Você está na página 1de 5
JOE,°0' MENINO DA CORDINHA: 0 TRABALHO DA EQUIPE E DOS PAIS * 0 que a crianga autista nos ensina Virginio Baio* Desejo aqui dar conta de uma peculiar pratica clinica, que comecau hi mais de vinte e sete anos. Pratica clinica denominada por J.-A. Milles, em 1996, “La practique 8 " iniciada em Waterloo, Bélgica, em 1974, por um psicana- lista lacaniano italiano, Antonio Di Ciaccia, que se encontra na arigem néo ape- nas das novas fundacdes inspiradas nesta prética (Rosario, Bolonha, Veneza, Rimini, Milio, Rome, Orvieto), mas também de sua instituigo Antenne 110, que faz parte de uma rede internacional de instituigbes infantis denominada R13, perten- cente ao Campo freudiano criado por Jacques-Alain Miller. Antenne 110 faz parte desta Rede Intemacional de InstituigGes Infantis RI3, junto ao CRT de Nonette, que se encontra em Clemont-Ferrand (Franga), Mish’ Olim, em Tel Aviv (Israel), 0 Courtil, que se encontra na fr entre Bélgica e Franca, o Pré-Texte em Bruxelas, a Demi-Lune, o Centro di Jour de Podensac e a Ile-Verte em Bordeaux. Muitas clinicas no mundo se interessam pela pratica de varios de Antenne: psiquiatras infantis, psicanalistas, psicoterapeutas, psicblagos e educadores chegam, com efeito, desde Sofia, Erevan, Moscou, Argélia, Rio de Janeiro, Dublin, Ménaco, para conhecer a equipe, para fazer estagio, para encontrar idéias para suas fundacdes ou para reformular a orientacdo de suas instituigées, Todavia, methor é dar conta daquilo em que consiste a funcéo de nossa tarefa e seus tempos logicos através do percurso e do trabalho que Joe realizou em Antenne 110. Um trabalho que durou um ano e meio, no qual ele conseguiu, tendo chegado com um diagnéstico psiquistrico de autismo, passar de uma creche, na ‘qual se encontrave segregado antes de chegar 8 nossa instituicio, para uma esco- la normal, na qual se acha integrado e cursa o segundo ano do ensino primério. De estar exctuido do lago social, hoje se apresenta a nds como um pequeno grande senhor! 0 PERCURSO DE JOE ‘Joe, ‘que tem quatro anos e meio, & excluido do pré-escolar porque per- manece sempre isolado em seu mundo, violento com qualquer uin que a elé se dja, fazendo-se de surdo, cego e mudo em relagdo a tudo'que o rode, cenquanto agita sem parar, durante horas e horas, uma cordinha ou uma tira com- prida de papel ou de pano. Assim 6 como se apresonta 20 chegar em Antenne. Primeira fase: Uma elaboragio jé em ato A primeira questo que surge para nds, educadores, & “0 que se faz? Tirarthe a cordinha? Obrigé-lo a estar em condigdes de escutar a professora? Afasté-lo dos pais? Curé-lo, ensinando aos pais o que tém que fazer com seu ‘Joe? Tratar o menino através do ensinamento © do condicionamento de um “camo deve fazer? Em lugar de nos preocuparmos pelo “como fazer" ou “que fazer", desco- brimos que esta ago de “agitar a cordinha” de Joe nao &, como nos diz Léo Kanner, em 1943, uma “estereotipia", um comportamento obsessive, sendo que, gragas a Lacan, descobrimos que j4 é uma “elaboragdo", uma “construgso” que Joe esta tentando realizar. Segunda fase: dar um lugar aos pais com Apesar de que o primeiro impulso seja ocupar-se imediatamente de Joe, 20 ccontrério, nbs nos preocupamos em “dar um lugar” aos pais como “sujeito”. Porque se nio permitirmos aos pais que verifiquem a posicdo desde a qual vamos tentar atuar, se nBo sio eles os que nos escolhem, se ndo so eles mes- mos os que nos consideram competentes € nos outorgam sua confianga, 10s arviscarfamos a criar as condicdes para que eles tenham que se defender conti- a deixem de nos manter sob suspeita. *sujeito” nuamente de nds e Por que? Quem thes assegura que somes competentes, que ndo nos aproveitamos de seu Filho, que nao os fazemos perder tempo? Quem thes asse- {ura que ndo somos uns caprichosos, uns aproveitadores, inclusive, uns canathas? Desde 0 primeiro encontro com os pais, nés nos colocamos na posicso de “prestar contas” de tudo aquilo a que estamos obrigados: a prestar contas em reuniges regulares, na ritmo que os pais decidirio, de nosso trabalho e do que faz seu filho; a respeitar todos os seus “direitos” de verificarem nosso trabalho, 0 “diteito” de contar conosco em qualquer momento, dia e noite; a respeitar 0 seu “direito” de ter um saber sobre seu filho; inclusive o “direito” de reti em qualquer momento, se no estiverem contentes com nosso trabalho. é o que fazemnos com os pais de Joe: na primeira reunio, em lugar de que falem de Joe, n6s colocamos as cartas sobre a mesa em relacS0 a0s nosso “deveres” © 205 seus “direitos”. Em que consiste nosso trabalho © como consi- deramos que temos que levé-lo a cabo, Mas podemos fazer tudo isso com uma Sinica condo: “a de poder contar com seu saber’, quer dizer, ue venham nos transmitir o saber que tém sobre Joe, porque, no fundo, so 0s pais quem mais sabem de Joe. Por essa razio, nbs somos aqueles que perguntam, porque no sabemos nada de Joe. Para terminar thes garantimos que ninguém da e parte.que thes cabe como pais (como se disséssemos a nés mesmos: “Esta proibido invadir a parcela do sujeito!”). 1 desde esse primeiro encontro, os pais desejam a todo custo que Joe vena para Antenne. Eles vio embora, dizendo: “Por fim encontramos!”. Assim, testemunham ter encontrado alguém que nao utiliza o saber para manté-los alijados do que fazemos com Joe: eles tém direito de saber e veriicar que nbs ho" e se intrometerd na “nao colocaremas nunca as mos em cima de se Terceira fase: a equipe de operadores E com a condigao de que nos facar les que ver- dadeiramente sabem sobre seu filho, que os pais nos dizem um sim profundo a0 nos confiar o seu Joe. E, j8 nos primeiros dias, os efeitos da alegria de Joe quando vé Philippe, © motorista da caminhonete de Antenne que vai buscé-lo fem casa, confirmam para os pais que tém razo ao confiar na equipe. Entretanto, se nds com a pressa de “curar” o pequeno Joe como se ele fosse 0 verdadeira doente, excluindo os pais como se eles fossem a causa da doenga de seu filho, arriscariamos, antes de tudo, 0 célculo sobre as nossas condicdes de servir ao ato que tanto Joe como seus pais hio de realizar. varios diante dag ‘AQUILO QUE 0S EDUCADORES DEVEM SABER. 0 que devemos saber? Nés, os educadores, devemos saber que nos pais € ‘em Joe ha uma “posicio subjetiva”. Nossa fungo € encontrar um lugar para cada lum, um lugar para sua eftunciacdo, para seu direito de dizer, para dizer “nao”, para se opor, para se impor, para se impor como sujeito de sua enunciacao. Ademais devemos saber que os pais s8o os que sabem de seu Joe, € que ‘Joe é quem sabe o que deseja construir, o que deseja elaborar. Portanto, devemos saber que para ele essa cordinha 6 sua chave passe-partout, a pedra angular de sua elaboragao. 3. Lacan diria que, na fatta da chave fatica para poder se orien- tar na existencia, no lag sociale na sexuatidade, a crianga, chamada autista ou psicética, deve inventar sua chave de supléncia, uma chave com a qual supra a chave standard que no possui. Deve-encontrar uma solugio‘corh essa cordinha, due para ele tem a fungio de “érqdo suplementar’, de érgio gracas a0 qual pode “organiza” sua vida. Devemos saber que somente se lograrmos dar um lugar aos pats como “sujeto", eles nos outorgardo sua confianca ¢ nos pedirao que “os incluamos como parceiros de nosso trabalho", ‘Somente se eles encontram entre nés um lugar como “sujeito” é que podem ‘entéo estimar como se tornam, por sua vez, eles mesmos “parceiros” de seu Joe. ‘QUILO QUE OS EDUCADORES DEVEM SABER-NAO-SABER Nao se trata nem de “saber", nem de “nao saber”, sendo de “saber-nio- saber’. O que devemos saber-nio-saber? Devemos saber-no-saber qual € a cons- trugdo, a elaborago que convém aos pais e a Joe. Por exemplo, Joe trabalhando com os distintos operadores e rios distintos ateliés passa por cinco tempos. Primelro tempo: agitar sua cordinha e verficar os tempos do Outro Em um primeiro tempo, Joe chega a Antenne agitando sua cordinha ou uma tira de papel adesivo. Mas se poe afazer um monte de perguntas aos educa- ddores, verificando os tempos: “E as quatro que se regressa a casa?”, verificando 2 hora do recteio, da comida, da chegada dos educadates, comprovando com eles © que se pode fazer e o que ndo se pode fazer em Antenne, Segundo tempo: 2s construgies Em um segundo tempo, em um atetié com Monique K., a cordinha dé lugar 4 uma gitafa que ele faz viajar em varias caixas vazias que, em seu jogo, se con- vertem na casa, no quarto de dormir, na copa, na piscina. A girafa vai dormir (e ele tira 0s sapatos), vai até a janela, vai para a piscina: aparece claramente que a girafa 6 ele mesmo, & sua representacao. Terceiro tempo: metonimia das construgées Rapidamente Joe, em outros ateliés com Christine E,, elabora novas cons- ‘trugées: transforma a girafa em um crocodilo que come um bebé e que o tem na barriga, e come tudo, inclusive seus pais. Para terminar, diz: “Sou um rato que morde ~ diz para a educadora: te arranho. Te conto um segredo: matei meu papai, arranhei meu imo!”

Você também pode gostar