Você está na página 1de 32

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA: UMA ANÁLISE À LUZ DO PRINCÍPIO DE SUA PRESERVAÇÃO

AUTOR: Luiz Fernando de Camargo Prudente do Amaral, mestre e doutorando em direito civil
comparado pela PUCSP, especialista em direito público pela Escola Paulista da Magistratura ,
pós-graduado em direito penal econômico e europeu pela Faculdade de Direito de Coimbra –
Portugal, advogado e professor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, da
Faculdade de Direito da Universidade Paulista – UNIP e Professor convidado da Fundação
Armando Álvares Penteado – FAAP, membro da Comissão Geral de Ética do Estado de São Paulo,
autor de livros e artigos jurídicos.

1. INTRODUÇÃO

A oportunidade que nos foi conferida para a elaboração deste singelo artigo veio ao encontro
daquilo que pensávamos fazer desde a publicação da obra “A função social da empresa no
direito constitucional econômico brasileiro”1. Esta foi o resultado de nossos estudos iniciais
acerca da aplicação da socialidade aos institutos jurídicos de direito privado. Afinal, o princípio
da função social da propriedade, devidamente previsto nos arts. 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III,
da Constituição Federal de 1988, representa ou, no mínimo, indica um novo instante no
ordenamento jurídico brasileiro.
A época da publicação da obra referida, nossa preocupação estava diretamente relacionada com
o exercício da atividade empresarial e com a eventual ocorrência das chamadas externalidades
negativas. As sociedades empresárias, assim como as pessoas naturais, contam com
personalidade jurídica, desde que obedecidos os ditames legais para tanto. Assim, tal qual
ocorre com cada um dos cidadãos, as sociedades empresárias devem atender aos ditames legais
e contribuir com a preservação e com a realização do interesse público, ainda que isso lhes
imponha apenas alguns deveres de abstenção.
Já que nosso intuito – com a publicação de referida obra – se voltava à abordagem dos
relevantes deveres que também pedem cumprimento por parte de sociedades empresárias no
exercício de uma atividade empresarial, focamos os tópicos de tal trabalho nos deveres de
cooperação que devem restar presentes entre o empresário e todos aqueles que, direta ou
indiretamente, estão ligados à atividade empresarial.

1
AMARAL, Luiz Fernando de Camargo Prudente do. A função social da empresa no direito constitucional
econômico brasileiro. São Paulo: SRS, 2008.
Sabemos que qualquer atividade produtiva necessita de inúmeros fatores para alcançar seus
objetivos. Essa é a razão pela qual a doutrina aponta fatores endógenos e exógenos relacionados
à atividade empresarial. De fato, sob o ponto de vista interno (endógeno), a atividade
empresarial resta atrelada aos trabalhadores envolvidos na produção ou circulação de bens e
serviços, aos sócios que compõem o quadro societário da pessoa jurídica, entre outros que
podem ser listados.
Do ponto de vista externo (exógeno), a atividade empresarial resta vinculada a direitos de índole
difusa que implicam direta relação com objetivos maiores de toda a coletividade. Observe-se, a
respeito, a pertinência existente entre a atividade empresarial e direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos. Todo aquele que resolve empreender, relaciona-se com o mercado e
produz ou circula bens e serviços no ambiente em que vivemos. Desde logo, é possível notar a
flagrante relação entre a atividade empresarial, as questões ambientais e as repercussões
trazidas ao âmbito do direito do consumidor.
A função social da empresa pode e deve ser analisada sob o enfoque tratado em nossa primeira
obra monográfica a respeito do tema. Contudo, conforme esclarecemos ao tempo da publicação
mencionada, há outros enfoques – jamais excludentes – que permitem avaliar o fenômeno
empresarial não apenas sob o prisma dos deveres das sociedades empresárias, mas, para além
disso, da importância que sua preservação representa para os interesses coletivos.
A matéria pode parecer simples, mas está longe de realmente demonstrar efetiva simplicidade.
O setor empresarial é cotidianamente cobrado acerca de seus deveres, muitos dos quais
abordados na obra acima referida. Poucos, porém, notam que o desenvolvimento de uma
atividade empresarial e sua continuidade representam enorme ganho coletivo.
Ainda a título de introdução, cabe-nos exemplificar o quão relevante é vislumbrar a atividade
empresarial como algo positivo aos ditames sociais e coletivos. Alguns governos, incitam
militantes partidários a manterem a “velha bipolaridade” capital x trabalho. Não se trata apenas
de insuflar uma espécie de cisão entre diferentes esferas da mesma sociedade civil. Para além
disso, busca-se apontar os detentores dos meios de produção e integrantes da classe
empresarial como os verdadeiros responsáveis pela miséria nacional.
Em suma, para se desincumbirem de pleitos sociais que deveriam solucionar, determinados
governantes preferem focar o setor empresarial como o grande responsável pelas mazelas do
Estado. Usam o argumento da luta de classes marxista tanto para justificar as desigualdades
sociais, a maior parte das quais atribuíveis à omissão estatal, como para insuflar parcela da
população marginalizada, de modo a reconhecer nos setores produtivos os responsáveis pela
miséria nacional.
Nesse contexto, trazer à baila breves reflexões acerca da função social da empresa, analisando-
a sob o prisma de sua relevância e não dos deveres a todos impostos, faz-nos compreender as
razões pelas quais os tribunais pátrios têm aplicado com alguma frequência o princípio da
preservação da empresa. Este ganha maior importância quando nos deparamos com posturas
governamentais que buscam dividir a sociedade civil e atribuir os males da desigualdade social
àqueles que optaram pela livre iniciativa e pelo empreendedorismo.
Em grande medida, os deveres empresariais têm sido cobrados por parte de sérias instituições
como o Ministério Público dos Estados e o Ministério Público Federal. Ademais, associações
voltadas à questão ambiental e consumerista também têm atuado de maneira irreparável na
fiscalização da adequação legal das atividades empresariais em face de direitos atrelados ao
interesse público2, moralidade administrativa e, ainda, àqueles de índole difusa, coletiva ou
individual homogênea.
Além disso, as sociedades empresárias já começaram a estruturar departamentos internos
voltados não apenas à observância de ditames legais, mas também à promoção de iniciativas
ligadas à chamada “cidadania empresarial”, resultado da responsabilidade sócio empresarial
que busca harmonizar os interesses empresariais com aqueles existentes na sociedade.
Por todas as razões acima expostas, tentaremos demonstrar neste artigo uma outra face da
função social da empresa. Buscaremos elucidar a importância da preservação da atividade
empresarial, ainda que isso ocorra através da mudança do empresário responsável por sua
realização. Abordaremos, com base na doutrina e na jurisprudência, os aspectos que nos
parecem relevantes à aplicação do princípio da preservação da empresa, sobretudo para alertar
que a atividade empresarial é um dos fatores mais relevantes à consecução de objetivos
coletivos. A sociedade empresária é fonte de emprego, de renda, de tributos e de avanços para
toda a coletividade.

2
Note-se a recente entrada em vigor em janeiro de 2014, da lei 12.846 de 1º de agosto de 2013,
denominada “lei anticorrupção”, a qual dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas
jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Logo em seu
primeiro dispositivo, a mencionada lei conta com a seguinte redação: “Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a
responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a
administração pública, nacional ou estrangeira. Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às
sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de
organização ou modelo societário adotado, bem como quaisquer fundações, associações de entidades ou
pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro,
constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente”. Fixa-se, portanto, o âmbito de aplicação
da novel legislação, no intuito de punir não apenas as pessoas naturais que atuam em desfavor da
Administração Pública, mas também as pessoas jurídicas envolvidas em casos infelizmente comuns em
nosso país de corrupção.
2. A EMPRESA COMO ATIVIDADE

Antes de adentrarmos o estudo do tema propriamente dito, cabe-nos realizar uma distinção de
ordem teórica. Trata-se de um esclarecimento conhecido daqueles formados nas ciências
jurídicas, mas ignorado por muitos que atuam em outras áreas do conhecimento.
Quando adotamos o termo “empresa” muitos entendem-no como uma referência à sociedade
empresária ou ao estabelecimento empresarial. A confusão se dá, portanto, entre a pessoa
jurídica (sociedade empresária) e o conjunto de bens empregados na atividade empresarial
(estabelecimento empresarial). Todavia, o vocábulo empresa não pode ser confundido com
nenhum desses outros conceitos, pois tem sentido absolutamente diverso de ambos.
Conforme esclarecido acima, sociedade empresária é o empresário. Segundo o art. 966 do
Código Civil brasileiro: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.
Note-se que o conceito legal refere-se ao empresário como aquele que exerce determinada
atividade. Segundo FÁBIO ULHÔA COELHO: “Empresário é a pessoa que toma a iniciativa de
organizar uma atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços. Essa pessoa
pode ser tanto a física, que emprega seu dinheiro e organiza a empresa individualmente, como
a jurídica, nascida da união de esforços de seus integrantes”3.
O ensinamento acima exposto esclarece não existir identidade entre empresa e empresário. Se
este é responsável pela atividade econômica exercida, não pode, ao mesmo tempo, servir à
conceituação de empresa. Da mesma forma, o estabelecimento empresarial, compreendido
como conjunto de bens e direitos empregados na exploração da atividade não deve ser
confundido com o conceito de empresa.
Segundo FÁBIO ULHÔA COELHO: “Estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o
empresário reúne para exploração de sua atividade econômica. Compreende os bens
indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa, como as mercadorias em estoque,
máquinas, veículos, marca e outros sinais distintivos, tecnologia, etc. Trata-se de elemento
indissociável à empresa. Não existe como dar início à exploração de qualquer atividade
empresarial, sem a organização de um estabelecimento”4.
Resta claro que o estabelecimento empresarial não se confunde com a empresa. Afinal, segundo
o trecho acima colacionado, o estabelecimento é indispensável ao desenvolvimento da

3
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de empresa. V. 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p.78.
4
Idem, p. 112.
empresa. Fossem conceitos idênticos, a empresa estaria destinada à exploração da própria
empresa, o que seria um verdadeiro paradoxo.
Com os esclarecimentos acima, é possível afirmar a distinção que pretendemos consignar neste
tópico. A empresa não deve ser confundida com a pessoa, natural ou jurídica, que exerce a
atividade econômica e empresarial, nem com o conjunto de bens e direitos necessários à
exploração dessa mesma atividade. Ao contrário, empresa é conceito que deve ser identificado
com a própria atividade. Assim, de acordo com a segunda parte do art. 966 do Código Civil, o
conceito de empresa nada mais é do que a “atividade econômica organizada para a produção
ou a circulação de bens ou de serviços”.
A doutrina debate acerca dos elementos essenciais à definição do conceito de empresa. É
corrente a utilização da teoria poliédrica de empresa, formulada por Alberto Asquini. É
indubitável, porém, que a empresa, enquanto atividade, engloba diversos fatores para poder
existir e operar.
Tendo em vista essa realidade, WALDIRIO BULGARELLI elenca os “elementos” que compõem a
chamada empresarialidade, ou, se preferirem, as ideias que se pode dessumir desse conceito.
Assim, apresenta o empresário, o estabelecimento e a empresa. A respeito desta última,
assevera: “A empresa, concebida como atividade econômica organizada, e qualificada como fato
jurídico (ou comportamento) servindo como elemento qualificador do sujeito e do objeto. Daí
ter também uma normatividade própria, pois não é simples atividade, mas, qualificada, ou seja:
organizada com reflexo nos bens (estabelecimento) e nas pessoas (comunidade de trabalho
quando haja e assim seja reconhecida); profissional (em caráter continuado) e econômica
(produzindo para o mercado)”5.
Não há empresa, sob o enfoque da citada empresarialidade6, sem pessoa jurídica ou pessoa
natural que a explore de maneira profissional e com finalidade econômica – ainda que seja
possível separar os seus elementos para compreensão teórica da matéria-, atendendo-se aos
demais requisitos do art. 966 do Código Civil. Do mesmo modo, o desenvolvimento da empresa
não poderá ocorrer sem a utilização de um estabelecimento empresarial, na medida em que a
atividade (empresa) depende da disponibilidade de determinados bens. Por fim, a empresa
enquanto atividade se dará de maneira relacional. Demandará a existência de relações jurídicas
entre sujeitos de direito que tenham por base determinados objetos de direito.

5
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 109.
6
Waldirio Bulgarelli (ob.cit., p. 109) afirma: No centro da empresarialidade, situa-se a empresa, como
expressão dinâmica do exercício da atividade econômica organizada, que serve a qualificar e identificar
os dois outros, os quais não se excluem, pois se completam numa unidade lógico-jurídica e
correspondente à realidade do fenômeno econômico-social”.
De acordo com Vera Helena de Mello Franco: “A empresa é, em síntese, do ponto de vista da
sua organização interna, a interação funcional de elementos de diferentes naturezas com o fito
de produzir bens e serviços para o mercado. É uma unidade de produção, valorada
singularmente em seus diferentes aspectos pelo direito. É fenômeno econômico e social, cuja
apreensão do ponto de vista jurídico não se faz uniformemente”7.
Assim como ocorre com o direito de propriedade e, como veremos, por ser a atividade
empresarial um dos possíveis efeitos – leia-se, uma das possíveis utilizações – da propriedade
de bens de produção, a empresa é exercida e se consolida em uma relação jurídica complexa
que não se reduz a critérios de índole subjetiva, objetiva, funcional ou corporativa. Ao contrário,
concilia todos esses critérios e, assim, jamais poderá ser confundida com a pessoa do empresário
ou com os bens integrantes do estabelecimento empresarial8.

2.1. Apontamentos históricos sobre a atividade comercial.

A atividade comercial relaciona-se com o desenvolvimento social. A vida humana implica a


existência de produtos essenciais ao seu desenvolvimento digno. É claro que a organização
atingida pelas atividades (comerciais) empresariais que hodiernamente acompanhamos não é a
mesma havida em seus primórdios, as quais contavam, sobretudo, com a figura do comerciante
e não das portentosas sociedades empresárias atuais. Há notícias de atividades comerciais
desde os primórdios da civilização9. Aliás, até mesmo a Bíblia nos apresenta passagens relativas
ao comércio que, quando menos, implicavam a barganha de produtos, isto é, os contatos
comerciais para trocas (permutas).

7
MELLO FRANCO, Vera Helena de. Direito empresarial. V. 1. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p.64.
8
Nesse sentido é a posição de Ricardo Negrão: “A empresa, portanto, considerada como atividade
exercida pelo empresário, como já se considerou acima, não é nem sujeito, nem objeto de direito. Ela não
existe como pessoa (sujeito de direitos), tampouco como objeto de direito, porque é a própria atividade
de alguém – pessoa natural (empresário) ou jurídica (sociedade empresária). Sua concepção é, pois,
abstrata e corresponde ao conceito de fatos jurídicos, ou exercício de negócios jurídicos qualificados
(atividade econômica organizada, com fim próprio, lícito) ”. In: NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito
comercial e de empresa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.81.
9
Rubens Requião lembra: “É compreensível que nas civilizações antigas, entre as regras rudimentares do
direito imperante, surgissem algumas para regular certas atividades econômicas. Os historiadores
encontram normas dessa natureza no Código de Manu, na Índia; as pesquisas arqueológicas, que
revelaram a Babilônia aos nossos olhos, acresceram à coleção do Museu do Louvre a pedra em que foi
esculpido há cerca de dois mil anos a.C. o Código de Hammurabi, tido como a primeira codificação de leis
comerciais. São conhecidas diversas regras jurídicas, regulando instituições de direito comercial marítimo,
que os romanos acolheram dos fenícios, denominadas Lex Rhodia de Iactu (alijamento), ou institutos
como o foenus nauticum (câmbio marítimo)”. In.: REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. V. 1. 32.
ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.32.
As notícias do surgimento do direito comercial, porém, compreendido como conjunto de
normas aplicáveis à mercancia – ainda que não propriamente sistematizado-, datam da Idade
Média. As feiras e trocas10 ganham enorme significação nesse período e, por conseguinte a
prática do comércio se expande. Falamos em expansão, pois por longo período as atividades
comerciais não mereceram a atenção de setores “mais influentes ou respeitáveis”, na medida
em que eram vistas como degradantes.
Essa inicial marginalização das atividades comerciais acabou por aproximar e integrar os
comerciantes na época medieval. O ordenamento jurídico e o ambiente social não se mostravam
simpáticos às questões comerciais. Assim, até mesmo por uma razão de segurança das
transações que praticavam, os comerciantes buscaram aproximar-se. Um dos principais efeitos
de tal aproximação pode ser visto na constituição das chamadas corporações de mercadores ou
corporações de ofício.
Uma vez organizados, os comerciantes (mercadores) começaram a acumular recursos, tomando
posição de destaque no seio de sociedades que, antes, os relegavam. Os grandes entrepostos
comerciais italianos demonstram o sucesso do empreendedorismo dos comerciantes
organizados. RUBENS REQUIÃO afirma: “Deve-se anotar que os comerciantes, organizados em
suas poderosas ligas e corporações, adquirem tal poderio político e militar que vão tornando
autônomas as cidades mercantis a ponto de, em muitos casos, os estatutos de suas corporações
se confundirem com os estatutos da própria cidade” 11.
É claro que a pujança das atividades comerciais tornou imprescindível a criação de um ramo
jurídico capaz de disciplinar os negócios travados entre comerciantes. Ao longo de seu
desenvolvimento, tal atividade não apenas implicou benefícios aos comerciantes, mas também
ao Estado, na medida em obtinha proveito ao erário em razão do pagamento de impostos.
Note-se, também, que, ainda que menos acentuada do que nos dias atuais, desde o início as
relações comerciais, como sói ocorrer em questões atinentes ao mercado, evoluíam de maneira
célere. As normas do direito comum não serviriam à disciplina da peculiar atividade comercial.
É nesse contexto que tem origem a chamada teoria dos atos de comércio, a respeito da qual
trataremos no próximo item.

10
Fran Martins ressalta: “Formaram-se, então, mercados e feiras, centros em que eram realizados grandes
negócios. Os mercados eram locais, situados nas cidades, a que compareciam os agricultores com os seus
produtos, vendendo-os e adquirindo bens ou produção citadina. Mais tarde, criou-se o costume de os
comerciantes de várias regiões, muitas vezes bem distantes, se reunirem em dias certos, em determinadas
cidades, para fazerem as trocas de seus produtos. Essas reuniões, que se denominavam feiras, em geral
eram realizadas de três em três meses e duravam vários dias. O Estado, que usufruía impostos, nas feiras,
estimulava-as e criava normas especiais de garantia para os que a elas acorressem”. In.: MARTINS, Fran.
Curso de direito comercial. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense:, 2010, p.7.
11
REQUIÃO, Rubens. ob. cit., p.34.
2.2. Da Teoria dos Atos de Comércio para a Teoria da Empresa.

2.2.1. Da Teoria dos Atos de Comércio.

A teoria dos atos de comércio surgiu com preocupação claramente objetivista. Se os


comerciantes, nos primórdios de suas atividades, não contavam com o apreço da maior parte
da sociedade em que empreendiam, com o sucesso da referida empreitada inúmeros indivíduos
passaram a nutrir interesse pelas atividades comerciais.
Contudo, a força das chamadas corporações de ofício ou corporações de mercadores não
permitiam o exercício da livre iniciativa de parte daquele que não as integrava. Era necessário a
matrícula nessas instituições para que o sujeito pudesse conquistar a condição de comerciante.
Ressalte-se que as corporações contavam até mesmo com poder de jurisdição, fato que as
tornava ainda mais influentes, reiterando a existência de uma espécie de “direito de classe”12.
Os ideais iluministas com seus reclames por maior liberdade afetaram não apenas os poderes
dos Estados absolutistas, como também repercutiram nessa defesa “corporativista”
representada pelas corporações e pela necessidade de matrícula em uma delas para o exercício
de determinada atividade comercial. A Revolução Francesa (1789) rearranjou os fatores sociais
e buscou implementar os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Tendo sido um
movimento liderado pela classe burguesa, é inegável que a liberdade implicava livre ação no
campo econômico, buscando-se afastar excessos estatais e, em grande medida, garantir a livre
iniciativa.
Liberdade para empreender não se conciliava com as restrições impostas pelas corporações.
Assim, em 1791, através da Lei Le Chapelier, são extintas as antigas corporações, dando-se
margem para que novos indivíduos passassem a atuar no âmbito comercial. Tal legislação tratou
de listar os atos classificados como “atos de comércio”. Logo, não mais se identificaria o
comerciante como aquele que se encontrava matriculado em determinada corporação, mas sim
através da realidade objetiva do ato que praticava através de sua atividade.
O que a Lei Le Chapelier criou – ou tentou criar – com os atos de comércio foi um critério objetivo
para identificação de comerciantes, evitando-se a subjetividade vislumbrada no fato de exigir-
se ao tempo das corporações, a competente matrícula daquele que praticava atividade
mercantil ou mesmo avaliações de caráter não objetivo quanto àqueles que atuavam nessa
seara.

12
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc: Curso de direito comercial. V. 1. 2. ed. São Paulo: Malheiros,
2008, p.44.
Segundo HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERÇOSA: “A tentativa de reforma radical da base
subjetiva sobre a qual até então se fundava o Direito Comercial, efetuada na esteira dos
acontecimentos resultantes da Revolução Francesa, é diretamente decorrente das influências
filosóficas orientadoras daquele movimento, dentro das quais o jusnaturalismo e o racionalismo
pretendiam haver encontrado uma ‘verdade’ definitiva, válida e permanente, tanto para a
sociedade quanto para o direito nela aplicável, da mesma maneira como acontecia com as
imutáveis leis da Física”.13
A objetividade essencial da Lei Le Chapelier, conforme o trecho acima, refletia a intenção da
sociedade de afastar juízos subjetivos de parte do Estado e de outras instituições, privadas ou
públicas. Lembremos que a Revolução Francesa é marcada pelo ideal do liberalismo político e
econômico, de modo a garantir a máxima liberdade individual14. O Código Comercial
Napoleônico de 180715 é inspirado na teoria objetivista dos atos de comércio e exerceu enorme
influência na legislação dos mais diversos países ao redor do mundo.
As conquistas da Revolução Francesa abrem espaço para a consolidação do sistema capitalista
de produção, cujo alicerce ideológico é o liberalismo. O capitalismo se liga diretamente à
atividade econômica, sendo esta sua essência, ainda que sob a forma atual dos mercados de
capitais.
HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERÇOSA aponta as principais alterações propiciadas pelo
advento do capitalismo, são elas: “(i) livre exercício da atividade econômica, em contraste com
o espírito fechado das corporações; (ii) abandono do intervencionismo estatal na economia, que
representou o sistema do mercantilismo; (iii) liberdade de acesso aos meios de produção; (iv)
surgimento de uma concepção individualista de riqueza. No que tange à estrutura político-
social, os pontos marcantes daquele período eram referidos: (i) à supressão do intervencionismo
estatal; (ii) ao estabelecimento do princípio da igualdade perante a lei; (iii) ao reconhecimento
de acesso livre às atividades econômicas; e (iv) ao pleno reconhecimento da propriedade privada
como fundamento da liberdade humana”.16

13
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. ob. cit., p.47.
14
Rubens Requião sustenta: “O sistema objetivista, que desloca a base do direito comercial da figura
tradicional do comerciante para a dos atos de comércio, tem sido acoimado de infeliz, de vez que até hoje
não conseguiram os comercialistas definir satisfatoriamente o que sejam eles”. In.: REQUIÃO, Rubens. ob.
cit., p.36.
15
Fábio Nusdeo aponta, em relação aos códigos do período napoleônico: “A ordem liberal tem como seu
segundo pilar, a codificação do Direito privado, ocorrida em quase todo o Ocidente, por inspiração dos
dois grandes códigos napoleônicos: o Code Civil de 1804 e o Code Commercial de 1807. Subjacente a
qualquer movimento codificador existirá sempre uma ideologia ou uma doutrina. E foi sob o influxo da
ideologia liberal que os vários países da Europa continental e as jovens nações americanas deles
desligadas foram, um após outro, adotando-a”. In.: NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao
direito econômico. São Paulo: RT, 2005, p. 136-137.
16
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. ob. cit., p.52.
2.2.2. Da Teoria da Empresa

É compreensível o intuito da teoria objetivista. Todavia, mostra-se tarefa hercúlea prever todas
as hipóteses de atos que possam e devam classificar-se na condição de atos de comércio. A
dinâmica do setor econômico não recomenda normas voltadas ao mercado que possam se
tornar ultrapassadas em razão da impossibilidade de previsão de novas práticas e novos
modelos.
Se, por um lado, a objetividade conquistada pela teoria dos atos de comércio afastou juízos
subjetivos e corporativos acerca daqueles que pretendiam atuar em Âmbito comercial, por
outro “engessou” a compreensão de quem era comerciante. A subsunção dos indivíduos aos
atos de comércio garantia a aplicação de um sistema de leis de natureza diferenciada (o direito
comercial). Contudo, jamais o dinamismo do comércio poderá se reduzir à vã capacidade de
legisladores do hoje em face das infinitas possibilidades comerciais do porvir. Eis a razão pela
qual a teoria dos atos de comércio deixou de servir como alicerce à disciplina da matéria,
passando-se à elaboração e posterior adoção da chamada “teoria da empresa”.
Ao tratarmos da ideia de empresa como atividade, chamamos atenção para a relevância da
atividade empresarial. Esta não se evidencia a partir de um sujeito (empresário) ou da reunião
de alguns objetos (estabelecimento). Para além disso, a atividade que consubstancia a ideia de
empresa importa a organização de fatores de produção e o exercício profissional dessa mesma
atividade por determinada pessoa, seja ela natural ou jurídica.
Se ficássemos com essa definição, poderíamos incorrer no equívoco segundo o qual a teoria da
empresa também traduziria um ideal objetivista. Afinal, se empresa é atividade, a teoria dos
atos de comércio também se valia da atividade exercida pelo comerciante para assim classifica-
lo. Ressalte-se, porém, que o esgotamento da teoria dos atos de comércio não apenas decorre
de sua insuficiência, mas, sobretudo, dos avanços das atividades comerciais e do surgimento da
figura do empresário como sujeito que organiza fatores de produção de maneira habitual e
profissional, obtendo lucro através da produção e circulação de bens e serviços.
A teoria da empresa, além de buscar superar a insuficiência da ideia dos atos de comércio,
decorre de novos conceitos surgidos a partir da evolução econômica e capitalista. Não bastava
à nova realidade atribuir à atividade empresarial uma espécie de prática plural de atos de
comércio dotados de habitualidade 17. A pujança dos setores empresariais, sua influência nos

17
Waldirio Bulgarelli sugere, porém, a respeito da ideia de empresa que: “No Direito, o consenso geral é
de que ela surgiu com o Código Comercial francês de 1807, dando origem à consagração legal nos Códigos
posteriores que dele sofreram influência (como o nosso de 1850, através do Regulamento 737, os italianos
rumos da Nação e na organização de fatores de produção jamais se coadunariam com a “antiga
teoria”.
A teoria da empresa representa a compreensão da atividade empresarial como uma relação
complexa. Mencionamos acima o perfil poliédrico atribuído à empresa por Alberto Asquini e é
exatamente esse o tom da teoria da empresa18. A realidade complexa das atividades
empresariais reclama classificações que não se restrinjam a aspectos objetivos atrelados aos
atos praticados.
Waldirio Bulgarelli comenta a posição de ALBERTO ASQUINI: “Preciosa, aliás, é a lição de Asquini,
ao mostrar a passagem histórica e factual da empresa como regulada nos Códigos anteriores e
a empresa econômica como concebida então pelo novo Código19. Em síntese, surpreendeu o
autor os quatro sentidos dados pelo legislador à empresa, a que chamou de perfis. Anotando a
desorientação da doutrina na época, por não ter o Código dado uma definição jurídica de
empresa, esclarece que o conceito econômico de empresa surge como um fenômeno poliédrico,
que apresenta, sob o aspecto jurídico, não um, mas vários perfis em relação aos diversos
elementos que o integram”.20
Ousamos afirmar que a adoção da teoria da empresa, compreendida como a aceitação do perfil
poliédrico acima comentado retira do fenômeno empresarial a velha leitura privatista realizada
por parte dos juristas elaboradores da teoria dos atos de comércio. A empresa, enquanto
atividade com enorme relevância e repercussão social, não mais se restringe ao campo da
disciplina jurídica privatista.
Conforme demonstraremos em tópicos seguintes, o grande significado da atividade empresarial
impede a manutenção isolada de suas normas por parte de ramos jurídicos do direito privado.
Mesmo o direito comercial, cuja especialidade em relação ao direito comum se justificaria em
virtude do dinamismo e peculiaridade do âmbito comercial, não conseguirá, sozinho, tratar do
fenômeno empresarial21.

de 1865 e 1882 e o alemão de 1861), tendo acabado por adquiri foros de cidadania no plano jurídico com
as sucessivas referências a ela nas leis subsequentes, nas decisões judiciais e nos trabalhos de doutrina”.
In.: BULGARELLI, Waldirio. ob. cit., p. 18.
18
Wilges Bruscato afirma: “(...) considerando-se como atividade econômica organizada que é, não
desprezamos os elementos que, por definição, se somam para sua existência, e é isso que a teoria
poliédrica reflete. Na realidade social, o que designa por empresa é um misto de todos esses perfis”.
19
Em referência ao Código Civil italiano de 1942 que adotou a teoria da empresa. In.: BRUSCATO, Wilges.
Manual de direito empresarial brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p.85.
20
BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit., p.22.
21
Wilges Bruscato lembra que: “Como toda lei existe para servir ao homem, à vida em coletividade, outros
ramos do conhecimento, como a sociologia, a história, a filosofia e a lógica, as novas tecnologias
científicas, a psicologia, a antropologia, a hermenêutica e, de modo acentuado, a administração, a
contabilidade e a economia, lançam diretrizes ao direito empresarial, que dá sua contribuição para
resguardar o interesse coletivo e a paz social”. In: BRUSCATO, Wilges. Ob. cit., p.78.
A complexidade do fenômeno empresarial contribuiu, inclusive, para a criação de ramos do
direito que fazem inegável interface entre o direito privado e o direito público – com especial
destaque para o direito econômico. A velha dicotomia entre essas duas áreas do direito perde
grande parte da importância quando fenômenos de índole privada interferem nos rumos da
coletividade – tal como ocorre com a empresarialidade – e atividades eminentemente públicas
influenciam o âmbito privado22.

3. DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO

Devemos analisar a necessária relação existente entre a passagem da teoria de atos de comércio
para a teoria da empresa e as transformações sociais que culminaram em novo instante do
direito constitucional. É claro e absolutamente compreensível que ao tempo das revoluções
liberais o constitucionalismo tenha se pautado na garantia de direitos de liberdade, os quais,
segundo a esmagadora maioria doutrinária, podem ser identificados como direitos
fundamentais de primeira geração. Afinal, nesse instante inicial, movidos por ideais iluministas,
os revolucionários, sobretudo na Revolução Francesa de 1789, atuavam no sentido de afastar a
desmedida ingerência do Estado, ao tempo do regime absolutista, na vida dos cidadãos.
PAULO BONAVIDES traz a seguinte observação a respeito das constituições provenientes do
período liberal: “Em verdade, porém, a brevidade das Constituições liberais derivava sem dúvida
de sua inteira indiferença ao conteúdo e substância das relações sociais. A Constituição, que não
podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para conservá-la por esfera imune ou
universo inviolável de iniciativas privatistas: era uma Sociedade de indivíduos e não de grupos,
embebida toda numa consciência anticoletivista. À Constituição cabia tão somente estabelecer
a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências,
proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à
capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade”23.
O comentário de PAULO BONAVIDES é esclarecedor. Afinal, as preocupações da sociedade
liberal e de seu consequente ordenamento jurídico eram, essencialmente, a garantia de direitos
de liberdade e a estrutura do Estado. Este deveria atuar de maneira a garantir a plena liberdade
individual, razão pela qual, o período revela a existência de um “Estado mínimo”. Isto não

22
Waldirio Bulgarelli lembra: “Deste modo emergem os diversos perfis da disciplina da empresa em
relação às várias exigências a valorar que podem ser – e são – diversas, de acordo com as classes de
empresas. São comuns a todas as classes de empresa (de acordo com a valoração do legislador italiano)
as seguintes exigências: 1. Defesa da empresa, de sua conservação e de seu desenvolvimento; 2. Defesa
dos trabalhadores dependentes; 3. Defesa dos consumidores”. BULGARELLI, Waldirio. ob. cit., p. 43.
23
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 229.
significa que esse mesmo Estado absenteísta24 não tenha, em grande medida, contribuído, com
determinadas atividades, à garantia das liberdades inclusive no plano da livre iniciativa. Ao
contrário, o que não havia era a efetiva ingerência, como ocorrida ao tempo de um Estado
absolutista, nas atividades privadas.
EROS ROBERTO GRAU adverte, nesse sentido: “A própria constituição do modo de produção
capitalista dependeu da ação estatal. Em outros termos, não existiria o capitalismo sem que o
Estado cumprisse a sua parte, desenvolvendo vigorosa atividade econômica, no campo dos
serviços públicos. O Estado desempenha, marcadamente, função de integração capitalista como
prestador de serviço de transporte ferroviário e, após, marítimo. De outra parte, relembre-se o
seu papel na área da saúde, instalando, na primeira metade do século, verdadeiras oficinas de
controle de qualidade da mercadoria trabalho”. 25
São conhecidas as consequências que levaram à mudança no paradigma constitucional do
Estado liberal. Com efeito, sabemos que os direitos de liberdade, apesar de servirem aos
interesses dos revolucionários, foram em grande medida, sobretudo em razão da existência de
um Estado mínimo, exercidos de maneira preocupante sob o ponto de vista estritamente
individual (egoístico). O que se nota acerca desse período é a prevalência dos direitos de
liberdade como forma, inclusive, de apropriação da mão-de-obra, fato que se mostra real a
partir do surgimento de teorias e revoluções, com especial atenção ao período verificado na
primeira metade do Século XIX, precipuamente a partir de 1848.
É indiscutível que o Estado liberal puro acarretou uma série de consequências de ordem social,
com especial atenção à marginalização de indivíduos que, desprovidos de apoio mínimo de parte
do Estado, eram relegados à apropriação de sua mão-de-obra por parte de outros indivíduos,
muitos dos quais proprietários de bens de produção. Esse estado de coisas gera enorme pressão
nos Estados centrais do constitucionalismo liberal, a ponto de promover, sobretudo nas duas
primeiras décadas do Século XX, uma transformação no plano constitucional, de maneira a
tentar reparar esses desvios.
É exatamente acerca da “evolução” das gerações de direitos fundamentais a partir das
constatações sociais, econômicas e jurídicas que NORBERTO BOBBIO pondera: “Como todos
sabem, o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro momento,

24
Importa notar que Fábio Nusdeo sustenta acerca desse absenteísmo: “Fica claro, ademais, terem sido
as constituições garantia ou liberais editadas a partir de fins do século XVIII o primeiro e fundamental
instrumento para a implantação do sistema descentralizado ou autônomo e, como tal, nada tinham de
neutralidade ou de absenteísmo quanto à vida econômica”. O que se observa da lição de Fábio Nusdeo
é que o Estado absenteísta não era um Estado sem ideologia. Ao contrário, foi fundamental à
consecução de um Estado com modelo de produção capitalista. In.: NUSDEO, Fábio. Ob.cit., p.135.
25
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 10. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005,
p.26.
afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder
do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade
em relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos – os
quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas
positivamente, como autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais
ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político (ou
liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o
amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores -, como os do
bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou
por meio do Estado”. 26
NORBERTO BOBBIO recorda, ainda, que a mudança no paradigma de proteção dos direitos
fundamentais, evoluindo-se à garantia e defesa de direitos sociais, consolida uma realidade
constitucional na qual, em razão da constante evolução das necessidades sociais, observa-se a
realização de programas delineados nas constituições desse novo instante do
constitucionalismo. É nessa ideia de um projeto que se efetiva com o tempo que muitos
doutrinadores defendem a existência do princípio, norteador dos direitos fundamentais,
conhecido como “proibição do retrocesso”.27
Note-se que a proibição do retrocesso decorre da peculiaridade dos direitos sociais, os quais,
ao contrário daqueles típicos de liberdade, dependem de prestações positivas do Estado. Essa
atividade prestacional busca efetivar a igualdade material, ao invés de manter a igualdade
formal que decorreu das revoluções liberais e culminou na marginalização de parcela da
população mundial.
Esses direitos sociais são a principal característica de uma nova era no modelo estatal. O Estado
liberal puro dá lugar a um Estado social de direito – posteriormente alterado para uma ideia
mais próxima de bem-estar social - que se revela, dentre outros fatores, na previsão de direitos
sociais no texto constitucional, ao lado daqueles havidos das revoluções liberais, de índole
claramente individual.
São exemplos desse novo constitucionalismo as constituições, mexicana de 1917 e a da
República de Weimar de 1919. Ambas passam a abordar matérias tipicamente privadas, as quais

26
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 32.
27
Vidal Serrano Nunes Júnior esclarece sobre o princípio da proibição do retrocesso: “O princípio
examinado parece intimamente relacionado à noção de segurança jurídica. De fato, uma das obrigações
do Estado, ao engendrar a renovação da ordem jurídica, quer por normas legais quer por atos
administrativos, é o de propiciar segurança, vale dizer estabilidade ao cidadão. É antiga a noção de
previsibilidade dos atos estatais e de confiança do cidadão na ordem jurídica”. In.: NUNES JÚNIOR, Vidal
Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos
direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 119.
não eram disciplinadas na constituição. Observe-se que, no caso da constituição de Weimar, um
dos principais exemplos da mudança de paradigma diz respeito à garantia da propriedade
privada, com expressa previsão dos deveres decorrentes da situação jurídica de proprietário. O
direito de propriedade, direito individual e quase absoluto ao tempo do liberalismo puro, passa
não apenas a conferir faculdades ao seu titular, mas também a dele cobrar comportamentos
condignos com objetivos de ordem coletiva.
É comum encontrarmos na doutrina a denominação “constituições – programa” para designar
as constituições desse novo momento do constitucionalismo. Há, nesse sentido, inegável debate
acerca do valor normativo de normas constitucionais que, ao contrário das “constituições-
garantia”, não definem apenas direitos e deveres, mas, muito além disso, traçam verdadeiros
programas a serem implementados pelo Estado. Daí a importância das prestações positivas28
efetivadas através de políticas públicas.
Segundo PAULO BONAVIDES: “O recurso às normas programáticas, tendo vista reconciliar o
Estado e a Sociedade, de acordo com bases do pacto intervencionista, conforme sói acontecer
no constitucionalismo social do século XX, deslocou por inteiro o eixo de rotação das
Constituições nascidas durante a segunda fase do liberalismo, as quais entraram em crise. Uma
crise que culminou com as incertezas e paroxismos da Constituição de Weimar, onde se fez, por
via programática, conforme vimos, a primeira grande abertura para os direitos sociais”.29
Esse trecho da obra de PAULO BONAVIDES é importante pois permite compreender que o
Estado social de direito representa um momento de reconciliação entre indivíduo, sociedade e
Estado. Trata-se de um processo no qual todos os agentes sociais, numa modelagem típica de
sociedade civil, trabalham em prol da consolidação do Estado traçado pelo constituinte. Todos,
em maior ou menor medida, estão comprometidos com a realização dos programas previstos
pela Constituição.
É indubitável – repise-se – que nesse processo de reaproximação entre indivíduo, sociedade e
Estado, todos se comprometam com a realização dos objetivos do Estado estruturado pela
ordem constitucional. Há o primado da socialidade, não como negação aos valores, garantias e
direitos individuais, mas sim como a tentativa – ainda que difícil e quase utópica – de propiciar

28
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco afirmam que: “Os
chamados direitos a prestações materiais recebem o rótulo de direitos a prestação em sentido estrito.
Resultam da concepção social do Estado. São tidos como direitos sociais por excelência. Estão concebidos
com o propósito de atenuar desigualdades de fato na sociedade, visando ensejar que a libertação das
necessidades aproveite o gozo da liberdade efetiva por um maior número de indivíduos. O seu objeto
consiste numa utilidade concreta (bem ou serviço)”. In.: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio
Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008,
p. 259.
29
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 236.
um regime mais fraterno e solidário, representado, quando menos, pela sinergia em prol de
determinadas “metas sociais”.

3.1. A função social da propriedade privada delineada pelo constituinte de 1988

A Constituição Federal de 1988 se alinha ao movimento que busca a afirmação de direitos


sociais e, por conseguinte, a estruturação de um Estado social e democrático de direito. O
princípio democrático, tão caro à sociedade que acabava de sair de um regime ditatorial ao
tempo da promulgação da CF/88, revela-se um dos pontos norteadores do Estado brasileiro.
Não vemos meio hábil de consolidar um Estado verdadeiramente promotor de direitos sem a
garantia da liberdade e da democracia30
Segundo GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO E PAULO GUSTAVO
GONET BRANCO: “Em que pesem pequenas variações semânticas em torno desse núcleo
essencial, entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o
poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em
eleições livre e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício
de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já
agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático
aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo
não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos,
sociais, culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos”.31
A passagem acima transcrita demonstra a importância do regime democrático aplicável ao
Estado de Direito, revelando-o como meio capaz de tornar possível a realização, isto é, a
efetividade do conjunto de direitos previstos no texto constitucional. Direitos que se revelam
em órbitas distintas. Direitos que garantem liberdade, promovem igualdade e buscam a
fraternidade entre os integrantes da sociedade e as instituições democráticas. Eis a razão pela
qual atentar contra o regime democrático representa, ao menos sob a ótica da CF/88, atentar
contra a sociedade como um todo.

30
Os movimentos revolucionários que buscaram afastar o regime democrático, empunhando a bandeira
da igualdade e da realização de direitos sociais, sob ideologias socialistas ou comunistas, sempre
acabaram por deturpar aquilo que pregavam, na medida em que negavam direitos de liberdade para
afirmar direitos sociais. Com tais condutas, aproximavam-se quando não consolidavam, de posturas
autoritárias que desvirtuavam os objetivos iniciais do movimento revolucionário e se traduziam em
governos que apenas lutavam pela manutenção do poder. Por essas razões, não nos parece viável, ao
menos de acordo com os sistemas até hoje conhecidos, que a implementação de direitos fundamentais
se dê em realidade distinta da democrática.
31
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. ob. cit., p.
149.
Sob a égide do princípio democrático, quis o constituinte coadunar-se com o movimento
constitucionalista de índole social – jamais socialista – buscando prever direitos que garantam
objetivos plurais e traçar programas que possam conferir efetividade a esses mesmos direitos.
Nesse sentido, não pode haver dúvida, a partir da leitura da CF/88 acerca da intenção do
constituinte de criar um Estado Democrático que se preocupa com direitos sociais, mas que não
descuida de garantir o modelo capitalista de produção na seara econômica.
Já através da leitura dos fundamentos da República Federativa do Brasil previstos nos incisos do
artigo 1º da CF/88 notamos a inclusão da dignidade da pessoa humana – núcleo central do
ordenamento – e da livre iniciativa e valorização do trabalho humano. Colocar a dignidade
humana como essência do ordenamento jurídico demonstra influência da filosofia Kantiana na
concepção de Estado.
Aliás, JOSÉ AFONSO DA SILVA sustenta a esse respeito: “A filosofia Kantiana mostra que o
homem, como ser racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto
os seres desprovidos de razão têm um valor relativo e condicionado, o de meios, eis por que se
lhes chamam ‘coisas’, ao contrário, os seres racionais são chamados de pessoas, porque sua
natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado
simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio,
por ser um objeto de respeito”.32
O constituinte reconhece, desse modo, valor absoluto ao ser humano. O valor humano não se
dá em situação de relatividade. Não se mede o valor do indivíduo por circunstâncias que lhe são
exteriores, mas sim pela sua própria natureza. Reconhece-se, para além do valor humano em
si, o dever de garantir a dignidade humana. Esta se revela por meio da garantia de uma
pluralidade de direitos. Dentre eles os direitos de liberdade e os direitos sociais, com a
peculiaridade de, como afirmado, estes dependerem de prestações positivas por parte do
Estado.
Sob a perspectiva desse Estado delineado na CF/88, considerando-se sobretudo, a livre iniciativa
e a valorização do trabalho humano como fundamentos de nossa República, não resta a menor
dúvida acerca da socialidade que deve pautar todas as relações jurídicas. Esse primado da
socialidade traz ao direito privado, de maneira irretorquível, a noção de função social de seus
institutos.
A propriedade privada é um dos fatores indispensáveis à caracterização de um sistema
capitalista no qual se garante ao indivíduo a apropriação dos resultados de seu trabalho, desde
que este se dê de acordo com os preceitos legais. Além disso, o fato de a propriedade privada

32
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à constituição. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.37.
ser garantida pelo constituinte não implica o reconhecimento dos direitos do proprietário como
o faziam os ordenamentos ao tempo do liberalismo puro. Ao contrário, a atual formatação do
regime jurídico da propriedade, isto é, de sua disciplina, encontra maior semelhança com
aqueles que atribuíam ao proprietário inegáveis deveres.33
Com efeito, o artigo 5º, inciso XXII da CF/88 é claro ao garantir o direito de propriedade, mas o
inciso XXIII é igualmente claro ao atribuir o dever de que se atenda a função social da
propriedade. A realização da função social da propriedade é algo que não se pode determinar
ou conceituar de maneira taxativa. É dá essência da função social da propriedade conceder
maior flexibilidade, sobretudo ao aplicador do direito, no sentido de vislumbrar se, no caso
concreto, atende-se ou não a função social da propriedade. As mudanças nos processos de
produção e nas demandas sociais também alteram os reclames da função social da
propriedade34.
PIETRO PERLINGIERI ao tratar da função social concebida em um modelo de Estado com inegável
caráter solidarista, avaliando a Constituição italiana, sustenta: “Em um sistema inspirado na
solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.)
o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a
disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para
garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza
somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como
uma intervenção ‘em ódio’ à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria razão pela qual o
direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito’, um critério de ação para o
legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado
a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular”.35
Parece-nos evidente que a aplicação da função social se dá ao regime jurídico da propriedade
como um todo, independente de sobre o que ela recaia. Não há qualquer problema em se
reconhecer que o direito de propriedade deve sempre respeitar a função social delineada na

33
José Afonso da Silva adverte: Os juristas brasileiros, privatistas e publicistas, concebem o regime jurídico
da propriedade privada como subordinado ao direito civil, considerado direito real fundamental. Olvidam
as regras de direito público, especialmente de direito constitucional, que igualmente disciplinam a
propriedade. Confundem o princípio da função social com as limitações de polícia, como consistente
apenas no conjunto de condições que se impõem ao direito de propriedade a fim de que seu exercício
não prejudique o interesse social, isto é, mero conjunto de condições limitativas. (...). Ora, se se introduziu
princípio novo, além do poder de polícia, é porque o constituinte desejou inserir na estrutura mesma da
concepção e do conceito de propriedade um elemento de transformação positiva que a ponha ao serviço
do desenvolvimento social”. In.: SILVA, José Afonso. ob. cit., p. 117.
34
A esse respeito indicamos a obra de Karl Renner: RENNER, Karl. The institutions of private law and their
social functions. London: Transaction Publishers, 2010.
35
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito constitucional: introdução ao direito civil constitucional. 3.ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007, p. 226.
CF/88. Assim, seria despiciendo tecer comentários acerca da perfeita aplicação da função social
da propriedade a propriedade de bens de consumo e à propriedade dos bens de produção. Não
teria sentido funcionalizar a propriedade enquanto tendo por objeto um imóvel residencial e
não adotar a mesma disciplina no que tange ao conjunto de bens que integram um
estabelecimento empresarial.36
Aliás, segundo FÁBIO KONDER COMPARATO: “Se se quiser lograr algum avanço na regulação
constitucional da propriedade, é preciso estabelecer distinções e precisões fundamentais.
Algumas delas já foram mencionadas nesta exposição: a função social da propriedade não se
confunde com as restrições legais ao uso e gozo dos bens próprios; em se tratando de bens de
produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o
interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração
empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos
interesses coletivos”.37
A lição de Comparato amplia consideravelmente o alcance da função social quando aplicável aos
bens de produção. Chega até mesmo a condicionar o exercício da atividade empresarial à
realização de interesses coletivos e não apenas a um dever de abstenção em relação à não
afetação desses mesmos interesses. Este será o objeto do próximo tópico deste artigo.

3.2. A função social da empresa no ordenamento jurídico brasileiro

Ao iniciar este estudo fizemos a distinção entre empresa, estabelecimento e empresário. Resta
saber, pois, se podemos atribuir à empresa – definida e compreendida como atividade
organizada – efetiva função social. A resposta, a nosso ver, é afirmativa. Ainda que à primeira

36
Segundo Arruda Alvim: “A noção de propriedade veio sendo envolta pela ideia de função social – em
sintonia com uma mutação geral valorativa do Direito -, que, paulatinamente, passou a ser havida como
necessária à própria compreensão contemporânea do significado de propriedade, em função – entre
outros fatores – de um aumento real expansivo da ordem jurídica para abrigar segmentos sociais que, no
liberalismo só nominalmente eram membros da sociedade, como ainda, o reconhecimento de outros
direitos, componentes do mesmo tecido em que existe o direito de propriedade. A propriedade – que
tinha importância mais significativa – continuava a ser a imobiliária. Pouco a pouco, passou a ter
significação crescente a problemática da empresa, em relação à qual surgiu, nesta temática da função
social, a luta ou a disputa de espaço entre o capital e o trabalho. Para alguns, é essa a única sede em que
se justifica falar em função social – ainda que possa ser o campo mais significativo do desempenho da
função social da propriedade da empresa em relação aos que nela trabalham -, no que se equivocam,
atrofiando indevidamente as regras de direito, a começar pelo direito constitucional, que não faz distinção
alguma”. In: ARRUDA ALVIM. Comentários ao código civil brasileiro: livro introdutório ao direito das coisas
e o direito civil. V. XI. Tomo I. Coord: Arruda Alvim, Thereza Alvim e Alexandre Laizo Clápis. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 268).
37
COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. In.: Revista de
direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. Ano XXV. N. 63. Jul-set de 1986.
vista a função social pareça recair sobre a propriedade dos bens de produção e, pois, sobre bens
que integram a noção de estabelecimento, o que não devemos perder de vista é o aspecto
funcional do conceito de empresa anteriormente apresentado.
Sob o enfoque funcional, estabelecimento e empresário são elementos indispensáveis ao
exercício da empresa, sendo certo que esse conjunto revela a função social que queremos
abordar, a qual já foi objeto de breve estudo em monografia anteriormente citada. Segundo
FÁBIO ULHOA COELHO, para quem a função social da empresa é princípio constitucional
implícito: “Cumpre sua função social a empresa que gera empregos, tributos e riqueza, contribui
para o desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região
ou do país, adota práticas empresariais sustentáveis visando a proteção do meio ambiente e ao
respeito aos direitos dos consumidores. Se sua atuação é consentânea com estes objetivos, e se
desenvolve com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita, a empresa está cumprindo
sua função social; isto é, os bens de produção reunidos pelo empresário na organização do
estabelecimento empresarial estão tendo o emprego determinado pela Constituição Federal”.38
De acordo com a definição acima apresentada, a função social da empresa estaria relacionada à
organização dos fatores de produção para o atendimento de objetivos com inegável relevância
social. Note-se que em nenhum momento a ideia de função social deve ser confundida com o
objetivo de lucro decorrente da atividade empresarial. Ao contrário, fosse essa – e muitos
incorrem em tal confusão - a função social da empresa, de social nada teria, pois bastaria ao
empresário auferir lucro e nada que fosse relevante ao bem comum poderia ser reclamado.
Assim, apontamos o inegável equívoco de alguns ao aproximarem a função social da empresa à
obtenção de lucro.
Encarar o fenômeno empresarial de maneira funcional é conferir a real importância a todos os
fatores que lhe propiciam existência. A realidade empresarial na qual nos encontramos revela o
protagonismo dessa atividade, sendo certo que quanto maior a sua presença no âmbito social,
maior será sua repercussão e influência em face de todos os elementos que lhe são próximos,
quando não intrínsecos.
Não se apresenta possível, nos limites deste estudo, estabelecer as distinções tão presentes na
doutrina atual a respeito das formas de interpretar princípios e regras. Apontamos, porém, que
para FÁBIO ULHOA COELHO a função social da empresa é princípio constitucional implícito. O
referido autor escreveu profícuo artigo39a respeito da dificuldade inerente à aplicação dos
princípios, sobretudo em face do ideal de segurança jurídica. Aliás, ocupando posição de

38
COELHO, Fábio Ulhôa. Princípios do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 37.
39
COELHO, Fábio Ulhôa. Reflexões sobre o projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2013, p.
101-116.
organizador de projeto de Código Comercial, FÁBIO ULHÔA COELHO busca conferir maior
concreção aos princípios, dentre eles ao da função social da empresa.
Não ignoramos as razões pelas quais se busca materializar princípios e, muitas vezes, diminuir o
alcance de cláusulas gerais. É comum que aplicadores sem o devido preparo para a compreensão
do novo momento do Direito acabem por legislar – fenômeno conhecido como “ativismo
judicial” – valendo-se da aplicação de princípios e cláusulas gerais de modo absolutamente
contrário às normas jurídicas e ao próprio ordenamento, ignorando o princípio ou
“sobreprincípio” da segurança jurídica. Em que pese esse conhecido risco que, para nós, decorre
do despreparo de boa parte dos aplicadores e sobretudo da significativa presença da ideologia
pessoal do aplicador em decisões judiciais, não cremos que o caminho correto seja a diminuição
do alcance de princípios e de cláusulas gerais, mas sim maior preparo dos aplicadores para o
atual momento.
Cremos que o longo período de estrito positivismo jurídico e mudança para um “instante
principiológico”, que não pode ser confundido com margem para o arbítrio ou ativismo de quem
quer que seja, demonstrou o despreparo acima comentado. Todavia, se, apenas para pegarmos
um exemplo, avaliarmos as bases do Código Civil de 2002 (Código Reale), verificaremos que a
existência de “perfil principiológico” jamais serviu como técnica ao ativismo. Ao contrário,
buscou-se conferir ao aplicador a possibilidade de aplicar a melhor solução ao caso concreto,
sempre se atendo às balizas fixadas pelo próprio ordenamento. Se a aplicação não segue esse
raciocínio, o que deve ser mudado é o método de aplicação e não a técnica legislativa.
No que tange à função social da empresa, não bastasse a atribuição de função social à
propriedade em geral, estabelecida no art. 5º, XXIII, da CF/88, a Constituição Federal
expressamente consagra a função social da propriedade ao estabelecer os princípios da Ordem
Econômica. Logo, queiram ou não os doutrinadores, o fato de o constituinte reiterar a função
social da propriedade ao disciplinar a Ordem Econômica apenas atesta a absoluta aplicação do
princípio à propriedade dos bens de produção (art. 170, III, CF/88). Para além disso, mais do que
acarretar a função social do estabelecimento, funcionalizar a propriedade dos bens de produção
é atribuir função social à atividade em si. É a dinâmica dos elementos que integram o
estabelecimento devidamente organizados pelo empresário, que ganha repercussão social.
Outro aspecto que não pode ser ignorado ao tratarmos da matéria se refere aos demais
princípios da Ordem Econômica. Afinal, o grande desafio ao desenvolvimento de atividades de
natureza empresarial é valer-se dos princípios que garantem a liberdade de iniciativa, a fim de
exercê-la em consonância com outros princípios que estabelecem limites e fins que devem ser
observados. ANA FRAZÃO pondera que essa conciliação de todos os princípios da Ordem
Econômica não deve implicar o engessamento da atividade empresarial em razão de sua função
social: “Como manifestação da autonomia, da emancipação do homem e do desenvolvimento
da personalidade, a livre iniciativa recebe a proteção constitucional em todos os seus
desdobramentos. Afinal, a função social não tem a finalidade de anular a livre iniciativa nem de
inibir as inovações na órbita empresarial, mas sim de assegurar que o projeto do empresário seja
compatível com o igual direito de todos os membros da sociedade de também realizarem os seus
respectivos projetos de vida”.40
Para NEWTON DE LUCCA, a amplitude da função social da empresa seria ainda maior. Segundo
o autor: “Sem embargo do amplo e interminável debate que o tema comporta, pode-se dizer que
cumprir uma função social implica assumir a plenitude da chamada responsabilidade social, vale
dizer, a consciência de que todos nós temos, em maior ou menor grau – como cidadãos, em geral,
ou como empresários, em particular -, o indeclinável dever ético de pôr em prática políticas
sociais tendentes a melhorar as condições e a qualidade de vida de todos os nossos
semelhantes”.41
Se conciliarmos os dois trechos acima colacionados, veremos que ambos afirmam que a essência
da função social é permitir o exercício das liberdades por parte dos empresários sem que esse
mesmo exercício implique restrição indevida de direitos pertencentes a terceiros ou à
coletividade. De acordo com a primeira lição, a função social da empresa seria um caminho para,
sem anulação da livre iniciativa, harmonizar o interesse individual do empresário aos reclames
sociais de toda a coletividade. Já sob o enfoque da segunda lição, função social estaria ligada à
ideia de responsabilidade social.
Entendemos a relação existente entre função social e responsabilidade social. Todavia, cremos
que há distinção entre ambas42. A primeira se atrela, sobretudo, ao cumprimento de preceitos
legais e ao respeito a direitos de terceiros e da coletividade. Função social da empresa vincula-
se ao desenvolvimento de uma atividade empresarial que esteja em consonância com os
preceitos legais e, na máxima medida, com a busca de objetivos sociais traçados na Constituição
Federal. Responsabilidade social implica, salvo melhor juízo, atividade não tão atrelada aos
mandamentos de ordem legal. Relaciona-se, como bem ressaltado no trecho acima colacionado,
com a ética empresarial. Nesse contexto, a responsabilidade social estaria para além do direito
e do dever jurídico decorrente da função social da empresa.

40
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores
e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 193.
41
DE LUCCA, Newton. Da ética geral à ética empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2009, 329.
42
Tratamos brevemente dessa distinção na obra em: AMARAL, Luiz Fernando de Camargo Prudente do.
A função social da empresa no direito constitucional econômico brasileiro. São Paulo: SRS, 2008, p. 117-
118.
MARIA HELENA DINIZ, atenta às inúmeras relações jurídicas existentes ao redor do fenômeno
empresarial, pondera: “A empresa, portanto, é o núcleo convergente de vários interesses, que
realçam sua importância econômico – social, como: lucro do empresário e da sociedade
empresária que assegura a sua sobrevivência e a melhora de salários e enseja a criação de novos
empregos e a formação de mão-de-obra qualificada; salário do trabalhador, permitindo sua
sobrevivência e a de sua família; tributos, possibilitando a consecução das finalidades do poder
público e a manutenção do Estado”.43
Reitere-se, pois, que decorre da nova empresarialidade, isto é, da forma plural e funcional
através da qual a empresa é enfocada a compreensão de sua função social. Esta, longe de se
confundir com o lucro do empresário – ainda que o garanta como fim da atividade – revela-se
no compromisso que o exercício da empresa exige em face de todos os princípios da Ordem
Econômica. É a sua compreensão como “núcleo convergente” que a coloca como um dos
elementos de maior relevância à sociedade hodierna na qual a empresa exerce inegável
protagonismo.44
VIVIANE PEREZ, consolidando argumentos a respeito da função social da empresa, oferece lição
que merece destaque: “Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que o princípio da função social
da empresa não se mostra incompatível com a perseguição do lucro através do exercício da
empresa. Certamente não se pode olvidar que o legislador constituinte originário optou pela
adoção do regime capitalista, o qual funda-se na livre iniciativa, e não apenas aceita, mas
incentiva a persecução do lucro nas atividades econômicas. Mais do que isso, é preciso
reconhecer que o lucro nada tem de ilícito e desempenha, ele mesmo, sua própria função social,
promovendo o crescimento econômico e, em última análise, o desenvolvimento que os países do
chamado ‘terceiro mundo’, como o Brasil, tanto almejam. (...) O lucro, todavia, não pode ser
perseguido como um fim em si mesmo, desconectado dos demais princípios que informam o
exercício da atividade empresarial. É justamente nesse momento que tem aplicação o princípio
da função social, que vai determinar, por exemplo, que na persecução de tal lucro o empresário

43
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. V. 8. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 25.
44
Maria Helena Diniz lembra as possíveis consequências da atividade empresarial: “Essa atividade
econômica gera, por outro lado, custos sociais ao empresário (pessoa natural ou jurídica), que poderá ou
não se compensar com as vantagens advindas daquela atividade. A externalidade ou deseconomia
externa vem a ser, exatamente, aquele efeito positivo ou negativo advindo de uma atividade empresarial.
Deveras, a empresa, instituição relevante socialmente, é um fator de progresso econômico e de geração
de emprego, e ao produzir renda ou bem-estar ao empresário, poderá acarretar, p.ex., uma não-
compensação”. DINIZ, Maria Helena. ob. cit., p. 24.
deverá observar as boas práticas concorrenciais (art. 170, IV, CF), não degradar o meio ambiente
(art. 170, VI, CF), bem como observar as leis trabalhistas (art. 170, caput e VIII, CF)”.45
A lição acima condensa boa parte dos ensinamentos encontrados na doutrina a respeito da
matéria. Afinal, a grande questão quando tratamos da função social da empresa é deixar claro
que impor deveres ao empresário que exerce determinada atividade não implica retirar a
legitimidade do lucro, provindo dessa mesma atividade. O lucro, como acima aduzido, também
deve ser garantido como forma de preservação da empresa, na medida em que sem lucro não
há atividade que se desenvolva em termos empresariais. Apesar de ser equivocado confundir o
lucro com a função social da empresa, não nos parece incorreto afirmar que a função social da
empresa depende da existência de lucro, pois este é a finalidade da atividade desenvolvida pelo
empresário e, sem ele, não haverá a atividade em si.
Para finalizar este tópico, embora não possamos nos dedicar à análise da Lei de Sociedades
Anônimas (L. 6.404/76), devemos lembrar que, antes mesmo da Constituição Federal de 1988,
dois dispositivos daquele diploma legal já faziam expressa menção à função social da empresa.
Com efeito, o art. 116, em seu parágrafo único, estabelece: “O acionista controlador deve usar
o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham
e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e
atender”.
O dispositivo em questão revela a responsabilidade atribuída àquele que exerce poder de
controle em sociedades anônimas, atrelando a função social da empresa ao cumprimento de
deveres em relação aos demais acionistas, aos trabalhadores e colaboradores, bem como à
comunidade. Investe-se, pois, no compromisso de prosseguir no controle da atividade – também
sendo este prosseguimento parte dessa função social – e de atender aos interesses de todos os
envolvidos.
Além disso, o art. 154, caput, da mesma lei estabelece: “O administrador deve exercer as
atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia,
satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”. Na mesma toada,
parece-nos que a funcionalização prevista visa à atribuição de responsabilidade aos
administradores, no sentido de deles cobrar os compromissos atrelados ao exercício da
empresa, respeitados os dispositivos estatutários e preceitos legais.

45
PEREZ, Vviane. Função social da empresa: uma proposta de sistematização do conceito. In.: Temas de
direito civil-empresarial. Coord.: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon
Nogueira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 209-210.
3.3. O princípio da preservação da empresa como base da lei de recuperação e falência

A explanação a respeito da função social da empresa permite compreender que funcionalizar a


atividade é comportamento que decorre da compreensão do fenômeno como um complexo de
relações jurídicas de inegável relevância social. Atrelam-se à empresa, enquanto atividade,
relações de emprego, relações contratuais de natureza comercial, civil e consumerista, relações
ambientais, dentre muitas outras.
É comum, porém, tratar a função social da empresa como mero limite à atividade desenvolvida
por determinado empresário. Contudo, conforme depreendemos das passagens constantes do
tópico anterior, funcionalizar a empresa, antes de qualquer outra providência, deve revelar a
assunção de sua relevância. Afirmamos, pois, que apenas cogitamos da função social da empresa
em razão de existir uma atividade em curso. Logo, se a função social é desejada, já que o
fenômeno empresarial é complexo e se une a múltiplos fatores que merecem proteção, a
primeira preocupação decorrente da função social da empresa há de ser a sua preservação.
Esclarecemos que a Constituição Federal de 1988 adotou o sistema capitalista de produção, bem
como que a atividade empresarial é o modelo mais usual de desenvolvimento e manutenção
desse mesmo sistema. Nesse contexto, preservar a empresa implica prestigiar o capitalismo e,
para além disso, proteger as relações jurídicas atreladas à atividade. Assim, não se preserva a
empresa em proteção ao empresário que pode ser pessoa natural ou jurídica. A preservação da
empresa se dá em virtude de sua relevância no que tange aos inúmeros fatores ligados à sua
existência. Afinal, para a sociedade pensada pelo constituinte, a produção e circulação de bens
e serviços, exercida de maneira organizada e profissional, com objetivo de lucro, é positiva.
Pode parecer bastante óbvio aquilo que consta do parágrafo acima. Porém, é frequente
encontrar argumentos no sentido de que funcionalizar institutos de direito privado implicaria
“esvaziar parcialmente” a proteção ao regime da propriedade privada e “afrouxar” o sistema
capitalista de produção. Data venia, nada mais equivocado. É a preocupação com ambos os
fatores, inclusive com a propriedade e manutenção daqueles que dependem da atividade
empresarial – e que não sejam, apenas, o próprio empresário -, que leva o ordenamento a
vislumbrar na preservação da empresa um dos mais relevantes princípios da ordem jurídica.
Assim, duas impressões equivocadas devem ser afastadas. A primeira é a que leva o estudioso
a afastar o sistema capitalista de produção e a proteção à propriedade privada com base na
funcionalização de institutos de direito privado. A segunda decorre da equívoca “má impressão”
que alguns desenvolvem ao conhecerem a existência do princípio da preservação da empresa,
pois, incorretamente, compreendem-no como uma forma de proteção do empresário e não da
atividade, como, em verdade, se apresenta.
FÁBIO ULHOA COELHO afirma: “Quando se assenta, juridicamente, o princípio da preservação
da empresa, o que se tem em vista é a proteção da atividade econômica, como objeto de direito
cuja existência e desenvolvimento interessam não somente ao empresário, ou aos sócios da
sociedade empresária, mas a um conjunto bem maior de sujeitos. Na locução identificadora do
princípio, ‘empresa’ é conceito de sentido técnico bem específico e preciso. Não se confunde nem
com o seu titular (‘empresário’), nem com o lugar em que é explorada (‘estabelecimento
empresarial’). O que se busca preservar, na aplicação do princípio da preservação da empresa,
é, portanto, a atividade, o empreendimento”.46
A preservação da empresa não encontra definição legal específica. Revela-se um princípio
implícito, ainda que conte com menção expressa na legislação ordinária. Com efeito, a Lei
11.101/05 – Lei de Recuperação e Falências – conta com o art. 47: “A recuperação judicial tem
por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico – financeira do devedor, a fim
de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses
dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à
atividade econômica”.
Ainda que não tivesse contemplado no art. 47 da referida lei, seria possível ao estudioso do
direito conhecer a existência de tal princípio. A regra que viabiliza a desconsideração da
personalidade jurídica – prevista no art. 50 do Código Civil e em outros diplomas legais-, as
regras que buscam preservar a atividade na hipótese de dissolução parcial por morte ou retirada
de sócio – previstas nos arts. 1.028 e seguintes do Código Civil -, entre outras, já permitiriam
concluir pela existência da preocupação do legislador com a preservação da atividade
desenvolvida, de modo a esclarecer a presença, no ordenamento, de princípio implícito.
Quanto à recuperação judicial e à falência, contudo, o princípio da preservação da empresa tem
sido afirmado de maneira reiterada pelos tribunais brasileiros. Não bastasse a expressa previsão
no mencionado art. 47 da L. 11.101/05, a jurisprudência apenas confere maior força ao referido
princípio quando da análise de casos concretos. A razão, a nosso ver, é bastante evidente. Para
que seja possível atingir objetivos sociais através do exercício da atividade empresarial – dentre
os quais a geração de riqueza, empregos e tributos -, impõe-se que esta exista, seja estimulada
e preservada. Em suma, não se pode cogitar a função social de algo se o ordenamento não
conceder meios de que o objeto funcionalizado exista e seja preservado.
A empresa, conforme afirmado, implica um complexo de relações jurídicas que envolve
interesses de diversos atores sociais. Empregados, consumidores, sociedade civil e o próprio

46
COELHO, Fábio Ulhôa. Princípios do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p.40.
Estado estão ligados à atividade empresarial de maneira mais ou menos direta. Essa “geral
implicação” gera o interesse na preservação da atividade empresarial.
Não queremos com este breve estudo aprofundar a análise dos dispositivos da Lei de
Recuperação e Falências, mas sim chamar a atenção do leitor para o singelo fato de que a
falência é uma solução clara – ouço afirmar inequívoca – nas hipóteses de inviabilidade
econômica da atividade, pois, no mais das vezes, a recuperação há de ser vista como o caminho
mais profícuo para o atendimento de uma pluralidade de interesses. Observe-se que o
prosseguimento, a recuperação, não precisará se dar sob as mãos do mesmo empresário. Afinal,
e este é o ponto, o que se busca preservar é a empresa e não sua condução por um determinado
empresário. Exatamente por essa razão a lei mencionada confere inúmeros instrumentos para
viabilizar a recuperação.
WILGES BRUSCATO sustenta: “Daí que a grande diferença entre a antiga concordata, que
também se implementava com o objetivo de saneamento da empresa, e a atual recuperação
está nos meios de restabelecimento. Enquanto a concordata apenas cuidava de oferecer mais
prazo ou desconto – ou ambos – ao devedor em face de seus credores quirografários, em sede
de recuperação é possível adotar inúmeras estratégias para a recomposição, num processo mais
abrangente congregando todos os seus credores, que permita a manutenção do
empreendimento, com vistas a que recupere sua rentabilidade”.47
Com efeito, a legislação atual confere, através dos dezesseis incisos do art. 50, diversas formas
para que a recuperação da empresa e sua consequente preservação seja efetivada. De acordo
com o artigo em questão: “Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação
pertinente a cada caso, dentre outros: I – concessão de prazos e condições especiais para
pagamento das obrigações vencidas ou vincendas; II – cisão, incorporação, fusão ou
transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações,
respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente; III – alteração do controle
societário; IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de
seus órgãos administrativos; V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de
administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar; VI – aumento
de capital social; VII – trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade
constituída pelos próprios empregados; VIII – redução salarial, compensação de horários e
redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva; IX – dação em pagamento ou
novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro; X –
constituição de sociedade de credores; XI – venda parcial dos bens; XII – equalização de encargos

47
BRUSCATO, Wilges. Ob. cit., p. 582.
financeiros relativos a débitos de qualquer natureza, tendo como termo inicial a data da
distribuição do pedido de recuperação judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de crédito
rural, sem prejuízo do disposto em legislação específica; XIII – usufruto da empresa; XIV –
administração compartilhada; XV – emissão de valores mobiliários; XVI – constituição de
sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do
devedor”.
O intuito de preservação da atividade pelas razões já expostas é fartamente abraçado pela
jurisprudência de nossos tribunais. O aplicador, ciente de que a empresa só se reveste de função
social se existir e for preservada, confere ao princípio da preservação o valor que deve ter para
a persecução de objetivos constitucionalmente traçados. É comum, mesmo em processos que
buscam a decretação de falência encontrar posicionamentos no sentido de afastar a
procedência do pedido quando o valor que dá base à pretensão é ínfimo. Vejamos:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE FALÊNCIA AJUIZADA SOB A


ÉGIDE DO DECRETO-LEI 7.661/1945. IMPONTUALIDADE. DÉBITO DE VALOR
ÍNFIMO. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. O princípio da preservação
da empresa cumpre preceito da norma maior, refletindo, por conseguinte, a
vontade do poder constituinte originário, de modo que refoge à noção de
razoabilidade a possibilidade de valores inexpressivos provocarem a quebra da
sociedade comercial, em detrimento da satisfação de dívida que não ostenta
valor compatível com a repercussão sócio – econômica da decretação da
quebra. 2. A decretação da falência, ainda que o pedido tenha sido formulado
sob a sistemática do Decreto-Lei 7.661/45, deve observar o valor mínimo exigido
pelo art. 94 da Lei 11.101/2005, privilegiando-se o princípio da preservação da
empresa. Precedentes. 3. Recurso Especial não provido. (STJ. Resp. nº 1.023.172
– SP. 4ª Turma. Min. Rel. Luís Felipe Salomão. 19/04/2012).
COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE FALÊNCIA. DECRETO-LEI Nº
7.661/45. VALOR ÍNFIMO. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA.
INDEFERIMENTO. 1. O Superior Tribunal de Justiça rechaça o pedido de falência
como substituto de ação de cobrança de quantia ínfima, devendo-se prestigiar
a continuidade das atividades comerciais, uma vez não caracterizada situação
de insolvência, diante do princípio da preservação da empresa. II. Recurso
especial conhecido, mas desprovido. (STJ. Resp. nº 920.140 – MT. 4ª Turma.
Min. Rel. Aldir Passarinho Júnior. 08/08/2011).
Há ainda, julgados que, baseando-se na preservação da empresa, concedem benefícios de
ordem fiscal e tributária que vão ao encontro do intuito de permitir a permanência da atividade:

DIREITO EMPRESARIAL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO


JUDICIAL. EXIGÊNCIA DE QUE A EMPRESA RECUPERANDA COMPROVE SUA
REGULARIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 57 DA LEI N. 11.101/2005 (LRF) E ART. 191-A
DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL (CTN). INOPERÂNCIA DOS MENCIONADOS
DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA A DISCIPLINAR O
PARCELAMENTO DA DÍVIDA FISCAL E PREVIDÊNCIÁRIA DE EMPRESAS EM
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1. O art. 47 serve como um norte a guiar a
operacionalidade da recuperação judicial, sempre com vistas ao desígnio do
instituto, que é “viabilizar a superação da situação de crise econômico –
financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do
emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores promovendo, assim,
a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica”. 2. O art. 57 da Lei n. 11.101/2005 e o art. 191-A do CTN devem ser
interpretados à luz das novas diretrizes traçadas pelo legislador para as dívidas
tributárias, com vistas, notadamente, à previsão legal de parcelamento do
crédito tributário em benefício da empresa em recuperação, que é causa de
suspensão da exigibilidade do tributo, nos termos do art. 151, inciso VI, do CTN.
3. O parcelamento tributário é direito da empresa em recuperação judicial que
conduz a situação de regularidade fiscal, de modo que eventual
descumprimento do que dispõe o art. 57 da LRF só pode ser atribuído, ao menos
imediatamente e por ora, à ausência de legislação específica que discipline o
parcelamento em sede de recuperação judicial, não constituindo ônus do
contribuinte, enquanto se fizer inerte o legislador, a apresentação de certidões
de regularidade fiscal para que lhe seja concedida a recuperação. 4. Recurso
especial não provido. (STJ. Resp. nº 1.187.404-MT. Corte Especial. Min. Rel. Luís
Felipe Salomão. 19/06/2013.

Longe de pretendermos estender este artigo – que já ultrapassa os limites inicialmente


impostos – buscamos com as poucas ementas acima demonstrar como o princípio da
preservação da empresa tem sido utilizado pelos tribunais – especificamente pelo Superior
Tribunal de Justiça, ainda que os tribunais estaduais façam uso semelhante – e o modo como tal
princípio repercute na aplicação legal nos mais diversos âmbitos do direito.

3.4. Considerações Finais.

O presente artigo buscou demonstrar a existência da função social da empresa no ordenamento


jurídico brasileiro. Para tanto, traçamos a distinção entre empresa, empresário e
estabelecimento empresarial. A funcionalização da empresa apenas pode ser vista com a devida
importância a partir do instante em que se nota a existência de um perfil predominantemente
funcional do fenômeno empresarial.
A análise da atividade desenvolvida pelo empresário como núcleo que engloba as mais distintas
e variadas relações jurídicas permite vislumbrar o protagonismo exercido pela empresa nos dias
atuais.
Buscamos afirmar que a função social da empresa não deve servir apenas como limite às
liberdades do empresário, isto é, como freio que busca promover respeito aos demais princípios
da Ordem Econômica. Ao contrário, nosso intento foi demonstrar que a função social da
empresa tem como primeira expressão outro princípio, qual seja, o da preservação da empresa.
Não estaríamos a tratar da função social da empresa se essa atividade, constitucionalmente
querida e estimulada, não encontrasse a devida proteção de parte do ordenamento jurídico. O
princípio da preservação da empresa é, assim, como que um primeiro passo à garantia de sua
socialidade. Afinal, se a atividade empresarial é um dos modos mais típicos para o
desenvolvimento do capitalismo e, tendo nossa República Federativa adotado esse sistema, é
imperioso que sejam oferecidos mecanismos de preservação da atividade empresarial.
Preservar não significa favorecer o empresário. Rápida leitura dos artigos 47 e 50 da Lei
11.101/05 permitirá notar que o que se preserva é a atividade – aspecto funcional da
empresarialidade – e não o empresário. Aliás, talvez seja a lei mencionada o principal – embora
não o único – exemplo de como o legislador, ciente da relevância da empresa, buscou conferir
instrumentos legais para sua preservação.
A aplicação do princípio da preservação da empresa pelo Superior Tribunal de Justiça – e por
tribunais estaduais – permite constatar a inegável relação existente entre preservar a atividade
para então permitir que seja funcionalizada. Nesse contexto, a atividade empresarial, longe de
representar a razão dos males daqueles que ainda vivem sob a ótica maniqueísta do “Capital x
Trabalho”, representa um valor do Estado brasileiro e deve, em razão de sua relevância, ser
preservada para o cumprimento, a partir de seu legal e legítimo exercício, de função de índole
social.
3.5. Bibliografia.

- AMARAL, Luiz Fernando de Camargo Prudente do. A função social da empresa no direito
constitucional econômico brasileiro. São Paulo: SRS, 2008.
- ARRUDA ALVIM. Comentários ao código civil brasileiro: livro introdutório ao direito das coisas
e o direito civil. V. XI. Tomo I. Coord: Arruda Alvim, Thereza Alvim e Alexandre Laizo Clápis. Rio
de Janeiro: Forense, 2009.
- BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
- BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
- BULGARELLI, Waldírio. Tratado de direito empresarial. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 1997.
- BRUSCATO, Wilges. Manual de direito empresarial brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
- COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de empresa. V. 1.15.ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.
- COELHO, Fábio Ulhôa. Princípios do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2012.
- COELHO, Fábio Ulhôa. Reflexões sobre o projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2013.
- COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. In.: Revista
de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. Ano XXV. N. 63. Jul-set de 1986.
- DE LUCCA, Newton. Da ética geral à ética empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
- DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 8. São Paulo: Saraiva, 2008.
- FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de
controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
- GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2005.
- MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
- MELLO FRANCO, Vera Helena de. Direito empresarial. v. 1. 4. Ed. São Paulo: RT, 2012.
- MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
- NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
- NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de
positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009.
- NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. São Paulo: RT, 2005.
- PEREZ, Viviane. Função social da empresa: uma proposta de sistematização do conceito. In.:
Temas de direito civil-empresarial. Coord.: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA,
Guilherme Calmon Nogueira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito constitucional: introdução ao direito civil constitucional.
3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
- RENNER, Karl. The institutions of private law and their social functions. London: Transaction
Publishers, 2010.
- REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
- SILVA, José Afonso. Comentário contextual à constituição. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
- VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. V. 1. 2. Ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
- VIVANTE, Cesare. Instituições de direito comercial. 2. ed. Sorocaba: Minelli, 2007.

Você também pode gostar