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POR UMA PEDAGOGIA DA ALMA1

Maria Cecília Almeida e Silva

A Psicopedagogia é o campo do conhecimento que tem por objeto o ser cognoscente e


por objetivo fundamental facilitar a construção da autonomia do eu cognoscente,
identificando e clarificando os obstáculos que impedem que essa construção se faça. A
Psicopedagogia considera o ser humano como uma unidade de complexidades, ou seja, como um
ser pluridimensional, com uma dimensão racional, uma dimensão desiderativa e uma dimensão
relacional - esta última implicando um aspecto contextual e um aspecto interpessoal.
A Psicopedagogia ou é transformadora ou não existe porque seria apenas uma aliada do status
quo. A Psicopedagogia ou está descolada do senso comum ou não existe porque estaria vinculada e
comprometida com a platitude dos clichés, adaptada ao espírito bulímico do nosso momento.
A Psicopedagogia ou tem um locus próprio, com objeto e objetivos próprios, ou se tornaria
terra de ninguém, porque terra de todo mundo. A Psicopedagogia ou é revolucionária ou não
existe, porque se diluiria em professores particulares jeitosos, auxiliares de ensino, personal trainers
pedagógicos e/ou psicológicos.
A revolução psicopedagógica se constitui a partir de três rupturas concomitantes, a saber: uma
ruptura epistemológica, uma ruptura filosófica e uma ruptura pedagógica.
A ruptura epistemológica consistiria na passagem de uma epistemologia convergente para
uma epistemologia divergente. A epistemologia convergente de Jorge Visca propõe uma
integração por assimilação recíproca das contribuições da Psicanálise, do Construtivismo de Piaget
e da Psicologia Social de Pichon-Rivière para a percepção do processo de aprendizagem. A integração
tal como foi entendida por Visca se daria pela preservação das semelhanças e eliminação das
diferenças.
Nesse quadro, a ruptura epistemológica consistiria no respeito, sobretudo, das diferenças,
das especificidades e das particularidades de cada teoria.
No entanto, para preservar as diferenças, é necessária uma mudança do objeto da
Psicopedagogia. Nesse deslocamento se constituiria a segunda ruptura — a filosófica. O objeto da
Psicopedagogia não seria mais o processo de aprendizagem, mas o ser cognoscente. E o ser
cognoscente seria o terreno contraditório da Psicopedagogia.
O ser da paixão, do desejo, da razão;
o ser simbólico e racional,
o ser da medida e da desmedida;
o ser da enunciação e do enunciado;
o ser da falta, do desejo da aventura, e da lógica
o ser que procura entender e dar sentido;
o ser poeta e pesquisador (nas palavras de Bachelard).
A sede da ruptura filosófica é o ser cognoscente estruturalmente pluridimensional que se
sustenta na psicanálise e na epistemologia genética, não eliminando, mas mantendo dialogicamente
as diferenças teóricas.
O campo da ruptura filosófica se torna movimentado e dramático, sobretudo pela
inclusão da dimensão desiderativa como constitutiva do ser cognoscente.
As mudanças paradigmáticas, epistemológicas e filosóficas engendram a ruptura pedagógica.
O primeiro ponto a se destacar na ruptura pedagógica seria a ampliação do conceito de
cognição. O cognitivo não seria mais apenas identificado como o que é racional, pois a cognição
encarnada incluiria o desejo, a razão e a relação. O segundo ponto seria perceber o particular
1
IN: TEIXEIRA, M. Luiza e VASCONCELLOS, A. Celina (org.) O pensar e o fazer psicopedagógicos – a
experiência do NOAP. R.J: Editora Lidador, 2007.
dentro do universal, em outras palavras, focar um eu cognoscente singular dentro da
universalidade do ser cognoscente. O terceiro ponto seria o entendimento de que o eu
cognoscente está vinculado não à aprendizagem e sim ao conhecimento. A aprendizagem é uma
manifestação das estruturas originárias do conhecimento.
Podemos, assim, perceber que o que torna a Psicopedagogia revolucionária, e o que
mantém o frescor da sua teoria e da sua prática, são as estruturas acima relacionadas na dinâmica da
contradição.
Há nessas contradições, talvez, um projeto profético, e por isso revolucionário, ainda não
desvelado, de uma nova arquitetura educacional. O novo se daria na mudança de um foco no
ensino-aprendizagem para focar o sujeito que pensa, cria e imagina, o ser cognoscente da
Psicopedagogia. Com esse deslocamento poderíamos começar a pensar a Psicopedagogia como
uma pedagogia da alma e a Educação como obra de arte.

BIBLIOGRAFIA:

ALMEIDA E SILVA, M. CECÍLIA. Psicopedagogia: em buscade uma fundamentação teórica.


RJ: Nova Fronteira, 1998.
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