Como vimos, a totalidade nos remete a uma situação que é um todo completamente
acabado, fechado. Quando estamos submetidos a algo acabado ou fechado sobre nós mesmos,
não há lugar para a diferença, para a alteridade, para algo que rompa, subverta, por isso Levinas
imprime com sua filosofia, segundo o testemunho de Derrida (2015, p. 27), “um abalo filosófico
[...], o feliz traumatismo que lhe devemos, num sentido do termo ‘traumatismo’ que ele gostava
de lembrar, ‘o traumatismo do outro’ que vem do outro”, desdobrando-se em dois termos
bastante usados em sua filosofia, transcendência e infinito.
No ensino de filosofia, também é muito importante que tenhamos a atenção para essas
duas noções: transcendência e infinito. A transcendência, visto que nos inclui numa relação de
intersubjetividade ou de alteridade com Outrem, possibilita reconhecer que ensinamos e
aprendemos filosoficamente muito melhor pela relação social, cultural e histórica com Outrem;
e infinito porque nos abre para a possibilidade de não nos fecharmos em nossas próprias
verdades, ao pensarmos que são únicas e absolutas, questionando continuamente nossa
acomodada sensibilidade, convidando-nos a acolher o novo, o Outro que está sempre vindo.
24
Percebemos que Levinas advoga sim uma saída do ser para outro, na medida em que é
possível exceder-se no ser. Depois de certa persistência em ser, após cansar-se de ser ou de estar
fatigado de ser, promove então um movimento de saída de si para outro. Está disposto em
mostrar a superação do em-si do ser persistente-em-ser na gratuidade do sair-de-si-para-o-outro.
Explica o pensador:
Salvo para outrem. Nossa relação com ele consiste certamente em querer compreendê-
lo, mas esta relação excede a compreensão. Não só porque o conhecimento de outrem
exige, além da curiosidade, também simpatia ou amor, maneiras de ser distintas da
contemplação impassível. Mas também porque, na nossa relação com outrem, este
não nos afeta a partir de um conceito. Ele é ente e conta como tal. (LEVINAS, 2004,
p. 26).
Tomados pela tradição ocidental, imbuídos de uma sede pela curiosidade racional,
obedecendo ao ritmo especulativo do pensamento, certamente, nossa primeira reação inevitável
na relação com Outrem é buscar compreendê-lo. Porém, essa relação com Outrem nos
surpreende e antecede, tal como a realidade, pois é da ordem do acontecimento e excede nossa
capacidade de conhecer. É, por isso, uma relação que implica sensibilidade, amor, simpatia,
afeto e responsabilidade porque considera o homem integral. Segundo Levinas (2004, p. 30),
nossa relação com Outrem não é da ordem do conceito: “O ente é homem, e é enquanto próximo
que o homem é acessível”.
Com efeito, se prestarmos atenção ao que anuncia Heidegger (1991, p. 13) na análise da
questão: “O que é isto – a filosofia?”, não seremos conduzidos ao caminho, mas a um caminho,
25
O homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas
necessidades e seu trabalho, sua vida social e sua morte articulam, com um rigor que
reserva a cada um destes momentos uma função determinada, a compreensão do ser
ou a verdade. (LEVINAS, 2004, p. 22).
26
consequências, até seu esgotamento, por meio de um rigoroso método fenomenológico ao ponto
de mostrar a persistência ontológica dos que o precederam, Levinas não estaria nos conduzindo
ao encontro com o absolutamente Outro?
Se a relação de subjetividade entre os homens, entre nós, é uma relação fundada num
desejo infinito de outrem, certamente “somos todos culpados de tudo e de todos perante todos,
e eu mais que todos os outros” (LEVINAS, 2007, p. 82). Esta é uma referência à clássica frase
de Dostoiévski. Por isso, Levinas parte da ideia de que a ética possui uma dimensão de
reconhecimento do Outro. A consideração de que o rosto do Outro é o próprio reconhecimento
do Eu. Se existe uma dimensão de responsabilidade significa dizer que o caráter pessoal
encontra na coletividade, na relação com os outros, a sua realização.
Dessa maneira, o reconhecimento do Eu assume o reconhecimento da humanidade que
existe nele e da humanidade que reconhecemos nos outros. Isso passa pela noção de
responsabilidade, uma ética que se constitui naquilo de que somos responsáveis pelos outros.
Então, Levinas admite que é provável que a humanidade possa viver melhor se há um
reconhecimento da relação de alteridade com os outros. Diante disso, afirma o filósofo:
“Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como
responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente
me diz respeito, é por mim abordado como rosto” (LEVINAS, 2007, p. 79).
Ultimamente, essa é a concepção filosófica que nos acompanha como natureza dessa
pesquisa. A questão da alteridade em Levinas enquanto aberta a uma relação de reconhecimento
da responsabilidade pela humanidade do Outro. Tal concepção se faz oportuna aqui, na tentativa
de procurarmos problematizar o ensino de filosofia com essas questões, pois entendemos que
os problemas do ensinar filosofia estão vinculados à uma determinada concepção filosófica.
Nesse sentido, Levinas ratifica:
A exterioridade do ser não significa, de fato, que a multiplicidade não tenha relação.
Só que a relação que liga a multiplicidade não preenche o abismo da separação, antes
o confirma. Nessa relação, reconhecemos a linguagem que só se produz no frente a
frente; e na linguagem reconhecemos o ensino. O ensino é uma maneira para a verdade
se produzir de forma que não seja obra minha, que eu não a possa manter a partir de
minha interioridade (LEVINAS, 2008, p. 291).
linguagem, a palavra, a voz que se expressa e se reconhece como ensino, porquanto ensino
filosófico; a terceira, esse ensino traz o reconhecimento que a verdade não é obra nossa e que
não possamos mantê-la, sustentá-la, mas que a verdade vem de Outrem, na medida em que
Outrem tem prioridade sobre nós; vem antes de nós.
Retomando agora a experiência filosófica em sala de aula, sobretudo como a
consideramos após um novo conceito de filosofia, ou pelo menos enquanto busca desse
conceito, segundo a qual não dá mais para ensinar a filosofar sem “permanecer no diálogo com
aquilo para onde a tradição [...] libera” (HEIDEGGER, 1991, p. 20), dialogar com ela com
disposição racional, deixando-nos também afetar pelo que ensinamos. Ensinar filosofia requer
de nós uma atitude na forma de orientar o pensamento, como afirma Cerletti:
Vou afirmar que um professor de Filosofia é aquele que, acima de tudo, consegue
construir um espaço de problematização compartilhado com seus alunos. (...) Ensinar
Filosofia é, antes de mais nada, ensinar uma atitude em face da realidade, diante das
coisas, e o professor de Filosofia tem que ser, a todo momento, consequente com esta
maneira de orientar o pensamento. (CERLETTI, 2003, p. 62).
Há três questões que vem inquietando nossa prática de professor de filosofia, a saber:
1) Reconhecemo-nos como um professor de história da Filosofia? 2) Somos reconhecidamente
um professor de temas de filosofia? 3) Ou consideramo-nos um professor de cultura filosófica?
– algo agora soa diferente aos nossos ouvidos, porque essas questões chegam a nós com a
urgência e a necessidade de abrir-nos a algo novo, ao acontecimento, a Outrem. A busca pelo
conceito estaria ligada ao modo como nos relacionamos com este conceito6? Na prática
filosófica, o que nos acompanha como possibilidade de algo novo? O que está “suposto” ao
dialogar com a filosofia em sala de aula? Que convicções filosóficas dão consistência à nossa
prática?
As questões a respeito do conceito soam bem melhores agora do que aquelas questões
de antes quando a preocupação era dar conta de toda a história da filosofia, atender a um alcance
maior de temas filosóficos e absorver seus conhecimentos culturais. Porém, filosofar não é
simplesmente fazer história da filosofia, nem passear pelos temas de filosofia ou informar
conteúdos de forma erudita e enciclopédica, tal como quer a grande maioria dos manuais e
livros didáticos de filosofia. Temos a impressão de que a busca pelo conceito ou pelo caminho
6
A relação de Levinas com o conceito é um tanto quanto paradoxal, uma vez que, embora o critique quando visa
só a totalização e objetificação do Outro, “no entanto, ele precisa da razão, do conceito, do trabalho teórico para
expressar-se. Por conseguinte, trata-se de um permanente confronto com o que ele mesmo teceu. Ou seja, a ética
- pedagogia metafísica -, como valorização da Maestria de Outrem na produção do conhecimento, torna possível
a própria desmistificação do discurso filosófico que ele originou” (ALVES; GHIGGI, 2011, p. 110).
29
do que seja filosofia nos impulsionará a mudar a forma como tratamos o ensino de filosofia a
partir de então.
Quando nos perguntamos pelo conceito em filosofia, não estamos à procura de uma
palavra, de um termo que preencha uma proposição lógica, que sirva apenas para ocupar uma
lacuna em branco e que atendam aos interesses da representação. No entanto, “o conceito não
é dado, é criado, está por criar; não é formado, ele próprio se põe em si mesmo, autoposição”
(DELEUZE, 1992, p. 20).
Filosofar não é também apropriar-se de um conteúdo, a posse de um saber ou da
totalidade do mundo, porque não é uma doutrina com fins absolutamente especulativos, mas
uma atitude ou atividade do questionamento da nossa relação com o mundo, com os outros e
até entre nós. Filosofar é reconhecer a natureza ou a especificidade da filosofia: uma atitude de
alteridade. Assim, manifesta-se a alteridade: “A sua alteridade manifesta-se num domínio que
não conquista, mas ensina. O ensino não é uma espécie de um gênero chamado dominação,
uma hegemonia que se joga no seio de uma totalidade, mas a presença do infinito que faz saltar
o círculo fechado da totalidade” (LEVINAS, 2008, p. 165).
Na realidade, as relações entre nós e os alunos se dão de uma forma muito mais
cognitiva, em que os conteúdos enfrentados em sala são o que de fato importa. Ademais, o que
importa para Levinas na relação com o outro excede a capacidade de compreensão e exige
simpatia e amor. Desse modo, afirma o filósofo:
Nossa relação com ele [com o outro] consiste certamente em querer compreendê-lo,
mas esta relação excede a compreensão. Não só porque o conhecimento de outrem
exige, além da curiosidade, também simpatia ou amor, maneiras de ser distintas da
contemplação impassível. Mas também porque, na nossa relação com outrem, este
não nos afeta a partir de um conceito. Ele é ente e conta como tal. (LEVINAS, 2004,
p. 26).
Além disso, é certamente a busca por uma atitude que considere a paciência a
permanecer no filosofar, como afirma Heidegger (1991, p. 13), a “penetrar na filosofia,
demorarmo-nos nela, submeter nosso comportamento às suas leis, quer dizer, ‘filosofar’”, ainda
que poucas vezes nos dediquemos a isso com esmero, visto não resistirmos às metodologias
imediatas, aos projetos escolares apressados e a um sistema educacional achatado por políticas
públicas neoliberais para as quais só interessam resultados e uma disciplina voltada aos
conteúdos.
Assim, assinala Cerletti (2008, p. 28), “o que se poderia começar por ensinar é então
esse olhar agudo que não quer deixar nada sem rever, essa atitude radical que permite
30
Dado que só será possível a superação de pensarmos o ensino de filosofia cerceado por
uma experiência que esteja ditada ou conduzida “pelas regras do saber objetivante ou crítico,
ou pelas regras da intencionalidade técnica ou prática” (LARROSA, 2008, p. 187). A
experiência atrelada ao acontecimento nos orienta a pensarmos não somente pelo raciocinar,
pelo calcular ou pelo argumentar, como também nos tem ensinado algumas vezes, mas é,
sobretudo, dar sentido ao que somos e ao que nos acontece, como enfatiza Larrosa.
Em nosso idioma, a palavra experiência significa justamente “o que nos acontece”, por
isso, nessa perspectiva, a experiência é uma relação com o que nos acontece. Nesse particular,
Larrosa (2008, p. 186) afirma: “A experiência não é outra coisa se não a nossa relação com o
mundo, com os outros e com nós mesmos. Uma relação em que algo nos passa, nos acontece”.
Por essa razão, ao trazermos esse sentido da experiência para o filosofar em sala de aula,
não podemos permitir que a aula se transforme numa tempestade de informações fortuitas,
gratuitas ou até intencionais, destituindo seu caráter filosófico, porque, se é preciso considerar
a experiência dos alunos para uma aula de filosofia bem-sucedida, a informação é quase o
contrário da experiência porque nos priva daquilo que nos toca, nos passa e nos acontece.
Segundo Larrosa (2002, p. 21-22), a informação não é experiência e não deixa lugar para a
experiência, ela é quase uma “antiexperiência”.
Desse modo, precisamos estar vigilantes quanto a isso, uma vez que preconizamos hoje
em dia que vivemos numa sociedade da tecnologia e da informação. Muitas vezes, pelo simples
fato de estarmos informados, cada vez mais atualizados em notícias, a impressão que temos é
de satisfação da ignorância, de uma falta que acaba voltando, a insatisfação aumenta porque
essa fome, essa sede não é de informação, mas de experiência, de acontecimento. O sujeito da
informação, tendo buscado muitas notícias, acha que encontrou sabedoria, mas o que encontrou
foi a sensação de que nada o afetou ou tocou.
Por isso, uma aula de filosofia não deve se render aos apelos de uma tradição tecnicista
e reprodutivista da educação, interessada apenas na apreensão de conteúdos e conhecimentos
teóricos, mas que seja um momento oportuno para um exercício de autonomia do outro ou de
uma heteronomia7 no filosofar, possibilitando ao aluno acolher a diferença de Outrem com
liberdade, coragem e responsabilidade.
7
Segundo observa Levinas: “a subjetividade, enquanto responsável, é uma subjetividade que é
diretamente comandada; de alguma forma, a heteronomia é, aqui, mais forte que a autonomia, ressalvando que
esta heteronomia não é escravidão, não é subjugação. [...] A consciência de responsabilidade de imediato obrigada,
32
Percebemos, entretanto, que as aulas de filosofia estão sendo conduzidas de modo muito
expositivas, tomando forma de monólogo, onde só um eu tem a palavra. Numa aula de filosofia,
a palavra tem de ser compartilhada, temos que estar sempre nos remetendo aos alunos para que
a aula de filosofia não perca sua essência dialógica. Com isso, adquirir a habilidade necessária
para aproveitar a fala do aluno e relacioná-la ao assunto, desconstruindo as informações e
opiniões, retomando o tema da aula, é uma das grandes virtudes do professor de filosofia, de
modo que não perca a força da alteridade.
Sendo assim, ao direcionarmos uma temática, um problema filosófico na sala de aula, é
muito importante que os estudantes estejam implicados no problema, senão a aula corre um
sério risco de ficar centrada no professor e de perder seu efeito de envolvimento e interação.
Por conseguinte, uma estratégia bastante pertinente para retomarmos a direção da
discussão e não permitirmos que a aula se transforme num turbilhão de opiniões é a colocação
de perguntas, não quaisquer perguntas, mas perguntas filosóficas em que o outro interpele e
seja interpelado pelo respeito e atenção à sua presença. Outrem tem autonomia. Temos a
impressão de que essas perguntas e as trocas de experiências em sala constituem o espírito da
disciplina de filosofia na sala de aula, algo que jamais podemos esquecer.
Dessa forma, temos aprendido que é preciso nos concentrar naquilo que queremos
trabalhar em sala de aula com a filosofia, nas propostas e sugestões, persegui-las sem perder a
direção, a intencionalidade pela hospitalidade, a alteridade. Aí entra o aspecto da pergunta,
porque ela é um elemento direcionador da aula e ajuda a trazer a aula para tal abordagem.
Por outro lado, não podemos ir a sala de aula, desprovidos de um “desejo de
acontecimento”, que é também um “desejo de realidade”, nos dizeres de Larrosa (2008, p. 187):
“O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto, ou seja, receptivo, aberto, sensível e vulnerável.
Além de ser também um sujeito que não constrói objetos, mas que se deixa afetar por
acontecimentos. O desejo de realidade seria, então, um desejo de acontecimento”.
Possivelmente, o Outro como acontecimento do ser é mais uma tentativa de recuperar o
alcance da filosofia de Levinas como uma atividade ética, anterior a qualquer forma de
representação teórica, livre das amarras lógicas do pensamento, haja vista uma filosofia que se
liberte dos padrões ontológicos tradicionais e a supere por meio de um movimento exterior de
saída de si, de abertura infinita para o Outro e livre da totalidade.
Ademais, a dinâmica do ser de saída de si para outrem se produz ou acontece também a
partir da ideia de infinito que inquieta a subjetividade humana. Desde a constatação clássica de
por certo, não está no nominativo, está antes no acusativo”. (LEVINAS, 2004. p. 152). O princípio da heteronomia
concebe uma responsabilidade no sujeito, escolhendo-o como responsável a dar uma resposta ao Outro.
33
Aristóteles, que inicia o livro “A” de sua Metafísica, “Todos os homens desejam por natureza
conhecer”, percebemos o ser inquieto nessa disposição racional, porém não é possível conhecer
tudo, daí a necessidade de considerar a presença do infinito em nós. Segundo Levinas (2008, p.
39), “a análise da ideia do Infinito, à qual só se tem acesso a partir de um Eu, culminará com a
ultrapassagem do subjetivo”.
Sem dúvida, o acontecimento aqui se faz como consequência da ideia de infinito, da
qual está comprometida a filosofia levinasiana. É importante notar que na dura existência, no
movimento da vida, ente e ser, objeto e sujeito não se adequam mais. Então, o que está posto
ou pressuposto na ótica de Levinas, sobretudo o que se produz a partir dela, é um saber tomado
pela ideia de infinito e que se reconhece como inadequação por excelência.
Dessa maneira, seguimos os rastros do caminho levinasiano que nos conduz ao
acontecimento do outro como subversão do mesmo ou da especulação racional que vise apenas
ao esvaziamento de si. Para Levinas, Heidegger sempre falou o mesmo sobre o mesmo.
Heidegger entendia que não podíamos mais ser filósofos porque não conseguíamos mais
trabalhar os conceitos de totalidade e essência, visto que mal percebemos o conceito de infinito
em sua obra, uma vez que preferira trabalhar com o conceito de nada. Assim, como o mundo é
caótico e desesperado, não iríamos mais precisar desses conceitos. Contudo, Levinas subverte
esse pensamento.
Sendo assim, diferente dos entes, das outras coisas, somente o homem – O mundo que
constitui é diferente, não é mundo que constituímos, pois não constituímos o Outro, mas ele
nos constitui. Ele está lá desde sempre – que constitui e é constituído de ser, sentido; que
concebe o próprio mundo à sua volta pela linguagem, expressa seus desejos e suas intenções,
separa-se do mesmo, transcende a Outro. Esses dois termos, separação e transcendência,
merecem aqui bastante atenção, à medida que o Outro acontece quando separação e
transcendência se exercem no interior do ser, como estremecimento, “traumatismo” do homem.
A esse respeito leiamos:
O feliz traumatismo que lhe devemos (num sentido do termo ‘traumatismo’ que ele
gostava de lembrar, o ‘traumatismo do outro’) […] deslocava lentamente o eixo, a
trajetória ou a própria ordem da fenomenologia ou da ontologia que ele havia
introduzido na França a partir de 1930 […]. Ele abalou assim uma vez mais a
paisagem sem paisagem do pensamento; ele o fez dignamente, sem polemizar, ao
mesmo tempo do interior, fielmente, e de muito longe, a partir da afirmação de um
lugar completamente diferente. (DERRIDA, 2015, p. 27-28).
si, acontece a preocupação pelo outro até o sacrifício, uma responsabilidade por outrem. No
dizer de Levinas, “de modo diferente que ser” se constitui como um ensino capaz de romper
com a indiferença tão comum entre nós. Por essa razão, valida o filósofo:
E eis que surge, na vida vivida pelo humano – e é aí que, a falar com propriedade, o
humano começa, pura eventualidade, mas desde logo eventualidade pura e santa – do
devotar-se-ao-outro. Na economia geral do ser e de sua tensão sobre si, eis que surge
uma preocupação pelo outro até o sacrifício, até a possibilidade de morrer por ele;
uma responsabilidade por outrem. De modo diferente que ser! É esta ruptura da
indiferença – indiferença que pode ser estatisticamente dominante – a possibilidade
do um-para-o-outro, um para o outro, que é o acontecimento ético. (LEVINAS, 2004,
p. 18-19).
O desejo metafísico não aspira ao retorno, porque é desejo de uma terra onde de modo
nenhum nascemos. De uma terra estranha a toda a natureza, que não foi nossa pátria
e para onde nunca iremos. O desejo metafísico não assenta em nenhum parentesco
prévio; é desejo que não poderemos satisfazer. […] Os desejos que podemos satisfazer
só se assemelham ao desejo metafísico nas decepções da satisfação ou na exasperação
da não-satisfação e do desejo, que constitui a própria volúpia. O desejo metafísico tem
uma outra intenção – deseja o que está para além de tudo o que pode simplesmente
contemplá-lo. É como a bondade – o Desejado não cumula, antes lhe abre o apetite.
(LEVINAS, 2008, p. 20).
Tal desejo provoca na subjetividade uma abertura que a constitui como sujeito de
alteridade, cuja relação com o outro é anterior a tudo. Essa exasperação da não-satisfação de
que fala Levinas faz com que nos relacionemos com o outro não pelo que lhe falta, mas pelo
que sempre lhe excede, mesmo quando aparentemente algo lhe falte. Como o filósofo anuncia,
é um desejo que lhe abre o apetite. Daí é possível afirmar que, “para o desejo, a alteridade,
35
O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que
não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao
Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda iniciativa, a todo imperialismo do
Mesmo; outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro; outro de
uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria
rigorosamente Outro; pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o
Mesmo. (LEVINAS, 2008, p. 25).
Talvez, uma das grandes questões da filosofia de Levinas que incomoda a suposta
tranquilidade do eu é como ser Outro permanecendo o Mesmo, como construir uma outra
Metafísica sem deixar de ser Metafísica. É possível ser Outro pela identidade do Mesmo,
inclusive afirmando tal identidade? Eis a questão: “como é que o Mesmo, produzindo-se como
egoísmo, pode entrar em relação com um Outro sem desde logo o privar da sua alteridade?”
(LEVINAS, 2008, p. 25).
36
Todavia, para que a relação do eu com o Outro não passe de um número, de uma
encenação ou pura formalização, precisamos considerar a originalidade da relação entre o eu e
o Mesmo impetrada por Levinas como relação concreta entre um eu e um mundo. Afirma ele:
“Este [mundo] estranho e hostil, deveria, em boa lógica, alterar o eu. Ora, a verdadeira e original
relação entre eles, e onde o eu se revela precisamente como o Mesmo por excelência, produz-
se como permanência no mundo” (LEVINAS, 2008, p. 23-24).
Sendo assim, muito embora sejamos Mesmo e Outro, isto não quer dizer que esses
termos estejam envolvidos numa relação de adição ou de poder sobre o Outro. A conjunção “e”
aí expressa uma relação com a linguagem entre o Mesmo e o Outro, no sentido de que “o Outro,
apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo”. A partir disso, ensina
Levinas: “A relação do Mesmo e do Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como
discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de ‘eu’ - de ente particular único e
autóctone – sai de si” (LEVINAS, 2008, p. 26).
A insistência em fazer com que o Outro permaneça numa relação de transcendência ao
Mesmo segue uma coerência filosófica, uma vez que a atividade ou o esforço deste pensador
está implicado em desconstruir todo um sistema que vigorou sob a égide da ideia de Totalidade.
Ao incluir o discurso da relação que nos faz transcender para Outro, Levinas pretende promover
uma ruptura com a totalidade baseado num discurso que mantenha a distância entre mim e
Outrem, reforçando a separação radical que impede a reconstituição de uma Totalidade.
Por isso, a ruptura com a Totalidade vem a ser uma operação do pensamento diferente,
um pensamento cuja relevância está em falar: “Em vez de constituir com ele, como com um
objeto, um total, o pensamento consiste em falar. Propomos que se chame religião ao traço que
se estabelece entre o Mesmo e o Outro, sem constituir uma totalidade” (LEVINAS, 2008, p.
27).
Em virtude disso, há uma dimensão de religião entre mim e Outro. Um religare; uma
alteridade entre mim e o Outro que me constitui um sujeito religioso sem Deus, mas responsável
por outro. Temos a impressão de que, ao eleger o termo religião, Levinas institui uma
socialidade por uma relação irredutível à compreensão. Segundo ele, “a relação com outrem,
portanto, não é ontologia”. E continua afirmando que este vínculo com outrem não se reduz à
representação de outrem, mas à sua invocação, na medida em que esta não venha precedida de
compreensão. A esta invocação chama de religião (LEVINAS, 2004, p. 29).
Nesse particular, Levinas justifica o uso do termo religião para fundamentar o traço que
se estabelece entre o Mesmo e o Outro ao pensar no sentido que lhe confere Augusto Comte no
início de sua Politique Positive. Assim, afirma o pensador:
37
[…] o objeto do encontro é ao mesmo tempo dado a nós e em sociedade conosco, sem
que este acontecimento de socialidade possa reduzir-se a uma propriedade qualquer a
se revelar no dado, sem que o conhecimento possa preceder a socialidade. Se o termo
religião deve contudo anunciar que a relação com homens, irredutível à compreensão,
se afasta por isto mesmo do exercício do poder, mas nos rostos humanos logra
alcançar o Infinito. (COMTE apud LEVINAS, 2004, p. 29-30).
O ser tem lugar agora na relação entre os homens. Entre os homens e entre nós, a
linguagem desempenha uma função tal em que os limites entre o Mesmo e o Outro transcendem,
impedindo a formação de uma Totalidade. A transcendência como movimento de relação para
outrem indica que não posso abordá-lo sem lhe falar, admitindo que o pensamento aqui é
inseparável da expressão. Expressarmo-nos, porém, não é a mesma coisa que partilhar um
conteúdo comum ou compreender este conteúdo, mas consiste em instituir a socialidade como
relação imprescindível à compreensão (LEVINAS, 2008).
Além disso, contrapondo-se à ideia da possibilidade de se totalizar a todo o sentido num
único saber. Afirma, Levinas (2007, p. 63), a expressão “não-sintetizáveis”. “O não-sintetizável
por excelência é, certamente, a relação entre os homens”. Como não posso pensar Deus e o ser
conjuntamente porque admito uma relação de transcendência, também aqui não se trata de
pensar o eu e o outro conjuntamente, mas de estar diante, numa junção do frente a frente. Por
isso, segundo Levinas (2007, p. 63), “a verdadeira união ou a verdadeira junção não é uma
junção de síntese, mas uma junção do frente a frente”.
Como vimos, principalmente a partir da obra Totalidade e Infinito, a noção de
socialidade parece assumir um caráter fundamental; primeiro porque o termo religião efetiva
um movimento transcendente de saída do eu para o Outro, abrindo-nos mais ainda para uma
relação intersubjetiva; depois, “saber se a sociedade, no sentido corrente do termo, é o resultado
de uma limitação do princípio de que o homem é um lobo para o homem [guerra] ou se, pelo
contrário, resulta da limitação do princípio de que o homem é para o homem.” (LEVINAS,
2007, p. 65).
Certamente, a intersubjetividade ou a relação entre nós que Levinas quer fundar é
baseada neste último caso em que a socialidade vem de se ter limitado o infinito que se abre na
relação ética do homem com o homem. A partir disso, então, até mesmo a política pode ser
controlada e criticada pela ética. Em virtude disso, afirma o escritor:
Esta segunda forma de socialidade faria justiça ao segredo que é, para cada um, a sua
vida, segredo que não consiste numa clausura que isolaria algum domínio
rigorosamente privado de uma interioridade fechada, mas segredo que consiste na
responsabilidade por outrem, que no seu acontecimento ético é contínua, a que não
nos furtamos e que, por isso, é princípio de individuação absoluta. (LEVINAS, 2007,
p. 66).
38
a mim. Por essa razão, o ensino de filosofia se faz aí nessa produção, nesse acontecimento em
que se concebe a alteridade de uma responsabilidade por Outrem.
Tal discurso é já filosofar, porque exprime uma responsabilidade destes absolutamente
estranhos pelo pensamento que trazem, pela experiência pura e pelo traumatismo de espanto
(LEVINAS, 2008, p. 63). Nessa perspectiva, o ensino de filosofia advém de um homem, do
humano absolutamente estranho.
Assim, a dimensão de intersubjetividade proporciona e nutre o ensino de filosofia na
sala de aula, na medida em que o ambiente extremamente social, povoado de relações humanas,
possibilita uma infinidade de encontros humanos suscetíveis de acontecimentos éticos. Ao nos
responsabilizarmos por Outrem, tocados e incomodados pela fragilidade humana que nos diz
respeito. É certamente possível construirmos uma relação de ensino e aprendizagem filosófica
em que cada um traz algo novo de sua alteridade radical, em tensão relacional e social com a
história e suas experiências singulares partilhadas ali no ambiente de sala de aula.
O ensino de filosofia atrelado a essa perspectiva filosófica da responsabilidade por
Outrem supõe uma nova forma de pensar que se constrói a partir do reconhecimento da
manutenção da intersubjetividade entre nós, do olhar e do sentido do Outro que nos perturba e
interpela, porque é um modo diferente de ser que nasce do encontro de pessoas concretas,
históricas, com suas narrativas diversas.
Além disso, admitimos que essa relação de subjetividade entre os homens, entre nós, é
uma relação fundada num desejo infinito de outrem, de modo que tal relação funda entre os
homens uma dimensão de intersubjetividade ética, na qual nos sentimos responsáveis pelos
outros numa relação gratuita e desinteressada. Na citação a seguir, Levinas insiste na ideia de
que não é preciso esperar a recíproca para agir com responsabilidade, uma vez que a relação
mútua não nos diz respeito, tampouco é assunto nosso. Na verdade, é o sujeito que deve suportar
tudo independentemente do Outro, da recíproca. Trata-se aqui de uma responsabilidade radical
do Eu pelo Outro. Assim, confirma o filósofo:
Levinas parte da ideia que a ética possui uma dimensão de responsabilidade com o outro.
A consideração de que a presença do Outro é o meu próprio reconhecimento. Há uma dimensão
da responsabilidade de caráter pessoal que encontra na coletividade, na relação com os outros
a sua realização. A culpa não se refere a uma falta cometida, mas ao reconhecimento da
humanidade pessoal e coletiva na subjetividade e na intersubjetividade. Isso passa pela noção
de responsabilidade. É uma ética que se constitui naquilo de que somos responsáveis pelos
outros. Levinas admite que é provável que a humanidade possa viver melhor se há um
reconhecimento da relação de alteridade com os outros.
Ademais, a subjetividade vem entendida agora como engajamento da justiça para com
o Outro, numa espécie de altruísmo. Em certa medida, ela é sacrifício para-outro,
responsabilidade por ele, porque realmente encontrou a liberdade que consiste na entrega e na
resposta ao Outro. Nesse particular, afirma Fabri (1997, p. 94): “A subjetividade levinasiana
pressupõe um sujeito que encontrou a liberdade, na medida em que se entrega e responde ao
Outro”.
Sendo assim, a responsabilidade está inscrita na estrutura fundamental da subjetividade
que se abre como uma fenda na perspectiva da ética e que se caracteriza, segundo Fabri (1997,
p. 115), pelo dizer, como também pela responsabilidade inalienável ao Outro, de modo que
haja, assim, um processo contínuo de “ruptura do jogo do ser”.
De acordo com Levinas, temos agora um sujeito refém do Outro por causa de uma
responsabilidade infinita e insubstituível. Tal responsabilidade, por isso, não é fruto de uma
escolha livre do sujeito, uma vez que ela é anárquica. Decorre disso que a subjetividade é para
Outro, e significa responsabilidade por ele. Segundo Levinas, o dizer é uma espécie de “des-
situação” do sujeito que coloca no centro da discussão filosófica um movimento de
responsabilidade pelo Outro, a saída de si, a expulsão de si. “O Dizer é a expulsão de toda
morada, de toda habitação. […] Trata-se de uma verdadeira extradição, de uma evasão de si
como expulsão sem retorno” (FABRI, 1997, p. 125).
Quando dirigimos a palavra a outrem numa relação face a face, é muito comum algumas
vezes só conseguirmos dizê-lo no sentido de descrevê-lo como ele se mostra, talvez, porque
estejamos sendo inclinados a fazer uma espécie de análise fenomenológica do rosto do outro,
descrevendo primeiro o que nos aparece sob a afetação do olhar. Porém ser abordado ou ter
acesso ao rosto significa, antes de percebê-lo ou conhecê-lo, acolhê-lo na sua condição de
estrangeiro, de alguém que está sempre vindo, numa relação ética e aberta, contrariando
qualquer tentativa de redução do rosto que ofusque sua presença. Fundamentado nisso,
confirma o autor:
42
Penso antes que o acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético. Quando se vê um
nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se o pode descrever, é que nos voltamos para
outrem como para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer
atentar na cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação
social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela
percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele. (LEVINAS,
2007, p. 69).
Diante disso, o que não se reduz a ele é o que mais lhe interessa numa relação de
alteridade, uma vez que não se trata de falar de um olhar voltado para o ser, no sentido de
reduzí-lo à compreensão. Recorrer à temática do rosto parece uma tônica na filosofia de
Levinas, talvez para nos indicar como acontece sua proposta no pensamento contemporâneo ao
considerar a concepção de que o rosto do outro é nosso próprio reconhecimento. Se há uma
condição de responsabilidade, significa afirmar que é quando o caráter singular encontra na
coletividade a sua realização.
Em razão disso reconhecermo-nos no outro ou responsabilizarmo-nos pelo Outro é
reconhecer que a condição de humanidade também existe na humanidade que se reconhece nos
outros. Assim, o discurso sobre o rosto na filosofia de Levinas nos direciona aqui para o
problema da responsabilidade.
A pertinência ética do rosto, de fato, nos chama à atenção. Sua existência ou o
reconhecimento de sua existência, de sua importância na relação com os outros é a condição
que nos proíbe de matar: “o rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido
consiste em dizer: ‘tu não matarás’” (LEVINAS, 2007, p. 70).
Sem dúvida, ao reconhecermos essa dimensão ética de nossa relação com o rosto do
Outro, certamente as pretensões de abarcá-lo com o pensamento numa satisfação imediata de
transformá-lo em conhecimento, em saber, preso aos domínios da razão caem por terra, visto
que, é impossível conter o rosto do Outro. É justamente isso que nos ensina Levinas ao afirmar
que o rosto é a impossibilidade de transformar num conteúdo, cujo pensamento abarcaria, pois
é o incontível e conduz-nos além. Assim, há nele um caráter para além de nossa compreensão,
adequação ou satisfação.
De acordo com a perspectiva do rosto do Outro, temos a impressão de que, assim como
a pergunta na filosofia está sempre nos direcionando para os problemas que devemos enfrentar,
a desconcertante presença do rosto do Outro nos inquieta à responsabilidade pelo Outro. O rosto
reclama essa responsabilidade, de modo que a humanidade do homem é uma ruptura no ser, é
também uma ruptura com a totalidade.
Dessa forma, vamos concebendo o rosto como significação, na medida em que o próprio
rosto direciona o discurso para a responsabilidade com o Outro. Por isso, Levinas insiste na
43
relação, na ligação ao discurso do rosto. Para ele, o rosto fala, porque é o rosto que possibilita
e dá início a todo o discurso, tornando assim, por esse aspecto, a relação com outrem uma
relação autêntica. A partir disso, o filósofo acrescenta: “Recusei, agora mesmo, a noção de visão
para descrever a relação autêntica com outrem, o discurso e, mais exatamente, a resposta ou a
responsabilidade, é que é esta relação autêntica” (LEVINAS, 2007, p. 70).
O que move e dá impulso às questões ou à atividade filosófica não é a insatisfação de
respostas adequadas, mas uma interrogação que na sua origem é responsabilidade, relação com
algo em que resposta alguma consegue conter. A questão originária ultrapassa a garantia de
uma resposta. Nessa direção, o mais importante para Levinas “não é a resposta, o resultado
final, mas a própria questão; que não é mais posta pelo ego cogito”. (apud KUIAVA, 2004, p.
330).
O eu já não tem mais domínio sobre a questão, uma vez que a pergunta se apodera dele.
A questão provoca uma relação que preenche os espaços de uma possível resposta. A pergunta
é anterior a qualquer espécie de tematização introduzida por uma resposta que visa ordenar uma
determinada teoria. A resposta está aquém de satisfazer ou de ser suficiente para um problema,
sobretudo porque sua intenção é de amenizar o que é a pergunta e o que está em questão.
É importante destacar que, para Levinas, a questão originária não flerta com a
tematização de um conceito, do outro ou da lei moral em relação ao eu. Questionar é, antes de
tudo, perceber-se responsável. Não é esperar por uma resposta, tampouco contemplá-la.
Segundo Kuiava (2004, p. 330), “a responsabilidade é o dizer antes de anunciar um dito. O ‘eis-
me aqui’, expresso ao próximo, significa antes de toda experiência. A manifestação de um
sentido num tema já decorre de seu significar que ordena uma ordem, isto é, o sentido ético
como imperativo”.
Dissemos aqui que a responsabilidade está inscrita na estrutura do sujeito, de nossa
subjetividade, porém somente quando nos percebemos responsáveis e nos permitimos acolher
a abordagem do rosto, nos dizeres de Levinas (2007, p. 79): “Entendo a responsabilidade como
responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que
fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como
rosto”.
Nesse particular de que a responsabilidade não é um simples atributo da subjetividade,
continua Levinas: “Com efeito, a responsabilidade não é um simples atributo da subjetividade,
como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética. A subjetividade não é um para si:
ela é, mais uma vez, inicialmente para outro” (LEVINAS, 2007, p. 80).
44
O laço com outrem só se aperta como responsabilidade, quer esta seja, aliás, aceite ou
rejeitada, se saiba ou não como assumi-la, possamos ou não fazer qualquer coisa de
concreto por outrem. Dizer: eis-me aqui. Fazer alguma coisa por outrem. Dar. Ser
espírito humano é isso. A encarnação da subjetividade humana garante a sua
espiritualidade (não vejo como os anjos se poderiam dar ou como entreajudar-se).
Diaconia antes de todo diálogo: analiso a relação inter-humana como se, na
proximidade com outrem para além da imagem que faço de outro homem –, o seu
rosto, o expressivo no outro (e todo o corpo humano é, neste sentido mais ou menos,
rosto), fosse aquilo que me manda servi-lo. Emprego esta fórmula extrema. O rosto
pede-me e ordena-me. A sua significação não é uma ordem significativa. Permita-me
dizer que, se o rosto significa uma ordem a meu respeito, não é da maneira como um
signo qualquer significa o seu significado; esta ordem é a própria significância do
rosto. (LEVINAS, 2007, p. 81).
nós mesmos, mas é preciso conservar o espírito de desinteresse que anima a ideia da
responsabilidade pelo outro homem. Eis a radicalidade de que fala o filósofo:
Quando a voz do outro passa a ser ouvida, acolhida em suas necessidades humanas,
despertando o eu de sua indiferença, de seus interesses mesquinhos e egoístas, na medida em
que se deixa escandalizar, a humanidade do humano, a verdadeira vida, antes ausente faz-se
presente, de modo que a ontologia se desfaz, o ego entra em dissolução e as categorias do ser
são invertidas num “de outro modo que ser” afirmado por esse acontecimento ético.
Na verdade, o que Levinas está fazendo é nada menos do que afirmar a própria
identidade do eu humano a partir da responsabilidade por outrem, segundo a qual, acontece a
deposição do eu soberano na consciência de si, destituindo seu caráter reducionista e nos
encarregando de uma suprema dignidade do único, não recusável e exclusivamente humana:
“eu, não intercambiável, sou eu apenas na medida em que sou responsável” (LEVINAS, 2007,
p. 84).
Da mesma forma que existe um segredo quando se mergulha na pluralidade social onde
se é possível respeitar as liberdades individuais, cujo segredo para isso é a vida de cada um e
consiste na responsabilidade por outrem, também encontramos nessa responsabilidade ilimitada
e infinita, radical, um segredo que é essa suprema dignidade do único. Por isso, é próprio da
responsabilidade guardar a socialidade. É o que assinala Levinas (2004, p. 198):
“Responsabilidade que guarda, sem dúvida, o segredo da socialidade, cuja gratuidade total,
mesmo que vã em última análise, se chama amor ao próximo, amor sem concupiscência, mas
tão irrefragável como a morte”.
Para não ficarmos ou nos sentirmos indiferentes à vida de Outro homem é
imprescindível que possamos respondê-lo. Sem dúvida, aí está a grandeza de cada sujeito, na
capacidade de responder a outrem, na capacidade de responsabilidade pelo Outro. Sem nos
relacionarmos com outro, sem considerarmos as relações, sem nos abrirmos à socialidade,
certamente será impossível responder às suas questões ou, sequer, elas existirão. No entanto, a
relação com Outro é algo inescapável porque é anterior à autonomia do sujeito, anterior à sua
vontade e liberdade.
Nessa direção, as palavras de Ruíz são precisas:
46
A relação com outro, que é prévia à minha vontade, me interpela. Toda relação é
interpelação. Ela me afeta em muitos sentidos, me enriquece e desafia. A interpelação,
ainda prévia à minha liberdade, me responsabiliza especialmente quando o outro é
necessitado. A responsabilidade pelo outro aparece para mim na relação antes que eu
possa evitá-la. Uma vez responsabilizado tenho que dar uma resposta. Não posso
evitar a resposta. (RUÍZ, 2010, p. 40).
Logo, entendemos em que consiste a liberdade para Levinas. Ela está atrelada à
sensibilidade pelo rosto do Outro, à sensibilidade pela presença que aborda, pede, ordena,
questiona, fala, responde, respeita, reconhece. Uma liberdade que se realiza sob a ótica da
responsabilidade por outrem; a verdadeira liberdade da atenção e da preocupação pelo Outro;
que se realiza plenamente como justiça. Por isso, a liberdade configura-se como o modo de
justificação da resposta que damos à interpelação do Outro. Ainda que essas respostas sejam
contrárias, negativas e evasivas ou até vazias. Mesmo assim, estaremos dando uma resposta à
interpelação do Outro.
O princípio ético que norteia nosso caminho até aqui está ancorado num pressuposto
cujo lugar é o da relação entre os homens. Nessa relação ou nesse encontro com o outro há uma
clara possibilidade de crescermos cada vez mais em humanidade. Esta é uma condição que nos
atravessa a todos, donde vem nosso reconhecimento, respeito e responsabilidade para com
Outrem. Convocados quase que permanentemente a viver em sociedade. A partir da alteridade
humana, experimentamos o sentido de uma responsabilidade corajosa no acolhimento do Outro
que se traduz em justiça, solidariedade e amor.
Como lemos de Levinas, em sua obra Entre nós: ensaios sobre a alteridade, certamente
do prolongamento da dialética hegeliana acerca do conceito de reconhecimento8. A retomada
dessa questão possivelmente é articulada à noção de respeito, porém com um discurso bem
diferente daquele preconizado por Hegel. O sentido do reconhecimento só tem valor, para
8
O conceito de reconhecimento é uma discussão de matriz hegeliana porque deu-se a partir da obra de Friedrich
Hegel, mais especificamente da clássica dialética entre Senhor e Escravo que integra parte do livro Fenomenologia
do Espírito. Afirma, então, o filósofo moderno fundador dessa discussão: “Consideremos agora este puro conceito
de reconhecimento, a duplicação da consciência-de-si em sua unidade, tal como seu processo se manifesta para a
consciência-de-si. Esse processo vai apresentar primeiro o lado da desigualdade de ambas [as consciências-de-si]
ou o extravasar-se do meio-termo nos extremos, os quais, como extremos, são opostos um ao outro; um extremo
é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece”. (HEGEL, 2014, p. 144). Segundo Bruno (2009, p. 96):
“Para Hegel, o primeiro momento da humanidade caracterizava-se por uma consciência ingênua e passiva. Não
havia um verdadeiro conhecimento de si. Foi preciso que ultrapassássemos essa fase. Isso se deu a partir de um
confronto por reconhecimento. Hegel teatraliza essa passagem falando de uma luta entre dois indivíduos que
arriscam a vida. Nessa luta ‘de morte’, um deles torna o reconhecimento possível. Ele olha para o outro e o
reconhece como seu senhor. Essa luta é denominada ‘dialética do senhor e do escravo’”.
47
Levinas se a dignidade for mantida e garantida, numa possível relação de submissão a Outrem.
Tal submissão não retira, não anula a nossa dignidade humana numa relação de alteridade ética.
O fluxo das relações humanas e dos acontecimentos nos condiciona a ver as coisas em
si mesmas, isto é, representá-las para nós, o que significa para Levinas uma espécie de
libertação da própria posse na figura “que o acolhimento da casa instaura”, rejeitando tanto a
fruição como a posse, “é preciso que eu saiba dar o que possuo” (LEVINAS, 2008, p. 164).
Mais adiante, o próprio Levinas vai afirmar que o que paralisa de fato, é a posse e a
fruição de si, a preocupação consigo mesmo, também é o encontro do rosto indiscreto de
Outrem, que nos põe em questão, põe as coisas em questão numa dimensão de doação. Segundo
o filósofo da alteridade, somos tomados de reconhecimento por um olhar que suplica e exige
privado de tudo, visto que só nos reconhecemos nele dando. O gesto de dar é um gesto de
reconhecimento de Outrem. Por isso, a epifania do rosto, a manifestação desconcertante do
rosto nos contesta aqui, porque reconhecer Outrem é reconhecer uma fome. É dar a partir de
uma dimensão de altura, do mestre, como anuncia o pensador:
O olhar que suplica e exige – que só pode suplicar porque exige – privado de tudo
porque tendo direito a tudo e que se reconhece dando [tal como ‘se põem as coisas em
questão dando’] –, esse olhar é precisamente a epifania do rosto como rosto. A nudez
do rosto é penúria. Reconhecer outrem é reconhecer uma fome. Reconhecer outrem –
é dar. Mas é dar ao mestre, ao Senhor, àquele que se aborda como ‘o senhor’ numa
dimensão de altura (LEVINAS, 2008, p. 65).
Dessa forma, é o absolutamente Outro que nos questiona porque há nele a presença do
que nos excede e, por isso, para que nos separemos de nós mesmos, afirma Levinas, é preciso
que nos encontremos com um rosto que pergunte, suplique, exija e solicite. De fato, “falar, em
vez de ‘deixar estar’, solicita Outrem” (LEVINAS, 2008, p. 189).
Sendo assim, as figuras que melhor caracterizam a alteridade e que chamam à atenção
de nosso respeito como consequência da responsabilidade por Outrem são as figuras da
debilidade trazidas por Levinas ao debate filosófico, ao nosso filosofar, de suas experiências
pré-filosóficas, sobretudo, por ser judeu, de sua experiência bíblica: a viúva, o órfão, o pobre e
o estrangeiro. À viúva lhe carecia o esposo, o sustento da família na cultura judaica; ao órfão
lhe carecia o pai; ao pobre lhe faltava o recurso, o conforto; ao estrangeiro, cuja figura talvez
seja a mais emblemática de todas, faltava-lhe a permanência e o convívio com sua pátria. Sua
nacionalidade, sem dúvida, é o que lhe excede.
A figura do estrangeiro no discurso de Levinas ocupa um lugar de destaque e significa
também estranho, contrariando o que nos é comum. O outro é marcadamente um estrangeiro
48
devido ao seu lugar de debilidade na sociedade, seja por que não fala o mesmo idioma, seja por
que não tem uma terra natal, seja por que é imigrante e foge da guerra, da fome e da perseguição
religiosa, seja por que sofre a exclusão social de qualquer tipo, para não esquecer, os que sofrem
pela dimensão da sua sexualidade. Daí o Outro é sempre débil, por isso nos interpela a
reconhecê-lo ou não. Assim, denota o escritor:
Ora, é dessa debilidade que se produz uma responsabilidade infinita para Outrem.
Diante da debilidade ou fragilidade humana do Outro. O eu decide por destruí-lo ou libertá-lo.
Quando decidimos por libertá-lo, acabamos por exercer uma responsabilidade infinita com a
debilidade do Outro. A questão do respeito ancora-se na noção de que não podemos ficar
indiferentes à debilidade, à miséria ou à necessidade de Outrem, como sujeitos contemplativos
e alheios, mas atentos e despertos pela responsabilidade e respeito que acolha tanto uma relação
como uma ruptura, um novo despertar. Em virtude disso, assevera:
Despertar de Mim por outrem, de Mim pelo Estranho, de Mim pelo apátrida, isto é,
pelo próximo. Despertar que não é nem reflexão sobre si nem universalização:
despertar que significa responsabilidade por outrem a nutrir e a vestir, minha
substituição a outrem, minha expiação pelo sofrimento e, sem dúvida, pela falta de
outrem. Expiação a mim atribuída sem possibilidade evasiva e à qual se eleva,
insubstituível, minha unicidade de eu. (LEVINAS, 2004, p. 97).
A relação entre liberdade e responsabilidade e, por isso, respeito, é uma discussão que
está na ordem do dia do contemporâneo. Permeia, sem dúvida, boa parte dos debates filosóficos
de nosso tempo. Tal relação, a partir da expressão ao apelo da epifania de outrem, ao invés de
limitar ou restringir a liberdade, a promove para uma dimensão de bondade séria e severa frente
à inumanidade fatal. A esse respeito, afirma o pensador:
O ser que se exprime impõe-se, mas precisamente apelando para mim da sua miséria
e da sua nudez – da sua fome – sem que eu possa ser surdo ao seu apelo. De maneira
que, na expressão, o ser que se impõe não limita, mas promove a minha liberdade,
suscitando a minha bondade. A ordem da responsabilidade ou a gravidade do ser
inelutável gela todo o riso, é também a ordem em que a liberdade é inelutavelmente
invocada de modo que o peso irremissível do ser faz surgir a minha liberdade. O
inelutável não tem inumanidade do fatal, mas a seriedade severa da bondade.
(LEVINAS, 2008, p. 195).
49
É por isso que receber Outrem na sua singularidade, tal como chega para uma visita
inesperada, implica acolher a própria perturbação. Porque acolher alguém com quem me
identifico, segundo o qual me traz conforto não me desperta, tampouco incomoda, é muito
simples. Não é assim com a alteridade. A alteridade trabalha com a relação para além da minha
condição de conformidade e de conforto, portanto, respeitar o outro na sua diversidade, na sua
diferença real sem concessões traz uma perturbação que lhe é inevitável, é bem mais complexo.
Portanto, é preciso respeitar Outrem, principalmente quando somos aborrecidos e perturbados
por sua presença, por sua proximidade, inclusive quando este Outro nos persegue. (LEVINAS,
2004).
Dessa forma, é muito próprio da sua natureza, do discurso original da alteridade, para
que ele se realize de fato, que interrompa a situação acomodada da subjetividade de alguém
com uma certa intriga e perturbação, desconforto, transformando a intriga ética da alteridade
numa filosofia solidária aberta à justiça, por causa de um terceiro que nos chega faminto e
marginalizado.
Por isso, o respeito por Outrem advém de certo grau de consciência que cada um deve
ter numa relação ética de frente a frente, da qual seja possível sensibilizar-se por sua debilidade,
50
por sua condição de vulnerabilidade. O respeito por Outrem emerge daí, dessa intriga e
perturbação advinda de uma altura do rosto de Outrem, tal como afirma o filósofo: “Há no
aparecer do rosto um mandamento como se algum senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo
tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo”
(LEVINAS, 2007, p. 72).
A partir disso, muitas vezes não dá para o sujeito se autocolocar, uma vez que não há
escolha a não ser receber, acolher passivamente. Talvez, respeitar Outrem implique destituir o
eu de sua posição privilegiada, prioritária. A prioridade passa a ser Outrem. Ele vem sempre
primeiro. Ao recebermos uma visita de alguém não muito próximo, no momento da refeição é
costume que primeiro o visitante tenha prioridade, numa atitude de respeito. Nessa ocasião, a
prioridade é do Outro, do estrangeiro que veio nos visitar.
Assim como acontece na fila do ônibus, na fila de um banco ou até mesmo na fila do
self service, podemos ser eleitos, escolhidos a dizer: “primeiro o senhor”, como uma atitude
legítima de respeito, gentileza e afeto, de modo que essa relação sustenta a manutenção da
socialidade, singularidade e alteridade entre nós. Na verdade, o Outro é anterior a nossa
subjetividade; Outrem já decidiu por nós. Nessa ótica do respeito, o Outro está sempre em
primeiro lugar, diminuindo nas relações humanas e sociais a loucura da racionalidade
competitiva.
Não podemos esquecer que o rosto também se manifesta como linguagem. O rosto fala,
enquanto possibilidade de origem de todo discurso, e como forma de resposta da minha
responsabilidade por Outrem (LEVINAS, 2007). Nessa mesma ótica, na qual o rosto nos põe
em questão, afirma Levinas: “A palavra é, portanto, relação entre liberdades que não se limitam
nem se negam, mas se afirmam reciprocamente”. Acrescenta: “Ela [a condição ética] é
linguagem, ou seja, responsabilidade” (LEVINAS, 2004, p. 61).
Posto isso, o termo respeito vem compreendido aqui na sua condição ética ao retomar a
reciprocidade deste respeito não como uma relação indiferente e insensível, semelhante a uma
contemplação serena, apegada ao resultado, porém como uma reciprocidade ordenada pela
ética, cuja linguagem é a responsabilidade.
Inelutavelmente, a reação ou resposta do sujeito por respeitar o significado do rosto do
Outro passa por nossa liberdade, se ela está ou não aberta à responsabilidade indeclinável pela
necessidade de Outrem. Respeitar não é uma submissão que obstaculiza e nega a liberdade. Não
é isso. O respeito por Outrem afirma a liberdade comprometida com a responsabilidade e que
não se fecha na esfera do eu, reduzida apenas aos seus interesses e preocupações individuais.
51
Nessa direção, o respeito perderia talvez seu caráter de dignidade humana, caso não admitisse
em sua dimensão o poder de decisão do sujeito.
Na esteira da metafísica, da filosofia primeira reconhecida como ética, é que o respeito
se vincula a uma linguagem constituída pela dimensão da responsabilidade. Por isso mesmo
que o respeito vincula o homem justo a associar-se na justiça, também vinculado àquele que
reclama justiça. “O respeito vincula o homem justo a seu sócio na justiça, antes de vinculá-lo
ao homem que reclama justiça” (LEVINAS, 2004, p. 61).
É importante considerar o respeito como condição ética do sujeito, ainda que esteja sob
suspeita de sujeição e de humilhação, ainda que pense estar inclinado diante da lei, pelo
contrário, o respeito quer dizer “reconhecimento como capaz de uma obra” (LEVINAS, 2004,
p. 62). Prossegue Levinas (2004, p. 62), respeitar é “inclinar-se diante de um ser que me ordena
uma obra”. Respeitar também é colocar-se numa posição de igualdade, numa relação entre
iguais, uma vez que há uma responsabilidade justa de “comandar aquele que me comanda e de
ordenar aquele que me ordena”. Não é uma relação de um lá e outro cá, mas sim o fato de
constituir um nós. Afirma ainda Levinas (2004, p. 62): “Mas somos nós enquanto nos
ordenamos para uma obra pela qual precisamente nos reconhecemos”.
Todavia, o respeito é irredutível à ideia de justiça, haja vista que o respeito está na linha
da responsabilidade, da alteridade e, portanto, da singularidade responsável por manter a
socialidade entre nós, ao passo que a justiça é de ordem da totalidade porque “supõe a igualdade
original” (LEVINAS, 2004, p. 62). Ainda que o respeito se constitua de uma relação entre
iguais, sua essência, sua origem é da ordem do amor e, por isso, se estabelece entre desiguais,
vive da desigualdade.
Importa a Levinas, nesse aspecto, descrever a relação homem a homem, uma alteridade
humana que não é constituída pela justiça, menos ainda reduzida à totalidade, pelo contrário é
ela que torna a justiça possível, tal como afirma: “Quero descrever a relação homem a homem.
A justiça não a constitui, é ela [a relação de alteridade] que torna a justiça possível. A justiça
rende-se à totalidade” (LEVINAS, 2004, p. 62).
Percebemos que a filosofia de Levinas não abre mão dessa relação frente a frente, rosto
a rosto, homem a homem, porque é um acontecimento ético e vem antes do conhecimento
objetivo. Por isso, a cada encontro, nessa esfera do traço, do entre é que se constitui uma
responsabilidade e consequentemente um respeito devido à manifestação de Outrem no rosto
pela impugnação de mim Mesmo. Dessa altura (vulnerabilidade) emerge a palavra (linguagem)
designada como ensino. Assevera o filósofo que:
52
Para não nos limitarmos ao que já possuímos, uma vez que ensinar filosoficamente é
acolher mais do que contém em nós, é imprescindível acolher o que é diferente; receber muito
mais do que o despertar o método maiêutico do pensamento comum a todos nós. Porém, essas
duas dimensões da atividade filosófica não estão dissociadas, pois, sem a consistência do
sujeito, do eu, da própria formação da subjetividade é quase impossível o exercício da
alteridade, porque é pela afirmação da subjetividade que a alteridade acontece, transcende, num
movimento de saída de nós mesmos para Outrem, em que é possível nos encontrarmos com o
infinito, com algo ou alguém inabarcável, incontido, excedente, interminável. Assim, para
Fabri:
Ao falar sobre o ensino em sua filosofia, Levinas faz alusão a Sócrates, quer dizer, para
reforçar a ideia de que a filosofia é sempre mais do que ousamos ou aspiramos pensar. É uma
outra modalidade de ensino filosófico, ou seja, um outro-modo-que-ser de ensino filosófico
comprometido com a crítica do saber, cuja satisfação é a acumulação de uma subjetividade
conhecedora: “No fundo todo saber que pensamos possuir, e que devemos transmitir, é a
manifestação patente de um ensino impossível, de uma verdade inalcançável, de um
conhecimento irrealizável” (FABRI, 2015, p. 87).
Sócrates estava certo, não conseguiremos ensinar pela impossibilidade da linguagem se
expressar, a experiência moral e existencial inerente ao filosofar. Eis o que afirma Levinas em
relação ao ensino que vem de Outrem como correlativo da experiência: “aquele que
essencialmente em si pode falar e não se impõe de maneira nenhuma como objeto, conciliamos
54
a novidade que a experiência traz com a velha exigência socrática de um espírito que nada pode
violentar” (LEVINAS, 2008, p. 215).
Então, é preciso admitir com Sócrates a partir dessa provocação de Levinas ao seu
ensino, que a filosofia exerce um poder sobre nós semelhante a Eros quando nos captura e nos
seduz pelo amor, do qual não podemos escapar ao descobrirmos duas coisas, quais sejam: que
viver filosoficamente é mais fundamental que todo suposto saber; que abrir-se ao pensamento
é não só descobrir o Eu como relação sem ingenuidade, mas também, e principalmente, como
estranho em questão. Dessa inquietação, afirma Fabri (2015, p. 88) sobre o ensino de filosofia:
“Daí poder-se dizer que não se forma ninguém em filosofia. Pode-se apenas articular a busca
de clareza e de conhecimentos com o esforço para despertar a inquietude que nos constitui”.
Contudo, Levinas acredita que o ensino filosófico nos introduz algo novo nesse
pensamento posto em questão pela estranheza, pela perturbação ou inquietação de uma altura
que significa o rosto do Outro, de um absolutamente novo que nos concerne é Outrem. Anuncia
o filósofo que a introdução do novo num pensamento é acolher a ideia do infinito, pois é o que
caracteriza a obra da razão e não se opõe ao experimentado, mas rompe com um movimento
nostálgico de retorno ao Mesmo, surpreendendo-nos com algo novo pela fecundidade9 da
palavra, da linguagem. Para o filósofo é:
9
Segundo o próprio Levinas, a fecundidade se traduz pelo produzir-se, pela potencialidade do dizer, de renovar-
se. (LEVINAS, 2008, p. 266-268).
55
O Outro numa relação de alteridade exige resposta, porque a relação não é mais
meramente horizontal, porém assume o apelo de uma altura vinda da voz do pobre, da viúva,
do órfão, do estrangeiro, do feminino, de um reconhecimento pela diferença. Figuras humanas
que significam o rosto da debilidade, numa situação que clama responsabilidade e respeito.
Numa sociedade extremamente marcada pelo domínio do masculino, o maior desafio do ensino
de filosofia é propor a reconstrução de um novo homem, de um novo ser humano que respeite
a alteridade e o acolhimento da diferença.
Vale ainda ressaltar o caráter da presença reservada à mulher que se percebe num
movimento de alteridade bem peculiar que se abre e se recolhe. “Trata-se de uma presença
reservada que se revela e se retira. Uma misteriosa aproximação que não se instala de fato e que
não se anula” (RIBEIRO, 2015, p. 59).
Considerando o alcance da filosofia de Levinas com seus escritos sobre o Talmude, onde
aparecem um pouco mais de suas análises sobre o feminino inspiradas na tradição judaica, sem
querermos com isso reduzir o aspecto filosófico às suas experiências pré-filosóficas,
destacamos de modo mais contundente o papel da mulher na relação com um mundo hostil
produzido pela autoridade masculina, tal como aponta Ribeiro:
10
“A casa que funda a posse não é posse no mesmo sentido que as coisas móveis que ela pode recolher e guardar.
Ela é possuída, porque ela é, doravante, hospitaleira ao seu proprietário. O que nos remete à sua interioridade
essencial e ao habitante que a habita antes de todo habitante, ao acolhedor por excelência, ao acolhedor em si – ao
ser feminino”. (LEVINAS apud DERRIDA, 2015, p. 60).
56
O feminino foi descoberto nesta análise como um dos pontos cardeais do horizonte
em que se coloca a vida interior – e a ausência empírica do ser humano de ‘sexo
feminino’ numa morada nada altera a dimensão de feminidade que nela permanece
aberta, como o próprio acolhimento da morada. (LEVINAS, 2008, p. 150).
Em certa medida, talvez aqui esteja esboçada a objeção de Levinas contra um possível
androcentrismo, segundo Derrida, serviria também de uma espécie de manifesto feminista, uma
vez que é “a partir da feminilidade que ele afirma o acolhimento por excelência, o acolher ou a
acolhida da hospitalidade absoluta, absolutamente originária, pré-originária mesmo, quer dizer,
a origem pré-ética da ética, e nada mais que isso” (DERRIDA, 2015, p. 60). O alcance desse
pensamento é de uma radicalidade essencial e meta-empírica, de uma certa profundidade que
leva em consideração a diferença sexual numa ética emancipada de uma provável redução à
compreensão.
Sem dúvida, estamos diante de um pensamento do acolhimento lembrado pela diferença
sexual que jamais será neutralizada, até porque o feminino como o acolher por excelência,
acolhimento absoluto, absolutamente originário, pré-original, tem lugar numa interioridade,
cujo senhor ou proprietário recebe a hospitalidade que em seguida ele queria dar.
58
Dessa forma, é possível até confiar a abertura do acolhimento ao “ser feminino” e não
às mulheres empíricas de fato. Por isso, assegura Derrida (2015, p. 60): “O acolhimento, origem
an-árquica da ética pertence à ‘dimensão de feminilidade’ e não à presença empírica de um ser
humano do ‘sexo feminino’”.
Por essa razão, independente do que se possa especular sobre o feminino em Levinas,
tanto pelo viés extremo do androcêntrico, quanto pelo viés extremo da feminista, guardemos
apenas isto, como orienta Derrida (2015, p. 61): “devemos lembrar, mesmo em silêncio, que
este pensamento do acolhimento, na abertura da ética, está necessariamente marcado pela
diferença sexual”.
Levinas assume o feminino como um dos pontos cardeais de seu pensamento filosófico
porque é uma questão que aparece constantemente em seus escritos, quer filosóficos quer
religiosos, também muito importante para ter uma noção geral de sua obra. Visto ser um tema
que atravessa sua obra, com várias nuances e abordagens. O feminino é remetido aqui à
Totalidade e Infinito visando sua articulação com a alteridade.
De qualquer forma, é a partir do feminino que a interioridade se forma e se desenvolve.
Em Levinas, o feminino vai se apresentando em relação à mulher, à morada de uma forma
misturada em alguns casos, e em outros, de forma separada, mas com características diferentes
de acordo com lugares e momentos específicos.
Já no final da obra Totalidade e Infinito, mais precisamente na última secção, cujo título
é “Para além do rosto”, o feminino vem traduzido como Outro da relação erótica que acaba
possuindo um rosto específico, isto é, um “rosto feminino”.
À medida que o Outro se mostra como rosto feminino numa relação erótica, o Eu se
apresenta como subjetividade amorosa ou subjetividade da fecundidade. Dessa forma, só é
possível falarmos de relação erótica se falarmos de amor, muito embora saibamos que é um
tema, cujo sentido autêntico se perdeu ou está bastante desgastado. Amor e fecundidade
perturbam o Eu, mas a perturbação que o outro provoca no Eu é diferente. Na ambiguidade do
Eu, a equivocidade do erótico se revela, afirma Levinas. Em consequência disso, no feminino
o Outro se afirma com a “Amada”; no masculino, o Eu se mostra porque aponta a forma de
amar a diferença sexual.
Sendo assim, munido dos cuidados necessários para não tratarmos o rosto como fonte
de compreensão, ao falarmos do feminino, damos características próprias a esse rosto. Por isso
que, ao referir-se à “Amada”, Levinas a descreve como ternura, fragilidade, vulnerabilidade,
um “não-ser-ainda”.
59
O amor se coloca num plano diferenciado do outro quando visa a Amada. Esta é
ambiguidade por excelência, na medida em que não mostra um significado em si mesmo,
contrário ao Outro, cujo significado não admite mudança ou deslocamento de sua própria
palavra. Por conseguinte, o rosto feminino é “insignificância”, não tem palavra. Não há
significação para sua forma de ser: “a simultaneidade ou equívoco dessa fragilidade e do peso
de não-significância, mais pesado do que o peso do real informe, denominamos feminidade”.
(LEVINAS, 2008, p. 256).
Diz Levinas que, quando nos deparamos com o feminino, visamos à satisfação,
percebemos algo que vai além da necessidade ou da consumação da necessidade. Assim é a
linguagem da carícia: a forma dos amantes se buscarem que é feita de necessidade e desejo.
A carícia interrompe o curso do poder, de tal modo que consiste em não se apoderar de
nada. Quando procura a fraqueza da feminidade, sem compaixão pura e sem impassibilidade,
deleita-se na compaixão, visando à complacência da carícia.
Para Levinas, o que nos reconduz à virgindade do feminino, para sempre inviolada, a
carícia, na sua satisfação como um desejo que anima, renasce. Ensina o filósofo da alteridade:
11
Filósofo ainda em atividade na Escola de Frankfurt, Alemanha. Desde o século passado, Axel Honneth tem se
dedicado ao estudo da categoria reconhecimento de lastro hegeliano, retomando a ideia de autoconsciência pela
relação de dependência da experiência intersubjetiva de reconhecimento social, de modo que a construção da
identidade pessoal e coletiva vem confirmada por uma luta por reconhecimento ético.
62
Desde que começamos a falar do Ensino de filosofia até aqui, não nos esquivamos em
tratá-lo sob a ótica de uma concepção de ensino, ou seja, para ensinar filosofia é indispensável
assumirmos, de modo claro ou não, certas posições filosóficas, alguns conceitos filosóficos.
Por isso, o envolvimento da filosofia com o qual nos ocupamos, com os alunos da escola de
Florânia/RN, é por demais especial e importante, uma vez que os conceitos, os problemas
alicerçados sobre o ensino de filosofia preservam uma relação bem familiar com a concepção
de filosofia que se comunga (GALLO, 2003).
Desse modo, ainda que tenhamos um enorme capital histórico e cultural das produções
filosóficas, bem como uma gama de variações temáticas, contando também com alunos que
apresentam temas de seus interesses, mesmo assim é viável que o professor adote a concepção
de filosofia capaz de conduzir sua atividade em sala de aula, sem dispensar uma atitude cada
vez mais aberta diante do aluno.
“Todos nós, professores e alunos, e até mesmo os filósofos, temos pressupostos que
marcam nosso pensar” (CAMPANER, 2012, p. 32). Nesse particular, não ensinamos filosofia
de modo neutro, tampouco de lugar nenhum, pelo contrário, nossa filosofia ganha sentido
quando procuramos ensinar e aprender a partir de um diálogo com os alunos, abrindo espaço
63
também para o exercício do diálogo entre eles. Isso contribui, em certa medida, para que o
professor de filosofia se veja como filósofo, cuja atividade de fato exprima o filosofar na relação
social com os alunos, numa posição diferente daquela do mestre monólogo e explicador, porém
semelhante àquele que filosofa com os alunos.
Nesse sentido, o ensino de filosofia na sala de aula apresenta-se bem participativo
porque convoca seus alunos a fazer algo juntos, tal como pretende ser o ato de participar de
uma aula de filosofia, pois não deve ser um ato isolado, que fazemos sozinho e sem a companhia
de alguém, contudo, deve ser um ato que fazemos com os outros, ou até mesmo, em conflito
com os outros.
É justamente numa relação conflituosa desde o início que se assenta a concepção de
reconhecimento de Hegel, de cuja fonte bebem aqueles que se identificam com a ideia de que
o indivíduo só pode ter uma relação consigo mesmo a partir do outro, porém conflituosa, e que
vai constituir as primeiras relações humanas de dominação. Por essa razão, Honneth coloca
como objeto central da Teoria Crítica o conflito social, extraindo daí seus pressupostos
filosóficos que fundamentam também seus critérios normativos. Precisamos destacar, segundo
Hegel, que o mais importante no reconhecimento, quando os indivíduos lutam entre si, é o
desejo do reconhecimento do outro a respeito de sua existência livre.
Na verdade, é essa dimensão de socialidade que nos concerne, é a presença perturbadora
do outro que nos concerne, da qual não conseguimos escapar e, sem a qual, é praticamente
impensável lutar por reconhecimento. Nossa vida está condicionada a uma vida em grupo, a
qual é praticamente inevitável.
É dessa forma que a humanidade se socializa, ainda que a sociedade carregue consigo
inúmeras questões, dentre elas o fato de saber até que ponto, ao pertencermos a um determinado
grupo, não ferimos nossa individualidade e autonomia crítica, o que poderia resultar em atitudes
grupais homogêneas e opressoras, desaparecendo assim a força das liberdades individuais.
Outro risco que corremos ao buscarmos reconhecimento por meio das relações em conflitos
sociais com os outros, na forma de grupos sociais, é discernir em que medida as diferenças
identitárias legítimas não são distorcidas num mero pretexto para o desrespeito e a
inospitalidade.
Assim, como não podemos fugir da vida e de suas circunstâncias, contingências,
também não podemos fugir dessa condição humana imprescindível, a socialidade. O ato de
socializar-se, o ato de participar ou de encontrar-se com outros não é uma escolha, porque
independe de nossas vontades. Quem pensa que o domina, controla e manipula, escapando da
surpresa, está enganando a si mesmo.
64
A socialidade é uma verdade que nos atravessa, está ao nosso derredor e por mais que
teimamos escapar, fugir para uma ilha longínqua e inabitável, supostamente intocável, ainda
assim a sociedade estará sempre atrás de nós, à nossa frente, em volta de nós. E para fortalecer
essa verdade em nós, estamos bem servidos das palavras de Aristóteles, que nos definiu
acertadamente: “somos animais políticos”, somos seres sociais, de modo que nos conduz
necessariamente a tomar parte, a participar de grupos sociais e humanos, como também a viver
nossas vidas juntamente com tantas outras pessoas semelhantes e diferentes de nós.
Por essa razão, a sala de aula, em que se fala de filosofia, ainda é um dos poucos espaços
de plena socialidade, aberta ao encontro das pessoas, fomentando a formação de grupos sociais
e de uma vivência coletiva entre os alunos, por isso tudo ajuda a quebrar a ilusão do isolamento
entre as pessoas. Mas, não só uma aula de filosofia pode quebrar a ilusão do isolamento das
pessoas, outros espaços também podem dar esta oportunidade, como o próprio trabalho, uma
festa no clube ou um evento religioso na igreja e assim por diante.
Ao retomarmos o que afirma Honneth em seu texto “O eu no nós: reconhecimento como
força motriz de grupos”, veremos que uma das palavras-chave é a questão da socialização, que
passa, certamente, pela noção de grupos sociais para sustentar ainda mais sua teoria crítica de
luta por reconhecimento.
Para Honneth (2013, p. 60), diferente de outras imagens12 do século XX, do ponto de
vista da sociologia e da teoria política, “prevalece atualmente uma imagem predominantemente
positiva do grupo, totalmente impregnada pela manifestação da comunidade cultural, ou seja,
pelo pequeno ou grande grupo integrado por linguagem, tradições e valores”. Ademais, a ênfase
aqui se volta para a geração de identidades coletivas, cujo dever seja dar ao indivíduo segurança
e integridade psíquica, embora pareçam unilateral, sob processos segundo os quais se
configurem na forma de desvio face aos sistemas predominante de valor.
Essa imagem positiva das relações sociais, dos encontros com os outros, ou mesmo da
manutenção da alteridade que se exprime também pela afirmação e interesse dos agrupamentos
sociais, em Honneth se constrói frente a uma gama de concepções negativas, oriundas das
construções de grupo típicas de cada época, mas que se apega em apenas um dos possíveis
atributos de agrupamentos sociais e moldá-los em torno de uma concepção definidora e
generalizante de tudo. Quanto a isso, assim se refere esse filósofo:
12
Como ocorre, lamentavelmente, na psicanálise, segundo a qual ainda prevalece uma imagem
predominantemente negativa do grupo, cuja existência, em seguimento a Freud, é explicada geralmente pelos
impulsos de uma compensação da fraqueza do eu. (HONNETH, 2013, p. 60).
65
Ele confronta aqui as duas concepções, a negativa e a positiva, para expor os problemas
que envolvem ambas. Os que defendem a primeira estão imbuídos, quase totalmente, da
imagem de massa regressiva. Paralelamente às concepções negativas, estão os que defendem
as construções positivas, “nas quais se refletem esperanças de um efeito benéfico dos
agrupamentos sociais” (HONNETH, 2013, p. 58).
Posteriormente, ainda que influenciado ou motivado pela psicologia social
estadunidense “ao descobrir as funções civilizatórias dos grupos de jogos e de vizinhança”,
somado ao estudo revolucionário de Piaget acerca do desenvolvimento moral da criança que
prova a relevância socializadora do grupo de pares, Honneth admite nessas teorias “expectativas
exageradas sobre a existência de grupos sociais primários, nos quais se via uma garantia natural
de relações sociais livres de conflito” (HONNETH, 2013, p. 58-59).
Como vimos, por um lado, a exemplo da psicanálise que não consegue admitir que a
imersão no grupo social possa beneficiar as forças do eu do indivíduo, por outro lado, a exemplo
da pesquisa sociológica sobre grupos, carece a consciência dos riscos que podem ameaçar o
indivíduo pela reativação inconsciente de antigas relações com objetos. Temos de um lado, o
risco do indivíduo dissolver-se na massa, nos agrupamentos sociais, é o risco da atomização do
eu. De outro, vemos o risco de surgirem relações sem conflitos como garantia natural de
relações sociais livres.
Com o passar do tempo, de acordo com as análises de Honneth, esse ideal de grupo vem
perdendo lugar, muito por causa, hoje em dia, da popularização do comunitarismo, na qual a
figura da comunidade cultural assume um lugar diferente, onde se encontra um ambiente
impregnado de valores, de modo que o indivíduo possa desencadear uma personalidade forte,
impossível de atingir nas meras relações jurídicas da sociedade (HONNETH, 2013).
Para o teórico da luta por reconhecimento, são nossas dependências individuais por
experiências de reconhecimento social ou até mesmo as possíveis necessidades individuais que
nos arrastam quando almejamos participar de grupos sociais. Segundo ele, há uma
correspondência entre as formas individuais de reconhecimento no desenvolvimento do ser
humano e o desejo de participar, de envolver-se em diferentes grupos.
66
Outro aspecto importante, pelo qual Honneth (2013, p. 62) procura “retirar
gradativamente aquelas idealizações que estavam na base da premissa inicial de uma diluição
harmônica do eu no nós do grupo”, é a influência da psicanálise de Donald Winnicott ao
tematizar as tendências regressivas que frequentemente codeterminam a vivência no grupo.
Embora sabendo que todo esse esforço ainda não é suficiente para ajustar seu pensamento de
grupo social à realidade social, Honneth não se furta em promover explicitamente sua
convicção: “Eu parto da convicção de que a formação do eu do sujeito se realiza através da
gradual internalização de um comportamento social reativo, que tem o caráter do
reconhecimento intersubjetivo”. E mais: “Às reflexões que quero expor com relação às
diferentes formas de criação de grupos, subjaz uma concepção sobre o desenvolvimento social
e da personalidade humana vinculada à teoria do reconhecimento” (HONNETH, 2013, p. 62).
Desse modo, o processo de socialização que se realiza nos estágios de desenvolvimento
de interação do ser humano com seus pais na infância vai construindo um sujeito cada vez mais
autônomo, à medida que este sujeito participa também de diferentes grupos sociais. Ao
contrário do que muitos pensam, o sujeito, o eu, não se dissolve ou desaparece num grupo social
em contato com o outro generalizado, mas aumenta seu grau de autonomia, como afirma
Honneth (2013, p. 62-63): “Podemos diferenciar mais este processo de socialização, se
distinguirmos analiticamente esta autorrelação em vários estágios, em cada um dos quais
aumenta o grau da capacidade de autonomia”.
Por isso, a interação social entre as pessoas é tão importante para a formação da
autonomia que a autorrelação positiva possibilita - advinda da diferença entre três estágios,
quais sejam: a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima - tornar mais complexo e exigente
o comportamento de reconhecimento. A partir disso, da internalização desse processo, a criança
e consequentemente o sujeito em desenvolvimento acaba tomando consciência de suas
capacidades e direitos. Corroborando com essa ideia, afirma o filósofo:
do sujeito compreender-se, de fato, pelo processo de socialização cuja relação consigo mesmo
lhe diga alguma coisa, ressignificando e melhorando a sua vida.
Nesse aspecto, o sujeito vai se concebendo aos poucos como um membro competente
de seu ambiente social que, na afirmação de Honneth (2013, p. 64) , vem confirmado pela
internalização da relação de reconhecimento que “gradativamente se diferencia, leva ao
surgimento de uma forma complexa de autorrelação”.
Sendo assim, Honneth está convencido, em certa medida, de que o processo de
socialização está conjugado com o “devir da autonomização”, visto que, para cumprir com as
normas e habilidades socialmente esperadas, só é possível o sujeito que as assumir para si, como
o núcleo prático de sua própria autocompreensão.
A partir do que ensina Honneth sobre a diferença dos três estágios da autorrelação
positiva, tal como se expressa nas formas de autoconfiança, autorrespeito e autoestima,
sugerimos então, que o sujeito ou o aluno quando interage num grupo semelhante ao de uma
sala de aula com outros sujeitos, pode encontrar aí uma fonte de humanização para desenvolver
suas potencialidades e tornar-se, por esse processo de socialização, um sujeito mais autônomo.
Certamente, um ensino de filosofia que favoreça o aluno a experimentar práticas
positivas de participação em grupos, inserindo-o num processo de socialização em que as
formas de reconhecimento se fortaleçam cada vez mais, representa um reflexo do
comportamento original de reconhecimento. Que o ensino de filosofia venha acompanhado de
uma consciência obstinada que possibilite o exercício da filosofia em sala de aula como
experiência a ser considerada importante nas próprias carências, na sua capacidade de
julgamento e, principalmente, nas suas habilidades que necessitam de renovação e reconstrução
pelos sujeitos sociais ali empenhados em participar de uma vida em grupo.
E, nessa direção, considerar um ensino de filosofia que assuma seu compromisso com
uma atividade do filosofar ainda mais aberta ao processo de socialização e ao contato com o
outro na perspectiva de que ela siga experimentando aquela postura direta do reconhecimento
da humanidade do Outro, mediada por gestos e palavras. Empenhados nisso, possamos dar
oportunidade aos alunos de filosofia, no ambiente social da sala de aula, para satisfazer suas
necessidades quase naturais, na visão de Honneth (2013, p. 65), de serem reconhecidos “como
membros em grupos sociais nos quais eles possam ver confirmadas duradouramente, através de
interações diretas, suas necessidades, sua capacidade de julgamento e suas diversas
habilidades”.
Nesse sentido, podemos dizer ainda que a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima
possam se concretizar no ambiente da sala de aula, no qual o ensino de filosofia aconteça. É
68
preciso que, para isso, as condições sociais sejam propícias e favoráveis ao cultivo de valores
que correspondam à humanização do sujeito.
Por isso, muito mais do que possibilitarmos um ambiente social oportuno para a
aprendizagem de conceitos filosóficos e suas antinomias, além disso, somos responsáveis por
disseminar o que podemos não só conhecer filosoficamente, mas reconhecer. Reconhecer a si
mesmo, numa busca incessante por identidade, dentro das relações sociais em grupos, onde os
outros ensinem a tratar a si mesmo como sujeitos ou pessoas, detentoras de certas qualidades,
competências e habilidades.
Como a nossa proposta aqui é expor as principais formas de reconhecimento em
Honneth pela figura praticamente irreconhecida da mulher ou do feminino em nossas relações
sociais, aproximamos os principais conceitos deste filósofo à luta da mulher por
reconhecimento social. Dessa forma, retomamos a concepção filosófica de Honneth que expõe
a problemática do reconhecimento presente nas relações sociais de amor, direitos e estima social
toda vez que falarmos da mulher em sala de aula.
Infelizmente, a mulher vem sendo tratada muito mais como objeto sexual e de
dominação social do que como um ser que inspira respeito, afeto, competências e habilidades.
Ela vem sofrendo também uma visível discriminação no modo como é remunerada. O
tratamento desigual nesse campo salarial em relação ao modo como o masculino é remunerado
e imensamente valorizado é incomparável e extremamente injusto.
Inclusive, a busca por reconhecimento salarial da mulher em condições de trabalho
semelhantes ao do homem é legítima. Assim como é legítima a luta por respeito quando sua
dignidade é fortuitamente consumida pela violência masculina. Muitas vezes, não só violência
de controle, dominação e desigualdade de direitos por parte do masculino, consequências de
uma injusta desigualdade de condições sociais, mas também violência física de destruição do
outro feminino, visto como inferior, fraco, invisível e vulnerável.
Por essa razão, é preciso criar condições mais humanas e sensíveis nas relações sociais
entre nós em que a mulher possa reafirmar aquilo que Honneth denomina de “dignidade” (2013,
p. 66), isto é, um tipo de autorrelação positiva de “autorrespeito” que o sujeito pode ir
construindo diretamente consigo mesmo, numa espécie de “autoconfiança” à medida que as
formas de reconhecimento vão se repetindo em contato com os outros num face a face ou em
grupos ou em movimentos sociais ao ponto do sujeito conseguir discernir, separar seu
discernimento próprio do discernimento dos outros. Segundo Honneth (2013, p. 66), o sujeito
passa a aprender isso no fim da adolescência.
69
Se há, nesse sentido, um sujeito que exaure, o tempo todo, suas relações face a face, este
sujeito é a mulher, cujas condições de vulnerabilidade a coloca num lugar de reivindicação
constante. É um ser que mais luta por autonomia e emancipação diante de uma sociedade em
que os valores masculinos se sobrepõem aos do feminino.
Independente disso, as pessoas, os sujeitos em geral, incluímos aqui a mulher,
encontram muito cedo, já na infância, a realização de relações sociais bem-sucedidas quando
os pais, os irmãos ou amigos confirmam a disposição “de um punhado de talentos e habilidades
importantes” (HONNETH, 2013, p. 67).
Como sabemos, nem todos encontram relações bem-sucedidas quando criança e, por
isso, aumenta o número de vulnerabilidades com desejo de reconhecimento social, pela busca
de afirmação de seus valores. Não só a família e amigos assumem esse papel de fortalecimento
da identidade individual por meio do reconhecimento social, mas principalmente a escola.
Leiamos o que o pensador afirma a esse respeito:
Mas, com o ingresso na escola e, sobretudo, mais tarde na vida profissional, cresce
muito o círculo daqueles de cuja estima a própria autoestima depende, de modo que,
em reação à maior vulnerabilidade, também aumenta o desejo de aprovação e
confirmação concretas. (HONNETH, 2013, p. 67).
Desse modo, observamos que o processo de socialização desde a família, passando pela
vida profissional, pela inserção na escola, nos grupos e movimentos sociais. Destacamos a sala
de aula como círculo social importante. Esse responsável ou é um solo fértil para acolher as
vulnerabilidades de autoconfiança, autorrespeito e autoestima que dependem de mais
confiança, mais respeito e mais estima.
Constata Honneth que à medida que vamos crescendo e nos desenvolvendo, mais e mais
percebemos o quanto nossos círculos de amizade aumentam, fazendo-nos cada vez mais
participantes de grupos sociais, envolvidos pelas necessidades que nos afetam e intrigam
eticamente. Os clamores das vulnerabilidades passam a ser ouvidos com mais intensidade à
medida que saímos do ambiente familiar e entramos, de acordo com Honneth (2003, p. 118),
num “processo de formação, descrito na qualidade de um movimento de reconhecimento,
mediado pela experiência da luta, como um processo intramundano, realizando-se sob as
condições iniciais contingentes da socialização humana”.
Com isso, a luta por reconhecimento se torna cada vez mais intensa e inescapável, pois
necessitamos, enquanto indivíduo e sociedade, dos conflitos uns com os outros e dos conflitos
70
com as diferentes culturas, resultado dessas interações sociais, por meio das quais todos nós
buscamos desenvolvimento e constante reconstrução.
Portanto, como vimos, a cada nova busca por reconhecimento no curso da formação de
nossas identidades, somos ainda mais compelidos a entrar num conflito intersubjetivo, porque
estamos sequiosos de autonomia, como consequência de uma confirmação ou de uma
correspondência social a ser alcançada. Veremos mais adiante como o conflito é inerente à
construção social do sujeito, bem como à formação das nossas relações de intersubjetividade.
processo de reconhecimento mútuo que sinaliza para uma reciprocidade ideal entre sujeitos,
“na qual cada um vê o outro como seu igual e também separado de si” (FRASER, 2010, p. 117).
A partir daí, Axel Honneth, filósofo contemporâneo da teoria crítica, diz que o
reconhecimento surge da ideia de que para você fazer parte de uma sociedade e para ter até
certo ponto a experiência de ser livre você precisa ser reconhecido como tal, como uma pessoa
livre ou como membro de uma sociedade.
É possível notar, pela filosofia de Honneth, que o reconhecimento na sua acepção
moderna ganhou um espaço de grande repercussão, muito por causa dos conflitos sociais não
se restringirem apenas ao âmbito moral, individual, mas se ampliarem ao nível social e político,
assumindo assim um status de causa social coletiva.
Com isso, a visão filosófica de reconhecimento colada à ideia de intersubjetividade
hegeliana se alarga ainda mais, na medida em que Honneth retoma a relevância do
reconhecimento intersubjetivo na autonomia e autorrealização de sujeitos na construção de
justiça social.
Desde Hegel, a intersubjetividade será responsável por conduzir o reconhecimento
como “matriz”13 ética onde acontecem os conflitos e embates sociais. Nas três tarefas
fundamentais apresentadas por Honneth, em sua escrita Luta por reconhecimento, aparece a
intersubjetividade colada a uma teoria de teor normativo e descolada da situação teórica
atribuída a Hegel. Da primeira tarefa advém a crítica: “não considera a relação intersubjetiva
como um curso empírico no interior do mundo social, mas a estiliza num processo de formação
entre inteligências singulares” (HONNETH, 2003, p. 120).
Por sua vez, a segunda tarefa fundamental de teor normativo, levantada por Honneth
(2003, p. 121) para reivindicar uma intersubjetividade mais atualizadora mediante a
necessidade de “uma fenomenologia empiricamente controlada de formas de reconhecimento”,
afirma que:
13
Preferimos usar o termo “matriz” para dar ênfase ao seu caráter interativo e recíproco ao que estamos falando,
isto é, Honneth transforma a intersubjetividade, mas também é transformado por ela.
72
etapa alcançada de sua comunitarização, os sujeitos são compelidos, [...], a entrar num conflito
intersubjetivo, cujo resultado é o reconhecimento de sua pretensão de autonomia”. O filósofo
da teoria crítica visualiza, dessa tese, duas afirmações muito fortes, quais sejam: 1) “que faz
parte da condição de um desenvolvimento bem-sucedido do Eu uma sequência de formas de
reconhecimento recíproco”; e 2) “cuja ausência se dá, a saber, aos sujeitos pela experiência de
um desrespeito, de sorte que eles se veem levados a uma ‘luta por reconhecimento’”
(HONNETH, 2003, p. 121-122).
De qualquer forma, é preciso investigar, segundo Honneth, se a sequência ordenada das
etapas de reconhecimento em Hegel pode resistir a considerações empíricas; ainda, “se é
possível atribuir às respectivas formas de reconhecimento recíproco experiências
correspondentes de desrespeito social”; e, portanto, “se podem ser encontradas comprovações
históricas e sociológicas para a ideia de que essas formas de desrespeito social foram de fato
fonte motivacional de confrontos sociais” (HONNETH, 2003, p. 122).
O próprio Honneth herda de Hegel essa noção de intersubjetividade, na qual nos
possibilita a oportunidade de nos reconhecermos tanto em nossas potencialidades quanto em
nossas competências e qualidades. Daí, a possibilidade de uma intersubjetividade desenvolver
nos sujeitos uma espécie de comunhão, reconhecendo no outro a sua singularidade e
originalidade, capaz de motivar novas lutas de reconhecimento.
Ademais, o aparecimento de novas experiências de reconhecimento social, além de
formar o indivíduo para apreender mais de si e de suas dimensões de identidade, também
fortalece sua estrutura psíquica para suportar os conflitos sociais.
Tais conflitos, segundo a perspectiva Honnethiana, não obedecem apenas ao viés da
autoconservação ou autopreservação dos indivíduos como pensavam os contratualistas,
inclusive Hobbes, Maquiavel e outros, no entanto, sua perspectiva dos conflitos sociais destoa-
se destas justamente pelo fato de, ao buscar construir uma teoria social de caráter normativo,
admite uma luta moral assentada na organização da sociedade pautada por deveres
intersubjetivos.
Dessa forma, a luta dos sujeitos por reconhecimento recíproco de suas identidades,
diferentemente de Levinas, cujo reconhecimento não estava ancorado necessariamente na
reciprocidade, produz “uma pressão intra-social para o estabelecimento prático e político das
instituições garantidoras de liberdade” (HONNETH, 2003, p. 29).
O esforço crítico de Honneth, no que diz respeito ao conceito filosófico de
reconhecimento, procura atualizar o que já havia dito Hegel ao ligar este conceito à noção de
intersubjetividade, sem a qual o reconhecimento não construiria uma imagem coerente do
73
Uma teoria que constitui uma ponte entre a ideia original de Hegel e nossa situação
intelectual encontra-se na psicologia social de George Herbert Mead; visto que seus
escritos permitem traduzir a teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem
teórica pós-metafísica. (HONNETH, 2003, p. 123).
O fato de que o animal humano pode estimular a si mesmo da mesma maneira que os
outros e reagir aos seus estímulos da mesma maneira que aos estímulos dos outros
insere em seu comportamento a forma de um objeto social da qual pode surgir um
‘Me’, a que podem ser referidas as assim chamadas experiências subjetivas. (MEAD
apud HONNETH, 2003, p. 130).
que representa a imagem que o outro tem de mim, porém Mead traz à discussão o “Eu” que,
segundo ele, é a fonte não regulamentada de todas as ações atuais.
Por um lado, o “Me” se traduz como uma identidade consciente de si mesma, objetiva,
porque desempenha um papel operante no relacionamento social. A depender de um processo
de reação contínuo, a relação social pode constituir-se de vários “Mes”, incapaz de entrar no
próprio campo de visão. Por outro lado, o “Eu” se refere à instância mesma da personalidade
humana, cuja responsabilidade é uma resposta criativa aos problemas práticos e, também, de
jamais poder entrar no campo de visão. Todavia, como atividade espontânea, esse “Eu” se refere
renovadamente às manifestações práticas sustentadas conscientemente no “Me”, comentando-
as, além disso, precede a consciência que o sujeito possui de si mesmo do ângulo de visão de
seu parceiro de interação.
Há um aspecto relevante entre o “Eu” e o “Me” que precisamos evidenciar, é o caráter
dialógico de nossa experiência interna, pois existe entre eles, na personalidade do indivíduo,
uma relação semelhante ao relacionamento entre parceiros de um diálogo. Sobretudo o “Eu”
que tem essa função muito peculiar de ser um processo em curso, segundo o qual “respondemos
à nossa própria fala e que implica um ‘Eu’ que responde, atrás do palco, aos gestos e símbolos
que aparecem em nossa consciência”. (MEAD apud HONNETH, 2003, p. 130-131).
Até aqui, temos acompanhado as questões que embasam uma concepção intersubjetiva
da autoconsciência humana, a partir dos estudos de Mead com enorme influência da psicologia
social. O curioso é que há uma ideia chave que dialoga com a filosofia da alteridade em
Emmanuel Levinas, no sentido de que o outro precede e tem grande importância sobre o
processo de desenvolvimento da autoconsciência. Para Levinas (2008), o que constitui a nossa
subjetividade é a alteridade, o que constitui a nossa identidade é a nossa relação com outra
pessoa, a relação ética com outro ser humano.
Notamos, nessa mesma direção, que o desenvolvimento da identidade humana para
Mead e, consequentemente para Honneth, torna-se inviável sem a experiência de um parceiro
da interação social: “um sujeito só pode adquirir uma consciência de si mesmo na medida em
que ele aprende a perceber sua própria ação da perspectiva, simbolicamente representada, de
uma segunda pessoa”. (HONNETH, 2003, p. 131). Com isso, a formação e o desenvolvimento
da autoconsciência dependem da existência de um outro sujeito, de um segundo sujeito,
invertendo assim a relação de Eu e mundo social ao afirmar uma precedência da percepção do
outro sobre o desenvolvimento da autoconsciência. Retomemos aqui as palavras de Mead a
respeito disso:
76
Um tal “Me” não é, portanto, uma formação primeira que depois fosse projetada e
ejetada nos corpos de outros seres humanos para lhes conferir a plenitude da vida
humana. É antes uma importação do campo dos objetos sociais para o campo do
amorfo, desorganizado, do que nós designamos experiência interna. Através da
organização desse objeto, da identidade do Eu, esse material é por sua vez organizado
e colocado na forma da assim chamada autoconsciência, sob o controle de um
indivíduo. (MEAD apud HONNETH, 2003, p. 131-132).
ação e reação são capazes de ajudar a desenvolver a identidade uns dos outros, formando assim
nossa dimensão de autoconsciência, no dizer de Mead.
Um pouco mais com as contribuições de Cerletti (2009, p. 86-87), para quem o outro
não importa pela afirmação de sua ignorância, mas pelo que sabe e pensa na medida em que é
o lugar de partida em todo ensino filosófico, “o pensar dos outros é a irrupção aleatória do
diferente e constitui o desafio filosófico do professor-filósofo”. Aluno algum deve ser tratado
como “tábula rasa”, pelo contrário, há nele certos saberes, certas experiências com os quais
poderá construir algo novo e subjetivo.
Nesse sentido, antes de entabularmos uma discussão filosófica em sala de aula, uma
sondagem da personalidade dos sujeitos envolvidos, bem como um diagnóstico das dificuldades
e adversidades que a escola enfrenta é superimportante, haja vista não vivermos numa realidade
insular, mas num contexto social. A sala de aula está inserida dentro de uma realidade social,
política e econômica de sua escola, bairro e cidade. Por isso, pensar uma ação de ensino ou uma
aula significa relacionar o eu individual com o eu social. Que a minha prática em sala de aula
reflita em certa medida as demandas do mundo, problematizando-as e apontando saídas.
Além disso, duas expressões parecem ser bem-vindas e vitais nas experiências com o
ensino de filosofia na sala de aula: as memórias afetivas; o olhar para si e o olhar para o outro.
O resgate das memórias afetivas é muito válido à medida que quebramos o ritmo fechado do
ego e do ativismo, do peso de uma certa rotina em sala de aula. Nesse particular, é uma atitude
que vem agregar ao ensino de filosofia os valores de uma educação reflexiva, crítica e
emancipatória, aberta a contribuir com a formação social dos sujeitos envolvidos.
Se o processo de desenvolvimento da identidade humana está condicionado à existência
de um outro, parceiro de interação social que, percebido pelo seu defrontante, constitui a
autoconsciência, o ensino de filosofia passa por essa concepção dialógica entre duas instâncias
sociais, das quais é imprescindível a intersubjetividade para o filosofar.
É eticamente incoerente ensinar filosofia atrelado a uma política neoliberal de educação
que limite sua liberdade e seu acesso ao outro em função dos interesses capitalistas e egoístas.
Há que se considerar uma série de demandas externas e sociais que nos tirem de um olhar para
si, dominante e exclusivo, subvertendo este olhar em direção ao outro, às minorias
desfavorecidas, aos excluídos, aos estrangeiros, que incorporam um discurso ou temática virada
para a manutenção da alteridade, para o respeito, o reconhecimento, o acolhimento e o amor.
Decerto, a figura humana e social que possibilite essa virada em nosso olhar é, sem
dúvida, a mulher. Ela responde ao sujeito como sujeito, numa relação de intersubjetividade,
cuja ação realmente importa quando o assunto é reconhecer e ser reconhecida num ambiente
78
familiar de satisfação das necessidades físicas; quando o foco é também a defesa digna e justa
de seus direitos sociais junto ao conjunto de leis de uma determinada sociedade; quando for
possível lutar por mais estima social no seu ambiente de trabalho no que diz respeito a
oportunidades de condições iguais em relação ao masculino, envolvendo inclusive a
reivindicação de salários iguais conforme a função.
Como vimos, influenciado por Mead, Honneth passa a ter instrumentos suficientes para
construir, com base em sua teoria crítica, os três tipos de reconhecimento.
De acordo com sua estrutura das relações sociais de reconhecimento, o filósofo ensina
que a necessidade ou busca por reconhecimento assume formas muito diferentes, o que é
possível distingui-las. É preciso deixar claro que mais adiante, trataremos de explicitar melhor
essas formas assim como estão descritas no capítulo II de sua obra Luta por reconhecimento: a
gramática moral dos conflitos sociais. Agora nos deteremos apenas em recapitular, grosso
modo, as etapas de reconhecimento atreladas, quando possível, ao ensino de filosofia.
Pretendemos, pelo viés da emancipação, articular o ensino de filosofia ao conceito de
reconhecimento em Honneth, visto que sua crítica normativa de caráter intersubjetivo imanente
supere o âmbito das instituições sociais e se alargue ainda mais para o âmbito das lutas sociais
por emancipação. Assim, é preciso pressupor, ao pretender ensinar filosofia em sala de aula,
uma emancipação do outro, de uma outra pessoa que possa colaborar ativamente para o
surgimento da consciência.
Segundo Kohan (2010, p. 203), numa sociedade democrática, o tema da emancipação
relacionado ao ensino de filosofia é ainda mais complexo porque a própria filosofia e o seu
ensino são colocados como um caminho que conduz à emancipação. Porém, concorda com
Adorno ao afirmar que “a exigência de emancipação parece ser evidente numa democracia”
(ADORNO apud KOHAN, 2010, p. 203). Para Kohan, sem pessoas emancipadas não há
democracia, o que é óbvio.
Todavia, seria este um caminho viável para a filosofia e o seu ensino? É uma posição
válida retomar o ensino da filosofia pelo viés da emancipação segundo as concepções filosófica
de Honneth? Como nos posicionarmos diante desse caminho proposto?
Na tradição crítica da primeira geração, sobretudo com Adorno, a emancipação precisa
ser retomada desde Kant, porque é com este que se dá o apelo por uma educação emancipadora.
79
É bem verdade que Kant não faz uso do termo “emancipação” e sim “esclarecimento”. Ao lado
do conceito de esclarecimento, Kant emprega outras duas palavras que traduzem muito bem a
ideia de emancipação, como menoridade e tutela.
Como aponta Adorno e o próprio Kant, no seu decantado ensaio “O que é o
Esclarecimento?”, é entender justamente o esclarecimento como a “saída dos homens de sua
autoinculpável menoridade”. Esta culpa vem da falta de coragem e decisão para fazer uso de
seu próprio entendimento. Ele nos convoca a fazer uso de seu próprio entendimento. Pensar por
contra própria. Pensar por si mesmo sem a tutela alheia. Para Adorno, à medida que uma
democracia se sustenta no exercício do pensamento pela livre vontade dos cidadãos, o programa
do esclarecimento deve estar associado a toda democracia que se preze como tal.
O que Adorno está propondo é como pensar uma educação que contribua para a
formação de uma verdadeira democracia e, de que modo ainda, teria como ajudar a desterrar o
nazismo da sociedade alemã. Comprometido com essa empreitada de uma educação contra a
barbárie, Honneth parece determinado em seguir com o projeto emancipatório, sob a exigência
primeira de Adorno: “A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a
educação” (ADORNO apud KOHAN, 2010, p. 205).
Adorno responsabiliza a falta de consciência, bem como a ausência do uso pleno de seu
entendimento por parte de milhares de cidadãos alemães que participaram do massacre do povo
judeu. Daí, a necessidade para que a educação se volte para a formação da autorreflexão crítica.
Nessa direção, é preciso admitir que o ensino de filosofia para a emancipação é um
ensino também contra a barbárie porque cuida para que os habitantes de uma democracia se
sirvam de seu próprio entendimento, pensem por conta própria, sem a tutela alheia, por um
pensar livre e rigoroso que lhes permitam decidir corretamente ou não numa determinada
situação, evitando serem conduzidos à guerra, ao holocausto, à barbárie, como na recente
história da Alemanha.
Com isso, podemos afirmar, a partir do que diz Adorno quando relaciona educação e
emancipação, que o ensino de filosofia para a emancipação venha entendido como um ensino
para a autonomia, para a reflexão, para a resistência e a autodeterminação. Segundo ele, a
ferramenta mais adequada para combater a irracionalidade que tomou conta da história europeia
no século passado seria o uso livre e soberano do pensar conforme cada indivíduo.
Realmente, na percepção de Adorno, a falta de consciência aonde toda aquela
monstruosidade poderia levar foi crucial:
80
Para tanto, há duas condições: ampliar a emancipação à medida que novas esferas da
vida passem a ser livremente determinadas, como é o caso, por exemplo, de gradativamente
uma pessoa passar a ser aceita, na esfera da sua sexualidade, de maneira a poder autodeterminar
como quer vivê-la. A outra, a possibilidade da emancipação se ampliar posto que novas pessoas
ou grupos conquistem o direito de determinar por si mesmos os seus projetos de vida.
Nessa perspectiva, passemos a olhar as três formas de reconhecimento social sob a ótica
do sujeito, no processo de construção de sua identidade, poder ampliar sua independência ou
sua emancipação na interação com os outros parceiros sociais dentro dos ambientes familiares,
jurídicos e de solidariedade que produzam autonomia por meio das relações de autoconfiança,
autorrespeito e autoestima. Isso marca a característica de Honneth em dar ênfase a uma
articulação estreita entre a identidade do indivíduo e as esferas do reconhecimento.
Sendo assim, Honneth distingue três tipos de reconhecimento: ser reconhecido como
um ser humano com determinadas necessidades (amor); como um ser humano de status igual
(direitos); e como um ser humano com competências e habilidades que contribuem para a
reprodução da sociedade (estima).
O amor, incialmente, é concebido como uma gama de relações primárias e está
identificado com a esfera afetiva de um pequeno e restrito grupo de pessoas que, geralmente,
podem ser amantes, amigos e pais e filhos, cujas relações contribuem para o processo de
amadurecimento pessoal. No entendimento de Honneth (2003, p.159), as relações amorosas são
aqui todas as relações primárias, “na medida em que consistam em ligações emotivas fortes
entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizades
e de relações pais/filho”.
O que chama atenção de Honneth são as propostas psicanalíticas alternativas como a de
Donald Winnicott, pois admite, além das articulações de pulsões libidinosas enquanto tais, a
relação afetiva intersubjetiva como um outro elemento essencial para o processo de
amadurecimento pessoal. Somente por uma relação bem-sucedida entre mãe e filho, conforme
admite Winnicott, é permitida a solução satisfatória da complexa relação entre simbiose14 e
autonomia ao longo da vida do adulto.
14
“A criança só está em condições de um relacionamento com objetos escolhidos no qual ‘ela se perde’ quando
pode demonstrar, mesmo depois da separação da mãe, tanta confiança na continuidade na dedicação desta que ela,
sob a proteção de uma intersubjetividade sentida, pode estar a sós, despreocupada; a criatividade infantil, e mesmo
a faculdade humana de imaginação em geral, está ligada ao pressuposto de uma ‘capacidade de estar só’, que por
sua vez se realiza somente através da confiança elementar na disposição da pessoa amada para a dedicação”.
(HONNETH, 2003, p. 172).
83
O peso entre simbiose e autonomia nessa relação amorosa de mãe e filho encontrou
reflexo nas pesquisas de Winnicott que, ao demonstrar em seus estudos a retirada do carinho
materno, ainda que todas as outras necessidades corporais tenham sido atendidas, compromete
o comportamento dos bebês ao acarretar graves distúrbios.
Ele percebe ainda, fases distintas entre mãe e filho. A primeira fase é identificada por
uma alta relação de dependência recíproca. Devido ao filho ainda não conseguir comunicar suas
necessidades, a mãe sente um desejo ou compulsão interna que a faz dedicar-se absolutamente
ao bebê. Esta é marcada como a fase do “colo”. Lá pelos seis meses de idade, por começar a
ser capaz de se diferenciar em relação ao ambiente e a perceber alguns sinais que traduzem
atendimento de necessidades futuras, como é o caso de poder suportar a progressiva ausência
da mãe, configura-se a fase da faculdade da criança, a segunda fase. Esta corresponde também
à fase de “relativa independência”, decisiva, uma vez que tal faculdade é o pressuposto de toda
forma madura de relação afetiva e abre a possibilidade de “ser-se si próprio no outro” (SOUZA,
2000, p. 153).
Concernente a esta segunda fase, Winnicott prossegue apresentando que é muito comum
o “ataque físico” da criança à mãe, concebido já como uma atitude de independência. No
entanto, o que vai permitir à criança uma vida social em companhia dos outros com direitos
iguais é precisamente a não “vingança” da mãe. Desse modo, permanece aberta à criança a
possibilidade de amar a mãe como ela é, sem exageros sobre sua imagem.
Nessa relação, em que ora se evidencia a simbiose e ora se evidencia a independência
da criança, é importante para uma existência bem-sucedida a construção de um “bom objeto”
em sua memória, a de uma mãe que não se vingou dos ataques da criança por causa da retirada
do carinho e da atenção. Por isso, a mais primária de todas as lutas se dá dessa forma.
Uma luta na qual a “confiança em si mesmo” vem atrelada à segurança do amor materno
em companhia da criança, o que lhe assegura a “ficar só” sem problemas. Emerge daí a
possibilidade do indivíduo ficar sozinho sem perda de segurança do amor do outro ao longo da
vida, constituindo-se assim a autoconfiança, a forma primária de reconhecimento.
Nesse particular das relações amorosas, é possível conceber, desde já, o elemento
essencial próprio da eticidade, a “autoconfiança”, cuja construção é o resultado da intensa
dialética entre simbiose e autonomia, será indispensável para a participação na sociedade.
Se o amor por si só, para Honneth, proporciona autoconfiança, o direito, como a segunda
forma de reconhecimento, proporciona autoestima. Esta relação é marcada por algo que lhe é
bem peculiar, a reciprocidade que, ao contrário do amor, acontece a partir de algum
desenvolvimento histórico. Na verdade, temos um conjunto de direitos e deveres muito restrito
84
alcançar uma autorrelação inviolável, na qual precisam ainda, além da experiência da dedicação
afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permitam tal afirmação
positiva.
O progresso da noção de estima social juntamente com a de história tem implicado
diretamente na mudança do conceito de honra para o de reputação ou prestígio social. Em
particular, no contexto das sociedades tradicionais, formas específicas de vida são criadas em
virtude da atribuição de honra aos indivíduos. Sobre isso, afirma Honneth:
Ela prossegue aprofundando a distinção do ponto de vista das normas universais para a
justiça, afora o compromisso dos atores com valores mais específicos, quanto a quem busca o
reconhecimento da diferença é muito mais restrita: “Normas de justiça são pensadas como
universalmente vinculatórias; elas sustentam-se independentemente do compromisso dos atores
com valores específicos. Reivindicações pelo reconhecimento da diferença, ao contrário, são
mais restritas” (FRASER, 2007, p. 104).
Tais reivindicações estão submetidas ainda a horizontes de valor historicamente
específicos, impossibilitadas de serem universalizadas, por causa das avaliações qualitativas
sobre o valor relativo de experiências culturais com características e identidades variadas.
Embora possamos estreitar a relação entre a dimensão econômica e a dimensão
simbólica, é importante fazer a distinção. Nancy Fraser (apud NASCIMENTO; BARREIROS,
2018) não abre mão dessa distinção, qual seja: a primeira está destinada a tratar de uma doença
na base da estrutura político-econômica da sociedade, que são as injustiças econômicas como
a eliminação da exploração, da marginalização econômica e da falta de condições materiais, o
necessário para viver em igualdade social com os outros; já a segunda, a dimensão simbólica
também tenta cuidar de uma outra doença, por sua vez, destina-se a reparar uma injustiça
cultural, ou seja, eliminar a dominação cultural, o ocultamento (silenciamento) e o desrespeito
social.
Em favor da integração do campo da redistribuição que se vincula mais à moralidade
com o campo do reconhecimento que se vincula bem mais à ética, Fraser (2007) dissolve esta
aparente incompatibilidade e recorre à estratégia de tratar as reivindicações por reconhecimento
que exigem o julgamento de valores, características e identidades diversas como demandas por
justiça. Por essa razão, reposiciona a política do reconhecimento do campo da ética para o da
moralidade, alargando assim a noção de reconhecimento.
Dessa maneira, sua noção de reconhecimento vai tomando forma no intuito de romper
com a ideia de reconhecimento ligada à identidade. Segundo Fraser, há um problema nessa
política da identidade: a estrutura psíquica ganha destaque ao privilegiarmos a identidade, ao
passo que as instituições sociais e a interação social seriam subsumidas. Nesse aspecto, o que
reclama reconhecimento é a identidade de um grupo.
Acrescentamos a isso, pelo modelo identitário, o fato de submetermos os indivíduos à
conformação das características gerais de um grupo porque o reconhecimento concentra-se na
posição das peculiaridades de um grupo. Isso, porém, acarretaria danos no sentido de que a
complexidade da vida dos indivíduos e as múltiplas identificações fossem negadas, como
também seria responsável por reificar a cultura, além de tratá-la como definida e fixa, tendo em
91
vista promover o separatismo e o isolamento dos grupos, o que incorreria em outro efeito
nefasto, o de encobrir disputas de poder internas aos grupos (FRASER, 2007).
A autora passa a enfrentar agora a questão do reconhecimento pelo viés do status social,
afastando-se de possíveis controvérsias. Como o status trata da condição dos membros do grupo
na interação social, não diz respeito às identidades de um grupo. O não reconhecimento passa
a ser a impossibilidade de participação igualitária na vida social, subordinação, sujeição social,
mas não um prejuízo à identidade de um grupo.
De acordo com seu modelo de status social, uma política de reconhecimento pode
acabar com a injustiça, diferente da política identitária que não tem este poder. Para tanto, é
necessário tornar o sujeito autônomo para participar na vida social como os outros membros e
enfrentar a subordinação social (FRASER, 2007).
Baseada ainda em seu modelo de status, Nancy Fraser (2007) evita muitas dificuldades
apontadas no modelo de identidade que acabam servindo como elementos de reforço da
subordinação dos grupos. Por essa razão, o modelo de status age para impedir os padrões
institucionais de travar a paridade de participação e promover outros que a possibilitem.
Sem dúvida, o ganho principal que se tem com o modelo de status é a possibilidade de
deslocar ou retirar o reconhecimento do campo da ética para uma abordagem moral do
reconhecimento. Na visão de Fraser (2007), o reconhecimento é compreendido como igualdade
de status e como potência de paridade participativa, uma vez que, ao contrário do modelo
identitário, deixa de submeter-se a um horizonte de valor específico e passa a priorizar o correto
em detrimento do bem.
Ademais, o modelo de status nos proporciona o reconhecimento autêntico em
participarmos como membros de fato da sociedade e não falsamente, visando à superação da
subordinação com plenas condições de igualdade na participação com os outros. É isso que diz
Fraser (2007, p. 107) com outras palavras: “No modelo de status, ao contrário, isso significa
uma política que visa a superar a subordinação, fazendo do sujeito falsamente reconhecido um
membro integral da sociedade, capaz de participar com os outros membros como igual”.
Nesses termos, podemos falar, sim, em igualdade de status e em reconhecimento
recíproco, por isso ressalta ela: “Se e quando tais padrões constituem os atores como parceiros,
capazes de participar como iguais, com os outros membros, na vida social, aí nós podemos falar
de reconhecimento recíproco e igualdade de status” (FRASER, 2007, p. 107).
Na contramão da afirmação de reconhecimento, temos uma sociedade que dissemina
não reconhecimento e subordinação de status, cujos padrões são altamente negativos,
92
excludentes e destrutivos, e pior, são padrões institucionalizados pela cultura que desqualifica
a pessoa ao nível inferior de um parceiro na interação social:
Demais casos, mas inclusive esse exemplo reflete o que Fraser insiste na possibilidade
de falarmos de não reconhecimento e de subordinação de status. Por essa razão, afirma Fraser
(2007, p. 108): “Em todos esses casos, a interação é regulada por um padrão institucionalizado
de valoração cultural que constitui algumas categorias de atores sociais como normativos e
outros como deficientes ou inferiores”.
Quando depreciam o “feminino”, quer dizer que padrões institucionalizados de
valoração cultural costumam depreciar também a abordagem de reconhecimento proposta por
Honneth (apud FRASER, 2007, p. 114), onde afirma que “todas as pessoas, moralmente,
merecem estima social”. Tal afirmação, porém, não é nenhum absurdo, visto que daí resulta
que “todos têm igual direito a buscar estima social sob condições justas de igualdade de
oportunidades” (FRASER, 2007, p. 114).
93
Em virtude disso, o reconhecimento é tratado muito mais como uma questão de justiça,
de moralidade em vez de uma questão de boa vida, de ética, na medida em que mulheres
enfrentam obstáculos na conquista de estima que não são encontrados pelos demais. Obstáculos
injustos e institucionalizados que causam sofrimentos, opressão e uma vida com menos
participação social precisam ser superados pela busca incansável por reconhecimento, tal como
a própria Fraser (2007, p. 114) chegou a dizer ao conceder reconhecimento positivo a um grupo
especificamente desvalorizado, como é o caso das mulheres: “enfrentam maiores obstáculos se
elas optam por perseguir projetos e cultivar características que são culturalmente codificadas
como femininas”.
No contexto de um sistema patriarcal capitalista, a construção de libertação das
mulheres enquanto coletivo se apoia na categoria de emancipação feminina como
desdobramentos para o reconhecimento de uma emancipação ainda mais humana, segundo
Nancy Fraser. Assim como outros grupos, o grupo das mulheres é um dos mais marginalizados
da sociedade, pois não só a emancipação política em seus diretos lhe é negada quanto ao
exercício pleno de sua cidadania, mas também a emancipação humana na sua dignidade quanto
ao enfrentamento das opressões, preconceitos e humilhações de violência.
Com isso, para ultrapassar os obstáculos de uma sociedade de dominação do masculino
sobre o feminino do ponto de vista cultural, econômico e político, as mulheres precisam de
estratégias que, de acordo com Fraser, evocam a busca por justiça social sob as perspectivas da
distribuição, do reconhecimento e da representação.
Dessa forma, pela distribuição, a mulher deve reivindicar sua justa posição na
distribuição da renda e do poder em virtude da organização social, não aceitando a partilha do
poder e do econômico baseados no gênero. Pelo reconhecimento, a mulher precisa cobrar seu
valor cultural, sua posição de interagir em condições de paridade com os outros, devido à falta
de reconhecimento numa relação social institucionalizada. Pela representação, a mulher tem a
possibilidade de ascender a cargos de ordem política, exercendo o poder legislativo e executivo,
bem como liderar movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, instituições, empresas,
enfim, de modo que paira sobre ela a sombra de uma falsa representação por causa das injustiças
sofridas.
Com efeito, as injustiças sofridas têm causas bem complexas, mas são consequências
de um sistema profundamente dominante pelo predomínio do patriarcado, do racismo e do
capitalismo, contra o qual é preciso lutar, resistir e superar essa ordem imposta na direção da
conquista de uma liberdade tão sonhada, pela qual seja possível construir uma emancipação
política e, por conseguinte, uma emancipação humana.
94
15
Como todos os alunos e alunas envolvidos na pesquisa são menores de idade, decidimos não identificá-los,
seguindo as orientações do comitê de ética.
16
A ideia de acontecimento aqui aponta para a noção de produção. “O termo produção indica tanto a realização
do ser [acontecimento ‘produz-se’, um automóvel ‘produz-se’] como a sua elucidação ou a sua exposição [um
argumento ‘produz-se’, um ator ‘produz-se’]”. (LEVINAS, 2008, p. 16).
95
não é o professor nele mesmo, mas o aprendiz que tem a oportunidade de descobrir o que deseja
e o que necessita aprender.
Nessa intervenção filosófica, as oficinas funcionam como: produção de textos a partir
da visão comum dos alunos sobre a mulher; roda de diálogo, segundo as concepções filosóficas
de Levinas e Axel Honneth; e, por último, produção textual a respeito da mulher, a partir dessas
concepções filosóficas abordadas nas oficinas de roda de diálogo.
Como já asseveramos, nosso tipo de pesquisa é a qualitativa porque estamos lidando
com o humano em sua inteireza, de modo integral, implicado em suas relações intersubjetivas
no ambiente da sala de aula. Nessa direção afirma Minayo:
para trabalharmos as concepções filosóficas de Honneth, que também duraram mais duas
semanas.
Sendo assim, os dois encontros previstos para discutirmos as formas de alteridade em
Levinas aconteceram numa roda de diálogo. No primeiro encontro, pedimos que os alunos
sentassem no chão da sala de aula, fazendo um círculo, e fomos passando e comentando
imagens de pessoas em situações de vulnerabilidade, como jovens em meio a destroços de
guerra, crianças dentro de lixões catando restos de comida, idosos em situação de abandono nas
praças, mulher sendo amordaçada por uma mão masculina, impedindo-a de falar, homens sem
rostos, mãe negra abraçando, emocionada, seu pequeno filho, enfim. Em seguida, colocamos
todas as imagens no centro do círculo e as misturamos, depois, cada aluno ou aluna escolheu
sua própria imagem e comentou sua escolha.
Para esse mesmo encontro, preparamos também umas tags filosóficas com termos-
chave da filosofia da alteridade em Levinas. Procedemos da mesma forma, ainda em círculo,
fomos passando as palavras digitalizadas em folhas de papel A4, formato paisagem, bastante
destacadas, com o intuito de relacionar as imagens discutidas na roda de diálogo aos conceitos
advindos da filosofia da alteridade, ou seja, responsabilidade, abertura, Outro, atenção, respeito,
morada, hospitalidade e assim por diante. Esse foi o primeiro encontro, um acontecimento.
Em nosso segundo encontro sobre as concepções filosóficas de Levinas, também em
roda de diálogo, propomos aos alunos a leitura de um texto acerca do feminino. A leitura foi
feita de modo compartilhado, tendo cada aluno a oportunidade de ler um parágrafo do texto.
Logo após, chamamos a atenção de alguns pontos para a discussão em sala, comentário e
análise. O texto, cujo título é “O feminino” (RIBEIRO, 2015, p. 57-61), corresponde a uma das
formas da alteridade em Levinas.
Por sua vez, no primeiro encontro, para problematizar as questões filosóficas de
Honneth sobre o reconhecimento, sugerimos que assistíssemos uma entrevista desse pensador,
ainda vivo e em plena atividade filosófica na Escola de Frankfurt, Alemanha. Os alunos
concordaram, a projeção da entrevista durou apenas 11 min, na primeira parte do vídeo. Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=VV_0tspEvvY&t=672s, visto em maio de 2018. Após a
entrevista, fizemos uma pequena discussão na roda de diálogo, onde todos puderam participar
e fazer suas colocações.
No encontro seguinte, com os alunos dispostos novamente em forma de roda de diálogo,
levamos umas tags para a sala de aula, uma palavra-chave em cada folha de papel, com letra
bem destacada ao ponto de chamar a atenção dos alunos. Conceitos como amor,
reconhecimento, direito, estima, solidariedade, socialização, intersubjetividade, consciência,
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identidade, enfim, escritos no papel, passaram rapidamente por nós em círculo ao mesmo tempo
em que comentamos brevemente cada uma. Na sequência, procedemos com a socialização da
leitura da entrevista da aula anterior, transformada em transliteração em forma de texto.
Portanto, toda a segunda oficina foi composta de 4 sessões: 50 min. cada.
Finalizamos, então, com a terceira e última oficina: uma nova produção de textos sobre
a mesma temática da mulher, desta vez relacionada com as concepções filosóficas de Levinas
e Honneth, para que os discursos reflexivos dos alunos sobre o reconhecimento tenham, em
certa medida, um apelo à alteridade filosófica e ao reconhecimento do Outro. Sessão: 50 min
com tolerância de 10 min.
problema do feminino em que o conhecimento daí observado é fruto de uma visão bem
subjetiva e particular da realidade na qual está inserida a mulher.
De acordo com o primeiro texto (anexo A), a aluna afirma que as mulheres, “desde a
antiguidade até os dias atuais, desempenham um papel decisivo para a nossa sociedade, embora
nem sempre tenham o seu devido reconhecimento”. O curioso aqui é perceber que o termo
reconhecimento já aparece nesse texto de modo despretensioso, no entanto, parece claro à aluna
que o papel desempenhado pela mulher não é reconhecido socialmente. Com isso, temos a
impressão que o texto antecede ou sinaliza para uma problemática que virá posteriormente, uma
vez que nem isso fará desaparecer o ponto de vista do outro.
É assim mesmo que prosseguirá o texto (anexo A), no qual a aluna dá ênfase ao direito
e ao dever da mulher expressar sua opinião, seu questionamento e o seu ponto de vista em vários
quesitos da sociedade. Como exemplo disso, faz referência ainda ao direito de escolher os seus
governantes.
Nesse mesmo texto, a aluna lembra que o “sexo frágil”, ironicamente, constitui-se como
“a base da família, responsável pelo zelo, cuidado e educação da sua família”. Contudo, critica
a aluna: “são discriminadas ainda pela sociedade, que a julga inferior ao homem”.
Desse lugar de inferioridade, continua o texto (anexo A) em que reclama: “a mulher
deve ter os mesmos direitos que os homens, devem ter as mesmas funções e receber igual pelo
seu trabalho, pois só construiremos uma sociedade justa e igualitária para todos se tivermos os
mesmos direitos”.
Para finalizar, a escrita dessa autora vai na direção de valorizar a garantia do espaço
social da mulher, uma vez que a sociedade só tem a ganhar com a sua participação, através de
suas opiniões e argumentos. Destarte, poderemos ter uma sociedade melhor e mais humana.
O segundo texto que corresponde ao anexo B traz à tona os costumes e rotinas
responsáveis por colocar a mulher na sociedade como se ela não fosse capaz de entrar no
mercado de trabalho. Assim, a preocupação com a inserção da mulher no mercado de trabalho
parece ser a tônica desta escrita. Leiamos o que afirma a aluna:
Hoje em dia a sociedade carrega costumes e “rotinas” que eram nosso dia a dia em
anos passados, estes costumes e rotina colocão a mulher na sociedade como se ela não
fosse capaz de trabalhar e assim tornam elas simples “escravas” tendo que cuidar dos
filhos e da comida além de deixar tudo organizado para quando o homem chegar, ou
seja enquanto o homem trabalha para sustentar a família a mulher cuida da casa e dos
filhos. (texto 2, anexo B).
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Ele chama atenção para a situação em que a mulher foi colocada pela sociedade, numa
situação de escravidão dos costumes e da rotina como se ela fosse incapaz de trabalhar ou de
exercer o mesmo papel do homem para a família, que é o de trabalhar para sustentá-la. Para
esse aluno, “as mulheres lutam para que esses costumes e essa rotina se quebrem, pois hoje em
dia a mulher não precisa de um homem para sobreviver”. Por isso, acrescenta com precisão:
“nada mais justo que igualar os direitos entre um homem e uma mulher”.
Ainda mais especificamente com relação ao mercado de trabalho, o texto aponta para a
preocupação do aluno com a igualdade salarial entre homens e mulheres. A esse respeito,
confirma o autor:
Com o mercado de trabalho sendo bem diverso uma mulher tem varias opções de
trabalho, mesmo assim sua luta não para, pois foi com ela que liberaram o mercado
de trabalho e é com essa luta que buscam igualdade de salario, pois uma mulher com
a mesma capacidade que um homem ganha menos que ele, por isso ela deve continuar
a luta. (texto 2, anexo B).
Muito marcante a forma como esse aluno se coloca no texto ao insistir que a luta não
para, a luta por igualdade salarial entre homens e mulheres, com a mesma capacidade, deve
continuar.
Como desfecho de seu texto, esse aluno expressa a opinião de que a mulher luta com
razão, pois o mundo deve ser justo, “a vida é para ser justa”, afirma ele. Segundo sua visão, a
exigência de uma vida justa, a transformação da vida juntamente com as ideologias existentes
dão apoio basicamente para que ele sustente a luta pela igualdade feminina.
Por fim, apresenta no texto sua preocupação com o feminino: “Ultimamente me
preocupo com a essência feminina o carinho sua alegria, ou seja, sua essência esta sumindo as
mulheres estão deixando sua alegria para dar lugar ao ódio isso e o que me preocupa”.
A terceira escrita (anexo C) começa ressaltando que a mulher é uma palavra forte e de
grande importância. A partir do momento em que percebe o quanto seu valor tinha sido
desmerecido, a mulher vem lutando pelos seus direitos de maneira mais forte e unida. Ressalta
ainda que a mulher é o princípio de tudo, porém, às vezes, não recebe o devido valor.
É oportuno salientar que, entre os textos, há algumas impressões ou percepções em
comum que acabam se cruzando. Uma delas é a impressão de que a mulher não recebe o devido
valor ou nenhum valor.
Tal como o aluno do texto 2 (anexo B), fez referência à mulher “escrava” do lar por seus
afazeres diários, a aluna do texto 3, anexo C, também menciona o fato de que, por algum tempo,
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a sociedade considerou a mulher como um nada ou quase isso, porque só servia para os afazeres
de casa.
Segundo essa aluna, à medida que o tempo passava, as mulheres foram percebendo que
“poderiam fazer tudo que quisessem e que tiverem vontade”. Além disso, foram percebendo
também que “era direito delas trabalharem e receberem seus salários igualmente, que poderiam
trabalhar em cargos públicos”. A partir daí, “começaram a querer e puderam ter voz na
sociedade”.
Sem dúvida, a aluna reconhece que toda essa mudança não aconteceu de um dia para o
outro; “houve muita luta por trás de cada conquista alcançada”.
Em contraponto aos avanços do séc. XXI, ela afirma que “nós mulheres ainda sofremos
preconceito, seja pela cor da pele, pelo jeito que nos vestimos ou até mesmo por não seguir os
padrões de beleza que a sociedade impõe”. Com efeito, reafirma de modo contundente:
“sofremos preconceitos com coisas bestas”.
Mais adiante, continua dando ênfase ao problema do preconceito. Para ela, as mulheres
ainda são alvo de preconceitos, como o racismo, diretamente falando, embora tendo uma boa
voz na sociedade.
Uma vez mais retoma a questão do padrão de beleza que recai sobre a mulher. Não deixa
por menos e associa essa questão a um preconceito ainda maior. Quanto a isso, afirma a autora
do texto:
A crítica acima, em tom de desabafo, expõe a imposição que a sociedade exerce sobre
a mulher, reprimindo sua liberdade ao ponto, como bem disse a aluna, de não poderem expressar
aquilo que querem, mas sim o que a sociedade impõe. Diante disso, conclama às mulheres que
sejam fortes e derrubem tudo isso que estão pondo em cima delas.
Finalmente, após ter dito o que pensa sobre o peso do preconceito que recai sobre a
mulher, a aluna não recua e declara seu orgulho por ser mulher: “Sou orgulhosa de ser mulher,
de lutar pelos nossos direitos e saber que cada vez mais estamos mais forte, ganhando mais
empoderamento na nossa sociedade, que estamos todas juntas nessa batalha”.
102
A mulher que está ali lutando para conseguir um simples emprego, que o salário nem
é essas coisas só pra não deixar falta comida, mas as vezes mesmo a mulher exercendo
o mesmo papel do homem, tendem a ganhar menos que eles, porém isso acaba sendo
injusto, existe poucas mulheres que lutam por direitos iguais nessa sociedade em que
não esta nem ai pra nada nem ninguém. (texto 5, anexo E).
O autor dessa escrita, para não deixar escapar um certo crédito social em relação à
mulher, enaltece sua capacidade em passar por cima daqueles que olhavam a mulher como
incapaz de ser igual ao homem para administrar uma cidade, até mesmo um país. Para ele, “hoje
em dia temos mulheres com cargos públicos, como prefeita, presidente, vereadora... que lutaram
até conseguir”.
Uma ideia presente no texto, já no seu desfecho, que talvez precise pontuar, é o modo
como o aluno enxerga a diferença do sexo da pessoa. A partir de seu ponto de vista, a diferença
por causa do sexo da pessoa não define qualidade, tampouco força de vontade para lutar,
trabalhar, cuidar de casa, dos filhos e, com isso, ter direitos iguais.
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Neste tópico, como veremos, há uma descrição daqueles 05 (cinco) textos, escolhidos
do conjunto dos 15 (quinze) textos como resultado ou resposta dos alunos pela participação em
toda a 2ª oficina, na qual compartilhamos das concepções filosóficas de Levinas com suas
formas da alteridade e das concepções filosóficas de Axel Honneth com sua perspectiva moral
das comunidades de valor que diz respeito ao reconhecimento.
Nessa oficina, procuramos interagir as concepções filosóficas de ambos com a proposta
de abordagem temática desenvolvida da escrita dos textos sobre a mulher. Certamente, das
produções textuais que envolvem a filosofia desses dois filósofos em relação ao feminino, surge
a presente descrição.
Dessa maneira, o texto 6 (anexo F), que corresponde ao par de texto (anexo A) do tópico
anterior, abre sua argumentação destacando o reconhecimento da força feminina em
contraposição ao que a sociedade julga como um ser frágil e, além disso, chama a atenção para
o interior da mulher com as seguintes palavras: “ela traz em seu interior a essência do amor, e
a capacidade de se doar ao outro”. Como vimos, não deixa de pontuar sua “capacidade de
doação ao outro”, uma marca importante da humanidade do feminino.
Parece aqui que a aluna deseja passear pelo conceito da alteridade filosófica ao escrever
sobre o interior feminino e a sua capacidade de doação.
Por conseguinte, nesse mesmo texto, a aluna se remete ao momento de atuação social
da mulher e assinala: “a mulher está ganhando cada vez mais reconhecimento”. Justifica: “os
movimentos feministas, cada vez mais presentes em nossa sociedade, só reforça a luta das
mulheres durante nossa história para que seus direitos, como mulher, sejam garantidos e
respeitados”. Na verdade, o que ela está ressaltando é a presença da mulher na sociedade e o
reconhecimento da luta pelos seus direitos.
Talvez, o ponto alto do texto seja o terceiro parágrafo, no qual expõe o feminino em
relação à alteridade. Nesse aspecto, sublinha a maternidade e suas qualidades, além de
mencionar Emmanuel Levinas: “a alteridade tão estudada e falada por Emmanuel Levinas, é
traduzida no dia a dia da mulher, seja no cuidado com o lar, o zelo pelo marido e a forma mais
expressiva do amor feminino: a maternidade”. Essa é uma visão um tanto quanto polêmica da
figura da mulher nos dias de hoje, pois a associação da mulher ao espaço interior do lar, à
familiaridade, à doçura ou, até mesmo, à sua intimidade vem dando lugar a uma imagem da
mulher associada ao espaço público, ao trabalho fora de casa e a conquista de seus direitos.
105
Hoje em dia sua luta sua busca por reconhecimento, absorve uma brutalidade um ódio
que acaba escondendo sua essencia escondendo seu lado feminino e colocando em
pratica o feminismo, admiro sua luta enquanto empunha como arma o amor, mas a
partir do momento que sua arma passa a ser o ódio, a partir desse momento ela esconde
o seu lado feminino, e a partir da quele momento temos como consequencia uma
guerra não uma luta. (texto 7, anexo G).
O autor do texto 7 (anexo G) é muito claro que não simpatiza com uma guerra de
gêneros, pois compara essa guerra a uma guerra com armas. Assim, assevera: “viver em um
mundo onde tem guerra de gêneros, onde homens julgam as mulheres, e as mulheres julgam os
homens seria pior que viver em um mundo de guerra com armas, pois a morte é inevitável e o
amor é uma necessidade”.
Passo seguinte, o texto 8 (anexo H) trata da mulher em busca de reconhecimento dos
seus direitos de uma forma bem mais forte, denunciando inclusive a sociedade que, segundo a
autora do texto, uma aluna da 2ª série do ensino médio, ficou contra as questões voltadas ao
feminismo. Eis como ocorre isso na escrita dessa aluna:
A mulher cada vez mais está em busca do reconhecimento dos seus direitos, cada vez
mais está conquistando o seu posto na sociedade, de uma forma mais forte. O
empoderamento está sendo seu sobrenome, sua identidade está sendo exposta para
todos da sociedade, sociedade esta que já apoiou ou já ficou contra todas essas
questões voltadas ao feminismo. (texto 8, anexo H).
É muito amorosa em relação aos filhos, a maioria da pra ver no brilho do seus olhos
o quanto ficam orgulhosas e completas com algo que seus filhos conquistam, para elas
a felicidade deles é a sua própria felicidade. Essa é a verdadeira essência da mulher,
tornar as pessoas mais humanas. (texto 8, anexo H).
Por fim, acrescenta a dificuldade e o peso que é em seu ser uma mulher cidadã, diz a
aluna: “não é fácil ser mulher, não é fácil carregar todo o peso de ser uma cidadã feminina, peso
esse que significa toda a trajetória que as mulheres carregam”. Ademais, quando a mulher se
aceita como feminina e quanto mais carrega o feminino, mais “descobre as três formas de
reconhecimento como o amor, o direito e a estima social”, afirma a aluna. E prossegue: “as
mulheres são vitoriosas e pelo seu feminismo elas carregam um troféu chamado
reconhecimento”.
Mais uma aluna da 2ª série do ensino médio crava significativamente que “ser mulher
na sociedade atual é ser empoderada e forte para lutar contra o preconceito existente, o
machismo, o feminicídio e a desigualdade de gênero”. De fato, é uma luta contra esse modelo
autoritário de cultura e de sociedade, instituído nos moldes velados de preconceito entre homens
e mulheres.
Em seu texto 9 (anexo I), essa aluna, de modo crítico e franco, ressalta que a mulher,
muitas vezes, é tratada com inferioridade e, por isso, sofre humilhações as mais diversas. Daí
porque “está em constante luta por reconhecimento no amor e na afetividade, luta pela
igualdade de direito e pelo reconhecimento por sua habilidade”.
Acresce que: “a mulher busca independência, e a igualdade salarial, não aceitamos
homens e mulheres exerceno o mesmo trabalho e recebam salários inferiores”. Desde os
primeiros textos dos alunos com a primeira oficina de produção textual que percebemos
frequentemente tal reclamação.
Na sequência do texto, chama a atenção para a presença da mulher na sociedade, bem
como para a sua efetiva liberdade. Assim, afirma: “a presença da mulher é notória, seja na sua
família, no ambiente político ou social. A mulher possui a liberdade e o direito de ser o que
quiser, estar presente em todos os lugares em ela queira estar, fazer o que vontade livre de
opressão, estereótipos e padrões”.
Numa certa altura do texto, aproximando-se de sua culminância, a autora se serve do
conceito de alteridade e assinala: “a mulher é o maior exemplo de alteridade, como na
maternidade o afeto da mãe com seu filho, o cuidado e o respeito é o maior gesto de amor
existente no mundo”. Com efeito, a relação da mulher com a alteridade, nesse caso, expressa-
se de modo sensível e existencial.
108
À guisa de conclusão, a aluna faz questão de reputar ao feminino alguns valores de sua
alteridade: “o ser feminino reconhece no outro a si mesmo, acolhe o outro e supre sua
necessidade, sem lugar para sua diferença, apenas dando atenção e respeito”. E, por fim,
acrescenta: “a mulher possui sua própria identidade e essência, sua delicadeza, seu eu feminino,
seu poder acolhedor e de reconhecimento”.
No último texto – texto 10 (anexo J) que encerra uma série de descrições textuais
porquanto a 2ª oficina foi tão produtiva em relação às concepções filosóficas de Levinas e
Honneth com a temática da mulher –, a aluna começa escrevendo, para nossa surpresa, a partir
do que havia escrito antes na sua primeira produção textual sobre a mulher, o que a mulher tem
significado para a sociedade, a necessidade de ser ouvida, a fim de desconstruir a imagem de
um sexo frágil e de uma sociedade machista. Quanto a isso, a aluna assegura:
No meu texto anterior falou que a mulher na sociedade não é muito ouvida, por achar
ela um sexo frágil, alguém com opiniões que pode não valer a pena e assim o meu
pensamento continua sendo de um pais machista, porém a mulher busca ser mais
autoritária e está com mais essência, querendo sempre esta de bem com a sociedade.
(texto 10, anexo J).
Adiante, o texto lembra os debates em sala de aula que nos ensinam a existência de três
formas de reconhecimento que, para essa aluna da 2ª série do ensino médio, mostra-se assim:
“a primeira é o amor que diz que a mulher sempre esta buscando a perfeição nas coisas que faz,
dar e receber carinho de pessoas, como até mesmo os seus filhos”. E continua com a segunda
forma de reconhecimento: “segunda é o direito, onde a mulher vai lutar para entrar na política
e ser reconhecida como um poder público”. Por conseguinte, prossegue: “e em terceiro vem a
estima que é as habilidades que contribuem para a sociedade”.
Pouco antes de sua conclusão que se alinhará novamente com a teoria crítica do
reconhecimento social em Honneth, a aluna escreve que, segundo seu pensamento, “se no
mundo não existisse o machismo a sociedade seria bem melhor e a mulher seria ouvida,
respeitada, e não seria julgada”. Somando-se à necessidade de ser ouvida e respeitada, a aluna
ressalta que “por mais que tenha mulher exercendo o trabalho do homem, ela ainda é julgada e
isso deveria ser diferente”.
O texto 10 (anexo J) atinge sua conclusão atrelado ao pensamento contemporâneo da
teoria crítica sobre o reconhecimento, cujo expoente de forte expressão é Axel Honneth que, de
acordo com essa aluna, “o reconhecimento vai surgir quando você quer fazer parte de uma
sociedade que valorize a minha experiência de ser livre para reconhecer a mim mesmo”, visto
109
que “se nós mulheres nos reconhecermos como tal, vamos também estar querendo reconhecer
as oportunidades sociais para que também a sociedade possa nos reconhecer”.
17
A exemplo do que Cornelli faz aqui com os autores da história da filosofia, cujo ensino é muito mais um
“aprendizado de distâncias” do que uma aproximação entre eles. Aprendemos à medida que descobrimos quão
outro é Platão, Aristóteles em relação a nós. Cf. CORNELLI, G. A lição dos clássicos: algumas anotações sobre
a história da filosofia na sala de aula. In: GABRIELE CORNELLI; SILVIO GALLO; MÁRCIO DANELON.
(Org.). Ensino de filosofia: teoria e prática. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, p. 183-201.
110
Sem dúvida, há uma busca, cada vez mais intensa, das pessoas por reconhecimento de
suas competências, sejam homens ou mulheres. Em sintonia com essa noção de
reconhecimento, Honneth complementa a ideia de reputação no sentido privado como
substituição ao sentido de honra no uso público.
Dessa forma, a posição que o conceito de honra havia preenchido antes no espaço
público da sociedade dá lugar então a ser ocupado gradativamente pelas categorias de
‘reputação’ ou de ‘prestígio’, “com as quais se deve apreender a medida de estima que o
indivíduo goza socialmente quanto a suas capacidades individuais”. Ou seja: “reputação e
prestígio referem-se somente ao grau de reconhecimento social que o indivíduo merece para a
sua forma de autorrealização, porque de algum modo contribui com ela à implementação prática
dos objetivos da sociedade, abstratamente definidos” (HONNETH, 2003, p. 205-206).
Aproveitando um trecho em seu texto 7, no qual chega a dizer que a luta das mulheres
por reconhecimento “inspira a todos, pois todos queremos um lugar na sociedade...”, para trazer
à memória uma importante mensagem de Pascal presente em Entre nós: ensaios sobre a
alteridade, importante obra de Levinas (2004, p. 193) que assegura: “Meu lugar ao sol, eis o
começo e a imagem da usurpação de toda a terra”. O que pode significar, para esse filósofo, o
temor do meu livre existir ocupar o lugar de alguém, o temor que vem do rosto de outrem, a
incapacidade de ter um lugar, o temor por tudo o que meu existir pode realizar como assassinato
e violência (LEVINAS, 2004).
Para finalizar, vale destacar o que esse aluno trouxe em seu texto como metáfora de uma
guerra com armas. Nesse sentido, escreveu: “viver em um mundo onde tem guerra de gêneros,
onde homens julgam as mulheres, e as mulheres julgam os homens seria pior que viver em um
mundo com armas, pois a morte é inevitável e o amor é uma necessidade”. Sem dúvida, quanto
mais queremos reduzir o outro ao que pensamos sobre ele, mais esse outro nos escapa, excede.
Por isso, a necessidade do amor e do respeito para aprendermos a reconhecer nossas distâncias,
diferenças e alteridade.
Por outro lado, a guerra destrói as alteridades e reduz as individualidades a sistemas de
interesses mais vastos e autoritários, disseminando ódio, violência e inúmeras atrocidades. Com
isso, evocamos o próprio Levinas:
Tal como a guerra moderna, toda e qualquer guerra se serve já de armas que se voltam
contra o que as detém. Instaura uma ordem em relação à qual ninguém se pode
distanciar. Nada, pois, é exterior. A guerra não manifesta a exterioridade e o outro
como outro; destrói a identidade do Mesmo. (LEVINAS, 2008, p. 08).
113
Dos textos 3 e 8 (anexos C e H), desponta uma questão que atravessa ambas as escritas:
o empoderamento feminino. Mas, não se trata de um empoderamento solto e inconsciente. Ao
contrário, a aluna, autora dos textos, investe de identidade a emancipação do feminino, tratando-
o por um sobrenome, ou seja, empoderamento é sobrenome de mulher.
Para confirmar ainda mais esse sobrenome, essa identidade da mulher, é possível que
ela encontre correspondência social. Nessa direção, “a formação prática da identidade humana
pressupõe a experiência do reconhecimento intersubjetivo” (HONNETH, 2003, p. 155).
No decorrer de seu texto 8, mais precisamente no desenrolar do 2° parágrafo, a aluna
consegue sinalizar para a primeira forma de reconhecimento recíproco em Honneth, o amor.
Sabemos que, pelo amor, “os sujeitos se afirmam mutuamente na natureza concreta de suas
carências, reconhecendo-se como seres carentes”, quanto a isso, Honneth prossegue: “na
experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem
dependentes, em seu estado carências, do respectivo outro” (HONNETH, 2003, p. 160).
Para a aluna, o feminismo deve estar muito além das questões de gênero sexual, porque
dentro da mulher há muitos valores e um deles é o amor, o amor da família. Assim, assegura:
A mulher feminina é muito amorosa em relação a seus filhos, a maioria da pra ver no
brilho dos seus olhos o quanto ficam orgulhosas e completas com algo que seus filhos
conquistam, para elas a felicidade deles é a sua própria felicidade. Essa é a verdadeira
essência da mulher, tornar as pessoas mais humanas. (texto 8, anexo H).
Diante dessa cumplicidade amorosa em relação aos filhos, só podemos evocar mais uma
vez Honneth sobre a primeira comunidade de valor, o amor. “Toda relação amorosa, seja aquela
entre pais e filho, a amizade ou o contato íntimo, está ligada, por isso, à condição de simpatia e
atração, o que não está à disposição do indivíduo”. Contudo, segue afirmando Honneth: “só
aquela ligação simbioticamente alimentada, que surge da delimitação reciprocamente querida,
cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação
autônoma na vida pública” (HONNETH, 2003, p. 178).
Vimos que a aluna expressou, de maneira autêntica, a relação afetiva e amorosa das
mulheres para com seus filhos e o modo como elas se reconheciam neles, confirmando assim,
um sentimento de reciprocidade, a felicidade de ambos, numa espécie de simbiose.
Outro ponto desse mesmo texto se mostra relevante, é a declaração de que não é fácil
ser mulher e de que não é fácil carregar o “peso” de ser uma cidadã feminina, principalmente
quando aceita sua identidade com o feminismo. Para ela, o reconhecimento dessa identidade
vem da descoberta das três formas de reconhecimento em Honneth: amor, direito e estima
114
social. Com efeito, as mulheres são vitoriosas pelo seu feminismo e o troféu é chamado de
reconhecimento, afirma a aluna.
Temos mais uma aluna do ensino médio que descreve para nós, em seu par de textos 4
e 9 (anexos D e I), as condições de inferioridade com as quais vivem as mulheres. Condições
essas que vão desde os costumes culturais, relegadas ao trabalho do lar, presas ao estereótipo
de dona de casa, passando por duros preconceitos de machismo, desigualdade social e salarial
até aos bárbaros atos de feminicídio.
Apesar de tudo, ainda que sofram por serem tratadas com inferioridade, as mulheres
permanecem lutando por reconhecimento, respaldadas pelas três modalidades de
reconhecimento diretamente relacionadas com as três formas de desrespeito em Honneth que
defende, pelas condições de inferioridade e desrespeito descritas aqui, em casos de maus-tratos
e violação física onde se coloca em jogo a integridade física do indivíduo, desrespeita-se o
amor; quando o desrespeito se manifesta na privação de direitos e exclusão social, infringindo
a integridade social do indivíduo, desrespeita-se o sujeito de direitos; quando o desrespeito
surge em casos de degradação e ofensa, por isso, a honra e a dignidade do indivíduo são
desrespeitadas, desrespeita-se a solidariedade, a estima social.
Já que a aluna insiste na cobrança por mais igualdade salarial entre homens e mulheres
ao exercerem o mesmo trabalho, intercedemos Fraser ao que diz sobre esse aspecto. As
mulheres, por exemplo, compreendem uma coletividade tida, para Fraser, como ambivalente
porque necessitam tanto de reconhecimento quanto de redistribuição ao mesmo tempo. No caso
das mulheres, existe um tratamento desigual devido ao gênero e devido à raça, o que dificulta
por demais a superação das estruturas econômico-políticas que engendram mecanismos de
exploração, dominação, marginalização e privação, estritamente marcados pelo gênero.
Por essa razão, a mulher pode ser considerada como parte dessa estrutura interna
desigual de um trabalho remunerado ou não remunerado, quando remunerado ocupa funções
de baixa remuneração reservadas exclusivamente para elas. Semelhante à classe, a injustiça
sobre a mulher aparece como um tipo de injustiça distributiva que carece de compensações
redistributivas. Aqui, como argumenta Fraser (2007), diz respeito a algo como a “lógica do
remédio” comparável à lógica concebida pela classe, ou seja, cuida em acabar com esse negócio
de gênero. Segundo ela, se o gênero não é nada mais do que uma diferenciação econômico-
política, a justiça obriga, portanto, que ele seja banido.
Ainda, sob a perspectiva do trabalho, nas sociedades capitalistas clássicas, dominadas
pelo masculino, há uma estreita conexão da identidade masculina com o papel de ganha-pão,
115
cuja masculinidade teria a função de deixar o lar todos os dias para ir a um local de trabalho
remunerado e voltar com um salário que sustente seus dependentes.
Para Fraser (2003), isso explica não só por que razão o desemprego é tão devastador
para o masculino nessas sociedades, porquanto significa a relação interna entre ser homem e
ser aquele que sustenta seus dependentes, mas explica também a centralidade da luta por um
salário familiar na história dos movimentos dos trabalhadores e dos movimentos sindicais nos
dois últimos séculos, o que não significou uma luta pelo pagamento de um salário a um
indivíduo sem gênero pela sua força de trabalho, mas significou o pagamento a um homem pelo
apoio à sua esposa economicamente dependente junto com seus filhos. De acordo com Fraser,
tal concepção legitimou a prática de pagar menos às mulheres por um trabalho igual ou
semelhante (FRASER, 2003).
Quanto ao que afirma a aluna no aspecto da liberdade, ao escrever em seu texto 9 que
“a mulher possui a liberdade e o direito de ser o que quiser, estar presente em todos os lugares
em que ela queira estar, fazer o que ela tem vontade livre de opressão, estereótipos e padrões”,
é visível uma orientação centrada no primado de uma ética da liberdade absoluta, sem limites
e fronteiras, inútil e insuficiente.
Contudo, nossa subjetividade ética, tal como adotamos de Levinas, não é um simples
refúgio na autonomia, pois respondemos pela nossa responsabilidade. Por isso, quando
exercitamos nossa autonomia, enquanto sujeitos, exercemos nossa liberdade e não nos
envergonhamos de nada. Segundo Levinas, só a partir de uma ação responsável o sujeito é
sujeito ético, visto que a interpelação do Outro é um mandato moral que nos obriga a uma
resposta.
Antes de tudo, é bom pensar se realmente a mulher é livre para fazer o quiser, haja vista
que sua liberdade deve vir precedida de sua responsabilidade. É na sua relação com a alteridade
que se funda o princípio da responsabilidade. Por esse princípio nos dirigimos para o desfecho
desse texto, ressaltando o caráter do feminino: “a mulher possui sua própria identidade e
essência, sua delicadeza, seu eu feminino, seu poder acolhedor e de reconhecimento”.
O último par de textos dessa seleção, que corresponde aos textos 5 e 10 (anexos E e J)
dão conta de uma certa cobrança de que a mulher não é muito ouvida por se achar diminuída
num país machista. Certamente, parece ser uma cobrança por estima social, em que a mulher
precise ganhar autoestima. Por sua ótica, Honneth tem muito a nos ajudar, visto que os sujeitos
humanos carecem mais ainda, depois da experiência do cuidado afetivo e do reconhecimento
jurídico, de uma nova experiência de reconhecimento, conhecida como estima social que lhes
116
Portanto, o desfecho desse texto é pertinente porque retoma de forma bem precisa a
experiência de reconhecimento, em Honneth, inseparável da compreensão de uma busca pela
afirmação de identidade, garantida pelo processo de intersubjetividade. O reconhecimento da
mulher consigo mesma, no caso dessa aluna, está condicionado ao Outro social para garantir-
lhe confiança, respeito e valor. Até mesmo sua condição de liberdade está na dependência ou é
constituída pelas relações intersubjetivas, de modo que sua liberdade só se autorrealiza pela
ajuda de seu parceiro de interação.
Na voz de reconhecimento da aluna, é curioso perceber também não só a atitude de
alguém que deseja e recebe reconhecimento, mas de uma mulher que se reconhece como tal e,
por isso, exige reconhecimento social.
118
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contudo, algumas hipóteses nos motivaram a levar adiante essa investigação. Uma delas
foi possibilitar que a perspectiva inicial dos alunos sobre a questão do feminino se relacione
com a reflexão filosófica à luz dos conceitos de alteridade em Levinas e do reconhecimento em
Honneth. E assim, a partir disso, nos perguntamos qual a visão dos alunos antes e depois das
contribuições filosóficas sobre o feminino, atrelado à alteridade e ao reconhecimento,
considerando a problematização destas concepções filosóficas?
Diante disso, talvez, tenha sido possível oportunizar relações de trocas de experiências
entre os alunos para uma dimensão mais humana com a participação em oficinas, através das
rodas de diálogo, na medida em que tais experiências serviram para discutir sobre as questões
decorrentes do reconhecimento inalienável do Outro, como a presença, a atenção, o
acolhimento, o respeito, a responsabilidade, a justiça, o amor. Tudo isso articulado aqui com a
figura da mulher. Ainda que não encerre a reflexão filosófica sobre essa questão, pois, trata-se
da reflexão sobre a máxima alteridade e o máximo acolhimento de um filosofando que não
termina nunca.
De acordo com as análises das produções textuais desses estudantes, pudemos observar
uma maior participação social do feminino, lutando cada vez mais por respeito em suas relações
de alteridade. De um modo geral, os textos corresponderam ao darem voz à mulher no aspecto
Outro, tão presentes no filosofar de Levinas.
Em certa medida, os textos da perspectiva filosófica, 3ª oficina, destacaram a
importância da manutenção da alteridade entre nós pelas demandas do feminino. Grosso modo,
os alunos deram ênfase à busca por mais igualdade salarial entre homens e mulheres que
ocupam as mesmas funções ou semelhantes, como também, a luta por mais reconhecimento
profissional de suas competências e qualidades. E ainda, as três formas de reconhecimento:
amor, direito e estima social em Honneth foram frequentemente mencionadas nesses textos, os
quais nos aproximaram e ao mesmo tempo nos distanciaram da noção de alteridade em Levinas,
articulados com o feminino.
De alguma forma, basta lançarmos o olhar no tópico do reconhecimento a partir da
perspectiva filosófica, seção quarta, e observar que os objetivos traçados na pesquisa foram
contemplados pelas produções textuais dos alunos, de modo que conseguimos positivamente,
com base no caminho metodológico de tipo qualitativo de abordagem fenomenológica, analisar
a concepção de alteridade em Levinas; retomar o conceito de reconhecimento em Honneth;
trabalhar os conteúdos com os alunos do ensino médio sobre a alteridade e o reconhecimento a
partir da perspectiva filosófica; analisar a visão dos alunos do ensino médio sobre a alteridade
120
REFERÊNCIAS
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de aula. In: CORNELLI, G.; GALLO, S.; DANELON, M. (Orgs.). Ensino de filosofia: teoria
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64452000000200008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 28 maio 2019.
ANEXOS
ANEXO A – TEXTO 1
128
ANEXO B – TEXTO 2
129
ANEXO C – TEXTO 3
130
131
ANEXO D – TEXTO 4
132
133
ANEXO E – TEXTO 5
134
ANEXO F – TEXTO 6
135
ANEXO G – TEXTO 7
136
ANEXO H – TEXTO 8
137
ANEXO I – TEXTO 9
138
ANEXO J – TEXTO 10