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GUARULHOS
2011
SHEILA MENDES CAVALCANTE
GUARULHOS
2011
2
MENDES, Sheila.
Adequação e rejudaização: A formação das comunidades da
diáspora judaico-portuguesa através do exemplo de Baiona. Século XVII /
Sheila Mendes – Guarulhos, 2011.
75 páginas
Trabalho de conclusão de curso (graduação em História) – Universidade
Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2011.
Orientador: Prof. Dr. Bruno Feitler
Titulo em Inglês: Adequacy and rejudaizing: The formation of
communities Portuguese-Jewish diaspora through the example of Bayonne.
1. Diáspora sefaradita - Península Ibérica - História 2. Criptojudeus-
França, século XVII 3. Judeus novos- Amsterdã, século XVII I. Titulo
3
SHEILA MENDES CAVALCANTE
Banca Examinadora:
_______________________________________
Prof. Dr. Bruno Feitler (orientador)
_______________________________________
Profª. Drª. Rossana Alves Baptista Pinheiro
_______________________________________
Prof. Dr. André Roberto de Arruda Machado
4
"Nem Cristãos exatamente,
1
- Do inglês: "Neither Christians quite nor quite idolaters, / Using our crosses and our images, / We
are trying to build the new life / Whose name is not yet known."
5
Agradecimentos
6
Resumo:
Abstract:
Key words: Sephardic Diaspora; Moisés Rafael de Aguilar; Missionary; Dutch Jews.
7
Conteúdo
Introdução .............................................................................................................................................. 9
a) Análise da Carta......................................................................................................................... 25
Anexo 1 ................................................................................................................................................ 50
8
Introdução
2
Sefaradita e sefaradim ou sefarditas ou sefardins: é o termo usado para se referir aos judeus
originários da península ibérica, de alguns países do mediterrâneo e também do sudoeste da França.
Enquanto Asquenazes ou asquenazitas é o utilizado para tratar os judeus da Europa central e
Oriental.
3
- Veja Carsten L. Wilke, História dos judeus portugueses. Lisboa: Edições 70, 2009. pp. 56-70.
4
- Bruno Feitler. ““Gentes” da Nação: judeus e cristãos-novos no Brasil holandês”. In K. Grinberg
(org). Os judeus no Brasil: inquisição, imigração e identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
2005. pp. 66-85.
9
“essa experiência brasileira, pode, quem sabe, ser comparada àquela de
grupos de “gentes da Nação” que se fixaram na França, na região de
5
Bayonne/ Bourdeaux e em Rouen” .
5
- Bruno Feitler, “Gentes” da Nação, op. cit., p. 83.
10
1 - Identidade da Gente da Nação – Historiografia
a) As redes de solidariedade
6
- Yosef Kaplan. Judíos nuevos en Amsterdam: estudio sobre la historia social y intelectual del
judaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gadisa Editorial, 1996. pp. 56.
11
apesar da repressão inquisitorial7. Julio Caro Baroja define como “la razón por la
cual gente tan perseguida y abatida pudiera sobrevivir”8.
A historiografia de modo geral, tanto Nahon, como Caro Baroja, Kaplan,
Vainfas, Feitler, Graizbord e outros, nos demonstram em seus estudos que os
membros da diáspora sefaradita mantinham entre si dinâmicas relações
econômicas, sociais e culturais, sendo que essas relações estavam marcadas por
uma constante mobilidade, tanto no âmbito geográfico, como no cultural e religioso.
As relações sociais entre os sefaraditas, ou redes de solidariedade
geográfica, uniam os membros da Nação. São essas redes que podem explicar
como se deu a sobrevivência das práticas e crenças desses cristãos-novos durante
todo o tempo em que durou a repressão inquisitorial, pois com essas redes as
comunidades não se sentiam isoladas, mas faziam parte de uma comunidade de
âmbito internacional, cada comunidade com sua especificidade devido as suas
organizações internas e às pressões que sofriam do mundo exterior9.
As redes de solidariedade geográfica, aqui, tendo como ponto de partida as
comunidades francesas, podem ser divididas em três níveis: o familiar, o institucional
e o cultural. Convém atentar que quando falamos nestas redes, abarcamos somente
as que ligavam os membros da diáspora sefaradita, que podemos distinguir do ponto
de vista da prática religiosa em três grupos: 1) o dos expulsos da Espanha em 1492,
que migraram para o Império Otomano e Marrocos e permaneceram praticando o
judaísmo; 2) os descendentes dos judeus portugueses convertidos a força em 1497,
que viveram várias gerações como católicos e fundaram no século XVII as
comunidades de Hamburgo, Amsterdã, Londres, etc., e 3) as comunidades que
viviam na França, onde praticavam um catolicismo de fachada.
As relações no nível familiar ocorriam entre parentes e pessoas próximas
espalhadas nas diversas localidades onde habitavam os membros da Nação, seja
na península ibérica, nas Américas ou França, sendo que o apoio financeiro era o
7
- Gérard Nahon. “Los cristianos nuevos españoles y portugueses en la francia del antiguo régimen:
solidariedades geográficas”, pp. 589.
8
- Julio Caro Baroja. Los judíos en la España moderna y contemporánea. España, Ediciones Istmo,
1978. Tomo I. p. 489.
9
- Gérard Nahon. Métropoles et périphéries sefarades d‟occident. Paris: Les éditions du cerf, 1993.
pp. 71-94. e “Los cristianos nuevos españoles y portugueses en la francia del antiguo régimen:
solidariedades geográficas”, pp. 589-606.
12
principal cimento nestes casos, tendo por objetivo a sustentação dos seus parentes
e também a educação judaica dos jovens.
O nível institucional abarca as instituições que compõem as comunidades da
diáspora sefaradita. Dentre as instituições podemos citar a associação de Dotar
órfãs e donzelas pobres, fundada em 1615, a confraria de gestão de fundo para a
Terra Santa, que administrava os fundos destinados a Jerusalém, Bikkur Holim
(visitar doentes) encarregada de prestar assistência aos pobres e doentes, bem
como custear o enterro à moda judaica, dentre outras10.
O nível cultural abrange os elementos da religiosidade, a circulação livros,
tratados, trocas de correspondências, etc. Segundo Nahon é um espaço de
“reprogramación religiosa de los Cristianos Nuevos educados en el catolicismo em
España o Portugal y vueltos al judaísmo em Francia”11.
Essas redes de solidariedade deram sustentabilidade para a sobrevivência
das práticas religiosas dos membros da diáspora, e estes níveis cultural, familiar e
institucional se entrelaçam, e geralmente seguem as mesmas rotas das relações
comerciais entre os membros da Nação.
10
- VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: Judeus portugueses no Brasil Holandês. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010. pp.21-84.
11
- Nahon, “Los cristianos nuevos españoles y portugueses”, op. cit. p. 596.
13
A diversidade de significados e indivíduos que compõe essa Nação levou o
historiador Bruno Feitler a utilizar o plural do termo, “Gentes da Nação”. Para
entender o uso desse plural, ele nos demonstra a variedade das identidades dos
membros da Nação que residiam no Pernambuco holandês, conforme se observa:
“os judeus-novos chegados da Holanda e que praticavam o judaísmo rabínico, aqui
entraram em contato com uma grande quantidade de cristãos-novos, que frente à
relativa liberdade religiosa que se tinha instaurado em Pernambuco à época,
optaram, alguns, por retornar abertamente ao judaísmo, enquanto outros
permaneceram fora da comunidade oficial sem, contudo, abandonar sua crença.
Outros ainda, nem judaizantes, tampouco católicos fervorosos, guardaram suas
distâncias. Esta ambigüidade das práticas judaicas é que nos explica o plural do
termo “„gentes‟ da Nação”12.
Com essa pequena explanação, percebemos que pertencer à Nação
engloba uma gama de indivíduos e estilos de vida. Tal fato é perceptível no
documento que foi objeto deste trabalho, pois mesmo o rabino Aguilar, execrando as
atitudes e apontando todos os erros cometidos pelos residentes de Baiona, via
esses indivíduos como pertencentes à Nação. E por pertencerem à Nação, ainda
segundo o rabino Aguilar, é dever de todo e qualquer descendente do povo de
Israel, principalmente se for conhecedor da Lei de Moisés, ajudar-se mutuamente e
ensinar as práticas religiosas corretas, senão incorreriam no mesmo pecado
daqueles que praticavam erroneamente os ritos judaicos.
Esta alcunha de pertencer à Nação estava de certa forma inserida no
contexto de fugas em que foram postos os cristãos-novos portugueses e espanhóis.
Assim, ao se instalarem em alguma localidade fora dos impérios ibéricos, essas
pessoas eram diferenciadas dos demais membros da comunidade. Em Baiona, por
exemplo, viviam no bairro de Saint-Esprit e os franceses os viam como os “outros, os
diferenciados” e esta visão externa favorecia a segregação e a identificação deles
como pertencentes a um grupo específico.13
O caminho para a assunção de diversas identidades se inicia no momento
da assinatura do édito de expulsão geral dos judeus espanhóis pelos reis católicos
12
- Bruno Feitler, “Gentes” da Nação, op. cit., pp. 67-68.
13
- David L. Graizbord. Souls in Dispute: converso identities in Iberia and the Jewish diaspora, 1580-
1700. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2004. pp 128-136.
14
em 1492, momento em que muitos desses judeus emigraram para Portugal. Por
necessidades políticas e econômicas, o rei de Portugal, no ano de 1497, forçou a
conversão ao cristianismo de todos os judeus que residiam em seu reino. Nesse
contexto, vem à tona o aspecto religioso da questão, sendo a identidade religiosa o
ponto central dessa multiplicidade identitária.
O retorno ao judaísmo era um dos rasgos que mais se expandia na
mudança ou adequação dessa identidade, pois, quando estavam em Portugal ou
Espanha, eram vistos como cristãos-novos, e ao saírem destas terras, seja para
fugir das garras da Inquisição, seja por questões econômicas ou pela questão
religiosa, isto é o regresso à religião de seus ancestrais, esses judeus também se
deparavam com práticas e situações religiosas não esperadas.
O regresso ao judaísmo rabínico nem sempre era o esperado. Como
exemplo, podemos citar o caso vivido pelos recém-chegados à comunidade judaico-
portuguesa de Amsterdã, denominada Talmud Torá, que algumas vezes não se
adaptavam ao judaísmo normativo, que era bastante diferente do que esses recém-
chegados estavam acostumados a proferir. Um dos motivos desse diferenciamento
do judaísmo explica-se pelo fato de nas terras sob a dominação ibérica o judaísmo
ser proibido. Assim, os ensinamentos judaicos foram sendo transmitidos, sobretudo
oralmente ao longo do tempo, o que acarretou perdas, adaptações e recriações das
práticas tradicionais.
Segundo Ronaldo Vainfas, os principais aspectos dessa transformação
identitária, que ocorreu principalmente em Amsterdã, se deram por “los más
diversos aspectos de una auténtica metamorfosis que caracterizó el crossing de los
cristianos nuevos a la condición de judíos, incluyendo la circuncisión, sea de adultos,
sea de niños, el cambio de nombres, el aprendizaje de algunas oraciones, a veces
del hebraico, la observancia de los ritos principales del judaísmo que la mayoría de
ellos desconocía.”14
Ao se depararem com essa diferença entre a prática do judaísmo rabínico de
Amsterdã e o que eles viam como judaísmo, alguns dos novos membros que já se
encontravam repletos de dúvidas quanto à prática do judaísmo, entravam em
14
- VAINFAS, Ronaldo. “La diáspora judia entre Amsterdam y el Brasil holandês.” Revista Historia y
Sociedad, edición nº 12. pp. 3. Apud: Mirian Bodain. Hebrews of the Portuguese Nation: conversos
and community in early modern Amsterdam. EUA, Indianapolis: Indiana University Press, 1999.
15
grandes controvérsias tanto no âmbito pessoal quanto ao seu posicionamento
perante as exigências da doutrina judaica, como foi o caso de Uriel da Costa 15, Juan
Prado16, dentre outros.
Quanto aos que residiam na França, localidade onde a presença judaica era
proibida, mas onde, entretanto, eram tolerados, notamos uma maneira diferente de
adaptação da identidade judaica. Em Baiona, no século XVII, vemos que as pessoas
que ali residiam e os líderes religiosos aparentemente tentavam adequar as normas
judaicas a sua situação de vida. Observamos na “carta aos senhores de Baiona” que
eles buscavam explicação do que deveriam fazer para obter a salvação perante as
condições de vida que lhe eram impostas naquela localidade. Logo, ao buscarem
novas maneiras de praticar o judaísmo, acabavam por conformar mais uma tentativa
de adequação identitária.
Essas constantes mudanças de identidade religiosa causavam nos membros
da diáspora uma série de dúvidas sobre qual o melhor caminho seguir. Assim,
vemos pessoas que regressavam à religião dos seus ancestrais, ao judaísmo, mas
que não se adequavam às normas e as leis judaicas do judaísmo tradicional,
buscavam, consequentemente o retorno à península e ao catolicismo. Em casos
15
- Uriel da Costa, natural do Porto e batizado como Gabriel da Costa e educado na religião católica.
Matriculou-se Direito canônico na Universidade de Coimbra em 1600, contudo em 1601 interrompe os
estudos e regressa ao Porto, possivelmente por causa da peste. No ano letivo de 1604/1605 volta a
Coimbra para prosseguir os estudos, mas não os conclui, abandonando o curso 1608. Começou a ter
dúvidas em matéria religiosa, de tal modo que decide converter-se ao Judaísmo. E emigra com a
família para a Holanda. Chegam a Amsterdã de 1615, adere a comunidade e é circuncidado,
passando a se chamar Uriel da Costa. Por motivos de negócios, parte para Hamburgo e pouco a
pouco, afasta-se do judaísmo, entrando em conflito com os Rabinos. No ano de 1616 escreve seu
primeiro tratado “Propostas contra a tradição”, que acarretará em sua excomunhão. Ele reage a tal
fato publicando Exame das tradições farisaicas, em 1624. Por conselhos de amigos ele se reconcilia
com a Santa Congrega em 1640, após se sujeitar as castigo de 39 chibatadas, contudo, esse castigo
não encheu a sua alma de jubilo, mas pelo contrario, assim ele escreve o Exemplar Humanae Vitae e
se suicida em abril de 1640. (ver: Prefácio de Pinharanda Gomes. In. SILVA, Samuel da. Tratado da
imortalidade da alma. Fixação do texto, prefácio e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Impressa
Nacional – Casa da Moeda, 1982.)
16
- Juan Prado, era de família portuguesa que se estabeleceu na Espanha, estudou medicina,
filosofia e teologia em Alcalá de Henares. Foi perseguido pela Inquisição espanhola, fugiu para
Amsterdã em seguida para Hamburgo, aderindo abertamente ao judaísmo em 1665, contudo foi
excomungado pela congregação portuguesa por causa de sua atitude herética com relação aos
princípios básicos do judaísmo. (Ver Yosef Kaplan, Do Cristianismo ao Judaísmo: A história de Isaac
Oróbio de Castro. São Paulo: Imago, 2000. pp. 136-175).
16
extremos, alguns se tornavam informantes da Inquisição e outros decidiam não
pertencer a nenhuma religião17.
As constantes viagens feitas pelos cristãos-novos a terras ibéricas, italianas,
a colônias da América, etc., segundo Graizbord, eram o fator fundamental para
disseminação dessas dúvidas. Essas idas e vindas e o contatos com outras religiões
causavam, além das confusões pessoais nos membros da diáspora um outro fator: a
repugnância e a inaceitabilidade por parte dos judeus-novos e rabinos mais
ortodoxos, principalmente de Amsterdã, para com as pessoas que viviam nesse
trânsito e também com as comunidades francesas.18
O sudoeste francês foi uma das regiões de migração escolhidas por diversos
cristãos-novos nos séculos XV a XVIII. Nessa localidade formaram-se as primeiras
comunidades luso–hispano-judaicas. Tal migração foi auxiliada pela emissão das
Cartas de naturalização emitidas pelo rei Henrique II, em outubro de 1550. Essas
cartas ficaram conhecidas como cartas patentes.
A formação de comunidades judaicas nessas regiões do sudoeste francês
deu-se também pelo fato de ser uma região fronteiriça com a Espanha, o que
possibilitava a saída dos cristãos-novos, tanto pelo mar como por rotas terrestres
pelas montanhas dos Pirineus. Por essas passagens os cristãos-novos buscavam as
“terras de liberdade”, isto é, regiões nas quais a prática do judaísmo era permitida ou
permaneciam nas cidades francesas.
As principais localidades do sudoeste francês em que foram instituídas
comunidades judaicas foram: Saint-Jean-de-Luz, Bordéus, Toulouse e Baiona.
17
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit. pp. 65-104. Retornados permanentes (geralmente não
alegam que regressaram por necessidades econômicas. Neste grupo se incluía mulheres, sendo que
algumas pessoas deste grupo se tornavam informantes da Inquisição). Os retornados habituais (os
que regressavam à Espanha geralmente para fazer comércio,eram do sexo masculino e não
buscavam a reintegração ao catolicismo).
18
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit. pp.111-116.
17
Saint-Jean-de-Luz, foi, inicialmente, a cidade que abrigou a maior
quantidade de cristãos novos. As famílias que lá residiam tinham relações com
famílias de Paris, Amsterdã e de outros lugares; essa comunidade se desfragmentou
devido a um acontecimento ocorrido no ano de 1616 na igreja de Saint-Jean-de-Luz.
Quando o padre percebeu que a portuguesa Catherine de Fernandes havia
envolvido a hóstia em um pano ao invés de degustá-la, houve uma revolta popular e
Catherine de Fernandes acabou sendo queimada viva pela população local. Com
isso, os demais cristãos-novos que lá residiam refugiaram-se em Biarritz e em
seguida em Baiona19.
Em Bordéus, a comunidade judaica foi formada no século XVI por cristãos-
novos portugueses e espanhóis que ganharam as cartas de naturalidade fornecidas
por Henrique II, em 11 de novembro de 1574. Esta comunidade praticou o judaísmo
na clandestinidade durante todo o século XVII. Contudo, no início do século XVIII,
era de conhecimento público que seus moradores possuíam regulamentos e que na
vida privada seguiam as leis mosaicas, e a comunidade contava até com um
cemitério. O século XVIII foi de esplêndido crescimento para essa comunidade, e
também o momento que saiu da clandestinidade e seus membros participaram das
eleições para os Estados Gerais em 1789, obtendo representação, destacando-se
como representante Abrão Furtado.20
A comunidade de Toulouse foi formada no século XVI por um grupo de
portugueses e espanhóis que, conforme documentos notariais e paroquiais, eram
suspeitos de judaizar. Além dos cristãos-novos, também residiam na comunidade
alguns judeus declarados que lá permaneceram por um determinado período, pois o
parlamento de Toulouse, no ano de 1653, promulgou um decreto determinando que
todos os judeus deveriam ser banidos da cidade, o que fez com que nos anos
subsequentes muitos portugueses fugissem de lá, desintegrando tal comunidade.
A comunidade de Baiona, segundo Nahon, era escolhida por ter “A
característica essencial de Baiona era a sua situação geográfica na fronteira com a
Espanha”21. Deste modo, vemos que as regiões do sudoeste francês, em especial
19
- NAHON, Métropoles et périphéries, op. cit. pp 253-254.
20
- João Lúcio de Azevedo. História dos cristãos-novos portugueses. Lisboa: Livraria Clássica
Editora, 1989. pp 375- 383 e CARO BAROJA, op.cit. pp. 274-275.
21
- NAHON, Métropoles et périphéries, op.cit. p 253.
18
Baiona, foram algumas das localidades escolhidas pelos membros da diáspora
sefaradita, tanto pelo privilégio concedido pelas cartas patentes do rei Henrique II,
quanto por sua posição geográfica.
22
- Carsten Lorenz Wilke. História dos judeus portugueses. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 161 e
Dicionário do Judaísmo Português. Organizado por: Lúcia L. Mucznik, José Alberto R.S. Tavim, Esther
Muczinik e Elvira de A. Mea. Lisboa: Presença, 2009, p 31.
23
- AZEVEDO, História dos cristãos-novos, op. cit., pp. 372-373.
24
- VAINFAS, Jerusalém colonial, op. cit., pp. 240-241.
19
das piores situações. Segundo ele, 10 em cada 400 portugueses que habitavam a
região de Saint-Esprit tinham uma situação "razoavelmente próspera", enquanto o
restante da população sobrevivia da caridade local ou enviada por membros de
comunidades da Inglaterra e Holanda.25
A prosperidade econômica de Baiona começou com a chegada de famílias
afortunadas no final do século XVII. Em 1723, ocorreu um salto gigantesco no seu
status, tanto econômico como social, pois com as Cartas Patentes outorgadas por
Luís XV a comunidade saiu da clandestinidade. Nesse momento, foram abertas mais
de treze sinagogas, contrataram-se rabinos, e foi construído um cemitério e, em
1752, é editado o regulamento da nação judaica, regulamento este que foi aprovado
pelo rei.26 Em 14 de dezembro de 1761, Jacob Rodrigues Pereira é nomeado agente
da Nação Portuguesa de Baiona27. No final do século XVIII, conforme observação de
Nahon, a comunidade sefaradita de Baiona havia se tornado uma pequena
metrópole.28
O que propiciou esse desenvolvimento foi a localização geográfica
privilegiada, pois o acesso, tanto por via marítima quanto terrestre, fez da
comunidade uma porto para intercâmbio cultural, social e comercial com as demais
comunidades da diáspora sefaradita. Ademais, servia de local de passagem para os
que buscavam as terras de liberdade religiosa, como por exemplo, Amsterdã.
29
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit., pp. 77.
30
- Nathan Wachtel. A fé na lembrança: labirintos marranos. São Paulo: EDUSP, 2009.
31
- NAHON, “Los cristianos nuevos españoles e portugueses”, op. cit. pp. 591.
21
completamente dentro do mundo judeu. Desta forma, os conversos sofriam
retaliações de ambos os lados, pois mesmo sendo cristãos convictos, os cristãos-
velhos negavam tal qualificação. Em contrapartida, ao regressarem ao judaísmo,
nem todos os retornados estavam preparados para se adaptar à vida judaica,
mesmo após a sua incorporação formal ao judaísmo.32
Este limiar cultural que nos foi exposto por Graizbord nos permite entender a
visão que Moisés Rafael de Aguilar tinha desses portugueses de Baiona. Ele os via
como idólatras, e as terras francesas, inclusive Baiona, como terras de idolatria. E
um dos aspectos que explica essa situação é seu status transição, tanto cultural
como religiosa, dos membros da Nação.
32
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit., pp. 2-3.
22
VIII. Ao serem questionados pelos cristãos se eram judeus, negavam mil
vezes, renegando a Lei divina;
33
IX. Na morte, praticavam tanto o ritual cristão quanto o judaico.
33
- Excerto retirado do resumo da Carta aos Senhores de Baiona, que consta nas páginas 29 e 30
desta monografia.
34
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit., pp. 133-136.
23
Ao seguir viagem e chegar à França, sua família se instalou no povoado de
Labastide, contudo, por sua mãe permanecer muito debilitada devido a viagem, a
criança foi para a casa de uma parenta em Avignon, onde foi circuncidada e recebeu
o nome de Abraão Bueno. Aos dez meses, após recuperação da sua mãe ele
retornou a Labastide.
Toda a família vivia em Labastide como criptojudeus. Abraão recebeu
educação judaica, mas também freqüentava a escola paroquial, era fluente em
francês e também sabia um pouco de latim. Aos oito anos Abraão perguntou ao seu
pai porque os outros meninos da escola não eram circuncidados. E porque sua
família não ia à igreja aos domingos como seus colegas de família francesa. Abraão
cresceu nessa dubiedade, judeu em casa, cristão na escola. Na comunidade judaica
era chamado de Abraão, na escola de Jacques e sabia que seu nome de batismo
era Diogo, pois teve que usá-lo quando acompanhou seu pai em viagens de
negócios a Espanha e nessas ocasiões foi às igrejas, onde rezou e comungou.35
Temos, nesse exemplo de Vainfas uma excelente explanação da questão identitária
dos residentes das comunidades francesas.
E para encerrar a questão identitária e religiosa dos criptojudeus de Baiona,
permito-me aqui tomar as palavras de Vainfas e Novinsky, “...homem dividido. Judeu
para os cristãos, cristão para os judeus; nem judeu, nem cristão, ou um pouco dos
dois, quando olhava para si mesmo. Esse tipo de cristão-novo é o que se convertia
ao judaísmo e depois retornava ao catolicismo, sem esquecer de todo, no íntimo, a
experiência vivida no tempo judeu.”36 Essa é a melhor definição da identidade
religiosa do cristão-novo de Baiona. Entretanto, a partir da transcrição e estudo da
carta aos senhores de Baiona, podemos pensar essa questão sob outra chave de
leitura. Seriam eles realmente “homens divididos”? Não estariam eles tentando
construir uma outra ortodoxia? Em todo caso, um conjunto de crenças e práticas
alternativas àquelas dos rigorosos rabinos de Amsterdã?
35
- VAINFAS, Jerusalém colonial, op.cit. pp. 222-248.
36
- VAINFAS, Jerusalém colonial, op.cit. pp. 262. Apud Anita Novinsky. Cristãos novos na Bahia. São
Paulo: Perspectiva, 1972. p.162.
24
3 - A carta aos senhores de Baiona e o rabino Moisés Rafael de Aguilar
a) Análise da Carta
A carta tem por título Reposta e discurso sobre certas perguntas de Bayona
e foy em nome de Hahamim, é datada de 28 de novembro de 1663 e encontra-se na
biblioteca Ets Haim, em Amsterdã, sob número EH 48 A 11, páginas 425 a 450. Está
escrita em dois idiomas (português e espanhol) e contém 26 páginas37.
Para a presente análise, organizei o documento com a seguinte disposição:
primeiro especificarei o que é o documento e como está montada a sua estrutura,
seguindo com a análise da introdução e do traslado; a seguir, farei uma análise do
conteúdo da carta dividida em cinco tópicos que abrangem trechos do documento
que versam sobre o mesmo assunto; encerrarei com o exame da carta do Sr.
Manoel Isidro. Em cada uma dessas fases farei um pequeno resumo.
O que é este documento? Este documento é uma carta-resposta, e tais
documentos e discussões eram recorrentes no século XVII e XVIII, principalmente
entre os membros da disporá sefaradita, que tinham muitas dúvidas com relação à
37
- Encontra-se no anexo 1, cópia da carta com sua respectiva transcrição.
25
religião judaica por estarem vivendo por muito tempo sob o tênue véu do
catolicismo. Tomemos, por exemplo, a explanação de Kaplan em sua obra que
versa sobre os passos da conversão de Isaac Oróbio de Castro: “Nesse período, as
muitas dúvidas que o roíam por dentro privaram-no do repouso e lhe obscureceram
a felicidade da integração na vida judaica”38. Essas dúvidas não eram comuns só a
Oróbio, mas eram partilhadas por diversos criptojudeus que almejavam o retorno à
religião dos seus ancestrais, e que descobriam ter pouco conhecimento sobre ela.
Tal fato levou a uma constante troca de epístolas, com o intuito de sanar dúvidas,
rebater escritos heréticos e convencê-los a “retornar” plenamente ao judaísmo
rabinico, etc.
Desta forma, o documento que foi objeto de transcrição é uma carta
resposta a certas perguntas vindas de Baiona. Essas perguntas foram
pretensamente elaboradas por um Sr. Ávila. Os questionamentos levantados pelo
Sr. Ávila decorreram de uma correspondência que ele diz ter recebido de rabinos de
Amsterdã. O assunto original das correspondências abarca a salvação das almas
das pessoas de origem judaica que residiam no sul da França, por não praticarem o
mandamento da circuncisão.
Assim sendo, no preâmbulo, o rabino Aguilar explica como recebeu e porque
irá responder a carta; segue-se na sequência um traslado da suposta carta escrita
pelos rabinos de Amsterdã. Logo após, vem a elaboração da resposta à carta
recebida pelo rabino Aguilar, na qual constam as perguntas que estão sendo
respondidas. Finalmente, temos a cópia de uma carta, elaborada pelo Sr. Manuel
Isidro, que é, por sua vez, uma resposta à carta do rabino Aguilar.
Desta maneira, o presente documento é composto por um total de quatro
cartas, sendo que àquela a que os supostos senhores de Baiona ansiariam obter
respostas, possuímos apenas as perguntas. Segue a disposição das quatro cartas
no documento elencados aqui cronologicamente:
38
- KAPLAN, Do Cristianismo ao Judaísmo, op. cit., pp. 129. Isaac Oróbio de Castro nasceu em
Portugal e, como muitos criptojudeus de sua época, foi educado com a herança judaica que era
passada de geração a geração, conservando o judaísmo em casa e vivendo como cristão na rua.
Estudou medicina e teologia na Espanha, o que o tornou um grande conhecedor dos valores cristãos.
Foi aprisionado pela inquisição em 1654, em seguida imigrou para a França e anos depois decidiu
professar o judaísmo abertamente indo para Amsterdã, tornando-se membro da congregação Talmud
Torá.
26
1. Suposta carta dos rabinos de Amsterdã (transcrita parcialmente em 3);
2. Carta dos senhores de Baiona (transcrita parcialmente em 3);
3. Carta do rabino Moisés Rafael de Aguilar em resposta a 2;
4. Carta de Manuel Isidro em resposta a 3.
Adentrando a análise da carta propriamente dita, busquei uma divisão que
atendesse aos blocos de perguntas e respostas elaboradas dentro da própria
epístola, culminando na seguinte divisão: Introdução, traslado, parte 1 (p.426-427),
parte 2 (p. 427-432), parte 3 (p.433-448), parte 4 (p.438-443), parte 5 (p. 443-449) e
resposta ao discurso da carta pelo Sr. Manoel Isidro. Ao abordar cada uma das
partes, informarei no subtítulo a qual carta pertence tais questionamentos.
Introdução - carta 3
Traslado - carta 1
27
carta com os questionamentos que foram respondidos pelo rabino Aguilar. Constam
as seguintes afirmações e questões no traslado: Quem está no cativeiro da casa de
Israel tem mérito e condenação. Os méritos se dão em cumprimento da “Santa Lei” -
ensinando e aprendendo - méritos estes que buscam a misericórdia e a graça da
providência divina.
Mas como encontrar estes méritos? A partir deste ponto, as palavras são
dirigidas diretamente às pessoas de Baiona, levantando dois questionamentos sobre
o modo de vida daquelas pessoas: Como encontrar os méritos, pois, se ao tomar
banho o povo de Baiona está com “a serpe nas mãos” e “ao pedir e clamar a Deus o
ofende com suas imundícies”.
Temos uma antonímia no termo “banhar com a serpe nas mãos”, pois o
banho (Mikvá) é uma cerimônia de purificação e a serpente é vista como um animal
impuro, essa é a contradição o puro versus impuro39. E as pessoas que vivem em
Baiona incorrem nessa contradição, pois seguem a Lei de Moisés, contudo não são
circuncidados e ainda praticam os rituais católicos.
O conselho dado pelos supostos autores da referida carta é feito no intento
de exortar os residentes de Baiona a fazerem a circuncisão o mais rápido possível,
pois caso não o façam toda a fúria de Adonai cairá sobre eles, conforme afirma a Lei
de Moisés.
39
- Sobre o banho ver: Michael Asheri. Judaísmo vivo: As tradições e as Leis dos judeus praticantes.
Rio de Janeiro: Imago, 1995. p. 76-79. Sobre a serpente: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora
Paulus, 2008. Levítico, 11: 29 e 41:42.
28
Aboab da Fonseca, um dos supostos escritores, Aguilar relata que este negava tal
autoria, dizendo ser esta carta pura falsidade, sobretudo por ser fundada sobre a
grandíssima importância do preceito da circuncisão.
29
II. Mandavam as crianças para as escolas dos gentios;
III. Iam para a Igreja e celebravam cerimônias idólatras;
IV. Mantinham relações com suas esposas menstruadas;
V. As mulheres não faziam o banho de purificação ritual;
VI. Celebravam a páscoa judaica, mas iam para a Igreja orar de joelhos;
VII. Profanavam o Shabat;
VIII. Ao serem questionados pelos cristãos se eram judeus, negavam mil
vezes, renegando a Lei divina;
IX. Na morte, praticavam tanto o ritual cristão quanto o judaico.
Segundo Aguilar os pecados cometidos pela população de Baiona eram
gravíssimos e eram pecados de “talhamento da alma” e que, além disso, os que
participam daquela congregação de pecadores eram pecadores piores que os
samaritanos, aquela dissidência judaica que não aceitava o monopólio de culto do
tempo de Jerusalém. Aguilar ainda argumenta que só o banho da circuncisão,
mesmo que contivesse toda a água do oceano, não seria suficiente para salvar a
alma de tão grandes pecados, como os cometidos em Baiona.
Mostrando todos esses erros cometidos pelos moradores de Baiona, o
rabino relata que a única razão que aquelas pessoas teriam para permanecerem ali,
era por preferir viver no pecado, motivados por uma vida momentânea, e assim esse
povo condena suas almas a perder tudo aquilo que poderia ganhar após a morte.
30
que os gentios. Pergunta-se, qual(is) a(s) advertência(s) devem ser dadas às
pessoas que vivem nesse trânsito, de França para Espanha?
A maioria destas questões foram respondidas anteriormente. Contudo,
nesse trecho Aguilar usa da retórica, e ressalta que o autor da carta, Sr. Ávila, é
abusado no seu modo de escrever, e traz na sua carta questões com dois preceitos
falsos que ele mesmo fabricou: O primeiro é que os judeus da semente de Israel,
enquanto não se circuncidam, não são obrigados aos preceitos da Lei divina, e
circuncidados não se condenam pela prevaricação. Dizendo que se pretende salvar
incircunciso por crer que estariam livres do jugo da Lei. O segundo erro está em
imaginar que os que vivem naquela terra se devem achar forçados e impedidos pela
Lei do reino, e por esta razão de força se acham livres do preceito da circuncisão e
dos mandamentos divinos.
Aguilar relata que tudo o que é feito em Baiona é condenável e refuta a
“falsa doutrina” apresentada na carta, pois ela contraria os preceitos da “Santa Lei”.
O autor segue trabalhando com os mesmos argumentos usados anteriormente, só
que de outra maneira, comprovando-os com o apoio de livros bíblicos (Levítico,
Êxodo, Deuteronômio).
Aguilar encerra estes argumentos relatando que quem é incircunciso não
está isento do jugo da Lei, bem como os circuncidados que não cumprem os
mandamentos serão excluídos do reino divino. E que quando se trata das pessoas
que vivem em Portugal e Espanha, que têm a sua saída dificultada pelo rigor da
Inquisição, ainda se pode observar a misericórdia de Deus, pois todos eles (as
pessoas que vivem em Amsterdã) são testemunhas destes (os que permaneceram
em terras ibéricas), contudo, ainda há de se convir que há meio de se sair de
Portugal e Espanha, pois todos que vivem em Amsterdã e outras localidades de lá
vieram.
Desta forma, pensando na situação dos que vivem em França, que têm
liberdade para sair e não o fazem, preferindo viver no pecado, Aguilar diz que não
há como testemunhar a favor destes. E aconselha-os a “fugir dessa Babilônia com
toda a pressa e ir buscar o remédio de sua salvação em outras terras”.
31
Aqui se trabalha com os seguintes questionamentos: 1- Pode o homem
Israelita sendo como é, escravo de seu Criador, escusar-se em qualquer tempo e
modo de obedecê-lo e servi-lo com todo seu coração, com toda sua alma e com
todo o seu poder? 2 - Pode acaso um Judeu livrar-se dos fortes vínculos do pacto
que Deus celebrou com seus pais?
Aguilar responde que não, e para subsidiar sua resposta, usa mais
argumentos bíblicos que ressaltam a observação da “Lei Divina”, bem como
argumentos que ele utilizou nas respostas às questões anteriores. Neste momento
Aguilar é enfático no sentido de que aqueles indivíduos deviam sair daquela terra e ir
para terras onde o judaísmo era permitido, para que pudessem obter a salvação de
suas almas e os méritos pelas suas benfeitorias e obras pias.
Ao mesmo tempo em que o rabino relata todos os erros e pecados graves
cometidos pelos cristãos-novos residentes em Baiona, a todo o tempo ele está
buscando levá-los de volta ao judaísmo em terras livres.
32
justificam-se dizendo que receberam uma carta de doutos de Amsterdã falando tais
disparates. Aguilar diz que buscando evitar um dano maior ou escândalo em relação
a tal fato, os doutos de Amsterdã não ignoram a necessidade de auxilio para a
salvação “destas almas que vivem em Baiona, e ainda mais, do escritor da carta,
que professa ser o mestre”. Todavia, Aguilar ressalta que o melhor que esse povo
de Baiona tem a fazer para buscar a salvação das suas almas e do reconhecimento
das suas obras, é sair daquelas terras, pois, não se justificava eles continuarem lá,
dizendo que é somente porque em tal Cidade conseguem sustenta-se a si e as suas
famílias. E para comprovar que tal justificativa não é válida, Aguilar dá como
exemplo o caso dos que vivem Amsterdã e em outras terras: “nem todos que pra cá
vieram são ricos, contudo aqui vivem satisfeitos e contentes a serviço de Deus, bem
como os que vivem na Itália e na Turquia.”
A observação feita por Aguilar quanto ao caso dos senhores de Baiona, foi
que esses, usando de justificativa que não há como se sustentar em outros locais,
preferem perder as suas almas que buscar uma mudança, e ainda desejavam que
os rabinos ortodoxos os apoiassem com palavras para poderem “sossegar a
consciência”.
Aguilar ressalta que como em França não havia um meio eficaz e violento de
expulsarem estes cristãos-novos - que seria a Inquisição - parece duvidoso querer
com palavras e doutrinas, por mais verdadeiras que fossem “corrigir e mover tão
duros corações”. E que ele, rabino Aguilar, observando essa experiência vivenciada
pelos residentes de Baiona, cabe dizer ao autor da carta que “Satã empregava todas
as suas artes para tirar os nossos das terras da Inquisição, deixando-os seguros e
em seu poder na França, onde aparentemente vivem em enganosa liberdade,
contudo debaixo das mãos infernais”.
Aguilar diz a estes senhores que, como eles, rabinos ortodoxos de
Amsterdã, não podiam obrigá-los a regressarem ao caminho da salvação, uma vez
que esses não o desejavam. Mas como os membros do povo de Israel eram fiadores
uns dos outros, não podiam deixar de tentar tirá-los do pecado, uma vez que se não
fizessem isso incorriam no mesmo erro destes senhores de Baiona. Aguilar clama:
“irmãos pelo divino amor, pela caridade pela piedade da alma dos vossos filhos e
familiares não permita que tal castigo vos atinja”.
33
Aguilar deixa bem claro no decorrer de todo o texto que a única maneira de
encontrar a salvação é saindo de Baiona e indo para terras livres, onde pudessem
praticar o judaísmo abertamente, seguindo todas as leis e preceitos judaicos.
Para elaborar essa pequena biografia sobre Moisés Rafael de Aguilar nos
apoiamos em sete obras, são elas: Shlomo Berguer, David Weitman, Yosef Kaplan,
Nachman Fabel, Pinharanda Gomes, Bruno Feitler e o dicionário do judaísmo
português40, desses autores os únicos que se propõem a fazer uma biografia de
Aguilar é Berguer e Weitman, os demais, no desenvolvimento de suas obras dão
algumas pinceladas sobre a vida e obra deste personagem.
Cabe salientar que está bibliografia nos traz algumas controvérsias sobre a
vida e a obra deste homem, desta forma, pretendo fazer um relato conciso e
apurado dos aspectos que aparentam ser os mais fidedignos após leitura e
comparação destas obras.
40
- Ver bibliografia completa no final da monografia.
34
Moisés Rafael de Aguilar, provavelmente nasceu em Portugal entre os anos
de 1615-1620, mas foi em Amsterdã que passou a sua infância e recebeu educação
judaica e secular41. Era filho de Isaac Israel de Aguilar, que foi tesoureiro da
confraria para arrecadar fundos para a Terra Santa no ano de 1620.42
Aguilar se casou provavelmente no ano que embarcou para o Brasil, não se
sabe ao certo se no Pernambuco holandês ou em Amsterdã com Ester Aguilar,
tiveram oito filhos, dois deles Isaac e Rivka nasceram no Brasil e provavelmente a
terceira Sara, que nasceu em 1654, ano que a família regressou para Amsterdã.
Aguilar veio para no ano de 1642 acompanhando o rabino Isaac Aboab da
Fonseca. No Brasil auxiliou na estruturação da comunidade judaica do Pernambuco
Holandês. O motivo de sua viagem para o Brasil, segundo Berguer foi econômico,
pois mesmo formado ele não conseguia uma posição que lhe sustentasse43.
No Brasil Aguilar provavelmente atuou como rabino na Congregação Magen
Abraham, enquanto esta funcionou, e também como cantor litúrgico (chazan).44,
Quanto a formação de Aguilar, é provável que tenha estudado em Portugal,
mas nada comprova este fato. Tem-se registros que entre os anos de 1637 e 1640
(com idade entre 18 e 20 anos), estudou na Academia Talmúdica Ets Haim, e no
ano 1639 foi ordenado rabino45.
Aguilar tinha um excelente gabarito intelectual, sendo perito em gramática
hebraica, profundo conhecedor do Talmud, era fluente em diversas línguas, inclusive
latim e grego, e possivelmente teve como mentor o Rabino Saul Levi Mortera 46.
Berguer relata que a sua estréia no mundo acadêmico foi no mesmo ano
que ele se foi ordenado rabino, 1639, com o “Tratado da imortalidade da alma”47,
obra que provavelmente buscava rebater as teses de Uriel da Costa, uma vez que
41
- Shlomo Berguer. Classical Oratory and the Sephardim of Amsterdam: Rabbi Aguilar‟s „Tratado de
la retórica‟. Verloren-Hilversum, 1996. pp. 11- 13.
42
- David Weitman. Bandeirantes Espirituais do Brasil: Rabinos Isaac Aboab da Fonseca e Mosseh
Raphael d‟Aguilar. São Paulo: Maayanot, 2003. pp. 82.
43
- BERGUER, Classical Oratory, op. cit., pp.16.
44
- Bruno Feitler, “Gentes” da Nação, op. cit., p. 6870. Magen Abraham foi uma segunda comunidade
do Pernambuco, estabelecida em Maurícia provavelmente em 1637, chamava-se Kahal Kadosh
Magen Abrahan (Santa Cogregação Escudo de Abraão) e funcionou independentemente da
comunidade de Recife até 1648, quando foi reabsorvida pela Tsur Israel.
45
- BERGUER, Classical Oratory, op. cit., pp.14 e WEITMAN, Bandeirantes Espirituais, op. cit., pp.
82.
46
- WEITMAN, Bandeirantes Espirituais, op. cit., pp. 83.
47
- BERGUER, Classical Oratory, op. cit., pp. 14.
35
as maiores desavenças desse com a comunidade de Amsterdã se deu no decênio
de 1630-1640, momento que ocorria a formação de Aguilar48.
Com o fim do Pernambuco Holandês, o rabino Aguilar regressou para
Amsterdã no ano de 1654, onde abriu uma escola para educar jovens, e em 1659
sucedeu o Rabino Manasseh bem Israel como professor na Academia Talmúdica
Ets Haim49. Em Amsterdã, além de professor e rabino, atuava como consultor e
mentor de muitas questões quanto à Lei judaica e exegese bíblica.
Aguilar deixou uma vasta obra escrita, que está disposta da seguinte
maneira: duas obras impressas - Epítome da Gramática Hebraica50, e Dinim de
Sehita y Bedica51. Contudo, a maior parte de sua produção é manuscrita: e está
dividida em obras escolares de gramática e retórica e de natureza teológica,
composta por uma vintena de textos manuscritos, a grande maioria em português e
espanhol, e cinco em língua hebraica.52
Podemos abstrair desta biografia que o amadurecimento de Aguilar como
líder religioso e como escritor se deu no Brasil, uma vez que era jovem quando aqui
chegou e tinha sido ordenado rabino a apenas 3 anos, e também veio para o Brasil
em busca de melhores posições no mundo religioso e que garantisse uma melhor
situação financeira. Pinharanda Gomes, diz que essa estada no Brasil deu a Aguilar
o conhecimento essencial no que tange a escrita em língua portuguesa, pois, ele
escreve com todos os pormenores da ortografia dos escritores seiscentistas, e tal
fato não seria possível só com as aulas de português oferecidas em Amsterdã.53
Apesar de todo o gabarito intelectual de Aguilar, deste conseguir com
sucesso intercalar elementos da cultura judaica e da não-judaica e falar de ambos
sem atritos, Berguer relata que ele nunca alcançou em Amsterdã uma posição tão
elevada quanto a do rabino Isaac Aboab da Fonseca ou tanta fama quanto Oróbio
de Castro54.
48
- Prefácio GOMES, op. cit. pp. XLII
49
- Nachman Falbel. Os Judeus no Brasil: Estudos e notas. São Paulo: Editora Humanitas, EDUSP,
2008. pp. 121-133.
50
- Primeira edição, Leiden, 1660, segunda edição em Amsterdã, 1661.
51
- Livro de instrução de matança ritual, Amsterdã, 1681.
52
- Veja Dicionário do Judaísmo Português, op. cit., p.31. WEITMAN, Bandeirantes Espirituais, op.
cit., pp. 86-87, e
53
- Prefácio GOMES, op. cit., pp. XLI-XLII.
54
- BERGUER, Classical Oratory, op. cit., pp. 15.
36
E com o rabino Aboab, Aguilar tinha longas contendas, apesar de terem
trabalhado junto no Brasil e mesmo em Amsterdã. A principal diferença entre ambos
está no campo de formação, Aboab era menos ortodoxo, teve como mentor o
cabalista Abraham Cohen Herrera. O rabino Aguilar era extremamente ortodoxo e
teve como mentor Saul Levi Morteira, que no decanato de 1630-40, já havia
discordado da posição de Aboab como relação a salvação dos pertencentes a
“Nação”. Este aspecto gerou um litígio entre ambos no campo da salvação das
almas, pois na argumentação de Aboab todas as pessoas da “nação judaica” tinham
assegurada a sua salvação simplesmente por pertencer ao povo escolhido. Mesmo
que, para alcançar a salvação, as almas dos judeus tivessem que passar ao longo
do tempo por transmigrações para purgar seus pecados.
Aguilar via essas teorias de Aboab como uma má influência sobre as mentes
dos cristãos-novos que nem sempre estavam inclinados a dar o passo da
circuncisão e plena integração na comunidade oficial. É por causa dessas e doutras
divergências de opinião dentro do rabinato de Amsterdã, que o rabino Aguilar
elaborou uma resposta aos cristãos-novos de Baiona com uma posição tão diferente
da do seu colega. Pois vimos acima que para Aguilar, só a saída daquelas terras e
inserção no mundo judaico oficial propiciaria a salvação das almas das pessoas que
viviam em Baiona.55
55 e e
- Bruno Feitler, Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil: Le Nordeste XVII et XVIII siècles.
Paris: Leuven University Press, 2003. pp. 161-164.
37
maneira. A grande diferença que ocorre nas colônias francesas é que não há
perseguição inquisitorial, logo, mesmo sendo proibida a prática do judaísmo, os
membros destas comunidades tinham muito mais liberdade para se organizar
religiosamente. Tanto é, que mesmo discretamente eles possuíam escolas e
esnogas. A outra diferença destas comunidades francesas era a liberdade de
locomoção, pois não era proibida a entrada ou a saída do reino francês.
Estes dois aspectos, a liberdade de locomoção e o fato de não haver
perseguição religiosa, somados à prática judaica em Baiona, isto é, à duplicidade
que mantinham no seu modo de vida – cristãos na rua, judeus em casa – nos fazem
convir que estas proposições eram inconcebíveis para rabinos ortodoxos como os
de Amsterdã. Tais aspectos os levavam a rotular a França como uma terra de
idolatria, tal qual posto por alguns autores, como Weitman, Kaplan e Graizboard: "A
França não tinha uma inquisição e, ainda que o judaísmo fosse considerado ilegal
desde o final do século quatorze, até por volta de 1670 autoridades judaicas
encaravam a França como uma 'terra de idolatria', e por consequência, uma
destinação indesejada para os conversos fugidos."56
Assim, podemos salientar que o embate entre o judaísmo rabínico de
Amsterdã e o praticado pelos residentes de Baiona estaria relacionado a uma
possível tentativa de criação de uma nova normalidade das práticas judaicas em
Baiona, uma prática que se adequasse às necessidades de vida das pessoas
daquela localidade, uma vez que os “senhores de Baiona” alegam ter instruções dos
rabinos de Amsterdã para que assim o fizessem. Tal posicionamento fez com que o
rabino Aguilar ficasse aparentemente muito irritado e respondesse a carta de
maneira tão incisiva.
56
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit., pp. 73. “France did not have a inquisition, yet judaism had
been illegal there since the end of the fourteenth century accordingly, until the 1670s Jewish
authorities viewed France as a "land of idolatry", and thus as an undesirable destination for converse
escapees”. (tradução nossa)
38
quanto no quesito de identidades religiosas, as dúvidas que surgem nessa
comunidade podem ser consideradas algo normal e que não ocorreriam apenas
neste nicho da diáspora; estas dúvidas era algo comum a todos os pertencentes à
Nação.
Como já dito, as comunidades francesas estavam num limiar entre os dois
mundos, o cristão e o judeu, recebendo informações de diversas fontes. Algumas
dessas informações dão conta das dúvidas e dissidências advindas das
comunidades judaicas oficiais, o que acaba por fomentar uma dubiedade maior
quanto à prática do judaísmo rabínico.
Quando falamos de dissidências em comunidades oficiais, reportamo-nos à
comunidade de Amsterdã, onde ocorreram os casos mais célebres, como os já
citados casos de Uriel da Costa, Juan Prado e o do renomado filósofo Bento
Espinoza. E contamos ainda, como posto acima com as próprias divergências entre
os modos de pensar dos rabinos de Amsterdã, como o caso de Aboab e Aguilar.
Contudo, se nos detivermos à carta aqui trabalhada, as dúvidas nela
expressas pelos judaizantes de Baiona, apesar de pontuais são fulcrais para o
judaísmo por se tratar daquilo que os aponta como os eleitos de Deus: referem-se
ao preceito da circuncisão e à salvação das almas. Conforme se percebe no relato
da carta, esses cristãos-novos dão a entender que praticam o judaísmo, que fazem
caridade e ajudam os demais membros da Nação. Logo, em seu modo de ver, as
práticas judaicas que realizavam estavam em conformidade com os preceitos da
doutrina. Talvez, ainda segundo a concepção dos praticantes, mais leves que a
ortodoxia de Amsterdã, o que a rigor também não se buscava.
Perante essas dúvidas, retomo a pergunta; seriam eles realmente “homens
divididos”? Não estariam eles tentando construir uma ortodoxia alternativa?
57
- GRAIZBORD, Souls in Dispute, op. cit., pp. 73-74.
58
- Podemos deduzir pelo que consta na carta é que os senhores de Baiona são: Isaac de Ávila que
é possivelmente quem escreve a carta; Mosseh Gabay Henriques que é quem entrega a carta ao
rabino Aguilar e o D. Manuel Isidro, que responde a carta de Aguilar.
59
- KAPLAN, Do Cristianismo ao Judaísmo, op. cit., pp. 129 a 136.
40
É uma correspondência muito inquietante, para se tratar apenas de sanar
algumas dúvidas religiosas. E a estratégia de Aguilar em sua resposta foi atacar e
erros por ele observado nos modos judaicos das pessoas de Baiona. Ele tentava a
todo o custo trazer essas pessoas para o judaísmo tradicional de Amsterdã, da
Turquia ou partes da Itália, e colocava como o primeiro caminho a tomar para se
obter a salvação era a saída daquelas terras.
Assim, a tentativa final do rabino Aguilar foi o de missionação, de
convencimento, assunto que não é corriqueiro no judaísmo tradicional, o próprio
vocábulo missionário é católico. Os modos de agir dos judeus novos de Amsterdã
eram carregados de elementos ibéricos e católicos, apesar de, no momento de
formação da comunidade de Amsterdã, terem sido contratados rabinos asquenasis e
da Turquia que detinham conhecimento do judaísmo tradicional. Mesmo assim, a
formação da comunidade foi erigida em cima de uma mescla de elementos judaicos
e católicos.
Por exemplo, a discussão sobre a salvação das almas foi um debate cristão
de teve grande força no século XVI, e como vimos no documento aqui trabalhado é
uma das questões postas pelos senhores de Baiona. Vainfas, ao tratar da dualidade
dos judeus novos, nos diz que o tema da salvação da alma não é um assunto que
denota discussão no mundo judaico tradicional
“O judaísmo tradicional – rabínico, bíblico, talmúdico – nunca opôs
radicalmente “o mundo real e o mundo por vir”. A vida no outro mundo é um
ideal, mas não um imperativo superior à existência humana neste mundo.
Exceto nas crenças messiânica, presente nos livros dos Profetas (que
resultou no cristianismo), o judaísmo não considera a vida terrena má.
Bastava ser judeu e seguir a lei judaica para salvar-se, nada mais. A
preocupação dos judeus novos, por vezes dramática, de saber “ qual era a
melhor lei para a salvação das almas” possuía “conotações mas cristãs do
60
que judaicas”. Indicava, na verdade, uma herança católica, ibérica.”
Desta maneira, podemos entender um pouco sobre o modo de agir de Aguilar na
sua busca de trazer essas pessoas de volta ao judaísmo tradicional. E entender o
porque, nas tentativa de convencimento Aguilar chega a defender a Inquisição,
dizendo que esta era um meio eficaz para trazer os cristãos-novos de volta ao
judaísmo, sendo que os cristãos-novos do sudoeste da França ali permaneciam
60
- VAINFAS, Jerusalém colonial, op. cit, p. 72.
41
porque foi o Demônio que os tirou das terras onde a “Santa Inquisição” os perseguia
para deixá-los ali sob o seu domínio, e a única maneira de se salvar era saído
daquelas terras, pois se lá permanecessem, de nada adiantaria a caridade, as obras
pias ou qualquer outro meio61.
Um discurso tão incisivo, acreditamos ser para rebater qualquer vestígio da
hipótese aqui levantada, que são as tentativas da adaptação das normas judaicas
por parte dos membros da comunidade de Baiona. Bem como, para deixar bem
claro para os residentes de Baiona qual era a posição oficial do rabinato de
Amsterdã, que a salvação se dava cumprindo todos os 248 preceitos da Lei de
Moisés, e não apenas por ser judeu, e tentando redimir-se de seus pecados por
algum processo de purificação.
Aguilar, nas suas tentativas de rejudaizar esses criptojudeus de Baiona,
traça um caminho por onde segue com argumentos que inicialmente provam os
erros e as mentiras postas por essas pessoas de Baiona, em seguida ele os acusa,
e por fim ele trabalha com o preceito que aparenta ser o que mais aflige esses
residentes de Baiona, a salvação da alma, e para consegui-la só e somente só
saindo daquelas terras. Ele amarra o seu argumento em torno da salvação da alma,
uma vez que este assunto é bem firmado no meio dos membros da “Nação”. Feitler
ao tratar dos judaizantes da Paraíba também nos mostra como a questão da
salvação das almas era importante para eles.62 Logo este é um fator crucial na
busca do convencimento, e também é um fator que Aguilar crer, pois ele ressalta a
questão da salvação das almas não só para os criptojudeus de Baiona, mas também
da Antuérpia63.
61
- Transcrição da carta, p. 448-449. “... que se não fora a violencia da Santa inquisiçaõ, meyo eficas
que Deos premitio para obrigar o as ovellas perdidas a recolherse a seu Santo Rebanho (...) O
incentivo dessa experiencia obrigou a dizer a hum grave autor nosso que o Satã empregava todas as
suas artes e deligencias em tirar[?] os nossos das terras de inquisição e acompanhalos athe França
donde deixandoos seguros em seu poder, torna logo a buscar outros: como quem taõ bem sabe que
os que ahi vive debaxo dessa enganosa liberdade sem a opreçaõ da Inquisiçaõ; ficaõ para sempre
debaxo de sua Infernal maõ e quaõ grande desgosto e desconsolo nos cauza o (ilágivel) desta
consideraçaõ.
62
- FEITLER, Inquisition, juifs, op. cit., pp. 343-357.
63
- FEITLER, Inquisition, juifs, op. cit., pp. 343-357 e WEITMAN, Bandeirantes Espirituais, op. cit., pp.
84.
42
c) Originalidades teológicas
64
- Na carta Aguilar chama de Congrega dos malignos samaritanos.
65
- Bíblia de Jerusalém, Gn 17:10 “E eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é,
tua raça depois de ti: todos os vossos machos sejam circuncidados.”
43
Como o próprio Aguilar salienta, estes senhores têm sua própria
congregação e práticas judaicas. Práticas que Aguilar não nos relata quais são,
somente nos diz que são errôneas e que devem ser erradicadas.
Portanto, acreditamos que o que estes homens de Baiona desejavam era
criar um judaísmo alternativo, que preenchesse as suas necessidades espirituais no
contexto em que viviam, sem todo o rigor de Amsterdã.
Por exemplo, na carta 4, onde o senhor Manuel Isidro responde ao discurso
do rabino Aguilar, ele agradece aos ensinamentos. Todavia, ele deixa claro que
mesmo que o Senhor Ávila tenha partido de métodos ilícitos para sanar suas
dúvidas, isso era desculpável, pois ele só desejava aprender. E que não concorda
com Aguilar tê-los comparado com a congregação dos “malignos samaritanos”. E em
nenhum momento da sua epistola, o senhor Isidro ressalta que devessem sair de
Baiona, tampouco que as práticas deles eram errôneas, e o que eles realmente
desejavam era mais conhecimento.
Por meio dessas discussões elencadas entre os senhores de Baiona e o
rabino Aguilar, podemos entender o porquê do seu discurso efervescente sobre a
necessidade de saída daquelas terras para que pudessem praticar o judaísmo
tradicional. Pois em meio a um contexto de tantas adequações de identidades
religiosas, criar mais uma era ir contra o que a comunidade oficial de Amsterdã mais
desejava, ou seja, integrar aquelas ovelhas desgarradas ao seu rebanho.
Quanto à radicalidade em suas proposições de não aceitação de certas
práticas religiosas, era comum aos rabinos de Amsterdã, pois a reconstrução do
judaísmo não foi tarefa fácil para estes, uma vez que a lei hebraica é uma lei escrita
que dependia da leitura em hebraico. Por tal fato, como posto por Vainfas
“em razão a fragilidade do judaísmo da comunidade de Amsterdã que as
autoridades da Talmud Torá se mostraram demasiadamente zelosas da
66
ortodoxia, adotando, no limite, políticas de intolerância.”
E sendo o rabino Aguilar extremamente ortodoxo, conseguimos entender o porquê
da sua irritação perante suposta tentativa de adequar as normas judaicas em
Baiona, uma vez que a comunidade de Amsterdã, mesmo com todas as cizânias
ocorridas na sua formação, já havia reestruturado o judaísmo, e esta deveria servir
como pólo irradiador para as demais comunidades da diáspora sefaradita.
66
- VAINFAS, Jerusalém colonial, op. cit. pp. 57.
44
Considerações finais
67
- NAHON, Métropole et périphéries, op. cit., pp. 253-259.
45
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49
Anexo 1
Este anexo contém cópia da carta aos senhores de Baiona, cujo titulo é:
Reposta e discurso sobre certas perguntas de Bayonna e foy em nome dos
Hahamin. Seguida da respectiva transcrição, que foi elaborada por Sheila Mendes
seguindo o manual de “Normas técnicas para transcrição e edição de documentos
manuscritos”. A numeração que consta na parte superior refere à página do
documento.
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