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1 RELAÇÃO DE CONSUMO

A Ciência Consumeirista não é apenas um conjunto de normas e princípios


que visam tutelar de modo geral os consumidores, mais do que isso, ela busca
direcionar-se à implementação efetiva de instrumentos que possibilitem o tratamento
equiparado entre os integrantes da relação de consumo.

Para isso, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), mais que um corpo de


normas, é um elenco de princípios epistemológicos e instrumentais adequados
àquela defesa.

Neste sentido Filomeno (2003, p. 31, grifo do autor) esclarece que o CDC
exerce

um verdadeiro exercício de cidadania, ou seja, a qualidade de todo o ser


humano, como destinatário final do bem comum de qualquer Estado, que o
habilita a ver reconhecida toda a gama de seus direitos individuais e sociais,
mediante tutelas adequadas colocadas à sua disposição pelos organismos
institucionalizados, bem como a prerrogativa de organizar-se para obter
esses resultados ou acesso àqueles meios de proteção e defesa.

Diante disso, o CDC apresenta no decorrer de seus artigos um verdadeiro


microssistema jurídico, por apresentar princípios peculiares referentes a
vulnerabilidade do consumidor e a destinação de produtos e serviços. Apresenta
ainda as suas normas integradas com os demais ramos do direito como
constitucional, civil, processual civil, penal, processual penal, administrativo, entre
outros. Demonstra também a sua relação multidisciplinar por apresentar normas
variadas de cunho civil, processual civil, processual penal, administrativo, entre
outras.

Preocupando-se ainda com a efetivação das normas na relação de consumo,


buscou o CDC implementar a orientação, educação, informação e proteção jurídica
da sociedade através do incentivo a criação de órgãos oficiais, associações,
juizados especiais e varas especializadas relacionadas diretamente com o direito do
consumidor, e ainda, para os carentes buscou uma tutela especial através da
assistência judiciária integral e gratuita, isso tudo, visando a defesa da cidadania e o
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interesse social de modo que qualquer cidadão tenha alcance e tratamento


adequado.

1.1 Integrantes da relação de consumo

Para aferir com precisão a existência de uma relação de consumo, é


indispensável ter conhecimento prévio de dois conceitos fundamentais, necessários
para se indentificar tal relação, quais sejam, consumidor e fornecedor.

1.1.1 Consumidor

A opção do legislador foi de definir consumidor ao invés de remeter a tarefa à


doutrina e jurisprudência, tendo em vista a possibilidade de surgirem interpretações
diversas do esperado, delimitando assim o termo, embora que, ainda hajam alguns
obstáculos a serem superados os quais a doutrina tem proposta alternativas
(NUNES, 2000, p. 77).

Assim, a conceituação de consumidor está definido no art. 2º do CDC: “toda


pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço, como destinatário
final.”

Ainda quanto a definição de consumidor, surgiram duas correntes doutrinárias:


os finalistas e os maximalistas. A discussão entre as duas correntes é referente ao
art. 2º do CDC, quanto a questão do termo destinatário final.

Segundo a teoria maximalista, o CDC surgiu como maneira de regulamentar o


mercado de consumo brasileiro, sendo que assim, não visa proteger somente o
consumidor-não profissional. Para eles, a definição de consumidor é a mais ampla
possível, independendo se o consumidor adquiriu um bem no mercado com a
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intenção apenas de suprir uma necessidade pessoal ou para revender com fim de
obter lucros (FILOMENO, 2003, p. 39).

Por outro lado, para os adeptos da teoria finalista, consumidor é a parte


vulnerável nas relações contratuais no mercado, merecendo tutela especial, como
afirmada no art. 4º, inciso I, do CDC. Assim, convém delimitar claramente quem
merece esta tutela e quem não a necessita, quem é consumidor e quem não é.
Propõem assim os adeptos desta corrente interpretar o termo destinatário final de
maneira restrita, como apresentado nos princípios básicos dos arts. 4º e 6º do CDC,
pois neste caso o consumidor é visto como elo final da cadeia produtiva, onde
adquire o bem ou serviço privativamente e não como intermediário visando obtenção
de lucros (FILOMENO, 2003, p. 39).

Assim, predominante é a corrente finalista, onde o consumidor é a pessoa


que adquire o bem ou serviço como destinatário final fático e econômico, adquirindo
o bem ou serviço simplesmente com a intenção de usufruí-lo e não com a intenção
de utilizá-lo num processo produtivo.

Portanto, o conceito de consumidor adotado pelo Código é de caráter


econômico, podendo ser ele qualquer pessoa física ou jurídica, que adquira serviço
ou bem, de forma individual ou coletiva, contratando para consumo final, em
benefício próprio ou alheio, “pressupondo-se que assim age com vistas ao
atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma
outra atividade negocial.” (FILOMENO, 2004, p. 27).

A relação de consumo se estabelece com a obtenção do bem, ou ainda com a


simples utilização do produto ou serviço, mesmo que não adquirido diretamente pela
pessoa. Sendo assim, “a norma define como consumidor tanto quem efetivamente
adquire o produto ou serviço como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o
consome.” (NUNES, 2000, p. 78).

Assim, se entende por consumidor qualquer pessoa que submeta-se ao poder


de controle dos detentores dos bens de produção, sendo a subordinação
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econômica do consumidor, o elemento que justifica o regramento das relações de


consumo.

Já quanto a relação de consumo entre pessoas jurídicas, poderá haver a


possibilidade de amparo pelas normas do CDC, desde que presentes dois
elementos que não foram explicitados no CDC. Primeiramente os bens adquiridos
deverão ser de consumo e não de capital. Em segundo lugar, deverá haver um
desequilíbrio que favoreça o fornecedor. Este princípio não procura retirar a questão
das esferas pertinentes ao Código Civil (CC), Código Comercial (CCom), entre
outros, mas visa dar estabilidade ao direito do fraco e o forte, equiparando-os na
relação de consumo (FILOMENO, 2004, p. 34).

Diferentemente, não pode ser considerada consumidora a empresa que


adquire máquinas para a fabricação de seus produtos ou mesmo uma
copiadora para seu escritório e que venha a apresentar algum vício. Isto
porque referidos bens certamente entram na cadeia produtiva e nada têm a
ver com o conceito de destinação final. (FILOMENO, 2004, p. 35, grifo do
autor).

Assim, quando a pessoa jurídica adquire um produto ou serviço como forma de


satisfazer uma necessidade sua, visando uma simples destinação final, haverá
então relação de consumo. Já quando ela obtém o bem com a intenção de colocar
na sua cadeia produtiva, de forma a obter vantagens e lucros visto a sua qualidade
de empresa, não haverá relação de consumo, mas sim, apenas uma relação
contratual cível com a fornecedora do bem ou serviço.

Ainda, quanto a segunda parte do inciso I do art. 51 do CDC:

São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao


fornecimento de produtos e serviços que:
I – Impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor
por vício de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia
ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o
consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em
situações justificáveis. (grifo nosso).

Quanto a oportunidade da fornecedora limitar sua obrigação frente a eventual


indenização por vício que possa surgir na prestação do seu serviço ou fornecimento
de bem a outra pessoa jurídica, esclarece Nunes (2000, p. 87):
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É necessário que a pessoa jurídica consumidora seja também de porte


razoável para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no
contrato. Evidente que cada caso terá suas particularidades, na medida em
que a norma se está utilizando de termos indeterminados, que remetem a
situações concretas variáveis. Mas é possível desde já dizer que pessoa
jurídica “de porte” para os fins instituídos no inciso I do art. 51 é aquele que
tem corpo jurídico próprio ou pode pagar consultor jurídico, que negocie em
nome dela a cláusula contratual limitadora. Sem isso, isto é, sem que se
estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não
poderá ser inserida no contrato.

Quanto a coletividade de pessoas que usufruem de um bem ou serviço, o


parágrafo único do art. 2o do CDC os definiu como consumidor. São os casos em
que há um número indeterminável de pessoas que adquirem um bem como
destinatários finais, mesmo que não haja a possibilidade de identificação dos
mesmos, mas, desde que tenham de alguma forma participado da relação de
consumo.

Neste sentido, cabe ressaltar ainda, outros artigos do CDC que auxiliam na
conceituação de coletividade de consumidores, quais sejam:

Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas
as vítimas do evento.
[...]
Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas
nele previstas.

Diante disso, a regra é que serão vítimas do acidente de consumo toda a


universalidade de pessoas que foram atingidas pelo dano, mesmo que não tenham
consumido diretamente.

Para exemplificar, seria a possível hipótese de ocorrer um acidente onde um


ônibus de uma empresa de transporte coletivo atinja uma escola. Deste fato,
sofreram lesões tanto os passageiros do respectivo ônibus, como algumas crianças
que freqüentavam a escola no momento do evento. Assim, as lesões tanto dos
passageiros como das crianças foram oriundas do mesmo fato. Ora, os passageiros
são considerados consumidores, logo poderão valer-se do CDC contra a
responsabilização do fornecedor, pelos danos sofridos. No mesmo sentido, estarão
sob o abrigo do CDC as crianças que sofreram lesões, equiparando-se aos
consumidores diretos, no caso os passageiros, tendo em vista que as mesmas são
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vítimas de um acidente de consumo, vale dizer: foram vítimas de um serviço


defeituoso, que expôs a vida humana em risco, o que faz com que sejam
equiparadas a consumidores estendendo os instrumentos do CDC a seu favor.

Neste sentido, demonstra o CDC a grande preocupação com os terceiros, que


podem ser possíveis vítimas da relação de consumo, protegendo-os contra
possíveis prejuízos advindos em razão de defeitos intrínsecos ou extrínsecos do
produto ou serviço.

Como já citado, o art. 29 do CDC visa proteger não somente as vítimas de


consumo, mas também todas as pessoas expostas à oferta, à publicidade, às
práticas comerciais abusivas, às cobranças de dívidas e aos bancos de dados e
cadastros dos consumidores.

Portanto, a pessoa não necessita adquirir efetivamente o produto ou serviço


para ser considerada consumidora, basta a potencial aquisição do bem para gerar a
relação de consumo, isso ocorre para que se previna a exposição pelos
fornecedores de produtos ou serviços que possam gerar algum tipo de dano a
pessoa. Já para aqueles consumidores que sofreram algum dano efetivo, será
possível a solicitação da reparação de todos os danos praticados pelos
responsáveis.

O CDC abrange, assim, todas as possibilidades de proteção aos efetivamente


consumidores (consumidores de fato), aos potencialmente consumidores (que
podem vir a consumir) e aos que sofrem os reflexos da relação de consumo.

1.1.2 Fornecedor

Quanto ao outro lado da relação de consumo está o fornecedor de produtos e


serviços definido no art. 3º do CDC, como:
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Toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira,


bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de
produção, montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de
serviços.

Segundo Filomeno (2004, p. 43), fornecedor, poderá ser qualquer pessoa física
que “a título singular, mediante desempenho de atividade mercantil ou civil e de
forma habitual, ofereça no mercado produtos ou serviços, e a jurídica, da mesma
forma, mas em associação mercantil ou civil e de forma habitual.”

O legislador utilizou da expressão fornecedor com o intuito de suprimir neste


termo todos aqueles responsáveis (industrial, comerciante, banqueiro, importador,
entre outros) pela colocação de produtos e serviços a disposição do consumidor de
forma contínua, consistindo a atividade em um exercício constante e estável, e ainda
devendo ser a atividade de caráter econômico, com o objetivo de auferir lucros.

Nesse sentido, lembra ainda Filomeno (2004, p. 43) que fornecedores são:

Considerados todos quanto propiciem a oferta de produtos e serviços no


mercado de consumo, de maneira a atender “as necessidades dos
consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título, sendo relevante,
isto sim a distinção que se deve fazer entre as várias espécies de
fornecedores nos casos de responsabilização por danos causados aos
consumidores, ou então para que os próprios fornecedores atuem na via
regressiva e em cadeia da mesma responsabilização, visto que vital a
solidariedade para a obtenção efetiva de proteção que se visa a oferecer aos
mesmos consumidores.

Ainda há que, necessária é a análise do conceito de atividade, pois de um lado


ela designará se num dos pólos da relação jurídica está o fornecedor, como também
se poderá definir se há ou não relação de consumo regulada pelo CDC.

Como exemplo seria o caso de uma loja de roupas vender seu computador
usado para adquirir um novo, embora haja o destinatário final, não há aqui uma
atividade que gera relação de consumo, pois a loja não é considerada fornecedora,
pois a simples venda de ativos de forma não regular não consiste em relação
jurídica de consumo, aplicando-se ao caso a norma comum civil ou comercial. Já, se
esta mesma empresa vender computadores de maneira regular e com a intenção de
almejar lucros, estabelecer-se-á uma relação de consumo, cabendo então a
aplicação das normas do CDC (NUNES, 2000, p. 91).
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Trata ainda o art. 3º do CDC quanto ao fornecedor poder ser de regime privado
através da prestação de bem ou serviço por particular, ou ainda, quando prestada
diretamente pelo poder público, ou ainda, através das empresas públicas ou
concessionárias. Ainda poderá ser o fornecedor nacional ou estrangeiro, o qual
exporta serviços ou produtos para o país.

Fornecedor ainda poderá ser ente despersonalizado, entendido como aquele


que, sem constituir uma pessoa jurídica, exerce atividade produtiva de bens e
serviços, como é o exemplo da Itaipu Binacional, consórcio entre os governos
brasileiro e paraguaio. Neste mesmo sentido poderá haver como ente
despersonalizado uma pessoa jurídica falida, que mesmo nessa situação terá
responsabilidade pela garantia contratual e legal sobre os serviços ou produtos
fornecidos (FILOMENO, 2004, p. 45).

Já as entidades associativas e os condomínios em edificações, diz Filomeno


(2003, p. 51), não podem ser considerados fornecedores em face de seus
associados e condôminos, pois seu fim ou objetivo social é deliberado pelos próprios
interessados, em última análise, sejam representados ou não por intermédio de
conselhos deliberativos, ou então mediante participação direta em assembléias
gerais que, como se sabe, são os órgãos deliberativos soberanos nas chamadas
sociedades contingentes. Porém, se a entidade associativa tiver como fim
precípuo a prestação de serviços, cobrando mensalidade ou algum outro tipo de
contribuição, deve ser considerada fornecedora desses serviços.

Quanto as atividades desempenhadas pelos fornecedores, são utilizados os


termos: “produção, montagem, criação, construção, transformação,
importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou a
prestação de serviços”, ou, em síntese, a condição de fornecedor está
intimamente ligada à atividade de cada um e desde que coloquem aqueles
produtos e serviços efetivamente no mercado, nascendo daí ipso facto,
eventual responsabilidade por danos causados aos destinatários, ou seja,
pelo fato do produto. (FILOMENO, 2004, p. 44, grifo do autor).

Assim, o produto, exposto no mercado, poderá ser considerado nocivo ao


consumidor quando por algum defeito possa provocar algum perigo além do limite
em que seria percebido pelo adquirente normal ou ainda pela sociedade que dele
possa usufruí-la no que tange as suas características.
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1.2 Objeto da relação de consumo

Entre os dois pólos da relação de consumo: consumidor e fornecedor, há o


objeto de interesse da relação, ou seja, o produto ou serviço prestado ao
consumidor, os quais serão conceituados a seguir.

1.2.1 Produto

A definição de produto está ditada no art. 3º, § 1º do CDC, como: "qualquer


bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial".

A doutrina adota o termo bem ao invés de produto, tendo em vista que aquele é
muito mais abrangente que este e ainda é mais técnico do ponto de vista jurídico,
como do ponto de vista da economia política.

Para a economia política, “bens são coisas que sendo úteis ao homem
provocam a sua cupidez e, por conseguinte, são objeto de apropriação privada”.
Sendo assim, bem se define como um objeto que sendo útil ao homem, tem
característica econômica e é passível de apropriação (RODRIGUES apud
FILOMENO, 2003 p. 55).

O conceito de produto, hoje é universal “e está estreitamente ligado à idéia do


bem, resultado da produção no mercado de consumo das sociedades capitalistas
contemporâneas.” (NUNES, 2000, p. 94). Assim, a sua conceituação pode ser usado
em todos os demais agentes do mercado.

Quanto a sua classificação, os bens podem ser caracterizados pela sua taxa de
consumo conforme art. 26 do CDC: bens duráveis, caracterizados por bens
tangíveis normalmente com prazo de validade extenso (eletrodomésticos, roupas);
bens não duráveis, caracterizados por bens tangíveis normalmente consumidos em
poucos usos (alimentos). O simples fato de o produto não se extinguir numa única
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utilização não lhe retira o status de não durável, o que caracteriza essa qualificação
é sua maneira de extinção enquanto é utilizado (FILOMENO, 2004, p. 48).

Ainda podem ser os bens classificados conforme os hábitos de compra do


consumidor e não pela característica do bem: bens de conveniência,
caracterizados por bens de consumo, geralmente adquiridos com uma maior
freqüencia e de modo facilitado (jornal, cigarro); bens comparáveis, bens de
consumo que o adquirente normalmente aplica um processo de seleção, tomando
por base para a compra a adequação, qualidade, preço e estilo (automóveis); bens
de uso especial, bens que apresentam características e identificação com uma
marca das quais um grupo significante de compradores está habitualmente desejoso
e disposto a obter tal bem a um esforço especial para a compra (marcas e tipos
específicos de artigos de luxo) (FILOMENO, 2003, p. 56).

Por fim, é relevante ressaltar que o produto ou serviço gratuito, conhecido por
"amostra grátis", também está regulado pelo CDC conforme art. 39, parágrafo único,
estando sujeito a todas as suas regras.

1.2.2 Serviço

Por serviço se compreende todas as atividades, benefícios ou satisfações que


de forma remuneradas, estão expostas no mercado de consumo a aquisição dos
consumidores.

A definição legal de serviço é apresentada no § 2 do art. 3º do CDC como:


“qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,
inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as
decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

Não se insere na definição de serviço as contribuições de ordem tributária,


taxas e contribuições de melhoria. Por outro lado, não se deve confundir tais tributos
com as tarifas, pois estas sim se inserem na definição de serviço, por serem elas
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uma remuneração facultativa referente a uma contraprestação de um serviço público


oferecido diretamente pelo Poder Público ou ainda, mediante concessão ou
permissão pela iniciativa privada (FILOMENO, 2004, p. 49).

O contribuinte não deve ser confundido com consumidor, tendo que a


contribuição tributária é impositiva, obrigando a todos com ela para a prestação de
serviços públicos de forma universal e genérica, vistos atender um bem comum, não
podendo ser medida a sua utilização a cada usuário.

No que diz respeito aos serviços de caráter trabalhista foram excluídos da


proteção do CDC, “pois a relação instaurada nesse âmbito tem conotação diversa da
instaurada nas relações de consumo” (NUNES, 2000, p. 100), do qual é tratado em
norma específica.

Quanto a remuneração do serviço deve ser aplicado o termo em seu sentido


estrito e absoluto, compreendendo qualquer tipo de cobrança ou repasse, direto ou
indireto como prestação ao consumidor. Assim, para haver a caracterização do
serviço como gratuito, “será necessário, que de fato, o prestador do serviço não
tenha de maneira alguma, se ressarcido de seus custos, ou que em função da
natureza da prestação do serviço, não tenha cobrado o preço.” (NUNES, 2000, p.
100).

Quanto “as atividades desempenhadas pelas instituições financeiras, quer na


prestação de serviços, [...] quer na concessão de mútuos ou financiamentos para a
aquisição de bens, inserem-se igualmente no conceito amplo de serviços.”
(FILOMENO, 2004, p. 49, grifo do autor). Isso assim, tendo em vista que as
instituições bancárias prestam serviços ao consumidor e que a natureza dessa
prestação se estabelece tipicamente numa relação de consumo, aplicaveis então as
normas do CDC.
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1.2.2.1 Serviço público essencial

Quanto a um conceito de serviço público, como observam doutrinadores como


Di Pietro (2003, p. 95), “não é tarefa fácil [...] pois a sua noção sofreu consideráveis
transformações no decurso do tempo, quer no que diz respeito aos seus elementos
constitutivos, quer no que concerne à sua abrangência.”

Quanto as primeiras noções de direito público como bem lembra Di Pietro


(2003, p. 95, grifo da autora), “surgiram na França, com a chamada Escola de
Serviço Público”, desenvolvendo-se com o passar do tempo as demais nações.

No Brasil, há o entendimento de serviço público conforme apresenta Bandeira


de Mello (2003, p. 612):

Toda atividade de oferecimento de utilidades ou comodidade material


destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente
pelos administradores, que o Estado assume como pertinente a seus deveres
e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de
Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de
restrições especiais –, instituído em favor dos interesses definidos como
públicos no sistema normativo.

Já, Di Pietro (2003, p. 99) define serviço público como “toda atividade material
que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus
delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas,
sob regime jurídico total ou parcialmente público.”

Assim, o serviço público é de responsabilidade do Estado, como definido no art.


175 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), sendo sempre dependente do poder
público constituído:

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob


regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação
de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços
públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como
as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou
permissão;
II - os direitos dos usuários;
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III - política tarifária;


IV - a obrigação de manter serviço adequado.

É a legislação que definirá o que vem a ser serviço público, e o Estado será
sempre detentor da sua titularidade, mesmo nos casos em que o serviço for
delegado a iniciativa privada.

O serviço público, ainda é zelado por princípios constitucionais como o


estampado no caput do art. 37, qual seja, da eficiência. Visa tal princípio, buscar que
o serviço público seja oferecido com o maior número possível de efeitos positivos
para o consumidor, assim devendo cumprir sua finalidade na realidade concreta.

A qualidade e a eficiência “é um plus necessário da adequação. O indivíduo


recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é
suprida concretamente. É isso que o princípio constitucional pretende.” (NUNES,
2000, p. 304).

Neste sentido, o serviço além de eficiente, deve compreender no termo:


eficiência, continuidade e adequação. Isso, pois pode ocorrer ainda que apesar de o
serviço estar sendo oferecido, poderá estar apresentando algum vício como: pode
ser ele adequado mas não seguro (serviço de gás encanado sem controle de
inspeção); ser seguro mas descontínuo (fornecimento de energia elétrica quando
frequentemente interrompido); ser inadequado apesar de contínuo (fornecimento de
água contendo impurezas).

Esta qualidade na prestação do serviço está expressamente prevista no art.


175, IV da CF/88 e ainda no art. 6º, §§ 1º e 2º da Lei n. 8.987/95:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço


adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta
Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade,
continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua
prestação e modicidade das tarifas.
§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento
e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do
serviço.
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Quanto à forma da prestação dos serviços a CF/88 flexibilizou, onde os


serviços públicos podem ser prestados pelo Estado ou ainda em algumas espécies
podem ser delegados através de concessão, permissão ou autorização a iniciativa
privada, conforme o texto constitucional, observando ainda a competência das três
esferas federativas (arts. 21, 25 e 30 da CF/88) (AZEVEDO, 2007, p. 88).

Nesse contexto a concessão de serviço público define-se como:

instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a


alguém que aceita presta-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas
condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob
garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se
pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas
cobradas diretamente dos usuários do serviço. (BANDEIRA DE MELLO,
2003, p. 643, grifo do autor).

Por ser o serviço essencialmente público, são impostas obrigações especiais


aos seus prestadores como o art. 37, § 6, da Lei n. 7.783/89:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de


serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa
qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o
responsável nos casos de dolo ou culpa.

Assim, as concessionárias também respondem objetivamente pelos danos


causados, cabendo ao consumidor apenas provar a “ocorrência do dano, o seu
montante e o nexo de causalidade entre a ação ou omissão do agente e o dano
ocasionado, sem que tenha que investigar a culpa ou dolo do concessionário.”
(PFEIFFER, 2000, p. 167).

Ainda quanto ao art. 22 do CDC, que zela pela essencialidade do serviço


público:

Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,


permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a
cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

Com isso, a norma do CDC tanto se aplica aos casos em que o Poder Público
exerce diretamente o fornecimento do serviço, como também quando
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desempenhado por intermédio de empresas públicas ou de economia mista e ainda


quando a prestadora do serviço concedido possui capital preponderante ou
exclusivamente privado (PFEIFFER, 2000, p. 167).

Os serviços públicos, pela razão de terem titularidade estatal e se destinarem a


um interesse público, deverão ser considerados serviços essenciais. Sendo o
serviço essencial, a sua existência e ocorrência é imprescindível, sob pena de estar
se ferindo um bem jurídico protegido por esse direito (AZEVEDO, 2007, p. 88).
Assim, para ter a característica de essencial deve o serviço possuir um grau de
urgência, ou seja, uma necessidade concreta de sua prestação. Neste sentido, o
disposto no art. 10 da Lei n. 7.783/89 (Lei de Greve), estabelece as atividades
essenciais cuja prestação não pode sofrer interrupção total por força do exercício do
direito de greve no setor privado. “Vale dizer então que existem serviços públicos
essenciais e serviços públicos não essenciais, sendo que em qualquer caso [...] a
prestação dos serviços deve ser adequada, eficiente e segura, mas em relação aos
serviços essenciais, deve ser ainda contínua.” (AZEVEDO, 2007, p. 89, grifo do
autor).

Artigo 10 - São considerados serviços ou atividades essenciais:


I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia
elétrica, gás e combustíveis;
II - assistência médica e hospitalar;
III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV - funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e
materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI - compensação bancária.

Assim, nenhum desses serviços pode ser interrompido. O CDC é claro, taxativo
e não abre exceções: os serviços essenciais são contínuos. “E diga-se em reforço
que essa garantia decorre do texto constitucional.” (NUNES, 2000, p. 308).

Ainda quanto a continuidade do serviço público, há dois fundamentos. O


primeiro se caracteriza pela continuidade do serviço em situações de normalidade,
que como apresentado seu desrespeito poderá gerar prejuízo ao consumidor lesado,
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cabendo direito à reparação de eventuais dandos decorrentes de tal ato, sejam


materiais ou morais, sem prejuízo ainda da aplicação das sanções administrativas
cabíveis, salvo se a interrupção do serviço público for por emergência por motivo de
ordem técnica ou de segurança das instalações. Já quanto ao outro fundamento, há
a questão da suspensão do serviço pela indimplência do consumidor, tema este
apresentado no próximo capítulo (ROCHA, 2004).

Por fim, a legislação consumeirista visa garantir a prestação do serviço público


essencial não somente através de seus artigos apresentados em seu texto, mas
também em decorrência de seus princípios basilares, quais sejam, o da
intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia e segurança
a vida (caput do art. 5º), da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado
(caput do art. 225), da saúde (caput do art. 6º), entre outros. (NUNES, 2000, p. 308).

2 SUSPENSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL POR INADIMPLÊNCIA


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A possibilidade da suspensão de serviço público essencial, de forma unilateral


pelas empresas fornecedoras em razão do não pagamento da remuneração devida
pelo usuário vem sendo muito discutida atualmente, visto entendimentos
controversos frente à matéria.

Resumidamente, de um lado há o entendimento de que há a incidência do


CDC ao tema, que zela pela continuidade do serviço essencial, através de seu art.
22 e parágrafo único:

Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,


permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a
cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
(grifo nosso).

Com isso, o texto legal do CDC e demais princípios constitucionais


demonstram a real violação de direitos quando a fornecedora utiliza da interrupção
do serviço público em face do inadimplemento do consumidor.

Quanto ao outro lado, há quem defenda a possibilidade da cessação do


fornecimento do serviço vista a falta de pagamento, mediante prévio aviso, que
estaria autorizada pela Lei n. 8.987/95 em favor dos prestadores de serviços
essenciais:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço


adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta
Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
[...]
§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção
em situações de emergência ou após prévio aviso, quando:
I – motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e
II – por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da
coletividade. (grifo nosso).

Assim, poderia o prestador suspender de forma unilateral o serviço essencial


quando, não houver o adimplemento da contraprestação pelo consumidor. Contudo,
deverá ser restabelecida se o usuário procurar o prestador e provar estar nas
27

condições que representem interesse a coletividade, como o caso dos usuários


como escolas, hospitais, entre outros.

2.1 Previsão legal de interrupção do fornecimento de serviço essencial

O CDC, através de seu art. 22, exige o cumprimento do princípio da


continuidade só quando os serviços forem essenciais, os quais para terem tal
característica devem estar previstos em lei federal, hipótese prevista,
expressamente, no art. 10 da lei que trata do direito à greve (Lei n. 7.783/89). Assim,
a fornecedora do serviço essencial só poderá interrompê-lo em situação de
emergência e/ou após prévio aviso, quando motivada por razões de ordem técnica
ou de segurança das instalações e ainda por inadimplência do consumidor usuário,
considerando sempre o interesse da coletividade (LAZZARINI, 1999, p. 27).

Porém, quanto ao caso da interrupção por motivo de ordem técnica e


segurança é inconstitucional, segundo Nunes (2000, p. 308, grifo do autor), “pois
ainda que, eventualmente, venham a surgir, significam interrupção irregular do
serviço público, aliás, em clara contradição com o sentido de eficiência e adequação.
Afinal, problema técnico e de insegurança demonstra ineficiência e inadequação.”

Portanto, se o serviço for essencial, o prestador deve observar a obrigação de


continuidade. Caso haja descumprimento, total ou parcial na prestação do serviço,
deverá o consumidor ser ressarcido por eventuais danos.

2.2 Ilegalidade da suspensão de serviço essencial por inadimplência

A CF/88 é objetiva quanto a prestação do serviço público, dos quais os


essenciais, por ter esta característica, devem ser fornecidos visando atender os
interesses da população.
28

De mais a mais, há que se observar que o prestador do serviço privado


estrutura sua operação econômica com finalidade diversa da satisfação do
interesse público. Ele busca obter o maior lucro possível, tendo em vista os
princípios da atividade econômica em sentido estrito (CF, art. 170). Já o
prestador do serviço público desempenha atividade disciplinada pelos
princípios de direito público e apenas pode intentar a satisfação egoística de
seu interesse de lucro na medida em que se realize o interesse público.
(SEGALLA, 2001, p. 130).

Agindo a prestadora de maneira unilateral, suspendendo o fornecimento do


serviço essencial, sem dispor ao consumidor qualquer meio de argumentação e
defesa para a manutenção do serviço, viola e atinge diretamente o desenvolvimento
da vida humana, garantido pela CF/88 entre demais princípios constitucionais e
infraconstitucionais elencados e discutidos a seguir.

2.2.1 Inconstitucionalidade do art. 6º, § 3, II da Lei n. 8.987/95

Com o surgimento da Lei n. 8.987/95, a qual normatizou os institutos da


concessão e permissão dos serviços públicos, muitos foram os magistrados que
passaram a entender que a partir daquele momento a interrupção do serviço público
pelo inadimplemento do consumidor estava legalizada, e, portanto, autorizada, ante
os termos do art. 6º, § 3, II:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço


adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta
Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
[...]
§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção
em situações de emergência ou após prévio aviso, quando:
[...]
II – por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da
coletividade. (grifo nosso).

Diante a violação legislativa, cumpre mencionar que a dignidade da pessoa


humana é definida como fundamento básico, nos termos do art. 1º, III, da CF/88, e
que o art. 5º, XXXII, da CF/88 determina que “o Estado promoverá, na forma da lei, a
defesa do consumidor”, e ainda, é de salientar que o CDC é norma decorrente desse
mandado constitucional, considerado cláusula pétrea.
29

Estabelece o art. 170 da CF/88 que a ordem econômica tem como base
ditames da justiça social, destacando-se entre seus princípios a defesa do
consumidor. Por sua vez, o art. 175 preceitua que a prestação de serviços públicos
compete ao poder público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, na forma da lei, e que “a lei disporá sobre obrigação de
manter serviço adequado”. Com esse fundamento, editou-se a Lei n. 8.987/95
(BANDEIRA DE MELLO, 2003, p. 643).

Assim, com o presente dispositivo, estava admitido a suspensão do


fornecimento de energia elétrica em caso de inadimplemento do usuário, visando o
interesse da coletividade.

No entanto, a ameaça do corte do serviço público essencial, dificulta ou


impossibilita o direito de revisão, o que é incompatível com o art. 5º, XXXV, da
CF/88, pelo qual se determina que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto, o art. 6º, § 3, II, da mencionada Lei
n. 8.987/95, infringe este dispositivo constitucional e, ainda, atinge os dispostos no
inciso XIII, que prejudica a atividade laboral do cidadão ou empresa e inciso LV que
dita sobre o direito ao contraditório e ampla defesa.

Além disso, a partir dos conceitos de consumidor, fornecedor e serviço,


apresentado nos arts. 2º e 3º (caput e § 2) do CDC, infere-se que o fornecimento
como o de energia elétrica, água, telefonia, entre outros, implica relação de
consumo, ao passo que as empresas prestadoras desses serviços se enquadram
como fornecedores e os usuários como consumidores (NUNES, 2000, p. 78).

Assim, embora haja entendimento majoritário pelos tribunais favorecendo a


situação, demonstrar-se-á, a seguir, dispositivos constitucionais violados pelo
disposto no art. 6, § 3, II, supracitado.
30

2.2.2 Violação do princípio da boa-fé objetiva

A doutrina civilista clássica entende por boa-fé “a intenção pura, isenta de dolo
ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra
parte ao engano ou erro.” (SEGALLA, 2001, p. 136).

Trata a boa-fé objetiva de um paradigma de conduta leal, e não apenas da boa-


fé subjetiva que seria um estado de ignorância sobre características da situação
jurídica que se apresenta suscetível de lesionar os direitos de outrem. A boa fé
objetiva é o comportamento leal, com base na confiança, respeitando a parte co-
contratante e contribuindo para a segurança das relações negociais.

Atualmente, a noção clássica de boa-fé subjetiva vem cedendo espaço a sua


face objetiva, a qual leva em consideração a prática efetiva e as
conseqüências de determinado ato em lugar de indagar sobre a intenção do
sujeito que o praticou. A boa-fé objetiva diz respeito a elementos externos à
norma de conduta, que determinam como se deve agir. É um dever de agir
de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de
correção, lisura, honestidade. (SEGALLA, 2001, p. 136, grifo do autor).

A boa-fé é um dos princípios orientadores do CDC e basilar de toda a conduta


contratual que traz a idéia de respeito, cooperação e fidelidade nas relações
contratuais. Esta conduta deve ser mantida entre as partes contratantes com base
na lealdade, sendo que toda cláusula que infringir esse princípio é considerada
abusiva. Assim, pois o artigo 51, XV do CDC declara serem abusivas as cláusulas
que “estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor”, dentro do
qual se insere tal princípio por expressa disposição do artigo 4º, caput e inciso III.

Com isso, a boa-fé objetiva deverá reger o espírito contratual onde as cláusulas
que atinjam negativamente tal princípio serão consideradas abusivas e os atos
praticados implicam em lesão contra o consumidor, cabendo a busca pela reparação
de seu direito.

Nesse sentido, segundo Amaral Júnior (apud SEGALLA, 2001, p. 137) o


princípio da boa-fé objetiva foi implicitamente reconhecido pela CF/88, que no art. 3º
determina: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I -
31

construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Este entendimento vem assegurar
um dos princípios fundamentais constitucionais, do qual a justiça deve primar pela
busca da solidariedade para o ideal equilíbrio das relações de consumo.

Ainda, neste sentido, com o advento da nova norma constitucional, inserindo o


princípio da boa-fé em seu contexto, “revela novos parâmetros através dos quais a
relação obrigacional, antes fundada determinantemente no princípio da autonomia
da vontade, deve ser enquadrada no sistema jurídico.” (SEGALLA, 2001, p. 137).
Este novo preceito demonstra a busca pelo desenvolvimento da cooperação entre
as partes vinculadas por uma relação obrigacional, visando assim uma maior relação
ética de solidariedade contratual.

Assim, segundo Bittar (apud SEGALLA, 2001, p. 137), “cumpre a cada qual
respeitar a posição do outro contratante e operar com fidelidade e com probidade, a
fim de que alcance os objetivos pretendidos com o contrato, agindo consoante
padrões éticos normais à contratação pretendida.”

Sendo assim, deve a boa-fé objetiva estar presente em toda extensão da


relação contratual, seja na sua criação ou na sua execução, deve zelar pelos
princípios de moralidade quanto a atividade negociada, visando prezar e valorizar os
valores básicos da convivência humana e de direitos ínsitos na personalidade. A
boa-fé deve prevalecer através da fidelidade à palavra, lealdade no tratamento e
cumprimento adequado das obrigações, frente aos padrões normais à contratação
que se vincula, ademais, a consagração normativa nacional é de que agindo assim,
será a parte especialmente protegida (SEGALLA, 2001, p. 137).

2.2.3 Violação ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade

O princípio da razoabilidade é um “parâmetro de valoração dos atos do Poder


Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo
ordenamento jurídico: a justiça.” É razoável algo que esteja em conformidade com a
razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia, que não seja arbitrário e
32

corresponda a um senso comum, e ainda, aos valores vigentes em dado momento


ou lugar. O princípio da razoabilidade pode-se dizer que é mais fácil de ser sentido
do que conceituado, pois é elemento com dimensão excessivamente subjetiva
(BARROSO, 1996, p. 204).

A razoabilidade integra o direito constitucional brasileiro, devendo ser aplicado


pelo intérprete da Constituição em qualquer caso submetido ao seu conhecimento,
como afirma Segalla (2001, p. 140):

No direito brasileiro, a técnica da verificação da razoabilidade pode ser


admitida como presente no Texto Constitucional sob duas óticas diversas.
Abrem-se, assim, duas construções admissíveis. Primeiramente, e como
decorrência da doutrina alemã, pode se considerar o “princípio da
razoabilidade” como implícito no sistema, revelando-se assim como um
“princípio” constitucional não escrito. Por outro lado, poder-se-ia, já agora sob
a inspiração direta da doutrina norte-americana, extraí-lo da cláusula do
devido processo legal, mais especificamente como decorrente da noção
substantiva que se vem imprimindo a dita cláusula.

A produção das normas jurídicas pelo Estado normalmente surgem diante de


situações concretas que necessitem de amparo legal visando a realização de
determinados fins. Desse modo, “são fatores invariavelmente presentes em toda
ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins
e os meios.” Ainda há de se utilizar e prezar aos valores fundamentais da
organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a
solidariedade, em última análise a justiça. O princípio da razoabilidade é,
precisamente, a adequação entre esses elementos e o espírito do princípio
(BARROSO, 1996, p. 206).

Há como requisito a partir da razoabilidade e proporcionalidade a exigibilidade


ou necessidade da medida. Chamado também de princípio da menor ingerência
possível, o qual consiste na idéia de que os “meios utilizados para atingimento dos
fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão. É a chamada proibição do
excesso”. Uma lei será tida como inconstitucional por infringência ao princípio da
proporcionalidade, se existir para o caso, a existência de outra medida que
apresente uma menor lesividade (BARROSO, 1996, p. 208).

Quanto ao princípio da proporcionalidade diz Bonavides (2003, p. 394):


33

A proporcionalidade é algo mais que um critério, regra ou elemento de juízo


tecnicamente utilizável para afirmar conseqüências jurídicas, porquanto é
princípio consubstancial ao Estado de Direito com plena e necessária
operatividade, ao mesmo passo que a exigência se sua utilização se
apresenta como uma das garantias básicas que se hão de observar em toda
hipótese em que os direitos e as liberdades sejam lesados.

Do princípio da proporcionalidade se extraem os requisitos, como o da


adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem
aptas a atingir os objetivos pretendidos, da necessidade ou exibilidade, que impõe a
verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados
e da proporcionalidade em sentido estrito, “que é a ponderação entre o ônus imposto
e o benefício trazido, para constar se é justificável a interferência na esfera dos
direitos dos cidadãos”. (BARROSO, 1996, p. 208).

Embora a proporcionalidade não esteja expressamente prevista na CF/88, ela é


aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro, não podendo ser impedido seu
reconhecimento em virtude do disposto do § 2º do art. 5º da mesma: “Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados.”

Portanto, não podem as fornecedoras de serviços públicos, alegando utilizar-se


da legalidade, optar pelo meio mais gravoso para a cobrança da dívida, meio este
que não é razoável, tampouco proporcional à sua finalidade. Hoje á de se destacar
que as normas devem primar pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade,
se decidindo a partir da situação em concreto e não apenas como se o fato genérico
fosse.

2.2.4 Violação ao inc. XIII do art. 5º da CF/88

Quanto ao livre exercício do trabalho, dita a norma constitucional: “é livre o


exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer;” (grifo nosso). O presente disposto constitucional
confere “liberdade de escolha de trabalho, de ofício e de profissão, de acordo com
34

as propensões de cada pessoa e na medida em que a sorte e o esforço próprio


possam romper as barreiras que se antepõe à maioria do povo”, conferindo,
igualmente, a liberdade de exercer o que fora escolhido (SILVA, 2001, p. 260).

Além desse pensamento, há também a questão da liberdade de exercer o


trabalho, ofício ou profissão de modo que a pessoa não seja constrangida de modo
direto, ou indireto, como o caso de a fornecedora de serviço essencial interromper
unilateralmente a prestação de serviço de energia elétrica ocasionando a cessação
da atividade, ainda mais quando a pessoa disponha deste labor como único meio de
sobrevivência.

Há muito tempo o Supremo Tribunal Federal, na seara do direito tributário-


fiscal, assestou, em respeito ao princípio do livre exercício de atividade, ofício
ou profissão, dantes já previsto nas Constituições de 1946 e 1967, ser
inadmissível à autoridade tributária proibir que o contribuinte em débito – para
com a Fazenda Pública -, adquirisse estampilhas, despachasse mercadorias
nas alfândegas e exercesse suas atividades profissionais. (SEGALLA, 2001,
p. 143, grifo do autor).

Visando assim, dar tutela a garantia do livre exercício da atividade foram


editadas as seguintes súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF): “Súmula 70: É
inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de
tributo.”; “Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio
coercitivo para o pagamento de tributos.”; “Súmula 547: Não é lícito à autoridade
proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas
alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”

A Constituição Federal de 1946, ditava em seu art. 141, § 14: “É livre o


exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei
estabelecer.” (grifo nosso).

Por sua vez, enunciava o § 23, do art. 150, da Constituição Federal de 1967: “É
livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições
de capacidade que a lei estabelecer.” (grifo nosso).

O termo condições de capacidade, apresentado pelas constituições acima


apontadas, tem por significado conforme Pontes de Miranda (1968, p. 498):
35

Sempre que a profissão liberal, para que o público alvo seja bem servido e o
interesse coletivo satisfeito, requeira habilitação, não constitui violação a
legislação que estabeleça o mínimo de conhecimentos necessários. Para o
próprio provimento de cargos públicos, é de mister que o candidato preencha
os pressupostos que a Constituição estatui e a lei estatuir. Tais os limites
gerais da liberdade de profissão.

Diante disso, trata a locução condições de capacidade do mínimo de


conhecimento necessário para o exercício de determinado ofício, se para o seu bom
desempenho assim o exigisse. Logo, qualquer outro tipo de restrição para o
exercício da profissão seria inadmissível (SEGALLA, 2001, p. 144).

Embora por muito tempo o STF tenha se posicionado às autoridades


fazendárias quanto ao caso de débitos tributários, infrações tributárias, entre outros,
declarou que caberia ao Estado ingressar com a medida administrativa ou judicial,
desde que não impeça o livre exercício da atividade lícita.

Muito embora o Supremo Tribunal Federal tenha fincado posição nesses


termos há muito tempo, é de se estranhar que os operadores do direito jamais
tivessem procurado aplica-la às hipóteses de interrupção no fornecimento
de serviços públicos essenciais. (SEGALLA, 2001, p. 144 grifo nosso).

Portanto, as fornecedoras de serviços públicos essenciais ao suspenderem seu


fornecimento para qualquer pessoa que tenha algum ofício que dependa em parte
do serviço prestado, poderá agravar ou até causar paralisação de suas atividades, o
que, no caso de empresas, redundará no seu fechamento, enquanto que quanto às
pessoas impedirá a sua própria subsistência e assim sua sobrevivência com um
mínimo de dignidade.

2.2.5 Violação do inc. XXXV do art. 5º da CF/88

O princípio da proteção judiciária, também chamado “princípio da


inafastabilidade do controle jurisdicional, constitui em verdade, a principal garantia
dos direitos subjetivos.” (SILVA, 2001, p. 433). Ainda seguem próximo a ela demais
princípios constitucionais como as regras constitucionais do art. 5º da CF/88:
36

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito;
[...]
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal; (grifo nosso).
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;

O princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional visa garantir o direito à


defesa do particular perante o particular e também desse com o poder público.
Quando o texto constitucional reconhece o direito a proteção jurídica, este direito
concebe-se como uma dupla dimensão: um direito de defesa frente aos tribunais e
contra atos do poder público, e ainda, um direito de proteção do particular através de
tribunais do Estado no sentido deste o proteger perante a violação dos seus direitos
por terceiros. Deste modo, há o “dever de proteção do Estado e direito do particular
a exigir sua proteção.” (CANOTILHO, 2002, p. 491, grifo do autor).

Cabe a função jurisdicional a importante tarefa de fazer valer o “ordenamento


jurídico, de forma coativa, toda vez que seu cumprimento não se dê sem resistência.
Ao próprio particular (ou até mesmo a pessoas jurídicas de direito público) o Estado
subtraiu a faculdade do exercício de seus direitos pelas próprias mãos.” (BASTO;
MARTINS, 1989, p. 169).

Entretanto, no momento em que as fornecedoras de serviço público essencial


arrogam no direito de suspender o seu fornecimento ante o inadimplemento do
consumidor, está, a subtrair do crivo do poder judiciário o monopólio da jurisdição.
Postura essa que viola frontalmente o art. 5º, XXXV, da CF/88.

Assim, conforme Segalla (2001, p. 147):

Não podem as leis ou atos judiciais, quer direta, quer indiretamente, subtrair
da apreciação do Poder Judiciário, através da criação de obstáculos,
qualquer lesão ou ameaça a direito. Com efeito, constitui a proteção contra a
lesão ou ameaça um direito fundamental assegurado às pessoas físicas ou
jurídicas.
37

Com isso, devem as fornecedoras de serviço público submeterem ao Poder


Judiciário suas pretensões quanto ao corte do serviço pelo seu não pagamento. Pois
se débitos existem, devem ser cobrados de forma lícita, e não unilateralmente,
ameaçando a sobrevivência da empresa atendida ou cidadão.

Portanto, agindo as concessionárias desta forma há agressão direta ao


ordenamento constitucional, principalmente quanto ao inciso XXXV, do art. 5º, da
CF/88.

2.2.6 Violação ao inc. LV do art. 5º da CF/88

O princípio do devido processo legal presente no ordenamento constitucional


tem enunciado advindo da Constituição Inglesa onde: “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” (art. 5º, LIV, CF/88).
Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF/88) e o contraditório
e a plenitude de defesa (art. 5º, LV, CF/88) (SILVA, 2001, p. 434).

Por ampla defesa deve se entender o “asseguramento que é feito ao réu de


condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes
a esclarecer a verdade.” (BASTOS; MARTINS, 1989, p. 266). Consistindo a defesa
em iguais possibilidades conferidas ao autor para repelir o que contra ele é
associado, restaurando-se assim um princípio de igualdade entre as partes que são
essencialmente diferentes.

O princípio do contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa,

impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato


produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de
dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma
interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor (MORAES, 2002, p.
124).

Assim, a ampla defesa não é aquela que é satisfatória segundo os critérios do


réu, mas sim aquela que satisfaz as exigências do juízo.
38

Portanto, quando a fornecedora é autorizada a suspender unilateralmente o


serviço essencial, em razão do inadimplemento das contas de consumo, impedindo
que o mesmo possa contestar os valores que alega serem devidos, ou ainda
apresentar as razões porque não realizou o adimplemento (desemprego, falta de
recursos financeiros, etc.), o Estado transfere parte de seu poder jurisdicional a
fornecedora, atacando o princípio constitucional do devido processo legal. Desta
forma, agindo assim, as fornecedoras criam inúmeros obstáculos para que os
eventuais prejudicados possam defender-se regularmente.

2.2.7 Violação aos princípios fundamentais do CDC

Como já apresentado, as fornecedoras de serviço público essencial


enquadram-se na relação de consumo regida pelo CDC, onde as prestadoras são
enquadradas como fornecedoras e os usuários como consumidores, conforme art. 2º
e 3º do CDC.

Quanto aos direitos básicos do consumidor há previsto no art. 6º da lei


consumeirista, um elenco de princípios que tratam da “efetiva prevenção e
reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”; e “a
adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral” (incisos VI e X).

Quanto ao art. 22 do CDC prevê que “os órgãos públicos, por sí ou suas
empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
emprendimento, são obrigadas a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais contínuos.”

Entretanto, o aludido Código não define quais são os serviços essenciais. Por
outro lado temos o disposto no art. 10 da Lei n. 7.783 (Lei de Greve) que estabelece
as atividades essenciais que não podem ser interrompidas, conforme apresentado
anteriormente. Desse modo, segundo o caput do art. 22 do CDC, esses serviços
devem ser contínuos, logo não admitindo sua suspensão (NUNES, 2000, p. 308).
39

O art. 42 da norma consumerista estabelece que "na cobrança de débitos, o


consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça". Já o art. 71 do CDC tipifica essas
condutas como crimes contra as relações de consumo:

Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico


ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro
procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou
interfira com o seu trabalho, descanso, ou lazer:
Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.

A cobrança deve ser efetuada de acordo com as disposições do CDC


pertinentes ao cumprimento de obrigações, não cabendo, portanto, fazer justiça
com as próprias mãos, como é o caso da suspensão dos serviços essenciais, que
submete os usuários a constrangimentos e os expõe a ridículo, mediante ameaça de
corte do serviço (SEGALLA, 2001, p. 153).

Como o CDC obedece a uma disposição constitucional, ele prevalece sobre


toda norma infraconstitucional que o contrarie, sob pena de esta ser considerada
inconstitucional. Trata-se do princípio da proibição de retrocesso.

Portanto, cabe lembrar que a Política Nacional das Relações de Consumo,


prevista no art. 4° da lei consumerista, além de outros objetivos, visa também o
respeito à dignidade do consumidor. Essa Política atende, dentre os seus princípios,
à ação no sentido de proteger efetivamente o consumidor pela garantia dos produtos
e serviços com padrões adequados de qualidade; à harmonização dos interesses
dos consumidores e fornecedores, fundado na boa-fé e equilíbrio nas relações entre
consumidores e fornecedores; à coibição e repressão eficientes de todos os abusos
praticados no mercado de consumo; e à racionalização e melhoria dos serviços
públicos (ROCHA, 2004).
40

2.3 Jurisprudência

Quanto a jurisprudência referente ao presente estudo, foi realizada consulta


junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) do qual demonstra o entendimento
majoritário de que a suspensão de serviço público essencial é cabível, frente ao
inadimplemento do consumidor usuário conforme o disposto no art. 6º, § 3, II da Lei
n. 8.987/95, o qual não violaria o princípio da continuidade prevista no art. 22 do
CDC, conforme Recurso Especial 898769/RS do STJ, julgado em 01/03/2007:

ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ÁGUA.


USUÁRIO INADIMPLENTE. POSSIBILIDADE.
[...]
2. A Lei 8.987/95, por sua vez, ao dispor sobre o regime de concessão e
permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da
Constituição Federal, em seu Capítulo II ("Do Serviço Adequado"), traz a
definição, para esse especial objeto de relação de consumo, do que se
considera "serviço adequado", prevendo, nos incisos I e II do § 3º do art. 6º,
duas hipóteses em que é legítima sua interrupção, em situação de
emergência ou após prévio aviso:
(a) por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; (b) por
inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
3. Tem-se, assim, que a continuidade do serviço público assegurada
pelo art. 22 do CDC não constitui princípio absoluto, mas garantia
limitada pelas disposições da Lei 8.987/95, que, em nome justamente da
preservação da continuidade e da qualidade da prestação dos serviços
ao conjunto dos usuários, permite, em hipóteses entre as quais o
inadimplemento, a suspensão no seu fornecimento. [...]
4. Recurso especial a que se dá provimento. (grifo nosso).

Contudo houve momentos em que a Primeira Seção do STJ estava dividida,


onde a Primeira Turma proclamava impossibilidade a Segunda afirmava ser possível
o corte, passando mais tarde a Primeira Turma ter o seguinte posicionamento, a
partir do Recurso Especial n. 729.331/RJ, julgado em 27/09/2005:

A controvérsia acerca da suspensão de fornecimento de serviço essencial


restou superada pela Primeira Seção do STJ, no julgamento do EREsp
363.943/MG, Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 01.03.2004, quando se
consagrou entendimento no sentido de que, persistindo a inadimplência do
consumidor após o recebimento de aviso prévio, é legítima a interrupção de
serviço essencial, explorado por empresa concessionária de serviço público.

Com isso, a partir do Recurso Especial n. 363.943/MG, julgado em 10/12/2003


o entendimento do STJ se concretizou com o posicionamento de que “é lícito à
concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio,
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o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da


respectiva conta”.

Por outro lado, a interpretação sistemática entre o CDC e a Lei n. 8.987/95


apresenta a necessidade de se proteger os usuários hipossuficientes e aqueles que
prestam serviços de interesse social relevante. Neste sentido, a maioria das
decisões no STJ tem posicionamento favorável ao consumidor usuário que esteja
em situação de miserabilidade ou desemprego, como apresentado no Recurso
Especial n. 617.588/SP, julgado em 27/04/2004:

ADMINISTRATIVO. CORTE DO FORNECIMENTO DE ÁGUA.


INADIMPLÊNCIA DO CONSUMIDOR. LEGALIDADE.
[...]
3. Em primeiro lugar, entendo que, hoje, não se pode fazer uma aplicação da
legislação infraconstitucional sem passar pelos princípios constitucionais,
dentre os quais sobressai o da dignidade da pessoa humana, que é um dos
fundamentos da República e um dos primeiros que vem prestigiado na
Constituição Federal.
4. Não estamos tratando de uma empresa que precisa da energia para
insumo, tampouco de pessoas jurídicas portentosas, mas de uma pessoa
miserável e desempregada, de sorte que a ótica tem que ser outra. Como
disse o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins noutra ocasião, temos que
enunciar o direito aplicável ao caso concreto, não o direito em tese.
Penso que tínhamos, em primeiro lugar, que distinguir entre o
inadimplemento de uma pessoa jurídica portentosa e o de uma pessoa física
que está vivendo no limite da sobrevivência biológica. É mister fazer tal
distinção, data maxima venia. (grifo nosso).

Neste primeiro momento há clara demonstração do relator em primar acima de


qualquer norma infraconstitucional pelos princípios básicos que regem a CF/88.
Demonstra ainda a preocupação em utilizar-se da interpretação das normas do CDC
e da Lei 8.987/95 de forma a fazer a análise ao caso concreto e não apenas ao fato
genérico, assim, conforme apresentado pelo relator, a miserabilidade ou
desemprego fragiliza a pessoa humana de modo que a cobrança de tarifas torna ao
usuário uma imposição de obrigação excessivamente onerosa (art. 6º, V, CDC) e,
por esse motivo, atenta contra a sua dignidade (art. 1º, III, CF/88). Prossegue o texto
da ementa do julgado acima referido:

5. Em segundo lugar, a Lei de Concessões estabelece que é possível o


corte considerado o interesse da coletividade, que significa não fazer o
corte de energia de um hospital ou de uma universidade, não o de uma
pessoa que não possui 40 reais para pagar sua conta de luz, quando a
empresa tem os meios jurídicos legais da ação de cobrança. A
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responsabilidade patrimonial no direito brasileiro incide sobre patrimônio


devedor e, neste caso, está incidindo sobre a própria pessoa!
6. No meu modo de ver, data maxima venia das opiniões cultíssimas em
contrário e sensibilíssimas sob o ângulo humano, entendo que 'interesse da
coletividade' refere-se aos municípios, às universidades, hospitais, onde se
atinge interesse plurissubjetivos.
7. Por outro lado, é preciso analisar que tais empresas têm um percentual de
inadimplemento na sua avaliação de perdas, evidentemente. Pelo que se
houve falar, e os fatos notórios não dependem de prova, a empresa recebe
mais do que experimenta tais inadimplementos. Tenho absoluta certeza que,
dos dez componentes da Seção, todos pagamos a conta de luz
diuturnamente. Então, é uma forma da responsabilidade passar do patrimônio
do devedor para sua própria pessoa. (grifo nosso).

Assim, demonstra a jurisprudência a necessidade de dar atendimento especial


também ao caso da inadimplência dos consumidores usuários pessoas jurídicas,
públicas ou privadas, que prestam atividade de grande relevância social, por conta
do art. 6º, § 3º, II, pois não poderá haver o corte do fornecimento do serviço
essencial quando a pessoa física presta serviço de grande interesse social, como o
caso de hospitais, escolas, delegacia de polícia, entre outros.

Tanto ao caso da pessoa desempregada ou miserável, como o da pessoa


jurídica que presta serviço de interesse social, deve atender aos princípios já
apresentados como o da boa-fé objetiva, para que não seja interrompido o
fornecimento de energia elétrica, água, entre outros. Pois nada justo é o caso de
uma pessoa jurídica, como o caso de um hospital, deixar de pagar a energia elétrica
por saber que não poderá ser interrompido o seu fornecimento, ou ainda de uma
pessoa que embora seja pobre, mas tenha condições de quitar a sua conta de água,
não o faz. Assim segue:

8. Com tais fundamentos, e também outros que seriam desnecessários


alinhar, sou radicalmente contra o corte do fornecimento de serviços
essenciais de pessoa física em situação de miserabilidade e absolutamente
favorável ao corte de pessoa jurídica portentosa, que pode pagar e protela a
prestação da sua obrigação, aproveitando-se dos meios judiciais cabíveis.
9. Recurso especial provido, por força da necessidade de submissão à
jurisprudência uniformizadora.

A preocupação do jurista deverá ser sempre a de atender aos desejos da


justiça, visando salvaguardar o bem comum. Para isso, o julgador deverá trabalhar
de forma que seja adaptada a lei ao caso concreto, tratando cada caso de forma
isolada e não como se genérica fosse.

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