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Joaquim CARDOZO DUARTE (Coord.), Dicionário Crítico de Filosofia da
Religião. I: Obras, Lisboa, GEPOLIS – UCP. No prelo.
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Joaquim CARDOZO DUARTE (Coord.), Dicionário Crítico de Filosofia da
Religião. I: Obras, Lisboa, GEPOLIS – UCP. No prelo.
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Joaquim CARDOZO DUARTE (Coord.), Dicionário Crítico de Filosofia da
Religião. I: Obras, Lisboa, GEPOLIS – UCP. No prelo.
noção de Deus para reconhecer que ela entra em contradição com a hipótese de
negação da existência de Deus. A compreensão daquela noção descobre que esta
hipótese é racionalmente intolerável. A contradição entre a noção anselmiana de Deus
e a negação da existência de Deus não se torna, porém, evidente senão mediante a
consideração de dois princípios metafísicos, cuja intervenção se acusa nos caps. II-III
do Proslogion. Sem esses princípios, não aparece a contradição, que obriga
logicamente a concluir que Deus existe necessariamente. Esses princípios devem pois
integrar a compreensão da noção anselmiana de Deus e, nessa medida, podem ser
tomados por princípios do argumento anselmiano. A compreensão deste argumento
não pode, portanto, deixar de contemplar, através da análise, quer a noção anselmiana
de Deus quer os princípios que com ela são estruturalmente solidários.
A noção de Deus, que Anselmo toma pelo seu argumento único, começa por
ser enunciada no início do cap. II, do seguinte modo: «E nós cremos que tu és algo
maior do que o qual nada possa ser pensado.» (Et quidem credimus te esse aliquid quo
nihil maius cogitari possit). A expressão «algo maior do que o qual nada possa ser
pensado» (aliquid quo nihil maius cogitari possit) é o nome da noção anselmiana de
Deus, no Proslogion, pelo menos, ao longo dos caps. II-XIII, pelo que pode ser
abreviadamente referido como o nome divino do Proslogion. Trata-se de um nome
perifrástico, cuja extensão causa perplexidade, dada a concisão da escrita de Anselmo.
Não poderia o mesmo ser dito através de uma expressão mais curta? Se pudesse, não é
de duvidar de que Anselmo teria conseguido compor um nome mais conciso. Que
noção ou ideia de Deus é então essa, que o nome divino do Proslogion significa e que
não poderia ser dita de outro modo? Não terá sido fácil pensar essa ideia, atendendo
de novo ao testemunho do “Proémio”, no qual o autor narra o drama do pensamento,
que conduziu à descoberta do seu argumento único: terá sido um processo
contraditório, de luta interior, oscilando entre o optimismo e o pessimismo, a
perseverança na busca e o desespero de não encontrar, e quanto maior era o desespero
tanto maior era a vontade de desistir da busca, mas quanto maior era a vontade de
desistir, tanto mais impertinentemente ocorria ao pensamento o intento dessa busca,
até que um dia, numa culminância do conflito interior, Anselmo diz ter-lhe sido
oferecido o que procurava (Cum igitur quadam die vehementer eius importunitati
resistendo fatigerer, in ipso cogitationum conflictu sic se obtulit quod desperaveram,
ut studiose cogitationem ampecterer, quam sollicitus repellebam). A ideia de Deus,
que constitui o argumento único do Proslogion, parece assim surgir, não tanto em
resultado do esforço intelectual de Anselmo, quanto em virtude de um dom que vem
surpreender esse esforço já exausto e demissionário. A narração anselmiana deste
processo dramático do pensamento nutre por certo a tese, partilhada por muitos, de
que a ideia de Deus, expressa pelo nome divino do Proslogion, é uma graça divina.
Meandrosos são os processos do pensar; misteriosos são, por vezes, os seus sucessos.
Seja como for, há aspectos de construção racional, susceptíveis de análise, na noção
anselmiana de Deus, que vigora ao longo dos caps. II-XIII de Proslogion. Deve
reconhecer-se, antes de mais, que o nome perifrástico de Deus «algo maior do que o
qual nada possa ser pensado» (aliquid quo nihil maius cogitari possit ou, na forma
mais abreviada, id quo maius cogitari nequit) vem substituir, no Proslogion, o
relativo «supremo» (summum), usado abundantemente, no Monologion, na
composição de nomes divinos. Na verdade, Anselmo consegue evitar, no Proslogion,
o uso do relativo «supremo», sendo, desse modo, consequente com a crítica desse
mesmo relativo, como atributo divino, efectuada no Monologion. No cap. XV deste
tratado, Anselmo averiguara se a noção de supremo pode ou não ser considerada um
atributo divino. Sê-lo-ia, se satisfizesse a regra de selecção dos atributos divinos,
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Joaquim CARDOZO DUARTE (Coord.), Dicionário Crítico de Filosofia da
Religião. I: Obras, Lisboa, GEPOLIS – UCP. No prelo.
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Joaquim CARDOZO DUARTE (Coord.), Dicionário Crítico de Filosofia da
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impropriamente se diz ser o poder de fazer o mal (cap. VII); entre os atributos de
misericórdia e de impassibilidade, este devido a Deus em si mesmo e aquele em
função da relação com o mundo (cap. VIII); finalmente, entre os atributos de justiça e
de misericórdia, porventura a mais insolúvel discórdia entre atributos respeitantes à
providência divina, que Anselmo procura superar, ordenando a misericórdia à justiça
e esta, à suprema bondade (caps. IX-XI). O cap. XII esclarece que os atributos divinos
convêm à essência divina por si mesma, não por alguma causa extrínseca, tal como
havia já sido advertido no cap. XVI do Monologion. O cap. XIII, por sua vez,
sublinha a diferença entre o espírito incriado e o espírito criado, quanto à
incircunscrição espácio-temporal, na continuidade da teologia do Espírito, esboçada
no Monologion (caps. XXVII-XXVIII). Deste modo, a teologia do Proslogion
confirma e continua, para a essência do insuperável na ordem do pensável, a teologia
do Monologion, acerca da essência suprema e da sua acepção como Espírito.
Após o referido balanço crítico do cap. XIV, Anselmo não desiste do discurso
teológico, mas inflecte-o no sentido de uma teologia do inefável: renomeando Deus,
como «algo maior do que possa ser pensado» (quiddam maius quam cogitari possit),
isto é, redefinindo a noção de Deus, como algo supra-pensável (cap. XV);
reconhecendo a inacessibilidade de Deus ao seu intelecto (cap. XVI); e realçando
aspectos da transcendência divina, como a presença inefável de qualidades sensíveis
em Deus (cap. XVII), ou características únicas da eternidade de Deus (caps.
XVIII-XXI).
Um último destaque para o cap. XXII, no qual se encontra o contributo de
Anselmo para a tradição da teologia de Ex. 3, 14: «Eu sou aquele que sou». Na
interpretação anselmiana, este versículo é analisado em duas partes: por um lado,
Deus é aquilo que é (quod est), ou seja, é a essência simples, total e sempiternamente
idêntica a si mesma (Tu vero es quod es, quia quidquid aliquando aut aliquo modo es,
hoc totus et semper es); por outro lado, Deus é aquele que é (qui est), ou seja, o ente
que existe própria e simplesmente, porque tão indefectivelmente que é impensável
que não exista em algum momento (Et tu es qui proprie et simpliciter es, quia nec
habes fuisse aut futurum esse, sed tantum praesens esse, nec potes cogitari aliquando
non esse). Esta análise do versículo bíblico numa dupla acepção de Deus, como
essência e como ente, ou existente, reflecte naturalmente a teologia da existência e da
essência do insuperável na ordem do pensável, desenvolvida antes no Proslogion.
Convém, no entanto, não esquecer a sugestiva analogia que Anselmo propusera, no
Monologion (cap. VI), para conceber a real unidade de essência-ser-ente, ou de
essência-existência-existente, em Deus inclusive: tal como são entre si a luz, o luzir e
o luzente, assim também são entre si a essência, o ser e o ente, ou a essência, a
existência e o existente. Deus é a essência e o ente, a cuja simplicidade e eternidade
convém uma existência absolutamente necessária, de modo que a sua negação é
impensável. Tanto a teologia da existência e da essência do insuperável na ordem do
pensável, como a versão anselmiana de Ex. 3, 14, no Proslogion, aplicam a metafísica
da essência, da existência e do ente, que se adivinha já no Monologion. Na obra, em
que Anselmo dá expressão à fé em busca da inteligência, estará em causa, não a sua
fé, mas a sua metafísica. Por isso, o Proslogion nunca terá deixado de constituir,
depois de Anselmo, um legado não menos interpelativo para filósofos do que para
teólogos.