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Joaquim CARDOZO DUARTE (Coord.

), Dicionário Crítico de Filosofia da


Religião. I: Obras, Lisboa, GEPOLIS – UCP. No prelo.

SANTO ANSELMO, Proslogion

Maria Leonor L. O. Xavier

Proslogion é o título da segunda obra escrita por Anselmo, como prior no


Mosteiro de Bec (Normandia), durante os anos de 1077 e 1078, a seguir à composição
do Monologion. O “Proémio” do Proslogion é significativo acerca da relação entre as
duas primeiras obras de Anselmo. Aí esclarece o autor que, concluído o Monologion,
verificou que este era composto pela concatenação de muitos argumentos
(considerans illud esse multorum concatenatione contextum argumentorum), e, desse
modo, por alguma indesejável complicação. Insatisfeito com a complexidade do
discurso teológico do Monologion, Anselmo começou a procurar um argumento
único, que não dependesse senão de si mesmo na sua capacidade probatória (coepi
mecum quaerere, si forte posse inveniri unum argumentum, quod nullo alio ad se
probandum quam se solo indigeret), isto é, um único argumento, que fosse
suficientemente autónomo ou perfeitamente auto-suficiente. E para demonstrar o quê?
Para demonstrar que Deus é ou existe verdadeiramente, que é o bem supremo e pleno,
do qual tudo depende em ser e bondade, e múltiplos outros conteúdos da fé em Deus
(et solum ad astruendum quia deus vere est, et quia est summum bonum nullo alio
indigens, et quo omnia indigent ut sint et ut bene sint, et quaecumque de divina
credimus substantia, sufficeret). Em suma, Anselmo procurava um argumento único a
favor da existência de Deus, que lhe permitisse deduzir o essencial da teologia
desenvolvida no Monologion. Há, assim, uma evidente continuidade entre o
Monologion e o Proslogion na consciência expressa do autor. Nessa linha de
continuidade, o Proslogion significa, porém, um esforço de simplificação, de redução
ao essencial e, por essa via, uma forma de aperfeiçoamento ou de apuramento da
teologia do Monologion.
A história dos títulos das duas obras, ainda segundo o testemunho do autor, no
“Proémio” do Proslogion, dá igualmente conta de certa evolução na continuidade
entre ambas. As duas obras receberam dois títulos primitivos, distintos daqueles pelos
quais se tornaram conhecidas: o Monologion recebera antes o título de Exemplum
meditandi de ratione fidei, ou seja, Exemplo de meditação sobre a razão da fé; o
Proslogion, por sua vez, recebera o título de Fides quaerens intellectum, ou seja, A fé
em busca da inteligência. Este, aliás, mais do que o título de uma obra particular de
Anselmo, tornou-se uma legenda caracterizadora de todo o seu pensamento
especulativo, bem como da filosofia escolástica posterior, de que ele é
reconhecidamente um antecipador proeminente, tendo merecido por isso o epíteto de
«Pai da Escolástica». Entretanto, cabe comparar entre si os dois títulos primitivos a
fim de neles advertir de uma inflexão da primeira para a segunda obra: de acordo com
o seu primeiro título, o Monologion é um exercício de meditação racional no domínio
da fé; o Proslogion, por sua vez e de acordo com o seu primeiro título, é uma busca,
um esforço para obter inteligência da fé. Parece, pois, haver um crescimento de
cautela e prudência, da primeira para a segunda obra, quanto ao alcance do intelecto
no domínio da fé. A segunda surge não só menos extensa como mais céptica do que a
primeira, acusando as dificuldades experimentadas no anterior exercício meditativo.
Os títulos definitivos das duas obras mantêm a sugestão desta inflexão no sentido de
um cepticismo crescente da primeira para a segunda. Por prescrição de Hugo,
arcebispo de Lyon, Anselmo devia associar o seu nome às duas obras, o que o levou a
abreviar os títulos das mesmas, valendo-se dos recursos da língua grega: a primeira

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obra recebeu então o título de Monologion, ou Soliloquium em versão latina, dando


sequência, de facto, a um solilóquio ou a um discurso solitário de Anselmo,
abandonado às suas próprias forças, isto é, às razões da sua inteligência, cultivada
sobretudo na influência de Agostinho; a segunda obra, por seu turno, recebeu o título
de Proslogion, ou Alloquium em versão latina, que significa uma tensão ou uma
tendência para o discurso, um esforço para dizer o inefável, e para inteligir o
supra-inteligível.
Na verdade, a consciência das dificuldades e dos limites do discurso teológico
ressalta mais dramaticamente no Proslogion do que no Monologion. Este primeiro
tratado de Anselmo era já pontuado por momentos de auto-crítica ao longo do seu
percurso meditativo, dando por fim lugar a uma reassunção da fé e das restantes
virtudes teologais na relação da alma com Deus. A razão não conseguira superar e
substituir a fé. Também o Proslogion é pontuado por momentos, não tanto de
auto-crítica, quanto de intensa emoção espiritual, em consonância com o alcance do
esforço teológico em curso. Logo a seguir ao “Proémio”, Anselmo inicia o Proslogion
com um capítulo de espiritualidade orante: exortando a mente ao despojamento
interior da turba tumultuosa de pensamentos e de preocupações redundantes
relativamente ao essencial, a contemplação de Deus; pedindo a Deus auxílio para
encontrá-lo; lamentando-se da condição decaída da natureza humana; confessando,
apesar disso, a sua fé na presença em si de uma imagem de Deus, e, por fim, o seu
desejo de inteligência da verdade de Deus. O cap. I abre assim o caminho da fé em
busca da inteligência. Esse caminho cumpre-se, ao longo dos caps. II-XIII, através de
uma teologia da existência e da essência do insuperável na ordem do pensável (id quo
maius cogitari nequit). Esta ideia de insuperável é a reelaboração anselmiana da
noção de Deus, que substitui, no Proslogion, a noção de essência suprema, que era
recorrente no Monologion. No cap. XIV, Anselmo faz um primeiro balanço do
caminho trilhado. É esse um momento, não de conclusões, mas de interrogações. São
as interrogações da insatisfação espiritual de Anselmo com a inteligência da
existência e da essência do insuperável na ordem do pensável: correspondia essa
inteligência à finalidade da busca encetada? Satisfazia essa inteligência o desejo de
verdade de Anselmo? Ainda não. Anselmo deseja mais. Essa inteligência não é uma
visão de Deus, tal como Deus é, mas é uma visão apenas até certo ponto ou de certo
modo (aliquatenus), isto é, relativamente a nós, mediante a ordem do pensável. Deus,
porém, está para além dessa ordem: é algo supra-pensável (quiddam maius quam
cogitari possit). Esta é a redefinição da noção de Deus, que se impõe a Anselmo no
cap. XV, e que introduz a teologia do inefável, de que se ocupam os caps. XV-XXI. O
cap. XXII retoma a teologia da essência e da existência do insuperável na ordem do
pensável, a propósito de Ex. 3, 14, e o cap. XXIII reitera com máxima concisão a
teologia da Trindade já analisada no Monologion. Os três capítulos finais,
XXIV-XXVI, voltam a constituir momentos de espiritualidade orante: exortando a
alma a elevar o seu intelecto para pensar a grandeza do bem criador, do qual
dependem todos os bens (cap. XXIV), e a alegrar-se nesse bem único e simples, no
qual estão todos os bens e que é todo o bem, não obstante a insuficiência do coração
todo e da alma toda para a dignidade dessa alegria (cap. XXV); declarando ter
encontrado uma alegria plena e até mais do que plena, mesmo que não seja ainda
aquela que nem olho viu, nem ouvido ouviu, nem sentiu o coração do homem (1 Cor.
2, 9); renovando, por último, o pedido de conhecimento e de amor a Deus, a fim de
alcançar aquela alegria plena, que anunciam as Escrituras (cap. XXVI). Nestes
capítulos finais, que abundam em ressonâncias bíblicas, Anselmo faz o balanço final
do seu esforço intelectual. De certo modo, Anselmo termina como começa, isto é,

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com textos de espiritualidade orante. No entanto, aquilo que é, no início, apenas a


confissão de um desejo – o desejo de conhecer a verdade de Deus através da
inteligência – torna-se, no fim, uma exortação – a exortação do intelecto a pensar a
grandeza de Deus. Esta exortação final significa, não que Deus seja algo ao alcance
do intelecto, o que a ponderação do cap. XIV desde logo desmente, mas que o esforço
intelectual do pensamento não é espiritualmente vão. Na verdade, o Proslogion
termina confirmando o valor espiritual do pensar teológico, mesmo que a acepção de
Deus ao nível da inteligência não seja o fim último da vida espiritual.
Considere-se agora o labor teológico de Anselmo nos capítulos do Proslogion,
através dos quais esta obra se tornou célebre: os caps. II-IV, nos quais se formula uma
teologia da existência do insuperável na ordem do pensável. Aí se encontra o famoso
argumento anselmiano a favor da existência de Deus, que, em virtude de constituir um
desafio perene ao pensamento especulativo, tem sido recorrentemente revisitado ao
longo da história da filosofia, conseguindo nunca perder actualidade e tornando-se
objecto de uma infindável bibliografia. Inúmeras são, pois, as versões interpretativas,
apologéticas e críticas, do argumento anselmiano do Proslogion: umas primando pela
fidelidade à letra do texto, outras visando captar sobretudo o espírito do texto; umas
confinando o argumento ao cap. II, outras estendendo-o ao cap. III ou admitindo mais
do que um argumento; umas pretendendo compreender o argumento no âmbito do
pensamento anselmiano, outras submetendo a compreensão do argumento a premissas
e pressupostos estranhos ao pensamento de Anselmo; umas tomando o argumento por
uma expressão de graça ou dom sobrenatural, outras entendendo o argumento apenas
como construção da razão natural; umas avaliando o valor teológico do argumento,
outras a validade lógica do mesmo. Umas e outras dependem, no entanto, de
pressupostos metafísicos, quer sejam quer não sejam partilhados por Anselmo. A
versão de análise, que se oferece a seguir, não pode escapar à relatividade da sua
condição interpretativa, pelo que assume desde logo duas linhas de orientação: por um
lado, a extensão do argumento ao cap. III, no qual se enuncia a conclusão definitiva, a
saber, que Deus existe tão verdadeira e necessariamente que nem sequer se pode
pensar que não exista; por outro lado, a compreensão do argumento dos caps. II-III,
como expressão da metafísica teológica de Anselmo, portanto, à luz de princípios
iniludivelmente metafísicos.
Retome-se, então, aquilo que Anselmo definira, no “Proémio”, como sendo o
propósito do Proslogion: a descoberta de um único argumento, perfeitamente
auto-suficiente na sua capacidade probatória, quanto à da existência de Deus e aos
atributos que definem a essência divina quer em si mesma quer em relação com o
mundo. O que pode ser esse único argumento completamente autónomo? Pode ser um
argumento a priori, como pode ser um argumento de premissa única, suficiente para
dar origem a uma cadeia de deduções. O próprio Anselmo nos conduz a aceitar esta
segunda hipótese, num outro texto, intitulado Quid ad haec respondeat editor ipsius
libelli (abreviadamente, Responsio editoris), complementar do Proslogion porque
escrito em defesa do Proslogion contra o texto da primeira crítica, a de Gaunilo. Com
efeito, nesse texto de resposta, Anselmo denuncia o facto de Gaunilo não ter
compreendido a sua noção de Deus, confundindo-a com a noção de algo maior do que
todas as coisas que existem (aliquid maius omnibus quae sunt ou, sucintamente,
omnibus maius), pois esta noção gauniliana de um ser supremo não se basta a si
mesma, antes requer outros argumentos (como os do Monologion, caps. I-IV), ao
contrário, segundo Anselmo, da noção de algo maior do que o qual nada possa ser
pensado (quo maius cogitari non possit). É, por conseguinte, esta noção de Deus que
Anselmo toma por único argumento auto-suficiente. Bastará, então, compreender tal

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noção de Deus para reconhecer que ela entra em contradição com a hipótese de
negação da existência de Deus. A compreensão daquela noção descobre que esta
hipótese é racionalmente intolerável. A contradição entre a noção anselmiana de Deus
e a negação da existência de Deus não se torna, porém, evidente senão mediante a
consideração de dois princípios metafísicos, cuja intervenção se acusa nos caps. II-III
do Proslogion. Sem esses princípios, não aparece a contradição, que obriga
logicamente a concluir que Deus existe necessariamente. Esses princípios devem pois
integrar a compreensão da noção anselmiana de Deus e, nessa medida, podem ser
tomados por princípios do argumento anselmiano. A compreensão deste argumento
não pode, portanto, deixar de contemplar, através da análise, quer a noção anselmiana
de Deus quer os princípios que com ela são estruturalmente solidários.
A noção de Deus, que Anselmo toma pelo seu argumento único, começa por
ser enunciada no início do cap. II, do seguinte modo: «E nós cremos que tu és algo
maior do que o qual nada possa ser pensado.» (Et quidem credimus te esse aliquid quo
nihil maius cogitari possit). A expressão «algo maior do que o qual nada possa ser
pensado» (aliquid quo nihil maius cogitari possit) é o nome da noção anselmiana de
Deus, no Proslogion, pelo menos, ao longo dos caps. II-XIII, pelo que pode ser
abreviadamente referido como o nome divino do Proslogion. Trata-se de um nome
perifrástico, cuja extensão causa perplexidade, dada a concisão da escrita de Anselmo.
Não poderia o mesmo ser dito através de uma expressão mais curta? Se pudesse, não é
de duvidar de que Anselmo teria conseguido compor um nome mais conciso. Que
noção ou ideia de Deus é então essa, que o nome divino do Proslogion significa e que
não poderia ser dita de outro modo? Não terá sido fácil pensar essa ideia, atendendo
de novo ao testemunho do “Proémio”, no qual o autor narra o drama do pensamento,
que conduziu à descoberta do seu argumento único: terá sido um processo
contraditório, de luta interior, oscilando entre o optimismo e o pessimismo, a
perseverança na busca e o desespero de não encontrar, e quanto maior era o desespero
tanto maior era a vontade de desistir da busca, mas quanto maior era a vontade de
desistir, tanto mais impertinentemente ocorria ao pensamento o intento dessa busca,
até que um dia, numa culminância do conflito interior, Anselmo diz ter-lhe sido
oferecido o que procurava (Cum igitur quadam die vehementer eius importunitati
resistendo fatigerer, in ipso cogitationum conflictu sic se obtulit quod desperaveram,
ut studiose cogitationem ampecterer, quam sollicitus repellebam). A ideia de Deus,
que constitui o argumento único do Proslogion, parece assim surgir, não tanto em
resultado do esforço intelectual de Anselmo, quanto em virtude de um dom que vem
surpreender esse esforço já exausto e demissionário. A narração anselmiana deste
processo dramático do pensamento nutre por certo a tese, partilhada por muitos, de
que a ideia de Deus, expressa pelo nome divino do Proslogion, é uma graça divina.
Meandrosos são os processos do pensar; misteriosos são, por vezes, os seus sucessos.
Seja como for, há aspectos de construção racional, susceptíveis de análise, na noção
anselmiana de Deus, que vigora ao longo dos caps. II-XIII de Proslogion. Deve
reconhecer-se, antes de mais, que o nome perifrástico de Deus «algo maior do que o
qual nada possa ser pensado» (aliquid quo nihil maius cogitari possit ou, na forma
mais abreviada, id quo maius cogitari nequit) vem substituir, no Proslogion, o
relativo «supremo» (summum), usado abundantemente, no Monologion, na
composição de nomes divinos. Na verdade, Anselmo consegue evitar, no Proslogion,
o uso do relativo «supremo», sendo, desse modo, consequente com a crítica desse
mesmo relativo, como atributo divino, efectuada no Monologion. No cap. XV deste
tratado, Anselmo averiguara se a noção de supremo pode ou não ser considerada um
atributo divino. Sê-lo-ia, se satisfizesse a regra de selecção dos atributos divinos,

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segundo a qual só pode atribuído à essência de Deus, aquilo que é omnimodamente


melhor ser do que não ser, como é o caso de todas as qualidades de ordem de
perfeição superior. Tal não é, porém, o caso do relativo supremo: para a essência
divina, cuja grandeza própria não depende de relação alguma de supremacia, não é
melhor nem pior, mas é indiferente à sua essencial grandeza ser ou não ser suprema.
Anselmo não esqueceu, no Proslogion, esta lição do Monologion. Ele devia, assim,
encontrar uma noção de Deus, sem contar com a relação de supremacia. Encontrou
uma noção de insuperável, que abstrai da relação de supremacia, para negar toda a
relação a algum termo superior. De facto, o nome divino do Proslogion (caps. II-XIII)
é o nome de um insuperável: o insuperável na ordem do pensável. Enquanto nome de
um insuperável, tal nome não diz relação alguma de supremacia, pelo que se habilita a
dizer a essência divina. Enquanto nome do insuperável na ordem do pensável, tal
nome estabelece a condição sob a qual Deus é pensável, a condição de não ser
superado por algo maior. Esta condição não significa, porém, uma interdição de
pensar algo maior do que Deus, mas antes uma advertência de que, no caso de se
pensar algo maior do que Deus, não se pensa Deus senão como um deus menor, que
não pode ser Deus. Na medida em que comporta esta advertência, a noção anselmiana
de insuperável na ordem do pensável pode ser pertinentemente tomada por uma regra
de pensamento sobre Deus.
Entretanto, nos caps. II-III do Proslogion, a noção anselmiana de insuperável
na ordem do pensável desempenha a função de argumento único a favor da existência
de Deus, mas não sem o concurso de dois princípios da ordem do pensável, relativos à
existência. É claro que a noção anselmiana de algo maior do que o qual nada possa ser
pensado é uma noção elaborada na ordem do pensável, que é uma ordem de maior e
de menor, portanto, uma ordem gradativa, na qual Deus não é pensável senão no grau
insuperável. Representativos dessa mesma ordem, são os dois princípios do
argumento anselmiano, que são, por isso mesmo, fundamentalmente solidários com a
noção de insuperável na ordem do pensável. Com efeito, esta noção não entra em
contradição com a hipótese do insipiente, isto é, com a hipótese de negação da
existência de Deus, senão mediante a intervenção de tais princípios, que são
princípios de ordem do ser ou da existência. O primeiro dos dois princípios postula
que ser ou existir no intelecto (in intellectu) e na realidade (in re) é mais do que ser ou
existir apenas no intelecto. Trata-se de um princípio de ordem de duas posições do ser
ou da existência, no intelecto e na realidade, que estabelece a superioridade da dupla
posição do ser ou da existência no intelecto e na realidade à posição do ser ou da
existência apenas no intelecto. Este princípio não é explicitamente enunciado por
Anselmo, mas intervém, no cap. II do Proslogion, sobre a hipótese de ser ou existir
apenas no intelecto, o insuperável na ordem do pensável: se este insuperável existe só
no intelecto, então é pensável que o mesmo exista também na realidade, o que é maior
(Si enim [id quo maius cogitari nequit] in solo intellectu est, potest cogitari esse et in
re, quod maius est). À luz do princípio enunciado, a hipótese desse insuperável existir
apenas no intelecto é contraditória com a própria noção de insuperável na ordem do
pensável: este não seria de facto insuperável, mas seria superável na ordem do
pensável, caso existisse apenas no intelecto. O insuperável na ordem do pensável não
pode pois existir no intelecto sem existir também na realidade. Deus não é pensável
como insuperável na ordem do pensável senão como existente na realidade: esta é a
conclusão do cap. II (Existit ergo procul dubio aliquid quo maius cogitari non valet,
et in intellectu et in re). Esta não é, porém, a conclusão definitiva do argumento
anselmiano. Este aprofunda-se ainda no cap. III, para concluir que Deus não é
pensável como insuperável na ordem do pensável senão existindo de modo que a

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negação da sua existência seja impensável; o insuperável na ordem do pensável não


pode existir senão de modo que a sua inexistência seja impensável: esta é a conclusão
efectiva do argumento no cap. III (Sic ergo vere est aliquid quo maius cogitari non
potest, ut nec cogitari possit non esse). Ora, esta conclusão, que afirma a existência
absolutamente necessária de Deus, não se obtém senão mediante a intervenção de um
outro princípio, o segundo princípio do argumento anselmiano. Este princípio postula
que ser ou existir, de modo que seja impensável não ser ou não existir, é mais do que
ser ou existir de modo que seja pensável não ser ou não existir. Trata-se de um
princípio de ordem entre duas disposições do ser ou da existência, a necessidade
absoluta e a contingência relativa, que estabelece a superioridade da existência
absolutamente necessária à existência relativamente contingente. Este princípio
também não é explicitamente formulado por Anselmo, mas opera no cap. III, sobre a
hipótese de ser pensada a negação da existência de Deus, como insuperável na ordem
do pensável. À luz do princípio enunciado, essa hipótese revela ser contraditória com
a própria noção de insuperável na ordem do pensável, uma vez que admitir, mesmo
que por hipótese, a inexistência deste insuperável é pensá-lo como superável por algo
cuja inexistência seja impensável (Quare si id quo maius nequit cogitari, potest
cogitari non esse: id ipsum quo maius cogitari nequit, non est id quo maius cogitari
nequit; quod convenire non potest). Deus não é, pois, pensável como insuperável na
ordem do pensável senão na condição de existir de modo absolutamente necessário.
Deus, como insuperável na ordem do pensável, existe com absoluta necessidade: esta
é a conclusão do argumento anselmiano exposto nos caps. II-III, do Proslogion. Os
princípios destacados, que conduzem ao apuramento de tal conclusão, são pelo
respectivo teor, princípios de natureza metafísica, tal como a noção anselmiana de
insuperável na ordem do pensável. Esta noção é estruturalmente solidária com aqueles
princípios no âmbito de uma mesma metafísica. O argumento do Proslogion (caps.
II-III), ou seja, a noção de insuperável na ordem do pensável com os princípios que a
determinam na ordem do ser ou da existência, é, portanto, um desenvolvimento de
metafísica, da metafísica de Anselmo, que se torna explícita, sobretudo, por exigência
e motivação teológica. É o valor da metafísica anselmiana que está em causa na
avaliação do argumento do Proslogion.
A teologia da existência do insuperável na ordem do pensável, que se elabora
nos caps. II-III, estende-se ainda ao cap. IV, onde Anselmo se confronta com a
questão de saber como é sequer pensável a hipótese do insipiente, isto é, a
possibilidade de negação da existência de Deus (Sl. 13, 1 e 52, 1), dado que esta
possibilidade é contraditória com a noção de Deus, como insuperável na ordem do
pensável. Anselmo responde concedendo que há duas acepções de «pensar»
(cogitare) ou «dizer no coração» (dicere in corde): uma comporta compreensão da
natureza das coisas que as palavras significam; outra não. Só nesta acepção, isto é,
sem compreensão da noção de Deus, como insuperável na ordem do pensável, pode o
insipiente pensar ou dizer no seu coração que Deus não existe.
Ao longo dos caps. V-XIII, desenvolve-se a teologia da essência do
insuperável na ordem do pensável. O cap. V reafirma a regra de selecção dos atributos
divinos, que fora enunciada no cap. XV do Monologion, segundo a qual só pode ser
atribuído a Deus aquilo que é melhor ser do que não ser, como sejam qualidades de
ordem de perfeição superior. Nos caps. VI-XI, Anselmo empenha-se em eliminar do
domínio dos atributos divinos, possíveis inconsistências: entre a incorporeidade divina
e o atributo da sensibilidade, conotável, em Deus, com a capacidade de conhecer (cap.
VI); entre o atributo de omnipotência e a impotência para o mal, que não é
propriamente uma impotência tal como não é uma potência aquilo que habitual mas

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impropriamente se diz ser o poder de fazer o mal (cap. VII); entre os atributos de
misericórdia e de impassibilidade, este devido a Deus em si mesmo e aquele em
função da relação com o mundo (cap. VIII); finalmente, entre os atributos de justiça e
de misericórdia, porventura a mais insolúvel discórdia entre atributos respeitantes à
providência divina, que Anselmo procura superar, ordenando a misericórdia à justiça
e esta, à suprema bondade (caps. IX-XI). O cap. XII esclarece que os atributos divinos
convêm à essência divina por si mesma, não por alguma causa extrínseca, tal como
havia já sido advertido no cap. XVI do Monologion. O cap. XIII, por sua vez,
sublinha a diferença entre o espírito incriado e o espírito criado, quanto à
incircunscrição espácio-temporal, na continuidade da teologia do Espírito, esboçada
no Monologion (caps. XXVII-XXVIII). Deste modo, a teologia do Proslogion
confirma e continua, para a essência do insuperável na ordem do pensável, a teologia
do Monologion, acerca da essência suprema e da sua acepção como Espírito.
Após o referido balanço crítico do cap. XIV, Anselmo não desiste do discurso
teológico, mas inflecte-o no sentido de uma teologia do inefável: renomeando Deus,
como «algo maior do que possa ser pensado» (quiddam maius quam cogitari possit),
isto é, redefinindo a noção de Deus, como algo supra-pensável (cap. XV);
reconhecendo a inacessibilidade de Deus ao seu intelecto (cap. XVI); e realçando
aspectos da transcendência divina, como a presença inefável de qualidades sensíveis
em Deus (cap. XVII), ou características únicas da eternidade de Deus (caps.
XVIII-XXI).
Um último destaque para o cap. XXII, no qual se encontra o contributo de
Anselmo para a tradição da teologia de Ex. 3, 14: «Eu sou aquele que sou». Na
interpretação anselmiana, este versículo é analisado em duas partes: por um lado,
Deus é aquilo que é (quod est), ou seja, é a essência simples, total e sempiternamente
idêntica a si mesma (Tu vero es quod es, quia quidquid aliquando aut aliquo modo es,
hoc totus et semper es); por outro lado, Deus é aquele que é (qui est), ou seja, o ente
que existe própria e simplesmente, porque tão indefectivelmente que é impensável
que não exista em algum momento (Et tu es qui proprie et simpliciter es, quia nec
habes fuisse aut futurum esse, sed tantum praesens esse, nec potes cogitari aliquando
non esse). Esta análise do versículo bíblico numa dupla acepção de Deus, como
essência e como ente, ou existente, reflecte naturalmente a teologia da existência e da
essência do insuperável na ordem do pensável, desenvolvida antes no Proslogion.
Convém, no entanto, não esquecer a sugestiva analogia que Anselmo propusera, no
Monologion (cap. VI), para conceber a real unidade de essência-ser-ente, ou de
essência-existência-existente, em Deus inclusive: tal como são entre si a luz, o luzir e
o luzente, assim também são entre si a essência, o ser e o ente, ou a essência, a
existência e o existente. Deus é a essência e o ente, a cuja simplicidade e eternidade
convém uma existência absolutamente necessária, de modo que a sua negação é
impensável. Tanto a teologia da existência e da essência do insuperável na ordem do
pensável, como a versão anselmiana de Ex. 3, 14, no Proslogion, aplicam a metafísica
da essência, da existência e do ente, que se adivinha já no Monologion. Na obra, em
que Anselmo dá expressão à fé em busca da inteligência, estará em causa, não a sua
fé, mas a sua metafísica. Por isso, o Proslogion nunca terá deixado de constituir,
depois de Anselmo, um legado não menos interpelativo para filósofos do que para
teólogos.

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