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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Puc-Sp

Marc Barreto Bogo

A COLEÇÃO PARTICULAR
DA COSAC NAIFY:
EXPLORAÇÕES SENSÍVEIS
DO GOSTO DO LIVRO

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo
2014
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Puc-Sp

Marc Barreto Bogo

A COLEÇÃO PARTICULAR
DA COSAC NAIFY:
EXPLORAÇÕES SENSÍVEIS
DO GOSTO DO LIVRO

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examina-


dora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para ob-
tenção do título de Mestre em Comunicação
e Semiótica, sob a orientação da Profa. Dra.
Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

São Paulo
2014
BANCA EXAMINADORA

Presidente da banca Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira (puc-sp: cos)

Membro interno Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira (puc-sp: lcl)


Suplente: Prof. Dr. Miguel Wady Chaia (puc-sp: cso)

Membro externo Profa. Dra. Mônica Moura (unesp: faac)


Suplente: Prof. Dr. Plinio Martins Filho (usp: eca)

São Paulo, 30 de junho de 2014


AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pela bolsa de estudos.

Ao Itaú Cultural, incentivador da pesquisa.

À minha mãe, pelo suporte financeiro e emocional.

À profa. Ana Claudia de Oliveira, por compartilhar saberes sensíveis e inteligíveis.

À minha aliada desde o princípio dessa jornada acadêmica, Mariana Ferraz de Albu-
querque, à nossa fiel companheira Maria Claudia Vidal Barcelos, e também aos de-
mais membros do atelier de pesquisa (Anamelia Buoro, José Almir Valente, Patrícia
Bittencourt Rudge).

Ao Centro de Pesquisas Sociossemióticas, pela acolhida por tantos e queridos cole-


gas (Luciana Cotrim, Taísa Sena, Graziela Rodrigues, Karin Thrall, Paolo Demuru,
Mariana Braga, Tatiana Pereira, Kathia Castilho, Simone Bueno, Valdenise Marty-
niuk, Alexandre Bueno, Adriana Baggio, Marília Jardim, Tula Fyskatoris, Vera Perei-
ra-Barretto, Paula Piotto e muitos outros que, mesmo não nomeados, desempenha-
ram um importante papel no desenvolvimento desse trabalho).

Às professoras Maria Aparecida Junqueira e Mônica Moura, pelas contribuições pre-


ciosas no exame de qualificação.

Ao prof. Murilo Scoz, pelo querer-fazer.

Aos professores do programa de Comunicação e Semiótica que, direta ou indireta-


mente, contribuíram para essa pesquisa: Amálio Pinheiro, Arlindo Machado, José
Luiz Aidar Prado e Lucia Leão.
RESUMO

O livro é problematizado nesta pesquisa como um texto sincrético: além de substân-


cias verbais, utiliza substâncias visuais, espaciais e táteis para fazer sentido e consti-
tuir-se num todo de significação. Uma editora que se destaca no cenário nacional,
principalmente por seu caráter de experimentação com a forma do livro, é a Cosac
Naify, em especial na sua Coleção Particular. Essa série de livros foi proposta com a in-
tenção de abrigar clássicos da literatura ocidental, com narrativas breves, em edições
nas quais o projeto gráfico é explorado de forma a intensificar a experiência de lei-
tura e os modos de experimentar o texto. Até o momento de escrita da dissertação
fazem parte da coleção sete títulos, cujos projetos gráficos constituem o corpus dessa
pesquisa: Primeiro amor (Samuel Beckett), Bartleby, o escrivão (Herman Melville),
A fera na selva (Henry James), Zazie no metrô (Raymond Queneau), Flores (Mario
Bellatin), Museu do romance da Eterna (Macedonio Fernández) e Avenida Niévski
(Nikolai Gógol). O objetivo principal da pesquisa é investigar os projetos gráficos
dos livros da Coleção Particular, visando compreender o modo por meio do qual a
coleção, enquanto um todo englobante, opera procedimentos singulares que pro-
duzem uma experiência sensível cujo efeito de sentido é o particular de cada obra, da
coleção e da editora. Verificou-se que o efeito de sentido de particular percebido nas
publicações decorre da maneira como os projetos gráficos dos livros exploram sua
plasticidade, figurativizando conteúdos do texto verbal sincreticamente, bem como
das diversas relações metadiscursivas que os livros mantêm com a história, estrutura
e processos produtivos do livro, além de relações interdiscursivas e intersemióticas
com diversas mídias e artes. A moldura teórica consiste principalmente na semióti-
ca discursiva desenvolvida por A. J. Greimas e em seus desdobramentos plásticos e
sensíveis realizados por J.-M. Floch, E. Landowski e A. C. de Oliveira. Procurou-se
assim dar conta tanto da inteligibilidade quanto da sensibilidade da produção de
sentido de cada obra da Coleção Particular, em suas interações entre si, entre as de-
mais coleções e com a própria editora. A partir dessa dinâmica do sentido, apoiada
na dinâmica das interações, chegou-se a uma configuração identitária da Cosac Nai-
fy no mercado editorial brasileiro: a editora desenvolve em seus leitores o gosto pelo
livro, e propõe pela experiência sensível do livro um contrato de fidelização de seu
público leitor.

Palavras-chave: Cosac Naify. Coleção Particular. Design editorial. Semiótica discur-


siva. Sincretismo de linguagens. Identidade de marca.
ABSTRACT

The book is considered in this research as a syncretic text: besides verbal substances,
it uses visual, spatial and tactile substances in order to make sense and constitute a
meaningful whole. A publishing house that stands out in the Brazilian scenario due
to its character of experimenting with the book’s form is Cosac Naify, especially in its
Coleção Particular (“Particular Collection”). This series of books has been proposed
with the intention to house western literature classics, with brief narratives, in
editions in which the graphic project is explored in order to intensify the reading
experience and the ways of experiencing the text. Up to the present time there are
seven different titles in the collection, whose graphic projects constitute the corpus
of this research: Primeiro amor (Samuel Beckett), Bartleby, o escrivão (Herman
Melville), A fera na selva (Henry James), Zazie no metrô (Raymond Queneau), Flores
(Mario Bellatin), Museu do Romance da Eterna (Macedonio Fernández) and Avenida
Niévski (Nikolai Gógol). The main objective of this research is to analyze the graphic
designs of these books, aiming to understand the ways through which the collection
operates singular procedures that produce a sensitive experience whose effect
of meaning is the particular in each work, in the collection and in the publishing
house. It has been verified that the effect of meaning of particular perceived in the
publications originates in the way the graphic designs of these books explore their
plastic configurations, syncretically figurativizing contents from the verbal text, as
well as in the various metadiscursive relations that the books maintain with the
history, structure and production processes of the book, plus interdiscursive and
intersemiotic relations with various media and arts. The theoretical framework
consists mainly in the discursive semiotics developed by A. J. Greimas and its plastic
and sensitive developments made by J.-M. Floch, E. Landowski and A. C. de Oliveira.
Therefore, this research intended to cover both intelligibility and sensibility in the
production of meaning in each work of the Coleção Particular, in their interactions
with each other, with other collections and with the publishing house itself. From
this dynamics of meanings, based on the dynamics of interactions, we have reached
an identity configuration of Cosac Naify in the Brazilian publishing market: the
publisher develops in its readers a taste for books, and proposes through the sensitive
experience of the book a contract of loyalty to its readership.

Keywords: Cosac Naify. Coleção Particular. Editorial design. Discursive semiotics.


Syncretism of languages. Brand identity.
SUMÁRIO

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS ................................................................ 09


1.1 Estruturação da pesquisa .............................................................................. 17

2 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL ................. 23


2.1 A estruturação da editora em áreas temáticas e coleções ......................... 25
2.2 A Coleção Particular e o lugar do projeto gráfico
na estruturação das coleções ........................................................................ 28
2.3 Sentidos da coleção ........................................................................................ 36
2.4 Sentidos do particular ................................................................................... 42
2.5 Questões identitárias ..................................................................................... 45

3 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO ........................................... 53


3.1 Primeiro amor, de Samuel Beckett ............................................................... 57
3.2 Bartleby, o escrivão, de Herman Melville ..................................................... 72
3.3 A fera na selva, de Henry James ................................................................... 84
3.4 Zazie no metrô, de Raymond Queneau ....................................................... 93
3.5 Flores, de Mario Bellatin ................................................................................ 103
3.6 Museu do romance da Eterna, de Macedonio Fernández ......................... 110
3.7 Avenida Niévski, de Nikolai Gógol ............................................................... 119
3.8 Sistematização dos mecanismos sincréticos ............................................... 127
3.9 As interações do discurso ............................................................................. 133

4 METADISCURSOS DO LIVRO ........................................................ 143


4.1 História do livro ............................................................................................. 146
4.2 Processo produtivo do livro .......................................................................... 157
4.3 Estrutura do livro ........................................................................................... 164
4.4 Sistematização dos metadiscursos ............................................................... 173

5 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO ..... 175


5.1 Arte .................................................................................................................. 177
5.2 Mídia ............................................................................................................... 182
5.3 Colecionismo .................................................................................................. 188
5.4 Escritos extras ................................................................................................ 192
5.5 Sistematização dos interdiscursos e intersemioses .................................... 195

6 NOTAS FINAIS ................................................................................... 198


6.1 Formação e cultivo do gosto do livro .......................................................... 200
6.2 Identidade da coleção e do público leitor ................................................... 206

REFERÊNCIAS ..................................................................................... 213

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................................................... 221


Notas
introdutórias
A o tomar um livro nas mãos, qualquer um de nossa civilização ocidental, já
sabemos como manuseá-lo. Em sua configuração habitual, esse precioso item nos é
conhecido desde muito tempo. Há um percurso pré-determinado a ser seguido, um
certo modus operandi que nos é familiar: escolher um livro na estante, tomá-lo nas
mãos, sentir seu volume, peso, cheiro e texturas, observar a capa, medir sua grossura,
virá-lo, correr os olhos pela quarta capa, voltar ao início, abrir o livro para deparar-se
com a página de ante-rosto (ou “falso frontispício”, um dos termos próprios do léxico
editorial)... Imagine então a surpresa de um sujeito quando se defronta com um livro
que não pode ser aberto, que tem as capas costuradas uma na outra! O percurso tão
conhecido de usufruto do livro é interrompido quando uma costura vermelha pren-
de a capa e a quarta capa, impedindo o acesso ao seu interior. Todos os gestos au-
tomatizados de abertura do volume põem-se em suspensão. Como proceder a partir
dali? Como livrar-se de tal obstáculo? Uma ponta solta da linha indica o caminho.
Ao puxá-la, pouco a pouco a costura das capas se desfaz e tem-se o acesso ao interior
do livro. A barreira inicial de abertura está, assim, ultrapassada. O impacto no sujeito
que se põe frente a esse desafio, porém, produz uma experiência sensibilizadora que
irá durar por muito mais tempo. Tem-se assim uma ruptura nos percursos tão regu-
lares de leitura de um livro.
O caso relatado não é um exemplo fictício. Trata-se da edição de Bartleby, o es-
crivão, de Herman Melville, lançada pela editora Cosac Naify no ano de 2005. A pu-
blicação é emblemática do modo como a editora vem tratando seus lançamentos no
mercado editorial brasileiro na última década. O livro é o segundo publicado dentro
de uma coleção intitulada Coleção Particular que é, de certo modo, uma síntese do
fazer editorial da companhia. Tal coleção tem como proposta o lançamento de clás-
sicos da literatura, principalmente com narrativas curtas, em edições nas quais o
projeto gráfico faz parte da experiência de leitura. Sempre questionando o status quo,
seus livros falam da produção do livro, de sua própria forma, estrutura e história.
Tais discursos são sempre manifestos a partir de um intrincado projeto gráfico que
considera os elementos gráficos como parte fundamental no processo de produção
de sentido do livro.
Os livros dessa coleção apresentam os mais diversos arranjos formais: capas cos-
turadas, capas que simulam um embrulho de jornal, capas que desdobram-se para
revelar uma enorme fotografia oculta, capas que são uma simples embalagem plásti-
ca, etc.; páginas não-refiladas que precisam ser rasgadas para serem lidas, páginas
dobradas com imagens ocultas em seu interior, páginas que escurecem progressiva-

10 NOTAS INTRODUTÓRIAS
mente à medida que o livro avança, páginas com metade de seu bloco de texto dis-
posto de ponta cabeça, etc. Essa breve listagem exemplifica o tipo de recurso que os
designers da Cosac Naify se valem em seus projetos.
Quando se fala em projeto gráfico de livro, entende-se não somente o desenvolvi-
mento de uma imagem de capa, mas sim todas as escolhas relativas à concretização
material do livro. Todo livro possui um projeto gráfico, feito por um designer ou não,
bom ou não. Na Cosac Naify, e especialmente nas publicações da referida coleção,
essas escolhas relativas ao projeto gráfico cabem ao designer gráfico, o profissional
responsável por decidir diversos aspectos do design do livro: capa, papel utilizado,
formato, margens, tipografia, imagens, diagramação, etc. O livro é pensado em ter-
mos de design editorial, com um projeto desenvolvido a partir de (e para) cada obra.
Investigar os projetos gráficos de livros é, então, fundamental numa tentativa de de-
preender os sentidos que estão imbuídos nas publicações da Coleção Particular, haja
vista que a experimentação nos projetos gráficos é uma das características que defi-
nem propriamente essa série de publicações.
A função que hoje é realizada pelo designer gráfico, de planejar formalmente os
livros, já foi executada ao longo da história por profissionais distintos: por escribas,
por calígrafos, pelo próprio editor, por impressores, artistas, tipógrafos, etc. Muitos
dos aspectos de um projeto gráfico de livro estão consolidados historicamente e a
história do livro perpassa a própria história da escrita. Seu desenvolvimento deu-se
ao longo de muitos séculos, ocorrendo por meio de sucessivas inovações tecnológi-
cas. Os suportes de escrita, por exemplo, seguiram um longo percurso evolutivo:
desde tábuas, pedras e outros suportes ancestrais, passando pelo papiro egípcio, pe-
las tabuletas de cera e pelo pergaminho, até finalmente o surgimento do papel. Se
o formato de códice já existe desde o século V, foi somente a partir da impressão
tipográfica, no século XV, que o livro adquiriu em definitivo sua configuração atual.
Sua estrutura básica, que permanece fundamentalmente inalterada até hoje, é uti-
lizada até mesmo em publicações não usuais, como livros de artistas, livros artesa-
nais, etc. Sobre a perenidade da forma do livro, Umberto Eco (2010, p. 16) comenta:
“As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe,
em mais de quinhentos anos. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura.
Uma vez inventados, não podem ser aprimorados.”
O livro não pode ser aprimorado, talvez, em termos da regularidade de sua
constituição. Tal nível de regularidade, da ordem do regime de programação, nos
termos propostos por Eric Landowski (2009), é prova de sua eficiência enquanto
suporte de leitura. Mas dentro dessa regularidade se inserem as rupturas e particu-

NOTAS INTRODUTÓRIAS 11
larizações desenvolvidas pelo designer gráfico. Trabalhando em cima de um formato
já consolidado de páginas de papel impressas dobradas, costuradas pela lombada e
encadernadas, que seguem um percurso organizacional lógico (capa, frontispício,
sumário e assim por diante), o projeto gráfico do livro articula as particularidades
que o fazem ser um enunciado significante. São escolhas que dizem respeito ao ma-
terial utilizado, processo de impressão, seleção tipográfica, margens, uso de ima-
gens, diagramação, etc., constituindo uma tomada de posição frente aos percursos
possíveis de sensibilidade. Tais escolhas acarretam experiências distintas de leitura.
No final dos anos 1990, o designer norte-americano Richard Hendel escreveu
1 On book design, uma obra em que comparava o processo de trabalho de diversos designers de livros.1
1998, Yale
As opiniões, muitas vezes contrastantes, expunham o fato de que não há uma
University Press.
Em português, única maneira correta de fazer livros: há diversas maneiras, cada uma prezando
O design do livro
um aspecto diferente do livro. Enquanto alguns profissionais priorizam a inovação,
(HENDEL, 2006).
outros destacam a legibilidade. O famoso designer David Carson, por exemplo,
busca sempre romper agressivamente com as tradições gráficas; evita a todo o custo
utilizar fontes clássicas, por pensar que elas já teriam sido vistas demais, estando,
portanto, dessemantizadas. Por outro lado, Jan Tschihold, designer e um dos mais
importantes tipógrafos do século XX, enfatizava a tradição, o conhecimento e
o respeito às convenções tipográficas como valores fundamentais no processo de
design de um livro.
De lá para cá, o processo de trabalho dos designers mudou muito, com a inserção
e prevalência das ferramentas digitais de design. Não apenas o computador passou
a ser parte do processo de trabalho, como a leitura em tela ganhou força e foi defini-
tivamente inserida no cotidiano da população. Diversas novas modalidades digitais
de leitura surgiram nos últimos anos e algumas delas, como os e-books e os aplica-
tivos interativos, são precipitadamente anunciadas como as “sucessoras dos livros”.
Todas essas novas plataformas de leitura vêm sendo introduzidas sistematicamente
em nosso cotidiano, sem que se tenha um entendimento exato dos recursos de lin-
guagem que essas novas mídias apresentam. Percebe-se, todavia, que muitas de suas
configurações formais ainda guardam relação com a sintaxe dos livros tradicionais.
Há, porém, algumas especificidades da leitura em tela. Nos modelos atuais de
leitores de e-books, é o próprio usuário quem configura algumas de suas características
tipográficas: a escolha da fonte e o corpo da letra, por exemplo. Assim, cada leitor
pode regular o bloco de texto de maneira que a leitura fique mais confortável para
si, superando a questão de um design que prioriza ou não a legibilidade. Se os
livros digitais resolvem certas questões, como a da distribuição internacional e a da

12 NOTAS INTRODUTÓRIAS
legibilidade das obras, o que resta então aos livros impressos? Frente a esse avanço
dos livros digitais, que passam a ocupar uma parcela importante das vendas, os
tradicionais volumes impressos passam a ter seu modo de existência questionado.
Um caminho indicado para os códices físicos é o de enfatizar justamente aquilo
que lhes é próprio: sua materialidade. Os livros impressos podem então evidenciar o
que é particular em sua substância e muitas publicações já começam a explorar essas
especificidades. Daí resultam os experimentos com as edições chamadas “especiais”
dos livros, que jogam com formatos, com escolha de papéis, processos de impressão,
dobras, costuras, cheiros, acabamentos, ilustrações, recortes, etc. Sobre a materiali-
dade dos livros impressos, Roberts (2007, p. 11) opina: “os livros representam per-
manência e continuidade. A qualidade tátil dos livros é um prazer que não pode ser
subestimado e é o que irá assegurar sua longevidade.”
Essa materialidade do objeto impresso pode ser utilizada na construção de uma
experiência de leitura que explore justamente sua fisicalidade. Elaine Ramos, de-
signer da equipe da Cosac Naify, expõe os valores da editora ao produzir livros im-
pressos: “Não faz sentido um livro que não se justifica como objeto, um livro que
[não] tira partido do livro-obra, do livro-de-artista, que fazem uma afirmação da
materialidade do livro” (RAMOS apud MACHADO, 2012). A editora, desse modo,
se configura por explorar os traços plásticos do livro na construção de novas ex-
periências de leitura.
Entendemos que os formantes plásticos dos objetos carregam em si efeitos de
sentido. Assim, num livro impresso, além da leitura de sua dimensão verbal, lê-se
também o modo como esse verbal é grafado. Há uma dimensão plástica2 nos livros 2 A plasticidade
pode ser entendida
que é fundamental no processo de leitura: são cores, texturas, cheiros, linhas e formas
como a organização
que trazem sabores diferentes aos distintos volumes. Todos esses formantes plásticos do plano da
expressão de uma
são distribuídos no plano da página, em um formato e em uma espacialidade que
dada manifestação.
carregam também traços distintivos de sentido. Da mesma maneira, a qualidade
tátil dos papéis e acabamentos é imediatamente apreendida pelo sujeito ao tomar o
objeto-livro em suas mãos. A materialidade do projeto gráfico é essencial para que
o livro faça sentido e constitua-se em um todo de significação. Mesmo a maneira de
tomar o livro nas mãos e de manuseá-lo difere de obra a obra, pois cada publicação
indica modos de ser tomada, folheada, desdobrada, rotacionada, etc., em um
percurso gestual que carrega também efeitos de sentido. Percebe-se, assim, que o
livro é um texto sincrético: além de linguagem verbal, utiliza-se da linguagem gráfica
e muitas vezes também de outras linguagens visuais, como a fotografia, a gravura,
etc., bem como de uma linguagem gestual inscrita no objeto, que se manifestam

NOTAS INTRODUTÓRIAS 13
numa totalidade composta por substâncias verbovisuais-espaciais-táteis. A tessitura
da plasticidade dos livros é fruto das marcas da construção enunciativa que instala
pelas escolhas de uso das linguagens um “eu” e um “tu”, os quais interagem em uma
espacialidade e temporalidade próprias. Em outras palavras, o arranjo plástico do
livro põe em jogo diferentes efeitos de sentido assumidos pela perspectiva da editora
e da coleção em que se insere. Nessa interação proposta no e pelo objeto, o leitor
3 O termo segue caminhos, rumos, “navegando”3 pelo livro em trilhas que são tanto definidas
navegação é
pelo próprio objeto quanto desbravadas pela curiosidade propulsora do sujeito.
próprio do campo
do design, uti- Considerando esse contexto de afirmação da materialidade dos livros impres-
lizado no estudo
sos em relação a seus novos concorrentes (os e-books) é que vemos surgir no Brasil
das interfaces e
interações entre os edições de livros com projetos gráficos de grande esmero e com um intenso fator de
homens e objetos.
experimentação. São livros que exploram suas qualidades sensíveis e o jogo entre
No presente tra-
balho, essa maneira actantes, fazendo do enunciatário partícipe das construções de sentido através de
de usar o livro e de
dobras, costuras e modernos processos de encadernação e impressão.
transitar entre os
espaços impressos A Coleção Particular é um fruto evidente desse contexto e constitui nosso corpus
será tratada em
de pesquisa. Interessados em perceber de que maneira os projetos gráficos contem-
termos de per-
cursos narrativos porâneos fazem sentido, selecionamos essa coleção para a análise por representar, de
possíveis (GREIMAS,
certa maneira, o que há de mais relevante na produção nacional em se tratando da
1996; GREIMAS e
COURTÉS, 2011) exploração do projeto gráfico de livro, enquanto uma potencialidade de produção de
e também a partir
sentidos. A Cosac Naify se faz vista sempre como uma editora que investe em design,
dos regimes de
interação e sentido buscando proporcionar novas experiências táteis de leitura, e sua Coleção Particular
entre o sujeito
é o bastião dessa empreitada editorial.
leitor e o sujeito
livro (LANDOWSKI, Até o momento de escrita desta dissertação, fazem parte da coleção sete títulos
2009).
diferentes. Ao tomar qualquer um desses volumes nas mãos, percebe-se muito intui-
tivamente que há algo de particular nesses projetos. A coleção evidencia, então, um
novo paradigma de exploração das qualidades materiais do livro impresso, por meio
de suas escolhas incomuns de materiais, processos produtivos e soluções formais. As
capas não convencionais, a maneira como o texto está disposto nas páginas, as tintas
de impressão (muito além da costumeira tinta preta): tudo na plasticidade desses
livros contribui para um efeito de sentido de particular. Ser algo fora do comum,
extraordinário, feito com atenção, são efeitos de sentido imediatamente apreendidos
pela ordem do sensível, antes mesmo de uma sistematização intelectiva por parte do
leitor. Quais os procedimentos que produzem tais efeitos de sentido foi a principal
questão-problema investigada ao longo do desenvolvimento desta pesquisa.
A estruturação de uma coleção configura um complexo jogo de enunciações,
que abarca desde o processo editorial de seleção das obras até o desenvolvimento de

14 NOTAS INTRODUTÓRIAS
um projeto gráfico que pode reiterar características do conjunto. Se, por um lado,
temos uma instância englobante, a saber, a coleção de livros, que já possui signifi-
cação própria e traços identitários, tem-se, por outro lado, os livros enquanto uni-
dades englobadas, que também apresentam suas particularidades. O projeto gráfico
da coleção pode ora enfatizar, ora relativizar esse caráter de pertencimento que se
manifesta em cada obra constituinte de uma coleção de livros. Tal jogo entre a parte
e o todo, entre a totalidade articulada da coleção e suas múltiplas partes individuais
– os livros –, constitui também uma temática central dentro da presente investigação.
Ao iniciar a análise dos livros da Coleção Particular, logo se percebeu que não
há um padrão de repetição explícito entre os projetos gráficos da coleção (não se
utiliza um mesmo formato ou mesma tipografia, por exemplo), já que eles são
desenvolvidos individualmente para cada obra literária. Dessa forma, também
surgiu como problema a questão de quais seriam as escolhas enunciativas reiteradas
nos projetos gráficos desse conjunto de obras que permitiriam considerá-los como
partes de um todo coerente, ou seja, como partes de uma mesma coleção com
identidade própria.
Para dar conta da problemática central do modo como os projetos gráficos
fazem com que os leitores sintam o sentido do livro e mais especificamente dos pro-
cedimentos que a Coleção Particular utiliza na construção do seu efeito de sentido
de particular, nada mais pertinente do que se valer de uma base teórica que trate,
justamente, da investigação do sentido. A semiótica, então, por ser a disciplina que
se ocupa do estudo da significação, é fundamental na análise dos projetos gráficos
desses livros, justamente por se propôr a investigar o que dizem as mais diversas
manifestações e de que modo dizem aquilo que dizem. Outras abordagens para esse
objeto, a partir de outras disciplinas (estudos dos campos específicos do design, da
teoria literária, da linguística, etc.), poderiam também ser possíveis, embora cada
uma delas traria uma visão e um foco diferentes do adotado nessa pesquisa, que se
preocupa principalmente com o fenômeno da significação nos livros analisados.
Até que ponto realizar a descrição e análise dos livros? Trata-se, é certo, de um
corpus bastante extenso. Lidar apenas com o que é manifestado verbalmente nos sete
livros, de maneira pormenorizada, por exemplo, já seria um trabalho demasiado
longo. Análises focadas no componente literário, no linguístico, no sociológico, etc.
seriam modos de analisar o objeto que caberiam a outras abordagens. A questão fun-
damental a ser explorada no trabalho aqui proposto é o projeto gráfico e a maneira
como ele participa da construção do sentido do livro, em uma visada semiótica. Essa
abordagem é plenamente justificada, pois a própria editora classifica a Coleção Par-

NOTAS INTRODUTÓRIAS 15
ticular como um conjunto de obras em que o projeto gráfico faz parte da experiência
de leitura, ou seja, o que interliga esses livros e monta uma unidade coesa, já no
processo de concepção da coleção, é o investimento no design dos livros. Haja vista
que o sentido de um livro é apreendido a partir de todos os sistemas de linguagens
envolvidos, nessa investigação o sistema verbal não será desconsiderado, mas será
retomado sempre a partir do projeto gráfico, visando a uma melhor compreensão
do próprio projeto gráfico. O ponto de partida é o design do livro e, se desponta ao
longo do trabalho a análise de outros aspectos (o verbal, as outras linguagens visuais,
como a pintura e a gravura, ou mesmo outras manifestações relevantes, como o site
da editora, informações históricas, etc.), é apenas para entender a maneira como o
projeto gráfico participa da construção do sentido do livro.
A corrente teórica que fundamenta o presente trabalho é a da semiótica discur-
siva (também conhecida como “francesa”), elaborada por Algirdas Julien Greimas,
no final da década de sessenta, a partir de uma semântica estrutural. Juntamente
com os seus colaboradores do Groupe de recherches sémio-linguistiques, sediado na
École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, Greimas desenvolveu ao longo
de quatro décadas de estudo uma teoria da significação. Ele estruturou sua pesquisa
não somente a partir da semântica, da lexicologia, da linguística e dos estudos da
cultura, como os do folclore, mas também observando desenvolvimentos da feno-
menologia e da antropologia. Essa vertente semiótica se ocupa do discurso e propõe
uma teoria geral para o advir do sentido, chamada de geracional: em toda e qualquer
manifestação há um percurso gerativo do sentido, que surge em níveis que vão desde
os valores mais fundamentais e abstratos até os elementos discursivos mais superfi-
ciais e concretos.
Ao encarar os livros como um “texto”, ou seja, como uma totalidade de sentido,
a semiótica fornece o aparato teórico-metodológico necessário para investigar essas
publicações que integram a dimensão verbal a uma dimensão visual-espacial-tátil.
Também, ao se ocupar dos diferentes sistemas de linguagem postos em discurso, a
semiótica discursiva ajuda-nos a compreender os livros da Coleção Particular em
relação aos diversos outros discursos que estão em circulação no mundo e que se
relacionam a essas obras. A semiótica foi essencial para iluminar e poder ver o objeto
de estudo de uma dada maneira, como um todo de sentido que está imbricado em
uma rede de objetos significantes e essa maneira fez com que a pesquisa fosse estru-
turada tal qual aqui se apresenta.
Este estudo nasceu de um forte interesse pessoal pelo design dos livros im-
pressos, oriundo da graduação na área do design gráfico, e da percepção de que

16 NOTAS INTRODUTÓRIAS
a semiótica constitui-se em um valioso campo de conhecimentos que se abre ao
design (e, talvez, vice-versa?), de modo a ventilar ideias e aprofundar reflexões. O
rigor da teoria semiótica mostra-se como uma ferramenta importante na descrição e
análise do sentido dos objetos de design e, especialmente nesse trabalho, também na
descrição e análise dos formantes plásticos e da experiência sensível que propiciam
tais objetos.
Não se encontram, dentre a produção acadêmica nacional, trabalhos que apre-
sentem uma abordagem semiótica para a questão da organização dos livros em
coleções, de como essas coleções diferenciam-se entre si e em sua totalidade for-
mam a identidade da editora. Essa ausência confirmou a importância de tratar des-
sas questões e de tomar as obras da Coleção Particular como um corpus valioso de
trabalho investigativo.
Toda essa problemática constitui um tema relevante para a área da comunicação,
na medida em que investiga, sob uma ótica contemporânea, os processos de signifi-
cação em um sistema de signos consolidado (o livro impresso), que porém recebe
uma atualização por parte de determinados projetos gráficos. A presente investi-
gação buscou melhor compreender, sob uma visada semiótica, esses importantes
objetos com os quais interagimos cotidianamente: os livros.

1.1 Estruturação da pesquisa

O objetivo geral da investigação é analisar os projetos gráficos dos livros da Coleção


Particular, da editora Cosac Naify, visando compreender o modo por meio do qual
a coleção, enquanto um todo englobante, opera procedimentos singulares que pro-
duzem uma experiência sensível cujo efeito de sentido é o particular de cada obra,
da coleção e da editora.
Além disso, foram elencados vários objetivos específicos: (1) investigar efeitos de
sentido e qualidades sensíveis decorrentes do projeto gráfico em sete livros impressos
que fazem parte da Coleção Particular, da editora Cosac Naify; (2) procurar as
escolhas enunciativas reiteradas nesses projetos gráficos, a princípio independentes
entre si, que permitam considerá-los como partes de um todo coerente que é a
coleção; (3) realizar uma reflexão sobre a linguagem própria dos projetos gráficos de
livros, considerando os investimentos de valor no âmbito da materialidade deles, ou
seja, considerando a corporeidade dos livros; (4) a partir da dinâmica das interações

NOTAS INTRODUTÓRIAS 17
das obras da Coleção Particular entre si, entre as demais coleções e com a própria
editora, investigar os traços de uma configuração identitária da Cosac Naify.
A hipótese inicial da pesquisa foi a de que o efeito de sentido de particular
verificado nas publicações se dava pela maneira como os projetos gráficos do livro
4 Para Dias exploram os formantes matéricos,4 figurativizando conteúdos do texto verbal sin-
(1997), o termo
creticamente. Sendo assim, o que configuraria esse caráter de extraordinário ou de
matéria engloba
duas classes: meticuloso percebido nas obras da coleção seriam os procedimentos através dos
os materiais e
quais o projeto gráfico seleciona e submete os diversos materiais (papéis de vários
os objetos. Os
materiais são a tipos, linha, cola, plásticos, etc.) em objetos fabricados (os livros).
matéria-prima que
Porém, logo se verificou que apenas abordar os livros pelo viés da exploração
pode ser utilizada
na produção de matérica não explicaria completamente ou suficientemente os recursos que essas
objetos – esses
edições utilizam para produzir a sua experiência sensível. Abordar a problemática por
últimos, a matéria
já construída ou meio da materialidade era fundamental, mas não conclusivo, pois o uso da dimensão
fabricada.
matérica na produção de sentido era apenas a parte de um todo mais abrangente.
Ao longo da pesquisa, percebeu-se que um dos fatores principais que tornava
esses volumes tão particulares era justamente o modo como as diferentes linguagens
(verbal, gráfica, gestual e demais linguagens envolvidas) atuavam entre si: tratava-se,
portanto, de explorar o sincretismo de linguagens nesses projetos gráficos. Dentro
das relações verbovisuais-espaciais-táteis que os diferentes sistemas teciam entre si,
o formante matérico era apenas um dos responsáveis pelo processo semiótico dessas
publicações, o processo por meio do qual elas produziam experiências sensíveis ím-
pares em seus leitores. O sincretismo de linguagens surgiu, então, como a segunda
hipótese forte para explicar a produção do sentido de particular que se dá no corpus
analisado.
Por fim, aumentando-se ainda mais o viés de análise, considerou-se também que
esses livros não existiam isoladamente: eles faziam parte de um universo próprio e
de uma história: o universo e a história dos livros. E as obras da Coleção Particular
clamavam seu lugar em meio a esse universo e a essa história! Por meio do modo
como estavam estruturados, esses livros retomavam aspectos diversos da própria
história do livro, da forma do livro, de seu processo produtivo. E ainda teciam
relações interdiscursivas e intersemióticas com várias mídias e artes, com as práticas
do colecionismo e mesmo com outras obras literárias. A formação de relações meta-
discursivas, interdiscursivas e intersemióticas configuraram então a terceira hipó-
tese, que não negava a anterior (o sincretismo de linguagens), mas a complementava.
O processo investigativo da dissertação partiu, assim, de uma hipótese focada
em um elemento muito parcial e cresceu para abrigar uma totalidade de um univer-

18 NOTAS INTRODUTÓRIAS
so de conexões que esses livros realizavam. Chegou-se a uma explicação mais con-
sistente para aquilo que construía o efeito de sentido de particular: a exploração da
dimensão matérica juntamente às demais dimensões da plástica do livro, resultante
do sincretismo do verbal e das demais linguagens e em relação a outros discursos e
outros sistemas semióticos. Advém daí o sentido global de coleção, de um todo coe-
rente englobante das várias partes (livros) que o constituem.
Havia, ainda, mais uma hipótese a ser testada e, depois, sancionada ou não
no percurso da pesquisa. Para chegar a ela, devemos fazer agora uma pequena
incursão por um dos desdobramentos atuais da semiótica discursiva: os estudos
da ordem do sensível. O pesquisador Eric Landowski propõe, desde a década de
oitenta, uma semiótica de situações, voltada às experiências vividas, chamada, entre
outras denominações, de semiótica da experiência sensível. Tal abordagem, ao invés
de analisar significações articuladas somente na ordem do cognitivo inteligível,
privilegia também sentidos da ordem do cognitivo sensível. De acordo com o autor
(LANDOWSKI, 2005a, p. 99), um dos encaminhamentos para as pesquisas semióticas
é o de categorizar adequadamente os efeitos de sentido decorrentes do contato com
as qualidades estésicas imanentes às coisas ou seres com que nos confrontamos.
Abordar os livros do ponto de vista de uma produção sensível de sentido parece
um caminho interessantíssimo para lidar com a problemática contemporânea
dos projetos gráficos de livros. Ao articular qualidades sensíveis do livro, como
cores, texturas e formas, a Coleção Particular nos encaminha a uma investigação
que se preocupa também com o cognitivo sensível, tratando as interações sujeito-
sujeito como uma relação em que a simples co-presença interativa dos actantes já é
reconhecida como apta a fazer sentido. Conforme a postula Landowski (2005a, p. 3):

Entram então em relação, de um lado, sujeitos dotados de << sensibilidade >>


– de uma aptidão para sentir e, portanto, de uma competência estésica – e, do ou-
tro, manifestações dotadas, enquanto realidades materiais, de uma consistência
estésica, isto é, de qualidades ditas, elas também, << sensíveis >> (especialmente
de ordem plástica e dinâmica), oferecidas à nossa percepção sensorial.

Sob essa ótica, não há um sujeito meramente cognitivo que julga pela sua inteli-
gibilidade um objeto distante, mas sim um corpo que experimenta a presença do
outro corpo. Entende-se ainda, nessa relação corpo-a-corpo, que esse sentir é uma
forma de apreciação do sentido, conforme expõe Oliveira: “no seu atuar de distin-
tos modos, o corpo opera apreendendo e sentindo o sentido que é sentido graças à

NOTAS INTRODUTÓRIAS 19
condição estésica” (OLIVEIRA, 2010, p. 5). Assim sendo, temos os livros impressos
considerados como corpos-sujeitos, como corpos que nos interpelam à medida que
5 Estesia pode ser também são interpelados por nossos corpos leitores, numa dinâmica estésica5. O
entendida como a
cheiro do papel, a materialidade das encadernações e a visualidade imagética des-
condição de sentir
as qualidades pertam ordens sensoriais imediatas, anteriores ainda a um julgamento estético.
sensíveis emanadas
Essa relação sensível corpo-a-corpo instaura uma segunda reflexão: sentir o
das mais distintas
manifestações, as sentido do livro, estesicamente, implica um leitor que degusta o livro, apreciando
quais exalam a sua
texturas, cheiros, densidades, cores e todas as outras qualidades sensíveis do objeto.
configuração para
essa ser capturada, Parece-nos evidente, portanto, que a apreciação dos livros e a forma de estar com os
sentida e processa-
livros, ainda mais se considerados no âmbito da bibliofilia, remetem a uma questão
da fazendo sentido
para o outro de gosto. O leitor competente depreenderia, através da configuração plástica, o gosto
(OLIVEIRA, 2010).
do livro e, por um percurso de formação proposto pela editora, desenvolveria tam-
bém um gosto pelo livro, aprendendo a apreciar os volumes impressos. Do problema
inicial da experiência sensível da leitura decorre essa segunda questão, do gosto do
(e pelo) livro, constituindo assim uma problemática única.
E assim, por fim, chegamos à quarta hipótese da pesquisa, que complementa as
anteriores: a Coleção Particular proporciona um desenvolvimento do seu leitor em
termos de gosto, localizando o livro, objeto estético, entre as demais estéticas de seu
tempo. A partir de livros que pensam outros livros, a Cosac Naify atua na formação
do gosto do leitor pelos livros. Tal gosto surge como uma miscelânea entre as pro-
priedades intrínsecas do objeto e aquelas que nascem das relações que cada livro
trava com outros discursos estéticos contemporâneos.
Estabelecidas assim a problemática, os objetivos e as hipóteses, esclarecemos
agora o próprio processo da pesquisa. Para o desenvolvimento dessa investigação,
foram focados alguns aspectos específicos da semiótica discursiva, uma teoria que
é única, coesa e largamente abrangente: o sincretismo de linguagens, a plástica, a
exploração sensível e os regimes de interação e de sentido.
A bibliografia consultada se constituiu de referências de dois tipos: obras sobre
livros e obras de fundamentação teórica semiótica. No primeiro grupo está a biblio-
grafia que considera a história da leitura, dos livros e do design de livros, a partir de
autores como E. Satué, R. Hendel, R. Chartier e S. Fischer. Quanto à moldura teórica
semiótica, ela consistiu principalmente na semiótica discursiva desenvolvida por A.
J. Greimas e em seus desdobramentos plásticos e sensíveis realizados por J.-M. Floch,
E. Landowski e A. C. de Oliveira. Foram ainda consultados dados divulgados pela
própria editora Cosac Naify em seu site oficial, em releases e em entrevistas da equipe
para veículos da mídia impressa e online.

20 NOTAS INTRODUTÓRIAS
O processo de desenvolvimento da pesquisa partiu da análise de um objeto mais
geral, a totalidade da editora Cosac Naify, passando às suas diversas frações suces-
sivas: a Coleção Particular, cada um dos livros da coleção e os pormenores de cada
obra – seus elementos constituintes. O percurso investigativo foi, assim, do todo da
editora à parte dos livros que compuseram o corpus (esquema 1). 

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r Esquema 1 –
Re l a çõ e s e n t
en

Id Organização da
pesquisa: do todo à
parte e retornando
ao todo.

A partir do exame das menores porções, dos elementos que constituem cada um
dos livros, foi possível retomar o sentido da totalidade de cada obra. Nas diversas
relações encontradas entre as obras, deu-se a totalidade de sentido que assume a
Coleção Particular. Por fim, a partir da caracterização da coleção, chegou-se à questão
da identidade da Cosac Naify, de como ela é construída em relação a seus leitores e
também em relação às demais editoras do mercado brasileiro. Assim, após explorar
os pequenos componentes de cada livro, passou-se da parte para o todo, perfazendo
o caminho inverso. O próprio objeto de estudo pedia essa estrutura: investigá-lo
partindo de um olhar mais abrangente, apurando a visão, o tato e demais sentidos
cada vez mais, até perceber as mínimas partes, e a partir daí retomar o sentido da
totalidade. Esse trajeto da pesquisa é regente do modo de organização da estrutura
do trabalho.

NOTAS INTRODUTÓRIAS 21
De acordo com essa estruturação, o primeiro capítulo após essas notas intro-
dutórias, chamado “Cosac Naify: produção de livros no Brasil”, traz uma exposição
inicial bem como um breve histórico da editora, seguidos de uma apresentação
da Coleção Particular e de cada um de seus livros, além de uma explicação sobre a
importância do design dentro da editora. A seguir, há uma semiotização do termo
“coleção” e do termo “particular”, assim como também uma abordagem sobre algu-
mas questões identitárias envolvendo coleção e editora.
Os três capítulos seguintes são decorrentes da análise e sistematização dos livros
da Coleção Particular. “Produção de sentido do livro” inicia com uma análise de cada
obra, fazendo uma síntese da relação entre plano da expressão e plano do conteúdo
nas publicações. Esse capítulo trata também dos tipos de sincretismos que cada livro
realiza, bem como da interação discursiva entre enunciador e enunciatário. Em
“Metadiscursos do livro”, se analisa como cada uma das sete publicações relaciona-se
com a própria história do livro, com seu processo produtivo e com sua estrutura de
base. Em “Relações interdiscursivas e intersemióticas”, o que está em destaque são as
relações com as distintas artes e mídias, assim como as relações com o próprio ato do
colecionismo e com outras produções culturais a partir dos escritos extras incluídos
em cada publicação.
O último capítulo, “Notas finais”, encaminha-se para um fechamento da pesqui-
sa, ao refletir acerca da estesia e do gosto do livro e de como a editora relaciona-se
com seus leitores, fazendo-os sentir seus livros. Trata-se de um modo de agir da
editora que é formador do gosto pelo livro em seu público leitor.
Aos leitores, boa leitura!

22 NOTAS INTRODUTÓRIAS
Cosac Naify: produção
de livros no Brasil
É na altura 770 da Rua General Jardim, na zona central da megalópole São
Paulo, que a editora Cosac Naify mantém sua sede. Nas fotos do ambiente interno
veiculadas em sua página (fig. 1), a editora se exibe como um local em que os livros
estão sempre à mostra: apresenta-se, assim, como a casa editorial que faz livros em
um espaço cercado de livros. A localização na Pauliceia não é dessemantizada. Pelo
contrário: vários sentidos advém daí. “Dinâmica”, “inovadora”, “pulsante”, “vigorosa”,
são atributos que podem ser facilmente atribuídos tanto a uma, a editora, quanto à
outra, a cidade que a abriga, seja pela grande mídia ou por comunidades mais espe-
cíficas de designers, arquitetos, artistas e afins. É nas diversas ocorrências midiáticas
e nas falas dos sujeitos coletivos que os atributos acima elencados se fazem isotópi-
cos, construindo um efeito de sentido de vanguarda a partir dos modos como a edi-
tora se dá a ver socialmente. Enquanto São Paulo revoluciona a economia do país, a
Cosac Naify estabelece, pouco a pouco, uma ruptura no mercado editorial nacional.
Semioticamente, é claro, o procedimento a ser tomado não é o de “aceitar” esse efeito
Figura 1 – Cenas do de sentido de vanguarda como dado de antemão, mas sim perceber os modos como
ambiente interno
ele se constrói, a partir das visibilidades diversas da editora. Para isso, inicialmente
da sede da editora.
Fotos de Rodrigo nos debruçamos sobre a história da editora, sobre questões identitárias e sobre o
Rosenthal.
lugar da Coleção Particular na estruturação da Cosac Naify.
Fonte: <editora.
cosacnaify.com.br>.

24 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


2.1 A estruturação da editora
em áreas temáticas e coleções

Segundo o discurso midiático e o da própria editora, a Cosac Naify se apresenta


como um destaque no cenário nacional, devido especialmente ao seu caráter de ex-
perimentação com a forma do livro. A editora vem sendo sucessivamente agraciada
com premiações da área do design gráfico de livros, de instituições e eventos impor-
tantes como a Câmara Brasileira do Livro (Prêmio Jabuti), Bienal de Design Gráfico
(da ADG – Associação dos Designers Gráficos do Brasil), Associação Brasileira da
Indústria Gráfica, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e até mesmo a Feira
de Bolonha.
A primeira nomeação da editora foi “Cosac & Naify”, referindo-se aos dois em-
presários que fundaram a empresa, Charles Cosac e Michael Naify. O primeiro é
uma figura traçada midiaticamente como refinado e excêntrico, um brasileiro filho
de milionários que passou boa parte da vida fora do país. O segundo é seu cunhado:
“um americano cujos principais negócios estão na área do cinema e da televisão nos
Estados Unidos” (GRAIEB, 2000). Enquanto Charles foi a mente criativa por trás da
fundação da editora, Michael deu o apoio empresarial e financeiro necessário para o
negócio funcionar.
Idealizador da editora, Charles Cosac foi descrito pela revista Veja, semanal de
maior circulação no país, como “figura ímpar no cenário cultural” (GRAIEB, 2000).
As histórias sobre ele são muitas: toma 8 litros de Coca e fuma três maços de cigarro
por dia, sempre se veste com túnicas e crucifixos, nunca toma sol, jamais praticou
exercícios físicos, possui cômodos de sua casa pintados inteiramente de vermelho,
é celibatário, homossexual e religioso, vai à igreja todas as manhãs, acredita ser
parente de Jesus Cristo, mandou incrustar em seus dentes quatro pedras preciosas
(dois diamantes, um rubi e uma esmeralda), exumou o corpo de seu avô e fez dos
ossos dos dedos um colar, etc. Os traços figurativos diversos recobrem o tema geral
“excentricidade”, que é reiterado por Veja (GRAIEB, 2000), Istoé (CHAGAS, 2001) e
Carta Capital (MENEZES, 2012), entre outras. Assim, os semantismos diversos que
são atribuídos midiaticamente ao editor (sofisticado, inovador, excêntrico, ímpar)
coincidem e são, por extensão, efeitos de sentido que se constroem, nessas práticas
midiáticas, ao redor da própria editora por ele pensada.
Se, ao tratar da sua vida pessoal, a mídia é unânime em taxá-lo de excêntrico,
em relação à sua função de editor há também um comum acordo, uma isotopia

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 25


construída midiaticamente: a da excelência na edição. O profissional Charles
Cosac é frequentemente referido como objetivo, culto, inteligente, competente
e cuja empreitada é tida como a “editora brasileira de maior prestígio, charme e
competência” (CHAGAS, 2001).
A editora foi fundada em junho de 1997, com a publicação de um livro de arte
(Barroco de Lírios, de Tunga) que já caracterizava o interesse plástico investido em
suas obras: o livro possuía mais de dez tipos de papéis, 200 ilustrações e recursos in-
terativos. Criando parcerias com instituições como o MoMA, de Nova York, a Pina-
coteca do Estado de São Paulo, a São Paulo Fashion Week e o SESC-SP, a editora foi
se constituindo referência nas artes plásticas, tendo publicado mais de 100 livros
sobre o assunto, além de ter enveredado por outros caminhos correlatos, como a
fotografia, design, moda e arquitetura. (COSAC NAIFY, 2012).
Mas o caminho foi tortuoso. Nos primeiros anos de funcionamento da editora,
enquanto se dedicava exclusivamente aos livros de arte, ela não apresentou lucro. Pelo
contrário: o prejuízo mensal chegava a 500 mil reais por mês. (MENEZES, 2012). A
editora funcionava como uma espécie de “mecenas” para os artistas plásticos que
tinham suas obras exibidas nas publicações. As mudanças de ordem mercadológica
se deram a partir da integração de novos funcionários na equipe da editora. Primeiro
veio, em 1999, o diretor financeiro Ivo Camargo, após trabalhar por 12 anos na área
comercial da Companhia das Letras. (CHAGAS, 2001). Ele foi um dos responsáveis
por trazer estabilidade econômica para um empreendimento tão fortemente calcado
em explorar a estesia do livro e o seu caráter material de objeto, um posicionamento
que não condizia com a lógica de mercado de então.
Sem muita prática em administrar uma editora, Charles convidou também em
2001 Augusto Massi, professor de literatura da USP, para assumir o cargo de diretor
editorial. Foi a partir do comando de Massi que a editora passou a publicar títulos
de literatura, tanto brasileira quanto universal, e também os livros infanto-juvenis.
(MENEZES, 2012). Ele deixou o cargo em 2011, mas ao longo de uma década foi o
responsável por toda a linha editorial da casa. (COSAC NAIFY, 2014).
Os livros infantis constituem uma importante área de atuação da editora, com
dezenas de títulos publicados de autores nacionais e estrangeiros, em edições fre-
quentemente premiadas. Na área da literatura de ficção também há fortes investi-
mentos, com mais de 150 obras constando no catálogo. Títulos importantes como
Os Miseráveis, Anna Kariênina e Moby Dick foram lançados pela Cosac Naify, o que
indica uma relevância na área de literatura dentro do mercado nacional.

26 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


O primeiro nome da editora, “Cosac & Naify”, foi posteriormente modificado,
passando a ser grafado “Cosac Naify” (sem o ampersand). Na marca gráfica utiliza-
da a partir do ano de 2004 (fig. 2), porém, não há essa separação entre um e outro
nome que ainda é utilizada nas demais comunicações verbais (nos textos disponíveis 6 Informação
cedida pelo
no site e fichas catalográficas, por exemplo). No desenho da marca, desenvolvido
atendimento do
pelos designers Raul Loureiro e Claudia Warrak6, a leitura é de uma palavra só, uma Portal Cosac Naify.

unidade visual, grafada em tipos pesados, sem serifa, em caixa alta e com um espaça-
mento pequeno entre letras. Assim, o projeto intelectual – Cosac – e o projeto em-
presarial – Naify – da editora estão em contato direto. A unidade foi formada, agora
“Cosac” e “Naify” estão indissociáveis, plasmados na marca da editora.

Figura 2 – Marca
gráfica da editora
Cosac Naify.
Fonte: <editora.
cosacnaify.com.br>.

A empresa se mantém bastante atuante no ambiente web. Seu portal está sempre
atualizado com os lançamentos, um blog da editora é alimentado quase diariamente
com posts de diversos colunistas e membros do corpo de funcionários e os usuários
cadastrados recebem em seu e-mail boletins mensais com as novidades e lançamen-
tos. Nas redes sociais Twitter e Facebook a editora mantém páginas que também são
atualizadas a cada livro publicado, novidade do site ou post no blog. A loja virtual da
editora, acessível pelo portal, realiza promoções frequentemente, que também são
devidamente anunciadas por e-mail e pelas redes sociais. Nessa atuação constante
em diversos locais do ambiente virtual a Cosac Naify afirma sua presença, seu estar
junto ao leitor, e constrói sua própria visibilidade.
Sua página web (fig. 3) talvez seja, de todos esses modos de contato, o ponto de
partida para o encontro com as muitas manifestações da editora na Internet. Vários
elementos de sua plasticidade são replicados na loja virtual e nos boletins eletrôni-
cos: estrutura modular, preferência por tipografias não-serifadas com títulos em ne-
grito, fundo branco, fotografias enquadradas de maneira inusitada (raramente uma
figura humana é mostrada em sua totalidade, por exemplo), etc. A constância desses
padrões gráficos produz um efeito de sentido de unidade, de um projeto comunica-
cional integrado entre as diversas manifestações da marca, tal qual pregam os bons
projetos de identidade visual.

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 27


Figura 3 – Tela É também por meio de sua página web que a editora dá a ver sua estruturação:
inicial da página da
ela organiza-se a partir de treze áreas de publicação, visualizadas em um menu
editora Cosac Naify,
com elementos horizontal superior que percorre toda a extensão da página, ou seja, toda a extensão
plásticos que
da editora em si. As áreas são: arquitetura, arte, biografia, ciências humanas, cinema
são reiterados
nas suas demais e teatro, dança, design, fotografia, infantojuvenil, literatura, moda, música e portátil.
comunicações web.
É dentro da área de literatura que surge, pelas mãos da Cosac Naify, nosso corpus
No menu superior,
logo abaixo do de pesquisa: a Coleção Particular. Trata-se de uma série de livros que trabalha
título da editora,
especificamente com a experimentação de materialidades, com projetos gráficos
estão postos os
links para as treze contemporâneos para obras literárias tidas como clássicas. Tais edições articulam,
áreas de publicação
por meio de seu design, diversos efeitos de sentido e qualidades sensíveis, em textos
que a estruturam.
Fonte: <editora. explicitamente sincréticos.
cosacnaify.com.br>.

2.2 A Coleção Particular e o lugar do projeto


gráfico na estruturação das coleções

A Coleção Particular, série de livros publicados pela Cosac Naify, é definida pela edi-
tora da seguinte maneira: “Clássicos da literatura ocidental, com narrativas breves,
em edições nas quais o projeto gráfico faz parte da experiência de leitura e interfere

28 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


na forma de experimentar o texto.” No momento da realização desta pesquisa, fazem
parte da coleção sete títulos diferentes, que estão brevemente apresentados a seguir.
O título inicial, lançado pela Cosac Naify no ano de 2004, foi Primeiro amor
(fig. 4), primeiro texto em francês do autor irlandês Samuel Beckett, Prêmio Nobel
de Literatura em 1969. O título, que já havia sido publicado no Brasil na década de 80
pela editora Hiena e em versão bilíngue pela Nova Fronteira, reaparece nessa versão
em tradução para o português de Célia Euvaldo. A obra é encadernada no estilo
chamado de “costura chinesa” e traz em suas páginas, além do texto verbal, quinze
Figura 4 – Primeiro
ilustrações da própria tradutora, que é também artista plástica. A edição foi agracia- amor, Samuel
Beckett.
da no 7º Prêmio Max Feffer de Design Gráfico em 2008, na categoria editorial, por
Fonte: <editora.
seu projeto gráfico realizado por Elaine Ramos. cosacnaify.com.br>.

Em seguida, houve a polêmica publicação de Bartleby, o escrivão (fig. 5), de Her-


man Melville, em 2005. Essa curta narrativa já havia sido publicada em português
diversas vezes, pelas editoras Rocco, Record e L&PM, porém nunca em uma edição
como a da Cosac Naify. A edição referida possui uma costura em linha vermelha que
une suas duas capas, forçando o leitor a descosturar a obra. Como as páginas não são

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 29


refiladas, o leitor é obrigado a cortá-las com uma espátula plástica que acompanha
o livro para poder ter acesso a seu conteúdo verbal, interagindo ainda mais com o
objeto. Essa edição, com projeto gráfico de Elaine Ramos, também foi premiada no
7º Prêmio Max Feffer de Design Gráfico em 2008.

Figura 5 – Bartleby,
o escrivão, Herman
Melville.
Fonte: <editora.
cosacnaify.com.br>.

A terceira obra que faz parte da coleção é A Fera na Selva (fig. 6), de Henry
James, lançada em 2007 (ano em que a editora comemorava dez anos de funciona-
mento). Essa obra já teve edições em português pela editora Rocco e, em Portugal,
pela editora Assírio & Alvim. No livro da Cosac Naify, o projeto gráfico presumi-
damente acompanha a evolução da narrativa, pois, à medida que ela vai se tornando
mais dramática, a gramatura das páginas do livro aumenta, as tonalidades do papel
escurecem e o espaço entre as linhas do texto diminui. Ainda, a capa se desdobra
como um pôster e revela duas fotografias em seu interior. Essa edição, com projeto
de Luciana Facchini, foi premiada em terceiro lugar na categoria projeto gráfico no
50º Prêmio Jabuti.

30 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


O título A fera na Selva foi o que inaugurou, de fato, a Coleção Particular. A Figura 6 – A Fera na
Selva, Henry James.
designer Elaine Ramos, em entrevista para a página da própria editora, esclareceu
Fonte: <editora.
o processo: “Na verdade, a coleção só foi pensada a partir deste lançamento, pois os cosacnaify.com.br>.

dois outros livros que a integram, o Primeiro amor e Bartleby, já existiam. Todos têm
o mesmo formato e propostas semelhantes. E como esses projetos tiveram bastante
sucesso, montamos esta Coleção Particular.” (COSAC NAIFY, 2013). Em outras pala-
vras, mesmo não tendo sido pensados como constituintes de uma coleção a priori, os
títulos iniciais foram percebidos pela equipe da editora como possuindo “propostas
semelhantes”, isto é, como títulos que mantinham entre si relações interdiscursivas
de algum modo e que compartilhavam também uma certa lógica comum na elabo-
ração de seus projetos gráficos. O fator mercadológico, a partir dos discursos da
própria equipe da editora, também foi visto como fundamental para a constituição
da coleção: Primeiro amor teve um êxito de crítica e de vendas maior que o esperado
pela Cosac Naify, bem como Bartleby, o escrivão, que em apenas quatro anos após o
lançamento somava três reimpressões.7 7 O atendimento da
editora não informa
A quarta publicação da então recém criada coleção foi Zazie no Metrô (fig. 7),
tiragens, números
publicada em 2009. Essa obra de Raymond Queneau também já havia sido editada de reimpressões de
suas edições ou da-
no Brasil na década de 80 pela editora Rocco. Nessa nova edição da Cosac, impressa
dos sobre vendas.
em papel-bíblia, fragmentos de cartazes da época da narrativa são reproduzidos na Nas publicações
a que tivemos
parte interna das páginas. O projeto de Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio
acesso, no entanto,
foi premiado pela AIGA (American Institute of Graphic Arts) na competição 50 a tiragem declara-
da de Primeiro
Books/50 Covers, em 2010, e também foi destaque na 10ª Bienal Brasileira de Design
amor era de 2.000
Gráfico, em 2013. exemplares (3ª
reimpressão, 2008)
e a de Bartleby,
o escrivão, 5.500
exemplares (3ª
reimpressão, 2009).

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 31


Figura 7 – Zazie no A quinta obra da coleção é Flores (fig. 8), do autor mexicano contemporâneo
Metrô, Raymond
Mario Bellatin, lançada também em 2009. A obra, escrita em 2001, é lançada pela
Queneau.
Fonte: <editora. primeira vez no Brasil através da Cosac Naify. A própria editora justifica assim a plas-
cosacnaify.com.br>.
ticidade da obra: “Para acompanhar a prosa seca e contundente do autor, a edição
brasileira ganhou projeto gráfico radical: sem capa, com a ‘orelha’ despregada do
miolo, tudo envolto num invólucro plástico.” O projeto gráfico é assinado novamente
por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio.

Figura 8 – Flores, A sexta obra editada pela Coleção Particular é Museu do romance da Eterna
Mario Bellatin.
(fig. 9), do escritor argentino Macedonio Fernández, lançada no ano de 2010. A obra
Fonte: <editora.
cosacnaify.com.br>. foi publicada em seu país de origem em 1967, quinze anos após a morte de seu au-
tor. Inédita no Brasil, a narrativa possui um caráter de “inacabada”, que é explorado
no livro pelo projeto gráfico desenvolvido por Elaine Ramos, com páginas de refile
irregular e o texto verbal espalhado por partes do livro que tradicionalmente não o
recebem, como a capa e as guardas.

32 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


Figura 9 – Museu
do romance da
Eterna, Macedonio
Fernández.
Fonte: <editora.
cosacnaify.com.br>.

Por fim, a sétima e mais recente obra da coleção é Avenida Niévski (fig. 10), de
Nikolai Gógol, publicada em 2012. O conto já havia sido editado no Brasil em versão
bilíngue russo-português pela editora Ars Poetica. Na edição da Cosac o livro é ilus-
trado com gravuras reproduzindo a avenida ao longo de toda sua extensão e o texto
verbal está dividido em dois blocos espelhados, em uma alusão ao fluxo de passantes
por ambos os lados da via que dá nome à obra. A edição é acompanhada pelas No-
tas de Petersburgo de 1836, crônica publicada pela primeira vez no Brasil. Os dois
volumes vêm embrulhados em um papel que simula um jornal russo da época. O
projeto gráfico é de Elaine Ramos e Gabriela Castro.

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 33


Figura 10 – Avenida Pelo próprio colocar em seu site oficial as fotografias dessas obras, a editora in-
Niévski, Nikolai
dica o destaque dado aos projetos gráficos em sua coleção. Apreciar tais projetos
Gógol.
Fonte: <editora. ou, mais especificamente, apreciar o livro como um todo, sincreticamente, trata-se
cosacnaify.com.br>.
de um desenvolvimento pessoal a nível de gosto. O leitor, quando dotado de certa
competência estésica, põe-se por meio de sua própria sensibilidade como um con-
templador ou um degustador disposto a avaliar as qualidades desses objetos e não
somente isso, mas também a fruir essas obras, considerando-as efetivamente como
sendo também sujeitos plenamente competentes.
Explicitar o destaque dado ao design nessa coleção é uma ação retomada várias
vezes pela editora, tanto em sua página, como em sua loja virtual ou em seu blog.
Na ocasião do lançamento do terceiro título da coleção, por exemplo, a editora dis-
ponibilizou um hotsite especial onde tratava de A fera na selva. A preocupação com
o design de cada obra e com o tratamento sincrético para cada edição é enfatizada
no discurso da editora, conforme destacado no fragmento a seguir: “A coleção se
caracteriza por estabelecer uma estreita sintonia entre as equipes de arte e produção
gráfica e os editores de texto. Esforço combinado para proporcionar ao leitor mais
que uma aventura literária, uma experiência sensorial.” (COSAC NAIFY, 2013).
Se essa coleção é aqui tomada como corpus representativo da editora, é porque
em suas escolhas enunciativas ela sintetiza muitas das características fundamentais da
própria empresa englobante. Os traços semânticos da editora estão todos ali presentes:
o investimento em design, o caráter de vanguarda, a ruptura com as normas, o alto
fator de experimentação e, sobretudo, um forte interesse pelo que é um livro, pelos
modos de degustar o livro (sua história, seu processo produtivo, sua materialidade).
Enfim, o apreciar o livro por toda sua sensorialidade está posto, discursivamente, nos
projetos gráficos da Coleção Particular e, por metonímia, na editora que a publica.
A figura retórica metonímia é designada por Greimas e Courtés (2011, p. 311)
como “o fenômeno linguístico segundo o qual uma dada unidade frasal é substituída

34 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


por outra unidade que está a ela ‘ligada’ (numa relação de continente e conteúdo, de
causa e efeito, de parte e todo, etc.)”. Nesse fenômeno de substituição verificado na
estruturação da Coleção Particular, os projetos gráficos das sete obras selecionadas
equivalem semanticamente ao todo dos projetos gráficos da editora. As escolhas
realizadas no design desses livros são seleções que revelam a experimentação, a
vanguarda e a apreciação do livro, marcando o próprio modo de ser da editora.
A Coleção Particular então evidencia a exploração das qualidades materiais do
livro impresso, jogando com escolha de papéis, processos de impressão, dobras, cos-
turas, acabamentos, ilustrações, etc. Percebe-se prontamente que, entre os títulos da
coleção, não há um padrão de repetição explícito entre os projetos gráficos dessa
coleção, já que eles são desenvolvidos individualmente para cada texto verbal. Se
não há um único projeto gráfico que é adaptado a cada livro, o que faz da coleção
uma totalidade? Há certamente algumas escolhas enunciativas que são reiteradas
nos projetos gráficos, a princípio independentes entre si, desse conjunto de obras que
permitiriam considerá-las como partes de um todo coerente, ou seja, como partes
de uma mesma coleção cuja identidade se reflete na identidade da própria editora.
Para uma primeira aproximação a essa identidade da coleção, é fundamental nos
deter um instante sobre o título dela. Segundo divulgado pela editora em sua pági-
na, “o próprio nome da coleção é emprestado do título publicado pela editora em
2005, uma reunião de dois textos do francês Georges Perec” (COSAC NAIFY, 2013).
Assim, o nome da coleção remete imediatamente ao livro A coleção particular, de
Perec, lançado em janeiro de 2005. Essa obra reúne dois escritos diferentes do autor
francês: a novela “A coleção particular [história de um quadro]” e o conto “A viagem
de inverno”. Georges Perec, escritor nascido em Paris, escreveu desde relatos auto-
biográficos a poesia e romances experimentais, tendo participado do grupo literário
Oulipo, do qual faziam parte Italo Calvino e Raymond Queneau (Zazie).
A coleção particular de Perec trata de um quadro homônimo (fictício, vale ressal-
tar) feito sob encomenda para Humbert Raffke, um alemão que conseguiu fazer for-
tuna como cervejeiro na América. Colecionador de arte e mecenas de vários artistas,
Raffke decide imortalizar sua coleção ao figurá-la em uma obra pictórica. “A coleção
particular”, o quadro, toma três anos e meio de trabalho do pintor Heinrich Kürz,
que faz mais de 1300 desenhos, rascunhos e esboços para determinar os elementos
do quadro e suas posições. A pintura final apresenta uma sala retangular, sem janelas
nem portas, cujas paredes estão totalmente cobertas de quadros. Em primeiro plano,
à esquerda, o colecionador Raffke é retratado, sentado em uma poltrona, admirando
sua coleção. “Mais de cem quadros estão reunidos nessa única tela, reproduzidos

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 35


com uma fidelidade e uma minúcia tais que não nos é possível descrever a todos
com precisão” (PEREC, 2005, p. 15). O quadro que Raffke observa no centro da tela
é, no entanto, uma reprodução do próprio “A coleção particular”, que mostra o cole-
cionador sentado em seu gabinete vendo o quadro que o representa admirando sua
coleção e assim sucessivamente, em uma estrutura de mise en abyme. A novela passa
a tratar então da repercussão que o quadro ganha quando é exposto, da formação da
coleção de Humbert Raffke e da obra do pintor Kürz.
Dois temas principais são explorados na narrativa: o colecionismo e a arte. O
primeiro é retomado através das várias listas de dados relativos à coleção formada
pelo abonado cervejeiro. O segundo tema é explorado nos modos de funcionamento
do mercado de arte que figuram na narrativa (leilões, especialistas, etc.) e nos pró-
prios quadros dispostos na pintura-título.
Esses dois temas são fundamentais na coleção de livros que a editora Cosac Nai-
fy organiza. Por meio das obras, a Cosac auxilia os leitores a estabelecerem critérios
para formar suas próprias coleções, além de várias dessas obras retomarem aspectos
do colecionismo. Além disso, os livros da Coleção Particular também se relacionam
com diversas artes, como a própria literatura e as artes visuais, tanto por meio do
sistema verbal quanto pelo design das publicações. E, como veremos, essa coleção
também propõe uma apreciação estética dos projetos de design, tal qual a apreciação
estética de uma obra de arte.
Porém, ademais de uma relação óbvia com o livro homônimo editado em
2005, há na nomeação da coleção efeitos de sentido próprios decorrentes dos
termos “coleção” e “particular”. Vamos nos deter agora sobre a questão do ato de
colecionar e o estatuto semiótico de uma coleção, bem como nos efeitos de sentido
do próprio termo “particular” que se opõe a uma ideia de generalidade. Desse modo,
pretendemos alcançar alguns procedimentos reiterados nesses projetos gráficos, que
constituem uma panorâmica inicial da Coleção Particular.

2.3 Sentidos da coleção

Um aspecto relevante quando se pensa o livro é a sua característica de ser colecionável


e de constituir coleções. Sejam os leitores ou bibliófilos, com suas coleções pessoais,
sejam as editoras, com suas propostas de coleções, parece que organizar os itens em
conjuntos e subconjuntos é inerente ao ato de apreciar e/ou de produzir livros.

36 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


Colecionar é um hábito que sempre fez parte da história humana. Segundo Blom
(2003), na Roma antiga, por exemplo, colecionava-se obras de arte grega, mas a cul-
tura de colecionadores desapareceu com o império. Já durante a Idade Média, alguns
príncipes e governantes colecionavam vasos de luxo, joias e objetos, como chifres de
unicórnios (narvais) e outras criaturas das lendas. Até o século XVI, porém, colecio-
nar manteve-se um privilégio da nobreza, cujos interesses se davam em objetos que
fossem belos e preciosos, para aumentar sua fortuna e poder. Os príncipes colecio-
navam cerâmicas finas, tesouros, etc. (BLOM, 2003).
Somente a partir do século XVI é que a prática se popularizou: uma explosão de
atividade científica e colecionadora iniciou-se na Itália e, posteriormente, chegou ao
restante da Europa. Muitas cidades italianas, nessa época, tinham seus grandes cole-
cionadores. Para Blom (2003, p. 31), as coleções eram “instrumentos de erudição e
consolidação de conhecimentos enciclopédicos”. Entre os vários itens colecionados,
destacam-se: dragões ressecados, aves empalhadas, ovos coloridos, etc.
Após a descoberta da América, e juntamente com o crescente espírito científico
do Renascimento na segunda metade do século XVI, as coleções mudaram um pou-
co seu caráter. Deixaram de ser meras demonstrações de fortuna e passaram a ser
uma representação do mundo como ele parecia aos sujeitos àquela altura. Segundo
Blom (2003, p. 36), foi nesse período que as coleções de naturalia, de animais, plan-
tas e minerais, multiplicaram-se pela Europa, cada uma constituindo uma espécie de
enciclopédia da natureza. Colecionar tornou-se popular mesmo entre pessoas sem
grandes recursos ou ambições intelectuais. A admiração por coisas exóticas colori-
das estabeleceu-se e o armário de curiosidades tornou-se moda nas casas burguesas
holandesas. A citação a seguir explicita bem esse caráter de exotismo que estava em
voga nas coleções de então:

Os gabinetes de curiosidades dos séculos XVII ao século XVIII tinham sido


cheios de objetos e criaturas extraordinárias, fora da ordem das coisas. O objeti-
vo final desse projeto tinha sido fazer perguntas e ampliar o tipo de conhecimen-
to do mundo existente no Ocidente; dragões e sereias, tatus e baiacus, cocares
indígenas e sapatos esquimós, tudo apontava para um mundo maior do que o
conhecido, para uma realidade muito além do que se julgava possível. As classifi-
cações tinham um caráter anedótico e incerto, e, se não eram inventadas ao vivo,
surgiam com igual presteza tanto a partir de Plínio como de pescadores locais.
O que importava era a maravilha de cada objeto, uma contestação material das
supostas limitações do mundo conhecido. (BLOM, 2003, p. 109-110).

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 37


Pouco a pouco, a partir do Iluminismo e do surgimento das academias, os es-
tudiosos passaram a adotar formas mais metódicas de abordar o mundo material,
montando coleções mais especializadas. A ambição de colecionar tudo o que era
“digno de nota”, norma entre os gabinetes de curiosidades, deu vez a uma divisão
de disciplinas e, dentro delas, um novo projeto aparecia: a classificação racional e a
descrição absoluta da natureza e da arte. (BLOM, 2003). Colecionar a totalidade do
mundo era visto então como impossível, e a sistematização das partes do mundo a
serem descritas por cada coleção passou a ser privilegiada.
Se imaginamos uma categoria semiótica formada pelos termos /todo/ e /parte/
ou /total/ e /parcial/, vemos que o ato de colecionar não se apóia exclusivamente em
nenhum desses dois termos. Mais bem, a coleção é um termo complexo, formado
tanto pela totalidade quanto pela parcialidade. Se, por um lado, o /todo/ é um univer-
sal de obras e de peças que nunca será alcançado pelo colecionador, pois se trata do
mundo inteiro, e ninguém é “dono do mundo”, por outro lado, considerar a coleção
como apenas uma /parte/ também não é verdadeiro. Afinal, uma coleção pode ser
um conjunto fechado de elementos escolhidos por um colecionador e ser assim, em
si mesma, uma totalidade: todas as peças da coleção de determinado sujeito. Para o
colecionador, a relação entre totalidade e parcialidade é sempre complexa.
Pensar na bibliofilia, na paixão por colecionar livros, traz um novo sabor para a
reflexão sobre o ato de colecionar. De acordo com Blom (2003, p. 228-229):

Colecionar livros é uma atividade multifacetada. Talvez seja a forma mais rica e
mais ambígua de colecionar. Há os que tratam os livros simplesmente como ob-
jetos, e que os abrem apenas para conferir o lugar e a data da impressão, a edição,
a qualidade do papel e o tipo de letra. Podem colecionar primeiras edições, ou
todos os títulos publicados por um determinado editor ou escritos por deter-
minado autor, ou livros impressos em Würzburg ou Oxford no século XVI, ou
livros encadernados numa determinada gráfica de Paris, ou encadernados em
marroquim, ou livros com encadernações expressionistas, ou livros azuis, livros
pequenos, livros grandes, ou exemplares raros não cortados.

O ato de colecionar livros remonta à própria história dos livros: já entre os


sumérios, povo que desenvolveu a escrita, encontramos uma espécie de bibliófilo da
Antiguidade, o rei Assurbanipal da Assíria. Segundo Fischer (2006, p. 25), Assurba-
nipal possuía cerca de 25 mil tabuletas gravadas em argila (o “livro” de então). Ele era
capaz de ler, algo raro na época, mesmo para um rei. Assurbanipal designava agentes

38 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


a todos os cantos da Mesopotâmia, que procuravam tabuletas para a biblioteca de
seu palácio. Possuía principalmente escritos cerimoniais, de astrologia, presságios
e palavras de feitiçaria, mas também obras de matemática, medicina, astronomia,
poesia épica, canções, cânticos, dicionários, etc. (FISCHER, 2006, p. 25).
Colecionar livros, porém, sempre foi uma atividade que também estava profun-
damente ligada às dinâmicas entre o parcial e o total que permeavam o fazer de to-
dos os colecionadores. O sonho de uma biblioteca universal, que possuiria todas as
obras escritas do mundo, vem sendo continuamente reimaginado desde a tentativa
realizada na grande biblioteca de Alexandria. Como expõe Chartier (1998, p. 117):

Confrontadas com a ambição de uma biblioteca onde estivessem todos os tex-


tos e todos os livros, as coleções reunidas por príncipes ou por particulares são
apenas uma imagem mutilada e decepcionante da ordem do saber. O contraste
foi sentido como uma frustração. Essa levou à constituição de acervos imensos,
à vontade das conquistas e confiscos, a paixões bibliófilas e à herança de porções
consideráveis do patrimônio escrito.

Frente a essa impossibilidade de universalidade, as coleções de livros propostas


pelas editoras surgem como paliativo. A estruturação dos livros em coleções, bem
como os catálogos de publicações que estabeleciam, em certa medida, a identidade
da editora (ou sua linha editorial, para utilizar o jargão do meio), são inovações
que datam do início do século XVI, atribuídas ao célebre editor e tipógrafo venezia-
no Aldo Manuzio. (SATUÉ, 2004). Nesse período histórico, entretanto, livros ainda
eram artigos raros e caríssimos.
Os livros só passaram a ser um produto mais acessível quando o processo pro-
dutivo dos livros ficou mais veloz, logo depois da revolução industrial. A partir de
1830, a produção do livro acelerou-se com a industrialização de seus vários pro-
cessos: a impressão, a fabricação do papel, a encadernação e depois a composição.
(CHARTIER, 1998). Os livros ficaram mais acessíveis e, portanto, mais facilmente
colecionáveis. Mas esse processo não aconteceu exclusivamente com os livros: esten-
deu-se a uma grande quantidade de objetos.
Com a revolução industrial e a produção em massa, quando, a partir de então,
se fala também em design, surgiu a ideia de um “conjunto completo”, de uma “série
inteira”. Antes desse momento na história, os colecionadores de arte, de objetos natu-
rais, de moedas ou mesmo de livros, não poderiam esperar nunca alcançar a inte-
gralidade. Como afirma Blom (2003, p. 185): “Não havia conjuntos completos de

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 39


esculturas gregas, séries completas de flores exóticas, nenhuma ave do paraíso a ser
adquirida para completar a coleção, nenhum desenho final de Rafael para encerrar o
assunto. Colecionar era, pela própria natureza, algo sempre em aberto.” A produção
em massa, industrializada, mudou essa maneira de lidar com as coleções.
Frente a uma agora infinidade de objetos e de livros produzidos industrialmente
e de um acesso mais fácil a esses produtos, selecionar o que virá a ser colecionado
se faz fundamental para qualquer sujeito colecionador. O caráter de seleção é forte-
mente presentificado nas coleções de livros. Jean Lebrun, em conversa com Char-
tier (1998, p. 127), comenta: “Um bom leitor é alguém que evita um certo número
de livros, um bom bibliotecário é um jardineiro que poda sua biblioteca, um bom
arquivista seleciona aquilo que se deve refugar ao invés de armazenar.” Selecionar
um conjunto restrito de obras frente à universalidade dos livros é também, assim,
atribuir sentido.
Nessa linha de raciocínio, a organização das publicações segundo coleções, tal
qual propusera Manuzio no Cinquecento, pode ser útil tanto na ordenação interna
da própria editora quanto na percepção de seus leitores, no momento de selecionar
e agrupar suas obras. É o que propõe Plinio Martins: “A finalidade das coleções é
ajudar o leitor a orientar-se em sua curiosidade bem como a organizar seu próprio
acervo bibliográfico, pois o caráter flexível desses conjuntos permite a consulta aos
livros da editora segundo, por exemplo, o critério da divisão por área.” (FILHO, 1998,
p. 51-52). No enfrentamento da universalidade das obras publicadas, as coleções
auxiliam editoras e leitores em seus processos de selecionar as obras que interessam,
facilitando assim a “poda” das suas bibliotecas.
Ao estruturar uma coleção, cada editora pode enfatizar ou relativizar o grau de
pertencimento de cada obra a um dado conjunto. Um projeto gráfico regular para
todos os livros de uma coleção, por exemplo, com o mesmo tamanho, tipografia e
estilo gráfico, fará com que cada publicação seja fortemente percebida como perten-
cente àquela dada coleção. Ao contrário, vemos como as obras da Coleção Particular
relativizam, em muitos aspectos, o caráter de pertencimento, principalmente ao não
repetir algumas das escolhas figurativas mais óbvias: formato, material, encaderna-
ção, tipografia e diagramação. Ainda assim, enfatizam o pertencimento à coleção
através de certos procedimentos enunciativos menos óbvios, os quais serão aponta-
dos mais adiante.
A partir do momento em que se observa a coleção como uma combinação
de elementos, não há outro caminho a não ser o de considerá-la, dentro da teoria

40 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


semiótica, como um eixo sintagmático. Greimas e Courtés (2011, p. 469) assim ex-
plicam o sintagma:

Designa-se pelo nome de sintagma uma combinação de elementos copresentes


em um enunciado (frase ou discurso), definíveis, não apenas pela relação do
tipo “e... e” que permite reconhecê-los, mas também por relações de seleção ou
de solidariedade que mantêm entre si, bem como pela relação hipotáxica que os
liga à unidade superior que constituem. Os sintagmas são obtidos pela segmen-
tação da cadeia sintagmática, sendo que o estabelecimento das relações entre as
partes e a totalidade tem o efeito de transformar essa cadeia numa hierarquia
sintagmática.

Sendo a coleção uma combinação de livros, ela é então interpretada como uma
cadeia, em que cada posição é ocupada por um livro específico. Essa seleção de qual
obra ocupará cada espaço na cadeia é uma escolha da ordem do eixo paradigmático,
definido por relações do tipo “ou... ou”: ou esse livro, ou outro. Os livros são, desse
modo, grandezas copresentes em uma mesma cadeia. Porém, cada um deles é tam-
bém constituído por um novo eixo sintagmático, composto pela combinatória das
diversas partes do livro (capa, frontispício, índice, páginas textuais, etc.). A maneira
como cada parte do livro é enunciada, “ou dessa forma ou dessa outra”, é também
uma escolha paradigmática e diz respeito à atuação não somente do autor do livro,
mas também dos designers, editores, etc. A sintagmática das coleções e dos livros
surge como uma hierarquia relacional, disposta em vários níveis.

C1

L1 L2 L3 L4 ...
Esquema 2 –
Sintagma de uma
coleção de livros.

No diagrama (esquema 2), vemos como o eixo sintagmático da coleção (C1)


está composto pelos vários livros-sintagmas (L1, L2... e assim sucessivamente por
qualquer quantidade de livros que componha a coleção analisada) e como cada
livro apresenta em si também uma nova cadeia composta pelas suas diversas partes
constituintes. E as coleções, por sua vez, quando em um conjunto, são também cada

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 41


uma delas uma parte de um eixo sintagmático superior que podemos considerar
como sendo o da própria editora.
A vantagem de visualizar as coleções desse modo é o de perceber a importância
da combinatória. O sentido da coleção não é simplesmente a adição dos sentidos
individuais de cada livro que a compõe, mas sim um sentido outro, advindo das
relações que essas obras mantêm entre si, relações que visamos desvelar no desen-
volvimento desta pesquisa.

2.4 Sentidos do particular

Partindo da denominação dada à coleção, Particular, percebe-se como a escolha


dessa palavra foi um procedimento de grande intencionalidade. Verificando no di-
cionário, encontramos os seguintes significados:

Particular adj. – 1 próprio de determinados seres vivos, pessoas ou coisas; pe-


culiar (o voo é uma capacidade p. das aves) 2 próprio ou de uso exclusivo de
alguém; privativo, privado (praia p.) 3 fora do comum; extraordinário, raro,
singular (inteligência p.) 4 restrito, reservado a quem de direito; confidencial,
íntimo, pessoal (correspondência p.) 5 feito com toda atenção; meticuloso, por-
menorizado (investigação p.) 6 LÓG que não se aplica a todos os indivíduos de
uma espécie, apenas a alguns. s.m. – 7 o que é raro, singular (partiu do geral
para o p.) 8 assunto ou ocasião especial (sobre esse p. não há acordo) 9 um
indivíduo qualquer (pediu informações a um p.) 10 característico da natureza
de cada pessoa; mania, singularidade 11 conversa reservada (teve um p. com o
irmão para desabafar). (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS DE LEXICOGRA-
FIA, 2009, p. 1439).

Nota-se que de fato o sentido de particular, principalmente enquanto algo fora


do comum, extraordinário, feito com atenção, meticuloso, ou até mesmo restrito e
reservado a quem de direito (aos que possuirão a competência necessária para fruir
de tal particularização) é um dos efeitos de sentido produzidos por esses projetos
gráficos. A característica de ser próprio de uma determinada unidade, ou seja, de
uma singularidade, está também presentificada nas sete obras.

42 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


Ao escolher o termo particular para designar sua coleção, a editora deixa inten-
cionalmente de fora da gama de sentidos atribuídos a suas obras justamente aqueles
sentidos que remetem ao seu oposto, ou seja, ao termo geral. Novamente o dicionário
nos lança uma luz sobre a palavra:

Geral adj. 1 que se aplica a um conjunto de casos ou de indivíduos (assembleia


g.) (buscar o bem g.) 2 que abrange a totalidade ou a maioria de um conjunto
de coisas ou pessoas (o desejo g. da população) (greve g.) 3 universal, genérico
(princípio g.) 4 não específico ou definido; superficial, vago (deu-nos uma visão
g. do ocorrido) 5 considerado em toda a sua extensão (história g.) (geografia
g.) 6 o maior número, a maior parte; generalidade, maioria (o g. da população
não se alimenta adequadamente) 7 o que é corriqueiro, normal; comum (o g.
é a casa possuir duas entradas) 8 o que é estabelecido como padrão; usual, co-
mum (uma inteligência acima do g.) 9 o que não se atém a uma especialidade;
universal (do particular para o g.) [...] (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS DE
LEXICOGRAFIA, 2009, p. 966).

Trata-se não mais do próprio, do exclusivo, mas do universal, da totalidade ou


ao menos da maioria. Todos esses sentidos apontados como genérico, superficial e
corriqueiro são justamente os que estão entendidos como opostos ao que significa
ser uma Coleção Particular, justamente pelo ato de nomeação da coleção.
Caminhamos assim a uma proposta de quadrado semiótico. Segundo Barros
(2008, p. 89), o quadrado semiótico é: “o modelo lógico de representação da estru-
tura elementar, que a torna operatória. No quadrado representa-se a relação de con-
trariedade ou de oposição entre os termos e, a partir dela, as relações de contradição
e de complementaridade.” Dado quadrado ajuda-nos a compreender quais valores
estão sendo postos em discurso no ato de nomeação da coleção analisada.
A operação da contradição advém da impossibilidade que têm dois termos de se
apresentarem juntos. Se particular é algo fora do comum, seu termo contraditório
seria justamente o comum, pois não há possibilidade de ser um e outro ao mesmo
tempo, comum e fora do comum. Cabe, então, mais uma definição do léxico:

Comum adj. 1 relativo ou pertencente a dois ou mais seres ou coisas (era nosso
amigo c.) (interesses c.) (palavras c. a várias línguas) 2 que é usual, habitual (o
ano c. tem 365 dias) (faltavam-lhe os conhecimentos mais c.) 3 que se caracteriza
pela simplicidade (roupas c.) 4 fig. pej. que não possui nenhuma elevação ou

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 43


valor; reles, ordinário, insignificante (era um sujeitinho c.) [...] 7 aquilo que é
corriqueiro, habitual, ordinário (o c. é dormir à noite). (INSTITUTO ANTÔNIO
HOUAISS DE LEXICOGRAFIA, 2009, p. 508).

Enquanto o geral é referente a um conjunto, a uma totalidade, seu contraditório


(não-geral) seria justamente aquilo que não se refere nem a conjunto nem a totali-
dade, a saber, o específico. Sua definição, também segundo o dicionário da língua
portuguesa, é: “Específico adj.1 próprio de uma espécie, peculiar 2 destinado ou per-
tencente exclusivamente a um indivíduo ou a um caso, uma situação; especial, ex-
clusivo, próprio” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS DE LEXICOGRAFIA, 2009,
p. 814). Temos, assim, os quatro termos que compõem um quadrado semiótico.

PARTICULAR GERAL
Fora do comum Genérico
Próprio, exclusivo Universal, total
EXCEPCIONAL

NORMAL
Esquema 3 – ESPECÍFICO COMUM
Quadrado semióti- Não-geral Não-particular
co elaborado a Um caso, uma situação Usual, habitual
partir do termo
/particular/.

No diagrama (esquema 3) está representado esse quadrado proposto. É interes-


sante notar o aparecimento das duas dêixis, a do excepcional (que foge às normas,
englobando o particular e o específico) e a do normal (que segue as normas, englo-
bando o geral e o comum). Aqui tomamos emprestados os termos excepcional e
normal de um quadrado semiótico similar que Omar Calabrese (1988) formulou a
partir dos termos opostos singular e regular, quadrado que, apesar de algumas seme-
lhanças, possui um objetivo distinto e, portanto, não poderia ser utilizado em sua
totalidade. O par de termos excepcional e normal, no entanto, serve perfeitamente
às posições das dêixis do quadrado aqui formulado.
Ainda considerando o quadrado semiótico aqui proposto, percebe-se como a
relação vista entre o específico e o particular, bem como a relação entre o comum

44 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


e o geral é, dessa forma, uma relação de implicação: um termo pressupõe o outro.
No contexto das publicações da Cosac Naify, entendemos que há algo de específico
em cada uma das obras literárias selecionadas, e essa especificidade é explorada na
criação de projetos gráficos particulares, conforme a nomeação “Coleção Particular”
nos indica. Esse particular da coleção opõe-se à generalidade das demais obras do
mercado editorial brasileiro.
É claro que um quadrado semiótico como esse precisa sempre ser posto a prova
em cada objeto analisado. Dependendo do grau de variabilidade de posições da
situação analisada, possivelmente a forma de quadrado se converteria em elipse.
Como o quadrado foi montado puramente a partir dos conceitos dicionarizados
de seus termos, ainda abstratos, a rigidez do quadrado nos vale para essa reflexão
inicial. Trata-se aqui, no caso, de um modelo propositivo que nos permita prever
que operações podem vir a ser realizadas em um contexto de enunciação em que
a editora nomeia sua própria coleção como particular. A escolha desse nome não
exclui todas essas implicações semânticas, e mesmo de valor, do termo utilizado.

2.5 Questões identitárias

Tratar a coleção como representativa da identidade da editora, ou mesmo como


dotada de uma identidade própria, pode apresentar alguns problemas relativos à
ideia de “identidade”. Se é certo que as grandes empresas buscam sempre construir
discursos identitários coesos para que sejam facilmente reconhecidas pelo seu públi-
co, o conceito mesmo de identidade é bastante complexo e deve sempre ser encarado
com desconfiança. Definir o que é identidade, ou ainda definir os traços identitários
específicos de algum determinado grupo social, é tarefa dificílima.
De acordo com Pinheiro (2006, 2009), na ciência ocidental, a “ciência do uno”, a
identidade sempre se opõe à diferença. Há a identidade, una e absoluta, e a alteridade
em contraposição. O lado de fora, o externo, é sempre um lugar estranho, pois é o
lugar do outro, da alteridade, e o outro é sempre problemático. É muito difícil con-
viver com a variação e essa dificuldade é uma condição do homem no mundo. Pela
lógica binária do conhecimento clássico, há uma dicotomia entre a identidade e a
diferença. Essa dicotomia é claramente problemática, pois a lógica binária configura
um emparedamento entre um e dois; eles estão sempre em oposição, um determina
o dois. (PINHEIRO, 2006, 2009).

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 45


Para Viveiros de Castro (2008), é perigoso insistir nas relações como sendo iden-
titárias, pois, ao enfatizar a diferença, temos guerra e destruição. Nessa lógica, frente
à diferença, as únicas formas de relação passam a ser a assimilação ou a destruição.
Sobre essa problemática, Viveiros de Castro (2008, p. 217) expõe o seguinte:

Antigamente se imaginava que primeiro existiam as identidades e então as


relações; agora se diz que ‘as identidades são relacionais’, como se as relações
existissem para produzir as identidades. Não se progrediu muito, pois tudo con-
tinua existindo apenas para terminar em uma identidade. [...] É claro que as
relações produzem, entre outras coisas, identidades. Mas não devemos imagi-
nar que as relações existam para produzir identidades, que esse é seu telos, seu
objetivo, sua finalidade. (Como se toda diferença quisesse “no fundo” ser uma
identidade.)

A ênfase nas relações identitárias levou a extremos de separação entre o “eu” e


o “outro”, como no holocausto ou na dizimação dos índios nas Américas. Essa visão
não é exclusiva dos antropólogos: o semioticista Eric Landowski (2002) também tra-
ta das relações identitárias entre os grupos sociais com certa preocupação. Ele parte
do pressuposto de Saussure de que só se identificam unidades pela observação das
diferenças que as interdefinem e afirma que com os sujeitos acontece o mesmo: eles
só se constituem em sua existência semiótica por meio da diferença em relação a um
“ele” (uma alteridade). Os grupos de referência, grupos sociais dominantes, podem
assumir diferentes posturas em relação a esse “outro”. Para Landowski (2002), duas
das atitudes mais preocupantes são a assimilação e a exclusão.
Na assimilação, o outro é aceito desde que se comporte como um “eu”. O outro é
desqualificado enquanto sujeito, pois deve abandonar suas crenças e visões de mun-
do para ser acolhido pelo grupo dominante. Já na exclusão, há uma negação do outro
enquanto tal, pois a alteridade é vista como ameaça, deve ser mantida afastada e não
acolhida. Ainda segundo Landowski (2002, p. 10), assimilação e exclusão são “duas
faces de uma única e mesma resposta à demanda de reconhecimento do desseme-
lhante: ‘tal como se apresenta, você não tem lugar entre nós’.”
Mas essa heterogeneidade fortemente marcada entre os diferentes grupos sociais
também pode dar lugar a posturas menos unívocas, a meio-termos: a segregação e
a admissão. Esta última é apresentada como um gesto de abertura, de aceitação ao
outro, pintada, portanto, de cores mais alegres no texto de Landowski. Vemos assim

46 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


uma abordagem semiótica que exemplifica as dificuldades que permeiam a noção
de identidade.
Nos grupos sociais e na vida vivida, vemos que em realidade as distinções não
são sempre, pois, absolutas. Há gradações, posturas diferentes entre um grupo e ou-
tro, de modo que as identidades sociais não são sempre tão fortemente demarcadas.
As empresas, porém, estão inseridas em um outro contexto. No meio empresarial, a
tendência é querer sistematizar, racionalizar cada vez mais a vida cotidiana, demar-
cando as diferenças entre uma e outra empresa, até mesmo como estratégia merca-
dológica. A ordem econômica que rege o processo de produção cultural aprova uma
sistematização, pois promove a ordenação de que o capitalismo necessita para preva-
lecer. Para uma empresa, as concorrentes devem ser dizimadas (“excluídas”, segundo
as proposições de Landowski) ou tornarem-se aliadas (“assimiladas”).
A separação absoluta entre a identidade de uma empresa e sua alteridade, ou
seja, seus concorrentes, é o mecanismo capitalista por excelência e vem se se tor-
nando cada vez mais evidente no mercado global. Para Lipovetsky e Serroy (2011),
o capitalismo tornou-se, em uma escala mundial, o esquema organizador de toda a
atividade humana, o modelo geral das formas de agir e da vida em sociedade. Segun-
do os autores, há uma lógica de mercado que se estende por toda a produção cultural
humana, recobrindo o globo no processo de configuração de uma “cultura-mundo”
que obedece a interesses econômicos vigentes. Essa cultura não é mais um conjunto
de normas herdadas do passado e da tradição (uma cultura “antropológica”, por as-
sim dizer), mas sim um setor econômico em plena expansão. Esse posicionamento é
explicitado na seguinte passagem:

A cultura – dos programas audiovisuais ao patrimônio, da edição à informação


– é pensada em termos de mercado, de racionalização, de montantes de negócios
e de rentabilidade. À antiga disjunção cultura/comércio sucedeu uma lógica de
anexação da cultura pela ordem mercantil, instituindo uma verdadeira econo-
mia cultural transnacional. (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 25).

A editora Cosac Naify está imersa nesse mundo em que os fatores econômicos
são imperativos. E é por isso que podemos falar em uma “identidade” de coleção e
de editora quando abordamos a Coleção Particular. Por serem produtos culturais
inseridos em uma lógica mercadológica, faz sentido que queiram asssumir uma
identidade própria, una, facilmente identificável e que os diferencia de seus concor-

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 47


rentes. Assim, diferente da identidade dos homens, que é sempre complexa, mutável,
inconstante, as empresas se esforçam para estabelecerem para si mesmas e para seus
produtos alguns traços de reconhecimento que permitam a seu público identificar
uma identidade específica. O que é regularmente identificado é mais fácil de ser
vendido como verdade.
Parte essencial desse processo de identificação é diferenciar-se dos concorrentes,
das demais empresas, apresentando-se como singular (ou particular). Sobre esse as-
pecto, Lipovetsky e Serroy (2011, p. 72) comentam:

Por ser destinada ao consumo mercantil, a cultura de massa deve renovar cons-
tantemente a sua oferta, com produtos que, mesmo que não escapem a fórmu-
las-padrão, devem apresentar-se como singulares: é uma lógica da diversificação
e da renovação permanente, uma lógica da novidade e da obsolescência acelera-
da que comanda as indústrias culturais.

As publicações da Cosac Naify compartilham essa lógica de mercado em que a


singularidade e a diferenciação são critérios de atração para os produtos culturais.
Embora os livros da Coleção Particular dificilmente possam ser enquadrados no ter-
mo “cultura de massa”, tampouco são obras artesanais ou experimentações inocentes
8 Nas edições a que sem fins lucrativos. As tiragens de suas edições8 indicam que o processo produtivo
tivemos acesso, as
desses livros é um processo industrial e que, mesmo longe da altíssima tiragem de al-
tiragens variavam
de 2.000 (Primeiro guns best-sellers, não deixam de obter resultados comercialmente relevantes no mer-
amor e Avenida
cado nacional brasileiro. Muito desse resultado advém da apresentação dos livros
Niévski) a 10.000
(Zazie no metrô) como produtos culturais singulares, como bem-vindas renovações da oferta editori-
exemplares.
al padrão. Essa apresentação é parte fundamental do discurso identitário da editora.
A identidade, então, é uma criação construída a partir dos discursos cuidadosa-
mente planejados como forma de posicionamento da empresa. Os traços identitários
da Cosac Naify, e das organizações em geral, podem ser encontrados a partir da
verificação das isotopias e das reiterações.
O conceito de isotopia se define como: “a recorrência de categorias sêmicas, quer
sejam essas temáticas (ou abstratas) ou figurativas” (GREIMAS e COURTÉS, 2011,
p. 276). Fiorin retoma essa ideia a partir do desenvolvimento teórico de Greimas e
assim explica as isotopias:

O que dá coerência semântica a um texto e o que faz dele uma unidade é a reite-
ração, a redundância, a repetição, a recorrência de traços semânticos ao longo do

48 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


discurso. Esse fenômeno recebe o nome de isotopia. [...] Em análise do discurso,
isotopia é a recorrência de um dado traço semântico ao longo de um texto. Para
o leitor, a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o tex-
to. (FIORIN, 2011, p. 112-113).

No presente trabalho, levamos em consideração não apenas um texto, mas um


conjunto de textos-livros que em suas relações configuram a coleção. As reiterações,
por sua vez, são as diferentes retomadas ao longo de determinada manifestação (ou
conjunto de manifestações) da iteratividade. “A iteratividade é a reprodução, no eixo
sintagmático, de grandezas idênticas ou comparáveis, situadas no mesmo nível de
análise” (GREIMAS e COURTÉS, 2011, p. 278).
Percebemos nas edições das obras da Coleção Particular algumas escolhas enun-
ciativas que são reiteradas, das quais quatro percebidas inicialmente estão descritas
a seguir. São escolhas que tratam principalmente, mas não só, dos projetos gráficos
dos sete livros. Certamente, não são as únicas que se repetem nas obras. Para uma
abordagem inicial, ajudam a compreender melhor a estruturação da coleção, a traçar
um panorama do conjunto e assim servem como apresentação.
(1º) O primeiro traço retomado em todas as obras da coleção é a intencionali-
dade de particularizar o design de cada livro a partir do que é específico em cada tex-
to verbal. Assim, se nos voltamos para o quadrado semiótico formulado, dos termos
/particular/ vs. /geral/, vemos que o específico implica o particular: o específico de
cada texto verbal implica o particular de cada projeto gráfico. Tal operação molda a
Coleção Particular. Abandona-se assim a lógica do comum, que seria a elaboração de
um projeto gráfico geral para todos os livros da coleção. Vemos como o específico do
texto verbal é empregado na elaboração de um projeto gráfico particular, por exem-
plo, na obra A fera na selva. Nessa edição, escolhas de design referentes à gramatura
do papel adotado e à entrelinha da tipografia decorrem não de um planejamento
geral da coleção, mas sim do que é específico na prosa de James: a dramaticidade
crescente da narrativa. O mesmo tipo de operação pode ser verificado em todas as
demais obras da coleção, como veremos a seguir.
(2º) A segunda operação reiterada nos projetos gráficos da coleção é a de ruptura
com o comum do mercado editorial nacional, do ponto de vista do design. Tal carac-
terística é percebida principalmente nos modos de encadernação adotados, todos
eles fora do que é standard: costura chinesa em Primeiro amor; uma capa que se do-
bra sobre a quarta capa e se desdobra para revelar uma fotografia em seu interior em
A fera na selva; edição sem capa e com costura aparente, envolta num saco plástico

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 49


em Flores; páginas com refile irregular em Museu do romance da Eterna. O caso mais
exemplar é, certamente, Bartleby, o escrivão: a capa costurada e as páginas não-refi-
ladas, que obrigam o leitor a rasgá-las para ter acesso ao verbal, põem em jogo um
enunciatário que é copartícipe na produção de sentido do livro. Tal estratégia rompe,
certamente, com a lógica do praticado usualmente no mercado editorial. Essa rup-
tura constante com as fórmulas-padrão indica um projeto de design editorial con-
sistente por parte da editora, ao planejar a coleção como um todo, atuando de uma
maneira que vai além do design gráfico particular de cada edição.
(3º) Em terceiro lugar, há uma isotopia presente tanto na escolha das obras ver-
bais quanto no design dos livros: a vanguarda. Todos os autores selecionados pos-
suem, de algum modo, esse caráter de liderança e de ruptura e se tornaram marcos
da literatura em seus gêneros. Raymond Queneau foi tido como linguisticamente
ousado em Zazie no metrô ao explorar a linguagem coloquial francesa em seus
diálogos. Macedonio Fernández foi uma figura central do modernismo argentino,
influenciando até mesmo Jorge Luis Borges. Samuel Becket, Prêmio Nobel de Lite-
ratura em 1969, dramaturgo, além de escritor, é considerado um dos fundadores do
movimento conhecido como teatro do absurdo. Já Herman Melville, assim como
acontece a muitos vanguardistas, não teve suas obras bem recebidas pela crítica e seu
reconhecimento só veio após a morte, quando seus textos voltaram a ser estudados.
Como cada projeto gráfico em particular parte do específico de seu texto verbal,
essa temática geral da vanguarda é retomada no design de cada um dos livros. Ser
vanguardista (seja no design dos livros, seja na escolha dos autores) não é mais,
no entanto, apenas opor-se a um modo de produção cultural vigente. Trata-se de
um diferencial estratégico de mercado, e, portanto, está perfeitamente integrado aos
valores econômicos contemporâneos – os valores de uma “cultura-mundo”, diriam
Lipovetsky e Serroy (2011). Resta ainda delinear que modo de vanguarda é esse ex-
plorado pela editora Cosac Naify em suas publicações. Isso ficará claro a partir das
análises das obras que seguem.
(4º) A quarta e última reiteração aqui apontada que faz com que essas edições,
inicialmente independentes entre si, possam ser consideradas partes de uma to-
talidade, é a utilização desses projetos gráficos para compor textos sincréticos. Em
Primeiro amor, por exemplo, há nas ilustrações um arranjo plástico e uma narra-
tividade visual que acontecem em paralelo a uma narratividade semiotizada na di-
mensão verbal da obra. Como veremos, em cada um dos livros os diferentes sistemas
semióticos relacionam-se de uma dada maneira, tecendo um único todo de sentido.

50 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


Há ainda outras isotopias encontradas na coleção, as quais serão analisadas nos
próximos capítulos. Tratam-se, primeiramente, do modo como esses sete livros
constroem metadiscursos sobre o próprio livro e, a seguir, interdiscursos e interse-
mioses com diversas mídias e artes: a Coleção Particular, por meio de seus proje-
tos gráficos, fala sobre a história do livro, sobre seus processos produtivos, sobre a
relação do livro com as artes (fotografia, gravura, etc.) e mídias (jornal, publicidade,
etc.), sendo tudo isso apoiado em processos semióticos sincréticos.
Por fim, para encerrar essa apresentação inicial da coleção, há ainda uma questão
específica que surge na análise da coleção quando se buscam traços identitários,
decorrente de supostas identificações de identidades nacionais ou territoriais dos au-
tores. Ela emerge de uma primeira observação sobre o modo como a editora define a
sua coleção: “clássicos da literatura ocidental”. Pois bem, o que está sendo entendido
aqui como ocidental? Afinal, se os primeiros livros publicados certamente seguem
essa lógica, os títulos mais recentes levantam uma dúvida.
Samuel Beckett é irlandês, Herman Melville e Henry James são americanos de
Nova York (muito embora o segundo tenha vivido boa parte de sua vida em Lon-
dres), Raymond Queneau é francês. O quinto autor publicado na coleção, entretanto,
é mexicano: Mario Bellatin. O sexto autor também é latinoamericano, o argentino
Macedonio Fernández. Se a América Latina pode ser eventualmente considerada
como parte do “mundo ocidental”, é evidente que toda sua bagagem cultural é
enormemente distinta daquela dos países norte-americanos e europeus. A Améri-
ca Latina não poderia, assim, ser considerada “clássica”. Além da forte colonização
europeia, ela sofreu fortes influências da cultura africana, indígena, mourisca, etc.
O paradoxo é ainda mais evidente no último escritor publicado pela coleção, Ni-
kolai Gógol, que nasceu na Ucrânia, país da chamada Europa Oriental. Gógol escre-
veu em russo e sua obra encontrou espaço dentro da herança literária russa. Assim, é
difícil aplicar ao autor o termo ocidental, levando em consideração a forte separação
entre a Europa Oriental e o dito “mundo ocidental”, demarcada historicamente na
divisão do continente europeu entre o bloco socialista e o capitalista.
Desse modo, parece correto afirmar que a primeira proposição da editora quan-
to à sua coleção, “clássicos da literatura ocidental”, já não encontra lugar se levamos
em consideração a origem geográfica dos últimos três autores. A definição foi se
adaptando, se expandindo, e outras culturas “territoriais” foram aderidas a esse con-
junto. Autores norte-americanos, europeus, latino-americanos, todos foram indis-
tintamente misturados em uma mesma coleção, com seus textos verbais interpreta-

COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL 51


dos graficamente por designers brasileiros. Nesses livros, a editora se põe lado a lado
com os autores em nível de importância.
O processo pelo qual se constitui a Coleção Particular é um processo de constan-
tes transformações, que se modificam a cada novo livro lançado, haja vista que cada
projeto gráfico dialoga com aquilo que é específico do verbal. Assim, a figuratividade
de cada livro é diferente e a coleção está em contínua transformação.
Destacamos então algumas questões identitárias envolvidas nos projetos gráfi-
cos da Coleção Particular. Vimos que, se a identidade é um conceito de grande com-
plexidade, quando tratamos da identidade das empresas, marcas ou produtos há um
grande interesse de ordem econômica de promover esses limites identitários dis-
cretos. E é por isso que podemos falar em uma identidade de editora. Partindo do
histórico da Cosac Naify, escolhemos a Coleção Particular como metonímia dessa
editora, como a parte que fala pelo todo. A partir da caracterização da Coleção e
do Particular, chegamos a essas configurações identitárias iniciais que apresentam
a coleção e, por conseguinte, a própria editora. Veremos agora, na sequência, que
sentidos são apreendidos pela análise de cada obra, apurando nosso olhar de uma
visão “macro” para uma “micro”.

52 COSAC NAIFY: PRODUÇÃO DE LIVROS NO BRASIL


Produção de
sentido do livro
O sentido de cada um dos livros da Coleção Particular é decorrente de diver-
sos aspectos de sua estruturação: a dimensão verbal, certamente, mas não somente
ela, pois são também fundamentais todas as escolhas envolvendo o projeto gráfico
(papel, cores, tipografia, margens, etc.) e o uso dos diversos recursos como fotogra-
fias e gravuras. Esse projeto gráfico inscreve ainda no objeto uma certa gestuali-
dade, uma maneira própria de como ele deve ser manuseado. Para o leitor de uma
dessas publicações não é vantajoso ao longo da leitura separar o que foi tarefa do au-
tor, o que foi executado pelo editor, pelo designer, etc., pois essas diferentes funções
resultam em um livro que é apreendido de uma forma única, como uma totalidade
de sentido.
Já que o objetivo da presente pesquisa é o de compreender como os projetos grá-
ficos nos fazem sentir o sentido do livro, então o olhar investigativo recai sobre essa
totalidade de sentido a partir do que o projeto gráfico nos oferece. Se a publicação é
apreendida de uma maneira integradora pelo agir do leitor, focamos aqui em como
o design dos livros nos permite operar essa apreensão de sentido.
Todas as obras da Coleção Particular estabelecem uma relação muito forte entre
o projeto gráfico e a dimensão verbal, combinando os diferentes sistemas semióticos
para formar uma totalidade de sentido. Operam, assim, através de uma certa lógica
em que: “é preciso considerar uma estratégia global enunciativa que mobiliza dife-
rentes sistemas de linguagens para obter efeito de unidade.” (OLIVEIRA e TEIXEI-
RA, 2009, p. 9).
Parte-se então do pressuposto de que esses livros são textos sincréticos: além
de linguagem verbal, utilizam-se da linguagem gráfica e ainda de outras lingua-
gens para fazer sentido e constituir uma unidade. Consideram-se como sincréticas
aquelas manifestações que, segundo Oliveira (2009, p. 80), são: “manifestações com
mais de um sistema constituindo seu plano da expressão”. Greimas, fundador da teo-
ria da semiótica discursiva, define assim as semióticas sincréticas:

Num sentido mais amplo, serão consideradas como sincréticas as semióticas que
– como a ópera ou o cinema – acionam várias linguagens de manifestação; da
mesma forma, a comunicação verbal não é somente de tipo lingüístico: inclui
igualmente elementos paralinguísticos (como a gestualidade ou a proxêmica),
sociolinguísticos, etc. (GREIMAS e COURTÉS, 2011, p. 467).

54 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Se há uma estratégia global de enunciação, o mesmo acontece na apreensão
sensível de tais manifestações: apreendemos por um agir integrador as partes, ou
os diferentes sistemas semióticos, em uma só totalidade. Nos livros da Coleção Par-
ticular, a experiência sensível de leitura integra os sistemas de substâncias visuais,
verbais, espaciais e táteis em um só todo de sentido.
É importante esclarecer quais são essas linguagens envolvidas na produção de
sentido dessas obras. Segundo Teixeira (2009), não há uma “linguagem visual” úni-
ca, o que existem são diferentes linguagens (pintura, gravura, fotografia, etc.) que se
manifestam visualmente. Nos textos sincréticos, a particularidade matérica das lin-
guagens se submete a uma única força enunciativa, “que aglutina as materialidades
significantes em uma nova linguagem” (TEIXEIRA, 2009, p. 58). É por isso que se
fala em linguagem cinematográfica, teatral, etc.
Assim, nos livros, não dizemos que há uma linguagem verbal, uma linguagem
visual, uma linguagem espacial e assim por diante, mas sim a linguagem sincrética
única própria do livro, que aglutina os significantes dessas diversas ordens. O esque-
ma a seguir (esquema 4) explicita essas relações:

• Linguagem verbal
(língua, idioma)
Manifestada em:
• Linguagem gráfica
Linguagem • Substâncias verbais
(design)
sincrética • Substâncias visuais
• Outras linguagens
do livro • Substâncias espaciais
(fotográfica, pictórica,
Esquema 4 –
gravura, etc.) • Substâncias táteis
Composição
• Linguagem gestual da linguagem
sincrética do livro.

A linguagem gráfica é, nas peças de design gráfico (o livro aqui incluso), a lin-
guagem regente que vai organizar o espaço da manifestação e dar acesso à linguagem
verbal escrita e às demais linguagens (visuais) envolvidas. Não há, lembramos, uma
hierarquia de importância ou de relevância entre essas linguagens, pois o que vale
não é o específico de cada uma delas tratado isoladamente, mas sim a maneira como
elas se integram para produzir a linguagem sincrética do objeto livro.
A linguagem gráfica vai inscrever ainda, no enunciado, diversas marcas dos mo-
dos de manipulação do livro. Instala-se assim no objeto um referencial a partir de
sua própria constituição que servirá para orientar o leitor nos percursos gestuais a

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 55


serem realizados no livro: os gestos de abrir o volume, virar a página, desdobrar, do-
brar, rotacionar, rasgar, aproximar-se, afastar-se, etc. Há, portanto, marcas inscritas
no livro que irão orientar a realização de uma linguagem gestual, assim como vários
outros objetos também trazem inscritos em si mesmos os seus modos de manipu-
9 Um excelente lação.9 Trata-se de uma forma de gestualidade que faz sentido não como uma comu-
exemplo é a bande-
nicação de um corpo humano para outro corpo humano, mas sim como um sujeito
ja e os alimentos da
cerimônia do chá que encontra um sentido por si mesmo nos próprios gestos que realiza.
japonesa, conforme
O livro é, pois, um texto verbovisual-espacial-tátil. Esse enunciado pode ser
descritos por Manar
Hammad (2005). destrinchado da seguinte forma: a linguagem sincrética do livro, que se vale das
diferentes linguagens que o constituem, é manifestada, no seu plano da expressão,
em substâncias verbais, visuais, espaciais e táteis.
Nos textos sincréticos, vale o postulado de que uma só enunciação global orienta
a concretização do conteúdo no plano da expressão (OLIVEIRA, 2009, p. 88). Mas
de que modo se aborda esse arranjo sincrético? Segundo Oliveira (2009, p. 87):

Não seria tratando as linguagens em separado, nem muito menos os signos de


cada linguagem, como bem advogou Jean-Marie Floch em anos de batalha con-
tra os semiólogos, mas abordando as relações intersistêmicas que entretecem as
expressões heterogêneas no processar a sua reunião em um arranjo da expressão
que manifesta um único todo de sentido.

Assim, no caso dos livros aqui investigados, o que conduz a análise não é a espe-
cificidade de cada linguagem, isoladamente, mas as relações entre elas. A manifes-
tação visual do verbal escrito não deve ser considerada isoladamente, por exemplo,
mas sim como parte de um todo de sentido que se manifesta verbovisual-espa-
cial-tatilmente. As diferentes linguagens que agem em conjunto na produção da to-
talidade “livro” são interpretadas como interatuando umas com as outras, trazendo
cada uma certa visibilidade a um mesmo texto.
Se o livro é composto por uma única linguagem sincrética, como afirmamos,
então ele precisa obedecer ao postulado de que, para ser linguagem, deve possuir
um plano da expressão e um plano do conteúdo. Segundo Fiorin (2009, p. 35): “as
verdadeiras estruturas semióticas são biplanares. [...] As semióticas sincréticas cons-
tituem um todo de significação e, portanto, há um único conteúdo manifestado por
diferentes substâncias da expressão.”
Assim, nos debruçamos agora sobre cada um dos sete livros que constituem
a Coleção Particular para verificar como o plano da expressão, que se vale das

56 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


substâncias verbais, visuais, espaciais e táteis manifesta esse conteúdo único do
objeto livro. Veremos a seguir que nas obras da coleção da Cosac Naify de fato há
uma homologação entre plano da expressão e plano do conteúdo, o que confirma a
ideia de que há uma linguagem sincrética responsável pela produção de sentido.

3.1 Primeiro amor,


de Samuel Beckett

Essa obra de Beckett, escrita em 1945, foi a selecionada para tomar a dianteira na
Coleção Particular. Para iniciar a análise, cabe aqui uma breve apresentação da tra-
ma: na história do livro temos um narrador letrado, conhecedor de muitos autores de
literatura, porém extremamente antissocial. O personagem, cujo nome nunca é reve-
lado, possui um grande apreço por cemitérios, que visita com frequência, pois para
ele o cheiro dos cadáveres é preferível ao dos vivos: “por mais que se lavem, os vivos,
por mais que se perfumem, eles fedem.” (BECKETT, 2004, p. 2). O narrador relata a
morte de seu pai, ocorrida em um momento anterior ao desenrolar da trama, evento
após o qual é expulso de casa e passa a viver nas ruas. Guardando seu pouco dinheiro
herdado nos bolsos, sem nunca utilizá-lo, e dormindo num banco às margens de um
canal, o personagem se recusa a participar desse “pequeno resíduo de futilidades
peçonhentas que chamamos de não-eu, e mesmo de mundo, por preguiça.” (Ibidem,
p. 10). Em certo ponto da narrativa, passa a dividir o banco com uma mulher de-
nominada Lulu, mas que é posteriormente chamada de Anne, quando o narrador se
farta de seu primeiro nome. Após uma inesperada relação sexual acontecer entre os
dois em uma certa noite, o protagonista vai embora, nauseado, e busca outro lugar
para viver, refugiando-se em um estábulo de vacas. A mulher, porém, o incomodava
profundamente, mesmo ausente. O narrador explana assim sua situação: “[...] tive
que me defender de um sentimento que se arrogava pouco a pouco, em meu espírito
glacial, o horrendo nome de amor.” (Ibidem, p. 14). Incomodado pelo sentimento,
o sujeito volta ao banco, esperando reencontrá-la. A personagem feminina então
reaparece e o convida a viver em sua casa, já que possui uma habitação com dois
quartos, cozinha e banheiro. Lulu/Anne lhe oferece morada, comida e carícias, mas
o protagonista se recusa a participar daquele “casamento”, retirando todos os móveis
do quarto, menos o sofá, onde dorme sempre voltado para as paredes e de onde nun-
ca sai. Com o passar do tempo, passa a não amá-la mais. Após alguns meses, e depois
de ficar sabendo que a mulher exercia como atividade a prostituição, recebendo seus

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 57


clientes no quarto ao lado, ele descobre que ela está grávida. Os gritos ouvidos no
parto são desagradáveis demais para o narrador, que deixa a casa para nunca mais
voltar, abandonando a mulher e a criança recém dada à luz.
Essa história recebeu um tratamento gráfico cuidadoso por parte da editora Co-
sac Naify. Para uma primeira abordagem semiótica em relação ao projeto gráfico
do livro analisado, levamos em conta o princípio da operatividade, cuja definição
dada por Greimas (2004, p. 85) consiste em dizer que: “todo objeto não é senão
pela sua análise, ou, numa formulação ingênua, não é senão pela sua decomposição
em partes menores e pela reintegração das partes nas totalidades que constituem.”
Assim, numa primeira segmentação do objeto em subconjuntos discretos, decom-
pondo as superfícies enquadradas, temos os elementos ou partes que compõem a to-
talidade-livro: capa, segunda e terceira capas, 32 páginas internas e quarta capa. Tal
divisão não é indefectível nem absoluta: a segunda e a terceira capas, por exemplo,
tratam-se em realidade da própria capa e quarta capa do livro dobradas e coladas
sobre si mesmas, como uma espécie de orelha que não se abre.
A capa do livro é composta do título da obra, nome do autor e o desenho de uma
cruz. Na segunda capa, há apenas o cromatismo negro e a materialidade do papel.
Nas páginas internas, ou miolo, além do texto verbal, há também quinze ilustrações
da artista Célia Euvaldo. Na terceira capa (referente ao verso da quarta capa), cons-
tam os dados técnicos da obra, incluindo a ficha catalográfica e o colofão, este último
informando-nos a fonte utilizada no livro, a gráfica responsável pela impressão, o
tipo de papel e a tiragem. Por fim, na quarta capa, há os créditos da tradução, um
pequeno fragmento da obra e o código de barras.
A título de esquematização, a análise se dará em três etapas, que correspondem
a três subconjuntos da totalidade: capa, miolo e quarta capa. Tal esquematização
segue o próprio percurso de leitura do livro. A capa é o primeiro contato com a obra,
o miolo em seguida traz o conteúdo da narrativa em si e a quarta capa é o que se vê
no final, ao fechar o volume. A sintaxe da organização da publicação é a sintaxe que
vai também construir o sentido no ato da leitura.
10 As fotografias
Comecemos pela análise da plasticidade da capa e, especificamente, pela di-
desse capítulo e
do próximo são mensão matérica. Segundo Greimas e Courtés (2011, p. 304), o termo matéria de-
produção própria.
signa a matéria prima graças à qual uma semiótica se encontra manifestada. Na capa
Na legenda das
imagens, a fonte de Primeiro amor (fig. 11)10, o manifestante matérico adotado é o papel cartão de
indica o livro
gramatura aproximada 300g/m². A maior parte dos papéis cartão disponíveis no
fotografado pelo
sistema autor-data. mercado nacional possuem um lado brilhoso e um lado fosco. É importante perce-

58 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


ber que, ao contrário do usual na área gráfica, esse livro utilizou-se do lado fosco,
áspero, do papel cartão, trazendo uma certa rudeza às sensações táteis e escondendo
o lado brilhante e comumente tido como o mais “nobre” do material. Assim, logo
num primeiro contato com o livro, as pontas dos dedos do sujeito dotado de com-
petência estésica sentem tatilmente a aspereza que posteriormente vai se manifestar
na semiótica verbal da obra. O corpo é convocado a atuar sensivelmente em uma
gestualidade de passar a mão, percebendo, pelo tato, um sentido de rudeza que é
atribuído à obra desde a primeira tomada do objeto.

Figura 11 – Capa de
Primeiro amor, de
Samuel Beckett.
Fonte: BECKETT,
2004.

Considerando a dimensão topológica, percebemos como as categorias topológi-


cas regulam a disposição das configurações plásticas no espaço. Nesse caso, trata-se
de um espaço bidimensional (GREIMAS e COURTÉS, 1991). A tipografia (título e
nome do autor) e o desenho da cruz que aparecem na capa estão alinhados ortogo-
nalmente numa centralização horizontal, enquanto que no eixo vertical o grupo de
elementos está localizado acima do centro (fig. 12). Tal distribuição espacial reitera
o posicionamento das linhas da cruz, pois, se damos continuidade às linhas ver-
tical e horizontal da cruz, quando traçadas até as margens da página, elas seguem
realizando o desenho de uma cruz. Tem-se assim uma distribuição dos elementos

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 59


no espaço que remete à própria distribuição dos traços na cruz. Os elementos, por
sua posição e também por suas dimensões em relação ao todo, figurativizam uma
lápide de cemitério (que também possui suas informações gravadas, habitualmente,
em uma centralização horizontal e verticalmente acima do centro). A presença da
cruz nas lápides, acompanhada de uma data, indica a ocasião da morte do sujeito ali
enterrado.

Figura 12 – No es-
quema da esquer-
da, os elementos
são visualizados
em sua distribuição
horizontalmente
central e vertical-
mente superior. No
esquema da direita,
o prolongamento
das linhas vertical
e horizontal da
cruz prossegue
realizando uma
cruz, devido à sua
posição no espaço
da capa.
Fonte: elaborado
a partir de Beckett
(2004).
As categorias eidéticas são aquelas que servem para definir uma configuração
plástica no nível da forma, por exemplo: /reto/ vs. /curvo/, /côncavo/ vs. /convexo/.
(GREIMAS e COURTÉS, 1991). Seus elementos básicos são o ponto, a linha e o pla-
no. Assim, o próprio plano que forma a capa, ou seja, sua proporção altura x largura
(seu formato), já é um formante eidético. As dimensões do retângulo de capa são 16
x 23cm, apresentando uma proporção aproximada de 1:√2, formato conhecido como
quadrado largo. Tal formato é adotado como padrão internacional de papéis pela ISO
(Organização Internacional de Padronização), o que se verifica nos formatos tradi-
cionais que conhecemos: A3, A4, etc. Tal escolha denota uma grande racionalidade
geométrica, pois é o único formato que, quando dobrado ou cortado pela metade,
produz um novo retângulo de mesma proporção. (BRINGHURST, 2005, p. 169).
As formas dos desenhos dos tipos utilizados na capa são também relevantes em
uma análise plástica do objeto. A tipografia trabalhada no título (fig. 13) é uma fon-
te no estilo engraved (“gravada”). A forma dos caracteres é baseada nos romanos

60 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


maiúsculos gravados na pedra da Coluna de Trajano. Por possuir uma linha dupla,
a fonte classifica-se como decorativa, utilizada comumente para títulos e capitulares,
pois o vazado em seu interior faz com que apresente um peso mais próximo ao peso
da tipografia na mancha de texto, usualmente em corpo menor. É o que acontece na
capa do livro, já que o título fica com peso próximo ou até menor que a informação
de autoria.

Figura 13 –
Tipografia utilizada
no título, em estilo
engraved.
Fonte: BECKETT,
2004.

Figura 14 – Univers,
tipografia utilizada
no nome do autor.
Fonte: BECKETT,
2004.

Já no nome do autor, a família tipográfica utilizada foi a Univers11 (fig. 14). A 11 Criada pelo
tipógrafo Adrian
fonte, moderna e sem serifa, é conhecida por sua limpeza e legibilidade a longas
Frutiger e
distâncias. A versão escolhida para o nome do autor na capa e para o texto de miolo produzida entre
1954 e 1957. A
em Primeiro amor foi a condensada (que apresenta menores dimensões horizontais
Univers foi uma das
em relação à versão romana comum). Percebe-se que, por ser condensada, a fonte primeiras famílias a
serem desenhadas
acaba sendo mais pesada e assim o nome do autor na capa possui peso maior ou
pensando-se
igual ao título, ainda que esteja num corpo menor. em todas as
suas variações e
Nota-se que as duas tipografias escolhidas possuem na construção de seus carac-
tamanhos (romano,
teres um eixo racionalista (vertical), o que reitera o posicionamento ortogonal hori- itálico, light, bold,
condensado, etc.).
zontalmente centralizado dos elementos na página, e a figura da cruz, que também
Ao longo do tempo,
é essencialmente vertical. a família passou
por redesenhos e
O estudo semiótico da cor não trata os matizes manifestos como unidades, mas
ampliações de suas
sim os constrói enquanto figuras da expressão constituídas por traços diferenciais variações (ROCHA,
2005).
pertinentes (GREIMAS e COURTÉS, 1991). Na capa de Primeiro amor, dois matizes

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 61


são percebidos: aquele da impressão e o do papel. É utilizada apenas uma tinta de
impressão na capa do volume: a tinta preta. O preto é regular, sem gradações de
brilho. Se a distribuição dos elementos e a presença da cruz não são suficientes para
instaurar o tema de morte figurativizado na capa, a cor preta torna impossível não
perceber essa tematicidade, devido às associações convencionadas que a cor preta
assume em nossa cultura. Já a cor do papel, pelo fato de ser utilizado o lado fosco
dele, é ligeiramente amarelada, mais escura que o usual, divergindo da limpeza e
impecabilidade do branco. O amarelado, no contexto da obra, traz efeitos de sentido
de doença, sujeira, que vão se relacionar com a história do próprio personagem prin-
cipal de Beckett. Um branco hospitalar não faria jus ao linguajar da obra, na qual não
faltam referências a cadáveres, maus odores e dejetos humanos.
A visualidade da capa guarda com o verbal uma relação próxima àquela de uma
obra pictórica com seu título: uma relação de intersemioticidade entre a semiose
plástica e a verbal. (OLIVEIRA, 2004). Enquanto que plasticamente temos um ar-
ranjo de elementos que figurativizam uma lápide, tematizando morte, e um arranjo
eidético e topológico que reitera a verticalidade e a racionalidade, o título do livro
é Primeiro amor. Pois bem, a expressão verbal utilizada remete a diversos efeitos de
sentido, nenhum dos quais está, a princípio, traduzido visualmente: os sentimen-
tos de inocência, carinho, paixão, descoberta, romantismo. Pela relação contrastante
entre os efeitos de sentido da plasticidade e do verbal, instaura-se um enunciador
irônico, depravado, que já se propõe a não tratar o tema do primeiro amor por um
viés inocente e romântico, mas sim calculista.
Passamos então ao interior do livro, ou mais exatamente às trinta e duas páginas,
mais a segunda e a terceira capas, que compõem seu miolo (figs. 15 e 16).

62 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 15 – Páginas
1 a 15 de Primeiro
amor.
Fonte: BECKETT,
2004.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 63


Figura 16 – Páginas
16 a 32 de Primeiro
amor.
Fonte: BECKETT,
2004.

64 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


A materialidade do miolo do livro se vale de dois recursos principais: o papel
utilizado (Chamois Fine Dunas 67g/m²) e sua encadernação chinesa. O papel Cha-
mois é um off-white, ou seja, não é totalmente branco. Tal qual o uso do lado fosco
do papel cartão na capa, escolheu-se para o miolo um papel ligeiramente amarelado.
Em oposição à aspereza da capa, a sensação tátil desse material é muito mais suave,
indicando ao leitor que o livro deve ser manuseado de um modo mais delicado, uma
qualidade estésica que induz o sujeito competente a ajustar-se, sentindo nas mãos
o sentido das páginas, passando-as num ritmo afetuoso. A atitude que o corpo do
leitor assume frente ao livro é a de um corpo sensível, que no gesto de tocar a super-
fície ora é maltratado pela rudeza (da capa), ora é acariciado pela suavidade dos pa-
péis (do miolo). O corpo é convocado a sentir o sentido nas próprias configurações
plásticas do objeto.
As páginas são unidas pelo método chamado de encadernação chinesa: as folhas
são dobradas ao meio e costuradas do lado oposto às dobras; a linha fica visível na
página inicial do volume. As folhas duplas ficam sem impressão em seu interior,
sendo impressas somente nas faces externas. A encadernação permite uma continui-
dade entre uma página ímpar e uma par, e de fato essa característica é explorada
no projeto gráfico, com ilustrações que seguem a dobra até a página seguinte, onde
adentram o texto verbal, tocando-o em vários momentos. Tal continuidade ainda
é reiterada pela sensação tátil do papel, que induz a uma certa ritmicidade em seu
passar de páginas.
Cromaticamente, podemos analisar o brilho (/claro/ vs. /escuro/) da mancha de
texto e o matiz do papel. Por ser constituída de uma fonte condensada, alinhada à es-
querda (sem os espaçamentos extras que às vezes são ocasionados pela coluna justi-
ficada), a mancha de texto é mais escura que o normal. Mesmo a cor do papel, numa
tonalidade um pouco mais escura que o habitual, contribui para esse tom escurecido
da mancha tipográfica. Os caracteres são impressos em uma tinta 100% preta, sem
gradações. Com isso, retoma-se o negro e o efeito de sentido de “sujo” da capa, que
figurativizam morte.
Já a semiose pictórica do livro realiza um percurso cromático ao longo das pági-
nas (fig. 17). As primeiras ilustrações parecem ter sido feitas com o nanquim puro,
sem ser dissolvido em água, e assim as áreas resultam em uma oposição binária:
pintadas de preto total ou não pintadas, sem as gradações entre os dois extremos.
A partir da quinta imagem, uma mudança: surgem gradações de brilho nas com-
posições, como se o nanquim utilizado passasse a ser dissolvido em água. As ima-
gens seguintes transitam entre mais ou menos água, com diversas tonalidades mais

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 65


ou menos escuras, até que ao fim do percurso cromático as duas últimas imagens
apresentadas são as mais claras de todo o livro, em gradações que vão como que
esvaecendo. Essa diferença nas graduações vai coincidir, na dimensão eidética, com
uma ruptura na continuidade que fora instaurada pela sequência matérica de enca-
dernação e pela tatilidade das páginas.

Figura 17 – Dois Pensando-se eideticamente na forma assumida pela mancha de texto, alinhado
momentos do
à esquerda, percebe-se certa fluidez que emula as pinceladas horizontais presentes
percurso plástico
cromático na semiose pictórica. O resultado, assim, é de uma natural irregularidade e um cer-
verificados no
to desalinho. As linhas de texto nascem sempre da margem esquerda da página,
livro: a tinta preta
pura nas imagens emolduradas pela porção visível da segunda capa negra e por vislumbres das ima-
iniciais (esquerda)
gens pictóricas que ficaram para trás, porém das quais se vê apenas um fragmento
dá lugar a diversas
gradações de brilho devido ao esquema de dobras das páginas. Os tipos, por serem condensados, acar-
(direita).
retam uma cromaticidade de menor brilho (escura). Pelo desenho dos caracteres,
Fonte: BECKETT,
2004. da família Univers, ser de eixo racionalista (vertical), as linhas verticais ascendentes
e descendentes dos tipos se destacam e, ainda pela proximidade entre caracteres
decorrente da escolha do tipo condensado, criam um ritmo na página similar ao das
caligrafias góticas. O efeito de sentido é de irregularidades, de pequenas marcações
desalinhadas que seguem, porém, uma fluidez e um ritmo contínuos.
Por sua vez, as linhas das ilustrações apresentam uma direção predominante e
uma qualidade de traçado que vão se modificando pouco a pouco a cada uma das
quinze etapas. Inicialmente, o traçado ou as pinceladas são rudes, imperfeitos, e per-
cebe-se, nas primeiras imagens, a aspereza do pincel. A direção predominante das
pinceladas é horizontal, com suas linhas nascendo (ou continuando) das margens
em direção ao centro da página. Aos poucos, muda-se a direção do traço e as pince-

66 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


ladas passam do eixo horizontal a manchas sem muita direção definida, até chegar
a traços verticais, configurando manchas verticais que escorrem do topo da página
em direção ao seu pé. A qualidade do traçado também muda, seguindo um percurso
figurativo, no qual pouco a pouco se deixa de ver claramente a aspereza do pincel, in-
cidindo em manchas mais fluidas, mais aguadas, sem uma intencionalidade tão for-
temente demarcada. Assim, tem-se na plasticidade do livro a categoria da expressão
contínuo vs. descontínuo e a passagem de um dos termos ao outro.
Na dimensão topológica, vemos como se dá o posicionamento da mancha de
texto e da ilustração, uma em relação à outra e em relação às margens, e como as
configurações plásticas no espaço das páginas tece uma continuidade entre os ele-
mentos. No início do volume, a mancha de texto reflete as imagens pictóricas, com-
pondo um eixo de simetria e configurando assim a relação entre esses elementos.
A utilização da dobra no papel reitera essa continuidade horizontal, já que não se
trata de uma frente e um verso, mas sim de um mesmo lado contínuo de uma página
dobrada. À medida que as ilustrações mudam sua direção principal de um eixo hori-
zontal para um eixo vertical, tal simetria entre tipografia e ilustração deixa de existir,
acarretando a ruptura da continuidade, ou, a bem dizer, o descontínuo.
Tais arranjos plásticos constroem uma figuratividade que se relaciona forte-
mente ao texto verbal, uma vez que os dois sistemas são dados como correlatos
pelo projeto gráfico. Temos, assim, no plano do conteúdo da dimensão visual, uma
figuratividade que é entendida como “um certo modo de leitura – e um modo de
produção – das ‘superfícies construídas’” (GREIMAS, 2004, p.81), cuja intenção
não é a representação icônica de elementos do mundo natural, mas sim um grau
de figuratividade muito mais próximo da abstração. Trata-se, certamente, de uma
construção de mundo, mas sem o desejo de fazer-crer ou de fazer-parecido a algum
objeto determinado. Seus sentidos são apreendidos mais diretamente pela análise
dos próprios formantes plásticos.
Na expressão do texto verbal, quando se considera a distribuição das palavras
nas páginas, encontra-se um elemento importante a ser considerado: trata-se da
quebra de linha arbitrária na primeira página. A primeira frase do livro é então frag-
mentada, produzindo um novo enunciado que, por sua posição na ordenação do
livro, corresponderia a uma epígrafe: “Associo, com ou sem razão, meu casamento
à morte”. Esse enunciado explicita as escolhas de design realizadas, que tematizam a
morte no livro, e evidencia um dos termos que vai compor a oposição semântica de
base da obra: /morte/.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 67


No plano do conteúdo, o nível discursivo é o “patamar mais superficial do per-
curso, o mais próximo da manifestação textual”. (BARROS, 2008, p. 53). Nesse nível,
a semiose verbal de Primeiro amor instaura diversas figuras mórbidas ou sujas, como
cemitérios, cadáveres, árvores mortas e lama, assim como sensações sonoras e olfati-
vas: o choro frequente do protagonista, os gritos ouvidos no parto e o fedor constan-
te tanto do cheiro dos cadáveres quanto dos maus odores dos corpos vivos, prove-
nientes de axilas, pés, bundas e prepúcios cerosos. O narrador retorna diversas vezes
ao assunto “defecação”, por meio de termos como nádegas, diarréia, privada, eva-
cuação, bostas secas de vaca, esterco. Os sentimentos apresentados pelo personagem
principal são em sua maioria de descaso com o mundo, de solidão, de desencanto,
bem como suas dores diversas: aquelas do entendimento, as afetivas, as da alma e do
corpo. Todas essas figuras podem ser incluídas em dois âmbitos ou conjuntos mais
abrangentes, que constituem os dois principais temas tratados na obra: a morte e o
isolamento ou reclusão.
Os atores, que atualizam os sujeitos do programa narrativo, são essencialmente
dois: o protagonista e sua contraparte (não tão) romântica. O narrador é solitário,
sujo, indecente, irônico, frio, vive nas ruas e se recusa a tomar parte nos ritos e
fazeres convencionados da vida em sociedade. Já a personagem Lulu, cujo nome
o próprio protagonista faz questão de modificar para Anne quando se cansa do
inicial, é uma prostituta que também passa algumas noites no banco às margens do
canal e se dispõe a oferecer ao narrador calor, carícias e talvez até mesmo algum
sentimento.
A temporalização e a espacialização, por sua vez, são bastante imprecisas. O es-
paço não é definido geograficamente. O autor é irlandês e morava na França, mas a
única referência geográfica são alguns nomes de cemitérios, que soam muito mais
parecidos com o idioma alemão. Tampouco há precisão temporal: existe um ago-
ra, os momentos narrados na trama, e um então, o passado, quando o personagem
principal possuía uma casa para morar e seu pai ainda era vivo, mas não há uma
demarcação clara das passagens dos tempos e não há nenhuma expectativa explícita
quanto a um futuro por parte do narrador.
O nível narrativo é aquele em que valores são assumidos pelos sujeitos e cir-
culam entre eles, graças às suas ações. (BARROS, 2008). Tomando o narrador da
história como um sujeito primeiro, ou S₁, percebemos como no início da narrativa
ele vive em um estado de apatia, de desapego em relação ao mundo e às relações
sociais. O personagem pensa em suas próprias dores e necessidades, “mas jamais,

68 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


sob nenhum pretexto, nos seres vivos enquanto tais (eu me pergunto o que isto quer
dizer)” (p. 16). Trata-se de um estado de morto-vivo, de moribundo. O próprio nar-
rador se define, em dado momento, como um sujeito “cujo cadáver ainda não estava
completamente no ponto” (p. 8). Com o aparecimento de Lulu na história, tem-se
um segundo sujeito, ou S₂, que vai agir sobre o primeiro, provocando uma mudança
de estados. O sujeito S₂ então relaciona-se com S₁ por meio de um regime de ajuste,
no qual os dois se sentem estesicamente. Landowski (2009, p. 49) explica assim o
regime de ajuste:

Com o ajuste, esses mesmos sujeitos são reconhecidos como dotados de um cor-
po e, consequentemente, de uma sensibilidade. A interação não mais será basea-
da em um fazer crer, mas sim em um fazer sentir – não mais em uma persuasão
entre inteligências, mas sim em um contágio entre sensibilidades: fazer sentir
que deseja para fazer desejar, deixar ver seu próprio medo para amedrontar, [...]
et cetera.12 12 Tradução
nossa a partir do
espanhol.
No banco em frente ao canal, quando o narrador dá um espaço à personagem
feminina e depois estica a perna sobre o colo dela, percebe-se claramente o regime
de ajuste, pois é o sentir o calor nas pernas que a personagem sente que faz com
que se inicie a relação entre os dois, que acaba culminando em um ato sexual.
Os dois, S₁ e S₂, vivenciam juntos aquela experiência, naquele espaço, e posterior-
mente uma relação (quase) amorosa. Também existe, mas em menor grau, uma
certa manipulação por sedução da parte de S₂, oferecendo a S₁ casa e conforto em
troca de vivenciar essa relação. O narrador (S₁) passa por uma mudança de estado,
que vai do isolamento total ao relacionamento com outro ser humano, do estado
de morto-vivo ao da vida em sociedade. Porém, tal mudança de estado nunca se
concretiza completamente, haja vista que o sujeito nunca está satisfeito nessa nova
posição que assume, que abandona no final da narrativa, retornando a seu estado
inicial de isolamento.
No nível fundamental, o mais simples e abstrato, “surge a significação como
uma oposição semântica mínima” (BARROS, 2008, p. 9). Em Primeiro amor, esta
oposição está alicerçada nos termos opostos da categoria /vida/ vs. /morte/. A /vida/
é entendida como o fato biológico de estar vivo e como a interação com os demais
seres viventes, o estar no mundo. A esse termo corresponde o estado da personagem
Lulu/ Anne e é esse o estado do protagonista anterior à trama, quando vivia em sua

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 69


casa e convivia com seu pai e demais moradores. O termo /vida/ também correspon-
de ao estado para o qual a prostituta tenta levá-lo. Mas ele insiste em permanecer em
um estado contrário, de /não-vida/, mas que poderia ser também nomeado como
morto-vivo, equivalendo ao estado dos doentes terminais. Embora não esteja bio-
logicamente morto, o personagem se nega a interagir com os demais, com o mundo,
e se nega mesmo a ter qualquer tipo de sentimento que seria próprio dos seres vivos,
encaminhando-se assim a um estado de /morte/.
Em Primeiro amor, a narratividade visual acompanha o desenvolvimento da
narratividade verbal. A visualidade das páginas passa de um estado de continuidade
horizontal, presentificado nas ilustrações que se integram à tipografia, no papel
dobrado, e também de um estado de força e intencionalidade do traçado, a uma
ruptura dessa horizontalidade e dessa intencionalidade. A mudança é percebida
principalmente no direcionamento das pinceladas e na dissolução da força do
traçado, numa tinta que fracassa em seus propósitos, que escorre do alto da página
e que, nas últimas imagens pictóricas, se esvai. Tal transformação de estados da
semiose visual é análoga às transformações do personagem principal: ele vem de um
estado anterior, de vida e de estar no mundo, e passa ao seu estado atual de ruptura
com o mundo e com os seres viventes, de isolamento. Essa mudança de estados se
repete na narrativa verbal quando a personagem feminina tenta trazê-lo para a vida
em sociedade, para um relacionamento, e tal tentativa é descontinuada, fracassa.
Em suma, tem-se uma categoria da expressão contínuo vs. descontínuo, que cor-
responde e homologa uma categoria do conteúdo /vida/ vs. /morte/.
Se na capa do livro o sincretismo se dava justamente pelo contraste entre os
sistemas verbal e plástico, quando se considera o miolo da obra em relação ao texto
verbal completo a relação é um pouco distinta. Temos agora um arranjo plástico
com uma narratividade visual que acontece em paralelo a uma narratividade e uma
oposição semântica mínima semiotizadas na dimensão verbal da obra.
No encerramento da análise, é válido voltar-se por fim para a quarta capa
(fig. 18) do volume, percebendo de que forma e em que medida ela retoma traços
plásticos e categorias da expressão e do conteúdo presentes na capa e no miolo do
livro, encerrando a publicação num todo de sentido.

70 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 18 – Quarta
capa de Primeiro
amor.
Fonte: BECKETT,
2004.

De fato, em sua plasticidade, a quarta capa retoma vários formantes que já


haviam sido percebidos na capa do livro: a aspereza da materialidade é a mesma, tal
qual a austeridade do cromatismo. A tipografia utilizada permanece sendo a Univers
condensada, produzindo uma aparência pesada nos enunciados verbais. Eidetica-
mente, a verticalidade enfatizada no desenho dos caracteres é novamente reiterada
no arranjo topológico da página, em que os elementos estão dispostos em um eixo
vertical, ou seja, centralizados horizontalmente. Na quarta capa há ainda um outro
elemento de forte verticalidade: a linha branca da costura, localizada o mais à direita
possível, próxima à lombada, traçando uma linha final que encerra o volume.
Os créditos da tradução e desenhos dados a Célia Euvaldo acompanham uma
curiosa citação da escrita de Beckett: “Sim, eu a amava, é o nome que eu dava, que
ainda dou, ai de mim, ao que eu fazia, naquela época.” Trata-se de uma das poucas,
quiçá única, passagens do texto que fazem alusão a um amor romântico, quase
folhetinesco. Novamente, como se havia verificado na capa, tem-se uma relação
contrastante entre a plasticidade racional e austera e o enunciado verbal, este mais
sentimental e romântico.
Retoma-se então essa figura do enunciador irônico, calculista, que de fato ao
longo da obra não tratou a temática do primeiro amor de maneira inocente, mas sim
de uma forma suja, crua, relacionando-a à morte. Mesma ironia da qual se vale a

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 71


competente equipe da Cosac Naify na tessitura de seu projeto gráfico, jogando com
citações e com essas relações entre as semioses verbal e visual ao longo de todo o
volume. O projeto gráfico é, pois, costurado à escrita becketiana.

3.2 Bartleby, o escrivão,


de Herman Melville

Se a análise precedente, da edição de Primeiro amor, serviu para explicitar as relações


fortemente tecidas pela editora Cosac Naify entre o verbal e o projeto gráfico do
livro, a análise da segunda obra da coleção, Bartleby, o escrivão, nos apontará agora
para os lugares do sujeito leitor, enquanto partícipe da construção de sentidos do li-
vro e do próprio objeto-livro em sua materialidade. Por meio desse polêmico projeto
gráfico, a Cosac Naify põe em cena e reopera aspectos da história do livro e de seu
processo produtivo.
A referida polêmica se verificou nas diferentes repercussões midiáticas da publi-
cação, e aconteceu principalmente devido ao nada usual modo de encadernação do
livro: a edição possui uma costura que une suas capas, forçando o leitor a descostu-
rar a obra. Ainda, como as páginas internas não são refiladas, o leitor é obrigado a
cortá-las com uma espátula plástica que acompanha o livro para poder ter acesso a
seu conteúdo verbal, o que é um modo de levá-lo a interagir para além da leitura do
objeto livro. Além da repercussão midiática, o título teve grande aceitação por parte
do público, o que se traduziu em vendas: Bartleby teve diversas reimpressões.
O livro que se recusa a ser aberto adota uma postura de negação similar à de
seu personagem. A trama, que será analisada em maior profundidade adiante, conta
como um advogado de Nova York emprega no cargo de escrivão o estranho sujeito
chamado Bartleby, que passa a frequentar seu escritório. Em certo momento, o em-
pregado começa a recusar as tarefas que lhe são encomendadas, utilizando para isso
a célebre frase “acho melhor não” (ou, em inglês, “I would prefer not to”). Pouco a
pouco, Bartleby passa a recusar até mesmo o trabalho de escrivão e copista para o
qual fora contratado, o que vai acarretar uma grande perturbação para o advogado e
consequências alarmantes.
A análise retoma o princípio da operatividade, já utilizado na investigação do
livro precedente, de que todo objeto não é senão pela sua decomposição nas partes
menores e a reintegração na totalidade que essas partes constituem (GREIMAS,
2004). As partes segmentadas, aqui, serão analisadas seguindo o processo de leitura

72 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


formulado pela própria sintaxe do livro, enquanto objeto matérico e que exige um
fazer ativo do leitor: primeiramente, as capas costuradas; num segundo momento,
as páginas internas ainda fechadas; por fim, as páginas já rompidas, revelando o
texto verbal.
Bartleby, o escrivão é um livro praticado, cujo sentido se dá em ato, no fazer do
sujeito que transforma a materialidade do livro, que trabalha em conjunto com o
mesmo para realizar a prática da leitura. Todas as coordenadas para esse processo de
manipulação gestual do objeto, que é também um processo de produção de sentido,
já estão devidamente marcadas na capa do livro.
A capa (fig. 19), um retângulo verde de 16,5 x 23cm, assim como a sua quarta
capa (fig. 20), apresenta costuras aparentes tanto em sua extremidade direita (cos-
tura vermelha) quanto na esquerda (costura preta). No centro, uma impressão in-
dica o nome do autor, o nome da obra, o subtítulo (“Uma história de Wall Street”)
e os créditos de tradução e do posfácio. Na quarta capa, constam apenas a marca
da editora e o código de barras. Logo numa primeira tomada em mãos do objeto
percebe-se que a costura impede que o livro seja aberto, folheado. Como, então,
usufruir dele ou, ainda, fruir com ele a experiência de leitura, se o próprio livro vem
assim lacrado?

Figura 19 – Capa de
Bartleby, o escrivão,
de Herman Melville.
Fonte: MELVILLE,
2005.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 73


Figura 20 – Quarta
capa de Bartleby, o
escrivão.
Fonte: MELVILLE,
2005.

A materialidade já dá uma pista dos modos de interação. O papel utilizado apre-


senta uma superfície verde com tom irregular, num efeito de marmorizado, com
pequenas áreas mais claras ou escuras. Em sua tatilidade, o papel possui uma sur-
preendente textura aveludada, suave ao toque, quente. Esse material é dobrado e
colado sobre si mesmo, para que capa e quarta capa apresentem uma maior rigidez,
já que se trata de uma matéria delicada. O escrito verbal é impresso na cor preta, em
serigrafia, o que configura um pequeno relevo na impressão. Assim como em al-
guns outros processos de impressão, na serigrafia as superfícies impressas tornam-se
sensíveis ao toque. Na esquerda e na direita, as linhas (preta na esquerda e no verso,
vermelha na direita) também são pequenos relevos e as repetidas (constantes) reen-
trâncias dos pontos da costura formam igualmente desníveis percebidos pela ponta
dos dedos que percorrem o livro (fig. 21).

74 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 21 – A linha
da costura une a
capa e quarta capa,
impedindo o volu-
me de ser aberto.
O invólucro deve
ser descosturado
para que revele seu
interior.
Fonte: MELVILLE,
2005.

A tatilidade se impõe na capa por meio desses diversos traços matéricos, instau-
rando o agir pelas mãos como o agir que vai nortear a leitura do livro. Para lê-lo, é
preciso tocá-lo e interagir com ele, realizando os passos de um percurso gestual que
já estão inscritos no enunciado, devendo o leitor demonstrar a sensibilidade para
apreendê-los e executá-los.
Na escolha tipográfica da capa, uma profusão de estilos: o nome do autor vai
grafado numa ornamentada fonte caligráfica, o título da obra numa pesada egípcia
(de serifas grossas) e a informação de tradução e do posfácio na família Goudy Old
Style, uma fonte serifada de estilo antigo que é também utilizada no interior do livro.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 75


Duas linhas criam a moldura para o texto verbal, uma levemente mais grossa que a
outra, mas ambas com direções ortogonais (vertical e horizontal). A linha reta tam-
bém é utilizada como elemento separador das informações entre o título e o nome
da tradutora. A linha é um elemento formal eidético da expressão que é isotópico,
pois aparece também nas linhas laterais que costuram a capa e vai voltar a aparecer
nas fotografias internas. Como veremos, essa constância da linha estará relacionada
ao fazer profissional do personagem-título, Bartleby.
A grande variedade tipográfica no espaço tão pequeno da capa (três famílias
diferentes, sendo uma delas utilizada em versão com e sem sombreado) causa certo
incômodo, desconforto. Mas o que é mais provocador ainda na capa do livro é o
Figura 22 – O pro- cromatismo da costura: o fio é vermelho vivo. Em contraste com o verde, a cor ver-
cesso de descos-
melha vibra, devido a serem duas cores de luminosidade muito próxima. Trata-se de
turar o invólucro,
puxando os fios uma combinação incômoda. A provocação cromática é o que vai orientar o percurso
ponto a ponto.
gestual da leitura, indicando que é justamente o fio vermelho aquele que deve ser
Fonte: MELVILLE,
2005. puxado, ponto a ponto, para que se possa abrir as capas do volume (fig. 22).

76 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


No ato de descosturar a capa, a aspectualização durativa destaca-se, pois decorre
do tempo prolongado de um gesto necessário para a abertura do volume. Para que
o livro seja aberto sem danificá-lo, há uma ação que envolve quase dez minutos de
trabalho, desfazendo ponto a ponto. É pelo aspecto durativo que o sujeito que des-
costura a obra sente o peso da repetição (que estará presente no texto verbal, como
um dos valores do livro). É no durativo ainda que se afirma a insistência do sujeito
leitor, que deve persistir em seu querer ver o interior, ver o que a costura esconde.
Ao abrir a capa, o leitor se depara com outra barreira, dessa vez figurativizada
na fotografia de uma parede (fig. 23). Junto a essa primeira fotografia, o leitor en-
Figura 23 –
contra também uma espátula plástica com a marca da editora impressa em tinta
Inicialmente, todas
preta e o ícone de um instrumento inclinado em direção à extremidade da espátu- as páginas do livro
exibem a mesma
la, realizando assim uma incisão no limite da lâmina. O formato interno do livro
fotografia em preto
é de 16 x 23cm, ou seja, é meio centímetro menor que a capa, pois o espaço da e branco de uma
parede de concreto.
costura foi precisamente ponderado para que a linha não transpassasse as páginas
Fonte: MELVILLE,
internas. 2005.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 77


Logo se percebe que, no interior do livro, a mesma imagem se repete em todas
as páginas, enfaticamente e de certo modo até causando certo enfado. Trata-se da
fotografia, em preto e branco, de uma parede manchada e erodida. Na distribuição
topológica das duplas páginas, a parede ocupa toda a visão. No recorte da imagem,
dezesseis blocos empilhados erigem a parede que se repete a cada virada de páginas,
constantemente. Entre os blocos, novamente a linha horizontal formada é o elemen-
to eidético marcante, que se repete do alto ao baixo.
No entanto, descobre-se prontamente que em seu interior o papel oculta algo.
As páginas, afinal, não foram refiladas na extremidade exterior: no processo de pro-
dução do livro, as grandes folhas que formam os cadernos foram devidamente do-
bradas no formato da página, mas não cortadas nessa extremidade. Assim, para cada
página com a parede impressa, há um verso também impresso, mas que não se tem
acesso de imediato (fig. 24). Como acessar esse lado oculto? Outra vez a materia-
lidade orienta: a rígida lâmina plástica, com suas bordas agudas, é o instrumento
ideal para romper as extremidades das folhas e chegar à dimensão verbal, que está
repetidamente posta atrás de cada “parede” do volume. Ao se romper as páginas do
fino papel (56g/m²), tem-se acesso à palavra. Para tal, o próprio leitor deve desfazer a
repetição, a monotonia e a barreira que estão figurativizadas na fotografia da parede
para adentrar as reentrâncias do objeto sincrético.

Figura 24 – As
páginas dobradas
ocultam o texto
verbal impresso em
seu interior.
Fonte: MELVILLE,
2005.

78 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 25 – O
ato de cortar as
páginas é realiza-
do com o auxílio
da espátula que
acompanha o livro.
O destinador Cosac
Naify acompanha o
leitor durante todo
o processo de aber-
tura das folhas.
Fonte: MELVILLE,
2005.

Na gestualidade do cortar as páginas, fica muito clara a ação do destinador Cosac


Naify, cuja marca está impressa na espátula que acompanha o livro (fig. 25). Sendo
a espátula tomada nas mãos pelo leitor e utilizada na abertura das páginas não-re-
filadas, o destinador se põe lado a lado com seu destinatário no abrir o livro, pro-
duzindo o objeto. A editora é, assim, quem dota da competência do poder fazer seu
destinatário ao disponibilizar-lhe a espátula e ao arranjar-lhe de certo modo a linha
vermelha. Mais que poder fazer, a editora dota o sujeito também da competência
do saber, pois naquele ato de cortar as páginas com a espátula está uma porção da
própria história do livro. O saber, então, é também sensível, pois o cognitivo in-
teligível se alinha à sensibilidade do sujeito ao experimentar a produção de um livro.
Um e outro saberes, o saber inteligível e o saber sensível, são coordenados.
Quando as páginas que estavam fechadas são, por fim, abertas com o auxílio da
espátula, tem-se acesso ao texto verbal principal do livro (fig. 26). No interior do
livro, o texto é disposto em uma coluna única por página, de 10cm de largura. A
margem externa, de 3,5cm, é muito maior do que a margem interna, de 2,5cm (dos
quais ao menos 0,5cm não se veem, pois estão colados na encadernação). Além de
propiciar a área para uma pega agradável, a margem externa deixa, nos moldes do
regime de assentimento (acidente), espaço para os diversos imprevistos que podem
se dar ao romper cada página.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 79


Figura 26 – Páginas
textuais de Bartle-
by, o escrivão.
Fonte: MELVILLE,
2005.

Nas páginas finais, logo após as 37 dedicadas ao conto de Melville, a editora


incluiu um posfácio escrito por Modesto Carone que se estende por oito páginas.
Após o posfácio, há ainda uma página final de créditos, que condensa também a
ficha catalográfica e o colofão (que traz as informações da fonte utilizada, do papel,
da gráfica responsável e a tiragem).
O verbal escrito é diagramado na versão itálica da família tipográfica Goudy
Old Style. A retidão das linhas encontradas até então na capa, na costura e entre os

80 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


blocos da parede fotografada é contraposta à fluidez das linhas curvas do itálico. O
itálico se assemelha à forma cursiva da escrita, o que remete claramente à profissão
do escrivão. As curvas das linhas e o caráter manual da escrita são enfatizados na
primeira página revelada, na sinuosa letra capitular “S” que inicia os escritos verbais.
Além de retomar a atividade profissional do escrivão, grafar o sistema verbal
totalmente em itálico é uma escolha plástica do plano da expressão que acarreta
diretamente em uma certa construção discursiva do plano do conteúdo. Usualmente,
a escrita é grafada em itálico apenas em certos casos, como para dar ênfase a alguma
palavra ou expressão, em títulos de obras diversas (literárias, pictóricas, fílmicas,
etc.) ou em palavras estrangeiras. Às vezes, o itálico também é utilizado para destacar
algumas porções do texto, como falas ou pensamentos de personagens, ou mesmo
citações, separando-as do chamado “texto principal”. Assim, um dos efeitos de
sentido decorrentes de grafar todo o verbal em itálico é o da delegação de voz: o
enunciador delega a voz a um narrador, que vai conduzir a produção do discurso.
Essa tomada da fala por um narrador, que como veremos é também personagem,
é enfatizada no uso do itálico, que poderia representar uma transcrição exata das
falas e pensamentos do narrador-personagem. A escolha é marcativa de um actante
da narrativa (sujeito) que é ator do discurso. O efeito de sentido decorrente é o
de alguém contando (seja na fala ou na escrita de um profissional de escritório) a
história aqui e agora, em ato, a quem lê.
Quando o narrador delega a voz a algum dos outros personagens, apresentando
sua fala, esta é marcada pelo uso das aspas. Ela é grafada, no entanto, também em
itálico, o que indicaria que essas falas estão escritas conforme as ouviu o narrador,
portanto poderiam estar comprometidas por sua memória ou, mais fundamental-
mente, por seus valores.
Vemos na dimensão verbal da obra que tal narrador é uma pessoa que “sempre
teve a mais firme convicção de que a forma de vida mais fácil é a melhor” (MEL-
VILLE, 2005, p. 1) e que, portanto, valoriza a rotina, a simplicidade, o hábito. É um
advogado, porém um advogado pouco ambicioso. Trabalha com imóveis e hipotecas
e seu escritório fica na Wall Street (literalmente, em português, “rua da parede”). Do
seu escritório, duas vistas: de um lado, a parede branca do saguão do edifício, e do
outro, uma parede de tijolos escurecida.
Certa vez, respondendo a um anúncio, surge no escritório um jovem “levemente
arrumado, lamentavelmente respeitável, extremamente desamparado!” (Ibidem,
p. 7). Era Bartleby, que, por sua aparência sossegada, logo é contratado como co-
pista. Bartleby, porém, virá a ser, segundo o narrador, o “mais estranho de todos

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 81


os escrivãos que jamais encontrei ou ouvi falar” (Ibidem, p. 1). Ele é prontamente
instalado em uma escrivaninha na sala do próprio narrador, porém atrás de um
biombo verde. “Assim, até certo ponto, a privacidade e o convívio se combinavam”
(Ibidem, p. 8). De sua janela, o escrivão tinha vistas apenas a uma parede, a um
metro de distância.
No início de sua carreira, Bartleby trabalha com afinco nas cópias. Mas certa
vez, ao ser solicitado para que conferisse um documento, responde em uma voz
“amena e firme, ‘Acho melhor não’” (Ibidem, p. 9). Incrédulo e surpreso com a calma
de Bartleby, o narrador decide ignorar o evento por hora. A surpresa é explicada
pelos regimes de interação e sentido: ela adveio, pois, da passagem do regime da pro-
gramação (uma ordem a um subordinado que é, sintaticamente, apenas um objeto)
ao do acidente ou assentimento (face ao inesperado da recusa).
A recusa volta a acontecer dias depois, com o mesmo bordão: “Acho melhor
não”. Além disso, outra atitude estranha: Bartleby nunca deixa sua escrivaninha, nem
mesmo para almoçar, e se nega a realizar absolutamente qualquer tarefa que não a
de copiar. O narrador, acostumado com uma rotina, e que encontrava certo valor na
repetição, fica chocado ao lidar com alguém que leva a repetição ao extremo e que
nunca faz absolutamente nada de diferente além das cópias, que não abre nenhuma
concessão. O escrivão, no entanto, “estava sempre ali” (Ibidem, p. 14), era o primeiro
a chegar de manhã e o último a sair. Logo se descobre que ele passa também suas
noites e finais de semana no escritório, solitariamente. Com sua reserva austera, em
seus momentos livres Bartleby apenas fita a parede cega por sua janela.
Após um problema na vista, Bartleby decide parar de vez de fazer até mesmo as
cópias. Ao ser mandado embora, no entanto, sua resposta não chega a ser uma sur-
presa: “Acho melhor não”. Face aos comentários dos colegas de profissão sobre a pá-
lida figura do escrivão, e face às repetidas recusas de Bartleby em deixar o escritório,
o narrador decide se livrar de uma vez por todas do estorvo: muda seu escritório dali
para outro lugar. Bartleby, porém, permanece no cômodo vazio.
Logo chegam notícias, vindas dos novos inquilinos, de que Bartleby rondava o
edifício durante o dia e dormia na entrada do escritório durante a noite. “Gosto de
estabilidade”, diz o personagem (Ibidem, p. 32). Por fim, Bartleby vai preso, como
vadio. Na prisão, morre de fome, pois acha melhor não comer a refeição do lugar.
Discursivamente, alguns dos temas principais destacados em Bartleby, o escrivão
são a privacidade e a reclusão, e também a monotonia e a estabilidade. Os primeiros,
privacidade e reclusão, estão figurativizados no biombo (verde, como a capa do livro),
na parede cega e mesmo na figura reclusa do personagem-título da obra. Já os outros

82 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


temas, monotonia e estabilidade, estão figurativizados na rotina dos escrivãos, no ato
de copiar, no cotidiano dos escritórios de negócios de Wall Street.
No nível narrativo, podemos afirmar que um Sujeito 1 (Bartleby) manipula por
provocação o Sujeito 2 (narrador), que passa então por uma mudança de estados.
Seu objeto de valor era a repetição, com o qual estava em conjunção, mas ao lidar
com a repetição descabida de Bartleby passa a ter como objeto de valor uma roti-
na temperada por uma certa diferença, ou seja, por atitudes mais razoáveis e não
mecânicas.
É assim que, no nível fundamental, encontramos a oposição /repetição/ vs. /di-
ferença/. Tal interpretação é retomada no posfácio de Modesto Carone: “Bartleby
é um escravo naquele cenário. [...] A imagem que se tem é a de um burro de carga
possuído pelo princípio de desempenho que galvaniza Wall Street” (Carone, 2005,
p. 44). Bartleby possui compulsão à repetição, ainda segundo Carone (2005), mas
sua inesperada volição, “Acho melhor não”, é a ruptura na monotonia cotidiana dos
edifícios de negócios daquela determinada região de Nova York.
Os diferentes sistemas semióticos postos em jogo na elaboração do projeto grá-
fico de Bartleby, o escrivão contribuem para a formação de um leitor sensível a to-
dos os aspectos visuais e matéricos que configuram o livro enquanto objeto dotado
também de qualidade sensíveis. Os leitores da editora Cosac Naify, segundo o que se
dá a ver pela própria estrutura intrincada de suas publicações, formam um público
bastante particular, de pessoas que tem ou que estão dispostos a adquirir esse saber
sensível do livro impresso.
Entre os sistemas, uma categoria da expressão (plástica, matérica e mesmo na
visualidade gráfica da escrita) corresponde a uma certa categoria do conteúdo, nas
relações semi-simbólicas do objeto. No plano da expressão, trata-se da oposição
constância vs. variação. A constância, no projeto gráfico, está posta nas linhas retas
que se repetem, nas páginas de paredes iguais, no trabalho gestual realizado pelo
leitor no processo de abrir o livro; a variação está no vermelho da linha que indica
onde descosturar e na sinuosidade da linha curva da capitular “S” que inicia a
história. Já no conteúdo, a oposição semântica de base correspondente é /repetição/
e /diferença/. A /repetição/ é o valor que está investido na atividade de copiar dos
personagens, a regularidade que rege suas vidas. A /diferença/ está na barreira posta
por Bartleby, que é a quebra dessa cadência regular.
Por meio desse projeto gráfico inovador, a Cosac Naify põe em seu objeto to-
dos os gestos do próprio fazer o livro, de seu processo de criação. Descosturar uma
capa e abrir as páginas são gestos que implicam seus processos inversos, ou seja, no

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 83


costurar os cadernos à lombada e no fechar as grandes folhas em que são impressos
os livros em dobras consecutivas até que se tenham formados os cadernos. O leitor
de Bartleby constrói o objeto final com suas próprias mãos e dedos sensíveis, exe-
cutando e ao mesmo tempo sentindo o que é costurar o livro, abrir as páginas dos
cadernos, folhear a obra da direita para esquerda e tatear sentindo a página. Assim,
gestos que estavam inicialmente dessemantizados para muitos leitores em poten-
cial, como o mero virar de páginas, são ressemantizados. A repetição automatizada
do gesto da leitura dá lugar, por meio do projeto gráfico elaborado pela equipe da
editora Cosac Naify, a gestos carregados de sentido em um livro que marca sua
diferença em relação à grande maioria dos volumes disponibilizados no mercado
editorial nacional.

3.3 A fera na selva,


de Henry James

O terceiro título da Coleção Particular é A fera na selva, publicação em que o projeto


gráfico reflete sensivelmente a semiose verbal. O romance, cuja história se passa na
cidade de Londres, narra a relação entre John Marcher e May Bartram. John é um
sujeito inglês que vive em constante angústia, carregando o peso de um segredo: ele
sabe que um evento raro e estranho vai ocorrer em algum ponto de sua vida. Tal qual
uma “fera na selva” pronta para dar o bote a qualquer momento, esse acontecimento
grandioso espera-o e, quando se realizar, John deverá enfrentá-lo.
Certo dia, em um passeio a uma mansão aberta a visitações, John se reencon-
tra com May após dez anos sem notícias um do outro. Apesar de não se recordar
da mulher imediamentente, ela logo lhe refresca a memória e revela saber do seu
segredo, algo que John não se lembrava de haver compartilhado. May confidencia
conhecer certa faceta dele: “o sentimento de estar reservado a algo raro e estranho,
possivelmente prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde lhe aconteceria,
algo de que você tinha nos próprios ossos o pressentimento e a conviccção, e que
talvez o aniquilasse.” (JAMES, 2007, p. 16). Reatados os laços de amizade, May de-
cide, então, aguardar o “ataque da fera” ao lado de Marcher, dividindo com ele o peso
desse futuro acontecimento.
Temos assim, no personagem de John Marcher, um sujeito transtornado que quer
muito conhecer o que será enfim esse evento terrível. Ele parte de um estado inicial

84 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


de conjunção com a ignorância e quer entrar em conjunção com o conhecimento, seu
objeto de valor. Sem saber o que vai lhe acontecer, John não é capaz de se dedicar a
nada mais em sua vida, a não ser em se preparar para esse momento da descoberta.
May possui um afeto especial por John, mas ele é incapaz de sentir o sentir dela.
O interesse romântico parte todo da personagem feminina. Ele não se permite gostar
de ninguém, devido ao fardo que carrega em sua vida. O que é valor para ele não é
valor para ela e vice-versa. May está mais interessada em manter um relacionamen-
to, talvez casar, viver um romance, do que em descobrir o ataque da fera. À medida
que o tempo passa, os personagens vão envelhecendo juntos, adoecendo, sem nunca
entrarem em conjunção com seus respectivos objetos de valor.
A obra trata assim do tema geral da passagem do tempo, da espera, do deixar de
lado determinadas vivências em detrimento de outras que nunca chegam a aconte-
cer. Essa temática geral da passagem do tempo e da busca pelo conhecimento se faz
presente também nas várias figuras que permeiam a discursividade do livro: a angús-
tia do personagem, o segredo que carrega, a velhice, a doença, a selva que esconde
a fera desconhecida. Uma pista deixada pelo autor que ratifica essa interpretação é
o próprio nome dos personagens: Marcher (march, março) e May (maio) são deno-
minações de meses, nomes que já falam sobre a passagem do tempo. Ele é como o
fim do inverno (europeu), angustiado e solitário, e ela é como a primavera, pura
sensibilidade, conforme a percepção de Carone (2007).
Passamos então para o projeto gráfico de A fera na selva, percebendo de que
forma as escolhas de design refletem o texto verbal de Henry James. Já na capa, de
aparente simplicidade formal, encontramos escolhas de design de grande intencio-
nalidade, que a princípio encobrem e depois revelam aspectos da trama por meio de
um uso inteligente do claro e escuro. No primeiro olhar, a capa apresenta o título do
livro, nome do autor e um pequeno glifo, em tinta prata sobre fundo branco.
O leitor é seduzido tatilmente ao tocar a capa do livro (fig. 27), pelo contato físi-
co, e por isso começamos a análise pela dimensão matérica. O papel escolhido para
a capa trata-se do Tyvek Dupont 68g/m², um papel importado de toque suave e com
uma textura que lembra a trama de um tecido. Assim, ao tomar o livro em suas mãos,
o leitor é envolvido corporeamente, pois é convidado a sentir a suvidade da capa, a
sentir as sutilezas de sentido do livro. Porém, essa suavidade trata-se de uma falsa
fragilidade – o papel é na verdade muito resistente, não rasga e nem molha, e por isso
é usado pelo sistema de correios americano FEDEX. Essa grande durabilidade nos
remete ao tema principal do livro: a passagem do tempo.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 85


Figura 27 – Capa de
A fera na selva.
Fonte: JAMES, 2007.

Tanto na capa quanto no restante do livro, a família tipográfica utilizada é a Bell


MT (fig. 28), uma fonte inglesa bastante clássica e que representa muito bem os de-
senhos ingleses de caracteres, dentro de um universo de referências tipográficas. Ela
possui várias linhas curvas e um bom contraste de espessuras, característica comum
das fontes humanistas (que simulam o traçado da pena feito pelo homem), porém
seu eixo vertical, suas serifas contidas (notar a terminação da letra “a”) e a boa legibi-
lidade nos remetem à precisão britânica. Como a edição faz questão de explicitar no
colofão, a fonte foi “gravada em Londres por Richard Austin”, estando assim relacio-
nada ao espaço onde ocorre a ação do texto verbal.

Figura 28 – Título,
composto em
Bell MT.
Fonte: JAMES, 2007.

Na topologia da capa, tem-se um espaço inicialmente bidimensional, mas que se


desdobra e vai assumindo um caráter de objeto tridimensional (fig. 29). A capa é na
verdade uma grande folha de 46cm por 61,5cm, dobrada em oito segmentos, os quais
envolvem o miolo do livro até atingir o formato final de 16cm por 23cm, no qual é

86 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


comercializado. Ao se desdobrar a capa, temos então sequencialmente duas partes,
depois quatro (capa, quarta capa e “orelhas”) e, por fim, as oito partes que exibem
duas fotografias em preto e branco, de um homem e uma mulher (fig. 30). Os sujeitos
fotografados estão vestidos à moda burguesa do final do século XIX, em fotos pro- Figura 29 – A capa
sendo desdobrada,
duzidas em estúdio com um fundo pintado de selva, fazendo alusão ao título do livro.
vista de cima, e
Ele está de casaca, ela de vestido de passeio e cabelo preso com flores, pudicamente, depois a capa
aberta em quatro
como se estivesse se resguardando para alguém. A personagem May Bartram de fato
segmentos.
se guarda para John na trama do livro, em um amor que nunca é concretizado. Fonte: JAMES, 2007.

Figura 30 – Parte
interior da
capa, quando
desdobrada.
Fonte: JAMES, 2007.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 87


Há na gestualidade de desdobrar a capa um processo de afastamento do corpo
do leitor em relação ao corpo do livro, para que possa apreender a totalidade visível
do pôster. Assume-se então uma postura afastada, como que para observar melhor
o livro, haja vista que o distanciamento é muitas vezes a postura adotada quando se
anseia uma visada mais analítica e objetiva em relação a um dado objeto. Afastar-se
para decifrá-lo constitui-se como um fazer investigativo que reclama também a sen-
sibilidade do corpo para desvendar os mistérios do livro. Na imagem interna da
capa, os rostos dos sujeitos foram omitidos pelo enquadramento dado às fotografias,
em um processo de ocultação como o que se deu com a própria imagem, que estava
escondida nas dobras da folha de papel. Pela distribuição topológica das imagens,
os dois personagens não apenas se tocam, mas se fundem em um corpo só, como se
compartilhassem um vínculo muito forte. Na narrativa, esse vínculo é o segredo que
ambos carregam em conjunto.
Cromaticamente, a escala do preto ao branco e todos os tons de cinza que existem
entre ambos formam uma figura da expressão do “branco e preto”, que remete a
fotos antigas e retoma outra vez a temática geral da obra: a passagem do tempo.
Além disso, é importante perceber as cores dos trajes dos personagens. O homem
veste uma abarrotada casaca escura, que envolve uma figura de formas não muito
precisas, escondidas nas sombras da roupa. Sob o traje, a posição do corpo não fica
nítida. A mulher traja um vestido claro, com um trabalho delicado de rendas na
parte posterior e uma modelagem que enfatiza as curvas de seu corpo. A escolha não
é por acaso: na trama da obra, a personagem May é a que entende com mais clareza
a situação, a que percebe mais rapidamente qual seria o destino do protagonista,
enquanto John permanece “às sombras”, por assim dizer. Temos assim uma figura
isotópica da expressão da linguagem visual, claro vs. escuro, que pode ser relacionada
à oposição ignorância vs. conhecimento presente na trajetória do personagem no
conteúdo verbal.
Mas, além do branco e preto, a cor prata que constava no título do livro e nome
do autor também não é acidental, pois o prateado é a cor do grisalho, do cabelo que
sofreu a ação do tempo, retomando assim um dos temas da narrativa.
O cromatismo é ainda mais bem explorado no interior do livro, como se verá
a seguir. Logo ao se abrir o livro, na página de rosto ou frontispício (fig. 31) vemos
outra parte da fotografia da figura feminina sendo revelada. Trata-se de uma das
mãos, de parte do vestido e do objeto que toca suavemente a mão: uma flor de
tecido.

88 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura31 – Fron-
tispício do livro.
Fonte: JAMES, 2007.

Temos então, no frontispício, mais um fragmento da cena revelado, somado ao


jogo de revelar e encobrir que o projeto gráfico figurativiza. Na fotografia, a mão
tateia o objeto, sente suas dobras, sua trama, apreende sensivelmente pelo tato sua
configuração formal. Na dimensão verbal do livro, a personagem feminina, May, já
havia compreendido muito antes de John o que seria o tal bote da fera, o que seria
esse momento impactante na vida dele. E é pela sensibilidade que May o compreen-
dia, por ser uma personagem sensivelmente competente e mais propensa a entender
inteligivelmente a sensibilidade do outro. Assim como a mão tateia a flor e May sente
o porvir em John, a editora Cosac Naify nos faz compreender a obra estesicamente,
por meio da sensibilidade, na trama da resistente capa, em seu desdobrar e na pas-
sagem das páginas que seguem. Nós somos como May, sentimos o livro desde o
começo. Homologando essa semiotização do livro está um depoimento dado pela
designer Luciana Facchini: “A interpretação que o projeto gráfico fez de A fera na
selva está mais ligada à personalidade do casal protagonista e, sobretudo, à perso-
13 Depoimento
nagem feminina.”13 dado pela designer
ao próprio site da
Se passamos à análise do miolo, vemos que o livro possui um percurso visual que
editora (COSAC
acompanha a narrativa verbal (fig. 32). A cor de fundo varia a cada duas páginas, NAIFY, 2013).

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 89


indo desde o fundo branco, passando pelo prateado, até chegar a um fundo escuro,
quase preto. Esse efeito é obtido com o uso de duas tintas especiais (cores Pantone)
na impressão, uma prata clara e outra mais escura. A entrelinha do texto também
diminui ao longo das páginas, acompanhando esse percurso: se no início do livro te-
mos 28 linhas de texto por página, no final, com margens do mesmo tamanho, temos
um total de 31 linhas de texto. Ou seja: o texto vai se comprimindo gradativamente,
Figura 32 –
página a página. O papel também vai mudando de densidade a cada dezesseis pági-
Sequência de
páginas internas, nas (que formam cada um dos “cadernos” na encadernação), ficando mais espesso,
onde se percebe a
e o fino couché fosco inicial de 75g/m² ao final do livro já possui uma gramatura de
variação de cor.
Fonte: JAMES, 2007. 170g/m², um papel bastante grosso.

Essa modificação de cor, gramatura e entrelinha é delicada e gradual, sendo


praticamente imperceptível se tomada uma página em relação à imediatamente se-
guinte. No entanto, a modificação fica evidente se comparamos a primeira e a última

90 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


página de texto, por exemplo. Essa variação é sutil, tal como a passagem do tempo:
de um dia ao outro não se nota muita diferença nas pessoas, mas de uma década a
outra a mudança é incontestável. Assim como o tempo para John se esvai, a gradação
de cinza das páginas é esse esvair, é o meio pelo qual o leitor vivencia a espera do
personagem. A gradação de tons traduz em sincretismo a passagem do tempo.
Uma das consequências do uso da tinta prateada é que, a certa altura do livro,
quando o fundo da página está totalmente preenchido pela cor, há uma certa reflexão
na superfície do papel. A tinta prateada se torna sensível à luz a seu entorno, refletin-
do-a, como se fora um espelho. Presentificado nas páginas, esse espelho é aquele que
nos mostra a passagem do tempo, a realidade temporal e animal de nossa própria
existência. Segundo Leão (2002, p. 116): “o espelho, ao revelar as rugas e as marcas
do tempo que passa, nos resgata essa dimensão.” O espelho revela as transformações
pelas quais passa o corpo humano e assim revela também a morte. Revela-nos a
morte da personagem May, por doença, que acontece já perto do final da narrativa.
No fremir argênteo da passagem das páginas, impossível não se lembrar também
do guizzo, tal como apresentado em Da imperfeição por Greimas (2002, p. 35):

O guizzo – palavra intraduzível [...] – foi-me explicado como um termo que de-
signa o tremeluzir do pequeno peixe saltando da água, como um raio argênteo e
brilhante, que, em um instante, reúne o cintilar da luz com a umidade da água. A
subitaneidade do evento, a elegância dessa gestualidade tremulante, o jogo da luz
sobre uma superfície aquática: eis aqui, imperfeitamente decompostos, alguns
elementos de uma apreensão estética apresentados em uma síntese figurativa.

Esse tremeluzir que se dá no jogo entre o tom de prata mais claro e o prata mais
escuro nos remete novamente à ideia de um espelho, mas um espelho imperfeito,
aquele que deforma, aquele que até certo ponto atrapalha a visibilidade. O espelho é
concretizado no livro, mas ele dificulta a leitura, ele não dá visibilidade, ele reproduz
a dificuldade da espera do próprio personagem. De fato, a leiturabilidade dessas pá-
ginas é bastante complicada: o texto verbal é encoberto pela luz vibrante e é preciso
sensibilidade para adentrá-lo. Toda a angústia que o personagem sente está figura-
tivizada na cor, que tira a clareza, que em seus contrastes atrapalha o foco. O prata é
a “cor do mistério”, há no prateado sempre algo escondido, à espreita.
Essa dificuldade visual de leitura está presente também no plano da expressão
do sistema verbal: o texto apresenta frases densas, parágrafos longos e de sintaxe
complicada. Assim, na “dificuldade” de leitura, tanto visual, pelos jogos de lumino-

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 91


sidade das páginas, quanto devido à sintaxe verbal, retoma-se a categoria do claro e
do escuro. Ou, como expõe Modesto Carone, convidado a escrever no posfácio do
livro (p. 91-92):

A tradução de José Geraldo Couto faz jus ao original. É bem trabalhada, segue
de perto, com discernimento literário, a frase tortuosa de James, bem como seu
ritmo, que é quase sempre redondo e seguro, mas que pode “fechar” numa con-
clusão inesperada. Os diálogos são precisos e breves, preservando a implicação
das falas, que guardam o seu segredo sem ocultá-lo por completo.

O espelho também é fonte de auto-conhecimento. Na passagem das páginas,


embora o fundo escureça, o texto vai ficando claro, vai se iluminando. Temos assim
uma categoria da expressão claro vs. escuro que homologa a oposição do plano do
conteúdo /conhecimento/ vs. /ignorância/. À medida que o texto passa do escuro
para o claro, o personagem John vai cada vez mais refletindo acerca do grande acon-
tecimento que está à sua espera, até que, no fim, já velho, descobre o que é o evento
raro e terrível. Entra em conjunção com seu objeto de valor, o /conhecimento/, e não
é por acaso que o termo é utilizado duas vezes pelo autor no parágrafo final do livro.
O bote da fera na verdade era a própria espera, a espera angustiante por algo que
nunca acontece, uma espera que perdura por toda uma vida e o impede de seguir
adiante, o impede de viver o amor que lhe fora oferecido por sua companheira. Ao se
dar conta, ao entrar em conjunção com seu objeto de valor, John entra em convulsão,
amargurado, e morre.
Descobrimos assim que, ao longo de todo o texto, John deixou de conhecer o seu
destino por não ser capaz de sentir, como o fez May. Como ela possuía a competência
sensível, ela tinha o conhecimento que ele tanto buscava, ela detinha o segredo. May
já havia compreendido há muito tempo que o acontecimento terrível era a própria
espera, que não o deixaria viver uma vida plena.
Após a narrativa, a editora incluiu na publicação o já referido posfácio de
Modesto Carone (intitulado “Uma renovação inesperada da história de amor”), que
auxilia os leitores na elucidação de certos aspectos da trama. Logo após, é interes-
sante perceber que ao lado da página de créditos há uma listagem dos títulos da
Coleção Particular (até então, apenas outros dois). Por fim, a última página traz um
colofão bastante detalhado, que nos informa, por exemplo, tanto o papel da capa
quanto os diferentes papéis do miolo que foram oferecidos à sensibilidade tátil do
leitor ao longo da obra.

92 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Na edição de A fera na selva da editora Cosac Naify, todo o semantismo do
verbal é materializado para que o leitor sinta a trama, para que o leitor seja May. O
enunciador faz o enunciatário saber a partir do sensível. É uma questão de prática
de leitura, de desenvolvimento do gosto de ler, a partir da percepção das sutilezas
do livro.

3.4 Zazie no metrô,


de Raymond Queneau

Obra do francês Raymond Queneau, lançada em 1959, Zazie no metrô foi um grande
sucesso editorial em seu país de origem. O livro pode ser considerado um best seller
na França e teve até mesmo uma adaptação cinematográfica em 1960 dirigida por
Louis Malle. A obra também foi considerada transgressora por se valer do francês
popular, das ruas: a personagem principal fala muitos palavrões e as suas falas e dos
demais personagens são sempre grafadas de acordo com a linguagem coloquial.
Assim como feito com os livros precedentes, começamos a análise com uma
breve apresentação da trama. Na história, a garotinha Zazie é levada por sua mãe
de uma cidade do interior à capital Paris, lugar onde pisa pela primeira vez. A mãe
vai passar o final de semana na companhia de um namorado e Zazie é recebida na
estação de trem por seu tio Gabriel, que fica responsável por cuidar da criança du-
rante aquele fim de semana. A menina possui apenas uma convicção, a de que vai
conhecer o metrô parisiense. Seus planos, no entanto, são frustrados, pois o metrô
está fechado devido a uma greve dos transportes coletivos. Outra obsessão, porém,
poderá ser alcançada: vestir uma calça jeans pela primeira vez.
Para isso, a garota foge logo cedo da casa dos tios e passeia pelas ruas da Paris
da década de 1950. Num mercado de pulgas, encontra um curioso personagem que
pode ser tanto um policial à paisana quanto um tarado (e que posteriormente aparece
ora como um agente de trânsito, ora como um gângster). Após levá-la para almoçar
e para comprar a tão visada calça jeans, o sujeito a traz novamente para a casa do tio
Gabriel e de sua esposa, Marceline. Gabriel decide, então, levar a irrequieta meni-
na para conhecer a cidade no táxi de seu amigo Charles. Ao longo da trama, várias
histórias ocorrem em paralelo, envolvendo os amigos de Gabriel e parisienses diver-
sos: o dono de bar Turandot e seu papagaio Laverdure, a garçonete Mado Petits-Pieds,
a viúva Mouaque, o sapateiro Gridoux, o guia turístico Fiódor Balanovitch e outros
personagens. Depois de uma série de mal-entendidos envolvendo um grupo de turis-

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 93


tas, todos os personagens se reúnem no final da narrativa para assistir ao show do tio
Gabriel – ou melhor, de “Gabriella” – que dança travestido em uma boate.
A capa da edição da Cosac Naify é construída a partir de um cartaz de Robert
Massin para o Club du Meilleur Livre (Massin havia trabalhado com Queneau pre-
viamente, como designer do livro Cent milliards de poèmes, de 1961). Na capa, há
um par de mãos indicando direções contrárias – mãos essas similares a certos orna-
mentos comuns nos antigos clichês tipográficos – e fragmentos de palavras francesas
escritas em corpo grande, elementos impressos em um degradê azul e vermelho, e o
título e nome do autor, elementos impressos na cor preta (fig. 33).

Figura 33 – Capa de
Zazie no metrô, de
Raymond Queneau.
Fonte: QUENEAU,
2009.

A partir das categorias eidéticas, percebe-se na capa um efeito de sentido de de-


sorientação. Enquanto uma das mãos aponta para cima, a outra aponta para baixo.
As palavras francesas que sangram para a parte externa do plano têm a sua continui-
dade tanto para a esquerda quanto para a direita e ainda para a parte inferior da folha
(fig. 34). Considerando ainda a direção horizontal da leitura do título e nome do
autor, temos elementos tanto horizontais quanto verticais, que indicam para todas as
quatro direções possíveis dentro de uma representação ortogonal (há uma profusão
de direções). As palavras em francês não são visíveis em sua totalidade, o que con-
tribui para o sentido de desorientação instaurado na capa da obra.

94 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 34 – Esque-
ma das direções
indicadas na capa
de Zazie no metrô.
Cima, baixo, direita
e esquerda con-
figuram as várias
direcionalidades
conflitantes.
Fonte: elaborado a
partir de Queneau
(2009).

As duas cores utilizadas, o azul e o vermelho, são cores primárias de acordo com
o modelo triádico tradicional das artes plásticas (que não corresponde ao modelo
das cores do processo de impressão). As mãos vestem luvas que, juntamente com o
tipo de punho dos braços, remetem ao uniforme de um inspetor francês. Azul, ver-
melho e branco, bem como o estilo das luvas e as palavras em francês instauram uma
origem geográfica para o texto.
As tipografias utilizadas na capa aparecem também ao longo de todo o livro. No
título, os tipos são da fonte Futura, geométrica e monolinear (sem diferenças de es-
pessuras ao longo do traçado) do estilo display; no nome do autor, a Meridien, fonte
serifada com bastante contraste fino/grosso e também muito legível. Ambas são fon-
tes francesas representantes da época da narrativa (MARTINEZ, 2009).14 14 A Meridien
foi projetada por
Na topologia da capa (fig. 35), vemos como os elementos são compostos em
Adrian Frutiger em
grande parte por linhas verticais e horizontais, que quase se cruzam, montando uma 1957, enquanto
a Futura foi
trama ortogonal no plano. Os dedos formam flechas, que indicam nessa trama di-
desenhada em
reções conflitantes. Entre as pontas dos dois dedos/setas, o título da obra está fragil- 1927 por Paul
Renner, mas
mente equilibrado. Há um encaixe com uma certa aparência acidental entre os ele-
popularizou-se
mentos da capa, como um congestionamento de peças diversas que permaneceram nas décadas de
1950 e 1960.
onde foi possível colocá-las. As palavras em francês, por exemplo, não couberam
por inteiras. Essa profusão de elementos que se cruzam e se encaixam e a multi-dire-
cionalidade traduzem em sincretismo uma certa “cacofonia” particular da prosa de
Queneau, em que as falas e tramas dos diversos personagens se cruzam, se intercep-
tam mutuamente.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 95


Figura 35 – Esque-
ma dos elementos
dispostos na to-
pologia da capa de
Zazie no metrô. Os
formantes plásticos
se encaixam numa
trama ortogonal.
Fonte: elaborado a
partir de Queneau
(2009).

Na quarta capa (fig. 36), há uma retomada dos mesmos elementos da capa
(mãos enluvadas, fragmentos de palavras em francês, degradê de cores e direções
contrárias), além da informação dos responsáveis pelo posfácio (Roland Barthes)
e tradução (Paulo Werneck) e duas frases com (supõe-se) opiniões irônicas sobre o
livro. Uma das opiniões é do crítico Otto Marie Carpeaux e se vale do mesmo lingua-
jar chulo presente em várias passagens da obra (“Zazie? Do caralho!”), enquanto a
outra é na verdade apenas um fragmento de Lorem ipsum, palavras utilizadas comu-
mente como demarcadoras de espaço de texto e que não são, portanto, uma opinião
de seu autor (Cícero) sobre obra alguma.

Figura 36 – Quarta
capa de Zazie no
metrô.
Fonte: QUENEAU,
2009.

96 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Na segunda e terceira capas, uma retícula de impressão ocupa a página inteira
e evidencia o degradê cromático que vai do vermelho, em cima, ao azul, embaixo
(fig. 37). A retícula é o processo utilizado para imprimir imagens com gradações
de tons ou mistura de cores. Em Zazie no metrô, foram utilizadas três tintas de
impressão, sendo uma delas a cor preta, presente no verbal impresso, e as outras
duas tintas especiais presentes nos fragmentos de cartazes que estão distribuídos
por todo o livro.

As páginas pré-textuais iniciam com uma página de ante-rosto, que contém ape- Figura 37 – Na
segunda e terceira
nas o título da obra, e a página de rosto, com o título e autor, nas mesmas tipografias
capas, a retícula
utilizadas na capa (fig. 38). A seguir, há uma epígrafe de Aristóteles e logo após forma o degradê
entre o vermelho e
iniciam-se as páginas textuais, com a história sendo apresentada a partir de seu
o azul.
primeiro capítulo. Fonte: QUENEAU,
2009.
Logo em um primeiro contato, a materialidade do livro apresenta-se como um
forte elemento estésico e de construção de sentido. O volume é todo impresso no
papel Op Opaque de 37g/m², um tipo de papel bíblia muito fino. A encadernação
brochura junta todas as folhas numa cola interna. As páginas, porém, não sofreram
o refile completo: apenas as partes superior e inferior de cada página foram cor-
tadas, deixando na parte externa uma dobra. Assim, a cada quatro páginas “con-
vencionais”, apenas a primeira e a quarta estão claramente visíveis, sendo que as
páginas internas ficam parcialmente ocultas. O papel fino e delicado, encaderna-
do com essa dobra inesperada decorrente da página não-refilada, incita o leitor a

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 97


manuseá-lo cuidadosamente, virando as páginas com leveza. Apesar da produção
industrial, por sua delicadeza o material pode apresentar pequenas imperfeições:
dobras e ondulações decorrentes do processo de dobra, corte e cola. Os gestos de
virar as páginas com delicadeza, de manusear suavemente o livro, são aos poucos
Figura 38 – O
substituídos pelos gestos de querer ver o interior das páginas, abrindo-as levemente,
frontispício do
livro e algumas das espiando a impressão interna (fig. 39). É a maleabilidade do papel, nesse momento,
páginas textuais.
que é explorada pelo leitor para ter uma visão mais ampla do que está impresso na
Fonte: QUENEAU,
2009. face inicialmente oculta das páginas.

98 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Nas páginas externas, o texto verbal é disposto numa coluna única, de corpo Figura 39 – O
processo de
e entrelinha satisfatórios para uma leitura confortável. No interior das páginas,
encadernação do
porém, estão dispostos diversos fragmentos de cartazes, capas e anúncios franceses livro expõe no
lado exterior das
da década de cinquenta. As imagens exibem propagandas de jornais, cartazes de
folhas a mancha
espetáculos e publicidades de bebidas, construindo o efeito de sentido da vivacidade de texto em preto,
enquanto no
e do consumismo da sociedade parisiense da época. As páginas com texto verbal
interior oculta-se
são impressas em preto, enquanto as páginas das ilustrações são impressas com o uma impressão em
azul e vermelho.
mesmo degradê azul/vermelho que estava presente desde a capa. O papel utilizado
Fonte: QUENEAU,
é bastante transparente, recurso fortemente explorado no projeto gráfico. As 2009.

páginas internas, que a princípio deveriam estar ocultas, ficam assim visíveis ao
leitor devido à baixa gramatura do papel. Pela transparência da folha, o leitor vê
não apenas o texto verbal, mas também, com menor definição, as imagens que estão
impressas no verso da sua página e também aquelas do verso da página seguinte.
Há, assim, em uma mesma página, três planos de visibilidade que se dão em níveis
distintos devido à transparência do material, em uma profusão de elementos.
Apesar da visibilidade dada por meio da transparência do papel, existe também
a possibilidade do leitor rasgar as páginas, para observar com mais precisão as
ilustrações internas (fig. 40).

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 99


Figura 40 – Cortan-
do as folhas pelas
suas dobras exter-
nas, o leitor pode
ser surpreendido
com detalhes dos
diversos fragmen-
tos de publicidades
que estavam par-
cialmente ocultos
no interior das
páginas.
Fonte: QUENEAU,
2009.

100 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


A cada início de capítulo, grandes numerais ocupam apoximadamente meta-
de do espaço da mancha de texto (fig. 41). São grafados em Futura, fonte comu-
mente utilizada em cartazes, anúncios publicitários, fachadas de lojas, etc. Fazem
alusão tanto aos diversos estabelecimentos comerciais por onde passa Zazie durante
a história quanto a elementos de sinalética – fazem as vezes de numerais indicativos
de uma determinada linha de trem ou metrô, por exemplo. Como nos demais traços
plásticos explorados pelo livro, a tendência é a da profusão ou do exagero e não a de
seu oposto, a contenção.

Na trama do livro construída pela semiose verbal, conhecemos Zazie, uma Figura 41 – Páginas
de aberturas de
garota aparentemente inocente, porém irrequieta, que quer ir à cidade grande – capítulos.
figurativizada pela Paris da década de 1950 – e viver a cidade. Zazie quer usar calças Fonte: QUENEAU,
2009.
jeans, andar de metrô, tomar cerveja, etc. Em outras palavras, quer abandonar a sua
inocência e assumir uma vida adulta. Os temas da “cidade grande” e do “mundo
adulto” são figurativizados não apenas pelas calças jeans e pelo metrô, mas pelos
diversos personagens da trama e suas ações ao longo da história: dirigem, saem à
noite, bebem, namoram. A Paris retratada no livro é uma cidade caótica: além do
trânsito congestionado devido à greve, há uma profusão de falas, pensamentos,
sexualidades, etc. Assim, a vida adulta se apresenta para Zazie como algo confuso,
incerto e complicado.
No nível narrativo, temos, portanto, um sujeito que é destinador de si: Zazie
quer, por conta própria, conhecer a vida adulta das grandes cidades. Ela parte do

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 101


estado de inocência, de privação desse conhecimento, e no decorrer da história nega
sua inocência e passa a fazer parte daquele universo que a fascinava. Trata-se de uma
história de formação da garota. No final da narrativa, Zazie assiste juntamente com
os outros personagens o show de seu tio Gabriel, sendo ali a única criança do recinto.
Assim, no nível fundamental, temos a oposição semântica composta pelos termos
/infância/ e /maturidade/. O valor da /infância/ é continuamente rechaçado pela
personagem que, apesar da pouca idade, fala palavrões e obscenidades, e para quem
o valor da /maturidade/ é tão eufórico.
Torna-se evidente que esse par de termos opostos é o ponto central da obra na
última passagem da história, um diálogo entre Zazie e sua mãe quando esta recebe a
garota na estação de trem:

– E então, você se divertiu bastante?


– Médio.
– Viu o metrô?
– Não.
– Então, o que você fez?
– Envelheci.
(QUENEAU, 2009, p. 171).

Após a história, o livro apresenta ainda um posfácio de Roland Barthes, uma


nota biográfica (“Sobre o autor”) e uma lista das obras que constituem a Coleção
Particular. Há ainda a página de créditos, uma página com a ficha catalográfica e, na
última página, o colofão (que informa, como de praxe, a fonte utilizada, o papel, a
gráfica responsável e a tiragem). De acordo com Barthes, em sua retomada da obra
realizada no posfácio, a transcrição fonética da escrita de Queneau possui “um certo
efeito barroco” (BARTHES, 2009, p. 179). Sincreticamente, essa escrita peculiar tra-
duz-se em profusão.
A cacofonia das diversas falas, opiniões e rumos da trama é representada, por-
tanto, pela categoria da expressão profusão. Na capa e na quarta capa, os elementos
indicam direções contrárias e escapam aos limites do plano. No miolo, os grandes
números iniciam os capítulos de modo bastante expressivo e no interior das páginas
a profusão é retomada plasticamente pela dinâmica de sobreposições com a visibili-
dade simultânea do texto verbal (1º), do fragmento de cartaz (2º) e da outra metade
do cartaz (3º) que também fica visível.

102 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Temos assim, no livro, novamente uma categoria da expressão contenção vs. pro-
fusão que homologa uma categoria verificada no plano do conteúdo, a de /infância/
vs. /maturidade/.

3.5 Flores,
de Mario Bellatin

Única obra da Coleção Particular publicada originalmente no século XXI, Flores


também se diferencia dos títulos antecessores por ter sido escrita em língua espanho-
la, por um autor mexicano. O livro é composto por 36 fragmentos, que funcionam
também de modo independente como contos e microcontos, cada um deles nomea-
do por uma flor (“Rosas”, “Orquídeas”, “Cravos”, etc.). Há, no entanto, uma história
comum que funciona como pano de fundo para todos os contos. É a seguinte: três
décadas atrás, centenas de recém-nascidos passaram a apresentar más-formações
ao redor do mundo e pelo menos dez mil crianças nasceram sem algum dos mem-
bros. Descobriu-se que as más-formações eram causadas por um medicamento e o
laboratório que o produziu foi acusado em um julgamento que atraiu muita atenção
internacional. As vítimas deformadas do fármaco passaram então a buscar seu lugar
no mundo pela exploração das mais diversas formas de sexualidade e religiosidade.
O narrador de vários contos, e principal protagonista da obra, é também um dos
atingidos, um escritor que não possui uma de suas pernas.
As curtas histórias acompanham diversos personagens, vítimas do fármaco ou
não, envolvidos nesse cenário. No prólogo, Bellatin (2009, p. 5) explica a estrutura da
obra: “A intenção inicial é que cada capítulo possa ser lido separadamente, como se
da contemplação de uma flor se tratasse”.
Na edição da Cosac Naify, o design surpreende já no primeiro contato: o que
tradicionalmente seria a capa do livro é aqui substituído por um invólucro plástico
(fig. 42). Transparente na frente e metalizado atrás, fechado por um pequeno círculo
adesivo, o saco plástico contém em seu interior dois ítens: o miolo do livro, desprovi-
do de capa, e uma folha dobrada à parte que a editora chama de “orelha”, tratando-se
de um breve comentário sobre a obra escrito por Joca Reiners Terron. Enquanto
o invólucro plástico dobrado apresenta as dimensões 17 x 21,8cm, o miolo tem a
forma retangular de 14 x 20cm e a orelha é ainda ligeiramente menor, com 13,7 x
19,7cm (fig. 43).

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 103


Figura 42 –
Invólucro plástico
que envolve o
volume de Flores,
de Mario Bellatin.
Fonte: BELLATIN,
2009.

Figura 43 – O
conjunto da publi-
cação é composto
pela embalagem
plástica, pelo miolo
do livro desprovi-
do de capa e pela
“orelha” solta.
Fonte: BELLATIN,
2009.

104 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


A página de rosto do miolo, visível por detrás da transparência do invólucro,
funciona como a capa do livro. É ali que estão as informações principais da obra:
título, autor, nome do tradutor, marca da editora, código de barras e número do
ISBN. Aparentemente branca, se descobre em um olhar mais atento que a página
de rosto na verdade é de uma tonalidade de verde muito clara. Na materialidade
do miolo sem capa fica à mostra o procedimento de montagem dos cadernos, que
possuem pequenas marcações na lateral de cada um deles indicando a ordem de
montagem. Os cadernos são colados pela lombada e costurados, com as linhas da
costura também à mostra.
Há uma certa crueza no design do livro, algo de rude e violento na escolha de
desprover o miolo de sua capa, como se fora arrancada tal qual os membros dos
personagens da trama (fig. 44). O miolo é inserido em um saco plástico asséptico,
artificial, de matéria não-orgânica e de uso fortemente comercial. Tanto em sua face
frontal transparente quanto em seu verso metalizado, o saco plástico reflete a lumi-
nosidade do ambiente, brilhando na medida em que é submetido a um foco de luz.
Enquanto no papel do miolo há uma certa textura, alguma variação e rugosidade
proveniente das fibras, no plástico o toque é extremamente liso, regular, e sua su-
perfície é reflexiva e fria. Assim, o corpo humano, em toda a sua organicidade, é
confrontado pelo corpo do invólucro plástico em sua artificialidade. O gesto de abrir
a embalagem é também um gesto de enfrentamento da alteridade ou do diferente.

Figura 44 – No
miolo do livro, a
impressão é de que
o que seria a capa
fora arrancado,
deixando aparentes
as “vísceras” do
volume: seus
cadernos, sua cola
e costura.
Fonte: BELLATIN,
2009.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 105


Logo no invólucro do livro, já se estabelece uma forte categoria da expressão
formada pelos termos opostos englobante vs. englobado. O saco plástico engloban-
te é asséptico, regular, liso e reflexivo, enquanto o miolo e orelha englobados são
de uma matéria orgânica opaca (o papel), com pequenas irregularidades e alguma
rugosidade.
Ao abrir o livro, encontramos a seguinte estruturação do miolo: logo após o
fronstispício, há duas introduções curtas, seguidas pelos fragmentos literários e, ao
final, por uma pequena conclusão do próprio autor. Na última página impressa, es-
tão os créditos, a ficha catalográfica e o colofão.
De pronto, percebe-se que cada um dos capítulos ou fragmentos ocupa uma
dupla página do volume. A mancha de texto ocupa a parte central das páginas, é de
alinhamento justificado e composta por uma tipografia serifada levemente conden-
sada. O título aparece logo no começo da página, em tipos bold e de corpo maior.
Ao final de cada fragmento, o número da página em questão aparece entre colchetes.
O bloco de texto é impresso na cor preta sobre o fundo muito branco do papel alta
alvura 120 g/m².
Ao redor da macha de texto, e sangrando para as margens da página dupla, há
uma impressão regular na cor verde clara, que forma uma espécie de moldura para
cada capítulo (fig. 45). Novamente, a categoria englobante vs. englobado é funda-
mental na disposição dos elementos da página: o texto verbal é cercado, ou mesmo
“preso”, por uma impressão lisa, uniforme em verde claro de tonalidade hospitalar.
A mancha de texto varia em seu tamanho, mas a moldura que a cerca é constante.
Tanto na capa e no invólucro quanto nas páginas internas, os elementos englobante
e englobado são vistos concomitantemente, em uma relação de disputa.
O espaço englobante de cada capítulo é, desse modo, liso, uniforme e regular,
constante ao longo de todos os 36 fragmentos do livro. O verde claro é sutil, diferen-
ciando-se muito tenuamente do branco do papel. Trata-se de uma cor quase “neutra”,
que não é marcante e, portanto, pode remeter ao tipo de cores utilizadas no ambiente
de um hospital. Ainda assim, o verde está sempre regulando a área da página, cer-
ceando o bloco de texto.
Já o espaço englobado da página é rugoso, pois a própria tipografia cria uma
textura que compõe a mancha de texto. O espaço englobado não é uniforme nem
homogêneo ao longo da obra. Suas dimensões são variáveis e vão desde pequenos
blocos de 3,6 x 6,3cm, que ocupam apenas uma das páginas, sempre localizados
próximos ao miolo e em uma centralização vertical, até blocos grandes de 16,9 x
25,1cm, que também se posicionam no centro das páginas duplas.

106 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 45 – Algu-
mas das páginas
do miolo do livro.
Cada fragmento
ou capítulo é
centralizado em
uma página dupla
e englobado por
uma impressão em
verde claro que
forma uma moldura
na página.
Fonte: BELLATIN,
2009.

Duas tipografias são utilizadas ao longo do livro (fig. 46). Nos títulos, a família
15 A Helvetica foi
escolhida é a Helvetica15. Ela é utilizada indiscriminadamente nas mais variadas desenvolvida em
meados do século
peças gráficas ao redor do mundo, sendo considerada uma tipografia quase “neutra”.
XX. É uma tipografia
É bastante comercial, com formas regulares, sem grandes surpresas ou detalhes ex- sem serifas que,
segundo Rocha
cessivos no desenho de seus tipos.
(2005, p. 129),
representa “o Swiss
Style e a limpeza
do design suíço dos
anos 1950 e 1960”.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 107


Figura 46 – As duas
famílias tipográficas
utilizadas no livro.
Acima, no título da
obra, a tipografia
Helvetica e, abaixo,
no nome do autor, a
tipografia Melior.
Fonte: BELLATIN,
2009.

16 A Melior foi Já na mancha de texto, a família utilizada é a Melior.16 De uso recomendado para
criada em 1952
jornais e peças gráficas empresariais, a Melior possui tipos levemente condensados.
por Hermann Zapf
em Frankfurt, na Sua escolha em Flores pode ser uma alusão tanto aos personagens alemães que estão
Alemanha.
na trama do livro quanto às grandes corporações como as da indústria farmacêutica.
No que é chamado “orelha” do livro, a folha dobrada com o comentário sobre a
obra, abandona-se a tonalidade verde do miolo, demasiada clara (fig. 47). O próprio
papel utilizado é colorido, um color plus também verde, mas muito mais evidente.
A cor mais marcada do suplemento coincide com um texto que é uma tomada de
posição, uma opinião sobre a obra.
No livro, verbalmente, Bellatin se vale de uma quantidade grande de personagens
para construir o nível discursivo de seu texto. Cada um dos pesonagens está
envolvido em sua própria narrativa e alguns possuem mais importância que outros.
Os principais estão listados a seguir: Olaf Zumfeld, o cientista que descobriu a
substância causadora das más-formações, um dos únicos peritos autorizados a
avaliar os casos para que as vítimas recebam suas indenizações; Henriette Wolf,
a secretária de Olaf que recebe rispidamente os pacientes; Amante Outonal, um
homem com atração sexual por anciões; os gêmeos Kuhn, dois irmãos sem braços
nem pernas que são abandonados em uma gruta quando bebês; Alba, a Poeta,
mulher que adota os gêmeos Kuhn; Marjorie, manicure norte-americana, e seu
marido Brian, enfermeiro, casal que entra em conflito a partir de uma gravidez
indesejada; Eva, tia do Amante Outonal, uma idosa que vive em reclusão; uma
crítica literária cujo ex-marido trocara de sexo. Há ainda o escritor que protagoniza
a maior parte dos relatos e outros personagens de menor participação na trama,
alguns cujo nome nem é mencionado.

108 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Na narrativa do livro, o medicamento que é apresentado inicialmente como Figura 47 – O que
é chamado pela
solução de um problema (enjoos) logo se apresenta como causador de outros e
editora de “orelha”
maiores problemas. Assim, a suposta infalibilidade da medicina é posta em xeque. do livro vem à
parte, descolada do
As fabricantes de medicamentos são mostradas como empresas guiadas pelo lucro e
miolo, em uma fo-
não como sujeitos preocupados com o bem-estar dos homens. Ao questionar o papel lha de papel verde
dobrada ao meio.
da ciência, o livro faz uma crítica dura à indústria farmacêutica e também ao caráter
Fonte: BELLATIN,
geralmente inquestionável que se atribuiu às ciências na sociedade contemporânea. 2009.

Os personagens, ao negar o valor da ciência, se voltam para si mesmos, para suas


vontades e anseios.
Assim é que concisamente se constrói a categoria do conteúdo formadora do
nível fundamental do texto: /cultura/ vs. /natureza/. Os valores fundamentais são
evidenciados na última passagem do livro:

As perguntas sobre o que acontece com os mecanismos de informação da ciência


quando esta comete um erro talvez nunca sejam respondidas. [...] Enquanto isso,
as relações entre pais e filhos, entre o anormal e o normal na natureza, a busca
por sexualidades e religiões capazes de se adaptarem às necessidades de cada
indivíduo, seguirão seu rumo [...] (BELLATIN, 2009, p. 79).

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 109


Quando a ciência, a expressão mais precisa da cultura, falha, os personagens de
Flores se voltam para a busca de seus próprios prazeres, ou seja, para a sua própria
natureza. Essa oposição semântica é evidenciada na plasticidade da obra pela cate-
goria englobante vs. englobado. Enquanto os elementos englobantes são aqueles que
se impõem, que cercam, que são artificiais, lisos e assépticos, tal qual a cultura sob a
ótica de Bellatin, os elementos englobados são aqueles rugosos, irregulares e vivos,
como a natureza dos personagens da obra.

3.6 Museu do romance da Eterna,


de Macedonio Fernández

Uma obra sui generis escrita ao longo de 40 anos, e ainda assim inacabada, Museu do
romance da Eterna foi publicada pela primeira vez na Argentina quinze anos após
a morte de seu autor, Macedonio Fernández. O livro é organizado em duas partes,
de tamanho mais ou menos equivalente: uma série de prólogos e o “romance” em si.
Sem uma narrativa linear, o livro mistura fragmentos narrativos, apresentações da
obra, descrições dos personagens, diálogos soltos e diversas reflexões do autor sobre
o próprio trabalho, sobre a literatura em geral e também reflexões de cunho filosó-
fico. Em sua escrita, ainda, Fernández se dirige diretamente a seus leitores e também
aos críticos, dando a certas passagens um caráter epistolar.
Pelo pouco que se pode apreender nos fragmentos da trama, Eterna é uma mis-
teriosa e bela personagem por quem o autor é apaixonado (o autor é também perso-
nagem da trama e, portanto, um dos atores do nível discursivo do texto). Ela mora na
estância O Romance, o lugar onde ocorre a “trama”, por assim dizer. Nessa estância,
vivem os diversos personagens que participam do livro: Quiçagênio, Doce-Pessoa,
Deumamor, entre outros que participam efetivamente ou são apenas mencionados
em algum dos prólogos. A estância é comandada pelo Presidente, o personagem cuja
figura se mistura à do próprio autor.
O autor-Presidente, entende-se, prepara um romance em homenagem a Eterna:
“A ti, existas ou não, dedico esta obra; és, pelo menos, o real de meu espírito, a Bele-
za eterna” (FERNÁNDEZ, 2010, p. 15). Tal romance sobre a Eterna possui vários
pedaços, ideias, apresentações, prólogos, mas nunca é de fato concluído. Ele está
sempre em desenvolvimento, em processo. No livro, todas essas diversas partes são
reunidas como se fossem uma coleção de museu e, por isso, se dá o título da obra:

110 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Museu do romance da Eterna. O livro é a coleção de todos esses fragmentos, um mu-
seu erigido em homenagem a um trabalho nunca finalizado.
A edição da Cosac Naify é um pequeno volume de 12,5cm por 19,5cm, encader-
nado em capa dura. Trata-se do único título da Coleção Particular encadernado em
capa dura e também do mais extenso: possui 264 páginas. Na materialidade da capa
(fig. 48), um áspero papel roxo recobre o papelão que dá rigidez ao invólucro. Apesar
da rigidez da capa dura, o papel de cobertura parece um pouco frágil, poroso. Ao
deixar o livro por apenas poucas semanas em sua prateleira, o leitor percebe uma
peculiaridade do material: a lombada, exposta à luz, já começa a desbotar. Tal efeito,
claro, é intencional. Segundo a designer Elaine Ramos:

O papel rústico da capa foi selecionado por ser vulnerável à ação do tempo. As-
sim, ao desbotar-se, o romance logo apresentará um aspecto condizente com o
conteúdo do livro, que é, a um só tempo, um esboço — uma obra inacabada, em
processo — e um clássico. (RAMOS, 2011).

Figura 48 – Capa
de Museu do
romance da Eterna,
de Macedonio
Fernández.
Fonte: FERNÁNDEZ,
2010.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 111


Assim, o papel da capa envelhece rapidamente. Após poucos meses, as áreas to-
cadas pela luz do Sol são visivelmente clareadas. O próprio papel é de coloração ir-
regular, mais ou menos manchado em cada parte da superfície, e sua textura rugosa
é também irregular. Sobre o cromatismo roxo do material é feita uma impressão em
tinta preta. A cor da impressão, negra sobre um fundo escuro, dificulta um pouco a
leitura, deixando os caracteres menos nítidos, o que, juntamente com a vulnerabili-
dade do material, constrói uma categoria da expressão de imprecisão.
Na capa, a totalidade da superfície é coberta de diversos fragmentos verbais,
recortes do interior do livro. As passagens são intercaladas por linhas verticais e
horizontais de duas espessuras distintas e por caixas pretas em que as principais in-
formações aparecem vazadas: o nome do livro, do autor e o termo explicativo “(pri-
meiro romance bom)”. Esse termo faz alusão a outro trabalho do autor, Adriana
Buenos Aires (“último romance ruim”), que segundo os editores foi concebido para
ser publicado juntamente com o Museu do romance da Eterna. Todos os fragmentos
selecionados para constituirem a capa são trechos em que Fernández trata justa-
mente da relação dos leitores com as capas de livros, conforme transcritos a seguir:

Como a circulação de capas e títulos se deve às vitrines, bancas de jornais e


anúncios, o Leitor de Capa, Leitor de Porta, Leitor Mínimo, ou Leitor Não Con-
seguido, tropeçará finalmente aqui com o autor que o levou em consideração,
com o autor da capa-livro, dos Títulos-Obras.
E considero que O leitor alcançado deve ser o título do Título que estamos apre-
sentando de nosso romance, pois um primeiro fato já aconteceu em sua capa,
onde o Leitor Mínimo é completamente alcançado pela única coisa que mes-
quinhamente os livreiros leram: a capa, a única coisa que é editada na maioria
dos livros.
Calcula-se cem leitores de capa para um de livro; títulos-texto e capas-livros
não erram leitor: são a única esperança de um grande raio de ação da brilhante
Literatura, na maioria das vezes a guardada e secreta Literatura [...].
Nunca um livro te terá feito tão feliz.
Aos que se retirem por ter acabado de ler meu título, previno que meu livro
continua depois, que não pertence ao gênero dos fac-símiles em madeira que
simulam bibliotecas repletas. Sendo assim, se o leitor não continua lendo, não
tenho culpa de não tê-lo avisado. Já é tarde para nos encontrar-mos aqui, o autor
que não escreve com o leitor que não lê: decididamente, agora escrevo.

112 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Assim, pela seleção dos fragmentos, o caráter metadiscursivo é explicitado na
capa. Esta é explorada como potencialidade comunicativa e midiática do próprio li-
vro. Na quarta capa (fig. 49), a mesma disposição topológica da capa é retomada: duas
colunas, com diversos fragmentos textuais intercalados por linhas de duas espessuras
e por caixas pretas com a tipografia vazada. Nas caixas pretas, três breves comentários
de outros escritores de língua espanhola (Ricardo Piglia, Enrique Vila-Matas e Julio
Prieto) sobre Museu do romance da Eterna são apresentados. Consta também o nome
do tradutor (Gênese Andrade), o código de barras e novos fragmentos metadiscur-
sivos, dessa vez tratando do próprio romance. Destaca-se o último deles, por estar
diretamente relacionado à imprecisão do material e do cromatismo da impressão: “A
desordem do meu livro é a de todas as vidas e obras aparentemente organizadas.”

Figura 49 – Quarta
capa de Museu do
romance da Eterna.
Fonte: FERNÁNDEZ,
2010.

Na capa, quarta capa e também no miolo do livro, duas famílias tipográficas são
utilizadas: Akkurat e Proforma. A primeira delas é um tipo sem serifas, moderno e
de bastante impacto visual, sendo utilizada nos títulos e subtítulos. A segunda é um
tipo serifado e legível, com a qual é composta a mancha de texto. Ambas são tipogra-
fias ligeiramente condensadas (estreitas), o que parece dialogar com o formato do
livro, também levemente mais estreito que a média.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 113


Ao abrir a capa, o leitor depara-se com guardas compostas por um firme papel
color plus, de gramatura aproximada 150g/m², e de uma vibrante coloração alaran-
jada (fig. 50). O cromatismo salta aos olhos, especialmente pelo contraste gerado
em relação ao roxo da capa. Uma combinação cromática muito comum em peças de
design gráfico é o contraste entre laranja e azul, matizes diametralmente opostos no
Figura 50 – As disco de cores; essa escala cromática é chamada de complementar (“duas cores opos-
guardas inicial e
tas no círculo cromático”, segundo Fraser e Banks, 2011, p. 52). No entanto, a capa
final do volume,
com sua coloração utiliza a cor roxa, que está ao lado do azul no disco de cores e, portanto, não se trata
laranja vibrante.
de um esquema complementar perfeito, mas sim impreciso. Ainda assim, o contraste
Fonte: FERNÁNDEZ,
2010. é bastante intenso entre as duas cores e traz uma vivacidade ao volume.

As guardas são, tal qual a capa, completamente repletas de texto verbal. Na guar-
da inicial, há uma apresentação de Damián Tabarovsky, na qual um dos trechos faz
uma síntese bastante precisa da obra: “romance fragmentado, antirrealista, eterno
work in progress, o livro avança a partir de uma série de prólogos que precedem um
texto que nunca chega”. Na guarda final, há uma nota “sobre o autor”, os créditos,
ficha catalográfica e colofão do livro.
Uma das passagens da obra parece explicar várias escolhas do design:

Espero que o meu, o meu Editor, não me exponha ao ridículo inserindo as cinco
[tradicionais] folhas em branco [...]. Se há Crítica para o escrito, faço a do em
branco, essas páginas que são publicadas pelos Editores e criticadas por mim
[...]. Repudio como falsas todas as páginas em branco que se publiquem aqui

114 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


como originais de minha assinatura; redondamente as desconheço autênticas
[...] (FERNÁNDEZ, 2010, p. 122).

Assim, é fazendo jus às palavras do autor que a capa, quarta capa e guardas são
completamente preenchidas de texto verbal e que da guarda se passa diretamente às
páginas do miolo, sem a convencional página de rosto, ante-rosto, sumário, etc.
O miolo do livro é impresso em cor preta sobre o papel Pólen Soft de gramatura
80g/m², levemente amarelado e de superfície regular. O que é irregular na materia-
lidade, no entanto, é a margem lateral externa do livro (fig. 51). Por meio de um
sistema de dobras realizado durante o processo produtivo, o volume termina com
sua margem externa sem um corte final e preciso. Cada página fica com uma largura
total que varia dos 11,3cm aos 11,8cm. Desse modo, meio centímetro da lateral do
bloco de páginas fica impreciso, desalinhado. O resultado final parece uma pilha de
papéis, folhas soltas empilhadas sem muito esmero. Trata-se de uma figurativização
do próprio processo de escrita do livro, que é disperso, incompleto e eternamente
em produção.

Para navegar nessa pilha de papéis, há um percurso gestual a ser seguido que é o Figura 51 – Detalhe
da lateral irregular
de investigar os diversos fragmentos escritos, como se o livro fosse verdadeiramente
do miolo de Museu
um empilhamento de folhas e documentos dispersos autônomos, avançando e retro- do romance da
Eterna.
cedendo na passagem de páginas sem uma ordenação rígida. Pela estruturação da
Fonte: FERNÁNDEZ,
escrita de Fernández, há uma gestualidade de ir e vir constante entre os fragmentos 2010.

textuais, entre os prólogos e os capítulos, na tentativa do leitor de, pela relação das
partes, apreender a totalidade da narrativa.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 115


No centro dos vários cadernos que compõem o miolo do livro, a linha da costura
fica visível em coloração amarela vibrante. O matiz, no entanto, não corresponde ao
amarelado do papel, muito menos saturado e reflexivo. Assim, na costura aparente
e contrastante com o papel, e principalmente na lateral irregular do livro, a materia-
lidade retoma a categoria da imprecisão em oposição à suposta precisão, que não é
explorada.
A primeira parte do livro é composta de 62 prólogos (três desses “prólogos” são
guardados para o final do volume, após o texto principal). Neles, o autor apresenta
Figura 52 – Algu-
mas das páginas seus personagens, tanto os que participam do romance quanto os que ficaram de
da primeira parte
fora da trama, e também apresenta sua proposta e estilo literário, que ele mesmo
do livro, composta
de seis dezenas de denomina como “antirrealista”. Sobretudo, o autor se apresenta enquanto autor e,
prólogos.
dirigindo-se diretamente ao leitor, estabelece o tipo de relação que deve se dar entre
Fonte: FERNÁNDEZ,
2010. ambos ao longo do livro.

116 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Em sua distribuição na topologia da página, cada um dos prólogos é circundado Figura 53 –
Algumas das
por um traço preto em seus quatro lados (cima, baixo, direita e esquerda), separan-
páginas da segunda
do-o dos demais e reafirmando seu caráter de fragmento. Assim, há um acúmulo de parte do livro,
aquela do romance
retângulos nas páginas que compõem os prólogos, o que retoma o acúmulo da pilha
propriamente dito.
de papéis que a lateral irregular do livro figurativiza (fig. 52). Fonte: FERNÁNDEZ,
2010.
Nos prólogos, verbalmente, o autor logo estabelece seu leitor como o leitor
“salteado”, aquele que pula páginas em uma narrativa convencional, ao invés de
seguí-las uma após a outra. Portanto, o autor informa que fará também um livro
salteado, sem uma continuidade precisa entre suas partes. A sintaxe convencional
do livro, que havia sido abandonada desde a ênfase dada na grande quantidade de
escritos “pré-textuais”, é assim assumidamente renunciada pelo autor.
Após os prólogos, na parte em que, supõe-se, consta o romance propriamente
dito, a divisão por retângulos é abandonada. O texto é disposto em uma mancha de
texto tradicional, de coluna única, e o fólio passa a aparecer, ocupando um espaço na
margem lateral externa da página (fig. 53).

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 117


Considerando a semiose verbal do livro, tem-se no nível discursivo um tema geral
que é o do próprio fazer literário. Esse tema é figurativizado bastante explicitamente
no nome da estância onde acontecem algumas ações: “O Romance”. Os próprios per-
sonagens mostram-se cientes, em vários momentos, da sua condição de personagens
e, portanto, de entidades ficcionais literárias. A relação que se estabelece entre autor
e leitor, do âmbito também da literatura, é trazida à tona na construção do texto. Ao
instaurar um narrador-autor que se dirige continuamente a um leitor, tem-se uma
ênfase da relação eu-tu que se estabelece entre os dois termos da figura complexa da
enunciação: o enunciador e o enunciatário. Esse momento da enunciação é, pois, le-
vado ao enunciado, em uma enunciação enunciada que reitera, portanto, o processo,
o caminho a ser percorrido na elaboração de qualquer manifestação.
Autor e leitor são, mais que destinador e destinatário reais da manifestação,
personagens que fazem as vezes de atores do discurso. O trecho seguinte explicita
a posição deles como inseridos no nível discursivo do enunciado: “AUTOR: – (...)
O que me ocupa é o leitor: és meu assunto, teu ser desvanecível continuamente; o
mais é pretexto para te ter ao alcance de meu procedimento. LEITOR: – Obrigado.”
(FERNÁNDEZ, 2010, p. 247).
Ao se deparar com o nível narrativo, o analista desse texto pode inicialmente
pensar que as mudanças de estado relevantes na construção de sentido da obra são
aquelas realizadas pelos sujeitos-personagens que vivem na estância O Romance.
No entanto, logo se percebe que esse não é o tema principal da obra, ou seja, não é
sobre isso que Macedonio Fernández escreve. Museu do romance da Eterna trata do
próprio processo literário. Partindo de uma expectativa de conformidade com um
produto final esperado por seu leitor, o produto “romance”, já tão conhecido daque-
les que tem mais avidamente o hábito da leitura, o sujeito-autor faz questão de negar,
enquanto valor, o romance acabado, finalizado. O processo de escrita, ao invés do
resultado final, é que é continuamente enfatizado.
No nível fundamental, assim, os valores que organizam a geração de sentido são
os termos opostos /processo/ vs. /produto/. O valor disfórico é o do /produto/ acaba-
do, o resultado alcançado. O que o livro propõe é justamente encarar como positivo
o valor do /processo/, do desenvolvimento de uma obra literária.
Por fim, pode-se encontrar novamente a homologação entre plano da expressão
e plano do conteúdo. A categoria da expressão impreciso vs. preciso, que estava
instaurada principalmente pela materialidade do objeto, na desorganização das
folhas empilhadas que constituíam o miolo e na fragilidade e falta de nitidez da

118 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


capa, corresponde à categoria do conteúdo /processo/ vs. /produto/. Assim como
Fernández euforiza o processo, o projeto gráfico do livro explora a sua imprecisão.
Desse modo, as escolhas de design trazem para a plástica do livro os valores
fundamentais do texto.

3.7 Avenida Niévski,


de Nikolai Gógol

Passamos agora à análise final da sétima obra da Coleção Particular. Publicado ori-
ginalmente no ano de 1835, Avenida Niévski é um conto do russo Nikolai Gógol. Ele
inicia com o relato de como é o dia-a-dia dessa importante avenida de São Peters-
burgo, enfatizando sua modernidade, seu ritmo, sua circulação de pessoas e notícias:
sua vida. A avenida era essencialmente um local de passeio na cidade russa. Assim a
apresenta Gógol (2012, p. 2): “Basta entrar na avenida Niévski para sentir o aroma de
um passeio. Mesmo que tenhamos algum assunto urgente e incontornável, ao entrar
na avenida certamente esqueceremos tudo.”
À maneira de uma observação etnossemiótica (MARSCIANI, 2012), Gógol des-
creve os corpos que circulam na avenida em seus diferentes horários: o fraco movi-
mento da manhã; no início da tarde, preceptores com seus pupilos e governantas com
crianças; ao longo da tarde, corretos funcionários públicos e senhoras de chapéu,
vestido e lenço; no crepúsculo, o guarda noturno acende os lampiões e a avenida fica
cheia de jovens solteiros com sobrecasacas espiando por baixo dos chapéus de belas
senhoras. O conto então relata dois casos desses jovens que passeiam pela avenida,
que constituem dois exemplos do tipo de acontecimento recorrente que dá vida às
largas vias da Niévski.
O primeiro personagem que acompanhamos é Piskarióv, um pintor tímido e
ingênuo. Ao ver uma sensual moça de pele branquíssima caminhando pela avenida
ele a segue, extasiado, até um “local de depravação” (um prostíbulo, conforme se dá
a entender) onde ela adentra. Assustado com o ambiente em que circula a moça, o
pintor foge, mas passa a pensar nela o dia inteiro e a sonhar com ela durante a noi-
te. Num estado de permanente devaneio, Piskarióv deixa de comer e assume uma
aparência devastada. Por fim, o pintor volta a visitá-la, convidando-a a largar aquela
vida e casar-se com ele, mas ela recusa. Ele, enlouquecido, volta a sua casa e corta a
própria garganta com uma navalha.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 119


O segundo personagem é o tenente Pirogóv, presunçoso e vaidoso, que, ao ver
uma lourinha caminhando na avenida, a segue também até uma funilaria, onde des-
cobre que ela é esposa de um artesão alemão. Ainda assim, Pirogóv não desiste de
investir na jovem mulher e, sob o pretexto de solicitar os serviços do alemão para
que faça esporas para um calçado e depois um engaste para um punhal, passa a fre-
quentar o local e a assediá-la. Num certo domingo, ao encontrá-la sozinha, se lança
sobre ela disparando beijos, no que chega o marido alemão acompanhado de dois
grandes colegas que brutamente o expulsam dali para que nunca mais retorne.
Na edição da Cosac Naify, Avenida Niévski é acompanhado de outro escrito de
Gógol, Notas de Petersburgo de 1836. Nesse pequeno volume, o autor traça um pano-
rama da cultura local, iniciando com as diferenças em relação a outra grande ci-
dade russa, Moscou, passando pela paixão dos cidadãos de Petersburgo pelo teatro
e concluindo com uma descrição dos festejos citadinos da Quaresma e Páscoa, que
costumavam atrair visitantes de muitos locais da Europa.

Figura 54 – Capa de
Avenida Niévski, de
Nikolai Gógol.
Fonte: GÓGOL,
2012.

O primeiro contato do leitor com a obra acontece por meio do invólucro dos
dois volumes, uma inesperada folha de papel dobrada que simula um jornal (fig.
54). Impressa em tinta preta está uma reprodução do periódico Sangtpetersburgkiia
Vdomostide de 1º de janeiro de 1835. Na materialidade do papel escolhido, se per-
cebe a coloração, acabamento fosco e dimensões totais próximos a de uma folha de

120 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


papel-jornal de verdade, embora o material aqui utilizado seja de maior gramatura
e muito mais resistente.17 Nas colunas do jornal, o alfabeto cirílico causa certo es- 17 Na primeira
reimpressão,
tranhamento no leitor ocidental. O jornal apresenta juntamente ao seu título um
lançada também
grande brasão de um pássaro com duas cabeças, uma coroa e um escudo no centro, no ano de 2012, foi
utilizada uma folha
compondo um cabeçalho também bastante diferente dos periódicos da atualidade.
de papel-jornal
A reprodução de um jornal aponta para uma prática comum de embrulhar cer- autêntico, portanto
bem mais frágil.
tas mercadorias em papel jornal, o que remete imediatamente às diversas lojas e
comércios que são descritos no conto como constituintes da paisagem da avenida
Niévski. Além disso, o periódico de circulação diária é indicativo de uma certa rit-
micidade, de um fluxo constante de notícias e pessoas que também é assumido por
Gógol (2012) como uma das características fundamentais da Niévski.

Figura 55 – Ao
ser desdobrado,
o embrulho que
simula um jornal
revela entre
suas dobras os
dois volumes
que compõem a
publicação.
Fonte: GÓGOL,
2012.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 121


Na face frontal do embrulho há um adesivo verde, colado por cima da impressão
do jornal russo. No adesivo estão as informações principais que constam usualmente
na capa e quarta capa do livro: título, autor, editora, tradução e código de barras com
o ISBN. O adesivo corrobora a ideia de um embrulho de mercadoria, pois nesse tipo
de embrulho o fechamento do pacote é feito muitas vezes com o uso de fita adesiva.
Ao se abrir o pacote horizontalmente, vê-se que a dobra da folha é estratégica, de
modo a revelar os títulos que estão localizados no centro dos dois volumes, Avenida
Niévski e Notas de Petersburgo de 1836 (fig. 55).
Iniciando a descrição e análise pelo volume que dá título à publicação, Avenida
Niévski, percebe-se na capa uma grande simplicidade formal. A escassez de elemen-
tos da capa não cria assim nenhum tipo de conflito com a reprodução do jornal,
que está carregada de informações visuais. Centralizados na capa estão o título e o
nome do autor. É interessante perceber como essas duas informações estão em cores
diferentes (a primeira em laranja, a segunda em azul escuro) e orientações diferentes
(o nome do autor está rotacionado em 180°). Na quarta capa, valendo-se da mesma
disposição, estão o nome do tradutor e a identificação da editora, Cosac Naify.
Ao abrir o livro, percebe-se que as páginas do miolo são todas divididas ao meio,
sendo a metade superior impressa em laranja e na orientação comum de leitura, e
a metade inferior impressa em azul e rotacionada 180° (“ponta-cabeça”). O papel
utilizado no miolo é o Munken Pure Rough 100g/m², bastante poroso e levemente
amarelado, similar ao Pólen Bold.
O livro inicia com uma série de reproduções de litogravuras, chamada Panora-
ma Nievskovo Prospiekta, de I. Ivánov e P. Ivánov, elaborada a partir de aquarelas de
Vassíli Sadonovnikov, publicadas entre 1830 e 1835 por André Prevost. As gravuras
detalhadas retratam a avenida da época da narrativa em toda a sua extensão. Pelas
vias passam homens uniformizados, mulheres de vestido, cavalos, carruagens, ca-
briolés, homens de casaca, crianças e viajantes, todos se movimentando em frente a
instituições públicas, igrejas, prédios baixos, comércios, ruas menores, pontes e ca-
nais. Trata-se de uma figuratividade bastante icônica, retomando com riqueza de de-
talhes o mundo vivido pelos cidadãos de São Petersburgo no século XIX. As páginas
iniciais, em sua porção superior (impressa em laranja), traçam o panorama completo
do lado esquerdo da Avenida Niévski (fig. 56). Na rotação do volume, substituindo
o alto pelo baixo, troca-se também o lado esquerdo pelo lado direito da via. O gesto
de virar o livro que o leitor executa é, portanto, o próprio gesto daqueles que pela
Niévski passeiam, indo e vindo por ambos os lados da avenida.

122 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 56 – O
volume Avenida
Niévski inicia-se
com uma série
de gravuras, que
mostram a avenida
do título nos dois
lados de sua via. A
seguir, as pági-
nas textuais são
divididas ao meio
e a leitura deve ir e
vir pelos blocos de
texto, como se fora
um passeio pelas
páginas.
Fonte: GÓGOL,
2012.

Após as gravuras, começam as páginas textuais propriamente ditas. O bloco de


texto, centralizado na página, é dividido também ao meio. A leitura inicia-se pelos
blocos superiores e, quando no final do volume, uma seta indica que a leitura con-
tinua agora pelos blocos inferiores. O leitor deve então rotacionar o volume e fazer
toda a leitura no sentido inverso, tal qual o ir-e-vir que era realizado nos passeios
pela avenida. Ao fim do texto verbal, retomam-se as gravuras, agora exibindo um
panorama do lado direito da avenida. O cromatismo laranja e azul escuro instaura o
tema da passagem do tempo, ao figurativizar as cores do amanhecer e do pôr do sol.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 123


Pela disposição dos elementos nas ilustrações, o fluxo e a continuidade são en-
fatizados. Cada gravura pode ser dividida em aproximadamente seis partes (fig. 57).
No 1/6 inferior de cada gravura, estão a rua e a calçada ocupados pelos homens de
casaca e oficiais uniformizados, mulheres de chapéu e um ritmo intenso de char-
retes, carruagens e cabriolés. Acima, ocupando metade da imagem (3/6, portanto),
os edifícios de comércio, residenciais e órgãos públicos com altura padronizada,
ocupando sempre três ou quatro andares, e de estilo arquitetônico homogêneo. Ár-
vores e lampiões estão dispostos em intervalos regulares na frente de todos esses edi-
fícios. No piso térreo, vários cartazes e letreiros surgem continuamente nos prédios
comerciais. No terço superior (ocupando 2/6 da imagem), o céu limpo. Essa mesma
estrutura é utilizada em todas as gravuras e se repete inclusive no panorama do outro
lado da avenida, impresso na parte de baixo das páginas. Uma figura da expressão é
então estabelecida: a da continuidade.

Figura 57 – As
proporções dos
elementos nas
litogravuras
é contínua ao
longo de todas as
imagens.
Fonte: elaborado
a partir de Gógol
(2012).

O ritmo e a continuidade são dados também pelo constante virar de páginas ao


longo do texto verbal. Como cada bloco de texto só ocupa metade da página, a lei-
tura é rápida e o gesto de virar a folha é acelerado e constante, visto que cada porção
da escrita apresenta apenas nove linhas.
No segundo volume, Notas de Petersburgo de 1836, vários traços dessa plastici-
dade são retomados (fig. 58). O formato do livreto e a posição do título na capa são
iguais, o que cria imediamente uma “ponte” entre um e outro volume. Essa crônica,
no entanto, possui a sua capa totalmente em verde escuro, com os tipos em branco,
e a encadernação não é brochura, mas sim uma costura canoa com sua linha branca
aparente. O miolo segue impresso totalmente em verde com a tipografia vazada em
branco. A largura do bloco de texto, margens interna e externa também são as mes-
mas que Avenida Niévski.

124 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Figura 58 – O vo-
lume Notas de Pe-
tersburgo de 1836
apresenta o mesmo
formato, margens
e disposição dos
elementos da capa
que o volume pre-
decessor.
Fonte: GÓGOL,
2012.

É nesse segundo volume que, além da crônica de Gógol, constam algumas partes
fundamentais do livro: página de créditos, ficha catalográfica e colofão. É interes-
sante notar que essas informações aparecem apenas em Notas de Petersburgo de 1836
e não no primeiro volume, Avenida Niévski. Daí deduzimos que os dois volumes são
de fato apresentados como uma unidade, como um conjunto que deve ser distribuí-
do unido e não em volumes separados.
Enquanto Avenida Niévski utiliza em seu bloco de texto uma tipografia sem seri-
fas, Notas de Petersburgo se vale de tipos serifados. Analisando-os mais proxima-
mente, porém, se vê que os dois são muito similares. Trata-se, afinal, de uma mesma
18 A família
família tipográfica, a Nexus18 (fig. 59). Essa família possui uma versão sem serifas e tipográfica Nexus
foi projetada por
uma versão serifada, desenhadas a partir das mesmas formas, o que acarreta uma
Martin Majoor no
continuidade entre os dois volumes. ano de 2004.

Figura 59 – Tipogra-
fias Nexus Serif e
Nexus Sans.
A família constrói a
partir de uma mes-
ma forma básica
tipos com e sem
serifas, que são
utilizados harmoni-
camente nos dois
Verbalmente, o conto Avenida Niévski apresenta um alto grau de figuratividade. volumes do livro.
Fonte: <www.
São listadas diversas figuras do mundo percebido naquele local e época, reconstruin-
fontshop.com/>.
do literariamente a paisagem daquela via. A lista de figuras de que Gógol (2012) se

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 125


vale é extensa: carruagens, cabriolés, cavalos, tenentes, generais, oficiais, uniformes,
funcionários públicos, conselheiros de Estado, senhoras, moças pálidas, vestidos,
chapéus, lenços, danças, fraques, sobrecasaca, suíças, libré, dragonas, vitrines, lojas,
lampião... Todas as figuras ajudam a compor um certo ritmo, uma dinâmica própria
percebida na descrição da avenida.
Narrativamente, há um primeiro enunciado que apresenta a avenida num con-
tínuo de sujeitos, ações, eventos que se dão cotidianamente naquele espaço. Essa
constância é então aparentemente negada, quando a história se debruça sobre o
amor excepcional do personagem Piskarióv, que termina tragicamente. O sujeito
se vê preso a uma situação extraordinária que quebra o ritmo cotidiano da avenida.
A seguir, no entanto, é apresentada outra situação exagerada de um amor, dessa vez
ao acompanharmos o tenente Pirogóv. Sua história também acaba com um rela-
cionamento não concretizado, porém de forma não tão dramática, mas sim quase
humorística. Ao acompanhar essa segunda narrativa, percebe-se que na verdade es-
ses casos aparentemente extraordinários fazem parte da dinâmica da avenidade e
constituem sua vida do dia-a-dia, não sendo, portanto, nenhum tipo de interrupção
do seu fluxo. Afinal, como expõe Gógol (2012, p. 131), “os acontecimentos mais es-
tranhos de todos têm lugar na avenida Niévski”.
Nos valores fundamentais do texto, então, está a oposição /dinamicidade/ vs.
/estaticidade/, com o primeiro termo sendo euforizado tanto no princípio quanto no
fim da narrativa.
Em Notas de Petersburgo de 1836, o autor retoma o valor de /dinamicidade/ da
avenida, agora estendendo-o também à cidade que a abriga: “Petersburgo é toda agi-
tação, dos pés à cabeça” (GÓGOL, 2012, p. 5). E volta a falar da avenida: “a ruidosa,
eternamente agitada, atarefada e entupida avenida Niévski” (Ibidem, p. 24). O fluxo e
dinâmica da avenida são sempre elencados como valores fundamentais.
No plano da expressão do livro, os valores do nível fundamental são homologa-
dos plasticamente na categoria continuidade vs. descontinuidade. Assim, temos na
publicação mais recente da Coleção Particular novamente uma forte relação entre
plano da expressão (em todas as suas substâncias, sejam verbais, visuais, espaciais
ou táteis) e plano do conteúdo, sancionando esse procedimento como elementar ao
modo de funcionamento da coleção.

126 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


3.8 Sistematização dos
mecanismos sincréticos

Da análise dos sete livros que compõem a Coleção Particular, depreendemos em to-
das as obras uma homologação entre plano da expressão e plano do conteúdo. Essa
homologação é importante, pois comprova que é possível tratar esses livros como
verdadeiras estruturas semióticas sincréticas, por serem biplanares. O esquema a se-
guir (quadro 1) explicita as relações entre plano da expressão e plano do conteúdo
nos livros analisados.

Categoria da expressão Categoria do conteúdo

Primeiro amor contínuo vs. descontínuo /vida/ vs. /morte/

Bartleby, o escrivão constância vs. variação /repetição/ vs. /diferença/

A fera na selva claro vs. escuro /conhecimento/ vs. /ignorância/

Zazie no metrô contenção vs. profusão /infância/ vs. /maturidade/


Quadro 1 – Ho-
Flores englobante vs. englobado /cultura/ vs. /natureza/ mologação entre
as categorias da
Museu do romance expressão e as
da Eterna
impreciso vs. preciso /processo/ vs. /produto/ categorias do con-
teúdo nos livros da
Coleção Particular
Avenida Niévski contínuo vs. descontínuo /dinamicidade/ vs. /estaticidade/
da Cosac Naify.

Essa homologação entre os dois planos nos mostra que estamos lidando com
manifestações semi-simbólicas. Ao contrário dos sistemas de símbolos (que pos-
suem apenas relações convencionadas entre a expressão e o conteúdo), os siste-
mas semi-simbólicos são sistemas significantes que se caracterizam não pela con-
formidade entre as unidades do plano da expressão e do plano do conteúdo, mas
sim pela correlação entre categorias que dependem dos dois planos (GREIMAS e
COURTÉS, 1991).
Dessa forma, um sistema simbólico seria aquele em que há uma semiose arbi-
trária, como a adoção da cor preta para representar “luto”, por exemplo, que é con-
vencionada em determinadas culturas e não está relacionada com alguma qualidade
intrínseca do preto. Já nos livros analisados da Coleção Particular, a semiose é do
tipo motivada. Em outras palavras, são as próprias relações internas ao texto que

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 127


constroem as categorias da expressão e sua relação com categorias do conteúdo, de
maneira semi-simbólica. Expressão e conteúdo são, portanto, partes indissociáveis
nas manifestações aqui analisadas.
Um sistema semi-simbólico pode realizar-se em uma substância visual, sonora,
etc., ou ainda em uma semiótica sincrética, a partir de uma pluraridade de substân-
cias (GREIMAS e COURTÉS, 1991). Nos livros da Cosac Naify, as substâncias explo-
radas são visuais, verbais, espaciais e táteis. As figuras manifestadas nessas diferentes
substâncias se organizam em certas categorias de modo equivalente a categorias do
conteúdo, em uma operação que se baseia na oposição entre os termos contrários.
Mas por meio de que procedimentos o sincretismo monta o semi-simbolismo
em cada uma dessas publicações? Há vários mecanismos que põem em relação as
diferentes linguagens constituintes de uma semiótica sincrética. Sob o ponto de vista
dos procedimentos estésicos, ou seja, de como essas diferentes linguagens fazem o
sujeito sentir, Oliveira (2009) elaborou uma tipologia que caracteriza os tipos de
sincretismo.
Segundo Oliveira (2009), as impressões estésicas que o sujeito percebe nos textos
sincréticos provêm dos tipos distintos de funcionamento do sincretismo. Quando as
ordens sensíveis de determinados sistemas atuam juntas, em complementaridade, o
tipo de sincretismo é por união; se, ao contrário, as ordens atuam afastadas, mas ain-
da assim lado-a-lado, o sincretismo é por separação. Na contraditoriedade da união,
quando um traço específico único expande-se em coextensividades sensoriais, origi-
nando uma poliestesia impressiva, então o sincretismo resultante será do tipo por
expansão. Por fim, quando cada traço sensível é ligado a outro, formando alianças ou
encaixes, o sincretismo será por concentração (esquema 5).

Sincretismo por união Sincretismo por separação


Concatenação Parataxe

Esquema 5 –
Tipologia dos
Sincretismo por concentração Sincretismo por expansão
mecanismos
Encaixe Dispersão
sincréticos.
Fonte: OLIVEIRA,
2009, p. 102.

128 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Os livros da Coleção Particular se valem de diferentes mecanismos de sincre-
tismo na produção do seu sentido. Retomando a análise de Primeiro amor, por
exemplo, título inicial da coleção, encontramos um uso de um desses mecanismos: o
sincretismo por separação (parataxe), que é aplicado de modo sistemático ao longo
de toda a publicação.
Na capa negra de Primeiro amor, os traços plásticos figurativizam o tema da
morte, através da cor escura, da posição de lápide e da figura da cruz. Esse tema
contrasta com o enunciado verbal, em que a expressão “primeiro amor” remete a
uma certa inocência e romantismo, que pouco teria a ver com morte. Na capa da
obra de Beckett, percebe-se então que não há uma correspondência exata entre os
traços nos dois sistemas (verbal e gráfico), tampouco uma operação de neutralização
que suspenderia as diferenças distintivas entre eles. O sentido da capa se dá justa-
mente pela diferença entre uma e outra semiose, em um sincretismo por separação
(parataxe): as ordens sensoriais, segundo Oliveira, “interatuam por similaridade ou
por contraste formando uma multisensorialidade apta a atuar multiesteticamente
para compor a unificação do todo sensível.” (OLIVEIRA, 2009, p. 102). É o contraste
entre os efeitos de sentido de racionalidade e morte, instaurados plasticamente, e os
sentidos de sentimentalismo e vida pulsante do título verbal que semantiza o calcu-
lismo e a ironia do enunciador.
Se na capa do livro o sincretismo se dava justamente pelo contraste entre os
sistemas verbal e plástico, quando se considera o miolo da obra a relação é um pouco
distinta. O modo como classificamos o tipo de sincretismo ainda é o mesmo, sincre-
tismo por separação, mas não há mais o contraste evidente entre um e outro sistema.
Nas páginas da direita, a linguagem pictórica das produções de Célia Euvaldo avança
do mesmo modo como a linguagem verbal, na página da esquerda, também avança.
Ora formando um eixo de simetria, ora rompendo esse eixo, o verbal e o pictórico
são dispostos lado a lado na visibilidade da página dupla. No espaço da página, o
arranjo plástico visual acontece em paralelo ao arranjo plástico verbal. É um sincre-
tismo por paralelismo (OLIVEIRA, 2009), em que os diferentes sistemas interatuam
por similaridade, por meio de uma isotopia verificada tanto na semiose pictórica
quanto na semiose verbal: a categoria /vida/ e /morte/.
Já no segundo livro da coleção, Bartleby, o escrivão, o principal procedimento
sincrético utilizado é outro: o do sincretismo por concentração (encaixe). Ao realizar
o percurso de utilização do livro, o leitor vai passando pelas diversas etapas que en-
volvem analisar inicialmente a capa, puxar o fio para descosturá-la, rasgar as páginas
internas e enfim ter acesso ao verbal. Há uma passagem encadeada de um sistema

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 129


para outro: do gráfico e verbal da capa logo se passa à gestualidade, no toque e no
ato de descosturar. Do gestual, passamos para a visualidade das fotografias da pare-
de, que vai se combinar a uma percepção espacial do objeto, pois é no abrir o livro
e visualizá-lo de um ponto de vista superior que se percebe que também as páginas
internas são presas e devem ser cortadas. Por fim, retorna-se ao sistema verbal.
Embora muitas vezes concomitantes (linguagem verbal e gráfica, depois gráfi-
ca e fotográfica), há uma predominância de cada sistema semiótico nas diferentes
etapas do programa narrativo de usufruto do livro. Trata-se, assim, segundo Oliveira
(2009), de um tipo de sincretismo por encaixe. Há uma relação de superposição, de
encadeamento entre os diferentes sentidos. O objeto sincrético é tomado “enquanto
totalidade sensorial global que é experienciada pelo ir de um traço a outro por en-
caixes de uma semiose existencial” (OLIVEIRA, 2009, p. 102).
Esse mesmo procedimento sincrético em que há uma relação de encadeamento
entre os sentidos é utilizado em outros dois títulos da coleção. Em Flores, de Bellatin,
também se percebe uma predominância de cada sistema nas diferentes etapas da lei-
tura. A princípio, o leitor deve manusear o invólucro plástico, onde as mãos se detêm
na lisura da materialidade plástica, realizando o processo de abertura da embalagem.
A seguir, a visualidade do sistema gráfico é que predomina, ao folhear as páginas e
perceber a brancura do papel contrastando sutilmente com o verde da moldura im-
pressa. Por fim, na leitura dos contos, o sistema verbal predomina, pois o invólucro
já está separado do miolo e a visualidade da moldura é muito sutil.
O sincretismo por concentração (encaixe) fica ainda mais evidente, porém, em
Avenida Niévski, que constitui um caso exemplar na tipologia adotada. A princípio
também a linguagem gráfica da embalagem é que predomina: a simulação do papel
jornal que embrulha o livro deve ser virada pelo leitor e desdobrada diversas vezes
para que se revelem os dois volumes em seu interior, em uma passagem que prioriza
o sistema gestual. Nessa etapa, os formantes matéricos da linguagem gráfica visual-
espacial-tátil é que são enfatizados. A seguir, tomando o exemplar de Avenida
Niévski, o leitor realiza um passeio pela via, tal qual os personagens que a habitam.
Esse passeio começa pelas gravuras do lado direito da avenida (substância visual),
passa então às páginas textuais (substância verbal) e retorna por fim às gravuras,
que exibem o outro lado da avenida (subtância visual). Os sentidos distintos se dão
em uma relação de encadeamento, que é enfatizada pela própria ordenação dos
elementos nas páginas.
Já o terceiro título da coleção, A fera na selva, nos apresenta um modo diferente
de sincretismo. Nesse livro, o conteúdo verbal da obra nos é dado a sentir através

130 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


do seu reflexo no projeto gráfico: nas cores, na textura da matéria, na dobra, etc. A
temática de passagem do tempo verificada no texto verbal, assim como os valores
/conhecimento/ vs. /ignorância/ que estão em jogo em seu nível fundamental, são
trazidos à tona pela manifestação visual, espacial e tátil do projeto gráfico, através de
figuras da expressão que iluminam alguns detalhes e escurecem outros, através da
tatilidade dos materiais e através do percurso cromático das páginas que nos faz sen-
tir visualmente o tema da passagem do tempo. O tipo de sincretismo é então aquele
por união (concatenação): há uma sinergia entre os traços dos diferentes sistemas,
que atuam juntos em complementaridade (OLIVEIRA, 2009). Pode-se afirmar que
em A fera na selva a gradação de tons (do claro ao escuro) e de gramatura (do fino
ao grosso) da passagem das páginas traduz em sincretismo a passagem do tempo.
O arranjo plástico das páginas e o sistema verbal avançam juntos, em relação de
reciprocidade, e por isso afirmamos que essa obra se vale essencialmente de um me-
canismo sincrético de união.
Há ainda na Coleção Particular outra obra que também pode ser descrita como
configurando um sincretismo por união: Museu do romance da Eterna, de Macedo-
nio Fernández. Nesse livro, a pilha de folhas “desordenadas” que é figurativizada na
largura irregular das páginas do miolo traduz em sincretismo o processo de escrita
do livro (sua enunciação enunciada), que é também uma escrita “desordenada”, com
idas e vindas e trajetos múltiplos de leitura. Os diferentes traços sensoriais, princi-
palmente verbal e espacial, caminham juntos e de maneira simultânea nas várias
direções de leitura que o livro possibilita.
Resta a obra Zazie no metrô, que explora principalmente o quarto e último
mecanismo sincrético, o da expansão (dispersão). Nesse livro, os sentidos distin-
tos agem transversalmente. Nas páginas do livro, além do texto verbal em um pri-
meiro plano, o leitor enxerga também através da transparência da folha as imagens
dos anúncios publicitários que estão impressas no verso da sua página e também
aquelas do verso da página seguinte. Há assim, ao longo do miolo do livro, planos
de visibilidade que se dão em relações de superposição, “que se realizam em cadeias
de subordinações” (OLIVEIRA, 2009, p. 85). A partir de uma parte pontual, que é o
texto verbal impresso na superfície da folha, geram-se conexões sensíveis que se ex-
pandem pela visualidade das páginas seguintes, visíveis na transparência do papel.
Durante a leitura, pode-se investir mais em um ou outro sistema (verbal ou visual),
mantendo-se orientado pela linguagem verbal ou rasgando as páginas e apreciando
as reproduções dos cartazes, seguindo uma leitura que se estende assim em uma
direção diferente.

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 131


Não é surpresa verificar que todos os quatro procedimentos de sincretismo pre-
vistos no modelo de Oliveira (2009) são explorados nos projetos gráficos da Coleção
Particular (esquema 6). Inclusive, dos quatro títulos iniciais da coleção, cada um se
vale principalmente de um modo diferente de mecanismo sincrético, ocupando uma
posição distinta no quadrado semiótico dos modos de sincretismo.

∙ A fera na selva
∙ Museu do romance da Eterna ∙ Primeiro amor

Sincretismo por união Sincretismo por separação


(concatenação) (parataxe)

Sincretismo por concentração Sincretismo por expansão


Esquema 6 –
(encaixe) (dispersão)
Classificação
dos livros da ∙ Bartleby, o escrivão ∙ Zazie no metrô
Coleção Particular ∙ Flores
segundo os tipos ∙ Avenida Niévski
de mecanismos
sincréticos.

Se uma das características isotópicas destacadas como presente em todas as obras


da coleção é justamente a experimentação formal, parece evidente que os livros irão
experimentar com todas as formas possíveis de relação entre os traços sensíveis dos
sistemas que compõem a linguagem sincrética do livro. Nas interações entre os siste-
mas (verbal, gráfico, pictórico, etc.), vários procedimentos são explorados, seja dis-
pondo os traços sensíveis lado-a-lado separadamente, seja apresentando-os unidos,
em complementaridade, seja ainda por meio de um encaixe que leva de um traço a
outro, seja por relações de superposição que geram conexões expansivas. A Coleção
Particular explora através de seu design todas essas formas na construção do sen-
tido dos livros, enquanto objetos verdadeiramente sincréticos, experimentando as
relações entre os diferentes sistemas para alcançar as mais variadas modalidades de
experiências sensíveis de leitura.

132 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


3.9 As interações do discurso

A fim de esclarecer os mecanismos de produção de sentido dos livros, enquanto


objetos sincréticos, é fundamental refletir ainda sobre uma outra questão: a relação
discursiva que se estabelece entre o enunciador e enunciatário. O sujeito complexo
da enunciação é composto de duas figuras internas ao enunciado: o enunciador,
imagem construída acerca daquele “que fala”, e o enunciatário, aquele “que ouve”.
Esses sujeitos são implícitos ao texto e são construções discursivas, não sendo,
portanto, entidades de “carne e osso”. Desse modo, eles se diferem do destinador e
destinatário efetivos da mensagem.
Através do ato da enunciação, o sujeito se põe no texto e cria uma imagem de si
mesmo; tal imagem é a do enunciador. Fiorin (2002, p. 31) esclarece: “O sujeito que,
por um ato, gera o sentido, é criado pelo enunciado. Trata-se, pois, de uma entidade
semiótica.” As possibilidades são ilimitadas, já que uma pessoa pode construir in-
finitas imagens de si, na figura do enunciador. “A enunciação permite que todo ser,
num processo de personificação, torne-se enunciador e instaure como enunciatário
qualquer outro ser.” (Fiorin, 2002, p. 43). O enunciador em um livro é a imagem im-
plícita de um alguém que fez tudo: texto literário, projeto gráfico, impressão, revisão,
etc. É a figura potencial por trás da autoria, presentificando aquele que “fez o livro”.
Já o enunciatário é a imagem implícita no texto daquele a quem a manifestação
está destinada. Como enunciador e enunciatário são um par pressuposto, ao definir
a imagem do enunciador o produtor do discurso também estabelece a imagem do
enunciatário. Este é igualmente interno ao enunciado. Nos livros, é a imagem que
o próprio objeto constrói acerca de quem será seu leitor, do tipo de pessoa a quem
aquela obra se destina.
Oliveira (2013, p. 235), em suas investigações acerca da enunciação, parte da
hipótese de base que “é a interação que faz ser o sentido”. Retomando as proposições
de Landowski (1992), Oliveira (2013) argumenta que a enunciação é um ato instau-
rador do sentido na e pela interação entre os dois parceiros do discurso. Isso quer
dizer que a interação entre esses dois parceiros – enunciador e enunciatário – é fun-
damental na produção de sentido de toda e qualquer manifestação.
Enunciador e enunciatário não são, assim, figuras que atuam separadamente,
como se não houvesse relação entre um e outro. O par da enunciação atua sem-
pre conjuntamente e é dessa interação que surge o sentido. Segundo Oliveira (2013,

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 133


p. 242): “Mais do que um processo comunicacional, é então um processo de inte-
ração criadora de sentido que se realiza pela presença mesma dos sujeitos fazendo
o sentido”.
A partir dos regimes de interação e de sentido formulados por Landowski (2009),
Oliveira (2013) procura abordar as caracterizações que marcam as relações de tran-
sitividade ou de intransitividade entre os atores no processo de discursivização. Des-
de uma intransitividade total, passando aos níveis diversos de transitividade, os tipos
de interação discursiva podem ser organizados num quadrado semiótico dinâmico
(esquema 7), em que os tipos de posições e movimentações do sujeito da enunciação
intervêm nos tipos de manifestações (OLIVEIRA, 2013).

SENTIDO CODIFICADO SENTIDO ALEATÓRIO


Enunciatário reopera o sentido Enunciatário enuncia o sentido

Esquema 7 –
Tipologia das
interações SENTIDO CONQUISTADO SENTIDO SENTIDO
discusivas. Enunciatário é convencido Enunciatário é sensibilizado
Fonte: OLIVEIRA,
2013, p. 247.

Assim, no esquema dinâmico (OLIVEIRA, 2013), as passagens se dão entre as


posições com maior ou menor transitividade. No “sentido codificado”, a interação é
unidirecional: enunciador e enunciatário estão separados e há uma hierarquia entre
eles com uma intransitividade das posições. Quem comanda a enunciação, nesse
caso, é o enunciador e ao enunciatário cabe apenas seguir as pistas deixadas pelo
primeiro no discurso para reconstruir o sentido, que já está posto de antemão. Já
no “sentido conquistado” surge a transitividade, pois há uma negociação entre um
e outro sujeitos: o sujeito enunciador, munido de sua intencionalidade, precisa co-
nhecer o enunciatário e convencê-lo a atuar como seu par, para que se faça o sentido.
Ambos os sujeitos, dotados de volição, estão em uma relação de negociação, em que
o enunciador busca convencer o enunciatário a aderir ao seu contrato comunicacio-
nal. No “sentido sentido”, a transitividade é mais forte, pois os sujeitos atuam unidos
em reciprocidade: enunciador e enunciatário são dotados das mesmas competências
cognitivas. As sensibilidades atuam juntas e o sentido emerge na interação, à medida

134 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


que ambos ajustam-se em uma apreensão estésica. Por fim, no “sentido aleatório”,
há uma transitividade total das posições, imprevisível, em que enunciador e enun-
ciatário trocam seus papéis no ato de enunciar. A cada momento, ora é enunciador,
ora é enunciatário o sujeito responsável por comandar a enunciação na construção
do sentido.
Como se trata de uma tipologia dinâmica, em uma mesma manifestação pode
haver um fluxo entre as posições do quadrado, estando a cada momento o enun-
ciador e o enunciatário assumindo uma determinada relação. Na primeira obra da
Coleção Particular, por exemplo, há uma passagem por várias dessas posições, ainda
que haja predominância de uma delas. É assim que, em Primeiro amor, o que pre-
domina é o “sentido codificado”, que é uma emergência do sentido mais ou menos
fechada. Isso acontece porque as ilustrações que surgem sempre na página da direita
já estão dispostas em uma determinada ordem, que acompanha o desenvolvimento
da história e possuem alguns traços plásticos (direção do traçado, tinta opaca ou
translúcida, etc.) que operam como pistas a serem seguidas pelo enunciatário para
que decifre o sentido na leitura e possa fazer a relação entre as obras pictóricas e o
texto verbal. Cabe ao leitor um esforço interpretativo daquelas ilustrações, a partir
dos formantes plásticos delas, e não assumir um papel de comando da enunciação.
No entanto, como acima posto, a relação é dinâmica. Em menor grau, encon-
tramos também nesse primeiro livro o “sentido conquistado”, pois o enunciatário
desenvolve a si mesmo no processo da leitura. À medida que vai analisando as ima-
gens pictóricas, o leitor vai também compreendendo a intencionalidade dos traça-
dos, aumenta seu próprio repertório plástico e sua competência cognitiva. O livro
precisa ser atraente para que o enunciatário queira empreender a leitura e assim
vemos acontecer a negociação entre as figuras da enunciação que é característica
do sentido conquistado. Em Primeiro amor, há ainda um evidente “sentido sentido”,
pois é fundamental que o enunciatário seja sensibilizado pelos traços sensíveis das
ilustrações para que possa seguir as pistas do sentido codificado, anteriormente pos-
to, e assim atuar na produção de sentido do livro. Esse envolvimento por meio de
uma dinâmica de interações é o que o projeto gráfico exige dos seus leitores.
No segundo livro da coleção, Bartleby, o escrivão, a relação entre enunciador e
enunciatário é bastante complexa, pois é formada por diversas etapas que precisam
ser analisadas. Para começar, retomamos a proposta do livro de que o leitor deve
participar da elaboração dele, sendo convencido a atuar conforme um certo modo
de operação que envolve descosturar a capa e rasgar as páginas do miolo antes de
empreender a leitura do verbal. Temos assim em Bartleby um programa narrativo de

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 135


base representado pela fórmula a seguir: PN = S₁ → ( S₂ ∩ Ov ). Em outras palavras,
um sujeito 1, que é o próprio livro, age sobre um sujeito 2, o leitor que enfrenta o
livro, fazendo com que S₂ entre em conjunção com o objeto de valor: a apreciação
do livro, o desfrute estético da leitura. Essa ação do sujeito 1 (livro) sobre o sujeito 2
(leitor) nada mais é que uma manipulação por provocação. Na provocação, o sujeito
manipulador projeta uma imagem negativa do sujeito manipulado. É como se, por
meio da flamejante costura vermelha que impede a abertura, o livro falasse: “duvido
que consiga me ler!” (ou ainda, como diria o personagem-título, “acho melhor não
me ler”).
É por isso que, segundo o modelo de Oliveira (2013), em Bartleby, o escrivão a
predominância é do “sentido conquistado”, já que o leitor é convencido pela manipu-
lação por provocação do livro. O enunciatário é competencializado pelo enunciador
por meio da linha, da espátula, etc., ou seja, pelos diversos dispositivos que são dis-
ponibilizados para que se possa abrir e ler o livro. Porém, dada a dinamicidade das
relações, há também a presença do “sentido sentido”, pois enunciador e enunciatário
fazem juntos o objeto livro, participando conjuntamente do processo de sua cons-
trução, e nesse fazer junto vão ajustando-se na apreensão estésica. A sensibilidade é
importante, pois há uma certa força a ser empregada no momento de puxar os fios
ou rasgar as páginas, que não deve ser nem muito sutil, nem muito vigorosa, mas sim
uma força na justa medida que a materialidade do papel requer.
Em Bartleby, o escrivão aparece ainda uma relação que não estava presente no
livro anterior da Coleção Particular, aquela do “sentido aleatório”. Ela surge em
decorrência da imprevisibilidade dos processos de puxar a linha e rasgar as páginas,
que podem dar origem a diversos acidentes de percurso (rasgar demais as páginas e
danificar o livro, por exemplo). Nesses momentos em que toma para si a função de
construir materialmente o livro, o enunciatário troca de posição com o enunciador e
passa a enunciar também a construção do livro.
Além das relações de transitividade, especificamente nesse segundo livro da
coleção, há uma relação na enunciação que é fundamental na apreensão do sentido
da obra: a relação de visibilidades. Na capa fechada que deve ser descosturada para
que se revele seu interior, se percebe como há claramente, entre enunciador e enun-
ciatário, um jogo de visibilidades posto em cena. Pensando a partir do ensaio “Jo-
gos ópticos: situações e posições de comunicação”, de Eric Landowski (1992), vemos
como a relação de volição escópica entre o S₁(livro) e o S₂(leitor) constitui, num pri-
meiro momento, uma situação de voyeurismo de S₂. O livro se põe em uma posição
de querer não ser visto, como se estivesse escondendo seu conteúdo por meio da

136 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


costura, enquanto o leitor assume uma posição de querer ver. De fato, S₂ (leitor)
precisa adotar uma postura de voyeur e insistir para que a leitura da obra aconteça,
para que o programa narrativo de base seja cumprido, descosturando e adentrando
a área “privada” do volume.
Certamente, essas situações, onde o querer escópico dos sujeitos entra em relação,
fazem parte da estratégia de manipulação do livro. Tem-se, após esse voyeurismo ini-
cial, a percepção de que tudo se tratava na verdade da intencionalidade do livro. Há
então uma mudança de situação, na qual o S₂ (leitor) persiste em seu querer ver, mas
agora o S₁ já se revela em seu não querer não ser visto, ou seja, exatamente aquele
que quer ser visto a todo custo. Essa segunda situação é denominada por Landowski
(1992) como atenção (insistência) de S₂. Assim, a colocação em comum do privado,
a descompartimentação de si, a abertura para o outro, nos termos de Landowski
(1992, p. 96), resultam da situação inicial de violação da intimidade, característica do
voyeurismo. No esquema a seguir (esquema 8), as duas situações escópicas:

S₁ (livro) Querer não ser visto S₁ (livro) Não querer não ser visto
S₂ (leitor) Querer ver S₂ (leitor) Querer ver
Voyeurismo de S₂ Atenção (insistência) de S₂
Esquema 8 – Dois
Violação da intimidade Colocação em comum do privado momentos das
situações escópicas
no livro Bartleby, o
escrivão.

A violação da intimidade que o leitor é obrigado a realizar, penetrando as áreas


inicialmente trancafiadas do livro, se revela na verdade como estratégia da própria
edição. Mas o sujeito-leitor deve ainda insistir em sua ação, rasgando cada par de
páginas para que possa de fato ter a experiência de desfrutar a obra.
Além desse jogo de visibilidades, Bartleby, o escrivão é exemplar também na
sua apropriação do modelo dos regimes de interação e sentido que são propostos
por Landowski (2009) e que deram origem ao modelo das interações discursivas
de Oliveira (2013). Ao longo do processo de produção do objeto livro e das etapas
de descosturar, abrir, rasgar, etc., dão-se uma série de interações entre um e outro
sujeito que remetem a diferentes regimes de interação. Quando se entra em contato
com o livro, há uma passagem obrigatória por todos os diferentes regimes. Partimos
de um programa narrativo de base que seguia o regime da manipulação, em que

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 137


um sujeito agia diretamente sobre o outro, e chegamos a uma série de programas
narrativos auxiliares (descosturar a capa, cortar as páginas...) que seguem o regime
da programação. Na programação, o sujeito age sobre objetos, ou seja, age sobre
outros actantes que não possuem as competências de um sujeito e que, portanto,
apenas sofrem a ação. Puxar o fio para descosturar a capa e passar a espátula para
cortar o papel são operações baseadas no princípio da regularidade e, portanto, da
ordem da programação.
No durativo dessas ações, o sujeito-leitor sente o esforço dos gestos e sente a
dificuldade do trabalho realizado, mas mantém a insistência nas operações, e sua
pressa ou calma repercutem no próprio estado do livro, deixando marcas no plano
do sensível. Tem-se aí o regime de ajuste, em que as qualidades sensíveis de um
sujeito implicam diretamente a sensibilidade do outro. Ainda, é pelo sentir que o
sujeito entende o objeto, é sensivelmente que descobre o percurso a ser realizado
(onde descosturar, como cortar). Leitor e livro, no plano do sensível, interagem na
ordem do ajuste. Assim, nessa indicação sensível dos modos de lidar com o livro, o
sentir está sempre em relação com o regime da programação.
Por fim, principalmente no ato de cortar as páginas, há a todo instante o risco de
se rasgar demais, de estragar (muito ou poco) o livro num gesto desajeitado, no que
se configura como o último dos regimes de interação, o acidente (ou assentimento),
baseado no princípio da imprevisibilidade.

Programação Acidente
(regularidade) (imprevisibilidade)

Descosturar a linha, Risco de rasgar as páginas


cortar com a espátula. no processo de cortá-las.

S O

Esquema 9 – A
partir dos regimes
Manipulação Ajuste
de interação e sen-
(intencionalidade) (sensibilidade)
tido (LANDOWSKI,
2009), os vários O sujeito-livro faz O sentir guia o processo
tipos de interação o sujeito-leitor fazer. de interação com o livro.
previstos pelo
S₁ ( S₂ ∩ Ov ) S₁ S₂
design de Bartleby,
o escrivão.

138 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


No esquema acima (esquema 9), a elipse apresenta os quatro regimes de inte-
ração e sentido do modelo (LANDOWSKI, 2009) e como cada regime se dá nas
interações que Bartleby, o escrivão proporciona. Como se vê, há um movimento e até
mesmo concomitância entre os diferentes regimes de interação, conforme o próprio
Landowski propõe ao afirmar que se trata de um modelo dinâmico. A conclusão a
que se chega é de que os diferentes modos de interação do livro implicam as dife-
rentes transitividades entre enunciador e enunciatário, em uma relação que é funda-
dora do sentido do livro.
Voltando nossa atenção para as interações discursivas, o terceiro livro da coleção
apresenta uma peculiaridade em relação aos seus antecessores. A fera na selva tem
seu sentido produzido a partir de principalmente uma única das posições do quadra-
do dinâmico das interações do discurso (OLIVEIRA, 2013). A predominância é a do
“sentido sentido”, em que enunciador e enunciatário vão se ajustando a cada virada
de página. A gradação da tonalidade de tinta prateada das páginas, que vai escure-
cendo a cada vez, e a gramatura crescente dos papéis vão sendo sentidas pelo enun-
ciatário ao longo do processo da leitura e é fundamental uma sensibilidade estésica
para apreender essas mudanças ao mesmo tempo em se apreende as mudanças que
são apresentadas na trama por meio do texto verbal. O enunciatário é sensibilizado,
assim como a personagem feminina da trama (May Bartram), e é pelo plano do
sensível que apreende o inteligível da obra.
Além dessa necessidade de sensibilidade do enunciatário, o próprio enunciador
faz do enunciado um objeto sensível. A página prateada que reflete a luz ao seu re-
dor (causando o efeito do guizzo, o tremeluzir argênteo da luminosidade refletida
no papel) é sensível ao ambiente, refletindo mais ou menos fortemente o brilho e as
cores aos quais é exposta. A página é sensível às condições do seu entorno, e sensível
também às interações que se dão entre o livro e o leitor (uma virada de páginas mais
rápida, por exemplo, fará com que a luz refletida brilhe rapidamente, como num
flash fotográfico). Mais do que qualquer outra das posições, é o “sentido sentido” o
principal responsável pelas apreensões de sentidos em A fera na selva.
Na quarta obra, Zazie no metrô, há também essa forte interação que acontece por
meio das sensibilidades do enunciador e do enunciatário. A predominância nesse
livro novamente é a do “sentido sentido”. Nas páginas que exibem em diferentes
níveis de visibilidade o texto verbal e os fragmentos de cartazes coloridos, o sujeito
é sensibilizado e sente a profusão de elementos visuais, a confusão que se cria entre
esses elementos, as sobreposições diversas que se dão em cada página e que figurati-
vizam a “balbúrdia” e a forte oralidade coloquial do texto de Raymond Queneau. Por

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 139


meio da profusão dos traços visuais, o enunciatário é como que transportado para a
Paris pulsante da década de 1950.
Além do “sentido sentido”, em Zazie no metrô há um lugar para todas as outras
posições do modelo das interações discursivas. O “sentido conquistado” é percebido
em uma certa negociação entre enunciador e enunciatário, que faz com que o último
seja convencido a investigar o interior das páginas, abrindo a dobra ou até rasgan-
do-as para espiar os cartazes internos. O enunciatário, ao aderir ao contrato comuni-
cacional, se torna um investigador motivado a desvender as impressões coloridas que
estão somente parcialmente visíveis pela transparência. O “sentido codificado”, sem
transitividade, tem seu lugar se e quando o enunciatário permanece focado no texto
verbal, caminhando nos passos inequívocos que foram prescritos pelo enunciador. Já
o “sentido aleatório” é o que acontece se o leitor passa a modificar o livro, rasgando as
páginas para visualizar o seu interior e assim tomando para si o caráter de comando
da enunciação. Ao realizar a troca de posições com o enunciador, o enunciatário tor-
na-se também responsável pela criação do livro, construindo seu sentido.
Em Flores, quinta publicação da coleção, há um retorno para a predominância
do “sentido codificado”. No livro, a emergência do sentido é mais ou menos fecha-
da, pois o enunciatário não assume nunca fortemente uma posição de comando na
enunciação. O enunciatário deve apenas seguir as pistas para reoperar o sentido do
livro, uma crítica à indústria farmacêutica que é figurativizada na própria embala-
gem industrial (o saco plástico). Nesse livro, em menor grau, há também o “sentido
conquistado”, pois o enunciatário deve ser convencido a manusear o livro de uma
maneira que é diferente daquela esperada nos livros comuns: a embalagem plástica
deve ser aberta, o livro precisa ser manuseado com mais cuidado por não possuir
capa e ter sua encadernação exposta e o volume deve ser guardado novamente no
saco plástico após a leitura para que se conserve corretamente. Essa maneira espe-
cífica de lidar com o livro implica uma negociação entre enunciador e enunciatário,
um comum acordo do modo como esse objeto deve ser tratado. Há ainda o “sentido
sentido”: é necessário um acordo de sensibilidades entre enunciador e enunciatário
para que os traços sensíveis da embalagem (sua lisura, artificialidade e perfectivi-
dade mecânica) sejam percebidos tatilmente e visualmente enquanto elementos que
também são construtores do sentido dessa manifestação sincrética e complexa.
Em Museu do romance da Eterna, o “sentido codificado” é, tal qual seu anteces-
sor, aquele que predomina. Também na emergência do sentido, há principalmente
uma intransitividade de posições, pois o sentido principal já está posto no texto, de-
vendo apenas ser reoperado pelo enunciatário. A “pilha de papéis” avulsos visualiza-

140 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


da no tamanho irregular das páginas é a figurativização da enunciação enunciada (o
processo irregular de escrita do livro que é posto no próprio escrito final). Essa “pi-
lha de papéis” deve ser decodificada inteligivelmente pelo enunciatário. Além disso,
verifica-se em menor intensidade a presença do “sentido sentido”, pois a sensibili-
dade é fundamental para que o leitor sinta a imprecisão nos tamanhos das páginas e
na impressão pouco nítida da capa, além de sentir também o caráter desorganizado
de acúmulo que está nos boxes excessivos ao redor dos prólogos e está igualmente
na ideia das folhas soltas que empilhadas formam o miolo do livro. Sentir a impre-
cisão e o acúmulo por meio dos diferentes traços sensoriais é etapa fundamental na
construção do sentido de Museu do romance da Eterna.
Por fim, na última obra da coleção, Avenida Niévski, a predominância volta a
ser do “sentido sentido”. O enunciatário sente o ritmo da avenida na leitura que vai
e volta, passeando pelas gravuras e pelo texto verbal, e sente também o movimento
ritmado da avenida no ritmo acelerado de passagem de páginas devido aos blocos
curtos de texto. Ainda, na escala cromática do livro, o sujeito sente o tempo pas-
sar nas cores que simulam a passagem dos períodos do dia: o amanhecer laranja
e o anoitecer roxo. Esses diversos traços sensíveis que são trazidos à tona resultam
de um acordo de sensibilidades, em que enunciador e enunciatário estão unidos,
sentindo em reciprocidade o sentido de dinamicidade. O “sentido conquistado” está
presente em Avenida Niévski também, pois o enunciatário deve ser levado a querer
saber mais sobre a avenida e a época da narrativa por meio das gravuras reprodu-
zidas no livro e do complemento Notas de Petersburgo de 1836. A atuação sobre a
volição do enunciatário para que queira conquistar um determinado saber é carac-
terística dessa posição.
Ao comparar os resultados alcançados pelas análises de todos esses livros, per-
cebe-se que o sentido deles se dá através de relações entre enunciador e enuncia-
tário que passam por todas as posições do modelo das interações discursivas. Seja
um enunciatário que apenas reopera o sentido, seja um enunciatário que precisa ser
convencido, um enunciatário sensibilizado ou mesmo um enunciatário que toma
a iniciativa para si e enuncia o sentido, a Coleção Particular se vale de todas essas
formas de interação entre os sujeitos da enunciação, numa relação que é fundadora
do próprio sentido dos livros. Embora a cada publicação algum dos modos de in-
teração do quadrado elíptico predomine, em vários dos livros é possível perceber
nitidamente um trânsito entre as posições. Assim, como havíamos visto nos modos
de sincretismo, em que a Coleção Particular se valia de todas as formas possíveis de
relações entre sistemas na construção do sentido de seus livros, nas relações discur-

PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO 141


sivas a coleção também se vale de todas as possibilidades. Essa variedade de procedi-
mentos é própria da experimentação formal, característica já destacada da coleção, e
confirma o valor de “vanguarda”, da busca constante de um design que esteja à frente
de seu tempo, valor verificado nas obras publicadas pela Cosac Naify.
Apesar de predominâncias diferentes de cada uma das posições possíveis de in-
terações discursivas, em todos os livros da coleção foi possível depreender muito
claramente uma atuação do “sentido sentido”. O enunciatário é fortemente sensi-
bilizado em todas as sete obras. Isso nos aponta o fato de que a estesia é um ele-
mento fundamental na produção de sentido da Coleção Particular. Cada um dos
livros funciona como um sujeito repleto de qualidades sensíveis que interagem com
a competência sensível dos sujeitos leitores, ambos sujeitos plenamente competentes
cuja atuação conjunta é instauradora do sentido. A sensibilidade é fundamental na
apreensão dos diversos traços sensíveis que compõem os diferentes sistemas impli-
cados em cada uma dessas manifestações sincréticas e, portanto, fundamental nas
operações de produção de sentido da coleção. Destacar o caráter estésico dessas pu-
blicações nos faz avançar no caminho de elucidação dos elementos que fazem com
que, de fato, essas publicações da editora Cosac Naify pareçam tão particulares frente
à generalidade dos best-sellers vendidos nas grandes redes de livrarias.
Abordamos, então, neste capítulo, algumas relações que são internas ao livro:
relações entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, entre o enunciador e o
enunciatário ou entre os diferentes sistemas semióticos que em conjunto formam
sua linguagem sincrética. Veremos a seguir como as obras da Coleção Particular pos-
suem relações que são externas ao livro, ou seja, relações que partem das obras e nos
levam a outros livros, outros discursos e outras semióticas.

142 PRODUÇÃO DE SENTIDO DO LIVRO


Metadiscursos
do livro
A s publicações da Coleção Particular retomam, por meio de diversos procedi-
mentos, aspectos da história do livro e de seu processo produtivo, além de porem
em questão a sua estrutura tradicional. Ao longo da história do livro há recorrên-
cias diversas: materiais, formatos, acabamentos, processos produtivos que se repe-
tem sincronicamente e que se modificam juntos diacronicamente, e nessa dinâmica
configuram um discurso histórico sobre o objeto livro. Esse discurso reverbera nos
discursos dos livros publicados pela Cosac Naify.
Mas o que é, no rigor da disciplina, um “discurso”? De acordo com Greimas e
Courtés (2011, p. 145), o discurso é decorrente de um ato de enunciação. A colocação
em discurso consiste na retomada das estruturas semionarrativas e na sua transfor-
mação em estruturas discursivas (Ibidem, p. 146). Segundo Barros (2008, p. 85):

Discurso: é o plano do conteúdo do texto, que resulta da conversão, pelo sujeito


da enunciação, das estruturas sêmio-narrativas em estruturas discursivas. O dis-
curso é, assim, a narrativa “enriquecida” pelas opções do sujeito da enunciação
que assinalam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o
discurso que enuncia.

Em outras palavras, os valores de base e a narrativa que estão nos níveis mais
profundos do enunciado são retomados pelo sujeito da enunciação, que faz diversas
escolhas relativas ao modo como essas estruturas serão concretizadas no discurso
(mais ou menos figurativas, mais ou menos temáticas, pelos procedimentos de em-
breagem, de debreagem, etc.). Como afirmam Greimas e Courtés (2011, p. 148), “a
produção de um discurso aparece como uma seleção contínua dos possíveis”.
Assim, uma relação interdiscursiva é aquela que relaciona dois discursos distin-
tos. Quando um determinado discurso retoma elementos de outro discurso, ou seja,
retoma as escolhas enunciativas (a seleção dos “possíveis”) que foram concretizadas
por outrem, está criando uma relação entre discursos – interdiscursiva, portanto.
Cabe aqui, porém, esclarecer ainda outra questão: a diferença entre os conceitos
de interdiscursividade e intertextualidade. A noção de intertextualidade, na semióti-
ca, é decorrente das proposições do russo Bakhtin. Segundo Fiorin (2003, p. 29),
“sua preocupação básica foi a de que o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas
se elabora em vista do outro. Em outras palavras, o outro perpassa, atravessa, condi-
ciona o discurso do eu.” Nos estudos ocidentais da obra de Bakhtin, deu-se muita

144 METADISCURSOS DO LIVRO


importância ao conceito de “intertextualidade”, que o linguista brasileiro considerou
impreciso. Para Fiorin (2003), se a semiótica discursiva diferencia o discurso (pata-
mar que assume as estruturas narrativas e actorializa-as, espacializa-as, temporali-
za-as e reveste-as de temas e figuras) do texto (a unidade de manifestação, lugar da
relação entre imanência e manifestação), é preciso diferenciar interdiscursividade e
intertextualidade.
Assim temos que “a intertextualidade é o processo de incorporação de um tex-
to em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo.”
(FIORIN, 2003, p. 30). Ela ocorre por citação, alusão (em que não se citam palavras,
mas reproduzem-se construções sintáticas) ou estilização (reprodução do estilo de
outrem, do conjunto de recorrências formais tanto do plano da expressão quanto do
plano do conteúdo que caracterizam o outro) (FIORIN, 2003). Na intertextualidade,
portanto, são fragmentos, construções sintáticas ou estilos de textos específicos que
são incorporados a outro texto.
O conceito de interdiscursividade é diferente: “a interdiscursividade é o pro-
cesso em que se incorporam percursos temáticos e/ou percursos figurativos, temas
e/ou figuras de um discurso em outro.” (FIORIN, 2003, p. 32). Ela ocorre por citação
(repetição das “ideias”, ou seja, dos temas e figuras de outros) ou alusão (incorpo-
ração de temas e/ou figuras de um discurso que vai servir de contexto para a com-
preensão do que foi incorporado) (FIORIN, 2003).
Os projetos gráficos da Cosac Naify se valem principalmente de relações inter-
discursivas pelo mecanismo da alusão: para compreendê-los, é necessário conhecer
também o discurso histórico do livro. Os temas e figuras que se constituíram his-
toricamente na formação do livro contemporâneo são o pano de fundo que serve
de contexto para a compreensão desses projetos atuais e vanguardistas da Coleção
Particular.
Entre interdiscursividade e intertextualidade, há algumas implicações:

A interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja


verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao
discurso que ele manifesta.
A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um
texto. A interdiscursividade, ao contrário, é inerente à constituição do discurso.
[...] O discurso não é único e irrepetível, pois um dircurso discursa outros dis-
cursos. (FIORIN, 2003, p. 35).

METADISCURSOS DO LIVRO 145


Na Coleção Particular, o saber que o enunciatário deve possuir para compreender
os projetos gráficos às vezes pode fazer referência a um conjunto de textos específico
(as publicações de Aldo Manuzio na virada do século XV ao XVI, por exemplo),
indicando intertextualidade, mas nem sempre. É mais frequente que certas ideias
referentes aos livros de determinado período histórico sejam retomadas, de modo
que as relações interdiscursivas são a chave na compreensão dos livros da Cosac
Naify. É por isso que tratamos, nessa pesquisa, de interdiscursividade, mais do que
de intertextualidade.
O design dos livros da Coleção Particular se vale de escolhas enunciativas con-
solidadas em outros discursos: materiais, formatos, acabamentos e processos que
foram estabelecidos ao longo da história do livro. São livros que falam de livros.
Constroem, portanto, um metadiscurso do livro, em que cada livro é pensado a par-
tir de outros livros.

4.1 História do livro

O livro nem sempre teve a sua forma atual. A sua materialidade, por exemplo, sofreu
grandes mudanças ao longo da história. Desde os mais antigos suportes de escrita
até os papéis que hoje utilizamos foi um longo percurso. O primeiro livro da Coleção
Particular retoma uma parte essencial dessa trajetória: o desenvolvimento do papel.
É relevante o fato de que o primeiro título de uma coleção que se preocupa justa-
mente com a materialidade do livro preste homenagem ao local de origem do mate-
rial mais utilizado atualmente na produção de livros, ou seja, o papel.
Primeiro amor utiliza um método de encadernação tradicional da China, mes-
mo país em que foi desenvolvido o papel. Existem diversos métodos tradicionais
de encadernação provenientes da Ásia, mas a chamada “encadernação chinesa” é
aquela que junta folhas sem a necessidade de serem unidas em uma dobra interna,
pois as prende utilizando linha e agulha. Conforme aponta Lupton (2011, p. 121),
na costura chinesa as folhas são unidas de modo que a linha permaneça visível na
lombada e laterais do livro. Um recurso comum em tais encadernações é o de utilizar
folhas dobradas no meio, as quais são costuradas do lado oposto às dobras, tendo
como resultado que cada folha dupla termine aberta em cima e embaixo. O fato de
a tinta caligráfica utilizada na escrita oriental penetrar nos papéis parece explicar a
necessidade de as folhas serem duplas em volumes com esse tipo de encadernação.

146 METADISCURSOS DO LIVRO


Na edição de Primeiro amor, da Cosac Naify, não se trata de uma autêntica encader-
nação chinesa artesanal, pois a costura não é manual, mas sim feita em uma máquina
Singer. Ainda assim, a presença das folhas duplas vazias em seu interior e com costu-
ra aparente remete fortemente a esse tipo de junção das páginas.
Antes do papel surgir na China, no entanto, houve outras materialidades diver-
sas utilizadas como suporte da escrita. Segundo Fischer (2006), os sumérios foram
os primeiros a desenvolver uma escrita completa, com um sistema padronizado de
sinais que representava determinados sons. A escrita suméria, chamada cuneiforme,
era gravada principalmente com o uso de estiletes sobre tabuletas de argila. Mas as
inscrições também eram, com menor frequência, “entalhadas em pedra e gravadas
em cera, marfim, metal e, até mesmo, em vidro.” (FISCHER, 2006, p. 16). Os prin-
cipais suportes de escrita que seguiram a essa multiplicidade de materiais foram o
papiro, o pergaminho e, finalmente, o papel.
O papiro surgiu por volta do quarto milênio a.C. e era elaborado pelos egípcios a
partir da planta que crescia nas margens do Nilo. Era um material fino, leve, flexível,
de fácil manuseio e armazenagem, sendo possível ainda juntar várias folhas em um
único rolo para os textos mais extensos, o que foi uma grande novidade visto que os
materiais anteriores permitiam apenas escritos curtos. (FISCHER, 2006).
O papiro cruzou os mares e chegou a solo europeu, suprindo uma demanda dos
gregos que ainda não possuíam um suporte barato, comum e acessível para a escrita.
A situação mudou com a introdução do novo material: “seu comércio teve súbito
crescimento, o que promoveu a leitura e a escrita no litoral mediterrâneo” (FISCHER,
2006, p. 43). Entre os romanos, o papiro também foi muito utilizado, embora não
tenha sido tão predominante quanto o papel foi no século XX, por exemplo. A
maior parte da escrita cotidiana no Império Romano (cartas, por exemplo) era feita
em tabuletas de cera, fáceis de apagar (com capas duras protegendo o conteúdo)
(FISCHER, 2006).
O papiro, no entanto, ainda não era um material excelente. Fischer (2006, p. 63)
aponta algumas das dificuldades: “A leitura do rolo de papiro não era uma tarefa sim-
ples, pois era necessário desenrolá-lo seguidas vezes. Retornar, ir adiante no texto ou
procurar determinada passagem nele era difícil. Não havia sumário ou índices.” Os ro-
los eram objetos caríssimos e precisavam ser armazenados com cuidado, longe de cri-
anças, animais, ladrões, longe de chuva ou vinho derramado. Se houvesse um incêndio,
eram “as primeiras coisas a serem salvas depois das crianças.” (FISCHER, 2006, p. 63).
O principal material de escrita que veio a seguir, e que superou algumas dessas
dificuldades, foi o pergaminho. Ele surgiu a pedido do rei Eumenes II, na Grécia, que

METADISCURSOS DO LIVRO 147


encomendou a seus especialistas o desenvolvimento de um novo suporte de escrita.
Conforme nos conta Fischer (2006, p. 76):

Os gregos orientais logo aprimoraram uma técnica que envolvia o estiramento e


secagem da pele de ovelhas e cabritos, deixando-a extremamente fina. O produto
final desse processo tornava-se, enfim, o principal veículo da fé em um novo
mundo, bem como o suporte de toda uma época – o pergaminho.

O pergaminho possibilitou o surgimento do formato “códice”, um texto com pá-


ginas escritas em ambos os lados, dobradas, para que fossem viradas ao invés de
enroladas. O códice liberava espaço na biblioteca e podia ser lido com apenas uma
mão. É o formato que utilizamos até hoje nos livros impressos. Apesar de ainda ser
um material caro, o pergaminho era mais barato que o papiro, mais durável e resis-
tente à umidade e à ação de insetos. À medida que foi adotado principalmente pelos
cristãos e pelos médicos, que preferiam o formato de códice pela facilidade da con-
sulta, o pergaminho se popularizou (FISCHER, 2006).
O pergaminho só foi suplantado na Europa pelo papel bem mais tarde, no final
da Idade Média. O papel, no entanto, havia sido inventado pelos chineses muito antes
de sua introdução em solo europeu. No séc. I d.C., a seda era um material de escri-
ta comum no mundo oriental, usada para correspondências e documentos oficiais,
porém era caríssima. Isso levou à procura de um material mais barato (FISCHER,
2006). Essa busca originou o processo descrito a seguir:

Extraía-se a polpa da seda antiga, e o extrato gelatinoso era espalhado em uma


camada fina sobre blocos emoldurados para secagem, produzindo-se uma útil
superfície para escrita. Descrito pela primeira vez pelo eunuco Cai Lun, na corte
Wu Di do imperador Han, em 105 d.C., o processo produziu o que veio a ser, no
final das contas, o mais útil e comum dos materiais empregados para escrita no
mundo: o papel. [...] O papel, cuja composição original era de farrapos e fibras
naturais (louro, amora e grama chinesa), foi mantido como um monopólio de
produção do governo até o séc. VIII, sendo sua técnica de fabricação um segredo
guardado a sete chaves. (FISCHER, 2006, p. 97).

Em pouco tempo, o papel, que tinha um custo baixo de produção, tornou-se o


principal material para a escrita na China e em toda a Ásia. Segundo Fischer (2006,
p. 192): “o papel chegou aos países islâmicos por volta do século IX e se tornou

148 METADISCURSOS DO LIVRO


comum na Europa ocidental nos anos 1300. Em meados do século XV, o papel já
substituía o pergaminho em quase toda parte.”
Foi graças à disponibilidade e ao baixo custo do papel que foi possível o advento
da impressão no séc. XV. Assim, há um discurso histórico formado pelas diferentes
materialidades que configuraram o livro: um percurso que vai desde os materiais
primitivos de escrita até as tabuletas de argila, papiro, tabuletas de cera, pergaminho
e, finalmente, o papel. Toda essa trajetória de evolução das materialidades do livro
é homenageada pela editora Cosac Naify quando escolhe, no título inicial de uma
coleção que trabalha justamente a materialidade do objeto livro, encadernar a obra
segundo uma técnica oriental. A matéria é moldada (pela encadernação chinesa)
conforme o costume de seus criadores (os chineses), em uma relação interdiscur-
siva entre uma obra atual, que explora sua matéria, e as obras daqueles que desen-
volveram tal matéria-prima.
Já a segunda publicação da coleção, Bartleby, o escrivão, nos arremessa a ou-
tro momento da história dos livros: as primeiras décadas do livro impresso. Há um
detalhe curioso nessa publicação da Cosac Naify: todos os blocos de texto estão
diagramados na versão itálica da família tipográfica Goudy Old Style. Atualmente,
estamos acostumados a ler livros impressos somente na versão romana das fontes.
Assim, encontrar um livro diagramado todo em itálico como Bartleby, o escrivão
pode causar estranheza. Porém, houve certo momento da história em que foi comum
encontrar livros assim, completamente impressos em uma tipografia itálica. Embora
o itálico nos pareça hoje uma variação absolutamente normal das fontes, ele também
teve de ser inventado em algum momento. E esse momento está bem documentado:
ocorreu nas primeiras décadas após o advento da impressão.
De acordo com Fischer (2006), foi em 1450 que Johann Gensfleisch zum Guten-
berg, de Mainz, criou um modelo de reprodução de letras metálicas e uma tinta
especial que poderia aderir ao tipo de metal e, em seguida, passou a utilizar esse
material com uma prensa. O resultado era uma produção em massa de páginas de
papel impressas: tinha início a impressão tipográfica. Segundo Fischer (2006, p. 190),
“em 1500, cerca de 1700 prensas em mais de 250 centros de impressão já haviam
publicado por volta de 27 mil títulos em mais de dez milhões de cópias.” Em ou-
tras palavras, apenas cinco décadas após a invenção de Gutenberg, a impressão já
havia se espalhado por boa parte do continente europeu. Porém, não havia ainda a
preocupação de estabelecer um sistema de linguagem com uma plasticidade própria
do livro impresso: até cerca de 1480, o tipo móvel somente imitava os formatos das
letras góticas dos livros manuscritos. Os tipógrafos de então desenvolviam fontes

METADISCURSOS DO LIVRO 149


que copiavam o padrão das letras à mão dos escribas. Como aponta Fischer (2006,
p. 192): “não apenas formatos de letras, mas títulos, iniciais, ilustrações e até mesmo
os temas, tudo isso seguia a tradição dos manuscritos.”
Porém, logo surgiram algumas inovações específicas para os livros impressos.
No final do século XV, Veneza destacava-se como um dos mais dinâmicos pólos
culturais e de impressão da Europa (FISCHER, 2006; SATUÉ, 2004). Muitos alemães
haviam migrado para lá, levando consigo a tecnologia desenvolvida por Gutenberg.
A prensa mais famosa na Veneza do final do Quatrocento era a de Aldo Manuzio.
Esse editor foi responsável por várias inovações, como, por exemplo, a criação dos
“livros de bolso”. Manuzio, na tentativa de economizar espaço nas páginas, imprimiu
19 Os tipos foram obras inteiras num estilo estreito baseado no cursivo da escrita comum.19 Esses tipos
desenhados por
cursivos ficaram, posteriormente, conhecidos como “itálico”. (FISCHER, 2006).
seu parceiro
tipógrafo, Francesco Assim, ao imprimir na contemporaneidade um livro totalmente em tipos itáli-
Griffo.
cos, a Cosac Naify retoma uma prática desenvolvida por um dos mais célebres edi-
tores de todos os tempos. Mais que uma mera relação figurativa com a profissão do
personagem-título (o escrivão), os tipos itálicos estão também em uma relação de
interdiscursividade com as publicações da época de Aldo Manuzio.
Além disso, há ainda outra referência histórica no projeto gráfico de Bartleby, o
escrivão. Como dito anteriormente, o livro da Cosac Naify acompanha uma rígida
lâmina plástica, com bordas agudas, que deve ser utilizada para romper as extremi-
dades das folhas não-refiladas para acessar o texto verbal. Trata-se da retomada de
uma prática comum em certos livros que, no passado, vinham sem o refile. Em de-
terminado período da história do livro, e mesmo recentemente em outros países que
não o Brasil, era comum receber os livros não-refilados. Os leitores, assim, munidos
de suas espátulas, realizavam eles mesmos o processo de separação das páginas. Esse
ritual gestual é descrito com detalhes por Italo Calvino em certa passagem de Se um
viajante numa noite de inverno:

As folhas do volume não foram cortadas – o primeiro obstáculo que se con-


trapõe a sua impaciência. Munido de uma boa espátula, você se apressa em
penetrar nos segredos dele. Com um corte decidido, abre caminho entre o fron-
tispício e o início do primeiro capítulo. [...] Os prazeres que o uso da espátu-
la reserva são táteis, auditivos, visuais e, sobretudo, mentais. Para avançar na
leitura, é preciso um gesto que atravesse a solidez material do livro e dê a você
o acesso à substância incorpórea dele. Penetrando por baixo entre as folhas, a
lâmina sobe impetuosa e abre um corte vertical numa fluente sucessão de ta-

150 METADISCURSOS DO LIVRO


lhos que investem contra as fibras uma a uma e as ceifam. Com uma crepitação
hilária e amigável, o papel de boa qualidade acolhe esse primeiro visitante, que
prenuncia inúmeras viradas de páginas impelidas pelo vento ou pelo olhar. A
dobra horizontal apresenta maior resistência, especialmente quando é dupla,
pois exige um movimento vagaroso em direção contrária – e ali o som é o de
uma laceração sufocada, com notas mais baixas. A borda das folhas se rompe,
revelando o tecido filamentoso; um fiapo sutil – dito “encaracolado”– se destaca,
suave como a espuma de uma onda. Abrir uma passagem com o fio da espada
na fronteira das páginas sugere segredos encerrados nas palavras: você avança
na leitura como quem penetra uma densa floresta. O romance que você está len-
do gostaria de apresentar-lhe um mundo carnal, denso, minucioso. Imerso na
leitura, você movimenta maquinalmente a espátula no sentido longitudinal do
volume: ainda nem leu todo o primeiro capítulo, mas já cortou até bem adiante.
(CALVINO, 1999, p. 39-40, 48).

Livros não-refilados não são usuais no mercado editorial brasileiro. Embora ain-
da presentes em determinadas obras voltadas para bibliófilos, de tiragem limitadís-
sima, a níveis comerciais não mais se encontram livros assim faz um par de décadas.
Ao se valer desse recurso, que muito se relaciona com a própria trama da narrativa
de Bartleby, a editora Cosac Naify proporciona aos leitores um mergulho na história
do livro e no seu processo de produção, num programa de formação de leitores.
Se nas duas primeiras obras publicadas a editora retomava o surgimento do pa-
pel e as primeiras décadas da impressão, respectivamente a matéria e a técnica es-
senciais ao livro tal qual o conhecemos hoje, o terceiro livro publicado na Coleção
Particular aponta uma nova questão. A fera na selva, por meio de seu projeto gráfico,
nos lembra da importância da distribuição dos livros, por meio dos correios e de
seus antecessores, os mascates de livros.
A capa de A fera na selva é formada por uma folha de grandes dimensões dobra-
da em oito segmentos, os quais envolvem o miolo do livro até atingir o formato final
de 16cm por 23cm. Essas dobras fazem da capa um pequeno embrulho, que reveste
em várias camadas o seu conteúdo, o miolo. O papel escolhido é o Tyvek Dupont,
um papel importado muito resistente, que não rasga nem molha, e por isso é usado
pelo sistema de correios americano FEDEX. Ou seja, a capa é como uma resistente
embalagem para que o livro possa ser distribuído – seja entre as livrarias nacionais,
seja pelos próprios correios americanos, pois o livro também foi lançado pela Cosac
Naify em uma edição em inglês.

METADISCURSOS DO LIVRO 151


Por boa parte da história dos livros, uma figura foi essencial na sua promoção: o
mascate. Logo após o advento da impressão, na Alemanha, os mascates foram aque-
les que distribuíam os livros impressos a cidades menores e vilarejos. Assim, houve
no país fundador da impressão mais acesso aos livros e ao conhecimento, mesmo
fora dos grandes centros urbanos, o que culminou no desenvolvimento cultural ger-
mânico. Além dessa atuação forte dos mascates na Alemanha, nos séculos seguintes
eles também foram responsáveis por boa parte da distribuição dos livros no restante
do solo europeu (FISCHER, 2006).
Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, a distribuição de livros tam-
bém foi um fator determinante para o desenvolvimento cultural do povo. Dada a
grande extensão do país, por muito tempo o principal meio de acesso aos livros foi
o sistema de correios, que distribuía os livros impressos a áreas remotas. Não havia
uma grande quantidade de livrarias em centros urbanos, como as que já existiam na
Europa. Segundo Fischer (2006, p. 259): “Com uma extensão geográfica imensa, os
Estados Unidos no século XIX tinham 90% dos seus livros vendidos por assinatura,
correio ou vendedores itinerantes.”
Assim, A fera na selva retoma na materialidade de sua capa a importância
histórica da distribuição dos livros, principalmente nos primeiros séculos do livro
impresso. Outra obra da Coleção Particular nos leva um pouco adiante no tempo:
Avenida Niévski explora o recurso do livro ilustrado, inovação característica do final
do século XVI e popularizada no século XIX.
O livro da Cosac Naify, Avenida Niévski, inicia e termina com uma série de re-
produções de litogravuras que mostram o panorama completo dos dois lados da
avenida-título. As gravuras retratam a avenida da época da narrativa em toda a sua
extensão. As páginas das gravuras são separadas das páginas de texto verbal: pri-
meiro vem um elemento (a gravura), depois o outro (o verbal). Tal procedimento, o
20 Na corrente de separar as gravuras do verbal, remete ao período das primeiras publicações ilus-
semiótica adotada
tradas impressas, que por motivos técnicos faziam esse afastamento dos elementos
nesse trabalho,
diríamos uma verbal e pictórico. Chartier (1998, p. 10) explica essa separação:
separação entre a
semiose verbal e a
pictórica (ao invés Ainda no ocidente, a partir do fim do século XVI e início do XVII, a imagem
de separação entre
inserida no livro está ligada à técnica da gravura em cobre. Vê-se então uma
“texto e imagem”),
já que a noção de disjunção entre o texto e a imagem20: para imprimir, de um lado, os caracteres
“texto” engloba a
tipográficos e, de outro, as gravuras em cobre, são necessárias prensas diferentes,
totalidade signifi-
cante. duas oficinas, duas profissões e duas competências. É o que explica que, até o

152 METADISCURSOS DO LIVRO


século XIX, a imagem esteja situada à margem do texto – o frontispício abrindo
o livro, as pranchas fora-do-texto.

Essa separação só foi superada graças ao uso da gravação em madeira, técnica


que permitiu aos impressores unir o verbal e a ilustração em uma mesma página. É
daí que surgiram periódicos ilustrados baratos, que hoje são considerados as primei-
ras revistas. As “ilustradas” no séc. XIX cativaram leitores em toda parte: Inglaterra,
França, Alemanha, etc. (FISCHER, 2006).
A Cosac Naify, na edição de Avenida Niévski, apóia-se na estética do primeiro
período das gravuras impressas, quando ainda apareciam em separado do sistema
verbal. Porém, pelo uso de cores, da distribuição na topologia da página e dos diver-
sos procedimentos sincréticos, ela dá ao livro um caráter de unidade, de totalidade
de sentido. Além de retomar, é claro, o discurso histórico do objeto livro.
Zazie no metrô propõe mais um salto temporal e nos coloca em outro período
histórico: o século XX, época dos best-sellers e da sociedade de consumo. Na trama
do livro, a garota do interior se vê em meio a um grande centro urbano (Paris), com
alta velocidade de produção e distribuição dos bens comerciais. O projeto gráfico do
livro traz à tona o frenesi urbano retratado na obra ao explorar, por meio da profusão
de elementos e do uso de publicidades, esse cenário da “cidade grande”. No interior
das páginas dobradas do livro, estão impressos diversos fragmentos de cartazes, ca-
pas e anúncios franceses da década de cinquenta. Além dessas publicidades, que nos
remetem à sociedade de consumo, o próprio livro Zazie no metrô, quando lançado
originalmente na França, foi um best-seller, um grande sucesso comercial que ven-
deu milhares de exemplares.
Os livros impressos dos séculos XV a XVIII possuíam poucos exemplares, tanto
que chegar a mil unidades era uma raridade. As tiragens de livros, porém, foram
crescendo a largos saltos a partir das diversas inovações da revolução industrial. Se-
gundo Chartier (1998, p. 126):

O tema da crise do livro ligada à superprodução aparece desde a segunda re-


volução industrial do livro, no século XIX, a dos anos 1860-1870, quando se
abandona a composição manual de Gutenberg para passar à era do monotipo
e depois à do linotipo. O aumento das tiragens, o crescimento da produção im-
pressa, sem falar da produção do jornal e a multiplicação dos periódicos e revis-
tas, acompanha essa mutação técnica.

METADISCURSOS DO LIVRO 153


O número de títulos publicados aumentou vertiginosamente depois do adven-
to desses novos processos de composição (monotipo, linotipo e, posteriormente, a
impressão em offset) e a partir de 1910 já se falava em “superprodução” de livros.
(CHARTIER, 1998). Nessa sociedade que já consumia largamente, pós-industria-
lização, é que surgiram os livros “campeões de público”, os chamados best-sellers.
Fischer (2006, p. 276) cita alguns dos principais sucessos comerciais:

O século XX produziu seus próprios romances best-sellers, disputando com o


exclusivo nicho de mercado até então desfrutado pela Bíblia, vendendo milhões
de cópias: Nada de novo no front (1929), de Erich Maria Remarque, E o vento
levou... (1936), de Margaret Mitchell, O apanhador no campo de centeio (1951),
de J. D. Salinger, O senhor dos anéis (1954-1955), de J. R. R. Tolkien, e Pássaros
feridos (1977), de Colleen McCullough.

Esses livros vendiam milhares de unidades e caracterizaram um novo estágio


na história do livro. A edição de Zazie no metrô da Cosac Naify tece então relações
interdiscursivas com esse período muito próximo de nós, o do surgimento do con-
sumo nas cidades grandes e, consequentemente, dos livros best-sellers. Porém, vemos
hoje um novo fenômeno, o dos “supersellers”, que é também abordado na Coleção
Particular em uma de suas obras.
O livro Flores problematiza o estatuto de “mercadoria” do livro. Ele é distribuído
sem uma “capa” propriamente dita, estando o miolo envolto em um saco plástico.
Embalado como se fora um bem descartável, a ser comercializado em supermer-
cados ou em uma farmácia, a publicação gera estranheza ao figurar nas prateleiras
das livrarias. O próprio código de barras, elemento que geralmente figura apenas na
quarta capa, aqui aparece na página de rosto e fica visível no primeiro contato com
o objeto, pela transparência do plástico, indicando que se trata, sim, de um item
comercializável. A trama do livro também aborda um assunto relacionado ao con-
sumo: a indústria farmacêutica.
Para Fischer (2006), a chamada “indústria do livro” nasceu no século XIX, em-
bora tenha sido no século XX que ela se consolidou, devido a inovações tecnológi-
cas. Como nos aponta o autor: “Aprimoramentos na fabricação do papel, na im-
pressão e na encadernação resultaram em produções maiores e preços mais baixos
por exemplar.” (FISCHER, 2006, p. 269). Porém, as grandes tiragens dos títulos tam-
bém passaram a apresentar um possível problema:

154 METADISCURSOS DO LIVRO


À medida que o novo século avançava e mais povos eram enfim alfabetizados,
paradoxalmente, havia menos opções de títulos. A estratégia adotada pelos
editores, durante muito tempo, de fazer que um best-seller financiasse outras
nove obras louváveis quase desapareceu por completo na década de 1970: a regra
agora era que apenas o “campeão de público” receberia a atenção dos editores.
As listas de títulos ficavam reduzidas na proporção que os lotes de impressão
aumentavam. (FISCHER, 2006, p. 275).

Ao passearmos hoje em uma grande livraria, como a megastore Livraria Cultu-


ra, do Conjunto Nacional, por exemplo, é difícil pensar que há “menos opções de
títulos” do que nas décadas passadas, dada a variedade de publicações encontradas.
Porém, há de fato títulos que recebem atenção demasiada, ocupando sozinhos uma
ilha ou prateleira inteira. Segundo Fischer (2006), esses títulos são os supersellers,
fenômeno característico do final do século XX. São livros como a série Harry Potter
(ou mais recentemente a série Crepúsculo ou Cinquenta tons de cinza), que vendem
dezenas de milhões de cópias em intervalos de tempo curtíssimos.
Esses supersellers são de fato comercializados não apenas em livrarias, mas tam-
bém em bancas de jornais, lojas de conveniências (em aeroportos e rodoviárias),
lojas de departamentos, etc. São livros-mercadoria, os quais a obra Flores da Cosac
Naify coloca em questão por meio de seu projeto gráfico expressivo. A editora leva
ao extremo o status do “livro-mercadoria” ao embalá-lo em uma sacola plástica, ex-
plicitando, por meio de suas escolhas enunciativas, o valor comercializável do pro-
duto. Em sincretismo com o conteúdo verbal do livro, essa embalagem levanta uma
reflexão sobre o poder das indústrias e das grandes empresas no mundo atual.
Por fim, a obra Museu do romance da Eterna é o título da Coleção Particular que
nos faz tanto um resgate do passado quanto nos aponta para o futuro do livro. Na
publicação, cada um dos prólogos é circundado por um traço preto em seus quatro
lados (direito, esquerdo, acima e abaixo). Os traços de cima e de baixo, porém, nem
sempre ficam na mesma página, porque às vezes os prólogos continuam por várias
páginas seguidas. Nesse caso, apenas os traços laterais estão presentes, correndo de
alto a baixo na topologia do papel. O efeito é de continuidade vertical, como se cada
prólogo fosse um grande bloco de texto verticalizado, que teve que ser dividido entre
diferentes páginas. Essa divisão funciona como se fosse uma longa página web que,
para ser reproduzida em outro suporte, é exibida em vários print-screens nos quais
constam os limites laterais, mas não os limites inferior e superior.

METADISCURSOS DO LIVRO 155


Essa distribuição vertical do texto verbal remete ao livro tal qual na Anti-
guidade: “este livro é um rolo, uma longa faixa de papiro ou de pergaminho que
o leitor deve segurar com as duas mãos para poder desenrolá-la.” (CHARTIER,
1998, p. 24) O rolo de papiro dos gregos tinha uma leitura que se direcionava para
baixo em linhas contínuas. Essa leitura se dava como a tela de um computador
hoje. Posteriormente, entre os romanos, o rolo era desenrolado e lido em seg-
mentos perpendiculares ao comprimento, em uma direção horizontal, portanto.
(FISCHER, 2006).
Museu do romance da Eterna assume em seus prólogos uma organização basea-
da na direção vertical, fazendo um resgate do passado ao assumir a direcionalidade
predominante nos rolos de papiro gregos. Essa mesma verticalidade é hoje domi-
nante no modo como lemos textos na Internet. É interessante notar, no entanto,
que nos e-books atuais há um movimento contrário, de resgate da horizontalidade: o
texto é dividido em “páginas” que são passadas ao clicar ou deslizar o dedo da direita
para a esquerda.
Além disso, o livro de Bellatin editado pela Cosac Naify possui em sua sintaxe
uma característica que também remete ao modo como navegamos na web. Museu
do romance da Eterna é escrito em uma estrutura não-linear, na qual os diferentes
prólogos e capítulos fazem o tempo todo referências a prólogos ou capítulos anterio-
res ou posteriores, de modo que a ordem de leitura deles parece não importar tanto.
Essas referências internas ao texto funcionam como os links das páginas da Internet
de hoje: o conteúdo é distribuído entre os vários fragmentos de texto, que não neces-
sariamente precisam ser lidos ordenamente para que se tenha acesso ao conteúdo
completo. É por isso que esse título da Coleção Particular aponta tanto para o pas-
sado quanto reflete o futuro: ao mesmo tempo em que a direcionalidade do projeto
gráfico remete ao rolo da Antiguidade, em sua organização interna nos lembra da
leitura nos ambientes web.
Vimos assim que todos os sete livros da Coleção Particular fazem uso em seu
design de escolhas enunciativas que foram consolidadas em outros discursos estabe-
lecidos ao longo da história do livro. Esses livros falam da história dos livros e, para
compreendê-los na totalidade, é necessário que o leitor possua também um conhe-
cimento histórico do livro.

156 METADISCURSOS DO LIVRO


4.2 Processo produtivo do livro

Mais além do que a retomada sistemática dos aspectos históricos do livro, a Coleção
Particular também evidencia aspectos de seu processo produtivo, mostrando que
seus projetos gráficos são fruto de um fazer construtivo de grande intencionalidade
por parte do destinador Cosac Naify e não são simplesmente reproduções do proces-
so comum de produção editorial.
Já ao abrir a capa do título inicial, Primeiro amor, o leitor se depara com a costu-
ra e a cola aparentes do miolo (fig. 60). A costura, feita à moda oriental, não liga as
páginas por uma dobra interna, como é de praxe, mas é feita mecanicamente a uma
distância de aproximadamente 6mm da extremidade das folhas. Essas extremidades
das páginas são unidas, além da costura, por uma camada de cola que as mantém
fixas. Assim, tanto os pontos da costura quanto a área coberta de cola ficam visíveis
no miolo, próximos à lombada. Colar e costurar são duas das etapas do processo
produtivo comum de um livro: grandes folhas são primeiramente impressas, para
logo em seguida serem dobradas em várias partes, formando cadernos, os quais são
costurados pela dobra central, colados juntos e têm suas bordas excedentes refiladas
(cortadas), resultando no miolo do livro. Portanto, pode-se afirmar que o projeto
gráfico de Primeiro amor figurativiza duas etapas – costura e cola – do programa
narrativo padrão de produção do miolo do livro.

Figura 60 – Detalhe
da costura e da
cola aparentes na
primeira página de
Primeiro amor.
Fonte: BECKETT,
2004.

METADISCURSOS DO LIVRO 157


Mais do que demonstrar as etapas do seu processo produtivo, o livro seguinte da
coleção insere o leitor na dinâmica desse processo. Bartleby, o escrivão vem com uma
capa costurada que deve ser desatada pelo leitor, além de ter suas páginas internas
sem o refile lateral, sendo necessário também rompê-las para usufruir o livro. Nessa
publicação, o leitor é um sujeito que participa ativamente do programa narrativo de
construção do objeto livro. Por isso mesmo, a obra requer uma descrição detalhada
dos mecanismos por meios dos quais se dá esse processo.
Para que o leitor possa apreciar o livro é preciso, obviamente, tê-lo. Mas no caso
de Bartleby, a editora Cosac Naify não entrega um produto completamente acaba-
do. Para que se tenha a obra, não basta comprá-la, é necessário participar do seu
processo de produção. Em termos de narratividade, é preciso realizar um programa
narrativo de produção. Segundo Greimas (1996, p. 12):

Um programa de produção consiste na construção de um objeto de valor, isto


é, de um objeto no qual seja investido um valor cuja conjunção com S₂ seja
suscetível de aumentar o seu ser. Esse valor pode corresponder, no nosso caso, à
satisfação de uma necessidade, ou à procura de um prazer.

Ainda de acordo com Greimas (1996, p. 11), é no PN (programa narrativo) de


base que se “inscreverão os outros PNs, considerados como PNs de uso ou de auxí-
lio”. Assim, o PN de produção se constitui como um programa de uso, composto por
sua vez de dois programas adjuntos, ou seja, de duas etapas para que seja concluído.
O PN₁, adjunto, é aquele do descosturar a capa do livro, enquanto o PN₂ é o de
cortar as laterais das páginas. Assim, o programa narrativo de base (o sujeito livro
manipula o sujeito leitor para que este interaja com o livro e entre em conjunção
com o objeto de valor – a apreciação do livro) se desdobra em um programa de pro-
dução e este, por sua vez, em dois programas adjuntos, conforme a esquematização
a seguir (esquema 10):

Programa de produção Programas adjuntos


Programa de base
Co-construção do PN₁ = Descosturar
Esquema 10 – PN = S₁ → ( S₂ ∩ Ov )
Programas narra- objeto de valor PN₂ = Cortar as páginas
tivos envolvidos
na construção de
Bartleby, o escrivão.

158 METADISCURSOS DO LIVRO


Construir o objeto de valor passa então por duas etapas de desconstrução, pois
descosturar é desconstruir a costura com a qual o livro é entregue, enquanto cortar
as páginas é desconstruir o próprio papel do miolo do livro.
No primeiro programa adjunto, aquele de descosturar a capa, o sujeito toma a
dianteira a partir das provocações deixadas pela editora (a vibrante linha vermelha
que entra em conflito com o verde da capa, a sutil ponta da linha solta a partir do
último nó). No segundo programa adjunto, que envolve a gestualidade do cortar as
páginas, fica muito mais evidente a ação do destinador Cosac Naify, pois sua marca
está impressa na espátula que acompanha o livro e que é utilizada no ato de rasgar
o papel.
Esse fazer conjunto entre livro e leitor na construção do objeto envolve uma
operação de transformação de matéria. O termo matéria, de acordo com Dias (1997,
p. 31), pode ser assim delimitado:

É matéria, indistintamente, tudo que possui existência física, a substância de que


são formadas as coisas, independente da sua forma. É portanto o modo mais
abstrato e genérico de referir-se às coisas corpóreas, recobrindo duas grandes
classes que podemos chamar materiais e objetos. Essas duas classes correspondem
a dois estatutos sociais das coisas corpóreas, em oposição a matéria considerada
genericamente.

As duas classes que estão contidas no termo matéria são, assim, os materiais, en-
quanto potencialidades que podem ser utilizáveis na fabricação de coisas outras, e os
objetos, já construídos, fabricados (DIAS, 1997). Os materiais utilizados em Bartleby,
o escrivão são as matérias-primas da fabricação do livro: papel (tanto o aveludado
da capa quanto o Paperfect do miolo), linha (vermelha e preta), tinta (serigráfica na
capa, offset no miolo), cola (nas capas e lombada) e o plástico da espátula.
Porém, esses materiais não vêm de início transformados em um objeto pronto,
em um livro. Trata-se de uma espécie de pré-livro, pois ainda não é dotado de todas
as funções que o livro comum apresenta: permitir a passagem das páginas, o ato de
folhear e mesmo de permitir a leitura do conteúdo verbal. Ainda assim, os materiais
já sofreram coerções e passaram por um certo processo de fabricação de algo, pois o
papel está impresso, ordenado, cortado em um certo formato, colado, etc. Bartleby é
vendido, então, em um estágio não-material, pois essa matéria-prima já sofreu um
fazer do homem, mas antes ainda do estágio de objeto. O que opera a transformação
final do não-material (ou pré-livro) em objeto é justamente o processo de descons-

METADISCURSOS DO LIVRO 159


truí-lo (desconstruir a costura, romper as páginas). Pelos dois programas adjuntos,
descosturar e cortar, S₁ (livro) e S₂(leitor) atuam juntos na transformação final da
matéria. O esquema a seguir (esquema 11) indica as etapas do processo:

/Material/ /Objeto/
Papel, linha, tinta, etc. Livro

Esquema 11 – /Não-objeto/ /Não-material/


Etapas do processo “Pré-livro”
produtivo, do
material ao objeto.

Mais que um processo de produção do objeto, vemos que o S₁ coloca o S₂ em


21 Alguns forma-
um programa narrativo de produção do livro que é histórico, pois remete a um certo
tos finais de livros
foram consolidados momento da evolução do livro em que este era entregue sem o refile, e que é sensível.
ao longo do tempo
Trata-se de um percurso de formação do leitor que visa a educá-lo em relação à dia-
e nomeados justa-
mente segundo o cronia do livro e às suas qualidades sensíveis.
método de dobra da
O título seguinte, A fera na selva, volta a demonstrar alguns aspectos da pro-
folha. No século XV,
logo após o advento dução de um livro que ainda não estavam figurativizados nas duas primeiras publi-
da impressão, três
cações. Conforme vimos, a capa desse livro se desdobrava várias vezes, chegando
formatos de página
tornaram-se oficiais: ao formato de uma grande folha de 46cm por 61,5cm, que revelava duas fotografias
“in-fólio (do latim
internas – um personagem masculino e uma feminina. Essa folha era dobrada em
folium ou ‘folha’),
dobrada uma vez; oito segmentos que envolviam o livro, para que este assumisse seu formato final. Tra-
in quarto (por causa
ta-se de uma figurativização do próprio processo de dobra que ocorre com as folhas
dos quatro quadra-
dos que esta produ- impressas quando se produz um livro.
zia), dobrada duas
Atualmente, não há uma padronização muito rígida dos formatos finais dos
vezes; e in-oitavo
(oito quadrados), livros, tal qual houve outrora.21 Pode-se dobrar as folhas de acordo com cada pro-
dobrada três vezes”
jeto, muito embora os tamanhos de comercialização do papel sejam padronizados.
(FISCHER, 2006,
p. 193). Em vários No Brasil, dois formatos predominam na distribuição da matéria-prima papel: o
países europeus,
formato AA (76 x 112cm) e o formato BB (66 x 96cm). Esses grandes formatos,
essa padronização
dos tamanhos era após impressos, são dobrados em oito, doze ou dezesseis segmentos (ou até mais
decreto real e o des-
ou menos, dependendo do livro) e dão origem aos cadernos de dezesseis, vinte e
respeito à norma era
punido com prisão. quatro ou trinta e duas páginas. Em A fera na selva, o papel importado da capa é um

160 METADISCURSOS DO LIVRO


pouco menor que esses grandes formatos nacionais (ou foi cortado menor), mas
sua dobra em quatro etapas que origina oito segmentos é a perfeita figurativização
do processo de dobra pelo qual passa o material papel nos programas narrativos de
produção de livros.
Na escolha do seu material, A fera na selva demonstra a variedade de gramaturas
de papel existentes, que devem ser selecionadas de acordo com cada publicação. No
livro da Cosac Naify, cada um dos cadernos é impresso em uma gramatura diferente
do papel couché fosco: 75g/m², 90g/m², 115g/m², 150g/m² e 170g/m². À medida que
a narrativa fica mais densa, sua materialidade também se adensa. Assim, a editora
nos mostra o quanto a opção gramatura carrega traços distintivos de densidade e
acarreta em diferentes efeitos de sentido.
A quarta obra publicada na Coleção Particular explicita uma outra etapa do pro-
cesso produtivo do livro, que talvez seja o mais fundamental: a própria impressão. Na
segunda e na terceira capas de Zazie no metrô estão impressos, em tamanho ampliado,
duas retículas de impressão (fig. 61). A retícula é a trama de pequenos pontos de tinta
que, no papel, é utilizada para misturar as diferentes cores da impressão e também
para originar as diferenças de tonalidade. Nessa trama de pontos é que, usualmente,
as cores da impressão amarelo, magenta, ciano e preto se misturam para originar cen-
tenas de outros matizes. Os pontos da trama, quanto maiores ou menores, originam
impressos mais claros ou mais escuros. Dificilmente visíveis a olho nu, em Zazie no
metrô esses pontos da retícula são ampliados para que o leitor os veja claramente e
inclusive entenda seu funcionamento: da esquerda para a direita, os pontos vão di-
minuindo de tamanho e a impressão fica mais clara, mostrando como se produzem
as diferenças de tonalidade, e de cima para baixo a tinta especial vermelha se mistura
com a tinta especial azul, mostrando como se mesclam as diferentes cores.

Figura 61 – Detalhe
da segunda e ter-
ceira capas de Zazie
no metrô: à medida
que os pontos da
retícula de im-
pressão diminuem
de tamanho, a
impressão fica mais
clara.
Fonte: QUENEAU,
2009.

METADISCURSOS DO LIVRO 161


Quando o leitor abre as páginas de Zazie para observar os cartazes e publici-
dades em seu interior, percebe que se tratam apenas de fragmentos, pois esses im-
pressos estão cortados, não são mostrados em sua totalidade. É assim que a Cosac
Naify apresenta outra especificidade da impressão: a sangra. No recurso da sangra,
as imagens são impressas até ultrapassarem os limites da página e, assim, quando o
livro é refilado, o efeito resultante é de que essas áreas impressas não possuem fim,
ocupando totalmente a topologia da página impressa. Ainda em Zazie, a visibilidade
dos fragmentos que estão no interior das páginas é propiciada pela baixa gramatura
do papel (apenas 37g/m²), que permite transparência em vários níveis. Assim, tal
qual na obra anterior, a editora nos mostra como a opção gramatura é fundamental
na construção do sentido do livro.
Agora que as diferentes etapas do processo de produção do livro já estão apre-
sentadas – a impressão, a dobra, a colagem e a costura – e tendo o leitor, inclusive,
participado ativamente desse processo, a quinta obra da Coleção Particular atenta
para um detalhe: em Flores, é a ordenação dos cadernos do miolo que é explicitada
pelo seu projeto gráfico. Como essa publicação é desprovida de capa, a parte do
miolo que é geralmente colada na capa (pelo interior da lombada) fica finalmente
visível para os leitores, o que ainda não havia sido mostrado nas obras anteriores da
Coleção Particular. Nessa lombada visível, percebe-se claramente os cinco cadernos
que constituem o miolo, todos devidamente costurados e revestidos por uma cama-
da de cola, para que mantenham-se fixos. Mas, além disso, esses cadernos são iden-
tificados: cada um deles recebe impresso em corpo minúsculo o nome do livro, uma
numeração (de um a cinco) e uma estreita faixa preta, que fica em altura diferente a
cada caderno (fig. 62). Quando ordenados os cadernos, essas faixas estreitas seguem
um percurso do alto (primeira faixa) ao baixo (última faixa); assim, qualquer pro-
blema de ordenação dos cadernos (que ocasionaria páginas em ordem invertida para
o leitor) é facilmente percebido em uma rápida visualização das lombadas, pois as
faixas pretas não configurariam essa direção descendente constante.
Ao exibir esse miolo desprovido de capa em Flores, a Cosac Naify disponibiliza
aos seus leitores um olhar interno do livro, que expõe suas entranhas. Como em uma
aula de anatomia, o esqueleto do livro, raramente visto pelo leitor comum, é final-
mente mostrado e está ao alcance das mãos.

162 METADISCURSOS DO LIVRO


Na obra seguinte, Museu do romance da Eterna, a Cosac Naify não expõe etapas Figura 62 – Deta-
lhes da lombada de
do processo produtivo de maneira tão evidente quanto nos casos antecedentes, mas
Flores: à esquerda,
ainda assim se vale de escolhas em seu projeto gráfico que ainda não haviam sido as faixas pretas nu-
meradas, que orde-
aproveitadas até então. A começar pela cromaticidade do papel: se os livros antece-
nam os cadernos, e
dentes demonstravam o quanto a gramatura pode carregar traços semânticos distin- à direita a minúscu-
la identificação do
tivos, nessa obra é a própria coloração do papel que entra em cena. A capa é reves-
título da obra.
tida de um poroso papel roxo, as guardas, de um firme color plus laranja, e o miolo Fonte: BELLATIN,
2009.
é composto de um papel pólen amarelado. Nesse livro, é a massa do papel que é
responsável pelos diferentes matizes, ao contrário dos livros anteriores que traziam
cores decorrentes de impressões prateadas, verdes, vermelhas e azuis. Em Museu do
romance da Eterna é o próprio material roxo que recebe a imprecisa impressão preta
na capa, e é o laranja das guardas que acarreta o forte contraste com essa mesma capa.
Esse sexto livro da Coleção Particular ainda apresenta uma diferença em relação
aos outros: a capa dura. Devido a isso, novas partes do livro são apresentadas ao
leitor: as guardas e o cabeceado (a fita de tecido que finaliza as partes inferior e su-
perior da lombada). Também o refile irregular na lateral das páginas nos lembra que
os processos de dobra e cola não precisam obedecer ao procedimento standard das
gráficas, mas podem ser fruto de um ato de intencionalidade das editoras e acarretar
os mais diversos efeitos de sentido.
Por fim, na sétima e última publicação da Coleção Particular, outra escolha da
editora foge dos padrões das gráficas: as tintas de impressão. Embora outros livros
fizessem também uso de tintas especiais, ao menos o texto verbal ou parte dele era
impresso na tinta offset preta regular. Avenida Niévski, entretanto, opera as tintas de
outro modo: à exceção do jornal que serve de embrulho, os dois volumes internos

METADISCURSOS DO LIVRO 163


são impressos somente com tintas especiais (Avenida Niévski em laranja e roxo, No-
tas de Petersburgo de 1836 em verde escuro). No procedimento padrão das gráficas,
os livros são impressos em “preto e branco”, utilizando somente a tinta preta, portan-
to, ou “coloridos”, isto é, numa mistura das quatro tintas da impressão (ciano, ma-
genta, amarelo e preto) que, por meio da retícula, originam centenas de cores. Tintas
22 A Pantone de outras cores são chamadas de “especiais” ou de Pantone.22 Em Avenida Niévski,
é a empresa
portanto, abandona-se a lógica comum de produção e se utilizam somente as tintas
responsável por
um sistema de cata- especiais, de modo que essas implicam um efeito de sentido próprio: a passagem
logação e padroni-
diária do tempo, do amanhecer laranja ao entardecer roxo.
zação das cores
segundo códigos É nessas diversas escolhas de seus projetos gráficos que a Cosac Naify questiona a
específicos.
lógica comum de produção baseada nos padrões da indústria gráfica. Ela se vale das
diversas etapas do processo produtivo do livro e faz com que ações como imprimir,
dobrar, costurar, ordenar, colar e cortar não sejam apenas passos para construí-lo,
mas sim passos para construir o próprio sentido do livro. Gramatura e tintas da
impressão, por exemplo, não são apenas frivolidades técnicas, mas são propriedades
essenciais do livro e carregam traços distintivos que produzem efeitos de sentido.
Ao exibir abertamente no produto final essas etapas que muitas vezes ficam ocultas,
o enunciador se põe lado a lado com o enunciatário: os dois sujeitos da enunciação
compartilham um mesmo universo de saber, são cúmplices, e são igualmente res-
ponsáveis pela construção do sentido. Os discursos dos livros da Coleção Particular
novamente incorporam aspectos de um outro discurso – o modo de produzir um
livro – que vai servir de contexto para a compreensão do que foi incorporado.

4.3 Estrutura do livro

Há uma espécie de sintaxe elementar, uma estrutura ordenada que foi consolidada
historicamente e que determina a forma como um livro “ideal” é organizado nos
dias de hoje. Essa estrutura varia muito pouco de uma publicação para outra e é o
que ela mantém de constante – suas isotopias – que permite às pessoas reconhece-
rem um livro como sendo um livro. A Coleção Particular, como veremos, subverte
vários desses elementos estruturais “canônicos” para constituir novas experiências
sensíveis de leitura.
A começar por sua parte mais externa, por seu invólucro, a sintaxe elementar
do livro apresenta três estruturas fundamentais: a capa, a quarta capa e a lombada.

164 METADISCURSOS DO LIVRO


A capa geralmente apresenta as informações de título da obra, nome do autor e edi-
tora, enquanto na quarta capa é comum uma sinopse ou comentário sobre a obra, o
código de barras e o número do ISBN (International Standard Book Number, a cata-
logação internacional de identificação das publicações). A lombada costuma conter
alguns dados essenciais: o título e autor da obra, a editora e, se for o caso, o número
do volume ou título da coleção.
O livro geralmente é apresentado de duas maneiras mais comuns: com uma en-
cadernação capa dura ou como uma brochura (fig. 63). A presença de alguns elemen-
tos característicos do livro é decorrente da escolha do modo de encadernação. Nos
livros de capa dura, um papelão rígido suporta a estrutura do volume. Externamente,
esse papelão é revestido pela capa, lombada e quarta capa, enquanto internamente
existem as guardas, folhas resistentes que são coladas ao miolo. Além disso, nos li-
vros de capa dura, o miolo é geralmente finalizado com o cabeceado, o acabamento
de tecido no topo e no pé da lombada. Os livros com encadernação brochura, por
sua vez, possuem a capa e a quarta capa em papel mais flexível, ainda que resistente, e
o miolo é colado diretamente na lombada (portanto, não há guardas unindo o miolo
às capas). Nos volumes em brochura, é comum a presença das orelhas, formadas por
uma dobra das extremidades da capa e da quarta capa, apresentando comentários
sobre a obra, informações sobre os autores, títulos da coleção, etc.

Figura 63 – Dese-
nho esquemático
das duas formas de
encadernação mais
comuns: a capa
dura, à esquerda,
e a brochura, à
direita.
Fonte: elaborado
pelo autor.

O miolo do livro é comumente dividido entre as páginas pré-textuais, as textuais


e as pós-textuais. Esses termos não são semioticamente precisos. Para a semiótica,
o texto funciona como uma totalidade de sentido e as páginas “pré” e “pós” textuais
são parte constituinte e fundamental dessa unidade significativa que é o livro, não
sendo elementos “extras” dispensáveis. No entanto, essa nomenclatura é consolidada

METADISCURSOS DO LIVRO 165


em toda a bibliografia que discute livros e também no meio acadêmico, motivo pelo
qual será utilizada neste trabalho, ainda que semioticamente imprecisa.
As páginas pré-textuais se iniciam pelo ante-rosto, também chamado de falso
frontispício. Segundo Hendel (2006, p. 53): “antigamente, quando os livros eram
vendidos sem capa, o ante-rosto mantinha limpa a página de rosto, mas agora ele
não tem qualquer finalidade real.” Ainda assim, ele teve seu uso consolidado e é raro
que não apareça nos livros. Geralmente, apresenta somente o título do livro. A seguir
temos a página de rosto ou frontispício, que Satué (2004, p. 18) entende como “o ver-
dadeiro cartão de identidade do livro.” É no fronstispício que estão o título do livro,
o subtítulo, o nome do autor e marca da editora, além da cidade e ano da edição.
Em seguida, está a página de créditos, na qual constam alguns detalhes editoriais
específicos: copyright, ficha catalográfica, dados da editora, título original da obra,
etc. De acordo com Hendel (2006, p. 57), “a página de copyright precisa ser pensa-
da com tanto cuidado quanto qualquer outra página do livro. É o anúncio legal de
quem é o proprietário do texto, além de trazer a informação catalográfica útil (pelo
menos é o que se espera) para os bibliotecários.” Dedicatórias, epígrafes, agradeci-
mentos, prólogos e prefácios são páginas que às vezes aparecem também entre o
material pré-textual. Sobre a dedicatória, Hendel (2006, p. 57) comenta: “Nenhuma
outra página de texto é tão parcimoniosa. Os autores dão muito valor às suas dedi-
catórias.” Nas páginas pré-textuais, podem constar também o sumário, a lista de ilus-
trações e outras listas preliminares. É importante diferenciar o sumário, que aparece
no começo do livro e elenca suas partes e capítulos constituintes, do índice, uma
listagem que aparece no final do livro e relaciona itens diversos às suas ocorrências
ao longo do livro (índice de nomes, índice temático, etc.).
Em seguida, vêm as páginas textuais propriamente ditas, que apresentam o que,
supõe-se, seja o conteúdo principal do livro. Elas são normalmente divididas em
capítulos. A palavra “capítulo” vem do francês arcaico, chapitre, que significa “tópico”
ou “categoria” (FISCHER, 2006). É comum que os capítulos iniciem-se em páginas
ímpares. Há alguns elementos que normalmente constituem a organização da pági-
na textual e que merecem uma atenção. O bloco ou mancha de texto é a área onde
os tipos são impressos, enquanto ao seu redor o espaço sem impressão é chamado
de margem. Na relação entre o bloco de texto e as margens, existe uma distribuição
topológica que é considerada a mais “tradicional”:

A sabedoria convencional diz que, em livros de texto de leitura contínua, as pá-


ginas espelhadas devem ser posicionadas uma em relação à outra de forma que o

166 METADISCURSOS DO LIVRO


leitor pense nelas como uma unidade. Por conseguinte, num design tradicional,
a medianiz – a margem interna das duas páginas – é menor que a margem lateral
(ou dianteira), a margem oposta à medianiz, de modo que os dois blocos de texto
fiquem próximos e o espaço externo a eles seja maior. (HENDEL, 2006, p. 35).

Os blocos de texto são geralmente divididos em parágrafos. O mais comum é


que os parágrafos apresentem um pequeno recuo em seu início, para marcar a se-
paração do parágrafo precedente. O tamanho desse recuo, porém, varia muito. Há
também quem use o parágrafo francês (a primeira linha é cheia e as seguintes são
recuadas) ou o símbolo “¶” (chamado de caldeirão ou pé-de-mosca).23 As páginas 23 O importante
tipógrafo Eric
textuais também apresentam o fólio (numeração) em lugares bastante diversos (cen-
Gill, por exemplo,
tralizados acima ou abaixo do bloco de texto, acima ou abaixo na margem externa, utilizou o caldeirão
para a marcação
etc.) e podem apresentar títulos correntes (nome do livro, do autor, do capítulo, etc.).
de parágrafos em
Os títulos correntes às vezes causam reações fervorosas nos designers de livros: seu livro Essay
on Typography
(HENDEL, 2006).
Os títulos correntes seguem uma convenção peculiar. Aparecem até mesmo
em livros nos quais parece não terem qualquer finalidade óbvia. Em livros de
organização complexa, ajudam o leitor a localizar um material rapidamente,
mas, em obras de ficção, não se ganha nada em repetir o nome do autor ou
o título do livro página após página. Numa época de fotocópias generalizadas,
porém, o título corrente pelo menos fornece a origem das páginas surrupiadas.
(HENDEL, 2006, p. 52).

Por fim, entram as páginas pós-textuais. Conforme Satué (2004, p. 19): “no final
do livro ficam os apêndices, a bibliografia, os índices analíticos – ou de assuntos
– e de nomes”. Elementos como os posfácios, anexos e críticas também costumam
constar entre as páginas pós-textuais. Ao final de tudo, mas não menos importante,
é comum encontrarmos o colofão na última página impressa do miolo. O colofão
apresenta certos dados sobre o processo de impressão, como a data em que foi im-
presso o livro, o local e a gráfica responsável, e dados sobre o projeto gráfico, como a
tipografia e papéis utilizados.
Tendo em vista essa estrutura consolidada do livro, as obras da Coleção Parti-
cular às vezes a corroboram, para que por meio dessas isotopias sejam reconhecidas
como livros, e às vezes a transgridem. A começar pelo exterior do livro, a editora Co-
sac Naify discute o que configura uma “capa”, valendo-se das mais variadas soluções
para construir o sentido das obras.

METADISCURSOS DO LIVRO 167


A capa de Primeiro amor, por exemplo, é feita com o lado fosco do papel cartão,
o que já é uma quebra de paradigma (os papéis cartão são impressos sempre em
seu lado brilhante). As “orelhas” do livro são coladas sobre si mesmas, formando
a segunda e terceira capas, dando maior sustentação ao volume. A última dessas
“orelhas” (ou terceira capa) é utilizada inclusive como página de créditos e colofão,
ou seja, ela incorpora elementos que são tradicionalmente localizados nas páginas
pré-textuais e pós-textuais.
No segundo título da coleção, a capa é também notadamente diferente do padrão
editorial vigente. Em Bartleby, o escrivão as capas vêm costuradas numa linha que
encerra o livro e o impede de ser aberto e folheado. A capa é feita com um papel de
textura aveludada, suave e quente, que, assim como os relevos da impressão serigrá-
fica e da costura, convida ao toque e ao agir pelas mãos que norteia a leitura do livro.
Também em A fera na selva há um efeito de sentido de transgressão. A capa não
se mantém em um plano exclusivamente bidimensional. Ela se desdobra, assume
uma tridimensionalidade e, nesse desdobrar, revela duas fotografias de grandes di-
mensões, funcionando como um pôster. O papel utilizado na capa novamente não
obedece aos padrões do mercado nacional, pois se trata de um papel importado, o
Tyvok Dupont, que lembra um tecido por sua trama e textura.
Talvez o título mais extremo quando se trata do invólucro seja Flores. Essa edição
foi “podada” do que seria uma capa tradicional. O livro é publicado sem capa ou pelo
menos sem o que consideramos tradicionalmente como uma capa. Ao invés disso, o
miolo é envolto em uma embalagem plástica que possui um lado transparente e outro
metálico. O frontispício do livro é que faz as vezes de capa, trazendo as informações
principais de identificação da obra. Através da transparência da embalagem plástica,
o frontispício fica à mostra e apresenta um elemento que é absolutamente incomum
nos frontispícios (e mesmo nas capas): o código de barras e o número de ISBN. Isso
acontece porque aquilo que funciona como “quarta capa”, que é o verso metálico da
embalagem, não possui impressão e, portanto, não apresenta as informações que
usualmente se localizam na quarta capa. Também o texto de “orelha”, na verdade um
comentário sobre a obra, vem em um papel verde dobrado à parte, que é incluído
na embalagem. Como o livro não possui capa, e as orelhas nascem da continuidade
das capas, a editora propõe outra maneira de veicular o comentário sobre a obra. É
interessante também perceber que, como não há capas, essa publicação também não
possui lombada. Ao invés disso, há uma pilha de cadernos aparente que, por meio da
cola e da costura, são unidos e formam o miolo do livro.

168 METADISCURSOS DO LIVRO


Outro título que também não utiliza uma capa tradicional é Avenida Niévski. Os
dois volumes encadernados separadamente (um deles com a encadernação brochura
comum, o outro com a costura canoa como um caderno de anotações) são envolvi-
dos pela reprodução de um jornal da época de redação da obra. Um adesivo verde
colado sobre esse “jornal” traz os dados do livro (autor, título, etc.). A dobra desse
papel é estratégica pois, numa primeira abertura horizontal, o leitor se depara com o
título dos dois volumes exibidos sob uma fresta e somente ao desdobrar novamente
é que se tem acesso aos volumes.
Algumas vezes torna-se difícil até mesmo descrever verbalmente esses elementos
que configuram os invólucros dos livros da Coleção Particular, justamente porque
eles não coincidem com as partes que são tradicionalmente nomeadas nas enca-
dernações de capa dura e brochura (“lombada”, “guardas”, “orelhas”, etc.). O léxico é
suficiente para descrever sem margem de erro os livros standard, mas não aqueles
que inovam em suas encadernações, tais quais as obras da Cosac Naify.
Há dois livros cujas capas ainda não foram comentadas: Zazie no metrô e Mu-
seu do romance da Eterna. Esses livros possuem encadernações mais comuns, que
podem ser descritas suficientemente como um livro em brochura (Zazie) e um livro
em capa dura (Eterna). Eles inovam, é claro, nos seus interiores. Mas fazer com que
dois livros da coleção apresentem encadernações que são consolidadas na produção
editorial atual é também uma estratégia interessante por parte da Cosac Naify: ela
não descarta os processos produtivos que são standard, desde que usados de maneira
a contribuir na construção do sentido da experiência de leitura.
Passando às páginas pré-textuais dos livros, em todos eles há uma constância: a
editora não apresenta a página de créditos no começo do livro, como é usual, mas
posiciona essa página no final dos volumes. Esse é um procedimento regular nas
obras da editora Cosac Naify, não somente para os títulos da Coleção Particular, mas
para outras de suas publicações também. Pode-se afirmar que, ao passar a página
de créditos para o final do volume, o leitor passa a enfrentar um número menor de
interrupções ou distrações antes de ser imerso na experiência de leitura. O tipógrafo
Jan Tschihold, se hoje estivesse vivo, poderia concordar com essa prática. Sobre a
página de créditos, ele declarava:

Os colaboradores, modestamente, deviam chamar atenção para si mesmos no


fim do livro. Ser citado pelo nome no início é privilégio exclusivo do autor e da
parteira do livro, o editor. Sempre fui um herege, e a minha opinião é a de que

METADISCURSOS DO LIVRO 169


todas as outras informações devem ser relegadas a um lugar no fim do livro,
depois do texto. (TSCHIHOLD, 2007, p. 116).

Diminuir o número de elementos pré-texuais, para que o leitor se depare mais


prontamente com a narrativa, é estratégia recorrente nas obras da Coleção Particular.
No título inicial, Primeiro amor, não há página de rosto nem de ante-rosto: a primeira
página impressa já inicia com a primeira linha de texto verbal do conto. No segundo
título, Bartleby, o escrivão, rompidas as páginas que figurativizam uma parede (e que
são, certamente, essenciais à experiência de leitura dessa edição), a narrativa começa
de imediato, sem apresentar páginas de rosto, ante-rosto, dedicatórias, sumários,
prólogos ou quaisquer outros elementos pré-textuais. Em Avenida Niévski, também
não há páginas de rosto e de ante-rosto: virada a capa, a primeira página impressa já
é o começo das gravuras que figurativizam o passeio pela avenida.
Em Flores, não há página de ante-rosto. O frontispício, no entanto, adquire uma
função dupla, pois ele é tanto página de rosto quanto capa e quarta capa, na medida
em que é visível no primeiro olhar lançado sobre o objeto e traz as informações que,
supõe-se, estariam nas capas do livro. A fera na selva apresenta páginas de ante-ros-
to e de rosto, mas elas também são utilizadas de uma maneira fundamental para
a experiência de leitura: na página de rosto, há uma fotografia de parte do vestido
e das mãos da personagem feminina, mostrando outro fragmento da imagem que
era apresentada nas dobras internas da capa. Esse fragmento fotográfico instaura a
personagem feminina como aquela dotada da competência estésica, como o sujeito
capaz de sentir, ou melhor, de tatear e de compreender estesicamente a trama do
livro. É uma fotografia essencial, portanto, na compreensão das escolhas do projeto
gráfico da edição, de modo que a leitura seria prejudica na ausência dessa dupla pá-
gina de rosto.
Em Zazie no metrô, diferentemente dos outros livros, há uma página de rosto e
de ante-rosto tradicionais. Além disso, há também uma novidade: uma página de
epígrafe, com uma frase curta de Aristóteles escrita em caracteres gregos. O idioma
diferente, somado à frase em latim de Cícero que já constava na quarta capa, contribui
para o efeito de sentido de balbúrdia, de profusão de vozes que permeia todo o livro.
Por fim, o volume que mais questiona essa estrutura elementar do livro é Museu
do romance da Eterna. Assim que a capa é virada, o leitor se depara com guardas
totalmente preenchidas de texto verbal (geralmente, as guardas não contam com
impressão ou exibem apenas alguma imagem ou padrão gráfico), com uma apre-
sentação da obra escrita por Damián Tabarovsky. Como o livro não possui página

170 METADISCURSOS DO LIVRO


de rosto nem de ante-rosto, logo após as guardas já se inicia o texto verbal de Mace-
donio Fernández. No entanto, a própria obra do autor argentino, escolhida para fi-
gurar nessa coleção pela editora, questiona a estrutura do livro: os 62 prólogos (dos
quais 59 precedem o texto principal e três deles são chamados “prólogos finais”, ou
seja, sucedem as páginas textuais) são extensos e confundem-se com o que seriam
as próprias páginas textuais do livro. Tradicionalmente fazendo parte das páginas
“pré-textuais”, os prólogos aqui são tão ou mais importantes para a compreensão do
livro quanto as páginas textuais em si.
Nas páginas textuais, os livros da Coleção Particular também se desviam do pa-
drão das publicações nacionais. É raro, entre os sete livros, o bloco de texto comum
de alinhamento justificado e com margens de proporção convencional (margem in-
terna menor que margem externa, margem superior menor que a inferior).
Por exemplo, já em Primeiro amor, o bloco de texto não é justificado: é alinhado
à esquerda. Além disso, está presente somente nas páginas pares, numa relação de
simetria com as ilustrações que estão nas páginas ímpares, e suas margens externa,
superior e inferior são excessivamente estreitas. Também não há fólio (numeração),
outra contravenção. Em Bartleby, o escrivão, apesar de o bloco de texto ser justifi-
cado, o que é o comum no mercado editorial, ele é grafado em tipos itálicos que
subvertem o uso convencionado do romano. A margem externa é um pouco maior
que as demais, deixando espaço para os possíveis acidentes decorrentes da abertura
das páginas lacradas.
Usualmente, as escolhas de design referentes ao bloco de texto mantêm-se cons-
tantes por toda a publicação. No entanto, há na Coleção Particular dois títulos que
apresentam efeitos de sentido decorrentes justamente da variação do bloco de texto
ao longo das páginas. Em A fera na selva, o bloco de texto pode parecer comum em
um primeiro olhar: é justificado, com as margens convencionais... Porém, ao se pas-
sar as páginas, logo se percebe que o bloco de texto varia: à medida que a narrativa
avança, a entrelinha diminui (passa-se de 28 linhas a 31 linhas totais por página) e
a tinta primeiro escurece para posteriormente clarear (quando o fundo está total-
mente escuro). Em Flores, o bloco de texto também muda na passagem das páginas.
Como cada capítulo ocupa exatamente uma página dupla, o bloco de texto tem al-
tura e largura variáveis, embora sua posição mantenha-se sempre centralizada na
página. Esses blocos, de fundo branco, são englobados por uma impressão chapada
em verde claro que ocupa todo o espaço restante da dupla página.
Um dos blocos de texto mais tradicionais talvez seja o de Zazie no metrô: justifi-
cado, com a margem externa maior que a interna, constante ao longo das páginas. No

METADISCURSOS DO LIVRO 171


entanto, a visibilidade das publicidades por meio da transparência do papel modi-
fica totalmente a percepção dessas manchas de texto que, não fosse assim, seriam
bastante convencionais. Em Museu do romance da Eterna, a surpresa fica por conta
do fólio: ao longo de todos os prólogos a numeração que aparece na margem externa,
ao lado do bloco de texto, não é a numeração das páginas, mas sim a numeração do
próprio prólogo. Desse modo, mais de uma centena de páginas não é numerada. O
fólio só aparece a partir da página 127, quando iniciam as páginas textuais, o que
constitui uma decisão de design completamente fora do usual.
O sétimo volume, enfim, também se vale de uma estrutura não-usual em suas
páginas textuais. Em Avenida Niévski, o bloco de texto é justificado e dividido ao
meio, sendo que a metade inferior está de ponta cabeça e será lida na continuidade,
após uma rotação de 180° no livro. Não há recuo no início dos parágrafos, apenas
um glifo (o caldeirão ou pé-de-mosca) indicando as quebras. O fólio é duplicado e
aparece acima e abaixo do bloco de texto. Cada uma das numerações faz referência
a uma das duas metades do bloco de texto. Essa estrutura dupla de cada página é
fundamental na construção do efeito de sentido de passeio, do ir-e-vir pelos dois
lados da avenida.
Por fim, em relação às páginas pós-textuais, a Cosac Naify também apresenta al-
gumas constâncias. A começar pelo colofão: ele sempre está presente, seja em página
própria ou ocupando um espaço da página de créditos. A presença do colofão indica
que, na Coleção Particular, as escolhas de design relativas ao papel, tipografia, etc.,
são elementos importantes e devem ser mencionados em algum ponto do livro. Tra-
ta-se de um item da estrutura elementar do livro que foi consolidado historicamente
e que reverencia o processo produtivo das publicações. Portanto, é uma parte do livro
que não poderia ser deixada de lado de acordo com a proposta da Coleção Particular.
Outra característica dos livros dessa coleção é que, se nas páginas pré-textu-
ais a regra é a da contenção, colocando o mínimo possível de obstáculos antes da
leitura da obra, nas páginas pós-textuais a regra é a da expansão. Vários desses li-
vros apresentam posfácios e comentários que ampliam a discussão e a compreensão
das próprias obras publicadas. Em Bartleby, o escrivão, há um posfácio de Modesto
Carone, que também escreve um posfácio para A fera na selva. Em Zazie no metrô,
o posfácio é de Roland Barthes, enquanto que em Flores há um curto posfácio do
próprio autor, sintetizando sua obra. Ao final de Museu do romance da Eterna, a
editora mesma é responsável por um texto “sobre o autor”.
Essa quebra sistemática das convenções estruturais do livro só vêm a reforçar
uma das características identitárias da coleção que já havíamos apontado anterior-

172 METADISCURSOS DO LIVRO


mente: a da vanguarda. Os elementos tradicionais do livro que são mantidos, no
entanto, somente o são quando reverenciam o livro enquanto objeto, explorando
sua materialidade significante, tornando-se assim parte essencial da experiência
sensível do livro.

4.4 Sistematização
dos metadiscursos

As obras da Coleção Particular são livros que falam de livros. Por meio de seus pro-
jetos gráficos, retomam os discursos histórico, produtivo e estrutural do livro, ora os
reverenciando, ora os subvertendo. O quadro a seguir encerra esse capítulo e siste-
matiza as relações interdiscursivas que foram alcançadas pela análise (quadro 2).

Processo produtivo
História do livro Estrutura do livro
do livro

Primeiro • China (costura • Costura e cola • Capa impressa no


amor chinesa): invenção do aparentes. lado fosco do papel
papel no século II. cartão, com as orelhas
coladas sobre si
mesmas.

Bartleby, • Livro todo em • Insere o leitor no • Capa com costura


o escrivão itálico: prensa de Aldo processo produtivo, que encerra o livro,
Manuzio no final do nos gestos de descos- impedindo que seja
século XV. turar e cortar. aberto e folheado.
• Período em que • O leitor faz a
os livros não eram conversão final do
refilados e a espátula material em objeto.
se fazia necessária.

A fera na • Papel Tyvek Dupont • Gramatura do papel • Capa que se desdo-


selva (utilizado pelo varia a cada caderno, bra, assumindo uma
FEDEX): transporte mostrando o quanto a tridimensionalidade e
do livro pelos mascates opção gramatura car- revelando fotografias
e pelos correios. rega traços distintivos em seu interior.
de densidade. • Bloco de texto
• A capa explicita o variável: à medida que
sistema de dobra das as páginas avançam, a
folhas que formam os entrelinha diminui e a
cadernos. tinta escurece.

METADISCURSOS DO LIVRO 173


Processo produtivo
História do livro Estrutura do livro
do livro

Zazie no • Best-sellers do século • Retícula de • Capa brochura.


metrô XX: sociedade de impressão evidencia
consumo. o procedimento de
formação das cores e
tonalidades.
• A sangra é evidencia-
da nos elementos que
extrapolam o interior
das páginas.
• A gramatura
do papel permite
transparência em
vários níveis.

Flores • “Supersellers” do • Mostra como os • Sem capa: há uma


século XXI: o livro cadernos são empi- embalagem plástica
mercadoria. lhados, numerados, que envolve o miolo.
demarcados, costura- • O frontispício apre-
dos e colados. senta as informações
de capa.
• Bloco de texto
de altura e largura
variáveis.

Museu do • Direcionalidade ver- • Cromaticidade dos • Capa dura.


romance tical: rolos de papiro papéis. • Os 62 prólogos são
da Eterna gregos (passado) e lei- • Encadernação extensos e se con-
tura em tela (futuro). de capa dura (com fundem as páginas
papel de guarda e pré-textuais com as
cabeceado). textuais.
• Refile irregular na
lateral das páginas.

Avenida • Livro ilustrado dos • Uso de tintas es- • Capas envolvidas pela
Niévski séculos XVI ao XIX, peciais (laranja e reprodução de um jor-
Quadro 2 – Síntese em que as gravuras roxo) que simulam a nal da época da obra.
das relações inter- eram impressas em passagem do tempo • Bloco de texto
discursivas entre a separado do verbal. (manhã e noite). dividido ao meio; a
Coleção Particular metade inferior está de
e os discursos do
ponta-cabeça.
livro.

174 METADISCURSOS DO LIVRO


Interdiscursos e
intersemioticidade
do livro
S e anteriormente vimos como os projetos gráficos dos livros da Coleção Parti-
cular constroem relações interdiscursivas com os vários discursos do próprio livro
(discursos histórico, produtivo e estrutural) – no que chamamos de metadiscursos
do livro – agora veremos como as relações são ampliadas para além do universo do
livro. As publicações da Cosac Naify estão inseridas em um contexto cultural que é
mais abrangente e que envolve diversas manifestações artísticas e midiáticas. Os li-
vros da Coleção Particular fazem parte de uma história maior que somente aquela do
livro: a história da literatura, do colecionismo, das mídias e das artes.
Sempre partindo do projeto gráfico dos livros analisados, é possível comparar
os discursos das obras da Coleção Particular com outros discursos e outros sistemas
semióticos. É por meio de suas escolhas de design e por meio da incorporação de
elementos de outras manifestações culturais (artístico-midiáticas ou mesmo práticas
de vida) que os projetos gráficos problematizam a relação do livro-objeto com a arte,
com a mídia e com o colecionismo. O livro, enquanto objeto estético, tem sua signifi-
cação construída a partir de uma trama de relações com as demais estéticas de nossa
cultura. Também por meio de conteúdos escritos extras inseridos nas publicações
(posfácios, comentários, etc.), a editora localiza as obras na história da literatura.
Como vimos, a interdiscursividade é definida como a incorporação de temas e
figuras de um discurso em outro, podendo servir de contexto para a compreensão
deste (FIORIN, 2003). Cabe aqui, portanto, uma breve elucidação de um outro tipo
de relação que também é vista nos livros da Coleção Particular: a intersemioticidade.
A relação intersemiótica é aquela que se dá não mais entre discursos apenas,
mas sim entre “conjuntos significantes” – entre semióticas (GREIMAS e COURTÉS,
2011) – diferentes. Desse modo, a semiótica de uma dada ordem, que aqui se trata da
semiótica sincrética verbovisual-espacial-tátil do livro impresso, relaciona-se com
manifestações muito diversas: a semiótica visual das artes pictóricas ou da fotografia,
a semiótica verbovisual-espacial de um jornal ou de um pôster, as semióticas sin-
créticas da moda, da embalagem, da hipermídia e assim por diante.
O design dos livros da Cosac Naify funciona como a categoria hiperotáxica que
organiza todas essas relações interdiscursivas e intersemióticas. São as escolhas de
design que permitem ao leitor o acesso à obra literária e, ao construir essas relações
entre a publicação e o mundo cultural, o design mostra a si mesmo e também se
constrói. É por meio dos projetos gráficos, portanto, que os livros da Coleção Particular
falam sobre o universo significante no qual estão inseridos e contextualizados.

176 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


5.1 Arte

A primeira das relações a ser explorada é entre os livros publicados e as artes. Muitos
dos livros da Coleção Particular são associados a manifestações distintas do campo
da arte, como as artes plásticas, a fotografia e a gravura, as quais são utilizadas como
recurso de linguagem nos próprios projetos gráficos. Ao incorporar manifestações
características do domínio da arte, os projetos gráficos dos livros se põem lado a lado
a essa classe de objetos significantes, afirmando seu estatuto artístico. Daí essa forma
de relação entre livros e artes ser eleita como início da abordagem.
Não cabe a essa pesquisa definir o que é arte – se é que tal definição é possível.
Mas é importante esclarecer que, conforme propõe Jean-Marie Schaeffer (2004),
compreendemos que uma obra de arte não é definida por um único traço seu, já
que “arte” não é um conceito unidimensional. Há uma pluralidade semântica que é
interna à noção de obra de arte. Schaeffer (2004) distingue ao menos seis aspectos
semânticos que intervêm em nossos usos do termo “obra de arte”:
(1) acepção genérica: as ordens ou tipos de objetos que são usualmente trata-
dos como objetos de arte, obedecendo a uma classificação pela generalidade (as-
sim, são “de arte” os objetos pertencentes a certas classes, como quadros, poemas,
esculturas etc.);
(2) acepção genética: referindo-se à gênese (ou criação) de um objeto considera-
do arte, a obra de arte é compreendida como um produto humano dotado de uma
especifidade dificilmente definida – seja uma imaginação produtiva, seja uma exte-
riorização expressiva do artista, seja uma intenção estética ou artística;
(3) acepção semiótica: a obra de arte está sempre a propósito de seus próprios
traços, é um objeto intencional, em oposição aos “simples objetos” – também uma
diferenciação difícil de ser realizada;
(4) acepção funcional: todo objeto que desempenha uma função estética, ou
uma função-signo, em oposição a uma função utilitária – um estatuto de obra de
arte, no entanto, também bastante instável;
(5) acepção institucional: obra de arte assim aceita pelas instituições artísticas
“competentes”, que sancionam o objeto segundo certos componentes da noção de
arte (possuir qualidades artísticas, função estética etc.);
(6) acepção normativa: o julgamento de que tal objeto poderia ou não ser con-
siderado uma “verdadeira obra de arte”.

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 177


Sendo as acepções genética, semiótica e funcional mais úteis aos estetas e críticos
de arte, que visam teorizar o objeto artístico, trabalhamos aqui com as acepções mais
amplamente aceitas daquilo que é tido como arte: a acepção genérica – uma dada
classe de objetos (pinturas, fotografias, gravuras etc.) – e a acepção institucional – as
manifestações artísticas que são institucionalizadas (por exemplo, obras de um dado
artista expostas em um certo museu ou publicadas em um certo livro). A última
acepção, a normativa, implica um julgamento sobre o objeto de arte, sancionando-o
positiva ou negativamente. Nesse caso, quem toma para si o papel de agente sancio-
nador nos livros analisados é a própria editora Cosac Naify. Ao adotar a relação de
seus livros com determinada forma de arte, incorporando fotografias, gravuras etc.,
a editora está julgando positivamente essa dada manifestação artística.
Em relação à acepção institucional, é interessante perceber como também nesse
âmbito a própria editora Cosac Naify se mostra como uma das instituições capazes
de sancionar o que seria e o que não seria arte. Possuindo um histórico de publi-
cações relevantes de livros de arte, ao escolher um determinado artista para ter suas
obras publicadas a editora o alça ao patamar da arte, institucionalizando ao menos
editorialmente a sua produção artística.
Na primeira obra da Coleção Particular, vemos um exemplo dessa sanção insti-
tucional. Em Primeiro amor, o conto de Beckett é apresentado juntamente às obras
pictóricas de Célia Euvaldo. A artista plástica paulistana já havia realizado outros
trabalhos para a editora, cedendo uma de suas obras para que servisse de capa a um
livro de Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo, e também realizando traduções
de alguns outros títulos. Seu trabalho artístico, no entanto, é sancionado na publi-
cação Célia Euvaldo, escrita por Alberto Tassinari e Marco Silveira Mello, e publicada
pela Cosac Naify no ano de 2008 (poucos anos após a publicação de Primeiro amor,
portanto). Esse livro apresenta reproduções de várias obras pictóricas da artista,
bem como ensaios sobre a sua produção. Assim, a obra de Célia é sancionada duas
vezes pela editora: primeiro por exibirem seu trabalho junto a um autor consagrado
(Beckett) e segundo por dedicarem-lhe uma publicação completa.
As artes plásticas são, talvez, as artes mais imediatamente reconhecíveis como
pertencentes ao domínio da arte. Uma obra pictórica é geralmente aquela que o sen-
so comum identifica como “arte”, a mais presente nos museus e galerias. Em Primeiro
amor, essas obras características das artes plásticas são incorporadas pelo projeto
gráfico e são por ele apresentadas atuando junto à semiose verbal do conto, em sin-
cretismo, na produção do sentido do livro. As obras de Célia Euvaldo, no entanto,
não pertencem à categoria das pinturas figurativas. Elas não são obras imediata-

178 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


mente decifráveis pelo leitor comum, até por não apresentarem um caráter de alta
figuratividade: o mundo construído pelo discurso gráfico das pinceladas de nanquim
representa mais o conceito da obra, ao invés de retomar objetos que conhecemos de
nosso mundo percebido. Para mergulhar na obra, cobra-se do leitor um olhar mais
interpretativo e analítico, é preciso perceber o sentido das imagens pelo que elas têm
de intrínseco, pelas suas próprias configurações plásticas, adentrando naquilo que é
específico das artes plásticas: as pinceladas, a tinta, o traçado.
A tinta utilizada por Célia Euvaldo nas obras originais reproduzidas em Primeiro
amor é o nanquim, característico da cultura oriental e cujo uso consagrou-se não
apenas nas ilustrações, mas também na caligrafia. O “caderno chinês”, inclusive, era
originalmente encadernado com as folhas duplas justamente para absorver a tinta
nanquim sem borrar a página seguinte. Dissolvido em água, o nanquim pode ser
utilizado mais ou menos preto, em gradações diversas, recurso que é utilizado em
Primeiro amor para criar pinceladas mais ou menos fortes e marcantes. A tinta, que
remete à escrita caligráfica, é utilizada como se fosse uma “escrita” pictórica, essencial-
mente plástica, exibida ao lado da escrita tipográfica. As duas escritas, a de Beckett e a
de Euvaldo, participam do processo de construção de sentido do livro da Cosac Naify.
As duas publicações seguintes da Coleção Particular apropriam-se de outra classe
de produção artística consagrada: a fotografia. Em Bartleby, o escrivão a fotografia
em preto e branco de uma parede, supostamente da “rua das paredes” (Wall Street),
é o obstáculo que se interpõe entre o leitor e o conteúdo verbal. As obras fotográficas
são geralmente caracterizadas por sua representação icônica, que retoma com fideli-
dade traços visíveis do mundo percebido. A fotografia da parede, no entanto, mais
que se valer de sua figuratividade icônica que representa uma parede, vale-se de seus
formantes plásticos construindo uma categoria da expressão de constância a partir
da repetição das linhas horizontais, paralelas, do alto ao baixo do espaço visível do
papel, página após página. A fotografia é então explorada, assim como havia sido
com as artes plásticas, como um recurso de linguagem em que a plasticidade no pla-
no da expressão homologa um certo conteúdo do livro – homologação essa que não
se faz termo a termo, mas por um conjunto de traços da expressão em relação a uma
categoria do conteúdo, de maneira semi-simbólica.
Ainda em Bartleby, o escrivão, nota-se que a parede fotografada exibe sua matéria
sem nenhum revestimento: são blocos de concreto, material utilizado em boa parte
das construções arquitetônicas de hoje. A arquitetura se faz também presente, então,
nas obras da Coleção Particular a partir da figurativização daquilo que lhe dá sus-
tentação: a sua materialidade. Temos assim um outro tipo de manifestação cultural

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 179


que figura nas páginas dos livros da Cosac Naify, fazendo a relação entre a produção
editorial e outras produções humanas.
Em A fera na selva, as fotografias utilizadas pertencem a um dos mais tradicio-
nais gêneros fotográficos: o retrato. Porém, não são retratos de pessoas específicas,
mas sim retratos de um personagem masculino e uma feminina mais ou menos
“genéricos” que possam ser atribuídos ao casal de personagens que protagoniza o
romance de James. As imagens fotográficas também são utilizadas muito além de sua
iconicidade, visto que, por seus próprios formantes plásticos, tornam-se recursos de
linguagem. Através de cortes da imagem e do uso do claro e escuro alguns detalhes
são exibidos, enquanto outros são omitidos (o rosto dos fotografados, por exemplo),
em um processo de encobrir e revelar que é característico da obra de James e per-
meia todo o sentido produzido pelo livro.
Em Zazie no metrô, explora-se a relação com outras artes: com o desenho e
com a ilustração. Os objetos artísticos, no entanto, são duplamente incorporados,
em uma escala hierárquica: as ilustrações e desenhos figuram primeiramente em
pôsteres publicitários, fazendo parte da sua linguagem sincrética, e em um segundo
patamar os próprios pôsteres é que são incorporados no projeto gráfico do livro.
Obras usualmente tidas como “artísticas” (ilustrações e desenhos) são integradas no
design desses pôsteres e o que o livro publicado pela Cosac Naify faz é pegar esses
pôsteres e transformar eles próprios em objetos estéticos que possam ser apreciados
por sua plasticidade pelos leitores do livro. Em Zazie no metrô, os pôsteres instauram
uma espacialidade e uma temporalidade que são características de sua narrativa – a
Paris dos anos 1950, repleta de publicidades por todos os lados. A editora apresenta
o design desses cartazes e, por extensão, de seus próprios livros, como uma configu-
ração plástica que é tão passível de apreciação quanto qualquer objeto de arte.
Em Avenida Niévski, a gravura artística é explorada ao ser incorporada ao de-
sign do livro. Dessa vez altamente figurativas, as imagens facilmente reconhecíveis
fazem com que o leitor seja logo tragado para o universo da obra. Distribuídas
por 29 páginas, as gravuras tanto iniciam quanto encerram o volume, exibindo as
carruagens, homens de fraque e mulheres de chapéu que são repetidamente men-
cionados na narrativa, contribuindo na criação de um certo ritmo que é próprio
da avenida. Essas gravuras apresentam um alto grau de relação entre o seu siste-
ma de linguagem e o mundo percebido. A prosa descritiva e detalhada do escritor
combina com os elementos minuciosos da gravura, em uma figuratividade apoiada
sobretudo no procedimento da iconização, que, segundo Bertrand (2003), é uma
maneira de nos sensibilizar a “entrar” imediatamente nos textos.

180 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


Também a arquitetura da avenida é capturada no traçado das gravuras, em uma
categoria de continuidade verificada na altura dos edifícios, nos estilos de fachadas
e na repetição dos seus elementos arquitetônicos que assinalam o ritmo próprio da
avenida. Se anteriormente a arquitetura havia sido figurativizada por um de seus
materiais básicos, o concreto, agora as materialidades são moldadas e revestidas de
modo a apresentar construções arquitetônicas finalizadas e imponentes, constituin-
do objetos a serem apreciados também por sua configuração plástica.
Museu do romance da Eterna é o título que foi deixado propositalmente para o
final dessa listagem de relações entre os projetos gráficos dos livros e as diferentes
artes por apresentar uma abordagem diferente para essa problemática da intersemio-
ticidade e da interdiscursividade. Enquanto obras anteriores da Coleção Particular
relacionaram-se com as artes plásticas, com a fotografia, a arquitetura, a caligrafia,
o desenho, a ilustração e a gravura, nesse sexto título da coleção é o próprio pro-
cesso da arte literária que é trazido à tona pelo projeto gráfico. É claro que todas as
obras publicadas na coleção são também produtos literários e, portanto, são figura-
tivizações da literatura, mas no geral apresentam a literatura do ponto de vista de seu
produto literário já escrito e acabado, enquanto que Museu do romance da Eterna
prioriza o processo de escrita. O ato mesmo do fazer literário, a escrita, é figurati-
vizado na “pilha de papéis” soltos, desorganizados, que a margem irregular do livro
nos dá a ver. O acúmulo de papéis e o traçado ao redor de cada prólogo, que também
exibe essa certa profusão e incerteza da escrita, nos mostram por meio do projeto
gráfico que o fazer artístico da literatura pode se dar através de escritos isolados, de
folhas soltas que seriam unidas em um processo de escrever um pedaço aqui, juntar
com outro dalí, apagar acolá. Nessa profusão de partes em que um escrito é acres-
centado a outro, há também aqueles que ficam de fora do produto final: os escritos
subtraídos da totalidade e que nesse museu nos são dados a ver. O processo da es-
crita literária é apresentado, então, como um fazer artístico que se relaciona a outros
fazeres artísticos: no adicionar e no subtrair, temos os procedimentos característicos
da pintura, em que se adiciona tinta à tela, e da escultura, em que se subtrai matéria
do bloco de pedra ou madeira. Acrescentar e subtrair são operações problematiza-
das pelo projeto gráfico de Museu do romance da Eterna que remetem tanto à práxis
literária quanto a outras práticas artísticas.
Vimos então que manifestações que são amplamente aceitas como “artísti-
cas”, seja por pertencerem a uma dada classe de objetos, seja por terem seu caráter
artístico asseverado por uma instituição competente, são incorporadas pelos livros
da Coleção Particular como recurso de linguagem. Nessa incorporação, constrói-se

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 181


uma linguagem sincrética própria do livro que expõe a plasticidade do livro impres-
so e o apresenta como um objeto também passível de apreciação estética, tal qual as
artes nele retomadas.

5.2 Mídia

As obras publicadas pela Cosac Naify fazem parte de um contexto cultural em que
as mídias são altamente atuantes na formação de gostos e opiniões. Entendemos
“mídia” como os diversos veículos de distribuição da informação, também chama-
dos usualmente de “meios de comunicação”. Os livros podem ser considerados como
veículos midiáticos, por distribuírem informações e atuarem nas escolhas de modos
de vida e tomadas de posição de um grande número de leitores.
As publicações da Coleção Particular relacionam-se com vários discursos do
próprio livro, mas também com os discursos de outros veículos midiáticos que são
figurativizados em suas páginas: jornal, pôster, embalagem, hipermídia, etc. Os li-
vros da Cosac Naify dão visibilidade estética às mídias, assim como certos veículos
dão visibilidade midiática às publicações da editora, em uma via de mão dupla. Se as
visibilidades midiáticas da editora já foram exploradas no segundo capítulo da dis-
sertação, nos voltamos agora para a maneira como os veículos midiáticos são plas-
mados nas páginas da Coleção Particular.
Uma questão fundamental que está entrelaçada à existência dos veículos
midiáticos é a da circulação da informação. Os livros da Coleção Particular, ao
construírem pontes entre si e as mídias, figurativizam certos aspectos e etapas da
distribuição de informação.
Uma dessas etapas é apresentada já na obra inicial, Primeiro amor: os primeiros
registros da informação. Quando ainda não existiam os veículos midiáticos de massa
responsáveis por fazer circular as informações, era a escrita manual a responsável
pelos registros das ideias e acontecimentos. Tanto na encadernação estilo caderno
chinês quanto no uso da tinta nanquim, a materialidade e a visualidade de Primeiro
amor remetem à caligrafia e, portanto, à escrita manual. O que está figurativizado
nessa primeira obra da coleção é uma espécie de “pré-mídia”, um registro da infor-
mação de caráter mais pessoal ou voltado a poucos destinatários. As mídias de massa
só puderam ser desenvolvidas após o advento da impressão, mas a passagem de um
modo de escrita a outro – do manual ao impresso – não foi imediata. Há uma forte

182 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


continuidade entre a cultura do manuscrito e a do impresso, como explica Chartier
(1998, p. 9): “na realidade, o escrito à mão sobreviveu por muito tempo à invenção
de Gutenberg, até o século XVIII, e mesmo o XIX.” Segundo Chartier (1998), para
textos proibidos ou secretos ainda se usavam manuscritos por muito tempo, mesmo
após o surgimento da impressão. Além disso, persistia uma certa suspeita diante do
impresso, que “corromperia” o texto, colocando-o em mãos mecânicas e nas práticas
do comércio.
O passo seguinte ao registro da informação, o da sua serialização (repetição),
está figurativizado na segunda obra da coleção, Bartleby, o escrivão. Muito embora
nesse livro a profissão do personagem-título diz respeito diretamente à escrita ma-
nual, o projeto gráfico remete às ideias de industrialização e serialização. Mesmo a
postura que o personagem Bartleby adota na trama é a de um sujeito “corrompido”,
como posto acima, pela cruel repetição e gestualidade mecanizada de sua profissão
de escrivão. A fotografia da parede, já ela fruto de um processo de produção imagéti-
ca que é (não só, mas também) mecânico, é reproduzida repetidas vezes, demons-
trando o princípio por trás da impressão: a produção e reprodução mecânica dos
objetos impressos. O advento da impressão e os aumentos de tiragem dos veículos
midiáticos estão diretamente relacionados a um maior acesso à informação. Em se
tratando da serialização dos livros, três momentos históricos principais são destaca-
dos por Chartier (1998, p. 110): “A multiplicação dos livros é garantida, primeiro,
pela invenção de Gutenberg, segundo, no século XIX, pela industrialização da ativi-
dade gráfica e, enfim, no século XX, pela multiplicação das tiragens graças aos livros
de bolso.” Enquanto a terceira dessas etapas diz respeito a um aumento de tiragens
graças a processos produtivos mais avançados e de custo reduzido, a segunda etapa,
a da industrialização da atividade gráfica no século XIX, é a que se faz vista na repro-
dução sistemática da fotografia da parede de concreto em Bartleby, o escrivão.
No terceiro título da coleção, A fera na selva, uma outra etapa da circulação da
informação é trazida à tona: a do transporte, já comentada previamente e visível no
papel da capa utilizado pelos correios norte-americanos e na dobra que “envelopa” o
miolo do livro, como se fosse uma correspondência. Mas A fera na selva não nos mos-
tra apenas a questão do transporte, como também duas formas de mídia distintas:
o pôster e a moda. No desdobrar da capa, surge uma fotografia em grande tamanho
que funciona tal qual um pôster da obra. Essa mídia será tratada logo adiante, pelo
quarto livro da coleção, que explora os pôsteres ainda mais profundamente. Quanto
à moda, ela está presente nas roupas das pessoas fotografadas e constitui um dos
elementos mais fortes do pôster.

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 183


A moda traz informações que são, muitas vezes, simbólicas. Isso quer dizer que
certas roupas, utilizadas em certas ocasiões, possuem uma significação que é con-
vencionada naquele determinado meio social: o preto em um velório que significa
luto, o branco no casamento que significa a pureza da noiva, uma roupa verde e ama-
rela demonstrando o patriotismo de um brasileiro etc. Mas a moda é também uma
mídia que pode produzir significações semi-simbólicas, isto é, não convencionadas,
mas sim construídas na própria manifestação pelas relações entre o arranjo do plano
da expressão e o plano do conteúdo. Em A fera na selva, mais do que representar
trajes burgueses do século XIX, as roupas constroem um sentido de /conhecimento/
vs. /ignorância/ no contraste entre o vestido claro, leve e ricamente adornado da per-
sonagem feminina, e a casaca escura e disforme do personagem masculino. Trata-se
de uma mídia que é incorporada pelo projeto gráfico e utilizada como recurso de
linguagem nos livros da Coleção Particular, assim como fora feito com as artes.
Na quarta obra da coleção, Zazie no metrô, a informação é tratada do ponto de
vista do excesso. Há no livro uma profusão de elementos que se sobrepõem na trans-
parência de cada página: além de os próprios fragmentos de pôsteres reproduzidos
na parte interna das folhas serem suficientemente carregados de informação, eles
ainda surgem como fundo na visibilidade da mancha de texto do livro, produzindo
um exagero de informações visuais. A atmosfera da narrativa, de uma sociedade
midiatizada carregada de informação, é traduzida assim em sincretismo na visuali-
dade e espacialidade do livro.
O pôster, veículo fortemente explorado pelo projeto gráfico de Zazie no metrô, é
uma mídia marcada tanto por sua importância histórica quanto por sua importância
na constituição do design gráfico enquanto área de atuação profissional, e por isso
demanda um olhar histórico mais detalhado. Os pôsteres foram uma das primeiras
formas de mídia a atingir uma grande quantidade de pessoas. De acordo com
Fischer (2006), já durante os séculos XVI e XVII, diversos impressos eram afixados
em muros, portas e postes das cidades europeias: cartas pastorais, manifestos
públicos, comunicados de falecimentos, anúncios de eventos, decretos de príncipes,
propagandas de companhias teatrais etc. Esses pôsteres e cartazes eram impressos
aos milhares e lidos por uma multidão.
O pôster faz parte do surgimento do design gráfico como profissão. De acor-
do com Hollis (2010), o design somente se profissionalizou a partir de meados do
século XX, mas bem antes disso alguns artistas comerciais – como os designers de
pôsteres – já reuniam várias das habilidades que se esperam de um designer gráfico:

184 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


criavam o layout, ilustrações, diagramas, davam instruções para a composição do
texto, faziam retoques nas imagens etc. Segundo o autor:

Nas ruas das crescentes cidades do final do século XIX, os pôsteres eram uma
expressão da vida econômica, social e cultural, competindo entre si para atrair
compradores para os produtos e público para os entretenimentos. A atenção
dos transeuntes era capturada pelo colorido dos pôsteres, que se tornou possível
graças ao desenvolvimento da impressão litográfica. (HOLLIS, 2010, p. 5).

A técnica da litografia, utilizada pelos designers de pôsteres e popularizada no


século XIX, permitia que várias cores fossem impressas em um mesmo suporte de
impressão, a partir da superfície das pedras litográficas – uma para cada cor, che-
gando às vezes a quinze diferentes em um mesmo pôster. A técnica sobreviveu até
muitos anos depois da Segunda Guerra Mundial (HOLLIS, 2010). O controle dessa
técnica de impressão que os criadores de pôsteres demonstravam é uma das carac-
terísticas essenciais no processo de design gráfico:

A litografia, no final do século XIX, permitiu aos artistas imprimir grandes áreas
uniformes, utilizar cores e desenhar suas próprias letras. Antes de seu surgi-
mento, a composição do texto estava restrita a uma pequena variedade de ti-
pos já prontos. Esse controle sobre a impressão foi o começo do design gráfico.
(HOLLIS, 2010, p. 12).

Os pôsteres foram muito importantes durante a Primeira Guerra Mundial, sen-


do a principal mídia utilizada pelos governos para fazer propaganda política e anún-
cios públicos, além de incentivar os cidadãos a participarem da guerra. A cidade de
Paris, tanto antes quanto durante e depois da guerra, fez uso regular dessa mídia:

Não apenas para a França, mas também para o resto do mundo, Paris era ainda o
centro da moda e da vida cultural. Após os horrores da Primeira Guerra Mundi-
al, a capital conservou sua imagem de modernidade, acentuada pelas exposições
internacionais e pelo “spectacle dans la rue” – sua constante e variada exibição
de pôsteres na rua. Os pôsteres, que eram, claramente, ao mesmo tempo artísti-
cos e comerciais, negociavam artigos de luxo, fugas da realidade, assim como os
prazeres do dia-a-dia. (HOLLIS, 2010, p. 85).

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 185


Embora a popularidade dos pôsteres tenha caído após a Segunda Guerra em
muitos lugares, tudo indica que na década de cinquenta Paris ainda conservava
vivo o costume de produção de pôsteres. Segundo Hollis (2010), as ruas francesas
continuaram bem supridas de anúncios em cartazes. Os pôsteres pintados ainda
floresciam, com diversos profissionais dando vida à pintura de pôsteres. Ou seja,
justamente no período da narrativa de Zazie no metrô, os pôsteres continuavam sen-
do um veículo midiático importante para a cultura parisiense. Ao reproduzir essa
mídia em sua publicação, a Cosac Naify tanto homenageia os primórdios do design
gráfico quanto produz um “espetáculo na página” que simula a potência visual das
ruas parisienses.
Além dos pôsteres, outra mídia se faz presente no projeto gráfico de Zazie: a sina-
lização. Tanto as mãos apontando para cima e para baixo na capa do livro, quanto os
grandes numerais que demarcam as aberturas de cada capítulo remetem a projetos
de sinalização de ambientes. Mídia altamente informativa, a sinalização é também
uma das manifestações mais emblemáticas do design gráfico. Ela é responsável por
uma das três principais funções do design gráfico, segundo Hollis (2010): a primeira
função é identificar (através de marcas, brasões, letreiros, símbolos, rótulos etc.); a
segunda é promover (através de pôsteres e anúncios publicitários, por exemplo); e a
terceira é a que nos interessa aqui. Conhecida no âmbito profissional como “Design
de Informação”, sua função é: “informar e instruir, indicando a relação de uma coisa
com outra quanto à direção, posição e escala (mapas, diagramas, sinais de direção)”
(HOLLIS, 2010, p. 4). Um conhecido exemplo dessa terceira função é o mapa do
metrô de Londres, considerado uma das peças de design gráfico mais importantes
do século XX. Em Zazie no metrô, os elementos de sinalização são utilizados não
para efetivamente indicar uma direção, posição ou escala a ser seguida, mas na cons-
trução do efeito de sentido de balbúrdia, excesso e multiplicidade de elementos que
permeia toda a obra.
O transporte da informação é retomado na quinta obra da Coleção Particular,
mas dessa vez a retomada não é relativa ao seu envio, mas sim à maneira como
são revestidos os produtos para serem distribuídos, ou seja, como são empacotados.
Em Flores, explora-se a capa como embalagem de um bem comercializável. A em-
balagem é uma mídia fundamental na sociedade de consumo, já que praticamente
não existem itens comercializados hoje que não sejam embalados de alguma forma,
ainda que às vezes somente para o seu transporte. Essa forma de mídia precisa con-
densar muita informação em superfícies que podem chegar a ser muito pequenas,
além de promover o produto agindo sobre a volição dos sujeitos (modalizando-os no

186 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


“querer comprar”) e, idealmente, apresentar também certos valores estéticos. Dife-
rentemente de peças publicitárias como um pôster ou outdoor, a embalagem é le-
vada pelo sujeito comprador até a sua própria casa e permanece no seio do lar até
o momento do descarte. Essa mídia é incorporada pelo projeto gráfico do livro da
Cosac Naify de uma maneira tal que propõe uma discussão sobre o estatuto do li-
vro-mercadoria na sociedade contemporânea, em que a própria produção cultural e
artística aparenta obedecer a uma lógica de mercado. “Seria o livro apenas mais um
bem comercial?”, é o que parece nos perguntar a embalagem plástica de Flores.
O arranjo e a hierarquia da informação são problematizados na sexta obra da
coleção, Museu do romance da Eterna. A prosa de Fernández apresenta uma estrutura
não-hierarquizada e, embora esteja disposta no livro com uma numeração ordenada,
pode ser lida de forma salteada, sem uma ordem de leitura precisa. Essa estrutura
não-linear é explicitada nas escolhas de design realizadas pela editora Cosac Naify e
remete a um tipo de distribuição da informação relativamente recente: a hipermídia.
Nas páginas do livro estão figurativizados vários elementos característicos da hi-
permídia: não há paginação nos prólogos, eles são apresentados em quadros como
se fossem páginas da web, que correm de cima para baixo e, além disso, nas capas e
guardas há boxes ao redor de certas partes separando os níveis de importância das
informações, mais ou menos como se dá em ambiente web. Assim como nas mídias
digitais, em Museu do romance da Eterna o leitor pode ir e vir entre os prólogos, os
capítulos, os fragmentos da capa e mesmo os escritos extras que abrem e encerram o
livro, como se fossem links. O leitor, então, realiza em uma mídia existente há séculos
(o livro) um programa narrativo de leitura que é característico de um veículo recente
(a hipermídia).
Por fim, em Avenida Niévski, voltamos a falar de circulação da informação em
uma mídia que possui uma periodicidade alta e constante: o jornal. Envolvendo os
dois volumes da publicação da Cosac Naify está a reprodução de um jornal russo,
que constrói desse modo uma relação entre a obra literária e os fatos correntes do
dia-a-dia.
A relação entre o jornal e os acontecimentos da vida cotidiana é histórica. Segun-
do Fischer (2006), a imprensa de periódicos surgiu no século XV, quando correspon-
dentes oficiais enviavam relatórios a banqueiros, comerciantes e políticos, referentes
a questões financeiras e políticas (guerras, casamentos, invasões, etc.). Também
circulavam pequenos panfletos relatando acontecimentos marcantes no dia-a-dia
dos cidadãos: cometas, catástrofes, milagres, “monstros” etc. No século XVI, esses
relatórios e panfletos passaram a ser impressos em grande quantidade, em formatos

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 187


baratos e portáteis, dando origem ao comércio de periódicos. Em meados do séc.
XVII, as gazetas (publicações baratas de notícias) podiam ser compradas em todas
as metrópoles europeias e, por fim, em 1702 o primeiro jornal diário da Europa, o
Daily Courant, circulava nas ruas de Londres (FISCHER, 2006).
A narrativa de Avenida Niévski se passa na primeira metade do século XIX. De
acordo com Fischer (2006), embora as “ilustradas” (revistas populares que uniam
gravuras e textos verbais) fizessem sucesso nessa época, os jornais é que eram o
material mais lido. Eles empregavam milhares de pessoas e, a partir de meados do
século XIX, já surgia uma rede estabelecida de agências profissionais de notícias
(FISCHER, 2006). A mídia jornal, por sua circulação em geral diária, possui um
efeito de sentido de atualidade, de velocidade e de ritmo que dialoga com a dinami-
cidade da Niévski descrita por Gógol. Além de construir esse sentido do dinamis-
mo, o uso do jornal nos remete novamente à mídia embalagem, pois ele é utilizado
como um papel de embrulho ao envolver o livro. Sobre esse jornal, é um tipo espe-
cífico de embalagem que aparece: a etiqueta, que geralmente não possui tanto uma
função de promoção, mas sim de identificação do objeto etiquetado.
Os discursos dos projetos gráficos dos livros da Coleção Particular retomam,
portanto, diversas etapas e aspectos do processo de produção e circulação da infor-
mação midiatizada: os registros iniciais, a serialização da informação, o transporte, a
hierarquia, a periodicidade e mesmo o excesso de informação. Os próprios veículos
são incorporados aos projetos gráficos das publicações da Cosac Naify, assim como
havia sido feito com as artes, construindo então uma rede de relações entre o livro
impresso e o mundo midiatizado que o circunda – por meio de pôsteres, sinali-
zações, embalagens, moda, jornal e hipermídia.

5.3 Colecionismo

A prática do colecionismo é multifacetada e envolve comunidades variadas de co-


lecionadores, distintos critérios de seleção dos objetos e tipos muito diferentes de
objetos a serem colecionados. Muitas dessas formas de coleção são exploradas pela
editora Cosac Naify em seus projetos gráficos: as coleções de obras de arte, coleções
de papéis, coleções de naturalia etc., em uma retomada dos tipos de coleções que
demonstra aspectos comuns ao ato de colecionar. A Coleção Particular é proposta,
pois, como o passo inicial na formação de um leitor-colecionador, que começa a for-
mar a sua coleção pessoal justamente por esses livros da Cosac Naify.

188 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


Um dos aspectos relacionados fortemente ao ato de colecionar é a presença do
contraste entre o âmbito do público e do privado que vem desde o surgimento do
colecionismo. A princípio exclusivamente privadas, pertencentes a reis e príncipes,
as coleções passaram gradualmente a ser disponibilizadas ao grande público. A pas-
sagem de um regime de visibilidade privado dos itens colecionados para o âmbito
público intensificou-se com o surgimento e a popularização dos museus na Euro-
pa, que exibiam coleção inteiras para qualquer interessado. Conforme relata Blom
(2003, p. 134): “A transição das coleções exclusivamente privadas, ou reais, para os
museus públicos foi lenta, e só foi possível graças a um enorme salto conceptual no
pensamento sobre as relações da esfera privada com a esfera pública, e ao apareci-
mento do Estado moderno.” Essa dinâmica entre o público e o privado é também,
portanto, um aspecto relevante nas relações que a Coleção Particular constrói entre
suas obras e os vários tipos de coleções características do colecionismo.
Em Primeiro amor, um dos tipos mais tradicionais de coleção é apresentado: a
coleção de artes plásticas. Vários colecionadores tornaram-se conhecidos por inves-
tirem muito tempo e dinheiro em suas coleções de arte, diversos deles assumindo
também uma função de mecenas dos artistas colecionados. Os leilões de arte que
apresentam quadros desejados por colecionadores privados de arte e que alcançam
somas altíssimas já fazem parte do imaginário popular. Até mesmo os museus, que
muitas vezes pertencem à esfera pública, pagam altas quantias de dinheiro para in-
cluírem em seu acervo certas obras famosas. O livro de Beckett, editado pela Cosac
Naify, traz reproduções de obras da artista plástica Célia Euvaldo, formando em suas
páginas também uma “coleção” impressa de obras pictóricas. A referida artista já
teve sua produção exposta em museus e galerias, espaços acessíveis a um grande pú-
blico, mas que, no entanto, possibilitam também, no caso das galerias, que as obras
sejam adquiridas para integrarem coleções particulares. Assim, o primeiro livro da
Coleção Particular traz em suas páginas uma série de obras selecionadas dentre a
produção de uma artista que faz parte dessa dinâmica entre as coleções privadas e
públicas do mundo das artes.
No segundo título da coleção, Bartleby, o escrivão, são os livros limitados para
bibliófilos que estão representados na publicação. É comum que certos livros vol-
tados especificamente para o mercado de colecionadores sejam publicados sem ter 24 É o caso, por
exemplo, dos
suas páginas refiladas, tal qual o livro da Cosac Naify, além de muitas vezes serem
livros que eram
produzidos com alguns processos artesanais e vendidos sem encadernação.24 Essas publicados pelo
tipógrafo Cleber
obras, de tiragem limitadíssima (é comum que cada exemplar seja numerado) e res-
Teixeira em sua
tritas a um pequeno círculo de iniciados, implicam certos valores compartilhados Editora Noa Noa.

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 189


pelo grupo de compradores. Segundo Blom (2003), as chamadas “edições de cole-
cionador” são itens produzidos explicitamente para colecionadores e não para serem
lidos ou usados. O autor diz: “Enquanto esses itens podem ser comprados por preços
predeterminados, outros só têm valor em certos círculos, entre iniciados cujas re-
gras e cujo conhecimento são profundamente secretos, compartilhados por poucos.”
(BLOM, 2003, p. 191). Embora o livro da Cosac Naify não se enquadre nesse perfil
de publicação (suas tiragens não são limitadas, nem numeradas, e são produzidas in-
dustrialmente), é uma característica das edições para bibliófilos (a página não-refila-
da) que está figurativizada em seu projeto gráfico. Temos, assim, um tipo de coleção
característico do âmbito privado presentificado na Coleção Particular.
Em A fera na selva, é ainda a esfera especificamente privada que é explora-
da. Por uma escolha do projeto gráfico do livro, são exibidas na publicação duas
fotografias que representam os dois personagens da trama – um homem e uma
mulher. Esses retratos em preto e branco nos remetem imediatamente a fotos fami-
liares, como as de nossos avós que eram produzidas por fotógrafos em momentos
especiais, muitas vezes em estúdios com cenários montados, e guardadas com o
máximo de cuidado. Os álbuns de retratos são uma forma de coleção que faz parte
dos hábitos da maior parte das famílias em nossa cultura e pertencem a um domí-
nio exclusivamente privado.
Já na coleção de pôsteres plasmados nas páginas de Zazie no metrô retoma-se
a dinâmica entre o público e o privado. Os pôsteres são uma forma de mídia que
visa um destinatário público, estando disponíveis para a apreciação de um grande
número de pessoas. No entanto, os pôsteres também podem formar coleções bastan-
te privadas: basta pensar nos pôsteres que recobrem as paredes dos quartos de um
adolescente ou nas coleções de pôsteres artísticos que podem se assemelhar muito
a uma coleção privada de arte. Os pôsteres parisienses, em especial, foram o artigo
principal de diversas coleções, conforme nos relata Hollis (2010, p. 9): “Os ameri-
canos consideravam Paris a capital mundial da moda e da arte. Após a publicação
de um livro sobre o assunto, Les Affiches illustrées, em 1886, os pôsteres adquiriram
respeitabilidade cultural, tornando-se moda colecioná-los.” Assim, ao trazer em suas
páginas uma série de pôsteres parisienses, Zazie no metrô retoma um tipo de coleção
que era característico do período da sua narrativa.
Em Flores, a relação com uma forma de coleção é um pouco mais sutil, mas ain-
da está presente. Ela surge do verbal do título (“flores”) em paralelo à materialidade
da embalagem: flores e plantas, quando colecionadas, precisam ser secas e prensadas

190 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


de forma hermética, geralmente por lâminas transparentes tal qual o polímero que
envolve o livro da Cosac Naify. Assim como as plantas têm seu caule cortado e suas
entranhas ficam expostas pela transparência das lâminas das coleções, o referido
livro tem sua suposta capa arrancada e sua encadernação fica exposta por detrás da
embalagem plástica. Retoma-se assim um gênero comum na história do colecio-
nismo: as coleções de naturalia (animais, plantas e minerais), que estão diretamente
relacionadas ao grande crescimento da atividade colecionadora e científica no século
XVI na Europa (BLOM, 2003). Fazendo parte tanto de coleções privadas (de su-
jeitos interessados em botânica) quanto de coleções públicas (museus de ciências e
história natural), plantas e flores são artigos regulares em diversas coleções ao redor
do mundo.
Voltamo-nos novamente para o âmbito das coleções privadas em Museu do ro-
mance da Eterna. Além da estrutura do romance, organizado ele mesmo como se
fosse uma coleção de diversos fragmentos literários, a margem irregular do livro nos
remete a um outro tipo de coleção: a de papéis, folhas soltas e páginas escritas. Mui-
tos colecionadores misturam em suas coleções diferentes tipos de papéis escritos:
livros, certamente, mas também manuscritos, cartas, documentos etc.25 Geralmente, 25 A título de
exemplificação,
essas coleções de papéis dizem respeito ao universo de interesses e referências do
um famoso
próprio sujeito colecionador, estando, portanto, situadas na esfera privada. colecionador de
papéis escritos foi
A última publicação da coleção, Avenida Niévski, figurativiza em suas páginas
Sir Thomas Phillips
outro tipo de coleção: a de gravuras e recortes de jornal, presentes tanto nas imagens (1792-1872). Em
sua propriedade
selecionadas para publicação no livro quanto no papel que envolve a capa. É um
havia pilhas de
hábito de certos leitores de jornal separar imagens ou artigos, fatos do dia-a-dia, que livros, manuscritos
e documentos em
possam interessá-los futuramente ou interessar a algum conhecido. De um veículo
todos os cômodos,
midiático que geralmente possui larga abrangência e, portanto, pertence ao domínio até o teto. Isso sem
contar uma casa
da esfera pública, os recortes de jornal são armazenados pelos leitores e configuram
anterior, que havia
uma coleção privada, de acordo com os interesses pessoais do sujeito. A separação de sido abandonada
pois ficara pequena
certos fatos especiais ou relevantes dentro da dinamicidade urbana é tanto a operação
demais para sua
do sujeito colecionador de recortes de jornal quanto a operação de Nikolai Gógol, ao coleção (a sala
de jantar e a de
separar dois eventos ocorridos na avenida Niévski para estruturar a sua narrativa.
estar estavam
Todas essas formas de colecionar que estão manifestas nas publicações da Co- inutilizadas, por
exemplo, devido ao
sac Naify contextualizam seus leitores em um fazer colecionador para que montem
acúmulo de itens)
eles próprios as suas coleções. A Coleção Particular, então, se apresenta como o pri- (BLOM, 2003).

meiro passo na formação de uma coleção pessoal de livros de cada leitor. Além de
incentivar a criação da coleção, a Cosac Naify também estabelece os critérios daquilo

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 191


que é digno de ser colecionado: não quaisquer livros, mas sim edições que possuam
uma preocupação com sua materialidade e com o seu design, que propiciem a seus
leitores experiências estésicas decorrentes de seus projetos gráficos.

5.4 Escritos extras

Além do escrito principal de cada livro, constituído pelos contos ou romances que
dão nome às obras, muitos livros da Coleção Particular também incluem posfácios e
comentários que fazem a crítica da obra, ajudam a elucidar aspectos de sua narrativa
e localizam os livros na história da literatura e da produção cultural humana.
Embora esses conteúdos escritos extras não sejam propriamente decorrentes de
uma escolha de design, são uma escolha editorial que fala muito sobre a proposta da
Cosac Naify de formação de seus leitores por meio da Coleção Particular. Por esse
motivo, os posfácios e comentários serão aqui brevemente descritos, visto que são
considerados elementos importantes na estruturação da coleção e na configuração
de sua identidade, ao fazerem a relação entre os discursos do livro e os demais
discursos de nossa cultura.
Embora no primeiro livro da Coleção Particular ainda não houvesse nenhum
escrito extra incluído na publicação, a partir do segundo título já encontramos esse
tipo de conteúdo adicional, o que se torna regra para as publicações seguintes. Em
Bartleby, o escrivão, logo após o conto de Melville há um posfácio chamado “Bartleby,
o escrivão fantasma”, de autoria do tradutor e escritor Modesto Carone, que ocupa
oito páginas. Esse posfácio é anunciado inclusive na capa do livro, sendo, portanto,
apresentado pela editora como uma parte importante da publicação. Carone inicia o
posfácio comparando o conto a outra obra de Herman Melville, Moby Dick, a partir
de um prólogo escrito por Jorge Luis Borges e incluído em sua tradução de Bartleby
para o espanhol. Em seguida, também a partir das ideias de Borges, Carone define
Bartleby como o conto que antecipava um gênero (o das “fantasias de conduta”) que
seria futuramente aprofundado por Kafka. Ele inclusive compara a narrativa de Mel-
ville com obras de Kafka e depois, ao longo do texto, também a obras de Poe e Henry
James. Ao tratar do conto propriamente, Carone discorre sobre o “desempenho ver-
bal” de Melville e sobre suas descrições de personagens. Ao retomar a história, revela
o egoísmo e a insensibilidade do personagem narrador, que haviam ficado ocultas

192 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


sob a camada mais superficial (discursiva) do texto. Em outras palavras, Modesto
Carone é o agente destinado pela Cosac Naify para doar a competência do saber aos
leitores, para que estes possam realizar a comparação da obra de Melville com a de
outros autores, além de clarificar uma questão que poderia passar despercebida a um
leitor mais desatento: a do narrador que não é plenamente confiável.
É também de Modesto Carone o posfácio incluído em A fera na selva. Nas dez
páginas que compõem “Uma renovação inesperada da história de amor”, faz-se uma
síntese e análise da obra de Henry James. Carone inicia o posfácio tratando da atua-
ção de James como novelista, comparando e constrastando esse gênero literário aos
romances e à poesia. A seguir, compara o caráter de crítica do trabalho de James com
o mais célebre escritor nacional: Machado de Assis. Faz, assim, uma ponte entre o
discurso da obra publicada pela Cosac Naify e os discursos da literatura brasileira.
Carone, ao retomar a trama da novela, traça o perfil psicológico dos personagens
e explora o significado de seus nomes, em uma associação com os meses do ano
(march e may). Ao final, dá sua sanção positiva à tradução de José Geraldo Couto,
afirmando que esse faz jus ao estilo literário de James.
No livro seguinte da Coleção Particular, Zazie no metrô, não é mais um escritor
nacional que é chamado para dar sua visão sobre a obra, mas sim o pensador francês
Roland Barthes, em oito páginas de posfácio. O escrito extra é anunciado na quarta
capa do livro, sendo apresentado pela editora, portanto, como um material adicio-
nal importante. A crítica selecionada, intitulada “Zazie e a literatura”, foi publicada
originalmente em 1959, ou seja, no mesmo ano que a obra de Raymond Queneau.
O próprio título indica que o foco da crítica é localizar o escrito de Queneau dentro
da teoria literária. Em relação à arquitetura literária, Barthes caracteriza Zazie no
metrô como um romance bem-feito, com construção clássica, que se vale de “toda
a técnica do romance francês”. Para Barthes, os elementos do universo tradicional
são em seguida decompostos por Queneau por meio de antífrases, incertezas, es-
cárnio dos personagens etc. Zazie no metrô realizaria então uma paródia de vários
modelos literários (épico, homérico, latino, medieval etc.). Na continuação da críti-
ca, avalia-se a escrita fonética de Queneau, que romperia com a “muralha sagrada”
ortográfica da norma culta. Por fim, Barthes analisa a própria Zazie e o modo como
a personagem usa a linguagem de uma maneira transgressora. Assim, o destinador
Cosac Naify delega dessa vez a Roland Barthes a tarefa de competencializar os seus
leitores em um saber da teoria literária, para que adquiram o poder de análise crítica
do romance publicado.

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 193


Há ainda em Zazie no metrô uma breve biografia de Raymond Queneau, como
as que costumam ocupar a orelha direita dos livros em brochura, mas que nessa
edição estende-se por duas páginas da sessão chamada “Sobre o autor”. Nela são
abordadas as obras mais importantes de Queneau, bem como o seu trabalho junto a
um grupo de literatura experimental (o OuLiPo – Ouvroir de Littérature Potentielle).
A autoria dessa mini-biografia, não declarada, pode ser então atribuída à própria
editora Cosac Naify.
Em Flores não há um material pós-textual adicional além de breve posfácio do
próprio autor (essencial à narrativa), mas há um escrito extra no que foi chamado
pela editora de “orelha” do livro. Encadernado à parte, o que é também uma de-
marcação das diferenças entre um e outro escritos, sendo um deles uma tomada de
posição acerca do outro, o papel dobrado traz duas páginas escritas por Joca Reiners
Terron, escritor e editor brasileiro, que funcionam como uma apresentação ao livro
e à produção de Mario Bellatin. Além de breve sinopse, o comentário faz ainda com-
parações entre a escrita do mexicano Bellatin e autores de outras partes do globo:
Hemingway e Tchekhov, especificamente. Assim, o comentário adicionado à publi-
cação pela Cosac Naify continua o compromisso da editora em relacionar as obras
por ela publicadas aos demais discursos das culturas do mundo.
Em Museu do romance da Eterna, os escritos extras ocupam um espaço ines-
perado do livro: as guardas. Há no começo da publicação uma abertura de Damián
Tabarovsky (escritor, tradutor e editor argentino) e nas guardas finais uma pequena
biografia do autor (“Sobre o autor”). Na abertura, faz-se uma curta descrição do pro-
cesso de trabalho de Macedonio Fernández, que é baseado em uma miscelânea de
páginas dispersas, retalhos e digressões. A abertura trata também do papel do autor
como pai das vanguardas argentinas, mestre de Jorge Luis Borges, e influência de
vários outros autores argentinos (Roberto Arlt, Leopoldo Marechal, Julio Cortázar,
Ricardo Piglia), além de compará-lo a Kafka, Fernando Pessoa e Witold Gombro-
wicz. Já no final do livro, na breve biografia, há um relato da formação e carreira do
autor. Mas na verdade o foco dessa mini-biografia é a história da escrita ao longo de
quarenta anos e da publicação de Museu do romance da Eterna (quinze anos após a
morte do autor na Argentina e depois de mais de quarenta no Brasil). Não assinada,
essa sessão “Sobre o autor” pode então ser atribuída à própria editora, assim como
havia ocorrido com a breve biografia de Raymond Queneau em Zazie no metrô.
Por fim, em Avenida Niévski, é interessante reparar a estratégia da editora de in-
cluir um escrito extra que é do próprio autor do conto-título: Notas de Petersburgo de

194 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


1836. Encadernado à parte, mas vendido em conjunto e constituindo parte essencial
da publicação, o ensaio de 27 páginas traça um panorama da cultura da cidade de São
Petersburgo. Assim, é Nikolai Gógol quem assume a missão de localizar sua própria
produção em relação às demais produções culturais da época (revistas, moda, balé,
ópera, teatro, festas populares etc.), dotando o leitor da competência necessária para
contextualizar o conto Avenida Niévski.
Se um discurso discursa outros discursos, como apontado por Fiorin (2003),
então os contos, novelas e romances publicados na Coleção Particular também in-
corporam aspectos da produção cultural humana que são fundamentais para sua
compreensão. Os escritos extras selecionados pela Cosac Naify, de autoria de pessoas
altamente gabaritadas, ajudam a formar o leitor da coleção e a competencializá-lo em
sua tarefa de depreender o sentido das narrativas e de localizar os livros na história
da literatura e do mundo.

5.5 Sistematização dos


interdiscursos e intersemioses

Vimos que há um contexto cultural abrangente, envolvendo manifestações de di-


versas ordens, que é incorporado e explorado nas obras da Coleção Particular em
relações interdiscursivas e intersemióticas. Assim como realizado previamente com
os metadiscursos do livro, organizamos agora um quadro que sistematiza as relações
encontradas nas análises, apresentado a seguir (quadro 3).

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 195


Quadro 3 – Sín-
Arte Mídia Colecionismo Escritos extras
tese das relações
interdiscursivas e
Primeiro • Artes plásticas • Encadernação e • Artes –
intersemióticas da
amor • Caligrafia (uso tinta caligráficas plásticas
Coleção Particular
do nanquim) (“pré-mídia”) (coleção
com as artes, com
• A tradutora é • Informação: pri- de arte)
as mídias e com
artista plástica, e meiros registros • Privado
o colecionismo,
já possui inclu- e público
além das relações
sive um livro so-
propostas a partir
bre sua produção
dos escritos extras
publicado pela
incluídos em cada
Cosac Naify
publicação.
Bartleby, • Fotografia • Industrialização • Livros • Posfácio de Modesto
o escrivão • Arquitetura • Informação: não-refila- Carone que compara a
(foto da parede, serialização dos: comuns produção de Melville a
mostra a matéria em obras diversos autores (Jorge
“concreto”) voltadas para Luis Borges, Franz
bibliófilos Kafta, Henry James,
• Privado Poe); para Carone,
Bartleby antecipava
um gênero (fantasias
de conduta) que seria
futuramente aprofun-
dado por Kafka

A fera na • Fotografia • Pôster • Fotos • Posfácio de Modesto


selva (retrato) • Moda (dos su- familiares Carone que dá um
jeitos fotografados) (“álbum de panorama da produção
• Informação: família”) literária de James,
transporte (papel • Privado relaciona com a
da capa é utiliza- literatura nacional
do pelos correios (Machado de Assis),
americanos, além trata de seu estilo de
de “envelopar” o escrita e da própria
conteúdo do livro) tradução

Zazie no • Ilustração e • Pôsteres (publi- • Pôsteres • Posfácio de Roland


metrô desenho (incluí- cidades no interior • Privado Barthes da época de
dos nos pôsteres) das páginas) e público edição do livro que
• Sinalização localiza a obra na teoria
• Informação: literária, no que ela tem
excesso de clássica (estrutura,
duração, objetividade)
e de transgressora
(paródia de diversos
estilos)
• “Sobre o autor”: breve
biografia de Raymond
Queneau elaborada
pela Cosac Naify

196 INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO


Arte Mídia Colecionismo Escritos extras

Flores – • Embalagem • Coleção • Comentário de Joca


• Informação: de plantas e Reiners Terron (escritor
transporte flores (secas e editor) que apresenta o
(empacotamento) e prensadas) livro, tal qual um texto de
• Naturalia orelha
• Privado e
público

Museu do • Literatura • Hipermídia • Coleção • Abertura de Damián


romance (discute (“links”: prólogos de páginas Tabarovsky que localiza
da Eterna o próprio sem paginação, escritas (a Macedonio Fernández em
fazer artís- em quadros como “pilha” de relação a outros autores
tico da páginas web; a papéis mais (Kafka, Fernando Pessoa,
literatura): própria estrutura ou menos etc.), apresentando-o
operações salteada do avulsos que é como precursor da litera-
de adi- romance) o livro) tura fantástica argentina
cionar • Informação: • Privado (Jorge Luis Borges, Julio
(pintura) arranjo e Cortázar)
e subtrair hierarquia • “Sobre o autor”: breve
(escultura) biografia de Macedonio
Fernández elaborada pela
Cosac Naify

Avenida • Gravura • Jornal • Coleção de • Em Notas de Peters-


Niévski • Arquite- • Etiqueta gravuras e burgo, Gógol traça um
tura (embalagem) recortes de panorama da cultura da
• Informação: jornais cidade, localizando sua
circulação • Privado e produção em relação às
(periodicidade) público demais produções cul-
turais da época

INTERDISCURSOS E INTERSEMIOTICIDADE DO LIVRO 197


Notas
finais
E ntre tantos títulos que inundam as prateleiras das livrarias brasileiras, como
fazer com que um livro obtenha destaque ou, ainda, como fazê-lo expor o que há
nele de particular? É por meio de uma forte estratégia de design que a totalidade da
Coleção Particular produz com cada um de seus livros uma experiência sensível de
leitura. A plasticidade de tais livros responde tanto ao que é proposto pela dimensão
verbal de cada obra, numa relação de semi-simbolismo, quanto insere-se em uma
lógica do sentido global da coleção e da editora a partir de traços identitários que são
reiterados em cada uma das publicações. O resultado são livros que se sobressaem
no meio editorial, interpelam o leitor e fazem com que ele sinta o sentido da obra –
tátil e visualmente, na relação entre o seu corpo e o corpo do livro.
Essas publicações estão inseridas em um contexto em que os livros impressos
precisam cada vez mais reafirmar-se em sua materialidade para se fazerem deseja-
dos. Conforme a visão do editor americano Richard Nash, vários relatos atuais do
mercado editorial veem a indústria do livro correndo um forte risco: “os últimos
cinco a dez anos testemunharam um elevado grau de ansiedade da classe editorial
no que se refere ao mercado de livros, revistas e jornais” (NASH, 2013, p. 179). Mu-
danças estruturais vêm fazendo com que editores percam prestígio e sejam demiti-
dos, e diversos outros agentes sociais (empresas, instituições culturais etc.) se tornem
“editoras”, produzindo suas próprias publicações. Para o autor, no entanto, o capita-
lismo e as forças do mercado podem não apenas ameaçar o mercado de livros, mas
animá-lo. Para os livros impressos ainda há um espaço, que é cada vez mais especia-
lizado ao diversificar sua oferta:

À medida que se atenua a pressão pela compra do livro físico como o principal
canal de a literatura atingir seu público, diminui também a pressão para que seus
custos sejam barateados. Simultaneamente, o perfil dos varejistas especializados
em literatura sofre uma mudança, de um tipo de livreiro que centra sua ativi-
dade no preço e na variedade do estoque para o que funciona como híbrido de
animador cultural, galerista e curador — isto é, rumo a lugares otimizados para
edições de alto nível. De modo mais amplo, significa ser capaz de vender a uma
ampla variedade de preços: 15 dólares pela brochura, 35 dólares por uma edição
elegante em capa dura, 75 dólares para uma edição em uma caixa, 250 dólares
com a impressão digital em sangue do próprio autor na folha de rosto e assim
por diante. (NASH, 2013, p. 183).

NOTAS FINAIS 199


Essas ofertas cada vez mais diversificadas de livros impressos encontram respal-
do em leitores também mais especializados e conscientes da linguagem do livro. Se
o consumidor contemporâneo é um sujeito “mais sofisticado” e necessita de uma
quantidade cada vez maior de informações e comparações para que faça suas es-
colhas, como propõem Lipovestky e Serroy (2011), é porque também os produtos
contemporâneos complexificaram-se. Muitos produtos culturais, imersos em uma
lógica de mercado, inovam em recursos de linguagem e na maneira como constroem
sua própria significação, exigindo uma leitura atenta e um público disposto a enfren-
tar processos semióticos complexos.
É assim que os livros da Coleção Particular mostram-se ao mundo em sua com-
plexidade de sentidos e, para que sejam compreendidos em sua totalidade, o leitor
deve ser educado, orientado passo a passo no percurso de elaboração e nos processos
de linguagem do livro impresso, principalmente no processo de apreciação da feitura
do objeto livro.
A Cosac Naify disponibiliza a seus destinatários, por meio da Coleção Particular,
todo o aparato para que esses sejam competencializados na compreensão de seus
livros. As relações entre o projeto gráfico e a dimensão verbal das obras estão postas
no objeto e o leitor é desafiado a empreender uma leitura atenta e lançar um olhar
apurado para decifrá-las. Do mesmo modo, também estão inseridas na totalidade
significante do livro as diversas pistas que, espalhadas pelas publicações, levarão o
leitor a um percurso de desbravamento de estéticas diversas – aquelas do próprio li-
vro, as das artes, das mídias, das coleções. Assim competencializado e apto a realizar
suas próprias escolhas, o leitor é formado em seu gosto pelo livro e incitado a iniciar
sua coleção, sua própria biblioteca particular.

6.1 Formação e cultivo


do gosto do livro

As diversas qualidades estésicas exploradas nas obras da Coleção Particular, anali-


sadas nos capítulos precedentes, nos levam a identificar um agir da editora Cosac
Naify que é formador de um gosto pelos “clássicos” da literatura ocidental (tanto os
clássicos já consolidados pela crítica literária quanto as apostas de novos clássicos).
A Coleção Particular edita esses clássicos de modo a proporcionar ao leitor ex-
periências vividas advindas da arte de fazer o livro objeto, que podem acarretar des-
cobertas pessoais através da articulação das relações de sentido de tais livros com

200 NOTAS FINAIS


outras artes (pintura, caligrafia, fotografia, arquitetura, gravura, ilustração) e mídias
(pôster, sinalização, moda, embalagem, jornal, hipermídia). Os desenvolvimentos
estésicos da editora suscitam uma relação de ajuste entre os leitores e a Cosac Naify
por meio dos traços sensíveis de seus livros, que é fundamental na constituição dessa
coleção desde sua formação, bem como na proposição de um vínculo de fidelidade
entre o público leitor e a editora.
As qualidades sensíveis são então exploradas pelos livros da Coleção Particular
em procedimentos estésicos que exigem do leitor (ou do analista) uma postura de
abertura ao seu próprio sentir para que possa compreender os sentidos manifes-
tados nessas publicações. Conforme a reflexão de Landowski (2005b), foi Greimas
quem, em Da Imperfeição, lançou as bases para uma semiótica em que o analista
esteja tanto implicado na experiência sensível vivida quanto na busca reflexiva do
sentido daquilo que está vivendo. Em suma, um chamado para que a semiótica fosse
mais sensível. Nas suas análises de diversas experiências estéticas, Greimas (2002)
propõe duas formas quase que antagônicas de abordagem. Na primeira parte do seu
último livro, ele trata as experiências estéticas enquanto “fraturas”, irrupções súbitas
e inesperadas do sentido. As fraturas são como milagres que retiram o sujeito de
um estado de anestesia para fazê-lo experienciar brevemente o momento estético,
somente para que logo em seguida ocorra sua recaída ao cotidiano dessemantiza-
do. Na segunda parte do livro, como nos aponta Landowski (2005b) em sua leitura,
Greimas não mais se detém na fronteira do sensível, mas tenta englobá-lo, buscando
compreender como a experiência sensível faz sentido. A apreensão do sensível se-
ria vivida então em “escapatórias” nos comportamentos do dia-a-dia do sujeito. A
experiência estética pode proceder da iniciativa e de um trabalho de construção de
sentido do próprio sujeito.
É para esse sujeito, construtor do sentido e das experiências estéticas em seu
próprio cotidiano, que a editora Cosac Naify propõe sua Coleção Particular. Não
como uma irrupção arrebatadora do sentido que tomaria completamente o sujeito
num ímpeto de estesia indecifrável, mas sim como uma experiência sensível que faz
sentido e que pode trazer valores estéticos para uma ação tão habitual quanto ler um
livro. O leitor que acompanha todas as publicações da coleção passa por um proces-
so de competencialização, tanto estésica quanto cognitiva, para que desenvolva suas
habilidades de apreciação do livro.
Esse processo implica um desenvolvimento a nível de gosto no leitor, na medida
em que ele vai apreendendo as operações de linguagem realizadas pelo design da
Coleção Particular e vai aprendendo a degustar tais operações. Segundo Landowski

NOTAS FINAIS 201


(1997), o “gosto” é da ordem da significação, é uma construção mediante a qual o
sujeito dá sentido ao mundo-objeto que o rodeia. De acordo com Fiorin (1997), há
duas acepções possíveis para o termo “gosto”: o gosto enquanto preferência e o gosto
enquanto marca de distinção. Na primeira definição, o gosto pode ser entendido
como “a paixão da diferença” (Fiorin, 1997, p. 17): ele é a descontinuidade eufórica
no contínuo indiferenciado daquilo que é “sem gosto”. Essa forma de gosto existe na
e pela diferença: o sujeito euforiza, a partir de suas próprias predileções, um dado
objeto ou traço distintivo em oposição aos outros que são diferentes daquele. Já o
gosto da distinção é aquele do “dever fazer”, normativo: é o chamado “bom gosto”,
definido por um determinado grupo social e apreciado, portanto, pelos iniciados
naquele conjunto de normas e valores.
A Coleção Particular é um duplo convite da Cosac Naify a seus leitores para
que experimentem duas formas de gosto: o gosto do livro e o gosto pelo livro. O
primeiro decorre das qualidades sensíveis dos próprios objetos, que marcam uma
descontinuidade no contínuo indiferenciado que é formado pelos demais livros “co-
muns” disponíveis no mercado editorial. O segundo é o desenvolvimento de uma
apreciação desse objeto, um gosto que é compartilhado por uma comunidade de
apreciadores do livro que estão capacitados a apreciá-lo, julgá-lo e sancioná-lo se-
gundo critérios do que seria um “bom livro”. No caso, o “bom livro” é aquele que
experimenta com sua forma, que articula os diferentes sistemas de linguagem na
construção intrincada de uma totalidade de sentido e que faz com que seu leitor
sinta pelo projeto gráfico esse sentido.
Há uma relação entre o “gosto” de alguém e sua própria identidade: declarar
o que nos agrada, segundo Landowski (1997), é o modo mais comum de identifi-
car-nos diante dos outros e mesmo diante de nós mesmos. Assim, um leitor que
identifica-se como apreciador dos livros da Coleção Particular está declarando sua
própria identidade, está se posicionando em um grupo restrito daqueles sujeitos que
possuem a competência necessária para apreciar a fineza dos detalhes da elaboração
de um livro impresso. É um gosto que provém tanto do que é intrínseco ao objeto
– aquele gosto do sujeito que em seu hábito cotidiano experimenta estesicamente o
sabor do livro impresso, gozando-o “a sós” – quanto o gosto de um certo grupo social
– o gosto do sujeito que se insere em uma comunidade de apreciadores de livros, que
agradam uns aos outros ao compartilharem valores comuns.
Para inserir seus leitores nessa dada comunidade, e para competencializá-los a
apreciar o livro por todos os seus elementos constituintes, a Cosac Naify torna-se o
agente transformador que propõe um percurso de formação e de cultivo do gosto

202 NOTAS FINAIS


do (e pelo) livro. Buscando entender a relação entre o design dos livros da Coleção
Particular e tal percurso de formação do gosto do leitor, é fecundo retomar o percur-
so de formação da própria coleção. Como visto no segundo capítulo, a coleção não
surgiu pronta e estruturada: ela foi criada a partir de acasos, de “tentativa e erro”, e
da percepção da editora de que haveria nessa proposta editorial uma oportunidade
de negócio.
Os primeiros livros lançados, Primeiro amor e Bartleby, o escrivão, não faziam
ainda parte de nenhuma coleção declarada. Eram obras que já apresentavam, no
entanto, características reiteradas posteriormente em outros livros da editora: ex-
ploração do design do livro, incorporação das qualidades sensíveis do objeto livro na
construção do sentido da obra, sincretismo de linguagens, inovação nos processos
produtivos, retomada dos discursos históricos do livro, relações interdiscursivas e
intersemióticas com o mundo cultural, etc. Tratava-se, na verdade, de uma aposta
da editora, já que projetos gráficos assim diferenciados das publicações comuns no
mercado brasileiro poderiam ser tanto um sucesso de crítica quanto incompreendi-
dos, poderiam tanto obter êxito nas vendas quanto fracassar.
Ao refletirmos sobre essa ação da Cosac Naify a partir dos regimes de interação
e de sentido de Landowski (2009), podemos iluminar as diversas etapas do processo
de formação da Coleção Particular a partir de um ponto de vista de um processo
interacional entra a editora e seus leitores. Se os regimes de interação propõem os
modos como o sujeito interage com o mundo que o cerca (com os demais sujeitos
e objetos), também a editora é um sujeito que interage com outros sujeitos. Nessa
primeira etapa de formação da coleção, de aposta no lançamento das duas primeiras
obras, estamos no âmbito do regime do acidente (esquema 12).

Esquema 12 –
Formação da
Coleção Particular:
regime do acidente.

Assumir uma postura de assentimento frente aos acidentes possíveis é tomar para
si uma postura de risco a priori, realizando uma aposta. Ao lançar obras literárias
com projetos gráficos não convencionais e com alto fator de experimentação, a Cosac
Naify fez uma aposta, já que os resultados em vendas seriam, a princípio, indetermi-

NOTAS FINAIS 203


nados. O cruzamento do programa narrativo da editora com os programas de seus
leitores foi regido pelo acaso: os livros tanto poderiam ser aceitos, e venderem bem,
quanto serem rechaçados. Felizmente, a “sorte” (ou mais especificamente uma certa
confluência de circunstâncias) esteve a favor da editora e os livros Primeiro amor e
Bartleby, o escrivão foram aceitos por público e crítica, vendendo satisfatoriamente.
Como propõe Landowski em suas interações arriscadas, se “horizontalmente”
(dentro do espaço bidimensional do esquema elíptico) um regime de sentido e de in-
teração transita rumo a outro por implicação ou por contradição, esses regimes po-
dem reger “verticalmente” (entre planos sobrepostos no espaço) a sua própria repro-
dução, recursivamente, ou reger, em uma recursividade oblíqua, o funcionamento de
outro regime determinado (LANDOWSKI, 2009, p. 91). Dada a bidimensionalidade
do suporte de impressão, o melhor que podemos fazer objetivando uma represen-
tação dessas hierarquias é uma simulação esquemática com as sobreposições das
elipses. No caso analisado, da formação da Coleção Particular pela interação entre
a Cosac Naify e seus leitores, o regime do acidente é regente de outros dois regimes
num plano superposto: a manipulação e a programação (esquema 13).

Esquema 13 –
Formação da
Coleção Particular:
regimes da
manipulação e da
programação.

Aproveitando o feliz “acidente”, a editora Cosac Naify decide montar uma coleção
com as referidas obras e com publicações vindouras, empregando estratégias diver-
sas de convencimento de seus leitores (a partir de seu site, blog e veículos midiáticos
em geral) para que valorizem os projetos gráficos dessa coleção. Surge assim, a partir
do terceiro título, a Coleção Particular. Trata-se de uma estratégia montada com base
em uma oportunidade de mercado. Passamos então ao regime da manipulação, fruto
de uma intencionalidade do sujeito-editora, que age sobre a volição do sujeito-leitor,
fazendo-o desejar seus livros.

204 NOTAS FINAIS


Mas para que a elaboração da coleção se concretize, não basta o regime da ma-
nipulação: é necessário também que a editora se apóie nas regularidades do regime
da programação. São as isotopias, aquilo que se repete entre um e outro livro, que
farão com que obras de projetos gráficos tão diferentes um do outro sejam percebi-
das pelos leitores como uma totalidade. Há algo já esperado, portanto constante, em
cada nova publicação da Coleção Particular, e essas regularidades caminham lado a
lado com a manipulação da editora no convencimento de seus leitores.
Na interação entre a Cosac Naify e seus leitores, há ainda uma terceira etapa a ser
sobreposta às demais, para que o percurso de formação da coleção esteja completo:
a articulação do regime do ajuste (esquema 14).

Esquema 14 –
Formação da
Coleção Particular:
regime do ajuste.

Embora a coleção seja estruturada enquanto uma estratégia, com certas regula-
ridades que a operacionalizam, é no contato direto entre livro e leitor que a interação
se concretiza. A editora Cosac Naify interage sensivelmente com seus leitores media-
da por uma relação que é de corpo a corpo, na qual o corpo do leitor está em contato
direto com o corpo dos livros. A capacidade estésica do sujeito leitor em sentir o
livro e as qualidades estésicas do livro, este também sujeito, pois sensibiliza o outro
e o faz fazer (o faz sentir, ler, degustar a obra e, por fim, colecioná-la), são essenciais
na formação da Coleção Particular e na construção de seu sentido.
Esse caminho interpretativo da coleção já nos havia sido apontado na análise das
interações discursivas (OLIVEIRA, 2013). Como havíamos visto, a partir de todos
os projetos gráficos é possível depreender um “sentido sentido”, ou seja, aquele tipo

NOTAS FINAIS 205


de advir do sentido em que a competência sensível dos leitores é posta em relação às
qualidades sensíveis do objeto, numa interação sensível que é instauradora do sentido
do livro. Isso nos aponta para o fato de que a estesia é um elemento fundamental na
produção de sentido da Coleção Particular.
No toque do papel, na passagem ritmada das páginas, na visualidade que salta e
demanda do leitor a sua atenção, é uma relação sensível que se desenha entre os su-
jeitos da interação. É pelo regime do ajuste que os dois atores – a Cosac Naify e seus
leitores – interagem a partir de princípios que nascem da própria interação, fazendo
com que a Coleção Particular seja apreciada por meio do sentir.
Ao fim do processo de estruturação da coleção, está delineado o processo de
formação sensível do leitor, que agora capacitado a apreciar todas as qualidades do
livro poderá degustá-lo enquanto objeto, apreciando sensivelmente cada uma das es-
colhas de design. O sentir assume então um papel sancionador do contrato firmado
entre a editora e seu público, em um processo de fidelização que está delineado pela
maneira como os vários regimes de interação e sentido articulam-se.
Situada a arte de fazer livros como um estatuto estético que faz sentir, a edito-
ra, embasando-se nas experiências sensíveis de leitura, propõe a Coleção Particular
como uma trajetória de formação do gosto pelo livro. Esse desenvolvimento, que
envolve ser sensibilizado e apreciar o livro impresso, atinge o leitor que a partir daí
estará apto a julgar esteticamente os livros com os quais se depara. A editora, ao
tomar para si essa tarefa, mostra-se como aquela que entende as condições a partir
das quais o leitor será capaz de apreciar os livros e de desenvolver um julgamento
de gosto.

6.2 Identidade da coleção


e do público leitor

Ao fazer um balanço geral do desenvolvimento da pesquisa e dos resultados obtidos,


alcançamos, por fim, o traçado da configuração identitária da Cosac Naify no mer-
cado editorial brasileiro. Esta define-se pela sua relação de formação da sensibilidade
e estética apreciativa dos seus leitores, desenvolvendo neles a apreciação pelas quali-
dades sensíveis do livro impresso, objeto repleto de significação em sua fisicalidade,
ao mesmo tempo em que abre espaço mercadológico no Brasil para um determinado
tipo de publicação – obras com um design mais sensível.

206 NOTAS FINAIS


Além de uma exploração sensível da plasticidade do livro, depreende-se da
análise das obras diversas relações metadiscursivas que elas mantêm com a história,
estrutura e processos produtivos do livro, além de relações interdiscursivas e interse-
mióticas com diversas mídias e artes, sendo que essas relações são também funda-
mentais na construção dos sentidos que a Coleção Particular articula.
Em vários pontos das análises ao longo da dissertação chegou-se a um efeito de
sentido de “vanguarda” atribuído à editora Cosac Naify, figurativizado nas diversas
escolhas de design das publicações da Coleção Particular. Se a vanguarda nas artes
pode ser entendida como a ruptura em relação às artes tradicionais, o termo “van-
guarda” é utilizado de uma maneira mais geral referindo-se a um certo modo de
estar à frente de seu tempo, de ser inventivo e de antecipar tendências, bem como de
liderar uma maneira de agir e/ou pensar em algum campo específico.
Ao fim das análises individuais de cada um dos livros da Coleção Particular,
e mais especificamente ao fim do levantamento das relações interdiscursivas e in-
tersemióticas com os discursos do livro e as produções culturais de nosso tempo,
podemos chegar a uma semiotização do termo “vanguarda” no contexto específico
da Cosac Naify, que diz respeito à maneira como ela explora a forma do livro. En-
quanto as publicações digitais se popularizam na contemporaneidade, cada vez mais
há a necessidade de que os livros impressos afirmem seu estatuto de objetos consti-
tuídos por uma plasticidade que é relevante na produção de sentido. Essa valorização
da materialidade do livro, essa exploração de sua forma, de seu projeto gráfico, é o
que vem se desenhando como possibilidade de permanência e de valorização do
livro impresso. Essa maneira de pensar e fazer o livro é a que vem sendo adotada
pela editora Cosac Naify, especialmente em sua Coleção Particular, que é um dos
carros-chefe nessa empreitada. Esse tipo de vanguarda – de liderança em seu campo
– não se faz rompendo totalmente com o passado, portanto, mas sim retomando da
história do livro (e das mídias, artes, etc.) tudo aquilo que propicia uma sensibili-
zação do sujeito leitor. A vanguarda da Cosac Naify apresenta-se, então, como um
termo complexo que une a /tradição/ e a /inovação/ (esquema 15).

NOTAS FINAIS 207


“VANGUARDA”
(Liderar)
Cosac Naify

TRADIÇÃO INOVAÇÃO
(Valorizar o passado) (Valorizar o futuro)

REGRESSÃO TRANSGRESSÃO
Esquema 15 –
(Desvalorizar o futuro) (Desvalorizar o passado)
Quadrado semióti-
co da /tradição/ e
da /inovação/, exi-
bindo a construção
de um certo tipo de
“vanguarda” que “RETAGUARDA”
é característico da (Ser liderado)
Cosac Naify.

A valorização do passado, ou seja, a euforização da postura da /tradição/ é per-


cebida quando a editora insere sensivelmente o seu leitor em um percurso histórico
ao fazê-lo rasgar as páginas do livro não-refilado (Bartleby), ler as pinceladas do nan-
quim na encadernação chinesa (Primeiro amor), tatear a reprodução do jornal do
século XIX (Avenida Niésvki) etc., retomando características da história do próprio
livro, das artes e das mídias. Mas ao mesmo tempo em que realiza essa retomada, a
editora inova em diversos aspectos do livro, propondo dobras, invólucros, materia-
lidades significantes incomuns e muitas vezes ainda não assimiladas pelo mercado
editorial brasileiro, euforizando uma postura de /inovação/.
Essa atitude complexa que integra a /tradição/ e a /inovação/ em um mesmo
processo de construção de sentido foi vista e sentida na análise da estrutura “canôni-
ca” do livro. Enquanto alguns elementos tradicionais do livro eram mantidos para
algumas das publicações, havia também em outras uma quebra sistemática das con-
venções estruturais, sempre com vistas a enriquecer a experiência sensível do livro.
A editora Cosac Naify assume assim um papel de liderança em um certo modo de
pensar e produzir livros, retomando valores tradicionais de sua história e apostando
em aspectos inovadores. Aos concorrentes que negarem qualquer tipo de inovação

208 NOTAS FINAIS


em seus processos produtivos apenas por comodidade (uma forma de regressão) ou
romperem com as tradições apenas pelo prazer de rompê-las (com o único propósito
de transgredir), cabe nesse cenário somente um papel: o de ser liderado.
Temos assim um traço identitário de “vanguarda” que é concretizado fortemente
na construção discursiva de Cosac Naify. A editora se mostra como aquela que lidera
a produção editorial de obras que possibilitam uma experiência sensível de desfrute
do objeto livro e assim propõe a seus leitores uma experiência estésica em que os
seus corpos são convocados a tomarem parte nesse movimento de apreciação e ex-
ploração sensível do livro impresso.
Na tentativa de responder ao problema que motivou a pesquisa (como os pro-
jetos gráficos fazem com que os leitores sintam o sentido de particular do livro?),
percebemos que a experiência sensível de leitura dos livros da Coleção Particular
constrói seu sentido a partir de uma exploração sistemática de seus formantes plásti-
cos. As substâncias verbais, visuais, táteis e espaciais, organizadas em uma plástica
da expressão, figurativizam conteúdos da dimensão verbal sincreticamente, fazendo
com que o leitor adentre o universo do livro de forma imediata pela sensibilidade da
ponta dos dedos que toca a página, dos olhos invadidos pela luz que emana dos li-
vros, do modo como o corpo se projeta para experimentar a imediaticidade do outro
corpo (aquele do livro). Conforme nos lembra Ana Claudia de Oliveira, o corpo é
fundamental na apreensão sensível do mundo: “no seu atuar de distintos modos, o
corpo opera apreendendo e sentindo o sentido que é sentido graças à condição es-
tésica” (OLIVEIRA, 2010, p. 5).
Fazer sentir o sentido do livro pelo corpo é outro traço identitário forte que ca-
racteriza a Coleção Particular e, por extensão, a própria editora Cosac Naify. Logo na
primeira obra da coleção, Primeiro Amor, o corpo do leitor é convocado a sentir o
livro na passagem das mãos pela aspereza da capa. Ao abrir o volume, o leitor tateia o
miolo do livro e é surpreendido pela suavidade do papel, que o leva a virar as páginas
delicadamente, apreciando calmamente cada etapa da leitura. O corpo é convocado a
sentir e instaura-se dessa forma o corpo sensível como aquele que lê Cosac Naify. Na
segunda obra, Bartleby, o escrivão, é a fisicalidade do corpo que está em jogo ao longo
de todo o percurso de transformação do livro que o leitor executa. O corpo do leitor
é um corpo físico, que atua sobre outro corpo físico descosturando-o e rasgando-o,
ou seja, operando e transformando diretamente a sua materialidade. Entre um e ou-
tro actante há a fisicalidade dos corpos e, por meio dessa publicação, a Cosac Naify
qualifica o livro como objeto cujo corpo é dotado de sentido e de sentir. Na terceira
obra, A fera na selva, entram em cena as relações de proximidade e de distância en-

NOTAS FINAIS 209


tre os corpos. Ao abrir o pôster que se oculta sob as capas, o leitor deve afastar-se
para apreendê-lo na totalidade, somente para que em seguida volte a aproximar-se
para perceber os detalhes e prosseguir com a leitura. A posição do corpo indica
uma postura ora analítica, com um distanciamento crítico, ora muito próxima, em
uma relação de intimidade. Essa relação de espaço maior ou menor entre os corpos
é a relação que o leitor adota para compreender a trama do livro, devendo ser tan-
to analítico para analisar e interpretar os fatos que ocorrem quanto sensível para
apreender na proximidade o sentido da trama. Em Zazie no metrô, a problemática
é a de um corpo que desbrava outro corpo: o corpo do leitor assume uma postura
de curiosidade, projetando-se para o livro enquanto tenta entrever os cartazes que
estão somente parcialmente visíveis sob a superfície das páginas. O corpo maleável
do livro é flexionado para que o leitor investigador possa espiar entre suas dobras,
desbravando seu interior. Tal qual a personagem Zazie, que quer conhecer tudo na
cidade grande, vivendo-a plenamente, o leitor é aquele que se lança na decifração do
objeto, buscando apreender sua totalidade. Na quinta obra, Flores, é a organicidade
do corpo humano que é convocada a sentir a artificialidade do produto industrial
pelo contato com a fria superfície do invólucro plástico. No interior da embalagem,
o livro exibe suas entranhas com a costura e cola aparentes, para um leitor que se
identifica também enquanto um corpo orgânico. Em Museu do romance da Eterna o
corpo do sujeito vai e volta entre as páginas, entre os papéis esparsos, passeando por
um museu onde estão dispostos todos os elementos fragmentários da história. Cabe
ao leitor encontrar o modo de orientar-se na leitura para montar a unidade do texto.
O corpo do leitor é então um corpo que se localiza no ir e vir entre as passagens da
obra. Por fim, em Avenida Niévski, o leitor sente o movimento acelerado da avenida
ao virar rapidamente as suas curtas páginas, em um trajeto dinâmico. Por meio de
uma estratégia de enunciação, a gestualidade do livro nos coloca dentro da própria
avenida, posicionado nela e, mais ainda, ao rotacionar o volume, invertendo o alto
e o baixo, fazemos nós também a rotação no interior da avenida, passando de um
percurso do lado esquerdo da via para o lado direito dela. Nessa última publicação
da Coleção Particular, é a dinâmica dos corpos que nos é dada a sentir.
Enfim, na interação corpo a corpo entre leitor e livro, a editora problematiza as
maneiras como o corpo humano se põe na prática da leitura, considerando que essas
maneiras carregam também efeitos de sentido. Os diferentes modos do corpo de es-
tar em relação com o outro corpo, explorados sensivelmente pelos projetos gráficos
dos livros, podem então ser esquematizados na retomada dessas relações corpóreas
propostas pelas publicações da Coleção Particular (quadro 4).

210 NOTAS FINAIS


Livro Questão explorada pelo projeto gráfico

Primeiro amor Sensibilidade do corpo.

Bartleby, o escrivão Fisicalidade do corpo.

A fera na selva Proxêmica: proximidade e distância dos corpos.

Zazie no metrô Desbravamento do corpo.

Flores Organicidade do corpo. Quadro 4 – Ex-


ploração das
Museu do romance da Eterna Localização (orientação) do corpo. maneiras como o
corpo do leitor está
Avenida Niévski Dinâmica do corpo. em relação com o
corpo do livro.

É claro que, além dessas questões corpóreas principais exploradas pelo pro-
jeto gráfico de cada livro, outros modos de relação também estão presentes no
processo da construção de sentido de cada obra. Assim, por exemplo, numa obra
que problematiza a sensibilidade do corpo (Primeiro amor) também há relações de
fisicalidade, de proxêmica, do desbravamento dos corpos entre leitor e livro. Ao
esquematizar dessa maneira, destacando uma questão por livro, o que ressaltamos
é que diferentes maneiras de fazer o corpo sentir são exploradas pela Coleção Par-
ticular, algumas mais que outras em cada publicação, e na totalidade da coleção
temos uma exploração sistemática dessas diferentes maneiras de pôr em relação o
leitor e o livro.
É então na interação entre um corpo que sente, do leitor, e um corpo que faz
sentir, do livro – delegado pela destinadora editora Cosac Naify –, que se constrói
uma relação fundadora de sentido nas práticas de leitura de cada sujeito. Os livros da
coleção fazem mais sentido sentido na medida em que sensibilizam o corpo.
Na dinâmica das interações entre a editora e seus leitores, constrói-se a configu-
ração identitária da Cosac Naify no mercado editorial brasileiro: a editora é aquela
que desenvolve em seus leitores o gosto pelo livro, e a partir da experiência sensível
do livro propõe um vínculo de fidelidade com seu leitor. Tal vínculo se dá inicial-
mente nas posições de mestre e aprendiz, o primeiro doando competência e o se-
gundo em um processo de ser competencializado, mas logo em seguida torna-se um
vínculo entre dois sujeitos plenamente competentes que apreciam juntos a arte do
livro. Os projetos gráficos são utilizados pela editora com vistas a estetizar as práticas
de leitura do seu público.

NOTAS FINAIS 211


A semiótica discursiva, ao longo do processo da pesquisa, possibilitou que os
objetos de estudo fossem iluminados de uma maneira específica, auxiliando-nos na
decifração dessas manifestações complexas. Tomando os livros como totalidades de
sentido, a semiótica nos fez buscar compreender o que esses textos verbovisuais-
espaciais-táteis dizem e como dizem aquilo que dizem. Para chegar a esse resultado,
examinamos desde os formantes plásticos, as menores unidades de sentido de cada
obra, até retomar a totalidade da significação de cada publicação, da coleção e da
editora. Inseridos em uma rede de objetos significantes, esse livros mostraram se re-
lacionar com outros livros e, mais amplamente, com diversas produções culturais do
homem. Essa maneira de lidar com as manifestações significantes, relacionando os
formantes, os elementos imanentes ao texto e aquilo de externo que o próprio texto
nos leva a buscar, é a maneira como a própria semiótica se organiza em sua busca da
compreensão dos sentidos do mundo.
Uma pesquisa nunca está plenamente finalizada, pois sempre se apresentam
continuidades e desdobramentos possíveis, ainda mais se tomamos para análise um
objeto tão rico quanto a coleção aqui trabalhada. Embora diversos novos caminhos e
eixos de investigação tenham se mostrado ao longo do desenvolvimento da pesquisa,
acreditamos ter alcançado por fim uma caracterização identitária da Coleção Parti-
cular e da editora Cosac Naify. Por meio da construção de um efeito de sentido de
particular em suas publicações, a editora se constrói na relação com seus leitores.
Foi o próprio método semiótico que conduziu a análise em uma trajetória que,
da panorâmica geral e abrangente da editora e de sua Coleção Particular, esmiuçou
cada um de seus menores elementos constituintes. Na retomada do sentido de cada
livro, e da totalidade da coleção, tem-se a Cosac Naify como a editora que estimula
o gosto pelo gosto dos livros.

212 NOTAS FINAIS


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Diagramado nas tipografias Minion Pro 11,5/18pt (bloco de
texto), Aller Light 8/12pt (notas e legendas) e Abril Fatface
(numerais destacados). Ao mesclar tipografias diferentes
(uma fonte serifada de inspiração clássica, uma fonte sem
serifas e uma fonte serifada moderna display), o projeto
gráfico procura retomar a diversidade tipográfica presente
nas obras da Coleção Particular. Impresso em maio de 2014,
em papel couchê, na gráfica rápida Primeira Impressão.

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