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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Direito Comercial I
Prof. Doutor Cassiano dos Santos
Prof. Doutor Nogueira Serens
Eduardo Figueiredo
2016/2017
Eduardo Figueiredo 2016/2017

PARTE I – O DIREITO COMERCIAL COMO DIREITO ESPECIAL FACE AO DIREITO CIVIL

CAPÍTULO I: As relações jurídico-privadas sujeitas ao direito comercial – o problema do âmbito


de aplicação do direito mercantil e a qualificação de uma relação como jurídico-mercantil.

1. A autonomia do direito comercial (face ao direito civil): critérios de determinação do seu


âmbito de aplicação e sectores de actividade abrangidos – a empresa como fundamento
último de um direito especial.

1.1. O problema da delimitação do direito comercial face ao direito civil.

Entendemos, neste curso, o direito comercial como um sector que existe como tal, isto é, que tem
autonomia substancial e não apenas formal ou didáctica. O primeiro problema que naturalmente se
coloca é o de saber a que relações se aplica essa regulamentação, no quadro geral do direito privado.
Apresentando-se o direito civil como direito das relações estabelecidas entre os cidadãos entre
si, uma vez verificado que a prática social fez surgir um corpo especial de normas que consagra
soluções distintas das previstas pelo direito civil, há que começar por determinar quais as
particulares relações entre sujeitos a que ele se aplica – é necessário delimitar o seu âmbito de
aplicação. No fundo, temos que começar a identificar as relações jurídico-privadas a que se aplica o
regime especial de direito privado a que se designa por direito comercial.
Esta tarefa pode ser iluminada pela análise da história da afirmação do direito comercial face ao
direito civil. Historicamente, afirmam-se especialidades do regime mais ou menos amplas assentes
em três critérios de delimitação no quadro geral das relações jurídico-privadas:
1) Num primeiro momento, o direito comercial surge como o direito especial que se aplica aos
comerciantes – ou melhor, nas relações jurídicas celebradas entre comerciantes (e ainda que
não se aplicasse a todos os aspectos de regime dessas relações). O direito especial visa
regular especialmente a actividade comercial em sentido próprio – a actividade de
interposição ou inter-mediação das trocas – exercida por mercadores e comerciantes,
justificando-se pelas especiais necessidades de tutela que o exercício profissional implica. O
sistema centra-se na figura do comerciante e a presença na relação de um sujeito que caiba
nessa noção  Critério subjectivista de delimitação da matéria mercantil.
2) Num segundo momento, as normas de direito especial tomam como ponto de partida para
a sua aplicação determinadas características da relação estabelecida. Passa-se de uma
delimitação assente nos sujeitos da relação – subjectivismo – a uma delimitação assente na
relação em si mesma, ou melhor, nas características da relação – objectivismo. O direito
comercial já não é um direito dos comerciantes, mas sim o direito que se aplica a actos de
comércio.
3) Num terceiro momento, ensaia-se a aplicação de um outro critério. As normas especiais
aplicam-se já não aos comerciantes, e também não aos actos de comércio, mas às empresas
(comerciais) e às relações estabelecidas por estas (ou pelos seus titulares no quadro das
actividades das empresas).

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1.2. A evolução histórica da delimitação do direito comercial face ao direito civil.

IDADE MÉDIA

A história moderna do direito comercial como ramo autónomo do direito privado iniciou-se na
Idade Média, numa altura em que a economia essencialmente autárquica deu lugar a uma
actividade económica centrada nas novas urbes, dinamizada pelas comunicações e finalizada à
obtenção de um lucro ilimitado, em que o comércio assume o papel de catalisador da economia.
O comércio torna-se a actividade dominante, baseando-se no seu dinamismo, quer nas relações
entre sujeitos, quer na invenção de mecanismos específicos ao serviço dessa actividade.
Por razões diversas, os sujeitos que se dedicam ao comércio começaram a organizar-se em
corporações, organizadas em regra por sector de actividade, e às quais pertenciam aqueles que se
dedicavam à actividade de interposição nas trocas e às actividades que giravam em torno dela, de
tal modo que, numa primeira fase, havia uma quase total identificação entre actores económicos e
os membros das corporações.
O desenvolvimento da actividade comercial e esta especial forma de associativismo determinou
o desajustamento do direito civil para regular as relações que se estabeleciam no novo contexto.
Começa, assim, a surgir no âmbito das corporações um conjunto de regras destinadas a regular a
actividade desses sujeitos. Essas regras foram-se formando a partir de usos e costumes mantidos na
prática do comércio, mas também por aplicação dos estatutos das corporações e pela formação de
jurisprudência dos seus tribunais privativos. Começa a surgir um autêntico direito comercial ou
mercantil (que se opõe ao direito civil e até ao direito legal, de origem estadual), que se destinava a
regular relações de que eram sujeitos os mercadores ou comerciantes. Este direito mercantil surgia
contra e não a partir do direito civil existente- e traduzia-se num corpo de regras próprias de origem
consuetudinária, estatutária e jurisprudencial.
Nesse contexto, o critério que decidia da aplicação do direito comercial nascente era a qualidade
dos sujeitos que intervinham numa relação – tinha portanto uma matriz subjetivista. Era a
qualidade do comerciante (enquanto membro da corporação) que desencadeava a aplicação das
novas regras – o direito comercial surgia como um direito especial e profissional.
O critério jurídico subjectivista (aplicava-se aos sujeitos comerciantes) que se elege tende a
coincidir com o critério material ou substancial (actividades económicas – comercial, ficando de fora
a agricultura e o artesanato, aos quais se aplica o direito civil).
Há que não esquecer que esta feição subjectivista do direito mercantil não se apresentava em
absoluto independente de factores objectivos: subjacente ao critério subjectivo estava já um critério
material ou objectivo. (Os membros da corporação, para poderem aceder a uma tal condição, deveriam
responder a certos requisitos, os quais pressupunham uma certa qualidade, e esta identificava-se pela
actividade que exerciam.)

FASE DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Com o desenvolvimento de Estados centralizados, o direito comercial veio a ser absorvido pela
produção legislativa. Na verdade, os textos legais desse período corresponderam basicamente à
compilação e legalização do direito anterior e mantiveram a feição subjectivista-profissional.

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A dinâmica da actividade comercial nessas novas condições e a sua afirmação como centro da
actividade económica levou a profundas mutações. Essa dinâmica traduziu-se essencialmente no
alargamento subjectivo: a actividade mercantil passou a ser exercida por cada vez mais pessoas, de
tal modo que as corporações deixam de poder conter no seu seio todos esses sujeitos. Isto implica
um desfasamento entre aqueles que se dedicavam à actividade mercantil e aqueles a quem se
aplicava o direito comercial.
Essa dinâmica reflectiu-se também num alargamento objectivo (isto é, das próprias actividades
abrangidas), na medida em que a propulsão do comércio se reflectiu em necessidades ao nível da
produção, num processo que veio a ter o seu auge com as revoluções industriais – expansão que
contribuiu para a expansão do âmbito do novo direito, agora objectivista: com a superação do modo
de produção artesanal, a indústria foi entrando para o domínio do direito comercial.
Com isso, gerou-se um desfasamento entre aqueles que estavam à partida sujeitos às novas
regras especiais (membros das corporações) e aqueles que actuavam na vida económica (esses e os
novos actores não inscritos), criando-se objectivamente uma desigualdade.
Se o critério de aplicação do direito comercial era a inscrição nas corporações, então quem não
estava inscrito não podia ver a sua actuação sujeita a esse regime, ficando antes sob a alçada do
direito civil.
Neste contexto, o critério subjectivista-formal tornou-se desajustado: a realidade passou a impor
que todos os que exercessem actividades idênticas às exercidas pelos membros das corporações
ficassem sujeitos às mesmas regras e à mesma jurisdição, sob pena de isso conduzir a desigualdades
e distorções. Daqui uma solução de compromisso, assente numa ficção: formalmente, os sujeitos
nessas condições passaram a ser reputados comerciantes ocasionais e eram, a esse título,
equiparados aos membros das corporações; deste modo, o regime especial passou a poder ser-lhes
aplicado pelos tribunais consulares.
Nesta fase, o direito comercial manteve uma feição formalmente subjectivista: o que decidia a
sua aplicação era a qualidade de comerciante, seja por ele ser membro de uma corporação, seja por
se equiparar a ele. No entanto, insinuava-se um novo dado objectivo: a extensão do âmbito de
aplicação do direito comercial implicava uma consideração mais directa da materialidade, portanto
era efectivamente na identidade das actividades que residia o fundamento para a aplicação e
extensão do regime especial.

FASE DA REVOLUÇÃO FRANCESA

Com o Code de Commerce de 1807, subsequente à Revolução Francesa de 1789, o direito comercial
passou a demarcar-se do direito civil a partir de um critério objectivista. Face ao peso do
pensamento liberal e desenvolvimento económico da França, o objectivismo surgiu com uma feição
particularmente aguda: a aplicação do direito comercial passou a ser realizada tão só com base no
acto de comércio, bastando a presença de uma operação económica que se subsumisse na noção
legal de «acto de comércio», independentemente de se integrar ou não numa actividade (isto é, numa
sequência de actos interligados em vista de um fim determinado, com uma estrutura ou organização
subjacente), para se aplicar o direito mercantil.
Esta configuração tinha relação directa com a assunção do princípio da liberdade de exercício da
actividade económica (proclamada pela Lei Le Chapelier).

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O direito comercial francês pós-revolução (e em certa medida, também o actual) caracterizou-se


pelo facto de a sua aplicação era desencadeada pela prática, por qualquer sujeito, de um acto de
comércio. Houve várias tentativas de definição de acto de comércio:
1) Acto de comércio é o acto de interposição das trocas. (Não serve para outros sectores que
não o comércio)
2) Acto de comércio é o acto com escopo lucrativo. (Não serve porque há actividades sem
escopo lucrativo)
Ora, a lei não definia «acto de comércio», mas elencava um conjunto de actos – que, em grande
medida, não pressupunham qualquer exercício profissional ou sequer organizado ou continuado.
(O que não obsta a que os sistemas objectivistas reconheçam a existência de comerciantes e lhe
associem certos efeitos, até para fins de qualificação de actos ou de aplicação de regimes e institutos-
comerciantes eram todos os que praticavam um acto de comércio e fazem disso profissão.)
Como a doutrina e as leis não conseguiram encontrar um denominar comum dos vários actos
que permitisse definir «acto de comércio» pelas suas características intrínsecas, enumerou-se acto a
acto, com apelo aos critérios extrínsecos ao acto em si mesmo. (P.e. a compra e venda comercial
define-se pelo intuito do sujeito ao praticá-lo [intenção de vender ulteriormente] e não por
quaisquer circunstâncias que se revelem na sua estrutura, não supondo também qualquer relação
com a actividade geral do sujeito.)
Estes factores explicam que as leis fundadas no objectivismo (Códigos francês, italiano, espanhol
e português), não tivessem apresentado uma noção de acto de comércio, limitando-se a recorrer a
uma lista implícita ou explicita prevista em cada um deles. (Acto de comércio, nas leis
objectivistas, é todo negócio, contrato ou acto jurídico que caiba na enumeração feita pela lei
mercantil.)
A opção legislativa pelo objectivismo é compreensível: era necessário um direito especial, já que
a burguesia dominante politicamente não podia prescindir de uma regulamentação própria para a
sua actividade económica, mas não sendo aceite, á luz dos princípios liberais de “Liberté, Equalité,
Fraternité”, um direito privativo de uma casta ou grupo, era imperativo que se afastasse do critério
subjectivista e se se alicerçasse o direito comercial num pressuposto não incompatível com o
principio da igualdade1. Mas se a actividade predominante era a mercantil (interposição das trocas),
e a indústria estava pouco desenvolvida e sendo certo que a actividade comercial é compatível com
estruturas organizativas muito fluidas (podia ser exercida mesmo esporadicamente), então estavam
reunidas as condições para se centrar o direito especial na actividade decomposta em actos, visto o
acto isoladamente e sem necessidade de estruturação, organização ou integração. (Ainda não
estavam reunidas as condições para a empresa entrar no direito explicitamente)
Se o comércio pode ser ocasional e recorrer a uma estrutura mínima, a indústria é
necessariamente profissional e implica uma organização objectivada num conjunto de meios que se
apresenta até fisicamente implantado. (a indústria tem que ser exercida profissionalmente e o
comércio pode ser profissional ou ocasional).

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ORLANDO DE CARVALHO fala de um “compromisso objectivista”  a fuga ao objectivismo
mantém o direito comercial autónomo e permite que este aparentemente fuja ao sistema de casta, servindo
como máscara ideológica. E isto porque as normas que estão nesse Código visam o exercício dos
profissionais/mercadores e não os outros.

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FASE DO UNITARISMO

Esta aparência de igual tratamento entre sujeitos trazida pelo objectivismo teve consequências
importantes para a vida ulterior do direito mercantil como direito autónomo. O direito comercial
parte do acto de comércio, que é aquilo que está definido pela lei comercial, sendo que este define-
se a si mesmo, coincidindo o ponto de partida e de chegada. Para além disso, por esta razão, não se
funda uma contraposição substancial e segura da fronteira entre direito civil e direito comercial.
Deste modo, a partir da consagração do objectivismo no Código francês, o direito mercantil não
teve mais uma existência pacífica: foi posto em causa na sua autonomia por muitos autores, que
sustentavam a inexistência de bases e fundamento para a existência ou subsistência de um direito
comercial autónomo face ao direito civil. Há quem entenda que o direito comercial se diluiu no
direito civil, com vários dos seus institutos e mecanismos a tornarem-se de uso comum, isto é,
mesmo fora da esfera mercantil e com muitas das suas regras e soluções a cobrarem crescente
vigência em certos domínios do direito civil.
Muitas vozes defenderam a desnecessidade de um Código comercial e a integração das suas
normas num novo capítulo do Código Civil – veja-se o Código Suíço de 1907.
O objectivismo abriu assim caminho a uma corrente unitarista ou pacificadora.

FASE DO SUBJETIVISMO ALEMÃO

Neste contexto, a reafirmação de um direito comercial autónomo só se podia realizar por via
de um regresso às origens – isto é, um regresso ao critério que justificava a existência de um cirpo
de regras distinto do direito civil: se o direito comercial era um direito dos comerciantes, sustentou-
se que deve ser nesse plano, e com correspondente campo de aplicação, que se há-de encontrar
justificação para a existência de um corpo especial de normas.
O problema pôs-se na Alemanha no século XIX, que foi um período de grande
industrialização e desenvolvimento da actividade bancária e financeira. Estes sectores supõem
necessariamente a empresa e tal como o comércio, não se bastam com o direito civil. Era necessário
um direito comercial autónomo, que regulasse simultaneamente o sector comercial e também a
indústria e o sector financeira crescentes. Existia, agora, um comerciante, ou seja, um profissional da
actividade económica que se apresentava não como aquele que estava inscrito numa corporação ou
associação, mas como aquele sujeito que exercia uma empresa mercantil que actuava num dos
sectores de actividade económica mais desenvolvida. Foi este o critério inscrito, em 1897 no HGB2.
Essa foi a primeira referência explícita à empresa para efeitos de delimitação da matéria
mercantil. A juventude da empresa como mecanismo de exercício de uma actividade económica,
não permitia, porém, a consideração dos seus aspectos organizativo e objectivo. A empresa do HGB
tinha o sujeito como primeiro referente e era compreendida como sequência de actos da qual
decorria a aquisição da qualidade de comerciante, e não se apresentava com algo objectivado e
estruturado.
Acentuava-se o perfil subjectivo da empresa, permanecendo na sombra quer o lado objectivo,
quer na sua dimensão institucional. Mesmo naquele plano, nem todas as empresas ficavam
necessariamente sujeitas ao direito comercial.
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Que, note-se exclui o comércio ocasional do âmbito de aplicação do Direito Comercial, passando este a estar
sujeito ao Código Civil.

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Só mais tarde, com Wieland e Mossa, a empresa foi apresentada directa e absolutamente como o
critério primeiro e central da delimitação do direito comercial – que se reflectiu na Holanda e no
Codice Civile Italiano. Nesta época vislumbrava-se já que a restrição estrita do direito comercial a um
direito das empresas mercantis é também fortemente limitativa e que, com isso, o direito especial se
reduz a um magro complexo de normas insuficiente para sustentar uma efectiva autonomia. Aqui
resultava uma nova vulnerabilidade às tendências unitaristas que teve como resposta o recurso a
uma noção genérica de empresa, susceptível de tornar o direito comercial como direito de todas as
empresas.
É com a afirmação da empresa como critério de delimitação da matéria mercantil que se dá um
novo passo na afirmação da autonomia do direito comercial. Essa noção de empresa deve ser
centrada na empresa tal como ela se apresenta na ponta da actividade económica – empresas que se
estruturem com base em modelos de racionalidade e organização e, assim, de autonomia similares
aos da empresa-matriz.
ORLANDO DE CARVALHO considera que esta evolução histórica do direito comercial, dotada
de sucessivas refracções e expansões se deve à sua própria natureza – é um direito bifronte ou
bidimensional. O DOUTOR CASSIANO acrescenta que a história nos prova que quando há uma
fase de desenvolvimento económico, o direito comercial se expande; em épocas de retracção, há um
encolhimento do direito comercial.

1.3. Critério jurídico de delimitação e sectores de actividade económica abrangidas pelo


direito mercantil.

Toda esta evolução histórica tem um problema básico: demarcar as actividades humanas que
justificam e desencadeiam, em cada época, a aplicação de um regime especial destinado a regular a
actividade daqueles sujeitos que actuem em sectores mais dinâmicos e avançados do sistema
económico, regime contraposto ao direito civil. Esta análise tem de ser realizada sempre de acordo
com a configuração que cada sector ocupa num determinado momento histórico e tendo em
consideração os condicionamentos ideológicos e políticos subjacentes.
O direito teve, em cada momento, sempre condicionado pelas circunstâncias históricas, a tarefa
de encontrar um critério especificamente jurídico geral e abstracto que servisse como ponto de
partida para a demarcação do âmbito de incidência do regime especial.
Assim, ao longo da história e até ao presente, a questão da delimitação do direito comercial foi
sempre reconduzida à questão de saber se o direito mercantil se aplica só às actividades exercidas
profissionalmente, elegendo-se nesse caso como ponto de partida do sistema o critério jurídico
correspondente, o comerciante, ou se, pelo contrário, regula também as actividades não
profissionais, ou seja, ocasionais, tomando nesse caso um critério não subjectivo (o acto de
comércio).

No início, o subjectivismo medieval conduziu a uma coincidência entre as actividades


abrangidas pelo direito mercantil e aquelas que careciam de um regime especial, porque os
comerciantes eram tendencialmente todos aqueles que exerciam actividades económicas. Esta
coincidência foi-se perdendo.

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O DOUTOR CASSIANO fala de um corte vertical e horizontal, sendo que consoante o critério
eleito naquele plano vertical (comerciante, acto de comércio ou empresa), assim se abrange de
forma mais ou menos ampla cada sector e o conjunto de actividades económicas.
Por outro lado, cada sector de actividade económica historicamente afirmado foi sendo trazido
para o direito especial com recurso ao critério jurídico que mais se lhe adequava e que na fase
histórica se impunha também pela confluência de razões extra jurídicas.
Assim:
Na Idade Média predominava o comércio exercido pelo comerciante ou mercador inscrito nas
corporações. O corte vertical coincidia com o horizontal.
Com a Revolução Francesa, embora ainda predominasse o comércio, era agora muito mais
fluido e por pressão de factores extrínsecos, toma-se o acto de comércio como base do direito
comercial. Há um alargamento do âmbito de aplicação do direito especial, que passou a abranger
também o exercício não profissional ou ocasional: o objectivismo é o corte vertical de delimitação
mais abrangente e desestruturante, porque, nas actividades que comercializa prescinde de qualquer
referente profissional ou ligado à empresa.  Trouxe o comércio em sentido económico para o
âmbito da matéria mercantil. A indústria e os serviços são também matéria sujeita ao direito
mercantil, sendo que neste âmbito as leis não puderam deixar de tornar a empresa como critério de
delimitação/inclusão – porque todo o exercício industrial e as prestações de serviços mais
avançadas necessariamente se analisam numa estrutura empresarial patente.
Numa primeira fase, a empresa ou foi compreendida como um acto ou como uma sequência de
actos ou foi tomada essencialmente no seu perfil subjectivo – remetendo também para a actividade
e para o sujeito. A consequência disto foi que, compreendida a empresa como actividade, tornou-se
por referência a empresa mercantil – e era só para essas que se impunha a sujeição a um direito
especial. O resultado final foi o de que, fora do direito comercial ficavam – como no objectivismo –
as actividades não submetidas à lógica do sistema, fosse por não serem compatível com o modo de
exercício empresarial, fosse por não estarem integradas no sistema económico dominante.  O
corte vertical, quando realizado no todo ou apenas em parte através do recurso à empresa em
sentido subjectivista comportava, à partida, exclusões no plano horizontal.

Pode, assim, concluir-se que os vários critérios historicamente afirmados para a delimitação do
direito comercial face ao direito civil não se contrapõem em absoluto: não só eles correspondem a
duas faces da mesma realidade, exprimindo um as fases mais expansivas e abrangentes do sistema
económico e outros os seus momentos de retracção, mas sempre com vista a alcançar um plano
idêntico no plano horizontal; como sobretudo têm que ser vistos como critérios complementares e
susceptíveis de coexistir e concorrer, numa mesma época e ordenamento jurídico.
Em casa momento se configuram diferentemente os sectores que carecem de regulação
específica e em cada momento há sucessivas alterações no seu exercício. Por isso eles são
apreendidos pelo sistema jurídico com base em critérios distintos, que podem variar em cada
momento.
O objectivismo é o critério que serve para determinar um regime especial para o comércio em
sentido económico (intermediação das trocas) nas fases de evolução da economia em que esse era o
sector dominante; o subjectivismo e o empresarialismo foram os critérios encontrados para a
comercialização da indústria e do sector financeiro e para as prestações de serviços de ponta, e
tornaram-se critério único ou principal quando estes sectores assumiram papel principal.

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Prescinde-se do momento estritamente subjectivo à medida que a empresa se impõe como modo
de organização e exercício da actividade económica capitalista. Este processo culmina com a
generalização e universalização da empresa e homogeneização no plano funcional e organizativo da
actividade económica. Isto é, a empresa é o ponto de partida para o regime especial. Assim, o corte
vertical, eminentemente jurídico, tende a coincidir de novo com o corte horizontal ou económico.

1.4. A empresa como fundamento do regime comercial e o seu papel na delimitação face ao
direito civil – actividades económicas incluídas e sentido das exclusões. Noção de
empresa.

Tudo o que vimos até agora permite concluir que um regime alternativo ao do direito comum é
justificado historicamente e continua a explicar-se actualmente pelas especiais necessidades de
regulamentação dos sectores que em cada fase situam nas zonas mais dinâmicas e de vanguarda da
actividade económica – zonas essas que arrastam outras para a sua lógica, quer por força da
voracidade da procura do lucro, quer, de certo modo, do seu pioneirismo: veja-se o que se passa
com a comercialização das esferas culturais e desportivas, ou mais no plano jurídico, com a
empresarialização da actividade imobiliária operada com o fenómeno dos centros comerciais.
Ora, quando as actividades nesses sectores assumem ostensivamente o modo de exercício
empresarial – ou seja, quando correspondem à existência de uma empresa – é esta que passa a estar
no cerne do direito e que deve ser o ponto de partida da sua aplicação. É a empresa, coma as suas
características relevantes no plano jurídico e com os interesses que se suscitam em seu torno, que
justifica e desencadeia a aplicação do regime mercantil. E é assim que o direito positivo se apresenta
formalmente, total ou parcialmente, tomando por ponto de partida outro ou outros critérios.
Devemos, por isso, definir empresa.
ORLANDO DE CARVALHO defende que a empresa é uma realidade da vida, e não uma noção
jurídica. A empresa, antes de ser para o direito, é algo que existe na vida social. Não significa isto
que o direito não possa conformar essa realidade para lhe associar a produção de certos efeitos
jurídicos. No entanto, num plano anterior, a empresa é o que é, e não o que a lei identifica como tal.
No entanto, não se olvide que não se intenta aceder a uma pura noção económica de empresa,
mas à empresa enquanto realidade juridicamente relevante. Ora, neste sentido, há que reter que
aquilo que a empresa é para o direito não pode ser mais do que aquilo que é a empresa para a
realidade social (ainda que a lei possa equiparar, mais ou menos extensamente, outras realidades à
empresa). Sendo assim, o ponto central da determinação daquilo que é empresa deve ser a
específica conformação que o OJ mercantil dela faz, explicita ou implicitamente.
No DC português há uma disposição que faz a qualificação como comerciais de certas empresas
– ver art. 230º CCP. Este preceito, em bom rigor, apenas identifica as empresas comerciais, tomando
como pressuposto aquilo que é a empresa. Não obstante, a partir do art. 230º CCP podem ser
extraídos alguns dados que ajudam à caracterização da empresa no Código Comercial português.
As empresas que são consideradas comerciais são as que se propuseram exercer certas
actividades. É patente que a comercialização das empresas se dá em função de intentos e de
actividades. Qual o significado disto?
A referência directa à empresa como pressuposto e veículo para a comercialização de sectores
ou actividades económicas não pode deixar de ser relevante. Na terminologia da época convocava
essencialmente o seu perfil subjectivo: a empresa como actividade de um sujeito, composta por
uma sequência de actos e exercida profissionalmente.

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Mas o art. 230º permite ir mais além na caracterização da empresa. É significativo que o
legislador tenha identificado as empresas que são qualificadas como comerciais tomando como plus
a sua inserção num dos vários sectores ou actividades. Ora as actividades enumeradas no art. 230º
correspondiam, para la dos domínios já consagrados noutras disposições do código (comércio,
banca e seguros), aos sectores mais avançados e estruturados da actividade económica da época:
sectores com elevado grau de estruturação e organização. Ao tomá-los como referente da empresa
para efeitos de comercialização, a lei estava implicitamente a considerar a dimensão estrutural, a
organização, que já era patente à época.

O art. 230º revela ainda uma outra dimensão da empresa. O preceito refere-se explicitamente ás
empresas “que se propuserem” exercer certas actividades. Propósito, neste contexto, é o mesmo que
objectivo, intuito, fim. Os intuitos são sempre de pessoas humanas e ultrapassam estruturas ou
organizações. O art. 230º pressupõe a empresa como essa estrutura dotada de intuitos próprios – e
portanto, como um sujeito com identidade própria (distinta da das pessoas humanas que a criam ou
nela intervêm) no tráfico, e como uma estrutura em que há um sujeito que define os seus fins e
que controla a actividade em que ela se analisa.

O art. 230º possui ainda um importante dado para a caracterização da empresa no plano jurídico
– tratam-se das exclusões do âmbito de aplicação do preceito. Sentido das exclusões:

Inclui Exclui
230º/1 CC Indústria transformadora, Fabricação ou manufactura de produtos
incluindo a manufactureira agrícolas acessórios da exploração agrícola;
artesanato.
230º/2 CC Empresas de fornecimentos de Actividade de fornecimento directo de
bens produtos agrícolas – proprietário cou
explorador rural que fizer fornecimentos a
terceiros de produtos agrícolas por si
produzidos.
230º/5 CC Editoras A edição, publicação ou vendas directas
pelo autor.

Ora, a agricultura e o artesanato estão, assim excluídos do âmbito da aplicação do direito


mercantil – porque não são actividades exercidas empresarialmente. Na agricultura, o seu exercício
tradicional é realizado com recurso a meios tão incipientes que o produto do exercício fica
dependente de factores externos ao processo produtivo.
Não é também empresarial o artesanato, porque o artesão tem um papel tão relevante que o
produto é imputável à sua habilidade ou arte e não ao processo de produção no seu conjunto. (a
estrutura, existindo, é coadjuvante e não determinante). Falta, a ambas, a autonomia necessária.
Artesanato e indústria distinguem-se pelo modo como se processa o exercício. Historicamente, o
alargamento objectivo do direito comercial dá-se quando a industria se afirma como alternativa ao
modo de produção artesanal e o supera.

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Algo similar se passa com as profissões liberais e as prestações de serviços. Historicamente, as


profissões liberais não estão sujeitas ao direito comercial. Continua a ser assim, apesar do CCP não
fazer uma exclusão explícita. Ora, das comercializações efectuada na lei em matéria de prestação de
serviços decorre implicitamente a exclusão das profissões liberais, porque aquelas supõem a
empresa e, nestas, ela não existe. Também o resultado, nas profissões liberais, depende da
capacidade profissional do sujeito e não de uma estrutura, de tal modo que a prestação por outrem
que não aquele profissional torna a prestação distinta.
É o surgimento de prestações profissionais em que organização assume um carácter tal que o
papel do sujeito se apaga a favor dela, que explica a adesão destes sectores de actividade económica
ao regime especial. Assim, as prestações de serviços em que a estrutura ganha autonomia
relativamente ao sujeito entram no âmbito de incidência do regime mercantil. Já as prestações de
serviços não empresariais, as profissões liberais, continuam sob a alçada do direito civil. Assim, a
empresa é pressuposto para a comercialização de actividades económicas que se analisem em
prestações de serviços. Historicamente destaca-se a actividade bancária que se caracteriza
exactamente por ser comercializada justamente quando haja operações realizadas por bancos.

Note-se que mesmo nos sectores excluídos, a introdução do exercício empresarial permite,
em certa medida, a comercialização: é o que se passa na agricultura e em certas franjas de prestações
tipicamente liberais. Destas exclusões surge outra nota da empresa: as empresas caracterizam-se
pela autonomia e analisa-se numa estrutura de meios com densidade e organização caracterizadas
pela complexidade, que a dotam de auto-suficiência produtiva, justamente porque disso depende a
dessubjetivação implicada na autonomia.

De todos os dados extraídos até agora, podemos concluir que a empresa se caracteriza pelas
seguintes notas:
1) A empresa é uma estrutura complexa de pessoas, bens, direitos e outros valores, na qual
assumem hoje particular importância a ideia organizatória e a estratégia definidas pelo
empresário e a forma como ele gere a intervenção no mercado;
2) Essa estrutura desenvolve uma actividade que se analisa num processo de produção em
sentido amplo, no qual se produz um resultado que consiste num valor económico novo
(acrescentado) susceptível de troca no mercado – o que abrange desde a transformação
industrial até ao fornecimento de serviços, passando pela actividade de intermediação nas
trocas, pela agricultura ou pelas pescas, mas também pela prestação de serviços nas áreas
desportivas, artísticas ou culturais;
3) De entre os meios colocados pelo sujeito na estrutura, avulta particularmente o capital, o
qual corresponde ao investimento realizado por ele ou que ele mobilizou.
4) Esse processo é caracterizado pela autonomia funcional, por o seu resultado decorrer do
próprio processo no seu conjunto e não defender absorventemente de um ou alguns
elementos nele integrados ou participantes, nem, tão pouco, de factores extrínsecos.
5) A estrutura actua tendo em vista a autonomia financeira, isto é, a criação de condições para a
auto-reprodução do processo e para a remuneração dos investimentos, visando um ganho
que normalmente consiste num lucro.
6) A estrutura apresenta-se no tráfico e no mercado como uma entidade própria, surgindo
como um verdadeiro actor ou sujeito económico que comunica com os demais e que deles se

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distingue – sem que isto signifique que seja necessária ou sequer, naturalmente, um sujeito
em sentido jurídico.

Uma outra conclusão a retirar do sentido das inclusões e exclusões é que a empresa é a que se
situa nos sectores de ponta do sistema económico. Tais características exprimem os três perfis com
que a empresa se apresenta na realidade e nas leis:
1) Perfil Subjectivo  Actividade ou conjunto de actividades do sujeito, mas devendo-se pôr
em especial ênfase a gestão realizada pelo empresário.
2) Perfil Objectivo  Conjunto de meios detidos pelo sujeito.
3) Perfil Institucional ou Corporativo  Existência como entidade no mercado.
Assim, assistimos hoje à empresarialização de todos os sectores da actividade económica. Na
actualidade, a empresa assume as características especificas da empresa comercial de tal modo que
a empresa e a empresa comercial se tornam sinónimos.
Tudo isto torna a empresa um critério apto para, no plano jurídico, delimitar o campo de
aplicação das normas jurídicas ou mesmo de um sector de regulamentação. Assim, o corte vertical
identifica-se com o corte horizontal, e os sectores que podem ser trazidos para um direito especial
com apelo ao critério jurídico da empresa coincidem com a totalidade dos sectores capitalistas da
actividade económica.
O direito comercial é hoje o direito especial da actividade económica do sistema capitalista, a
qual juridicamente pode ser apreendida a partir da existência de uma empresa.

1.5. A empresa e as especialidades do regime mercantil: interesses centrais postulados pela


empresa e o seu reflexo no direito comercial.

Identificado o papel da empresa no direito comercial, importa identificar quais os interesses que
estão presentes no tráfico e que correspondem aos interesses do sistema empresarial no seu todo.
Da análise que vamos realizar importa ter presente que esses interesses não são estáticos e nãos e
reflectem na regulamentação, ao longo da história do direito comercial, de forma unívoca: em cada
fase novos interesses se vão revelando, já presentes, vão-se moldando em novos termos. Estes
interesses reflectem as verdadeiras características centrais do direito comercial. São eles:
 Tutela do crédito, facilitando à empresa a sua obtenção pela via da tutela daquele que
lhe concede o crédito.  O fácil acesso ao crédito do fornecedor e dos financiadores
directos é essencial à vida da generalidade das empresas. Deve o Direito Comercial tem
um conjunto de mecanismos que protejam mais fortemente o credor da empresa; o
concreto titular da empresa – devedor por força de um acto de comércio – fica numa
posição mais difícil, mas as empresas em geral acederão mais facilmente ao crédito. Num
sistema objectivista, a tutela do crédito faz-se ao nível de quem dá crédito àqueles que
praticam actos mercantis e não apenas à empresa. A tutela faz-se principalmente pelo
alargamento maximizado do âmbito subjectivo da responsabilidade (ver art. 100º
CCom.; art. 15º CCom., conjugado com art. 1691º/d CC). Em segunda linha, a tutela faz-
se através do estabelecimento de regras que asseguram o cumprimento por parte do
devedor. (p.e. aval, nas letras e livranças; falência)
 Promoção da celeridade e complexização dos negócios.  Muitas vezes realizada em
massa, a celebração de negócios deve ser desformalizada ou simplificada. Vale, assim o

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princípio da liberdade de forma, já que os negócios mais centrais do sistema estão


sujeitos a ela e as excepções são mais escassas. A tendência é para uma simplificação
crescente da forma: acontece com o trespasse (115º/3 RAU; 1112º/3 CC), locação
financeira (art. 2º DL 149/95) ou do contrato de sociedade comercial (basta escrito
particular com as assinaturas dos contraentes reconhecidas pelo notário
presencialmente). Este interesse pode entrar em conflito com outros, quando, p.e. a
empresa assume voluntariamente a formalização dos negócios. Este interesse ainda se
revela na admissibilidade de médios mecânicos e electrónicos como meio de celebração
de contractos e emissão de declarações e de prova – art. 97º Com.
 Tutela da (fácil) circulação de bens e (em especial) créditos  A riqueza mercantil
típica é mobiliária, assentando em bens móveis e créditos e consistindo em bens que
devem ser de fácil mobilização. É justamente isso que explica a existência de mecanismos
para incorporar créditos ou outras posições subjectivas em documentos e dotar o regime
desses mecanismos de regras que permitam a sua fácil transmissão e tutelem
amplamente aquele que os adquire por essa via simplificada. (é o que sucede nas letras e
livranças, cheques, acções, conhecimento do depósito, etc…) Recentemente dá-se um
movimento geral para a titularização: no sector financeiro e actividades de ponta,
permite-se a cessão de crédito para efeitos de titularização a favor de sujeitos
profissionais e especializados e certificados, com intervenção da CMVM.
 Tutela da conservação e transmissibilidade da empresa.  Como bem central do
sistema económico que é, importa que o OJ proteja a fácil mobilização de investimento
realizado na empresa. Assim, tutela-se a preservação da empresa nas mãos do titular –
concorrência desleal protecção dos bens da propriedade industrial… Tutela-se ainda a
continuidade ou estabilidade das relações contratuais estabelecidas no quadro da
empresa.
Por outro lado, a própria empresa é um valor – é o valor máximo do seu titular, que
corporiza o seu investimento – e deve ser de fácil mobilização como valor patrimonial.
Na lógica do sistema mercantil está, então, não tanto a simples circulação das empresas
como um valor em si mesmo, mas a mobilização do valor investido, tal como é detido
em certo momento. As leis tutelam, assim, a transmissão da empresa, libertando-a de
restrições que a cerceariam. Neste quadro, impõe-se a preservação da sua unidade e
integralidade na circulação (ver arts. 1112º CC, 11º DL 149/95, pelos quais se assegura a
facilidade da transmissão de posições contratuais ligadas à exploração de uma empresa,
facilitando com isso a transmissão da própria empresa e a realização pelo titular do valor
dela. Nem sempre estes interesses se fazem sentir de forma linear, sendo que a lei terá,
não raras vezes, que manter um equilíbrio entre essa tutela e a tutela de outros interesses
empresariais que podem incidir sobre a transmissão da empresa.
 Tutela da exploração lucrativa.  Centrada a actividade económica na empresa, é
imperioso que o exercício deste seja possível em moldes lucrativos, de acordo com o
plano ou projecto do seu titular. Para tal, para além da tutela da concorrência, destacam-
se a regra da onerosidade dos negócios mercantis e o regime dos juros. Para afirmar este
interesse é também fundamental a afirmação do princípio da autonomia da empresa –
salvo regras justificadas por algum interesse público, não se tolera qualquer interferência

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relativa na tomada de decisões no seio da empresa. É o titular que define exclusivamente


os objectivos, estratégias e os meios de que se socorre, sem intromissões externas.
 Incondicionalidade e imediação das vinculações comerciais.  A celebração e negócios
em massa impõe o estabelecimento de vinculações firmes, com a previsão de
contragarantias e obrigações alternativas à obrigação central especialmente
configuradas. Proliferam, pois, garantias pessoais ou reais adicionais, no crédito bancário
e nos títulos de crédito e, na contratação em geral, torna-se frequente a garantia bancária
dotada convencionalmente de automaticidade e autonomia.
 Tutela especial da aparência  O exercício óptimo da empresa pressupõe que se suscite
uma especial confiança. Por isso, o direito comercial tutela essa mesma confiança, a boa-
fé e em especial a aparência suscitada face a credores e àqueles que
contactam/contratam com a empresa – tal é patente na imposição de publicidade por via
de registo e no regime dos títulos de crédito. O mesmo acontece no regime de tutela do
cliente no contrato de agência.
 Tutela da segurança e firmeza das transacções.  É necessário que os compromissos
estabelecidos não sejam susceptíveis de fácil distrate. Para tutelar tal interesse, o direito
comercial adopta normas como o art. 471º CCom. e 42º CSC.
Importa reter que estes interesses não são privativos do Direito Comercial, sendo eu algumas
delas surgem no âmbito do direito civil - mas quando presentes no direito civil, as suas
manifestações temperam-se com a expressão de interesses tipicamente civis. Também é de notar
que, sendo a matéria comercial relativamente heterogénea, estes interesses não estão presentes
uniformemente e com igual relevo em todo o direito comercial.

1.6. O direito comercial actual: conclusão.

Depois de analisar toda a evolução histórica do direito comercial, chegamos à conclusão de que
este se apresenta histórica e actualmente como um sector necessário da regulamentação da
actividade daqueles sujeitos que intervêm nas zonas mais dinâmicas da actividade económica.
Como essa intervenção implica a empresa, será em torno dela que se estrutura o direito comercial.
Assim, qualquer que seja o critério utilizado para delimitação do Direito Comercial – e que se
traduz na sua extensão – é na empresa e nos seus interesses que se encontra a explicação e o
fundamento último para as soluções de regime.
É, portanto, na sua dimensão profissional, estrutura na e pela empresa – e não, pois, num
profissionalismo assente numa pura perspectiva dinâmica ou subjectiva – que radica a essência do
direito mercantil.
No entanto, viu-se já que a empresa é um mecanismo dinâmico e tendencialmente
expansionista. Neste contexto, nos casos em que as soluções que o regime das empresas consagra
não atendem tanto à circunstância de ser possível a sua utilização fora da empresa, mas antes e
fundamentalmente, aos interesses que são postos quando a sua utilização se faz num contexto
empresarial, não há razão para os afastar do direito comercial.
Assim vistas as coisas, a natureza profunda do direito comercial é ser um direito especial e
bifronte (ORLANDO DE CARVALHO), simultaneamente objectivo e empresarial: é um direito que
regula mecanismos empresariais e outros que, engendrados para servir a empresa, são com mais

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frequência dispostos para utilização mais ampla, mas que continuam a servir os interesses da
empresa.
O actual direito comercial é, assim, por natureza um direito inegavelmente objectivo. Todavia
este objectivismo assenta no papel da empresa e dos seus interesses típicos, assumindo essa
dimensão, mas centrando-se nos mecanismos e nos interesses que o seu regime serve,
independentemente do concreto uso. Esta dimensão objectiva corresponde à tendência das zonas
preferenciais da economia para a expensão e para a conquista de novos espaços às zonas civis.
Sendo assim, o direito comercial tem um conteúdo histórico e mutável, sensível ás mutações da
própria actividade económica e à dinâmica da empresa.
Ora, a empresa é o critério real subjacente ao sistema, que pontualmente aflora sem ser sempre
assumido autonomamente e que, no plano prospectivo, é o critério que deve valer na compreensão
do sistema legalmente eleito. Com isto determina-se um critério para compreender o sentido e
alcance do direito comercial e da chamada comunização de mecanismos e institutos – distinguindo-
se os casos em que se mantém o selo comercial daqueles em que a ela corresponde uma
descaracterização - e um regresso ao direito civil. Mas ganha-se também uma consciência do papel
da empresa na explicação do direito positivo e até na delimitação de regime nela instituído. Por
exemplo, toma-se consciência da simbiose entre faixas fundamentais do direito comercial e o direito
do consumidor.

2. Qualificação de uma relação como jurídico-mercantil - relações sujeitas à lei comercial:


actos de comércio, comerciantes e empresas na delimitação do direito comercial
português.

2.1. Preliminar: fontes do direito comercial


2.1.1. O Código Comercial e outros diplomas legais mercantis

A qualificação de uma relação jurídica como mercantil depende de normas qualificadoras, que
são as normas que estabelecem os pressupostos cuja verificação vai desencadear a aplicação do
direito mercantil.
A identificação das fontes onde consta esse regime especial de natureza mercantil, toma por
base a própria qualificação legal ou uma similitude no plano das características do regime neles
inseridos.
Assim, o diploma central do direito comercial português é o Código Comercial de 1888.
Inicialmente, a lei comercial e o Código comercial tendiam a coincidir, o que se reflecte no art. 1º do
CCom. Ora, a coincidência foi desaparecendo com os tempos, à medida que iam surgindo outros
diplomas legais que integram o direito comercial e são, portanto, suas fontes. Ex: CSC, CPI, CVM,
Leis uniformes relativas a letras e livranças, CRC, CIRE, etc…
Todos estes diplomas devem ser considerados leis comerciais, ainda que o CCom. continue a
ser a lei comercial central, a partir da qual se delimitada e caracteriza o direito mercantil. E isto,
ainda que cada diploma contenha ou possa conter, regras próprias quanto ao seu âmbito de
aplicação: o critério do acto de comércio, eleito pelo legislador em 1888, é o ponto de partida do
nosso direito mercantil, e o seu critério caracterizante, mas não é critério universal da lei comercial
portuguesa.

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2.1.2. Usos comerciais.


O surgimento do Direito Comercial dá-se a partir da aplicação de usos e costumes dos
mercadores. O direito comercial moderno veio ulteriormente a assumir uma veste essencialmente
legal. Nos termos do art. 3º CCom. “as questões sobre direitos e obrigações comerciais ”resolvem-se
pela lei comercial ou pelo direito civil. A lei não alude a qualquer papel dos usos e costumes.
Podem os usos apenas ser fonte mediata do direito comercial.
Deve, porém, sublinhar-se que a lei mercantil, em geral, reserva aos usos um valor restrito,
tomando-os como fonte de integração da disciplina contratual ou voluntária da relação comercial,
na falta ou insuficiência desta, mas não lhes atribuindo um valor para-legal: a lei, em lugar de
prever regimes supletivos remete para os usos que nunca se aplicam quando contrários á boa-fé.
Veja-se o CCom. quanto à remuneração do mandato comercial (art. 232º), quanto ao conteúdo do
mandato (art. 238º) e ainda arts. 373º, 382º e 404º.
Não se trata de apresentar s usos como fonte de direito – são apenas maios de integração
contratual. No direito comercial deve entender-se que os usos correspondem por regra àquilo que
as partes teriam previsto se houvessem considerado o ponto ou inscrevem mesmo os ditames da
boa-fé. Assim, havendo usos fixados, e não tendo as partes disposto sobre a matéria deles objecto, é
porque a aceitaram implicitamente como primeiro elemento para a integração do contrato.
Note-se ainda que não correspondem a usos as meras práticas unilaterais – têm de surgir da
reiteração de comportamentos e actos jurídicos e a sua aceitação sistemática em processos
contratuais por ambas as partes, surgindo de cláusulas contratuais expressas ou tácitas repetidas.
É também comum na vida mercantil, com base em previsão da lei ou de modo estritamente
voluntário, serem elaborados códigos de conduta.

2.2. Os arts. 1º e 2º do CCom.: actos de comércio e matéria mercantil; o acto de comércio


como facto jurídico.
O art 1º CCom. supõe, para a aplicação geral do seu regime, a existência de um acto de
comércio, isto é, pressupõe que a relação jurídica em causa possa ser subsumida naquilo que o
Código identifica como acto de comércio: se a relação emergir de um acto de comércio, será uma
relação comercial, aplicando-se-lhe, pois, o direito mercantil. A qualidade ou as características dos
sujeitos são irrelevantes.
No art. 1º a lei ocupa-se de apreender as relações ou acções humanas, juridicamente
conformadas, que ficam sujeitas ao direito comercial. O direito comercial português aplica-se em
função da existência de um acto de comércio, sempre que não exista disposição a estabelecer um
diferente critério de aplicação. Assim, o sistema instituído pelo Código Comercial, é marcadamente
objectivista. A matéria mercantil identifica-se pela presença de um acto de comércio, e não depende
da existência de um comerciante. O que é um acto de comércio?
O nosso Código reflecte as dificuldades de encontrar uma noção substancial e uniforme daquilo
que é o acto de comércio. O legislador renunciou, assim, a definir geral e substancialmente acto de
comércio ou mesmo a fornecer, numa lista, quais são estes, optando por fazer uma remissão
implícita, à qual juntou certos actos praticados pelos comerciantes.
O art. 2º estabelece assim: “serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem
especialmente regulados neste Código, e além deles, todos os contractos e obrigações dos comerciantes, que não
forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar.”.

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 A primeira parte consagra como actos de comércio aqueles que estão previstos no
Código. Revela para efeito de sabermos o que é em geral acto de comércio.
 A segunda parte comercializa certos contractos e obrigações dos comerciantes. Os actos
que retiram deste preceito a sua qualificação como comerciais pressupõem a existência
de um comerciante, de acordo com o art. 13º CCom.

Atentaremos na primeira parte do artigo, que remete para o elenco que consta do próprio
Código, o qual funciona como uma espécie de lista implícita. Serão, pois, actos de comércio todos
aqueles que têm algum aspecto do seu regime regulado no Código Comercial (em, em geral, na lei
comercial) e que são explícita ou implicitamente aí previstos, de forma completa ou incompleta:
basta que seja uma regulação substantiva (e não meramente adjectiva); não é necessário que seja
explícita (pode ser feita por remissão, como o caso do art. 363º CCom.); nem é necessária a
existência de uma regulamentação específica para aquele acto: “especialmente regulada” significa
tão só que a previsão no Código importe a aplicação do regime especial do próprio Código, e não
um regime especial daquele acto.
A própria previsão não tem que ser completa – basta um aditamento ao tipo conhecido do
direito civil das notas específicas de que depende a sua qualificação como comercial. (ex: compra e
venda comercial – que se distingue da civil pelo “intuito” de revenda que preside a cada uma das
duas declarações em que se decompõe.)
Assim, concluímos que os actos de comércio são quase sempre contractos. Mas a lei mercantil
também prevê mecanismos ou institutos que são regulados como tais – é o caso da letra de câmbio,
firma, marca, sociedade, etc… Nestes casos, é o próprio mecanismo ou instituto, e não o acto que
lhe dá origem ou as declarações singulares que o integram, que é qualificado como comercial –
excepto se o acto ou as declarações forem eles próprios negócios unilaterais ou contractos e tiverem
um tratamento jurídico diferenciado, caso em que são também eles actos de comércio.
Em todo caso, para haver acto de comércio é necessário que a previsão envolva que os regimes
especial e geral se devam aplicar directamente, e não como consequência de uma qualificação
anterior de outro acto de comércio – assim, não podem ser qualificados como actos mercantis os
simples actos jurídicos societários, porque os efeitos de regime que a lei lhes associa dependem da
prévia qualificação como sociedade comercial.
Além destes, são actos de comércios os facto ilícitos previstos na lei comercial. São ainda matéria
mercantil, embora não actos de comércio em sentido próprio, os factos jurídicos voluntários a que a
lei associa efeitos jurídicos especiais e que geram obrigações mercantis, bem como os factos jurídicos
não voluntários. Estes, com os actos de comércio, formam os factos jurídicos mercantis.

3. Os actos objectivamente mercantis


3.1. Noção. O Código Comercial e a lei comercial como fontes de actos de comércio.
O art. 2º/1ª parte CCom. consagra os chamados actos objectivos de comércio, porque se trata de
um elenco objectivado de actos (os constantes da lista implícita em que o próprio Código consiste),
contrapondo-se aos actos subjectivamente comerciais, que são os previstos na segunda parte do
preceito, e que supõem o comerciante e dependem sempre de uma apreciação casuística, nãos e
reconduzindo a tipos ou espécies de actos.

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Quando o artigo diz “especialmente regulado”, já vimos que basta que o acto esteja previsto e
que se lhe aplique o regime geral das relações mercantis. Mas como interpretar a expressão “neste
Código”?
FERRER CORREIA e VASCO LOBO XAVIER consideram que a expressão integra não só o
Código Comercial, mas sim toda a lei comercial.
1) Decorre dos primeiros artigos do CCom. a identificação entre o Código e a lei comercial. Isto
deve-se a que inicialmente o código abrangia praticamente todas as matérias mercantis, mas
com o tempo tal deixou de acontecer, porque muitas matérias do código foram objecto de
nova regulação que substitui a existente, ou porque surgiram novas matérias carentes de
regulação e que foram tratadas em diplomas avulsos. Assim, a interpretação literal do
preceito não tem sentido.
2) Não se pode invocar uma vontade do legislador histórico em contrário, decorrente da
declaração, constante do art. 4º da Carta de Lei que aprova o CCom., segundo a qual a
substituição, supressão ou aditamento à matéria contida no Código deveria nele ser
incluído. Esta vontade é historicamente inverosímil Sendo que nada permite concluir que o
legislador queria tornar rígido o CCom., no sentido de ele se identificar sempre e
necessariamente com toda a lei comercial.
No entanto, a referência ao Código tem evidentemente um alcance na determinação do que se
deve entender, para efeitos do art. 2º, como lei comercial. É com referência ao Código Comercial que
se deve fixar o âmbito da lei comercial. Ora, importa afirmar que nem a circunstância de o
legislador subsequente ao Código ter optado por não integrar no Código uma certa matéria
significativa, sem mais, que ele se torna ou é não comercial; nem a simples circunstância de a ter
inserido no CCom. que a torna, sem mais, real e materialmente comercial, no sentido de estar
presente no novo regime um conteúdo regulativo similar ao do Código – ainda que, neste caso, a
integração formal deva relevar para efeitos do art. 2º. Em suma, não é a decisão do legislador de
integrar ou não uma matéria no Código que decide da sua natureza como lei comercial.

Partindo daqui, podíamos pensar que lei comercial era toda aquela que se autoqualifica como
comercial. Ora, CASSIANO DOS SANTOS considera que a auto-qualificação não deve ser critério
relevante e adequado da comercialidade de uma lei.
1) Desde logo, a lei não se qualifica, por regra, como comercial ou como civil. Aliás, não se
deve confundir auto-qualificação de uma lei como lei comercial com a qualificação ulterior
de um acto, mecanismo ou empresa como mercantil, por outro diploma que não o CCom.:
seja directamente (art. 3º/1 DL 148/90) seja indirectamente (5º/1 do DL 148/90).
2) Por outro lado, não há auto-qualificação quando simplesmente existem menções feitas numa
lei, seja em sede da sua própria designação ou na designação do mecanismo ou instituto que
regula, às palavras comércio, indústria ou outras similares. (p.e. RAU não era lei comercial,
tal como o contrato não era acto de comércio, pelo simples facto de que a lei o designasse
como “arrendamento para comércio ou indústria”.)
a. Embora tal também não significa que o arrendamento destinado ao comércio
previsto no CC não possa ser qualificado como lei comercial: serão comerciais as
soluções que se afastarem das soluções gerais do arrendamento civil para tutelar os
interesses empresariais. E isto sem prejuízo de, perante as alterações que se vêm

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introduzindo, ser cada vez menos assim, e estarmos perante matéria basicamente
civil.

EM SUMA: O que é a lei comercial para efeitos do art. 2º CCom.?


É o Código Comercial, acrescendo-lhe as leis que eventualmente sejam objecto de qualificação
como comerciais pelo legislador e (sobretudo) aquelas que regulam mecanismos que são por elas
qualificados como comerciais. Mas é, também, toda a lei que, vista do ponto de vista do sentido
regulativo que lhe preside, tem características similares às que o Código apresenta, isto é, lei
comercial é aquela que contém uma regulamentação que responde a interesses próprios e típicos,
distintos dos que prevalecem na composição efectuada pelo direito civil, e que se identificam
basicamente com os interesses do grande tráfico e da empresa: esses interesses são os que têm
expressão no CCom., aqueles que são desenvolvimento desses interesses ou os que se situam numa
linha de coerência com eles, contrapondo-se àqueles que o Código Civil consagra.
O critério é sempre dos interesses que a nova lei fez prevalecer; quando se trate de diploma que
substitui o regime constante da redacção inicial do Código, pode tmar-se como ponto de partida a
comercialidade dos preceitos. Pelo critério material da lei comercial, são regimes mercantis pelo
critério dos interesses e os contractos e mecanismos neles previstos e regulados são actos de
comércio por via do art. 2º/1ª parte:
1) Regime das sociedades comerciais
2) Regime das letras e livranças e cheques
3) Regime das operações da bolsa.
4) Regime dos contractos de transporte por mar e de fretamento
5) Etc…

3.2. Alguns actos de comércio regulados fora do Código Comercial: o trespasse (art. 1112º
CC), o contrato de locação financeira (DL 178/86) e o contrato de associação em
participação (DL 231/81)

Vejamos agora alguns exemplos de actos de comércio previstos em diplomas análogos ao


Código Comercial.

TRESPASSE
Ainda que formalmente esteja no CC (art. 1112º), é uma norma comercial. O art. 1112º, em rigor,
só regula uma questão que emerge do trespasse: o da transmissão da posição de arrendatário por
ocasião do trespasse ou transmissão do estabelecimento comercial, quando o titular deste é
arrendatário do imóvel em que o estabelecimento funciona e trespassante e trespassário querem que
este, com a aquisição da empresa, seja emitido na posição de arrendatário. Neste regime, o CC faz
prevalecer o interesse específico do titular do estabelecimento comercial ou empresa
(arrendatário/contraente), em ceder a sua posição contratual de arrendatário sem necessidade de
consentimento do proprietário/senhorio (e outro contraente) – desde que o faça com a transmissão
da empresa.
Por esta via prevalece o interesse do titular da empresa em assim poder mobilizar o seu
investimento e em ver facilitada a alienação da empresa; no caso em que esta funciona em prédio
arrendado, esse interesse contrapõe-se ao interesse civil do senhorio, ao qual a contraposição de

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interesses típica do direito civil dá primazia absoluta – no CC prevalece o interesse do outro


contraente em não ver um terceiro ocupar a posição daquele com quem contratou (art. 424º e
1059º/2 CC). Trata-se, por isso, de um interesse conforme ao CCom., já que tutela interesses
específicos do comerciante inerentes ao seu exercício empresarial.

LEASING OU LOCAÇÃO FINANCEIRA


Também é um acto de comércio, derivando este contrato da soma ou justaposição histórica de
outros contractos. Para além do mais, a própria cedência temporária do gozo de um bem contra
uma renda, que está no centro do contracto e que aparenta uma locação não é realmente tal, como o
comprovam traços fundamentais do seu regime. (art. 12º a 15 do DL 149/95)
Assim, o leasing é um contrato de financiamento em que uma entidade financeira se obriga a
adquirir um bem por indicação de um sujeito, obrigando-se a ceder o gozo desse bem a este,
mediante certa contrapartida e durante um determinado prazo, e conferindo ao locatário financeiro
a faculdade de adquirir o bem no final do contracto. Há duas modalidades de leasing:
 Determinado sujeito (A) era dono de um imóvel e dono de uma empresa, sendo que
precisava de um financiamento para a sua empresa. O leasing restitutivo consiste em A
vender o imóvel onde está situada a empresa a B, que paga o preço do imóvel (que serve de
financiamento), cede o gozo do imóvel por um período de tempo a A em troca de uma
renda, correspondente à utilização do imóvel. No final do prazo convencionado, A pode
comprar de novo o imóvel, adquirindo-o a B por um preço residual.  Modalidade de sail
and lease-back ou leasing restitutivo.
 Determinado sujeito (A) precisa de comprar um automóvel; vai ter com um banco ou
sociedade de locação financeira e pede para eles comprarem o automóvel, pedindo para que
estes lhe cedam o gozo do automóvel em troca de uma renda; e no fim do prazo
convencionado dão-lhe o automóvel por um valor residual"  Modalidade de leasing
financeiro.
A natureza mercantil da lei que prevê e regula a locação financeira é confirmada se
atendermos ao critério geral que se sustenta para determinar a natureza comercial de uma lei: o
leasing é um contrato mercantil porque está previsto e regulado numa lei que contém o regime que
consagra especialidade que não se coadunam com o sentido da regulamentação congénere do
direito civil. Destacam-se o art. 12º e 15º que em matéria de vícios do bem e risco pelo seu
perecimento, fazem impender as consequências sobre o locatário; o art. 13º, que legitima o locatário
a actuar directamente contra terceiros, mesmo não sendo o proprietário do bem; o art. 11º que
favorece, em certos termos, a cessão da posição contratual – todas são normas que protegem
interesses empresariais.
Vejamos o caso do art. art. 11º deste DL, que determina que a transmissão da posição
contratual de locatário financeiro pode ser feita nos mesmos termos em que pode ser feita a
transmissão da posição contratual de arrendatário em caso de trespasse.
O art. 1112º do CCivil facilita a transmissão do contrato de arrendamento quando há
trespasse, sem necessidade de autorização do outro senhorio. Quando for para transmitir a
empresa, não há necessidade de consentimento do outro contraente para efeitos da transmissão do
contrato de arrendamento.
Conclusão: quem quiser transmitir a empresa e com ela o contrato de locação financeira não
precisa da autorização do outro contraente. Transmite-se a empresa e com ela vai o contrato de

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arrendamento ou de locação financeira sem necessidade da intervenção do outro contraente. O


direito comercial é inspirado pelos interesses da empresa - sendo esta uma regra que prova que o
DL 139/95 é um decreto-lei cujas soluções são contrapostas à do CCivil e essa solução diversa
justifica-se para proteger o interesse da empresa, logo este DL é análoga ao Código Comercial e por
isso este contrato é um ato de comércio, aplicando-se o direito comercial.
O regime do leasing afasta-se claramente do seu parente civil (locação). Mas há que saber que
o art. 11 contempla um regime especial de transmissão da posição contratual quando essa é feita no
quadro de transmissão da empresa. Quando for feita sem mais, será aplicado o regime do CCivil. Se
o sujeito quiser transmitir a posição contratual de locatário financeiro sem a empresa, já tem que
pedir autorização ao outro contraente, porque se aplica o CCivil.

ASSOCIAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
É um acto de comércio, já que o DL 231/81 é claramente uma lei mercantil. Vejamos as razões
que sustentam esta afirmação:
Este é um contrato pelo qual um sujeito (associado) se associa a actividade económica de outro
(associante), mediante uma contribuição de natureza patrimonial, que presta logo no momento da
celebração do contrato ou que se obriga logo a prestar (normalmente é uma quantia de dinheiro,
mas também pode ser direitos sobre bens; a prestação pode ser recíproca), ficando investido numa
participação nos lucros do associante. (a participação pode ser nos lucros e nas perdas) – e sabendo
que a participação nos lucros da actividade se mede pelo investimento do associado, que é sempre
avaliado em dinheiro e que há lucro quando há excedente relativamente ao investimento inicial de
ambos, que se manteve e foi incrementado. A identificação do contrato deriva dos arts. 21º/1/2, 24º
e 22º DL 231/81.
1) No regime actual, este contrato estendeu-se a toda a actividade económica (art. 21º),
continuando, não obstante, a pressupor uma empresa do lado do associante (art. 26º/1/b/c).
Ora, o direito comercial tende a ver o seu âmbito de aplicação definido pela presença de
uma empresa.
2) O seu regime continua a revelar a opção pela tutela do associado como sujeito que contrata
com a empresa e se coloca como uma espécie de credor especial dela e, ainda, pela tutela da
continuidade da empresa: confiam-se os arts. 25º/4, 26º/1, 30º/3 e 28º/2 do DL. A tutela do
interesse assinalado tem algumas expressões importantes. Destaca-se a este propósito o
regime do art. 28º/2 do diploma em análise.

Art. 28º/2 – É relativo aos efeitos sobre o contrato da morte do associado. O princípio é que a
morte do associado não extingue a associação, a qual continuará em princípio com os herdeiros. A
manutenção do contrato pode interessar à empresa, permitindo-lhe manter estabilidade, e é este o
valor que se tutela. No entanto, esta tutela da continuidade é temperada com a ponderação dos
interesses do cônjuge e dos herdeiros do associado, aos quais se permite a denúncia do contrato nos
noventa dias seguintes ao falecimento. É ainda de sublinhar que a cessação do contrato por via de
denúncia especial, nos termos do art. 28º/2 se aplica a todos os contractos, com excepção dos
previstos no nº3, nos quais há caducidade com extinção automática. Quando há obrigações
subsistentes mas não opera o número 3, a denúncia não extingue as obrigações que se vençam até
ao momento em que esta produz efeitos.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Art. 28º/3 -Há outro aspecto em que os interesses do cônjuge e dos sucessores do associado
prevalecem absolutamente, e isto sucede naquele caso em que a empresa tem maior vantagem na
subsistência do contrato: se o associado assumiu uma responsabilidade para além da entrada a que
se obrigou, ilimitada ou não (ver art. 25º/1/4 DL), o contrato extingue-se automaticamente, isto é,
caduca decorridos noventa dias sobre o falecimento do associado, sem qualquer necessidade de
actuação por parte dos seus sucessores (art. 28º/3). Registe-se, no entanto, que mesmo essa cessação
não é imediata, defendendo a empresa e permitindo que o contrato subsista enquanto procura
soluções.
Mas o campo de aplicação do art. 28º/3 não é assim tão amplo, não operando a caducidade se o
associado se obrigou a uma certa entrega mas não realizou ainda integralmente a prestação por ela
ter sido diferida, nem no caso de mora ou incumprimento por causa do associado – neste caso,
apesar das responsabilidade do associado ser superior à contribuição por ele efectuada, tal deve-se
a uma violação do contrato, do qual os sucessores não devem poder sair por simples exoneração da
obrigação – têm de cumprir ou indemnizar nos termos gerais.
É ainda de reafirmar que o contrato subsiste durante os 90 dias de pré-aviso, vencendo-se todas
as obrigações cujo prazo se completa nessa fase e podendo a empresa exigir o seu cumprimento.

Art. 23º/1 – Prevê o regime de solidariedade, ou seja, quando à empresa se associam dois ou
mais associados, não se presume que os créditos e débitos para estes decorrentes do contrato sejam
solidários. Isto é assim, mas não se trata de um regime distinto daquele previsto no art. 100º CCom.
quanto à solidariedade das obrigações mercantis. Este artigo tutela o credor, quando este dá crédito
à empresa que actua em conjunto com outra, onerando a posição de cada empresa, pois qualquer
um dos devedores responde por toda a dívida. Ora, no caso deste contrato, a empresa está do lado
do associante, não sendo o associado mais do que um investidor nela, que se torna credor, pelo que
a comercialidade do acto de associação se verifica pelo lado da empresa associante: o associado
pode ser devedor da empresa com outro, e não responde solidariamente, (art. 22/1º DL), num claro
beneficio para os devedores, que visa tornar mais fácil o acesso ao crédito por parte da empresa.
O associado pode ser também credor da empresa com outro associado, sendo que o art. 24º
também não prevê a solidariedade de credores, pelo que cada um deles pode reclamar apenas a sua
parte e o devedor não se exonera com o pagamento total a qualquer dos credores.
É de concluir que, mesmo sem ao rt. 22º/1, esses créditos e débitos já não cairiam no âmbito de
aplicação do art. 100º, do mesmo modo que a disposição do art. 22º não contraria a ratio que subjaz
ao art. 100º e que é a de facilitar o acesso à empresa ao crédito.

3.3. Conclusão geral: sectores comercializados pelos actos explicitamente previstos na lei.
O problema das indústrias, das (outras) prestações de serviços e de outros sectores.
 O CCom. prevê e regula os actos centrais da actividade de interposição nas trocas. (art.
463º, para a compra e venda e 480º para a troca) e os contractos mais significativos que se
situam no coração da actividade económica – são actos objectivos de comércio.
 São objectivamente mercantis os actos previstos nas leis comerciais, como:
o Contractos relativos à estruturação da actividade da empresa (agência,
arrendamento, etc…)
o Prestação de serviços financeiros ou bancários
o Contrato de transporte

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

o Contractos acessórios ou por conexão (são comerciais, não por circunstâncias do


próprio contracto, mas por ligações eu têm a outros contractos – depósito,
empréstimo, mandato)
o Leasing ou locação financeira; contrato de consórcio3; contrato de associação e
participação.
 São ainda comercializados actos instrumentais da actividade mercantil, como as letras de
câmbio, livranças, cheques e outros actos acessórios.
 É comercial o acto de alienação da empresa – trespasse.

Isto gera a questão: a indústria transformadora, as indústrias extractivas e as prestações de


serviços não abrangidas no elenco de contractos do CCom. ou em lei avulsa não são regulados pelo
direito comercial? Ou sê-lo-ão por via de outro critério que não o acto de comércio? É a esta questão
que responderemos agora.

4. A comercialização da indústria, das prestações de serviços e da agricultura e actividades


conexas – empresa e actos objectivamente comerciais (pelo art. 230º)

4.1. O art. 230º e a comercialização da indústria e outros sectores de actividades.

O art. 230º prescreve literalmente, que são comerciais as empresas que enumera e que, nos
termos actuais, mas respeitando a letra da lei sempre que isto puder ter significado interpretativo,
são as que exercem uma das seguintes actividades:
1) Indústria transformadora (nº1)
2) Fornecimento de géneros mediante preço convencionado (nº2)
3) Agenciamento de negócios de leilões “por conta de outrem” e “mediante salário” (nº3)
4) Exploração de espectáculos públicos (nº4)
5) Edição e publicação de obras científicas, literárias ou artísticas (nº5)
6) Construção civil e empreitada de casas quando com materiais suministrados pelo
empresário (art. 6º)
7) Transportes por água ou terra (nº7)

Os parágrafos do artigo excluem dos seus números algumas actividades ou sectores, a saber:
 As explorações industriais ou manufactureiras conexas ou acessórias de exploração
agrícola, quando explorados pelo agricultor e nelas se transformam ou preparam apenas
produtos da exploração agrícola, não entram no nº1.
 Oficina de artesanato não é reputada como abrangida pelo nº1.
 A exploração agrícola que fizer fornecimento de produtos seus não está incluída no nº2.
 A edição, publicação ou vendas pelo próprio autor não se consideram uma empresa
prevista no nº5.

3
Quando dois ou mais sujeitos elegem como objectivo ou fim comum um determinado empreendimento e
depois comprometem-se a ambos contribuíres para a realização daquele empreendimento. Cada um se obriga
pessoalmente a realizar uma prestação que é instrumental à realização do fim comum. As prestações de cada
um, todas somadas e articuladas, resultam no empreendimento comum.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Só o nº1 se reporta a actividades económicas, sendo que os restantes se reportam a actividades


que se integram noutros sectores. O fundamento, quer das inclusões, como das exclusões, é a
existência ou não de uma empresa – por isso as exclusões são realizadas tomando por referente não
qualquer organização ou estrutura, mas o sujeito por si só: “o artista, industrial, mestre”, o “autor”,
o “proprietário ou explorador rural”. Como não há qualquer empresa, são excluídos.
O que a norma pretende é comercializar sectores da actividade económica distintos dos
abrangidos pelos demais contractos especiais de comércio do Livro Segundo do CCom. Estão, por
isso, aí inscritos, em rigor, os sectores que faltam no Código e na lei comercial em geral. Importa ver
como se faz essa comercialização.

4.2. O sentido imediato ou princípio do art. 230º: a comercialização das empresas aí


previstas e das empresas análogas.

O art. 230º qualifica como comerciais certas empresas, que por sua vez se qualificam pela
actividade que exercem. A sua hipótese assenta manifestamente na existência de uma empresa:
enumerando uma série de actividades ou sectores, o Código pressupõe, para eu sejam comerciais,
que elas sejam exercidas no quadro de empresas. O art. 230º tem como hipótese a existência de uma
empresa que exerce uma das actividades nele previstas e como estatuição que essas empresas são
reputadas como comerciais. Não obstante, ainda que a sua letra seja clara que o primeiro efeito
deste artigo é estabelecer que determinadas empresas são comerciais, tal não obsta a que este tenha
um alcance mais amplo e a que dele se retire outro efeito ou sentido para lá deste.
Devemos analisar a hipótese da norma, começando por indagar qual a relação empresa e
actividade estabelecida por este artigo.
Numa norma legal, a previsão e estatuição não são dissociáveis: assim, actividades e empresas,
de um lado, e comercialidade, do outro, têm necessariamente uma especial relação. Cada uma das
actividades enumeradas no art. 230º conforma-se de uma determinada forma, que é a empresa, e
esta, por exercer uma dessas actividades, assume uma certa configuração e justifica a qualificação
como mercantil. Tal significa que a actividade sem empresa não acede à comercialidade, sendo
apenas um elemento caracterizante da própria empresa.
Assim, neste artigo, o legislador comercializou o tipo de empresas que tinham peso na realidade
económica do nosso país no séc. XIX. Sendo, assim, no art. 230º é a empresa que é determinante, e a
enumeração das actividades corresponde simplesmente ao elenco disponível à época das empresas
mais relevantes no sistema económico. Pode, pois, dizer-se que o elenco do art. 230º não é fechado
ou taxativo, ainda que não possa ser considerado meramente exemplificativo: trata-se de uma
enumeração positiva ou referencial, na medida em que apresenta, através dos casos abrangidos, a
qualidade a que devem obedecer as empresas para poderem incorrer na estatuição.
O art. 230º traz para a esfera da comercialidade todas as empresas com um certo nível de
organização, autonomia e racionalidade. São, portanto, consideradas mercantis todas as empresas
análogas ás explicitadas no artigo, isto é, que sejam exercidas em modo empresarial e alcancem uma
estruturação idêntica à que o legislador vislumbrava nessas outras. Tal permite qualificar como
comercial, a empresa que se situa em sectores novos de actividade económica, de desenvolvimento
em novos moldes de actividade já existente ou mesmo de uma actividade contemporânea do
Código e não especificada no art. 230º. Desde que atinjam um grau idêntico de estruturação e de
organização, todas elas são análogas às previstas no Código e são, por isso, também comerciais.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

A qualificação como comerciais abrange todas as empresas de prestação de serviços, desde as


que exercem actividades mais tradicionais (cabeleireiros, reparação de automóveis, agências de
turismo, etc…) às que actuam em novos domínios (fornecimento de gás, transporte aéreo,
informática, telecomunicações, etc…) e ainda empresas de construção civil e empreitadas de outras
obras que não casas.
À luz deste entendimento as empresas comerciais em sentido próprio ou económico são
também análogas às previstas no art. 230º e, por isso, comerciais. Por exemplo, a empresa que tem
como finalidade a compra para revenda é comercial em face da qualificação do art. 230º/2. É certo
que os actos fundamentais em que se analisa a actividade delas estão previstos e comercializados
pelo art. 463º; no entanto, essa comercialização autónoma de actos não é obstáculo, pois o art. 230º
tem um sentido regulativo distinto do dessa outra norma, na medida em que directamente não
qualifica actos, mas empresas.
É ainda de destacar que o art. 230º determina que a empresa comercial surge com o surgimento
da empresa, com uma dimensão estrutural e organizatória, à qual acresça, pelo menos, um dos
propósitos referidos nos seus números. Não se supõe, no entanto, o exercício efectivo da actividade.

4.3. O sentido mediato ou secundário do art. 230º: comercialização (objectiva) de actos de


comércio praticados no exercício das empresas.

Há quem entenda que o art. 230º é o veículo que o legislador encontrou para comercializar actos
nos sectores em que a actuação empresarial é praticamente o único modo de actuar e não há actos
isolados ou que eles não têm relevo prático. Se o alcance da disposição fosse simplesmente
comercializar empresas, teríamos que concluir que o direito comercial instituído pelo Código
Comercial seria, a ser assim, um direito comercial configurado como um sistema misto, em aprte
assente nos actos, para o comércio em sentido económico, e noutra parte assente na empresa, para a
indústria, construção civil e demais sectores abrangidos pelo art. 230º.
Ora, tal, contraria o disposto no art. 1º e 2º do CCom., a sistematização do código e os seus
títulos, bem como os próprios dados fornecidos pela comparação com outros códigos e pelo
enquadramento na doutrina na época:
 Podemos dizer que, a ter querido criar tal dicotomia, o legislador podia ter sido explícito
no art. 1º, num dos artigos seguintes, ou no próprio art. 230º. Ora tal não acontece,
porque os primeiros artigos são claros no sentido objectivista seguido pelo legislador.
 Para além do mais, o Código não tem qualquer referência à empresa para efeitos de
regime em qualquer plano – baseia-se em actos e não em empresas.
 E seria historicamente improvável que o empresarialismo tenha surgido em Portugal
antes do subjectivismo alemão, tendo em consideração o decurso da história.

Há, portanto, uma relação entre o art. 230º e o acto de comércio, enquanto critério assumido pelo
legislador mercantil para a delimitação do direito especial. Não é, contudo, a própria empresa que é
um acto de comércio. Tal permite-nos concluir que o art. 230º tem um sentido ou alcance que vai
para lá da sua letra e do alcance imediato ou primário que ela revela: o preceito não se limita a
qualificar empresas como comerciais, e dele resulta, a mais disso, uma relação entre a empresa
(qualificada como comercial) e os actos de comércio.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Ora, qual é essa relação? Que actos são comerciais pelo art. 230º sabido que não é propriamente
a empresa que é um acto?
O art. 230º deve ser apreciado à luz do sistema adoptado, pelo diploma em que se insere e da
própria sistemática do Código:
 O Código é fiel à linha do objectivismo tradicional, para o qual o recurso aos actos de
comércio não exclui a referência à empresa.
 A relação entre empresa e acto de comércio é patente na inserção sistemático doa rt…
230º no título IV do Livro Segundo, onde se contém o elenco dos actos constantes do
Código.
 Nas permite supor que o art. 230º se afastou do sistema geral do Código assente em actos
de comércio.
 Por outro lado, não se vê que seja a própria empresa a ser um acto de comércio: não é a
empresa que é um acto, mas sim os contractos e mecanismos em que a sua actividade
consiste.
Isto ponderado deve entender-se que a norma tem por objectivo qualificar como actos
objectivamente mercantis os actos em que se analisa a actividade das empresas nela elencadas.
Esses actos são, nessas actividades, os que são correspondentes aos actos centrais da actividade
propriamente dira e que conferem essencialidade mercantil à empresa – os que estão na sua base e
permitem identificar uma actividade, mas também todos os demais actos que se integram nessa
actividade. A lei não restringe a comercialidade àqueles e não se vislumbra nenhuma razão para
que todos os actos praticados no quadro de uma empresa não sejam, sem necessidade de mais
requisitos, actos comerciais.
A referência à empresa no art. 230º explica-se pela circunstância de o legislador ter assumido,
nestas actividades que são distintas pela sua natureza, alguma especificidade na própria
qualificação como mercantil – toma como pressuposto especifico da comercialidade objectiva de
actos, a existência de uma empresa.
O legislador conferiu relevo ao modo por que se exerce a actividade e (implicitamente) à
profissionalidade. O art. 230º toma como comerciais os actos que se integram na actividade da
empresa, embora seja importante registar que tal supõe a prova efectiva da integração do acto na
empresa, ao contrário do que sucede co o art. 2º/2ª parte. Aqueles relativamente aos quais não se
faz a tal prova serão eventualmente também susceptíveis de qualificação como comerciais na
medida em que preencham os requisitos de comercialidade subjectiva previstos na 2ª parte do art.
2º. Os titulares das empresas comerciais (previstas pelo art. 230º) são sempre comerciantes pelo art.
13º/1.
O art. 230º não se sobrepõe, mas antes se harmoniza, com os dois preceitos centrais do sistema
mercantil subjectivista – art. 2º e 13º CCom. Ele tem apenas relevo autónomo para qualificar as
empresas: os actos que sejam praticados no exercício da empresa são sempre comerciais pela
conjugação do preceito com o art. 2º/1ª parte, e os titulares da empresa serão comerciantes na
medida em que a empresa é mercantil e, consequentemente, os actos em que se analisa a sua
actividade são comerciais, preenchendo eles então, sem mais, os pressupostos do art. 13º/1 CCom.
Não há, assim comerciante sem exercício de actos de comércio, mas o art. 230º pressupõe logo a sua
profissionalidade. A esta luz, é necessário que se exerça efectivamente a empresa mercantil, pois só
assim pratica actos de comércio. Não há, pois, comerciantes por intenção ou escopo, mas apenas por

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se verificar uma certa materialidade ou realidade (a existência de uma empresa e o seu exercício
efectivo).
Cabe uma última precisão. Os actos em que a actividade da empresa se analisa não são apenas
os actos constitutivos da actividade, isto é, aqueles que são praticados reiteradamente e interligados
constituem a actividade e são a base da empresa. Essa actividade é também integrada por actos
preparatórios, pelos actos instituidores e em geral por todos os actos organizatórios da actividade
da empresa. Em suma, todos os actos que definem o modo como a empresa actua e que estruturam
a sua organização.
Todos eles recebem a comercialidade como actos do art. 230º. E esta comercialização é
autónoma: sendo comerciais as empresas, são comerciais quer os actos constitutivos quer os actos
organizatórios, ainda que um destes grupos ou actos já seja comercializado por outra via (norma).

4.4. A agricultura e actividades conexas, o artesanato e o direito comercial: o caso da


agricultura exercida empresarialmente e a sua comercialidade.

A exclusão da agricultura e do artesanato deve-se ao facto de essas actividades não serem


realizadas empresarialmente4. No entanto, devemos considerar que hoje a agricultura pode ser
exercida em moldes empresariais.
A questão que se coloca é a seguinte: Aplica-se à agricultura exercida em certos moldes o regime
geral dos actos de comércio que caracteriza o nosso direito comercial, seja ele estabelecido na lei,
seja encontrado por integração?
Ora, podemos dizer que o sentido do parágrafo 2º do art. 230º é excluir a agricultura, tal como
existia na época. Assim fala-se de “proprietário ou explorador rural” que “fizer fornecimentos de
produtos da respectiva propriedade, excluindo-o do nº2 – ora isto não é mais que dizer que essa
actividade agrícola que ultrapassa a mera auto-suficiência e se extroverte não se inclui nas empresas
que fornecem géneros. Exclui-se a empresarialidade da actividade agrícola exercida em certos
moldes, mas não a sua comercialidade – esta decorre da exclusão daquela.
Assim, o legislador, à luz da realidade da segunda metade do séc. XIX clarificou que as
explorações agrícolas não eram empresas, excluindo-se a sua comercialidade. Assim, não pode
dizer que o art. 230º/parágrafo 2º determina que a agricultura não é, por natureza, uma actividade
não mercantil: ela falha tão só o pressuposto subjectivo.
O próprio elemento sistemático retirado do art. 230º confirma isto. O parágrafo 1º, ao excluir o
artesanato, não exclui actividades, senão um modo de produção particular – o artesanato como
modo de produção não empresarial, excluindo-se não pelo que se faz, mas a maneira como se faz.
Sendo isto exacto, é legítimo concluir que a constatação excludente la lei vale apenas nos seus
precisos termos – só a agricultura tradicional exercida por um sujeito com meios escassos e
rudimentares, com dependência quase absoluta em relação a elementos externos ao processo se
encontra excluída. A razão da exclusão é entendível – o agricultor tradicional está em absoluto
dependente de factores ligados à terra e de outros factores de condição estritamente individual. Ele
está tradicionalmente impreparado para assumir outra organização e para ser sujeito a obrigações
exigentes. Não se lhe pode, pois, aplicar o regime mercantil.

4
A elas junta-se o exercício de profissões liberais, que também não está incluído no Direito Comercial.

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No entanto, tal não impede que se abranja a agricultura quando exercida empresarialmente, na
esfera da comercialidade – Só assim pode caber no art. 230º, directamente ou por analogia. Nestas
hipóteses, havendo empresa, ela é comercial por ser análoga às previstas no art. 230º.
As explorações avícolas, suiniculturas e produção animal em geral, que hoje são exercidas
empresarialmente, estão naturalmente dentro e nem se coloca essa questão.
Em suma: a empresa agrícola é empresa comercial, pelo art. 230º e o seu titular é empresário – e
comerciante, à luz do art. 13º/1. Excluída fica apenas a agricultura tradicional e não empresarial.

5. Actos objectivos por analogia?

A identificação dos actos de comércio através do recurso à lei comercial – em sentido material –
implica uma limitação de base: a atermo-nos estritamente aos actos ou empresas previstos na lei,
afastar-se-iam da matéria mercantil todos aqueles mecanismos que germinam na prática dos
negócios e na actividade das empresas e que não são objecto de tratamento legal por força quer do
natural desfasamento entre a previsão pela lei e a utilização na prática, quer por razão de opção
assumida pela não intervenção legislativa.
É por isso que parte significa da doutrina vem defendendo o recurso à analogia para efeito de
qualificação de um acto como comercial. A esta luz, um acto não previsto na lei comercial, mas com
características análogas a outro legalmente previsto, seria qualificado como comercial, por analogia
com este.
E isto porque se entende que não é compreensível que se excluam do direito comercial
mecanismos ou contractos, pela simples circunstância, que pode ser meramente fortuita ou devida a
inércia do legislador, de ele não estar previsto na lei comercial.
No entanto, há que ponderar que o recurso à analogia entre actos num sistema objectivista,
conduz a uma possível extensão do âmbito do direito comercial a partir de actos meramente
ocasionais – actos isolados previstos na lei comercial poderiam permitir a comercialização de novos
actos isolados, a partir da semelhança entre eles. Isto acarreta o risco de se perder o critério da
própria comercialização, o que contraria a lógica e essência do direito mercantil.
Ora, é a empresa o fundamento último da disciplina mercantil. Deste modo justificar-se-á a
analogia quanto a actos praticados no quadro da empresa, mas não quanto a actos isolados ou
desgarrados – que levaria a uma extensão anómala do direito comercial.
Em suma: não devemos admitir o recurso à analogia directamente entre actos, mas somente
entre empresas: quando um acto é praticado no exercício de uma empresa, ainda que ele não esteja
previsto na lei, esse acto será comercial se a empresa for análoga a uma das previstas do art. 230º
CCom. – sendo análoga a empresa, como os actos das empresas comerciais são actos de comércio, o
acto será também ele comercial. A existência de uma empresa e a prática do acto no quadro da sua
actividade são necessariamente pressupostos da sua comercialidade.
Poemos interpretar o art. 230º de duas maneiras:
 Interpretação restritiva: só se incluem aqui os actos fundamentais, estruturantes da
actividade realizada pela empresa análoga ás do art. 230º.
 Interpretação ampla: incluem-se não só actos nucleares e fundamentais, mas também
todos os outros actos praticados pelo titular no exercício da empresa, mesmo que
acessórios. CASSIANO DOS SANTOS concorda com esta posição.

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6. Os actos subjectivos de comércio: pressupostos e importância.

O Código Comercial consagra uma via para contornar a rigidez excessiva que resultaria de um
sistema puramente objectivista, em que os actos de comércio seriam simplesmente aqueles que a lei
especificamente prevê. O art. 2º, após inscrever como comerciais os actos objectivos de comércio5,
refere ainda como actos comerciais “os contractos e obrigações dos comerciantes, que não forem de
natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar” – com a intenção de
alcançar os actos acessórios dos comerciantes.
Assentes na qualidade de comerciante do sujeito que os pratica, são os actos subjectivamente
comerciais ou actos subjectivos de comércio.
 São subjectivos porque são necessariamente praticados por um sujeito – o comerciante.
 Não são tipificados na lei – qualquer acto, típico ou atípico, regulado ou não em alguma
lei, pode vir a ser considerado acto subjectivo de comércio. E isto desde que preencha os
requisitos da 2ª parte do nº2.

Fala a lei de “contractos e obrigações” – que serão dos comerciantes, como é óbvio. Assim, um
contracto será comercial quando um dos sujeitos que o pratica for comerciante (e cumpra os demais
requisitos), e que uma obrigação, independentemente da origem comercial, também o pode ser sob
o mesmo pressuposto. Como a comercialidade se reporta sempre ao sujeito e à sua actuação, deve
ser dissecado nas duas declarações em que se analisa, porquanto apenas é comercial aquela que é
emitida por um comerciante.
Requisitos da subjectividade comercial:
1) É necessário que seja praticado por um comerciante – art. 13º, comerciante é aquele que
pratica actos objectivamente comerciais e faz dessa prática uma profissão.
2) O acto não deve ser de “natureza exclusivamente civil”6 – reporta-se à natureza do acto.
Excluem-se aqueles negócios que não podem tipicamente ter qualquer conexão com o
comércio, independentemente dos intuitos que realmente em concreto lhes possam presidir
– actos pessoais (casamento, perfilhação, adopção, testamento). Só se incluem os actos
patrimoniais.
3) Do acto não pode resultar o “contrário” – o contrário quanto à sua conexão com a actividade
comercial do sujeito, bem entendido. Nesta parte o art. 2º visa abranger no manto da
comercialidade outros actos, para lá dos enumerados especificamente no Código: esses actos
são actos de comerciantes relativos à sua actividade cuja comercialidade não seja definida
objectivamente. Assim, a referência ao contrário refere-se à actividade do sujeito
comerciante.
a. Para analisar a verificação este requisito devemos proceder à análise do concreto acto
e da sua relação com a actividade do comerciante que nele intervém. Este art. 2º/2ª
parte é claramente influenciado pela teoria do acessório em sentido estrito, nos

5
Apesar de objectivos, não podemos esquecer que há actos previstos na lei comercial (e por isso
objectivamente comerciais), mas para os quais a lei exige características relativamente ao sujeito. Por exemplo,
veja-se o art. 230º quando determina que os actos só são comerciais se forem exercidos pelo titular de uma
empresa.
6
CASSIANO DOS SANTOS rejeita a tese dos que consideram que actos de natureza exclusivamente civil são
aqueles que só estão regulados no CC, importando a localização do acto para efeitos de classificação.

28
Eduardo Figueiredo 2016/2017

termos da qual se deverão ter como comerciais todos os actos que se integram na
actividade comercial de um comerciante. Assim:
i. Se o acto tem conexão com a actividade do comerciante – é comercial.
ii. Se o acto não tem conexão com a actividade do comerciante – não é comercial.
iii. Se do acto nada resulta – é comercial. (CASSIANO DOS SANTOS não fala
aqui de uma presunção, mas sim de uma qualificação.)
Não foi, porém, exactamente esta teoria que obteve consagração no art. 2º. O legislador elegeu,
na verdade, como critério a aparência do acto e não a sua real conexão com a actividade – a
aparência quanto à conexão, naturalmente. Daqui decorre que o art. 2º/2ª parte pode fazer chegar a
resultados que não coincidem com a teoria do acessório – p.e. podem ser subjectivamente
comerciais actos que não têm qualquer conexão com a actividade de um comerciante. Isto decorre
da formulação duplamente negativa da lei: de acordo com a lei só não será comercial se não resultar
dele que não tem conexão com a actividade profissional do comerciante.
Não obstante, há um limite ao relevo da aparência do acto: deste nunca poderá resultar
relevantemente algo contra a real e efectiva conexão. O objectivo da norma é abranger, e não
excluir, actos efectivamente integrados na actividade do comerciante, e a aparência do acto é apenas
um veículo para concluir algo sobre a conexão – não para ir contra ela.
Resta analisar a forma como funciona o art. 2º/2ª parte. Como se formula o juízo sobre a
aparência quanto à conexão com a actividade?
O preceito é esclarecedor: revela o “acto”, como o próprio art. 2º indica. O acto, entenda-se, e
não a forma que o reveste: valem, assim, além desta, as declarações ou manifestações do sujeito,
bem como todas as circunstâncias que o rodearam, desde que, em qualquer dos casos, se verifique
que o sujeito que contactou com o comerciante estava em condições de as perceber. E é assim pela
própria letra do art. 2º, e pelo facto que a qualificação de um acto como comercial causar a aplicação
de um regime que tem a protecção daqueles que contratam como comerciantes como objectivo
essencial.
Sendo assim, para concluir se algo resulta do acto, quanto à sua conexão com a actividade
comercial do comerciante, deve ter-se em conta o próprio acto. Releva não apenas aquilo que conste
estritamente do acto e muito menos apenas o que conste do documento que o formaliza, mas sim
tudo o que foi convencionado ou referido na ocasião da prática do acto e tudo o que o acto revelar e
todos as circunstancias que o rodearam.
Para o completo esclarecimento do art. 2º/2ª parte não basta saber quais os elementos que
relevam para o juízo sobre a aparência quanto à conexão. É necessário ainda saber qual o critério de
apreciação do acto e suas circunstâncias. Tal é realizado de acordo com o critério objectivo do ponto
de vista do destinatário normal, razoável na posição daquele concreto sujeito e conclui-se pelo que
ele concluiria. Tal deriva da própria ratio do artigo que é alargar a comercialidade e o campo de
aplicação do direito comercial, em função também dos interesses daqueles que contratam com
comerciantes.
Relativamente a dados ulteriormente revelados ou conhecidos e à sua importância, CASSIANO
DOS SANTOS, tem a seguinte opinião:
1) Se resultava que o acto tem conexão ou do acto nada resulta, mas a posteriori verifica-se que
o acto afinal não tinha conexão  Devemos não dar relevo a este facto e continuar a
qualificar o acto reportando-nos ao momento da prática do próprio acto.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

2) Se resultava que o acto não tinha conexão, mas a posteriori verifica-se que esta existia 
Devemos dar prevalência à realidade (e não à aparência) porque o que está em jogo são
actos conexos ou acessórios à actividade do sujeito. Se o acto é realmente conexo, deve estar
sujeito ao direito comercial (relevando estas circunstâncias posteriores), desde logo porque
se pretende a tutela do tráfico – daqueles que contratam com comerciantes, devendo dar-se
prevalência à sujeição ao direito comercial.

NOTA IMPORTANTE: O problema dos actos conexos pode ser resolvido através do art. 230º
CCom porque este comercializa não apenas os actos nucleares, mas também os actos acessórios
ou conexos aos actos das empresas. Comerciais são não só as empresas expressamente previstas
no art. 230º, mas também todas as análogas a essas. Isso leva-nos a concluir que fora desse
artigo, ou seja, para o art. 2º/2 ficam apenas os actos que não se conseguir provar que integram
a actividade da empresa, porque para este artigo o critério que releva não é a prática do acto
pelo titular de uma empresa e no âmbito da actividade dessa empresa, mas a aparência do acto
quanto à conexão.

7. O comerciante no direito português


7.1. Os nº 1 e 2 do art. 13º: articulação e âmbito.

Embora objectivista, o direito português não ignora a existência de sujeitos que têm por
profissão uma actividade que se reconduz à prática de actos de comércio – comerciante. Isso
acontece, desde logo, em conexão com a delimitação da matéria mercantil – seja para comercializar
alguns actos objectivos (que dependem directa ou indirectamente de um requisito subjectivo de
comercialidade subjectiva), que para conferir o manto da comercialidade à generalidade dos actos
de natureza patrimonial dos comerciantes. Por outro lado, o Código prevê um regime especial para
os comerciantes em matéria de prova e outros deveres gerais.
É o art. 13º CCom que identifica “quem” são os comerciantes, prevendo-o em dois números:
1º “As pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão”  Há que
preencher cada um dos requisitos do artigo.
2º “As sociedades comerciais”  As sociedades nascem comerciantes e, por isso, pelo simples facto
de serem sociedades, serão comerciantes. (falamos das sociedades qualificadas como sociedades
comerciais nos termos da lei) Estas têm por objecto a prática de actos de comércio (e note-se, não é
necessário que os pratiquem efectivamente, senão apenas que os tenham por objecto!) e, por isso,
são comerciantes natos (FERRER CORREIA) Todas as entidades que mereçam outra qualificação,
que não de sociedades comerciais, serão ou não comerciantes pela via geral do nº1, e não pelo art.
13º/2. Esta posição apoia-se num argumento:
 Literal: a lei só se refere a “sociedades comerciais”
 Histórico: já existiam, ao momento, outras pessoas colectivas conhecidas pelo legislador,
sendo que, se as tivesse querido integrar, teria sido explícito.
 Teleológico: o legislador pretendeu abranger as demais pessoas colectivas no nº1 e é aí
que elas cabem realmente.

Podemos, por isso afirmar que o nº1 é a regra geral para a aquisição da qualidade de
comerciante, tomando como matriz do modo de aquisição dessa qualidade o exercício por pessoas

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

humanas, podendo os demais sujeitos adquirir essa qualidade se preencherem os mesmos


requisitos – só as sociedades comerciais justificam um sistema excepcional de aquisição.

7.2. A aquisição da qualidade de comerciante pelo nº1 do art. 13º. Comerciante e


empresário.

O art 13º/1 enumera alguns requisitos fundamentais para que um sujeito seja comerciante. Estes
não têm sentido autónomo, devendo ser entendidos à luz uns dos outros e da lógica global da
norma.

1) Capacidade
Refere-se à capacidade de exercício, desde logo porque é evidente que o requisito inscrito no art.
13º é de natureza excludente e, a entender-se que a referência era feita à capacidade de gozo,
nenhuma pessoa humana seria excluída – e são as pessoas humanas que estão no centro desse nº1.
Por outro lado, lendo os requisitos em conjunto, a capacidade que se exige será naturalmente aquela
que é necessária para praticar actos de comércio e fazê-lo profissionalmente. Esta é
inequivocamente a capacidade de exercício: só pode ser comerciante quem actua no domínio da sua
capacidade para exercitar a sua esfera de direitos.
Ora, deste requisito não se pode retirar a conclusão que os incapazes de exercício (menores,
interditos e inabilitados) não podem de todo exercer o comércio e aceder à qualidade de
comerciante. Este equisito deve ser analisado à luz do funcionamento do instituto da incapacidade
no direito civil e, deste modo, exige-se que os actos praticados pelo sujeito não sejam atingidos pela
sanção que se comina no CC para a prática de actos abrangidos pela incapacidade – a anulabilidade
– e que não sejam efectivamente anulados.
Assim, se a incapacidade for suprida nos termos legais, para efeitos do art. 13º deve entender-se
verificado o requisito da capacidade. O mesmo, se o incapaz actuar praticando actos de comércio
sem o necessário suprimento, na medida em que os actos são meramente anuláveis e venham a ser
consolidados por confirmação ou pelo decurso do prazo para arguir a anulabilidade.
O mais complicado é saber como se passam as coisas até os actos serem efectivamente anulados
pelo tribunal, já que a anulabilidade significa que os actos devem ser tratados até que sobrevenha a
efectiva anulação judicial. O problema é tanto mais grave quando o sujeito praticar actos de
comércio e anulação só seja declarada tardiamente – ou seja, o sujeito é tratado como comerciante e
deixa de o ser por força da anulação? No conflito entre a tutela do tráfico e a tutela do incapaz, a
solução não pode deixar de ser a de o sujeito ser tratado como comerciante, para todos os efeitos,
enquanto os actos que permitirem uma tal qualificação sejam aptos para tal, caindo tal qualificação
com a queda dos actos que a suportaram. Como a anulação produz efeitos retroactivos, não pode
subsistir a qualidade de comerciante suportada em actos afastados do mundo jurídico.
A incerteza que ainda assim se incorre pode ser evitada, porquanto os terceiros interessados
poderão obter o esclarecimento da situação, notificando o titular do direito de anular para exercer o
direito de anulação, com a consequência de se considerar o vicio sanado se ele não intentar a acção
de anulação em 180 dias – veja-se analogicamente o art. 49º CSC e 125º/2 CC.
Assim, compatibiliza-se o CCom com os artigos relativos à capacidade do CC: art. 1889º/1/c,
1938º/1 e 139º, que supõem a possibilidade de os incapazes exercerem profissão mercantil. Assim,

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evitamos ter no tráfico mercantil um sujeito que não adquiria qualidade de comerciante e como tal,
não adstrito aos deveres que impendem sobre estes.

2) Prática de actos de comércio


Para ser comerciante é preciso que actue essa capacidade e pratique actos comerciais. O art 13º
não o diz directamente, desde logo porque “deste” se refere ao comércio e não aos actos de
comércio em geral. No entanto, justamente porque “comércio” aparece não isoladamente mas na
expressão legal “actos de comércio”, há que concluir que fazer do comércio profissão é fazer da
prática de actos de comércio uma profissão. É única solução que se harmoniza com o nosso sistema
objectivista. Veremos agora se todos os actos de comércio previstos na lei comercial são aptos a
conferir a qualidade de comerciante. Dois parâmetros podem ser mobilizados para nos dar uma
resposta:
 O conjunto dos actos relevantes é delimitado pelos actos de comércio que o sejam de
acordo com o critério do art. 2º/1ª parte – e não na 2ª parte, a qual supõe o comerciante já
qualificado e não podem assim contribuir para determinar essa mesma qualidade.
Portanto, não valem os actos subjectivamente comerciais.
 De entre os actos que são comerciais pelo art. 2º/1ª parte, só podem considerar-se
aqueles que são aptos a receber um juízo ulterior de profissionalidade: não relevam os
actos que não possam ser celebrados de modo profissional.
Em suma: para efeitos do art. 13º, actos de comércio não são todos e quaisquer actos, mas
apenas aqueles que estão previstos numa disposição mercantil e que podem ser objecto de uma
profissão.
Importa, porém, fazer uma precisão: não são todos os actos objectivos susceptíveis de ser
exercidos profissionalmente que relevam. Na medida em que se busca actos que permitam detectar
e, simultaneamente, qualificar uma profissão, apenas relevam actos que possam eles próprios
consistir na base de uma profissão. (actos constitutivos) Deste modo, não podem relevar os actos de
comércio formais (letras de câmbio, livranças, cheques, que não podem ser a base de qualquer
profissão), que embora possam ser levados a cabo no quadro de um exercício profissional, não são
eles próprios constitutivos de uma profissão mercantil.7 Assim, em abstracto todos os actos
substancialmente comerciais podem conduzir à qualificação como comerciante.
Resta agora saber se os chamados actos acessórios ou por conexão revelam para o efeito que se
considera. A resposta tradicional da doutrina é negativa. Mas alguns autores não vêm a existência
de um bom fundamento que obste a que os actos acessórios sejam aptos a fundar a aquisição da
qualidade de comerciante.
Falamos de actos que acedem à comercialidade objectiva por força da sua conexão com outros –
empréstimo (art. 394º), penhor (art. 379º), fiança (art. 101º), mandato (art. 231º), comissão (art. 266º),
depósito (art. 403º), seguro (art. 425º). Para quase todos há outras razões, que não a mera
acessoriedade, para que eles não sejam aptos para o fim tido em vista. É que uns não podem, pela
sua natureza, ser exercidos profissionalmente enquanto actos acessórios – veja-se o empréstimo,
fiança e penhor. A sua exclusão deve-se ao facto de ser impossível, com a configuração que têm na
lei mercantil, de serem exercidos profissionalmente.

7
Os actos praticados no exercício da actividade bancária, ainda que formalmente comerciais, são entendidos
como operações de banco nos termos do art. 362º CCom e por isso têm substancialidade real.

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No caso do mandato, o mandatário pratique múltiplos actos em nome do mandante, sendo que
será este a adquirir a qualidade de comerciante. É por dar lugar a uma actuação em nome alheio e
que se repercute no mandante, e não por ser acessório, que o mandato não permite, em regra, que o
mandatário adquira a qualidade de comerciante. Nada obsta a que o mandato seja objecto de uma
profissão, se o sujeito fizer a actividade de mandatário a sua actividade profissional. Em tal suposto,
ele pratica um acto de comércio em nome próprio – qual seja o próprio mandato.
Isto ponderado, há que concluir que nada obsta a que os actos acessórios relativamente aos
quais não há razões para impedir o seu exercício profissional possam dar lugar à aquisição da
qualidade de comerciante – é o que se passa com o depósito.

3) Profissionalidade
O CCom não esclarece o que é profissão, embora possamos retirar dele elementos que nos
permitem preencher essa noção – veja-se o art. 364º (“estabelecimento”), art. 362º (“objectivo de
realizar lucros nas sua operações”), art. 367º, 368º, 377º (“empresa ou companhia regular ou
permanente”; “fim lucrativo”). Veja-se ainda o art. 17º que identifica um conjunto de entidades que,
embora pratiquem actos de comércio não são comerciantes exactamente porque não têm escopo
lucrativo e destinam a sua actuação no comércio a fins distintos desses objectivos.
Tudo isto ponderado nos permite afirmar que, no âmbito jurídico privado, pode dizer-se que o
termo profissão corresponde a 3 notas essenciais:
 A profissão envolve sistematicidade e unidade, o que implica uma sequência de actos
com continuidade ou estabilidade e um mínimo de densidade e organização (ainda
que não continuidade perfeita e exclusividade)
 Uma profissão é exercida com um escopo lucrativo que se reporta à actividade no
seu conjunto.
 A profissão caracteriza-se pela autonomia, ou seja, pode ser exercida como um modo
de vida, como um fim em si mesma, e não como actividade subordinada a um fim
distinto, em termos de com isso se alterar o sentido típico do exercício mercantil no
mercado em que se actua.
Em regra, a profissão mercantil está associada e corresponde ao exercício de uma empresa e,
existindo esta, existe profissionalidade.

4) Em nome próprio
Está subjacente ao Código que só o exercício em nome próprio é susceptível de tornar um
sujeito comerciante. Os actos praticados em nome de outrem repercutem-se na esfera jurídica do
representado ou, em qualquer caso, e na falta de relação jurídica que funde um tal resultado, não
produzem efeitos na esfera do sujeito que actua e por isso não conduze à aquisição da qualidade de
comerciante por quem os pratica. Poderão é tornar comerciante o sujeito em cuja esfera vão ter
eficácia no caso de que se verifiquem os pressupostos.
Em todo o caso, se a própria relação que funda a prática de actos em nome de outrem for
mercantil, nada obsta a que aquele que faz da prática desse acto uma profissão seja considerado
comerciante – p.e. mandato.

Importa responder a uma última questão: em que momento é que um sujeito de torna
comerciante? É no momento em que é possível fazer um juízo de sistematicidade sobre a prática de

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actos que caracterizem uma actividade que um sujeito adquire a qualidade de comerciante. Ainda
que esta qualidade, uma vez adquirida, deva retroagir ao momento em que iniciou a formação da
empresa ou se iniciaram os actos preparatórios da actividade – actos que serão subjectivamente
comerciais. Ver, neste sentido, o art. 366º CCom.

Em Suma: é comerciante aquele que pratica profissionalmente actos de comércio, e em especial


todo aquele sujeito que detém e explora uma empresa que é qualificável como comercial pelo art.
230º ou análogas a estas.

7.3. Inscrição no registo comercial e aquisição da qualidade de comerciante.

O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes em nome
individual, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob a forma comercial e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. (art. 1º/1 CRCom.) Ver ainda o art. 2 e
55/1/a CRCom.
Ode questionar-se sobre o papel da matrícula na aquisição da qualidade de comerciante.
FEERER CORREIA entendia que a matrícula não é condição necessária nem suficiente da aquisição
da qualidade de comerciante. Esta é uma mera presunção da qualidade de comerciante.
 Que o registo não é condição necessária decorre logo do art. 95º CCom, que prevê
que também são estabelecimentos abertos ao público aqueles que forem estabelecidos
por comerciantes não matriculados e se conservem abertos por oito dias consecutivos
ou hajam sido publicitados por meio de avisos, jornais ou letreiros usuais. Há que
conformar isto ainda com o CRCom. Que não estabelece a obrigatoriedade do
registo: é este o significado da não inclusão do art. 2º na hipótese do art. 15º; e daí
decorre que as pessoas singulares podem, portanto, ser comerciantes independentes
da matrícula.
 Que a matrícula não é condição suficiente para que por si só exista comerciante
decorre de o art. 11º CRCom. estabelecer que o registo definitivo constitui mera
presunção de que existe a situação jurídica, nos termos em que é definida (pelo
registo), e de em consonância os factos sujeitos a registo, ainda que não registados
poderem ser invocados entre as partes e os seus herdeiros. (art. 13º)

7.4. As sociedades comerciais como comerciantes.

As sociedades comerciais são comerciantes por via do art. 13º/2 CCom. O processo de
constituição da sociedade comercial é sucessivo e complexo:
 Acordo dos sócios. (art. 36º/2 CSC)
 Formalização do contrato em documento escrito com as assinaturas dos sócios
reconhecidas presencialmente (art. 7º/1 CSC)
 Publicações (art. 3º/1/a CRCom. e 166º CSC)
Questionamos então em qual destes momentos há sociedade comercial e quando há sociedade
comerciante? O art 5º CSC não resolve a questão, porque não se entende se existir como tais
significa existir como sociedade comercial, ou se se reporta simplesmente à aquisição da
personalidade jurídica, existindo já a sociedade comercial antes da personalização. Este último

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entendimento é o melhor, porque mais próximo da lei, mas sobretudo por ser patente a outras
disposições. (veja-se o art. 37º CSC)
Não é, pois, com o registo que surge a sociedade comercial. Em face do disposto no art. 36º/2
poderíamos pensar que ela surge lofo com o acordo societário, mesmo que não formalizado. Não é
assim, porque os requisitos da norma nuclear do art. 2º/1 CSC se se cumprem com segurança com a
formalização do acordo. Até aí haverá sempre falibilidade do juízo sobre a verificação dos seus
pressupostos.
Assim, devemos interpretar o art. 36º/2, da seguinte maneira: não tem que apurar a existência
de uma sociedade comercial, nos termos do art. 2º/1 CSC, mas basta a prova de um acordo que, a
ser transposto nesses termos para um documento escrito com os requisitos do art. 7º, será
qualificável como tal. Em qualquer caso, esta norma só se aplica se a actividade iniciada se analisar
na prática de actos de comércio.
Em suma, as sociedades comerciais são comerciantes – e só elas o são (excluem-se as sociedades
civis sob a forma comercial – art. 1º/4 CSC). E a sociedade comercial existe logo (mas não antes)
com a formalização nos termos do art. 7º/1 CSC – desde que aí se revelem os requisitos do nº2 do
art. 1º CSC. Antes desse momento há sociedade (aplicam-se já as disposições do CSC), mas ainda
não há sociedade comercial.

7.5. Sujeitos que não podem adquirir a qualidade de comerciante. Pessoas colectivas que
exercem o comércio anti-estatutariamente ou com subordinação a outros fins.

Quem não preenche os requisitos do art. 13º não será comerciante. Agora, coloca-se a questão de
saber se há sujeitos que, ainda que pratiquem actos de comércio, não podem adquirir a qualidade
de comerciante. Vejamos os arts. 14º e 17º CCom a este respeito.
Art. 17º - Abrange pessoas colectivas de direito público, de qualquer tipo, cujas atribuições não
são o exercício de actividades económicas a título principal e que se regem estritamente pelo direito
público. Excluem-se do seu âmbito apenas as entidades públicas empresariais e empresas públicas
municipais e intermunicipais – não sendo abrangidas pelo art. 14º, estas entidades podem ser
comerciantes se preencherem os requisitos do art. 13º.
Abrange ainda misericórdias, asilos e outros institutos de beneficência, embora não incluam
todas as pessoas colectivas privadas de fim altruístico, mas apenas aquelas que actuam fins de
relevo público e às quais a lei confere um estatuto especial – as outras, sendo que não têm por
objecto interesses materiais, caem no âmbito de aplicação do art. 14º e não do art. 17º.
Esses sujeitos não podem adquirir a condição de comerciantes, embora possam praticar actos de
comércio e fiquem sujeitos às disposições do Código.

Art. 14º - A letra da lei é ambígua e a sua diferença flagrante com o art. 17º sugere que o art. 14º
não se reporte autonomamente à proibição da aquisição de qualidade de comerciante por sujeitos
que pratiquem actos de comércio – disso cura somente o art. 17º.
Assim, a melhor interpretação deste artigo será a seguinte: a referência da letra da lei à
“profissão de comércio” permite relacioná-la com o art. 13º, estabelecendo casos em que , antes
mesmo de se proibir o exercício profissional, a prática de actos de comércio não releva para efeitos
de essa norma. Não há também profissão, é certo, mas isso acontece porque não há conteúdo dessa
profissão – os actos de comércio.

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O art. 14º reporta-se, assim, a casos em que não há actos nem profissão que os qualifique: a nota
da profissionalidade nãos e verifica por não ter referente válido, em face da lei. Que casos são esses?
 As pessoas colectivas que têm outros fins e cujos actos são, por isso, inválidos, por
aplicação dos preceitos que regem a actividade dessas pessoas
 Aquelas pessoas que por lei ou disposição especial são impedidas da prática de actos
de comércio e esse impedimento sancionado com a invalidade dos actos praticados.
Assim, não praticam actos de comércio relevantes para efeitos do art. 13º, todos aqueles que
pratiquem actos que não subsistem por não serem válidos por força de um preceito legal que não o
art. 14º: sendo nulos os actos em que se analisa uma certa actividade, não pode haver actos de
comércio para efeitos do art. 13º. O art. 14º é uma concretização do art. 13º.
Este entendimento do art. 14º afasta do seu âmbito a hipótese de as pessoas colectivas de fim
ideal que trocam de facto a sua finalidade estatutária pelo exercício de uma actividade económica
lucrativa. FERRER CORREIA sustentava que essas, até serem extintas, deviam ser tratadas como
uma sociedade comercial irregular. Hoje, os actos em que se analisa a actividade dessa sociedade
devem estar sujeitos a um regime especial (art. 36º/2 CSC) e não são inválidos.
Na generalidade dos casos, pode imputar-se a situação a uma decisão expressa ou tácita dos
associados que assumiram a conversão da pessoa colectiva – normalmente uma associação – numa
entidade que se subsume na hipótese do art. 980º CC, isto é, acordaram a conversão da associação
numa sociedade – que será comercial se se detectarem as notas do art. 1º/2 CSC. Ora os actos
praticados pro esta associação convertida de facto em sociedade não serão nulos, justamente porque
não se aplica o regime das associações, mas antes o regime do CSC (art. 36º/2 CSC – porque há um
acordo para o exercício de uma sociedade – prática de actos de comércio - que não passou pelo crivo
do procedimento apropriado). Esta é a melhor solução para tutela do tráfico, de quem contrata com
na entidade, etc… Coma s devidas alterações, tudo quanto acabou de ser dito vale para as
fundações.
Distinto deste caso, é o caso das pessoas jurídicas que exercem o comércio, mas subordinam
esse exercício à sua actividade estatutária e actuam dentro dos limites da regra da especialidade do
fim. Não há, muitas dessas situações, profissão comercial, por faltar a autonomia (veja-se o caso de
um bar interno de uma associação – não será comerciante). No entanto, não é de excluir que, em
certos supostos, estas entidades sejam tratadas como comerciantes e a tal não se opõe o direito
vigente.

Concluímos, portanto, que as pessoas humanas legalmente inibidas em que a lei que prevê a
inibição prescreva a nulidade do acto, mas que, contrariando a inibição, exerçam o comércio em
moldes que se enquadrem no art. 13º/1 são consideradas, à partida, comerciantes. Esta conclusão,
além de não ter obstáculo no art. 14º/2 deve-se ao facto de os actos praticados em contravenção da
proibições não serem inválidos e porque há que tutelar os interesses daqueles que contactam com o
inibido, por estarem na ignorância da incompatibilidade.
Em matéria de pessoas colectivas, o art. 14º aplica-se às pessoas colectivas de fim
desinteressado ou altruístico e às de fim interessado ou egoístico, quer esse fim seja ideal, quer seja
económico (não lucrativo) – ponto é que actuem fora do domínio de sua capacidade jurídica e
pratiquem, por isso actos nulos.

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CAPÍTULO II: O regime jurídico das relações mercantis – consequências da qualificação de uma
relação como jurídico-mercantil

1. Ideia geral: a precedência do direito comercial.

Às relações jurídicas que se qualificam como comerciais aplica-se a lei comercial, isto é, o
Código Comercial e as leis mercantis avulsas. (art. 1º e 3º CCom.) O direito comercial, como
qualquer outro sector, tem lacunas. É, no entanto, um sector menos completo que os outros. É um
direito especial face ao direito civil e isso significa que ele apenas prevê os aspectos que carecem de
uma regulamentação que se afaste do estabelecido no direito geral ou comum.

Art. 3º CCom. – Pressupõe a aplicação do CC, quando:

1º) O direito comercial não contém uma norma especial para regular o aspecto da concreta
relação jurídica;
2º) Essa lacuna não pode ser resolvida pelo seu espirito (analogia iuris);
3º) Também não é viável o recurso a uma norma que regule uma situação análoga (analogia
legis).

O art 3º parte da natureza especial do direito comercial, mas estabelece a precedência dele e a
aplicação tão somente subsidiária, depois de esgotada a possibilidade de resolução no quadro do
direito comercial, do direito civil – que se aplica na qualidade de direito comum das relações
jurídico-privadas.
Assim, o art 3º CCom. prevê indirectamente o modo de resolução de lacunas – as questões
mercantis serão resolvidas pelo direito civil se não o puderem ser, sucessivamente, pelo texto da lei
comercial, pelo seu espírito ou por um caso análogo.
Recorde-se que os preceitos do direito comercial não são, por regra e no seu conjunto, de
natureza excepcional. No seu conjunto, o direito comercial relaciona-se com o direito civil como
direito especial. A natureza de cada norma mercantil tem que ser aferida por referência ao próprio
sector de regulamentação, isto é, ao próprio direito comercial, sendo excepcional se contiver uma
solução que se contrapõe aquela que é a regra no seu interior. (ex: 1112º/1 CC.)

2. Direito Comercial e Código Civil – sentido e limites da aplicação do direito civil às


relações jurídico-mercantis.

VASCO LOBO XAVIER ensina-nos que a uma relação jurídico-mercantil se pode aplicar o CC
porque o legislador comercial, deixa de caso pensado a disciplina de grande número de aspectos
das relações comerciais ao abrigo de preceitos de direito civil, como direito comum das relações
privadas ou porque estamos ante uma verdadeira (mas muito improvável!) omissão na
regulamentação e se encontra no direito civil a norma com afinidade substancial com o caso omisso.
Isto dito torna-se patente que, em face de uma omissão da regulamentação comercial para um
aspecto de regime suscitado por uma relação mercantil, é importante saber se estamos num desses
casos em que o legislador deixou de caso pensado essa questão para ser resolvida pelo direito
comum. Não basta, para tal, que o direito comercial seja omisso e se encontre uma norma de direito
civil sobre o ponto. Há, em primeiro lugar, que verificar se o próprio direito comercial renunciou a

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um tratamento especial, por assumir a conveniência do regime de direito comum e supor a


aplicação do CC.
Esta verificação não se faz num plano subjectivo ou histórico; mas sim objectivista e actualista –
é preciso verificar se à luz do corpo de normas de direito mercantil e do sentido global da sua
regulamentação especial face ao regime comum das relações privadas:
1) Se se trata de um caso em que não se apresentam especialidades em que não se justifique um
tratamento especial similar ao que explica o surgimento dessas normas especiais  Não há
uma real lacuna e vale o direito privado comum.
2) Se se trata de um caso em que, à luz do direito comercial existente se justificaria um
tratamento diferenciado relativamente àquele previsto pela lei civil  Há uma lacuna do
direito comercial que há-de ser preenchida de acordo com o critério da afinidade substancial
(vale a norma, civil ou comercial, que trate uma questão na qual se verifique uma maior
afinidade com a que se coloca no direito comercial, não havendo qualquer precedência
formal do direito comercial sobre o civil).
A questão não é meramente teórica. Em alguns casos não pode, de todo aplicar-se o direito civil.
Veja-se o caso do art 1112ºCC; 11º DL 149/95 e 431º CC vs. 424º CC. O art. 424º CC não seria
adequado à luz dos interesses tutelados pelo direito mercantil, mormente quando a transmissão
respeita a um contrato elaborado num contexto empresarial e se faz a transmissão da empresa a que
o contrato se liga – não pode aplicar-se o regime do CC, porque não há aqui uma lacuna que suscite
a aplicação do direito comum. As normas referidas são normas comerciais que tutelam interesses
comerciais.
Mesmo quando se aplica o direito civil, faz-se sob a forma de direito comum e tendo em
consideração que a relação é mercantil – o que justifica algumas especialidades quanto ao
preenchimento e concretização de noções e conceitos legais ou concurso de normas especiais ou
particulares concretizações de normas gerais.

3. Regime aplicável aos actos mistos ou unilateralmente comerciais. O direito do


consumidor e do direito comercial.

A aplicação da lei comercial depende da existência de um acto de comércio. Mas há que ter em
consideração que o legislador objectivista, para identificar o acto como mercantil, elegeu critérios de
comercialidade que valem apenas para um dos lados da relação. A lei comercial faz, portanto, uma
separação do acto em dois lados. Se é certo que um acto pode ser comercial pelos dois lados, é
também patente que ele pode ser comercial por um dos lados e não pelo outro – actos
unilateralmente comerciais (ou mistos).
Se o acto é apenas comercial por um dos lados, que regime se lhe aplica? O regime a aplicar à
relação, no seu todo, é o comercial – art. 99º CCom. Ou seja, o regime mercantil aplica-se a uma
relação jurídica no seu todo, mesmo que os pressupostos de comercialidade se verifiquem apenas
em relação a um dos seus lados.
Porém, o nosso CCom. criou uma excepção à regra: o direito comercial não se aplica a toda a
relação, mas apenas ao lado por que ela é mercantil, se se tratar, em concreto, de disposições que só
forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil. Quais são elas?
O art. 99º não se reporta a preceitos que excluam explicitamente a sua aplicação a actos mistos,
como é o caso do art. 100º CCom. O art. 99º reporta-se aos preceitos cujo regime indica, vistas as

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

razões que lhe presidem, que a concreta solução tem uma conexão específica com as condições da
comercialidade e pressupõe, por isso, a verificação destas do lado a que se aplica.
Esta é uma limitação interna ao direito comercial. Mas existe hoje uma importante limitação
externa que resulta da aplicação e um importante sector de regulamentação a certos actos mistos.
Quando o sujeito for um consumidor – ver art 2º/1 Lei 24/96 – aplicam-se um conjunto de leis que
visam protegê-lo na contratação com profissionais. Esta aplicação faz-se por força do âmbito de
aplicação dos diplomas que os introduzem, os quais se deve entender que revogam o art. 99º tácita e
parcialmente.
Além do mais, muitos dos contractos comerciais hoje celebrados são celebrados como contractos
de adesão com recurso a cláusulas contratuais gerais. Neste sentido reconhecemos: (por via do
Regime das Clausulas Contratuais Gerais)
- Deveres de informação e comunicação - O contraente deve comunicar e esclarecer
o conteúdo do contrato a quem a ele adere.
- Regime da conformidade das cláusulas - Existem um conjunto de cláusulas que são
sempre proibidas e outras que são relativamente proibidas, porque são proibidas em função, já não
de um critério absoluto, mas relativo. Estas últimas têm de se analisar à luz do padrão adoptado
nesses tipos de contractos. Além disso, todas as cláusulas que sejam contrárias à boa-fé serão
inválidas. CASSIANO DOS SANTOS considera que são sempre contrárias à boa-fé as cláusulas que
se afastam do direito supletivo sem que exista uma razão que justifique esse afastamento.

4. A interpretação da lei comercial.

A interpretação da lei comercial não tem particularidades relevantes, obedecendo aos preceitos
do CC. Mas devem considerar-se dois factores:
1) Muitas leis mercantis foram elaboradas em épocas em que as relações comerciais eram
substancialmente diferentes das actuais, devendo ser analisadas historicamente e a
interpretação deve adaptar a norma às novas realidades.
2) Impõe-se a apreciação dos interesses que lhe presidem, distinguindo-os dos que existem no
âmbito do direito civil.

REGIME GERAL DAS RELAÇÕES MERCANTIS: REGRAS GERAIS EMERGENTE DO DIREITO COMERCIAL

1. A presunção de que os actos comerciais dos comerciantes se integram na actividade


profissional do seu autor.
a. O art 15º e a sua relação de responsabilidade de ambos os cônjuges por dívidas
comerciais.

O art 15º Ccom. estabelece que as dívidas comerciais do cônjuge comerciante se presumem
contraídas no exercício do seu comércio. Este é um preceito instrumental de uma regra básica do
casamento em regime de comunhão de bens (1691º/d CC). (respondem os bens comuns do casal e,
subsidiária e solidariamente, os bens próprios de cada um – 1695º CC).
No quadro de aplicação do preceito do CC, o sujeito que tem interesse em que a dívida
contraída por um sujeito casado se comunique ao outro cônjuge tem que provar que quem contraiu
a dívida é comerciante e que o acto do qual ela resultou se integrou no exercício dessa específica
actividade de comerciante.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

O art 15º torna as coisas mais simples para o credor: ele prova que o sujeito casado que
contraiu a dívida é comerciante e que ela resulta de um acto de comércio, e com isso presume-se
que a dívida foi contraída no exercício de comércio do comerciante. O credor não tem, pois, que
provar a relação do acto com a actividade do comerciante: basta provar que ele é um acto objectivo
ou subjectivo para se presumir essa relação. A presunção do art. 15º assenta na constatação de que
os actos de comércio praticados por um comerciante se inserem na sua actividade comercial ficando
o credo dispensado de provar a integração do concreto acto no comércio do sujeito que o praticou.
A tutela é dada ao credor do comerciante casado, facilitando o acesso ao crédito pelo
comerciante. Ora, resumindo, por aplicação da presunção do art. 15º, o comerciante ou o seu
cônjuge ficam na posição seguinte:
1º) Ou fazem a prova de que um dos pressupostos em que assenta a presunção não é exacto
(provar que o acto não é comercial ou que cônjuge não é comerciante).
2º) Ou ilidem a presunção através da prova de que, apesar do devedor ser comerciante e o
acto comercial, este não se integra na actividade comercial dele – o que é possível quanto aos actos
objectivamente comerciais; ou nos subjectivamente comerciais quando nada resulte quanto à sua
conexão.

Não haverá também responsabilidade de ambos os cônjuges quando se provar que a dívida
não foi contraída em proveito comum. Torna-se necessário que o outro cônjuge tenha brido alguma
vantagem patrimonial com a actividade e que o acto a vise. (ainda que baste que o acto seja
objectivamente apto a prosseguir os fins gerais da actividade de acordo com o padrão de um
comerciante ordenado e diligente.)

b. A presunção geral de que os actos comerciais do comerciante são contraídos no


exercício do seu comércio.

CASSIANO DOS SANTOS entende que o preceito pode ter um alcance mais amplo: todo e
qualquer acto de comércio praticado por um comerciante deve presumir-se contraído no exercício
da sua actividade comercial, para quaisquer efeitos.
Por argumento de identidade de razão (tendo em consideração o art. 2º/2ª parte), a prescrição
do art 15º valerá no caso de comerciantes não casados: se isso interessar para algum efeito, os actos
de comércio desses comerciantes também se presumem contraídos no exercício do seu comércio. E
na hipótese inversa – comerciantes casados – é a própria lei que não contempla restrições – os seus
actos são geralmente tidos como praticados no exercício do comércio, para efeitos do art. 1689º CC
ou qualquer outro que a lei estabeleça.
Esta interpretação do art 15º, quando conjugado com o 2º/2ª parte, permite que este tenha um
significativo alcance no direito positivo – prescrições presuntivas, juros mercantis, direito do
consumidor, etc...

2. Vencimento das obrigações mercantis


a. Vencimento das obrigações pecuniárias nas transacções entre empresas.
O DL 62/2013, que resulta da transposição para o direito português de uma directiva da UE,
estabelece um regime especial de vencimento das obrigações pecuniárias resultantes das
transacções entre empresas (E não entre empresas e os seus consumidores!).

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Directamente, o diploma diz que são devidos juros, sempre que o contracto não fixar a data
ou prazo de pagamento, a partir do decurso dos prazos referidos nas várias alíneas, que em termos
gerais se contam desde a data da emissão da factura ou da data correspondente a esta (4º/3) Ora,
declarando a lei que se vencem juros, daí resulta indirectamente que desde esse momento se deve
considerar a obrigação vencida e o devedor em mora.
O vencimento decorre:
 De disposição legal – ex lege (na ausência de estipulação das partes, que será inválida
se contraria o disposto no art. 8º)
 Não depende de qualquer actuação do credor, ou seja, é automático.

A mora, além do vencimento de juros, pode eventualmente dar lugar a indemnização nos
termos do art. 7º.
O art 8º identifica-nos os casos em que a estipulação das partes, afastando este regime de
maneira excessiva, é considerada nula. As cláusulas contra este regime supletivo só são admitidas e
válidas se houver uma justificação fundada nas circunstâncias do caso concreto que seja causa do
afastamento. Ou seja, além do dado objectivo que resulta da comparação entre o prazo contractual e
o prazo supletivamente fixado na lei, há que ver se a ultrapassagem pelo primeiro do segundo tem
uma justa causa em face da concreta relação de acordo com o previsto no nº2. Em caso de nulidade,
aplicam-se os prazos do art. 4º/3.

Este DL surge porque o acrescido peso dos grandes agentes económicos no mercado tem
levado a que estes imponham condições abusivas àqueles com quem contratam. Um exemplo é o
alargamento do prazo de cumprimento das obrigações de pagamento imposto pela parte mais forte
à outra. A lei presume que isso revela um desequilíbrio nas condições contratualizadas e intervém
para evitar regimes livremente estipulados que não correspondam ao equilíbrio natural das
relações.
Há ainda que tecer algumas notas quanto ao âmbito de aplicação deste diploma:
 Empresa define-se como uma organização que desenvolve uma actividade
económica profissional de maneira autónoma. Permite abranger não apenas
actividades comerciais, mas também as demais, desde que realziadas através
de uma organização e autonomamente.
 Há organização quando o exercício não assenta pura e simplesmente
no sujeito, mas implica uma estrutra de meios objectivos e subjectivos
com um minimo de densidade que a autonomizam relativamente a
ele.

CASSIANO DOS SANTOS ainda alerta para o facto de que se aplica o CC quanto às
obrigações pecuniárias que consistam no pagamento do preço da compra e venda ou contrapartida
nos demais contractos onerosos, quando não forem abrangidos pelo DL 62/2013, nem pelo DL
178/86 – aqui o vencimento dá-se na data da entrega. Tratando-se de prestações financeiras, aplica-
se por analogia o art. 348º e o DL 142/2000 – vencem na data da liquidação da prestação que
compete à outra parte, o que ocorrerá normalmente na data de celebração do contrato.

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b. Vencimento das obrigações mercantis em geral.

Não havendo convenção das partes, rege o art. 777º CC : regra geral – a falta de estipulação de
prazo implica que não haja vencimento definido, e que o credor possa exigir o cumprimento a todo
o tempo.
- Interpelação do devedor (nº1)
- Caso a natureza da prestação, as circunstâncias que a determinaram ou os usos imponham
a fixação de prazo, há lugar a fixação judicial, a qual é produzida num processo especial (nº2 e art.
1456º CPC e ss.)

Não há, pois vencimento automático ou por força da lei, sendo necessária a interpelação ou
fixação judicial para que se desencadeie a mora.

Disposições especiais:
 Para obrigações pecuniárias decorrentes de transacções entre empresas – regime do DL
62/2013 – vencimento ex lege a médio prazo.
 Contrato de Agência – regime do DL 178/86 - vencimento decorre directamente da lei e a
médio prazo. (art. 18º/3)
 Obrigação de entrega de coisa comprada à vista – art. 472º CCom.
 Obrigação de entrega de coisa vendida não à vista e troca comercial – art. 473º CCom.

Estas disposições especiais devem-se ao facto de que não deve haver morosidade no
cumprimento dos negócios de modo a não serem colocados entraves ao tráfico mercantil, em
qualquer uma das suas direcções. Quando a coisa não está à vista, pretende-se proteger o
comerciante naqueles casos em que o comerciante não tem o bem, logo não pode ficar sujeito a
entregar no curto prazo.
Deve entender-se que estas regras valem para todas as compras e vendas comerciais, qualquer
que seja o lado em que se verifica a comercialidade.

 Contrato de Conta-Corrente – art. 348º CCom - vencimento automático.


 Contrato de Seguro - Art. 425º CCom e art. 4º/1 DL 142/2000 – vencimento na data de
celebração do contrato.

CASSIANO DOS SANTOS considera que o art 777º CC está em contradição com a lógica
global da regulação mercantil e não convém às relações mercantis e seus interesses. Ora, deve
concluir-se que o legislador não pressupôs a aplicação do CC, mas como também não estabeleceu
uma regra com carácter geral, conclui-se que há uma lacuna. Esta, em obediência ao art. 3º CC, deve
ser integrada à luz das valorações que se retiram do art. 473º CCom e demais disposições
comerciais. Assim:
 Obrigações de cumprimento decorrentes de actos comerciais em que contraente tem
o bem, direito ou serviço na sua disponibilidade  Dia seguinte.
 Prestações cujo cumprimento não está na disponibilidade imediata do contraente 
São objecto de fixação judicial.

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3. Prescrição dos créditos mercantis.

O CC, ao estabelecer o regime geral de prescrição de direitos, contém normas comerciais que são
relativas à prescrição de créditos de que são titulares comerciantes. A norma central nesta matéria é
a do art. 317º CC, na qual se estabelece um regime de prescrição de dois anos assente na presunção
de cumprimento (art. 312º CC).

a) Âmbito subjectivo activo (titulares de crédito abrangidos) – Todos os que são comerciantes
ao abrigo do art. 13º Ccom.
a. Comerciantes em sentido económico
b. Industriais
c. Prestadores de serviços (não abrange as prestações liberais)

b) Âmbito objectivo (créditos abrangidos)


a. Créditos emergentes da actividade profissional de um dos sujeitos referidos, isto é,
de actos praticados no âmbito da sua actividade profissional – tanto dos actos
constitutivos dessa actividade como de todos os que nela se integram (pelo 230º) e,
em ultima instância, os que são actos subjectivamente comerciais pelo art. 2º/2ª parte
Ccom.
b. Assim, só quanto ao acto inserido no exercício profissional há fundamento para a
presunção de cumprimento. O crédito há-de assim emergir de um acto de comércio –
ainda que a presunção não se aplique a todo o crédito nessas circunstâncias.

c) Âmbito subjectivo passivo (devedores)


a. Devedores não comerciantes
b. Deveres comerciantes que actuem fora da sua actividade comercial, isto é, o bem ou
prestação não é destinado ao seu exercício profissional, excluindo-se todos os actos
que se integram na sua actividade, mesmo os que não sejam constitutivos, por isso
decorrer da ratio de prescrição.

Esta é uma prescrição presuntiva – a empresa tem certos compromissos e uma estrutura para
garantir o cumprimento das dívidas pelos seus devedores; Ora, se não interpela os seus clientes
para que paguem em determinado prazo, a lei presume que houve cumprimento. As dividas que
não cabem na presunção entram na regra geral da prescrição de 20 anos (art. 309º Ccom) ou,
tratando-se de prestações periodicamente renováveis, prescrevem ao cabo de 5 anos. (art. 309º CC)
Estes factores ponderados, pode assentar-se em que a prescrição em análise se funda na
existência, do lado dos credores abrangidos, de uma organização de controlo dos créditos
concedidos aos clientes, a qual actua com rapidez na respectiva cobrança. A solução legal tutela a
fluidez no tráfico em geral.
Além desta prescrição a lei apresenta ainda outras relevantes no nosso domínio – art. 316º CC e
371º/a CC. Merece ainda destaque a prescrição de 6 meses da Lei de Serviços Públicos Essenciais
(Lei 23/96, de 26 de Julho), a contar desde a data do fornecimento do serviço de água, luz, gás e
telefone. Neste caso, o que prescreve não é o crédito, mas o direito a exigir o seu pagamento,

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mediante apresentação da factura – o crédito, tendo sido apresentada factura nos seis meses
subsequentes ao fornecimento, prescreve nos termos gerais do CC.

Em suma:
Comerciante – Comerciante (20 anos, a contar do momento do vencimento da obrigação)
Não Comerciante – Comerciante (20 anos, a contar do momento do vencimento da obrigação)
Comerciante – Não Comerciante (2 anos, a contar do momento do vencimento da obrigação)

4. Transmissão das posições contratuais (em contractos mercantis).

O Direito Comercial não tem qualquer norma de carácter geral que regule os termos da cessão
da posição contratual. Uma tal disposição existe no Direito Civil – a cessão depende do
consentimento do outro contraente (art. 424º/1 CC)
Este artigo não pode, porém, valer como direito privado comum, porque existem na lei
comercial preceitos que revelam a existência de uma lacuna, impedindo assim o recurso ao direito
civil como direito comum das relações jurídico-privadas. A lacuna só existe no âmbito das relações
contratuais estabelecidas no quadro da exploração de uma empresa, e se a transmissão da posição
contratual se realizar como elemento envolvido na transmissão da empresa. Veja-se o art. 1112º CC
e art. 11º/1 DL 149/85.
Assim, neste caso, estamos ante uma lacuna do Direito Comercial: integrada no trespasse – que
é acto de comércio – a cessão da posição contractual fica sujeita ao regime comercial e não ao direito
comum. Já se se tratar de uma transmissão isolada da posição contratual deve valer o direito
comum – art. 424º/1 CC.
Para integrar esta lacuna deve recorrer-se ao caso mais próximo da relação que se pretende
regular e que encontre solução no direito positivo, quando os interesses sejam similares.

Art. 1112º  Aplica-se quando, estando em causa a transmissão de uma posição contratual com
a transmissão global de uma empresa, ao interesse tipicamente comercial que sustente a cessão
estiver contraposto um interesse civil.
Art. 11º/1 DL 149/85  Quando a transmissão envolve o jogo de dois interesses mercantis p.e.
contractos de concessão ou agência, com a transmissão da empresa do concessionário ou do agente).
Nestes casos, o “locador” pode opor-se à transmissão se provar que contraente não oferece
garantias bastantes de boa e cabal execução do contrato. (nº3)

5. Solidariedade das obrigações comerciais.

O art. 100º Ccom consagra a regra de que as obrigações comerciais são solidárias – ainda que se
permita convenção em contrário. Esta solução opõe-se à regra do direito civil que é a da conjunção.
Assim, cada um dos obrigados, numa obrigação comercial, responde pela totalidade da prestação,
podendo o credor exigir toda a prestação a qualquer deles (art. 512º e 519º CC), cabendo depois
àquele cumprir, nas relações internas com os demais obrigados, actuar o direito de regresso,
obtendo o pagamento que cabe a cada um dos outros.
O art 100º reporta-se aos co-obrigados em relações comerciais.

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1) Pressupõe-se que exista uma obrigação mercantil – aquela que emerge de um acto de
comércio (o acto tem que ser comercial pelo lado daqueles que se obrigam – o que exclui a
solidariedade quanto às obrigações de não comerciantes que não resultam de actos
comerciais pelo lado dos obrigados). Exclui-se ainda a solidariedade quando dois
comerciantes assumem obrigação que não é, pelo seu lado, um acto de comércio.
2) Pressupõe dois ou mais co-obrigados - Só há solidariedade se houver pluralidade de
devedores em actuação directa conjunta, ou seja, quando dois ou mais sujeitos assumem,
sem interposição de qualquer estrutura, uma obrigação mercantil.
3) Não há requisitos do lado activo, ou seja, o credor pode ser ou não comerciante e pode ou
não ter praticado, pelo seu lado, um acto de comércio.

Este preceito revela que o preceito visa a protecção de todo aquele que concede crédito aos
sujeitos que, conjuntamente, actuam na esfera mercantil, concedendo ao credor um regime
privilegiado. Desfavorecem-se os concretos obrigados a favor do benefício geral do tráfico.

6. Solidariedade da fiança e, em geral, da garantia da obrigação mercantil.

O art 101º Ccom estabelece a solidariedade do fiador e do afiançado que assumiu a obrigação
mercantil – a letra da lei fala de obrigação e não de acto exigindo também que o acto seja comercial
do lado do devedor. É a obrigação garantida que deve resultar de um acto de comércio, e esta
exigência não se comunica ao acto de afiançamento, que não tem que ter características especiais.
Do mesmo modo, a solidariedade beneficia qualquer credor.
Penaliza quem dá garantia, por fiança, a uma obrigação comercial, para beneficiar o credor e o
garantido. O fiador apenas responde perante o credor e, tendo pago a este integralmente, poderá
actuar contra o afiançado – o risco deste é o da demora e eventualmente da impossibilidade de
reembolso.
A ratio da norma visa a protecção do credor e só instrumentalmente do garantido. É o benefício
geral da obtenção de crédito por parte de quem entra na esfera mercantil que explica a solução
legal.
Este regime afasta o regime-regra no direito civil que é o do benefício de excussão prévia- o
credor tem que esgotar as possibilidades de receber do devedor e só depois pode exigir do fiador.
Este regime pode ser afastado por convenção.

7. O caso específico do Contrato de Cedência de Espaço em Centro Comercial (Aula Teórica)

Como vimos, a regra é a de que quando exista um contrato comercial, este será sujeito ao direito
comercial e, em princípio, só ao direito comercial - art. 1º CComercial.
Há obviamente uma ressalva a fazer aqui: o direito comercial é um direito especial que
marca as especialidades do regime comercial face ao regime civil, havendo, porém, muitas matérias
que não são tratadas no Código Comercial, aplicando-se o Direito Civil como direito privado
comum ou geral porque o legislador entendeu que não há especialidade frente ao regime mercantil.
Que casos são esses? Capacidade das partes, divergências entre a vontade e a declaração,
vícios da vontade, etc...

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No entanto, como é que nós sabemos se podemos ir buscar ao CC uma solução de direito
privado comum ou não? Podíamos ser tentados a dizer que se não há tratamento na lei comercial,
devemos ir ao CC. Isto não é verdade.

Para responder a esta questão, tomemos como exemplo o contrato de cedência de espaço
ou loja em centro comercial - contrato celebrado entre os donos e gestores dos centros comerciais e
os comerciantes que lá se instalam.
Este contrato não está previsto na lei. Ou seja, será este contrato um acto de comércio? Sim,
pois cabe no art. 230º CCom, que qualifica empresas e os actos praticados no exercício dessas
empresas como actos de comércio, qualificando tanto os actos fundamentais, como todos os outros,
nomeadamente os actos que servem para estruturar o exercício. Este contrato é normalmente o
primeiro contrato celebrado, muitas vezes ligado ao contrato de franquia. Estes dois contractos
estabelecem a base do exercício da empresa. O art 230º CCom diz-nos que isto é um acto de
comércio, logo um contrato comercial.
Mas o contrato não está sequer regulado, ou seja, não tem regime. Para determinar o regime,
podemos distinguir 3 posições doutrinais:

1) Corrente inicial - Qualificava o contracto como um arrendamento. Este foi objecto de uma
regulação fortemente protectora do arrendatário (O contrato de arrendamento, para proteger o
arrendatário, criou um regime vinculístico, cujo traço típico era que, sendo um contrato a prazo
temporário, só o arrendatário é que podia por termo ao contrato, bastando que o inquilino
quisesse para que se verificasse uma renovação obrigatória e automática do contrato). Ora, se o
contrato era de arrendamento, ficava o arrendador sujeito a este regime vinculístico, não
podendo ele cessar o contrato. Este ponto de partida, não era adequado à realidade dos centros
comerciais. O regime do arrendamento estava previsto para arrendamentos realizados noutro
contexto.

2) Corrente Dominante (Antunes Varela e Oliveira Ascensão) - Entendem que este contrato não é
um contrato de arrendamento, mas sim um contrato atípico, porque apesar de envolver o gozo
de um imóvel, tem outras prestações de serviços e um conjunto de obrigações que alteram a sua
natureza. A consequência dessa afirmação é que, ao ser atípico, não está regulado na lei, não
tendo regime, valendo a liberdade contractual. Ou seja, este contrato rege-se pelas estipulações
das partes, podendo elas regular aquilo que desejarem, a menos que possa ferir princípios
fundamentais. Ou seja, os interesses que iam prevalecer eram os da parte mais poderosa – o
gestor do centro comercial.

3) Posição do Curso - Este contrato é de arrendamento, mas é um arrendamento atípico. (Havendo


um arrendamento, não tem que ser aquele previsto na lei civil). O tipo "arrendamento" do NRAU
é celebrado entre um proprietário imobiliário - um civil - e que cede aquele espaço a um outro
sujeito que pode ser um não comerciante (para habitação) ou a um comerciante (para o exercício
da actividade comercial). Os contractos celebrados no âmbito dos centros comerciais são entre
um proprietário imobiliário que ele próprio é um empresário (empresarialização de cada vez
mais sectores da actividade económica - a actividade imobiliária convertida em negócio) e um

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

comerciante. E então qual o regime que se lhe aplica - sendo o contrato um arrendamento
atípico? Podemos aplicar algumas regras do arrendamento que se possam aplicar por analogia.

Supomos agora que o lojista pretende transmitir a sua loja e quer transmiti-la com o contrato de
cedência de espaço - que é um arrendamento atípico. Normalmente nestes contractos prevê-se uma
cláusula a dizer que o lojista não pode ceder o espaço sem autorização do outro contraente (sendo
que CASSIANO DOS SANTOS têm dúvidas se esta clausula será válida.
Imaginemos, porém, que o contrato nada diz. Neste caso, sendo este contrato um acto de
comércio, estamos obrigados, pelo art. 3º CCom a fazer um percurso pelo direito comercial, antes de
acudir ao CC.
Já vimos que a não regulação na lei comercial pode significar : (1) que se aplica o CC ou (2) que
estamos ante uma lacuna e, nesses casos, não se aplica o CC, mas sim o direito comercial. Para saber
perante que caso estamos, vamos ao CComercial e vemos se há alguma coisa aí que nos permita
concluir que o legislador incorreu numa lacuna. Ou seja, vamos procurar normas que tratem da
cessão da posição contratual para outros contractos. Ora, há duas normas fundamentais em matéria
de cessão da posição contratual:
- Art 1112º CC- Está no CC, mas é uma norma comercial, permitindo em caso de
transmissão do estabelecimento comercial (trespasse), a transmissão da posição contratual de
arrendatário sem necessidade do consentimento do senhorio. Vale para o trespasse e não para os
arrendamentos clássicos.
- Contrato de Leasing - Decreto-lei 149/95, art 11º - também tem norma especial para
a cessão da posição contratual.

Se há está regulação, então podemos dizer que o regime da cessão da posição contratual tem
particularidades no direito comercial, e o legislador não o tratou porque incorreu numa omissão.
Nesse caso, devemos resolver a questão dentro do direito comercial.
Portanto, ao contrato comercial não se aplica o regime civil, mas sim um regime que se
determina por integração da lacuna a partir das regras específicas que existem em matéria mercantil
para a cessão da posição contratual.
Aplicamos um preceito ou outro em função da analogia. Ou seja, devemos saber que estão
em questão interesse civil-interesse comercial (aplica-se o art. 1112º) ou interesse comercial-
comercial. (Aplica-se o art 11º)
Neste caso, aplicavamos o art 11º porque estão em causa dois interesses comerciais. Não
seria necessário o consentimento do gestor do centro comercial, salvo que fosse um caso do 11º/3.

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CAPÍTULO II – O REGIME JURÍDICO DAS RELAÇÕES JURÍDICO MERCANTIS (CONT.)

1. O regime geral aplicável aos comerciantes


1.1. As obrigações impostas aos comerciantes: ideia geral.
A lei comercial conhece um conjunto de preceitos que se dirigem especialmente aos comerciantes,
impondo-lhe certas obrigações ou o respeito por certas regras, e que têm um âmbito de aplicação
geral: aplicam-se a qualquer comerciante ou categorias de comerciantes.
A disposição central nesta matéria é o art. 18º CCom., o qual consagra as várias obrigações dos
comerciantes admitidas classicamente, que depois são concretizadas em preceitos específicos. Além
destas, há que ter em consideração as contidas noutros diplomas mais recentes que prevêem novas
obrigações ou alteram as já existentes, adaptando-as às novas condições da actividade económica
dos nossos dias. (Destacamos o CIRE e o DL 69/2005, de 17 de Março)
Assim, o comerciante é obrigado a:
 Adoptar uma firma (art. 18º/1 CCom – a desenvolver posteriormente)
 Ter escrituração mercantil (art. 18º/2 CCom)
 Inscrever os actos a ele sujeitos no registo comercial (art. 18º/3 CCom)
 Dar balanço (art. 18º/4 CCom)
 Não colocar no mercado produtos que não sejam seguros (DL 69/2005)
 Apresentar-se à insolvência (CIRE – a desenvolver posteriormente)

Ainda que se tratem de obrigações de um regime geral especifico dos comerciantes, não são
reconhecidas apenas a estes, na medida em que o âmbito de aplicação destas obrigações se estende
para lá do círculo dos comerciantes.
Em todo o caso, surgiram historicamente para eles e é a eles que essencialmente se aplicam. Quando
se estende para lá desse círculo, tal deve-se à constatação de que outras actividades ou actuações
justificam em muitos pontos um tratamento análogo ao daquelas que são estritamente mercantis.

1.2. A obrigação de ter escrituração mercantil e o regime especial de prova entre


comerciantes
1.2.1. Livros mercantis: liberdade de organização e privacidade – exibição ou exame
judiciais ou por vinculação contratual.

Todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (art. 29º
CCom), na qual deve inscrever todos os factos relativos à sua actividade mercantil, e apenas eles –
não há, no Código, qualquer suporte para defender a extensão aos “factos civis”.
Ao contrário do estabelecido na versão originária dos preceitos do Código, a sua redacção actual
(2006), prescreve o princípio de liberdade de organização (art. 30º), o qual se impõe mesmo face a
autoridades administrativas e judiciárias (art. 41º CCom). Apenas para as sociedades são
estabelecidas regras específicas quanto aos livros de actas (art. 31º, 37º e 38º).
Em todo o caso, prevalece nesta matéria o art. 29º, que diz que a escrituração deve ser efectuada de
acordo com a lei – do princípio da liberdade de organização decorre que esta conformidade não é
hoje com a lei mercantil, devendo em todo o caso ser respeitadas as leis de natureza fiscal ou
contabilística que estabeleçam parâmetros a obedecer na elaboração dos livros.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

O art 40º CCom estabelece uma obrigação de arquivar a escrituração mercantil, sendo que o seu
prazo se conta a partir da data a que respeita cada lançamento ou inscrição neles efectuados, pelo
que têm que ser mantidos até se perfazerem 10 anos sobre o último lançamento deles constante, e
da emissão ou recepção, conforme os casos, quanto aos documentos e à correspondência.
A regra é que os livros são privativos do comerciante e só por eles podem ser usados e exibidos
(ainda que possa recorrer a terceiros para a sua elaboração – art. 38º CCom). A excepção legal é a
prevista no art 42º, relativo ao pedido de exibição judicial. Fora desses casos, a lei prevê, no seu art.
43º que, em sede judicial, possa haver exame de escrituração quando o comerciante nisso tenha
interesse e por solicitação da outra parte ou do tribunal, neste caso quando a questão envolva
responsabilidade do comerciante e os livros sejam adequados a fixar os factos a ela relativos (e só
nessa medida).
Ora, como resulta da regra e suas excepções, este princípio da privacidade da escrituração funda-se
em razões de ordem pública económica ligadas ao funcionamento do sistema empresarial.
O comerciante pode vincular-se contratualmente a fazer a exibição dos seus livros ou a permitir a
sua consulta, mesmo que fora de um processo judicial. (associação e participação, franchising,
arrendamento empresarial, etc…)
As razões de ordem pública e o princípio da adequação e proporcionalidade que estão na base no
art. 43º/2 conduzem a dizer que a liberdade contratual não é plena, havendo um mínimo de
imperatividade nos preceitos dos arts. 41º e ss. Essa imperatividade consiste em ser exigida uma
justa causa para a vinculação, pelo que deverá ser considerada nula, e correspondentemente
reduzida, a cláusula contratual que permita uma devassa superior àquilo que é instrumental à
execução dos compromissos validamente estabelecidos no concreto contrato.

1.2.2. O regime especial de prova entre comerciantes.

Os livros de escrituração são elementos especiais de prova entre comerciantes, relativamente a


questões emergentes de relações jurídicas que resultem de actos de comércio praticados nos
exercícios de ambos os sujeitos (ou assim presumidos).
A primeira regra vigente neste domínio é a seguinte: em caso de invocação e acesso por terceiro (art.
43º CCom), os factos inscritos nos livros, sejam eles regularmente organizados ou não, provam que
contra o comerciante de quem é a escrituração. Mas a escrituração dos livros está sujeita à regra da
indivisibilidade: quem quer que pretenda prevalecer-se de factos aí inscritos que lhe aproveitem,
tem que aceitar outros que lhe sejam desfavoráveis. (art. 44º/1 CCom)
Os livros e registos de um comerciante (m principio, mas não necessariamente, invocados por ele)
fazem prova a favor dele contra outro comerciante, se esse outro não apresentar livros arrumados
igualmente nos termos permitidos pela lei; não o fazendo este, os factos inscritos presumem-se
verdadeiros e devem ser dados como provados, até prova em contrário. (art. 44º/2/in fine CCom e
art. 350º/1/2 CC) Idêntico regime vale para o caso em que o outro comerciante não tem livros ou
recusa ilicitamente a sua apresentação, salvo caso de força maior.
Nos casos em que ambos os comerciantes fazem prova com os assentos dos livros regularmente
arrumados (conformes ao CCom) e os factos inscritos são contraditórios, a prova resultante dos
livros anula-se reciprocamente e a questão é decidida nos termos gerais (art. 44º/3 e 4)
Deve recordar-se ainda o disposto no art. 97º quanto ao valor probatório da correspondência
telegráfica – que hoje se deve estender a outros meios electrónicos.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

2. A obrigação de fazer inscrever no registo comercial os actos a ele sujeitos

A actividade dos comerciantes desenvolve-se no mercado, tendo relevância para o tráfico jurídico
em geral. Para mais, a segurança é um dos valores fundamentais na actividade mercantil.
Por isso, o ordenamento jurídico predispôs um sistema organizado justamente para dar publicidade
à situação jurídica dos comerciantes (ver art. 1º CRC)
Os factos registados destinam-se à consulta dos interessados, que pode ser feita num website
de acesso público (art. 70º CRC) e através das chamadas certidões permanentes online, que visam
justamente publicitar a situação jurídica dos comerciantes individuais, sociedades comerciais,
sociedades civis sobre a forma comercial, empresas públicas, entre outras, inscritas no registo
comercial. (Portaria 1416-A/2006)
Estão sujeitos a registo o início da actividade do comerciante em nome individual
(matrícula) e a alteração ou cessação desta actividade (art. 2º CRC) Quanto ás sociedades comerciais:
 Actos fundamentais ou estruturantes da vida da sociedade (art. 3º/1/a/r/t)
 Actos relativos a quotas, nas sociedades por quotas (als. c/d/i)
 Amortização, conversão e remissão de acções, nas sociedades anónimas (al. J)
 Designação e cessação de funções nos membros das sociedades (al. M)
 Prestação de contas das sociedades (al. N)
 Algumas acções judiciais (art. 9º CRC)

O registo pode ser facultativo ou obrigatório. Os casos de obrigatoriedade estão previstos no art. 15º
CRC, e não abrangem os factos relativos a comerciantes em nome individual – excepto em matéria
de interdição e insolvência. O incumprimento da obrigação fica sujeita a coima (art. 17º CRC)
O registo pode ser solicitado pelo comerciante ou seu representante, e no caso das pessoas jurídicas,
pelo órgão de administração – art. 28º/1 e 29º CRC)
O registo é hoje feito por transcrição ou por depósito, consistindo este no mero arquivamento, sem
qualquer controlo substancial, dos documentos que titulam factos sujeitos a registo, salvo
(estranhamente) no que respeita a quotas e partes sociais, para o registo das quais (rectius, dos actos
a ela relativos) a lei estabelece que se faz menção do facto na ficha, tomando por base o pedido – art.
53º-A CRC.
O registo não é constitutivo, mesmo quando é obrigatório. Nos termos do art. 11º o registo por
transcrição constitui presunção de que existe a situação inscrita, nos precisos termos em que é
definida no registo. Os factos não registados podem ainda ser invocados nos termos do art 13º CRC.
Vale aqui também a prioridade do registo, segundo a qual o facto registado em primeiro lugar
prevalece sobre os que se lhe seguirem, relativamente às mesmas quotas ou partes sociais, segundo
a ordem do respectivo pedido, seja qual for o tipo de registo. O registo é mera condição de
oponibilidade a terceiros dos factos a ele sujeitos (art. 14º; em matéria de sociedades, além do
registo, exige-se a publicação, quando esta é obrigatória, ainda que possa haver oponibilidade se a
sociedade provar que o terceiro tinha conhecimento dos factos – art. 168º/2/3 CSC), o que significa
que o sujeito que pode promover o registo (ou aquele que lhe sucede mortis causa) não pode invocar
o facto face a todos os demais sujeitos (que são terceiros).
Apesar de valer em geral o princípio da legalidade (art. 47º CRC), o Conservador do registo não
poderá recusar qualquer pedido de registo por depósito, desde que se trate de um acto sujeito a
registo, mas poderá recusar o registo por transcrição em certos casos (art. 48º CRC, destacando-se a

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

alínea d)). No registo por transcrição pode ainda efectuar o registo provisoriamente, por dúvidas
quando há deficiências que não são fundamento de recusa mas obstam ao registo do acto tal como é
pedido e elas não foram sanadas (art. 49º CRC – o que não é o caso do acto meramente anulável, por
ter de ser tratado como válido até à anulação).

3. A obrigação de dar balanço.

Todo o comerciante é obrigado a dar balanço anual do seu activo ou passivo, nos três primeiros
meses de cada ano, relativamente ao ano anterior (art. 62º CCom). E isto, embora as sociedades
possam ter um exercício social não reportado ao ano civil (art. 9º/1/i CSC). Esta disposição vale no
domínio mercantil, embora possam existir dispensas.

4. A obrigação geral de segurança relativa a produtos e serviços.

Os comerciantes têm o dever geral de não colocar no mercado produtos e serviços que já não
estejam seguros. (DL 69/2005) Trata-se da transposição de uma directiva que visa a protecção dos
consumidores, mas também a realização do mercado único e da disciplina da concorrência.
Qual o âmbito e conteúdo desta obrigação?
«Produto», para efeitos do art. 4º, é qualquer bem móvel, abrangendo-se os bens utilizados no
âmbito de uma prestação de serviços. Não se abrangem os produtos usados que sejam fornecidos
como antiguidades ou que necessitem de recuperação ou reparação desde de o fornecedor informe
o adquirente destas características, antes ou na celebração do contrato.
Mas a obrigação de segurança incide apenas sobre os bens que são fornecidos ou disponibilizados, a
título oneroso ou gratuito, no âmbito de uma actividade profissional e que são destinados aos
consumidores ou que, não o sendo, são susceptíveis de circunstâncias razoavelmente previsíveis,
por eles serem utilizados. (abrangem-se brindes, ofertas, e promoções) Assim, a protecção estende-
se a toda a pessoa humana, em geral, independentemente da sua condição.
«Produtor» vem definido no art. 3º/e, que (re)lida em conjunto com a noção de produto nos conduz
a uma definição mais correta: a obrigação recai sobre o industrial ou todo aquele que actua sobre o
produto, mas há que acrescentar também todo aquele que, no exercício da sua actividade
profissional, coloque bens ou serviços no mercado. No mesmo sentido aponta o art. 2º da Lei de
Defesa do Consumidor.
«Produto seguro» é o bem que não apresenta quaisquer riscos ou que apresenta apenas riscos
reduzidos, que sejam compatíveis com a sua utilização e que sejam conciliáveis com um elevado
risco de protecção da saúde e da segurança dos consumidores. Para esta qualificação devem ser
tidos em conta os factores do art. 3º/1/b. Importa apenas destacar que os riscos que estejam
associados ao produto, mas resultem de circunstâncias de utilização anómalas não relevam.
Considerando-se um uso norma ou razoavelmente previsível, têm que ser tidos em conta todos os
usos compatíveis com as características e natureza do produto, incluindo os usos laterais ou
errados, mas possíveis.
«Colocar no mercado» é fazer entrar na cadeia de comercialização do produto.
A existência de riscos mede-se, me primeira linha, pelos efeitos que o produto provoca no
consumidor; só relevam os outros critérios (art. 5º/b) quando é necessário verificar se os riscos
detectados são toleráveis. São ainda tolerados riscos e até riscos tecnicamente evitáveis – basta que

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

se formule um juízo de compatibilidade desses riscos com a utilização e que eles sejam conciliáveis
com um nível elevado de protecção.
O art. 4º/2 estabelece uma presunção de conformidade com a obrigação geral de segurança, já que,
no momento de lançar um produto no mercado, há sempre um grau de incerteza. Ver ainda o nº3.
Como funciona esta presunção?
Desde logo, o funcionamento da presunção não impede que o produto seja efectivamente perigoso
– a própria lei o assume (art. 3º/4).
Podemos considerar que, ao funcionar a presunção e ao não se verificar o caso do art. 3º/4, não se
verificam as consequências jurídicas que em principio decorrem da violação da obrigação geral de
segurança, ainda que o produto se venha a revelar realmente perigoso. Assim:
 Não há lugar à aplicação de qualquer coima. (resulta do teor do art. 26º/1/e)
 Não se verifica responsabilidade civil por parte do produtor. A violação da obrigação de
segurança importa responsabilidade civil nos termos do art. 483º CC. Se se presume que
não se viola o art. 4º/1, desaparece o pressuposto da responsabilidade.
Esta presunção é, pois, uma presunção absoluta, mas não para todos os efeitos, de segurança. Ora,
se o produtor respeita as normas e recomendações é razoável que se parta do princípio que há
conformidade com a obrigação e não se sancione o produtor.
No entanto, pode acontecer que a realidade venha a demonstrar a inadequação dos padrões: em tal
caso, o produto será perigoso, e podem ser tomadas medidas em conformidade, pois o valor
superior que se prossegue é a protecção dos consumidores. Neste plano, a conformidade com os
padrões não produz qualquer efeito especial, excepto um maior cuidado na demonstração da
perigosidade pela entidade competente.

CAPÍTULO III – O ESTABELECIMENTO COMERCIAL OU EMPRESA

1. Empresa e estabelecimento comercial – acepções do termo empresa.

O direito comercial, sendo o direito das zonas preferenciais da economia, é, antes de mais, o direito
das empresas e de todos os mecanismos que, tendo nascido historicamente para a empresa, se
tornaram de utilização comum, continuando, porém, a sua regulamentação a obedecer aos
interesses da empresa.
Podemos caracterizar “empresa” pelas seguintes notas:
7) A empresa é uma estrutura complexa de pessoas, bens, direitos e outros valores, na qual
assumem hoje particular importância a ideia organizatória e a estratégia definidas pelo
empresário e a forma como ele gere a intervenção no mercado;
8) Essa estrutura desenvolve uma actividade que se analisa num processo de produção em
sentido amplo, no qual se produz um resultado que consiste num valor económico novo
(acrescentado) susceptível de troca sistemática e vantajosa no mercado – o que abrange
desde a transformação industrial até ao fornecimento de serviços, passando pela actividade
de intermediação nas trocas, pela agricultura ou pelas pescas, mas também pela prestação de
serviços nas áreas desportivas, artísticas ou culturais;
9) De entre os meios colocados pelo sujeito na estrutura, avulta particularmente o capital, o
qual corresponde ao investimento realizado por ele ou que ele mobilizou.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

10) Esse processo é caracterizado pela autonomia funcional ou técnico-produtiva, por o seu
resultado decorrer do próprio processo no seu conjunto e não defender absorventemente de
um ou alguns elementos nele integrados ou participantes, nem, tão pouco, de factores
extrínsecos.
11) A estrutura actua tendo em vista a autonomia financeira ou económico-reditícia, isto é, a
criação de condições para a auto-reprodução do processo e para a remuneração dos
investimentos, visando um ganho que normalmente consiste num lucro.
12) A estrutura apresenta-se no tráfico e no mercado como uma entidade própria, surgindo
como um verdadeiro actor ou sujeito económico que comunica com os demais e que deles se
distingue – sem que isto signifique que seja necessária ou sequer, naturalmente, um sujeito
em sentido jurídico.

Assim, vocábulo «empresa» é utilizado em três acepções distintas:


1) Perfil subjectivo, em que se revela a empresa como sequência de actos ou actividades de
um sujeito – processo produtivo. (empresa-empreendimento)
2) Perfil objectivo, que se reporta à empresa como instrumento produtivo do sujeito, que é
objecto de apropriação – estrutura, valor de tráfico. (empresa-estabelecimento)
3) Perfil institucional, em que a empresa surge sobretudo como sujeito no tráfico jurídico-
económico. (empresa-empresário)

Estes perfis são lados ou momentos incindíveis à empresa, que se apresenta, ora realçando um ou
alguns deles, ora outro ou outros, mas que se reconduz sempre a uma essencial unidade.
No perfil objectivo, a empresa é um instrumento de um sujeito na actividade produtiva e é,
necessariamente, uma criação de um sujeito que é exteriorizada, objectivando-se: em certo sentido, a
empresa emana do sujeito que se “estabelece”. Assim, na prática dos negócios e até na lei, usamos
empresa (destaca o perfil subjectivo) e estabelecimento (destaca o perfil objectivo) como sinónimos.
Por vezes também, por razões essencialmente históricas, associa-se o adjectivo comercial ao
estabelecimento. Hoje devemos entender como estabelecimento comercial todo aquele que se
apresenta como empresa, com as notas que a caracterizam no direito mercantil.
Como já vimos que hoje se identifica a empresa com as empresas comerciais, podemos concluir que
o estabelecimento comercial é toda a empresa com a qual se exerce qualquer actividade qualificada
como comercial pela nossa lei mercantil, englobando-se também na expressão empresas industriais
e aquelas em que são prestados serviços.
Assim, a empresa ou estabelecimento comercial é o mecanismo por excelência e central da
actividade mercantil de um sujeito e, na medida em que esse mecanismo é objectivado, enquanto
instrumento para a actuação, ele é objecto de interesse por outros sujeitos e é, por essas duas
circunstâncias, objecto de negócios.

1.1. Densificação do conceito “empresa” e principais características.

Depois desta análise, podemos concluir o que não é empresa:


1) A produção para o auto-consumo ou benemeriência;

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

2) Uma especulação episódica ou ocasional (não se destina à auto-reprodução, embora isto


não signifique não podem existir empresas ocasionais ou sazonais - mas aí intencionaliza-se a auto-
reprodução.);
3) Produção que busca apenas cobrir despesas com receitas;
4) A produção em que a pessoa do empresário tem um peso tão absorvente na formação do
produto que o processo não se identifica nem subsiste sem ele. (P.e. Profissional liberal)

A empresa moderna, surgida para vencer a barreira do artesanato a uma mais vasta e contínua
produção de bens e serviços, funde a produção com quatro notas que indelevelmente a
caracterizam:
a) Extroversão: é a produção para fora, para a intercomunicação produtiva. O mercado é o
seu horizonte e espaço ideal dessa intercomunicação. As organizações para autoconsumo não são
empresas.
b) Auto-reprodução - é a produção que se reproduz ou repete conseguindo, com a troca
sistemática e vantajosa, assegurar o seu auto financiamento e o estímulo ao seu próprio
processamento. É esse estímulo ou esse ganho em termos financeiros que marca o sentido reditício
da empresa (e não lucrativo) – distinguindo-se rédito de lucro, não tanto por uma natural
modicidade, mas distinguindo-se da simples remuneração da prestação do empresário, porque
independente do valor desta última e predisposto a ser tão total como o risco que a empresa co-
envolve. Sem este estímulo não há lógica da empresa- que é uma lógica de processo-estrutura – que,
se obedecer aos seus princípios internos, realiza automática e autonomamente os seus fins.
Ora, mas a auto-reprodução não pode ser um fim em si mesma porque é preciso admitir que há
lógicas que se introduzem na empresa e que não são estranhas a ela. Já que devemos apenas
procurar a prossecução de um rédito, tal não é incompatível com práticas que não são contrárias ao
exercício da empresa (p.e. mecenato, etc...).
c) Racionalização - desdobra-se numa certa planificação, adequação ao fim e na
contabilização. (Contabilidade)
d) Dessubjetivação - trata-se de uma despersonalização. A empresa como mecanismo que é,
visa dessubjetivizar a produção, libertando-a da contingência da disponibilidade física, psicológica
ou financeira do agente. Tal explica a tendência da empresa para a objectivação. A empresa é um
simples mecanismo e não uma pessoa, embora excepcionalmente seja personificada. (P.e. Entidades
públicas empresariais). Nos usos da língua, as empresas são muitas vezes personalizadas - é uma
linguagem metonímica. E não devemos esquecer que as empresas pertencem ao mundo das coisas.

A empresa é um meio e como tal exige um sujeito que o empregue. É essa a função do empresário,
cuja tarefa abrange a iniciativa económica o correspondente risco, a decisão global, controle do
processo e correspondente lucro. Já não é o domínio dos bens que tem relevância para efeito de
classificação de empresas, já que estas surgem hoje como entidades suficientemente maleável para
envolver factores de produção que não cabem no domínio no sujeito, mas de que ele dispõe por
outro título jurídico. Fundamental apenas é que possa dispor deles com a estabilidade exigida pelo
fim produtivo.
O mesmo sucede com os capitais que lhe são fornecidos a crédito. Nas PME's o sujeito tende a
participar com trabalho no processo produtivo, mas este não faz parte da sua função empresarial –
o que acontece até com trabalho directivo, ou administrativo, que o sujeito pode delegar em

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managers ou directores técnicos sem pôr em causa a plenitude dos seus poderes ou funções. A
própria máquina da empresa pode mesmo ser montada por um organizador e não pelo empresário.
Já aqui se vislumbra que a propriedade dos factores - propriedade da empresa – titularidade do
processo produtivo são coisas distintas. Também já se pode adiantar que processo e estrutura estão
devisamente articulados entre si – porque a estrutura só se realiza através do processo e o processo
só se realiza através da estrutura. Veremos o que isso significa agora.

2. Noção de estabelecimento comercial (empresa) como objecto de negócios.

Enquanto bem no património do sujeito (plano objectivo da empresa), a empresa não pode ser vista
numa óptica puramente estática: ela é simultaneamente um instrumento do sujeito ordenado à
prossecução dos seus fins mediatos, mediante a produção de bens ou serviços. Mas esta relação
sujeito/fim e a sua especial concretização, que é o estabelecimento, alcançam uma dimensão
objectiva, sem a qual o estabelecimento não seria apto a atingir o escopo pretendido. Na verdade, a
empresa adquire um valor que suscita o especifico interesse de outros sujeitos e pode ser objecto de
negócios.
Neste plano, o estabelecimento é um bem – mas não surge como um bem qualquer, mas como uma
realidade complexa, existindo várias noções que a procuram apreender.
A lei não resolve a questão, nem pode resolvê-la: o estabelecimento existe antes da lei e
independentemente dela, o que não impede que a ela se associem certas características para efeitos
de conformação jurídica. Porém, como bem que é objecto de negócios, o que supõe que é
previamente querido por sujeitos por ter um certo valor, aquilo que o estabelecimento é não
depende de uma definição legal – mas sim daquilo que na realidade ele é.
Há várias correntes que tentam compreender e definir o estabelecimento enquanto bem objecto de
negócios:
 Visão empírica e agregacionista – o estabelecimento é o conjunto de meios e bens de que
um sujeito se serve para exercer a sua actividade comercial.
 Visão organizativa – não é só um conjunto de meios, destacando a organização a que eles
são sujeitos pelo seu titular. Seria, pois, algo de imaterial.
 Visão externa – a empresa é um conjunto de relações com o exterior, designadamente com
os clientes. O estabelecimento é visto essencialmente como clientela.

Ora, mas a empresa, enquanto objecto de interesse por parte dos indivíduos, não se reduz a um
conjunto de bens, nem a uma organização de bens, nem sequer a uma clientela.
Um dado essencial da empresa é que ela é constituída e pretendida pelos indivíduos porque é o
instrumento de intervenção na actividade económica que se diferencia dos demais e que, no circulo
das relações complexas em que esta se desenvolve, permite àquele que a detém ocupar uma posição
especifica na relação com os outros intervenientes. Esta posição diferenciada constitui o valor que
lhe é intrínseco com vista à intervenção no mercado e advém da identidade própria assumida nesse
plano – identidade que decorre, a um tempo, da ideia organizatória do sujeito que constitui a
empesa, da organização que é a concretização dessa ideia, com referência aos bens e meios
reunidos, e dos valores imateriais que se formam a partir das relações potenciais ou já actuais com o
exterior. Em suma, o estabelecimento apresenta-se essencialmente como um instrumento para
intervir no mercado.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

ORLANDO DE CARVALHO propõe-nos uma noção clássica: o estabelecimento é uma organização


concreta de factores produtivos (lastro ostensivo) como (ou enquanto) valor de posição no
mercado. Nesta acepção, o estabelecimento é um bem (coisa móvel sui generis) que tanto pode ser
objecto de direitos – reais e obrigacionais – como objecto de negócios. Porque é um bem novo, não
se confunde com os bens de que é feito, e tem um valor próprio, que não se confunde com a mera
soma do valor dos bens que a constituem.
Tal permite-nos concluir que esta organização de bens e meios é dirigida funcional e
teleologicamente pelo seu titular para intervenção no mercado, assumindo neste uma identidade
própria que lhe advém da especificidade da organização e dos valores de imagem pública que
adquire com a sua intervenção. Esta aptidão própria de cada organização para a intervenção no
mercado e para a conquista de clientela e de lucro é o aviamento.

3. Os valores do estabelecimento
Sabemos já que o valor da empresa não se traduz na soma do valor dos vários elementos que a
compõem, mas sim num valor novo. O que compõe este valor novo?
ORLANDO DE CARVALHO identificava vários valores do estabelecimento:
 Valores periféricos ou externos – valor dos elementos que constituem a organização.
Existem enquanto tais fora do estabelecimento – lastro ostensivo.
 Valores de organização e valores de exploração – valores sui generis do
estabelecimento; que só o estabelecimento tem, que não existem sem o estabelecimento,
nem dele podem ser destacados.

3.1. Valores ostensivos, externos ou periféricos.


São todos aqueles bens, valores ou posições, patrimonialmente activas que têm uma relativa
autonomia económico-jurídica em face da empresa e que constituem o seu lastro ostensivo8. Tais
valores podem ter sido criados fora do estabelecimento, ou dentro da própria empresa. Em
qualquer caso, tais valores têm uma vida económico-jurídica autónoma, porque têm existência
económica e jurídica para lá da empresa e independentemente dela.
O estabelecimento é uma organização de meios ordenados à consecução de um mesmo fim.
Referimo-nos aos meios ou elementos empresariais. Podem ser:
o Bens materiais ou imateriais (máquinas, edifícios, mobiliário, mercadorias,
matérias primas, marca, o nome, a insígnia, obras autorais, patentes e segredos)
o Contractos
o Créditos e débitos ou títulos de crédito
o Licenças ou autorizações.

8
No mesmo sentido, CASSIANO DOS SANTOS, diz: “Quanto aos factores produtivos, entendidos lato sensu, abrangem
todos os elementos que participam a título principal ou instrumentalmente no processo de produção de bens ou serviços,
incluindo tudo o que está a montante e a jusante da produção propriamente dita. Em suma, é tudo o que o sujeito afecta
originária ou supervenientemente à actividade e à prossecução do fim imediato que é obter aviamento através da
integração na organização. Só elementos com autonomia, isto é, tratamento jurídico distinto do estabelecimento podem
fazer parte de uma organização e ter nela um relevo próprio. Em todo o caso, supõe-se sempre a afectação por parte do
sujeito.”

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Esta heterogeneidade dos elementos é característica da empresa, distinguindo-a de um


estabelecimento de universalidades (como um rebanho – só ganham o valor da agregação). Este
conjunto de meios constitui o lastro ostensivo da empresa – tais meios não são, por si só o
estabelecimento, mas é neles que o estabelecimento radica e deles depende o estabelecimento, ainda
que em medida variável. Não existe estabelecimento sem um conjunto de meios que o ostentem,
concretizem, permitam torná-lo sensível, identificável e transportável. Por isso é que o
estabelecimento é uma organização concreta de factores produtivos, que são constitutivos da
organização e simultaneamente o seu espelho.
Deste modo, não são factores produtivos as situações de facto com valor económico que emergem
de direitos sobre bens e de contractos, de créditos e de dívidas, mas já o são os bens e direitos a que
se ligam. (créditos ou débitos que emergem da actividade, desde que não sejam dela destacados ou
desafectados) O dinheiro afectado pelo titular à empresa ou resultante da actividade desta,
enquanto não destacado por acto do próprio titular, é também factor produtivo- sendo-o, por
excelência daa a sua importância para a formação da empresa e constante reprodução do processo
produtivo.

3.2. Valores de organização.


Os factores produtivos reflectem o modo por que o sujeito pretende intervir no mercado – a ideia de
empresa. Em função desta, o sujeito selecciona uns ou outros elementos a títulos jurídicos distintos,
e daí emerge a organização interna da empresa. Sendo assim, o estabelecimento é um conjunto
organizado de meios dos quais resultam os valores de organização. Á reunião de elementos
heterógenos para se formar o estabelecimento há-de presidir uma ideia organizatória. Com base
nessa ideia, os elementos que integram a organização, embora heterogéneos, tornam-se
economicamente complementares. Deste “cruzamento” de uns elementos com outros surge um
valor novo – valor de complementaridade económica. O valor de complementaridade económica,
assenta por sua vez, em vários outros valores, também eles valores de organização, e que exprimem
a chamada racionalidade económica:
i) O valor da selecção óptima – resultante da selecção ideal dos elementos para aquela
empresa em concreto.
ii) O valor da dimensão óptima – os elementos hão-de ser seleccionados de acordo com
uma ideia de optimidade.
iii) O valor da combinação óptima – que é o valor organizativo final.
Com estes valores surge a organização com uma identidade própria, que se traduz numa aptidão
específica (eficiência) para intervir no mercado. Mas para que exista um estabelecimento tem ainda
de se verificar um requisito adicional: o de a organização já ter emergido na intercomunicação
produtiva com uma posição própria, inconfundível com a posição e outras empresas.
Esta relação entre o modo como se pretende actuar e a organização torna-se hoje mais reforçada por
via do fenómeno da desmaterialização e dessubstancialização da empresa. É praticamente em
elementos imateriais que, neste caso, radica a organização e é na especial relação entre eles que esta
essencialmente se revela.
Só depois disto teremos a empresa como valor no tráfico, que não interesse só àquele titular, mas
também a qualquer outro titular. A empresa não se afirma como simples valores de organização,
firma-se, também, com esse valor de posição no mercado que é a marca típica da empresa como
valor do tráfico. Ela é valor do tráfico quando, pelos valores que reuniu, constitui uma presumida

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situação de vantagem na luta competitiva, seja pelas expectativas de ganho que permite, seja pelas
experiencias que também aumentam a expectativa do lucro.

Quando a organização se projecta para o exterior, havendo já percepção de um novo actor no


tráfico, surge o aviamento-organização, que é uma qualidade do estabelecimento incindível dele e
é, pois, um factor produtivo. O aviamento-organização não implica necessariamente aptidão para
funcionar, isto é, para actuar de imediato a actividade produtiva: ele existe logo que é reconhecível
no mercado um novo sujeito organização com certa eficiência, organização, ainda que faltem alguns
bens para a empresa funcionar. Basta que a empresa assuma identidade ou não a tenha perdido.

3.3. Valores de exploração.


Ainda que o funcionamento não constitua um pressuposto para a existência da empresa, daqui não
pode retirar-se que este seja irrelevante, que não se repercuta no estabelecimento e no seu valor. Na
verdade, é do funcionamento que vão surgir os valores de exploração ou de imagem pública. Estes
também são valores típicos do estabelecimento porque são valores que não existiam antes de haver
empresa, só existem pela empresa e não existem sem a empresa.
Os valores de exploração são relações de facto com valor económico:
1) Clientela que é uma relação de facto com valor económico com os consumidores da
empresa e corporizada em contractos;
2) Bom nome que é uma relação de facto com valor económico com o mundo em geral.
3) O crédito da empresa que é uma relação de facto com valor económico com os financiadores
da empresa.
Como podemos ver, todos estes elementos se incorporam no estabelecimento já em virtude da sua
projecção para o exterior, mas que resultam essencialmente do seu funcionamento e do contacto
com terceiros e sobretudo do início da actividade propriamente. Com estes valores surge o
chamado aviamento-clientela.
A clientela não é um elemento do estabelecimento porque não existe sobre ela um direito; sendo
apenas um valor típico do estabelecimento, insusceptível de transmissão ou de direitos autónomos
do próprio estabelecimento. É somente enquanto valor inerente ao estabelecimento que ela recebe
tutela da ordem jurídica, nomeadamente na regulação da concorrência desleal. A clientela
distingue-se da frequência que consiste nos sujeitos que frequentam um local onde se exerce o
comércio mas não estabelecem relações com a empresa.
É nestes valores de imagem pública e na eficiência da organização para o fim a que se destina que
radica o valor de posição no mercado do concreto estabelecimento.
Tais valores assentam em factores de produção, aos quais se ligam mais ou menos directamente,
mas com os quais não se confundem. Por outro lado, o valor de exploração só é verdadeiro valor do
estabelecimento se for um valor imputado à própria organização, ainda que surja especialmente
ligado a um ou a alguns dos elementos dela. Agora, a empresa não é só imagem pública, nem
apenas pura organização: é uma organização com uma certa imagem no mercado.
Os valores de imagem ou memória reportam-se à organização no seu todo e não a um
elemento singular da empresa. Agora, o binómio organização/imagem no mercado explica que
certos elementos da organização possam ser determinantes nela, e isso é tanto mais plausível
quanto mais imaterial seja o lastro produtivo da empresa.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Assim, além de se dever distinguir o aviamento de um elemento da empresa do aviamento


com que esse elemento contribui, com os demais, para a organização, é certo que vários elementos
da empresa não têm papéis idênticos na formação da organização e sobretudo na imagem pública
do estabelecimento, e que a variação de um deles pode determinar a alteração do próprio
estabelecimento. (Veja-se o caso dos estabelecimentos que operam com base em contractos de
franchising).
Assim, a relação entre o estabelecimento e os bens que compõem é complexa, mas não
uniforme e variável, como veremos a seguir.

3.4. Lastro ostensivo e valores típicos do estabelecimento: a chamada lei tendencial


Enquanto processo produtivo (perfil subjectivo), a empresa mantém uma relação estável com os
elementos do lastro ostensivo: tendo iniciado o seu funcionamento há pouco ou há muito tempo, os
elementos necessários para o desenvolvimento do processo produtivo são os mesmos.
Mas enquanto valor de posição no mercado (perfil objectivo), enquanto bem, a empresa vai
alternado a sua relação com os bens do respectivo lastro ostensivo. ORLANDO DE CARVALHO
defendia uma lei tendencial estabelecida entre os valores do lastro ostensivo e o valor do
estabelecimento como ou enquanto valor de posição: é evidente que, quando o estabelecimento não
funciona, o valor de posição no mercado liga-se de maneira mais estreita ao conjunto de elementos
do seu lastro ostensivo; quando funciona, o valor da posição começa a desligar-se do lastro
ostensivo e a ligar-se sobretudo aos valores de exploração. Sendo assim:

Lei tendencial (formulação positiva): quanto mais um estabelecimento funciona, de menor número
de valores do seu lastro ostensivo necessita para se apresentar como valor de posição no mercado.
Lei tendencial (formulação negativa): quanto menos um estabelecimento funciona, de maior
número de elementos do lastro ostensivo necessita para se apresentar como valor de posição no
mercado.

Esta lei não é uma autêntica lei, é uma tendência, porque tem limites à partida e à chegada.
Limite à partida da lei tendencial: O estabelecimento nunca é um puro conjunto de valores
ostensivos. Antes mesmo de funcionar, ele tem que ser mais do que isso. Ele tem que ter um
aviamento, que se trata de um valor de acreditamento diferencial. Não é sequer apenas um conjunto
de valores organizados, mas algo mais- já significa uma posição particular no mercado e ocupação
de um lugar no mundo da intercomunicação produtiva. É quando ele atinge esse parâmetro de
estabelecimento aviado que surge um novo valor de exploração.
O limite à partida da lei tendencial deve-se ao facto de que não é apenas necessário que haja um
lastro ostensivo, nem um conjunto de valores de organização, mas um estabelecimento por esse
conjunto particularmente organizados que já constitui per si uma especifica posição no mercado,
isto é, um valor de acreditamento diferencial.

Limite à chegada da lei tendencial: Podíamos ser levados a pensar que, com o tempo, o
estabelecimento se desprendia do lastro ostensivo. Trata-se de um limite à chegada, porque o
estabelecimento, por mais que funcione, necessita sempre de um conjunto mínimo de elementos
indispensáveis em cada negociação concreta para que aquele valor de posição no mercado seja
identificado e seja transmissível. O âmbito mínimo do estabelecimento constitui um limite à

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chegada da própria lei tendencial – por mais que funcione, o estabelecimento precisa sempre de um
mínimo de bens do seu lastro ostensivo que permitam em cada negociação identificar, sensibilizar e
transportar de uma esfera jurídica para outra o valor de posição no mercado que o estabelecimento
é.

4. O estabelecimento como coisa composta (universalidade de direito sui generis) objecto


unitário de direitos reais.

A compreensão da composição do estabelecimento como bem complexo formado por múltiplos


bens (e por outros que não são, em rigor, bens), organizados com vista a atingir um fim e aptos a
satisfazer uma específica necessidade humana, tendo existência autónoma ou separada e podendo
ser objecto de apropriação exclusiva, é susceptível de ser objecto de relações jurídicas, permite
enquadrá-lo entre as coisas.
SANTOS JUSTO define coisa como “aquela que tem existência autónoma ou separada;
possibilidade de apropriação exclusiva por alguém; aptidão para satisfazer interesses ou necessidades
humanas”. Mas importa saber que tipo de coisa é a empresa.
Deve ser enquadrado claramente no âmbito das coisas compostas (e não simples). Porém, entre
estas não é uma mera universalidade de facto (rebanho, p.e.), porque o estabelecimento também é
constituído por elementos que não são coisas. Porém, em sentido próprio, também não é uma mera
universalidade de direito. (p.e. herança jacente). Ora, a empresa tem uma unidade própria,
intrínseca e funcional que existe antes e independentemente do tratamento que lhe é dado pelo
direito. É certo que o direito trata o estabelecimento como uma unidade – mas limita-se a
reconhecer a unidade que ele tem na realidade pré-normativa.
Sendo assim, a empresa é uma coisa composta, que é uma universalidade de direito sui generis, que
partilha o tratamento unitário de que são objecto as universalidades de direito, mas que vai para lá
das características dessas coisas compostas.
O estabelecimento é essencialmente um bem incorpóreo – uma organização que é posição no
mercado – mas caracteriza-se por uma incorporalidade sui generis, o que o distingue dos bens
incorpóreos puros. (Orlando de Carvalho) Tal deve-se ao facto de a maioria das vezes a empresa ter
um lastro corpóreo, mas sobretudo de ela ser radicada num conjunto de elementos que compõem a
organização e que, mesmo quando não são eles próprios corpóreos, têm aptidão sensibilizadora do
bem.

A dicotomia do art. 1302º e 1303º, relativa ao direito de propriedade não coloca obstáculo definitivo
a que a empresa seja entendida como objecto de direitos reais. Nogueira Serens (na linha de
Cassiano dos Santos e Orlando de Carvalho) defende que a empresa é uma coisa composta
funcional; é um bem imaterial encarnado radicado num lastro material ou corpóreo que o
concretiza e concretizando-o, o sensibiliza. Ou seja, é uma coisa com uma incorporalidade sui
generis.
Sendo uma coisa composta funcional, perguntar-se-á se tem natureza móvel ou imóvel?
Normalmente, no lastro ostensivo, haverá imóveis (essas coisas podem pertencer por propriedade
ao empresário); mas essa constituição do lastro ostensivo por coisas imóveis não fazem do
estabelecimento uma coisa imóvel.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Ora, o estabelecimento é uma coisa composta funcional com natureza mobiliária. Sendo
assim, a nossa lei trata a empresa como objecto do direito de propriedade e de direitos reais em
geral (Cfr. art. 1112º CC e 1889º/1/c CC). Recorde-se que no perfil objectivo podemos falar de
propriedade; no perfil subjectivo devemos falar de titularidade.

a) Penhor
Sendo assim, o estabelecimento pode ser também objecto de uma garantia real. Na medida em que
se trata de um móvel (art. 205º CC), a garantia é um penhor. O penhor do estabelecimento será, por
regra um acto de comércio, quer por garantir uma dívida comercial (art. 397º CCom), quer por ser
um acto praticado no exercício de uma empresa (art. 230º CCom.). Por isto, o penhor de
estabelecimento que seja um acto mercantil rege-se pelo direito comercial, sendo-lhe aplicáveis os
arts. 398º e ss. CCom. se o acto for comercial pelo art. 397º CCom; em todo o caso nãos e pode
aplicar o regime do penhor civil.
A questão que se coloca aqui é a da possibilidade de ser feito penhor sem desapossamento, isto é,
com a manutenção do estabelecimento em poder do seu titular, que presta a garantia. Nesta
matéria, o CCom. não se afasta do regime civil: prevê nos penhores mercantis propriamente ditos, a
possibilidade de entrega da coisa a terceiro e uma entrega simbólica, mas esta, analisadas as
hipóteses inscritas nos parágrafos do art. 398º CCom, envolve sempre o desapossamento – simbólica
é apenas a entrega ao credor pignoratício. Supõe, pois, o CCom, o desapossamento por parte do
devedor.
Porém, o art. 402º CCom. ressalva as disposições especiais sobre penhores feitos a bancos e
entidades autorizadas para garantia de empréstimos – o art. 1º/1 DL 29/833 permite um penhor
sem desapossamento, mantendo o devedor a exploração. Ora, deve entender-se, face a este quadro
legal, que o penhor mercantil de estabelecimento comercial não é objecto de disposição de carácter
geral. Mesmo o art. 398º não se reporta especificamente à empresa. Para mais, os interesses em jogo
contrapõem-se claramente ao regime civil e até ao regime geral mercantil. Como efeito, dada a
especificidade do bem, a exigência de desapossamento não é adequada porque a administração do
credor faria a empresa e o direito do devedor correr riscos elevadíssimos. Tudo ponderado, há uma
lacuna que deve ser preenchida de acordo com o art. 3º CCom. Ora, a norma a utilizar deve ser a do
art. 1º/1 DL 29/833.

b) Usucapião
O estabelecimento pode, pois, ser objecto de posse e de usucapião. Não há hoje razões para se
aplicar, em matéria de prazos, o regime dos imóveis. Os argumentos nesse sentido eram os da
natureza anómala do estabelecimento como móvel e o tratamento que certos preceitos legais lhe
dão, sujeitando-o ao regime dos imóveis. Estes não procedem por várias razões:
o Se é certo que o imóvel tinha grande peso na empresa, isto é cada vez menos verdade,
existindo empresas nas quais não há imóveis, ou nas quais este tem um papel lateral.
Veja-se ainda o fenómeno da desvalorização e relativização do local da exploração
associada aos fenómenos da deslocalização.
o Os prazos de usucapião para imóveis são longos graças ao peso do interesse do titular
do direito de propriedade imobiliária face ao mero possuidor – não é isso que se passa
no âmbito da empresa, na qual o sujeito que a detém em cada momento tem um papel

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especial na sua adaptação constante ao mercado: não é aceitável um prolongado


desinteresse económico do proprietário na empresa e nem aceitável que no direito
mercantil, o interesse do proprietário empresarial tenha um tratamento igual ao do
proprietário civil imobiliário.
o O desinteresse do proprietário nem é aceitável, nem típico, em tempos de aceleração do
processo económico e do tempo de vida das empresas.
o A equiparação da empresa aos imóveis que se topa na lei para efeitos circunscritos,
explicam-se pela norma importância que da empresa no património de um casal
(comunhão de bens – é preciso consentimento do cônjuge para a sua alienação – art.
1682º-A/1/b CC) e no património de uma sociedade por quotas (a alienação carece de
deliberação pela assembleia geral de sócios – art. 246º/2/c CSC)
A evolução do sistema aponta para a redução prática dos prazos de usucapião, mesmo no que
concerne aos imóveis, graças à desformalização das transmissões.
Objecto unitário de direitos reais e de posse, o estabelecimento pode ser objecto de acção de
reivindicação e de acção e restituição de posse. Neste caso, cada elemento é entregue ou restituído
de acordo com o título a que está integrado na empresa.

c) Penhora do estabelecimento comercial


Prevista no art. 862º-A CPC, prevê um regime específico para a penhora do estabelecimento
comercial. Este artigo aplica-se por arresto, por força do art. 406º/2 CPC. Nos termos deste preceito:
o A penhora incide sobre o estabelecimento como bem, relacionando-se os elementos que
o compõem, incluindo créditos – nº1 (a lei refere-se aos bens que têm relevo próprio na
organização)
o O estabelecimento é tratado como bem unitário: não podem sobrevir novas penhoras
sobre elementos que o compõem, especialmente relacionados ou não (se o auto da
penhora é sobre o estabelecimento abrange todos os bens que o integram e fazem parte
do seu âmbito natural), com as ressalvas das regras do registo para bens a ele sujeitos
(nº7); e penhoras de bens singulares realizadas antes da penhora do estabelecimento não
são afectadas e prevalecem.
o A exploração fica, em princípio, nas mãos do titular da empresa, com fiscalização, se
necessário, mas pode ser entregue a um administrador, se o exequente o requerer
fundadamente. (nº 3 e 4)

5. Estabelecimento e património do sujeito – ausência de autonomia patrimonial e


estabelecimento individual de responsabilidade limitada.

O estabelecimento comercial é um bem (coisa) no património de um sujeito que não tem qualquer
autonomia nesse plano, no que respeita a dívidas. Quer o titular seja um comerciante em nome
individual, quer ele seja uma sociedade, o estabelecimento não fica imune às dívidas que o sujeito
contraia fora do exercício da actividade em que se analisa o estabelecimento; e pelas dívidas
resultantes da sua exploração responde todo o património do sujeito, em plano de igualdade. (art.
601º CC)

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Em geral, as dívidas emergentes de actos de comércio não convocam a afectação especial de bens,
mesmo quando o sujeito é comerciante e tem um património especialmente afectado ao exercício
mercantil.
Só não será assim quando o sujeito constituiu um EIRL. Neste caso, o estabelecimento é constituído
como património autónomo. O comerciante destaca do seu património geral uma massa de bens
que passa a constituir um património autónomo e pelas dívidas decorrentes do exercício da sua
actividade mercantil, responde unicamente essa massa de bens. (DL 248/86) Cassiano dos Santos
diz-nos que, mesmo neste caso, não há autonomia ou separação patrimonial total.

6. Estabelecimento e actividade empresarial.

O estabelecimento é constituído e organizado para o exercício de uma actividade económica, com


um concreto escopo lucrativo subjacente. Fazem parte dessa actividade, todas as actuações que
forem coordenadas pelo titular em vista desse escopo – a actividade da empresa analisa-se numa
série coordenada de actos, coordenação que advém da integração do exercício organizado e na
sujeição ao escopo desse exercício. A imputação de uma acção ou de um acto ao estabelecimento
depende, assim, de um elemento subjectivo, mas há-de ser revelado em dados objectivos – a relação
do titular com a estrutura e escopo que a mobiliza.
Mas, em todo o caso, há que ter presente que o estabelecimento só surge com a organização e com a
extroversão. (posicionamento no mercado)
Por isso deve haver actos preparatórios ou organizatórios da empresa, antes de surgir o
estabelecimento comercial – e que serão actos comerciais por via do art. 230º CCom.
Não se deve falar de objecto, mas de actividade exercida pelo estabelecimento. A identificação da
actividade é relevante para inúmeros aspectos: por exemplo, para distinguir entre a alienação da
empresa, a alienação dos bens singulares no património do sujeito (carece do consentimento do
cônjuge, quando o regime é de comunhão de bens – art. 1682º-A/1/b CC) e a alienação de bens
ocorrida no exercício da empresa (acto de gestão da empresa, dispensada de consentimento do
cônjuge, mesmo que o bem seja um imóvel).

7. Negociação e âmbito de entrega do estabelecimento. Negócios sobre o estabelecimento,


em especial o trespasse.

O estabelecimento como bem (coisa) que é pode constituir objecto de negócios, isto é, pode ser
retro-transferido. Uma vez que muitos dos problemas específicos que se suscitam têm que ver com
a natureza sui generis desse bem, o tráfico e a lei utilizam muito frequentemente um conceito –
trespasse – para designar um conjunto de negócios que tenham por objecto o estabelecimento e que
tenham por efeito a transmissão da sua propriedade. Trespasse, portanto, não corresponde a
nenhum específico tipo contratual e a sua definição não é susceptível de ser estabelecida a priori.
Na verdade, visando-se apreciar o que de específico se coloca na transmissão da propriedade do
estabelecimento, mostra-se irrelevante a causa em concreto da transmissão. São o objecto do negócio
e os efeitos que ele visa produzir que suscitam problemas específicos. Uma vez que esses problemas
são comuns aos diferentes negócios que tenham o mesmo objecto e os mesmos efeitos, compreende-
se o uso de um conceito comum para os designar.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Esse conceito é o trespasse: negócio de transmissão definitiva (da propriedade) do estabelecimento


por negócio inter vivos (Nogueira Serens). Este conceito circunscreve-se, pois, ao objecto e efeitos do
negócio. O trespasse pode assim incluir vários tipos de negócios, desde compra e venda, permuta,
entrada em sociedade, doação, dação em pagamento, a venda executiva, atribuição ao sócio em caso
de liquidação da sociedade etc…, sendo que o relevante é que tenham por objecto o estabelecimento
e pretendam a transmissão da sua propriedade. Há quem inclua nessa figura do trespasse a própria
locação, como negócio pro tempore (Cassiano dos Santos). E há quem entenda existir o trespasse em
casos de transmissão mortis causa. Esta noção ampla de trespasse é uma noção que podemos
designar de doutrinal.
Os negócios sobre participações sociais em sociedades não se incluem na noção de trespasse;
já as transmissões de quotas e acções podem, contudo, em certos casos e para certos efeitos, ser
equiparadas a um trespasse9.
Mas nem sempre se utiliza, em cada norma legal, o conceito de trespasse com a mesma amplitude,
mostrando-se sempre necessária a tarefa interpretativa, de modo a determinar se, atenta a ratio da
norma em concreto, devem considerar-se incluídos no conceito de trespasse nela invocado todos os
negócios translativos da propriedade do estabelecimento ou apenas alguns. (veja-se o exemplo do
art. 1112º/4 CC)
Designa-se de trespasse parcial aquele que tem por objecto parte de um estabelecimento que seja
um ramo autónomo ou autonomizável de um estabelecimento global, isto é, que seja ela mesma
uma organização com valor de posição no mercado que já esteja destacada no interior global ou que
se possa destacar da organização geral.

Dado o especial modo de ser do estabelecimento como bem composto por múltiplos outros bens e
elementos, que, como se viu, são dotados de autonomia pelo menos relativa e, assim, são
susceptíveis de serem dele cindidos, qualquer negócio sobre o estabelecimento tem como principal
problema o do âmbito da entrega. A ambivalência da empresa releva aqui, por duas razões:

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É cada vez mais raro o exercício do comércio a título individual já que hoje muitos dos exercícios
económicos se fazem por intermédio de sociedades. Isso deve-se ao facto de o comerciante individual incorrer
em responsabilidade ilimitada pelas dívidas que decorrem do seu exercício, respondendo todo o seu
património, quer o afecto à actividade comercial, quer o património civil. Só não é assim se o sujeito criar uma
sociedade, respondendo a sociedade nos mesmo termos que o comerciante responde - sem limitação pelas
suas dívidas. Mas, neste caso, entre a dívida e o sujeito interpõe-se um elemento: a sociedade.
Ora, há assim uma tendência cada vez mais actual que é a de não se negociar a empresa, mas sim, como
muitas delas integram o património de sociedades comerciais (especialmente em processos de concentração
empresarial) se proceder à aquisição das participações sociais (acções/quotas) de uma sociedade (A), por
parte de outra sociedade (B) que, tornando-se eventualmente sócio único ou quase único, fica com o domínio
(total) sobre a empresa (A). Tem-se, pois, distinguido:
Asset deal - Compra da empresa
Chair deal - Compra das participações sociais (acções ou quotas)
Nestes casos, há que fazer o “levantamento do véu” da personalidade jurídica e tratar sociedade e
sócio como se fossem a mesma pessoa. Sendo assim, para certos efeitos há que equiparar estas duas figuras
que tal tem muita importância para efeito de garantia e vícios da coisa (Art. 905º CC); para a obrigação de não
concorrência; direito de denúncia de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor (alteração da
titularidade em + de 50%) (art. 26º/6/b e 28º da lei 6/2006 RAU e ainda 56º/c).

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

1) Porque a transmissão do estabelecimento não dispensa a transmissão de um conjunto


mínimo de elementos do lastro ostensivo (âmbito mínimo de entrega), que importa
determinar para cada negociação em concreto.
2) Porque, independentemente da determinação desse mínimo, será sempre necessário fixar,
em relação a qualquer dos elementos que integram o lastro ostensivo do estabelecimento:
a. Se, na ausência de uma vontade especifica das partes, tais elementos acompanham a
transmissão do estabelecimento (âmbito natural) ou se, invés, tais elementos só
mediante uma vontade especifica ad hoc acompanham o estabelecimento da
negociação (âmbito máximo ou convencional)
b. Se podem as partes afastar quais elementos da negociação do estabelecimento ou se a
lei impede que as partes, transmitindo o estabelecimento, excluam dessa transmissão
tais elementos (âmbito imperativo ou legal).

A translação da empresa como bem de uma esfera jurídica para outra pode ainda incluir, no ver de
ORLANDO DE CARVALHO, prestações para obter a imissão do adquirente na posse do
estabelecimento. Isto é, pode acarretar um certo tipo de obrigações para o alienante - pode ter de
fornecer listas de clientes, apresentação aos novos fornecedores, apresentação aos novos clientes,
explicar a contabilidade, etc... Para que o adquirente seja imitido no know-how é preciso que o
alienante lho explique. Procura-se essencialmente potenciar a transmissão da organização e
sobretudo dos valores de imagem pública, tendo um relevo complementar na transmissão dos
factores produtivos. Em caso de incumprimento destas obrigações, há lugar a responsabilidade por
cumprimento defeituoso nos termos gerais do CC - em último caso determinará a invalidade do
negócio.

7.1. Âmbito mínimo de entrega

A transmissão do estabelecimento, porque não dispensa de um mínimo de elementos do lastro


ostensivo que aprisione os seus valores típicos (valores de organização e valores de exploração –
limite à chegada da lei tendencial), carece da transmissão de um conjunto de elementos que
compõem o âmbito mínimo, sob pena de descaracterizar ou destruir o estabelecimento: aquele
conjunto de elementos do lastro ostensivo necessário para identificar, sensibilizar e transportar o
valor de posição no mercado que o estabelecimento essencialmente é.
O âmbito mínimo constitui um limite do princípio da livre conformação do estabelecimento na
respectiva negociação – principio este que é corolário do princípio da liberdade contratual (art. 405º
CC). As partes têm a liberdade de negociar ou não o estabelecimento, podendo incluir ou excluir
elementos do lastro ostensivo da negociação do estabelecimento. Mas este princípio de liberdade
encontra um limite no âmbito mínimo: querendo transmitir o estabelecimento, as partes não podem
deixar de querer transmitir também um conjunto mínimo de elementos do lastro ostensivo, que
identifiquem, sensibilizem e transportem o valor de mercado que o estabelecimento é. Na
ausência de transmissão e tais elementos, não haverá transmissão do estabelecimento e, portanto,
seria inconciliável a vontade de transmitir o estabelecimento com a vontade contraditória de não
transmitir os elementos imprescindíveis a essa transmissão.
O âmbito mínimo pode ser composto por bens corpóreos ou incorpóreos, sendo que a sua
delimitação só se poderá efectuar (duplamente) em concreto (não sendo definível a priori), isto é, o

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âmbito mínimo é fixado para determinada negociação (varia com o negócio) de um determinado
estabelecimento num determinado momento (por força da lei tendencial, quanto mais o
estabelecimento funcionar de menor número de elementos se irá compor o seu âmbito mínimo). A
negociação de um determinado estabelecimento sempre postulará, pois, a transmissão de um
conjunto mínimo de elementos do lastro ostensivo que será menor quanto mais tempo a empresa
esteja em funcionamento – nesses casos, será o mínimo dos mínimos. (lei tendencial)

7.2. O âmbito natural

O âmbito mínimo determina-se com base no critério da essencialidade do elemento para aprisionar
o valor de posição no mercado do estabelecimento. A este âmbito mínimo, contrapõe-se o âmbito
não mínimo ou conjunto de elementos cuja transmissão pode ser excluída pelas partes, ao abrigo da
liberdade de conformação do estabelecimento na negociação. Depende pois da essencialidade do
elemento na transmissão ou não.
Ora, o âmbito natural integra aqueles elementos que passam com o estabelecimento, mesmo sem
vontade específica das partes nesse sentido: a vontade de transmitir o estabelecimento abrange
naturalmente a transmissão de tais elementos. Quanto a estes elementos, as partes podem acordar a
sua exclusão do negócio mediante vontade específica (expressa ou tácita) nesse sentido – mas tal
exclusão poderá determinar que o direito que incidia sobre o elemento não se transmita, mas o
elemento em si mesmo, se pertencer ao concreto âmbito mínimo da negociação do estabelecimento,
poderá passar, não ao abrigo daquele direito que não passou, mas sim ao abrigo de um outro direito
– direito de disponibilidade simples.
A liberdade das partes para excluírem os elementos do âmbito natural da negociação do
estabelecimento é limitada pelo âmbito mínimo: tratando-se de um elemento do âmbito mínimo, as
partes podem excluir da negociação o direito que incidia sobre esse mesmo elemento (p.e. o direito
de locação), mas já não podem convencionar que o trespassário não terá nenhum outro direito sobre
esse elemento, posto que em tais circunstâncias admite-se, no mínimo, um direito de
disponibilidade simples.
Note-se que, em bom rigor, não são os elementos em si mesmos que são objecto de transmissão
natural mas os direitos ou títulos sobre eles ou as posições jurídicas dele emergentes. Para mais,
permite apenas a transmissão da posição jurídica pré-existente ou de uma de conteúdo mais
restrito, mas não mais ampla.
Deve entender-se que integram o âmbito natural das transmissões da propriedade do
estabelecimento (a título oneroso ou gratuito, inter vivos ou mortis causa):
1) Os direitos obrigacionais sobre imóveis (arrendamento, p.e.)
2) Os direitos reais sobre móveis (matéria primas, mercadorias, equipamentos)
3) O logótipo, quando nele não figure o nome individual, a firma ou a denominação social do
seu titular ou requerente do respectivo registo (art. 31º/5 CPI a contrario)
4) A marca quando nela não figure o nome individual, a firma ou a denominação social do seu
titular (art. 31º/5 CPI a contrario)
5) Direitos de propriedade industrial (como a patente)
6) Posições contratuais;
7) Créditos impuros (art. 577º/1 e 583º CC)
8) Débitos impuros (deve aplicar-se o regime civil do art. 595º CC – Cassiano dos Santos)

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Quanto aos últimos três, afirmar-se que integram o âmbito natural significa apenas que, na relação
entre transmitente e transmissário do estabelecimento, tais elementos se transmitem, salvo acordo
em sentido contrário. Outra questão será de saber qual os efeitos disto relativamente ao terceiro – o
contraente cedido, o devedor ou credores cedidos. Como é bom de ver, o facto de, por exemplo, ser
necessário o consentimento do contraente cedido para que a cessão lhe seja oponível (p.e. art.
32º/1/8 CPI) não significa que, sem tal consentimento, não existe cessão: significa apenas que
apesar de ter havido cessão, esta é ineficaz em relação a ele. Inversamente, mesmo admitindo que a
cessão, a existir, não carece de consentimento do contraente cedido (art. 1112º CC e art. 11º DL
149/95), sempre será necessário mostrar que ocorreu efectivamente essa cessão.

7.3. Âmbito máximo ou convencional

É composto por aqueles elementos los lastro ostensivo que só mediante declaração de vontade ad
hoc (específica, seja ela expressa ou tácita) acompanham a negociação do estabelecimento. A
vontade das partes para a transmissão doe estabelecimento não é suficiente para transmitir tais
elementos, requerendo-se um outro acordo de vontades para que acompanhem o estabelecimento.
Nos negócios de transmissão definitiva do estabelecimento, o âmbito máximo integra:
1) Os direito reais sobre imóveis. E é assim porque avulta o princípio segundo o qual esses
direitos não se transmitem sem uma declaração especialmente dirigida a essa transmissão e
que se revista da forma legalmente exigida para tal. Essa declaração não tem que ser
expressa, podendo ser tácita.10
2) O direito sobre a firma do comerciante, adquirindo na realidade, não o direito à firma, mas o
direito a utilizar a firma do trespassante ao lado da sua. (art. 44º DL 129/98)
3) O logótipo quando nele figure o nome individual, a firma ou a denominação social do seu
titular ou requerente do respectivo registo (art. 31º/5 CPI a contrario)
4) A marca quando nela figure o nome individual, a firma ou a denominação social do seu
titular (art. 31º/5 CPI)
5) Os créditos11 e débitos puros. (aqueles aos quais não corresponde no momento do trespasse
qualquer contraprestação, p.e., uma dívida a um banco decorrente de um empréstimo;
dívida a um fornecedor pelo fornecimento efectuado por este. – ver art. 595º/1/a CC)

7.4. Âmbito imperativo ou legal

Compõe-se daqueles elementos que a lei impede que as partes, transmitindo o estabelecimento,
excluam da transmissão. Depende da vontade das vontades transmitir o estabelecimento; fazendo-
o, já não depende da vontade delas a transmissão deste elemento. É o que sucede com os contractos
de trabalho. (art. 318º/1 º CT)

8. O problema suscitado pelo não preenchimento do âmbito mínimo: o direito de


disponibilidade simples.

10 CAROLINA CUNHA e RICARDO COSTA defendem que este direito pertence ao âmbito natural.
11
Quando se trate de uma letra de câmbio, não se transmite sem que haja o endosso nos termos próprios.

67
Eduardo Figueiredo 2016/2017

Pode acontecer que os elementos transmitidos, de acordo com o critério para a determinação do
âmbito convencional, natural e imperativo, fiquem aquém do âmbito mínimo. Nestas circunstâncias
impõe-se a opção entre uma ou duas possibilidades: uma vez que a transmissão do estabelecimento
só pode ocorrer mediante a transmissão de determinados elementos do lastro ostensivo – âmbito
mínimo-, então ou esses elementos passam ou não haverá transmissão do estabelecimento.
O primeiro passo consistirá em re-apreciar a interpretação do negócio celebrado: é que quando as
partes não incluem no negócio elementos do âmbito mínimo de negociação, então pode dar-se o
caso de que elas não queriam negociar o estabelecimento. Se esta interpretação concluir pela
inexistência de um negócio sobre o estabelecimento, nenhum problema subsistirá quanto ao
preenchimento do âmbito mínimo. Mas se se confirmar que a vontade das partes consistiu na
transmissão do estabelecimento, então impõe-se encontrar uma via que permita conjugar essas duas
vontades aparentemente contraditórias.
A conjugação dessas duas vontades faz-se através do já referido direito de disponibilidade simples
sobre os elementos do âmbito mínimo que não tiverem passado – de acordo com as regras do
âmbito convencional e natural.

Por exemplo, suponhamos que o imóvel integrava o âmbito mínimo e que o titular do estabelecimento
dispunha de um direito de propriedade sobre aquele. Uma vez que os direitos reais sobre imóveis pertencem ao
âmbito máximo ou convencional, se não tiver havido uma vontade ad hoc para a transmissão do direito de
propriedade, este nãos e transmitiu. Nem tanto se mostra necessário para o preenchimento do âmbito mínimo:
para o preenchimento do âmbito mínimo é imprescindível apenas que o adquirente do estabelecimento possa
utilizar esse elemento do lastro ostensivo, já sendo para este efeito irrelevante o título jurídico a que o faça. Ou
seja, ponto é que, tratando-se de um elemento do âmbito mínimo, o novo titular do estabelecimento disponha
do direito de usar o imóvel no âmbito da exploração do estabelecimento adquirido. Cassiano dos Santos diz que
se o transmitente não reconhecer esse direito de disponibilidade simples, incorrerá em incumprimento da
obrigação de entrega do estabelecimento.

Ora, o direito de disponibilidade simples é, portanto, o direito mínimo que permite assegurar ao
adquirente do estabelecimento o uso de um elemento imprescindível à transmissão:
1) É um direito obrigacional – e não real.
2) Atípico – porque não se encontra previsto na lei.
3) À exploração pessoal – só o adquirente do estabelecimento goza deste direito, sendo ele
intransmissível, com ou sem o respectivo estabelecimento.
4) E produtiva – o direito só existe na medida em que sirva a exploração produtiva do
estabelecimento objecto de transmissão.

Este direito obrigacional atípico a uma exploração pessoa e produtiva de um elemento do âmbito
mínimo é, em princípio, temporário, só durando pelo tempo necessário para que o adquirente
estabilize na sua esfera o valor de posição no mercado que o é. Os elementos do âmbito mínimo
servem para transmissão daquele valor específico do estabelecimento – uma vez transportado esse
valor para a esfera do adquirente, este poderá dissociar o valor de posição no mercado daquele
elemento em concreto, deixando então e existir motivo para que persista este direito.

68
Eduardo Figueiredo 2016/2017

Só não será assim quando se tratar de um estabelecimento vinculado a tal elemento, caso em que,
visto não ser possível dissociar um do outro, o direito de disponibilidade simples tenderá a
converte-se num direito à locação.
Se o direito de disponibilidade simples não for reconhecido, incorre o sujeito transmitente em
incumprimento da obrigação de entrega do próprio estabelecimento.
Pode também acontecer um incumprimento da obrigação de entrega de um bem especificamente
negociado ou que faz parte do âmbito natural e não foi excluído. O adquirente terá, neste caso,
direito à entrega do elemento nos termos gerais – há que distinguir consoante o bem se encontre ou
não no património do trespassante. Em qualquer caso, o adquirente poderá exigir a entrega do bem
e mesmo, se for o caso, reivindica-lo de terceiro, sempre nos termos gerais ou pode optar por
invocar o incumprimento. Neste caso, se o bem pertencer ao âmbito mínimo, o incumprimento é
um incumprimento da própria obrigação de entrega do estabelecimento; se o bem não pertencer ao
âmbito mínimo, terá lugar uma mera redução do preço (art. 911º, aplicável por força do 913º CC)

9. O regime específico para a transmissão do elemento “posição contratual do arrendatário”


no âmbito do trespasse: a alteração introduzida pelo NRAU.

Dos muitos elementos que integram o lastro ostensivo, destaca-se, pela sua importância, o imóvel
em que o estabelecimento se encontra instalado. Esta importância pode decorrer do valor do imóvel
ou da sua adequação ao estabelecimento em causa; à escassez de outros imóveis para onde o
estabelecimento se pode transferir, etc…
Por qualquer uma de tais razões, é frequente que as partes tenham interesse em que o imóvel
acompanhe o trespasse: nisso tem interesse o trespassante, porque a transmissão do imóvel pode
valorizar muito o estabelecimento; nisso tem interesse o trespassário, porque o imóvel, mesmo que
não integre o âmbito mínimo, pode sempre facilitar a passagem dos valores de posição no mercado
– além de que podem nem sequer existir no mercado outros imóveis com características ou custo
idênticos. No fundo, é frequentemente do interesse das partes que o imóvel integre o trespasse.
Quando o trespassante do estabelecimento, além de proprietário do estabelecimento, seja também
proprietário do imóvel, então depende apenas da vontade das partes no negócio de trespasse para a
passagem desse elemento do lastro ostensivo.
Já no caso de que o imóvel esteja integrado no estabelecimento ao abrigo de um contrato de
arrendamento celebrado com um terceiro, a questão coloca-se diferentemente, visto que a
transmissão do direito sobre o imóvel já não é matéria que se cinja à relação entre o trespassante e o
trespassário do estabelecimento. O senhorio, não sendo parte no contrato de trespasse, é parte no
contrato de arrendamento.
Se as partes no trespasse excluírem da negociação qualquer direito sobre o imóvel, nenhuma
questão específica se coloca – o trespassante, deixando de ser titular do estabelecimento, continuará
a ser arrendatário do imóvel. Mas já será diferente o caso em que as partes pretendam também
transmitir, juntamente com o estabelecimento, o direito sobre o imóvel. Ora, à luz do regime geral
de cessão da posição contratual (art. 424º/2) é necessário o consentimento do contraente cedido,
para que a cessão lhe seja oponível. Este regime geral da cessão da posição contratual parece ser
aplicável à generalidade das posições contratuais inscritas no lastro ostensivo do estabelecimento.
Mas, em certos casos, o legislador isentou deste mesmo regime a cessão da posição de arrendatário
em contractos de arrendamento para fins não habitacionais. (art. 1112º/1/a CC)

69
Eduardo Figueiredo 2016/2017

Para que a cessão da posição contratual fique dispensada do consentimento do senhorio é


necessário verificarem-se cumulativamente três requisitos:
1) É necessário que a cessão ocorra no âmbito de um trespasse, isto é, transmissão definitiva da
propriedade da empresa – o art. 1112º CC não se aplica se não houver trespasse ou a cessão
do arredamento seja dissociada dele. Também quando a transmissão da empresa seja
temporária nada justifica a transmissão da posição de arrendatário e mesmo que ela se dê
em casos excepcionais, deve ficar sujeita ao regime geral do art. 1059º/2 e 424º CC.
2) É necessário que o trespasse corresponda a um negócio inter vivos – à transmissão mortis
causa aplica-se o art. 1113º CC.
3) O estabelecimento objecto de trespasse seja comercial ou industrial; a transmissão de um
estabelecimento agrícola já não dispensaria a autorização do senhorio para a cessão da
posição de arrendatário.
Verificados estes requisitos, a cessão da posição de arrendatário não carece de consentimento do
senhorio. Como é evidente, o dono do estabelecimento sempre poderia, independentemente de
qualquer consentimento do senhorio, negociar o seu estabelecimento, desde que o imóvel não fosse
incluído nessa negociação: o dono do estabelecimento tem o direito à livre disposição desse bem
que é seu, podendo transmiti-lo livremente e sem qualquer interferência do senhorio, desde que o
imóvel não seja envolvido na negociação. Mas querendo facultar o trespassário direitos sobre o
imóvel de um terceiro, o trespassante já careceria do consentimento do senhorio. Ora, é justamente
esta autorização que o art. 1112º CC dispensa para tutelar o estabelecimento e a sua
transmissibilidade. Pretende o legislador, assim, tutelar o valor económico que, para o respectivo
titular, o estabelecimento representa. A fácil transmissibilidade do bem aumenta o seu valor, e para
que o empresário possa realizar esse valor de transmissão é necessário um regime que não faça
depender do consentimento de um terceiro a cessão da posição arrendatário. (só se aplica quando
os interesses que se contrapõem são civil-mercantil e quando se trate de uma genuína realização do
valor do titular da empresa). A norma do art. 1112º CC é imperativa, sendo nula clausula que a
contrarie.
Embora a cessão da posição de arrendatário no âmbito do trespasse esteja dispensada do
consentimento, a lei atribui ao senhorio determinados direitos:
1) Direito de preferência na transmissão do estabelecimento, caso o trespasse ocorra mediante
venda ou dação em cumprimento. (art. 1112º/4 CC)
2) O direito a que lhe seja comunicada a referida cessão da posição de arrendatário. (art.
1038º/g CC)
3) O direito à actualização a renda, quando se trate de contrato de arrendamento celebrado
antes da entrada em vigor do DL 257/95.

9.1. Casos de ausência de trespasse.

O actual art. 1112º/2 CC apresenta os casos em que não há trespasse. O que se discute é se a lei
pode e deve ser levada à letra, concluindo-se pura e simplesmente que não há trespasse quando a
transmissão não seja acompanhada da transferência em conjunto dos utensílios, o que podia levar a
situações inaceitáveis. A doutrina tem considerado que o preceito não pode ser levado à letra, isto é,
que o simples facto de a transmissão do estabelecimento não ser acompanhada da totalidade dos

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

elementos do seu lastro ostensivo não determina, por si só, a inexistência de trespasse, nem tão-
pouco arreda a aplicação do nº1. Carece o texto de interpretação restritiva.
Porém, diverge a doutrina quanto à exacta interpretação que deve ser dada ao preceito:
1) Seria uma presunção de inexistência de trespasse, com a consequente inversão do ónus da
prova?
2) Seria um mero indício da inexistência do trespasse, impondo ao juiz um especial cuidado na
averiguação de uma possível simulação do negócio?
3) Imposição de que o estabelecimento passe no essencial, tal como existia na esfera do
arrendatário – não tendo e se transmitir todos os elementos do lastro ostensivo, mas também
não bastando a simples observância do âmbito mínimo.

Nogueira Serens defende que o que está em causa é a transmissão do âmbito mínimo. Cassiano dos
Santos entende não se exige apenas o âmbito mínimo, sendo necessário que seja transmitidos os
elementos que permitam reconhecer o estabelecimento com a mesma configuração essencial, em
termos de justificar a dispensa de autorização do senhorio – o estabelecimento tem que passar, no
essencial, tal como existia na esfera do arrendatário. Desde logo, porque entende que se fosse
apenas necessário o âmbito mínimo cairíamos num vício: sem o âmbito mínimo, não há trespasse e
nem sequer há funcionamento do art. 1112º/1 CC.

9.2. A alínea b) do nº2 e o nº5 do art. 1112º CC.

Trata-se de normas com o objectivo assumido de restringir a possibilidade de serem efectuados


trespasses com mudança de destino do bem. Antes estava regulada no art. 1118º CC e 115º RAU.
A alínea b do nº2 do art. 1112º CC foi entendida de várias formas: uma corrente doutrinal inicial
dizia que uma vez feita a transmissão da empresa e com ela a transmissão do gozo do local, se o
novo dono passasse a exercer um novo comércio, isso significava que não tinha havido trespasse -
funcionava como uma presunção iuris et de iure. Simulava-se passar a empresa, mas o que se
pretendia era passar a usufruir do local onde a empresa funcionava.
Já ORLANDO DE CARVALHO, FERRER CORREIA e PEREIRA COELHO entendiam que a
circunstância de haver mudança do destino não significava que de um modo irrefragável se viesse a
concluir que o negócio não tinha sido a empresa, isto é, que não tinha havido trespasse. Tal era
apenas um índice de inexistência de trespasse, mas ilidível – a presunção era iuris tantum. Ou seja,
servia para verificar que o negócio real não foi um trespasse, sendo apenas um elemento a ter em
conta para aferir a existência de uma simulação relativa.
A interpretação do art. 1112º/2/b CC não pode deixar de se conjugar com o nº5 do mesmo artigo. A
leitura conjugada de ambos permite concluir que a lei distingue, presentemente, dois tipos de casos:
a) Aqueles em que as partes (ambas) no momento da celebração do negócio visam a mudança
de destino do prédio – havendo esse intuito no momento da transmissão, não há trespasse
para efeitos no nº1 (art. 1112º/2/b CC12)

12
CASSIANO DOS SANTOS alerta-nos que a norma não deve ser interpretada de forma literal, sob pena de
incongruência. Assim, o legislador, ao dizer “não há trespasse”, pretende, neste caso do art. 1112º/2/b CC
dizer que não há trespasse para efeitos do art. 1112º/1 CC, isto é para efeitos de dispensa do senhorio. Ou
seja, haverá trespasse, mas não para efeitos do art. 1112º/1 CC. Desde logo, porque o autor considera que o
intuito que subjaz à transmissão não tem qualquer relação com a existência ou não de trespasse – desde logo,

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b) Aqueles em que uma das partes – o trespassário – em momento posterior ao do trespasse e


da concomitante cessão da posição de arrendatário, altera o destino do imóvel (art. 1112º/5
CC)

No primeiro caso, nos dizeres da lei não há trespasse para efeitos no nº1, isto é, a cessão da posição
de arrendatário não estava dispensada do consentimento do senhorio (e por isso a cessão é ilícita ab
initio); no segundo caso, emerge para o senhorio, no momento da mudança do destino, um direito
de resolução do contrato – que fora válida e eficazmente cedido sem o consentimento do senhorio,
visto ter sido incluído num trespasse.
Assim, este artigo 1112º/2 deve ser entendido com um artigo que estabelece requisitos adicionais
para que a cessão da posição contratual dispense consentimento do senhorio. Cada uma das alíneas
é autónoma.
O art. 1112º/5 prevê uma causa de resolução directa, com fundamento na mudança de destino, e
não consequencial como a do nº2. Trata-se de uma causa objectiva e autónoma de resolução do
contrato de arrendamento, assente num facto de fácil verificação e cuja constatação permite concluir
pela inexigibilidade da aceitação da mudança de inquilino comercial por parte do senhorio. O
preceito visa impedir os negócios em que a dispensa de consentimento do nº1 não se justifica e que
são aqueles em que o adquirente passa a explorar outra empresa que não aquela cuja transmissão a
lei tutela pelo nº1 ou em que, simplesmente, tem esse intuito.
O objectivo dos dois preceitos é, pois, o de equilibrar a relação contratual de arrendamento, não
impondo ao senhorio que suporte mudanças de inquilino para lá do necessário a uma tutela do
valor que é o estabelecimento. Neste artigo, a resolução só é possível quando a mudança se dá após
a transmissão da posição de arrendatário. Temos que saber se este após é imediato ou mediato, para
efeitos deste artigo.
Para CASSIANO DOS SANTOS, se o adquirente, após a transmissão, passar a explorar o
estabelecimento em exploração estável e consistente, e só mais tarde, por isso, der outro destino ao
prédio, não se aplica o art. 1112º/5, ficando a situação coberta pelo fim estabelecido no contrato ou
dando ao senhorio base para resolver com fundamento na violação do contrato – da cláusula sobre
o fim. Ou seja, o art. 1112º/5 refere-se ás mudanças mais subsequentes à transmissão. Esta
interpretação é confirmada pelo elemento racional, já que os nº2 e 5 servem para restringir a
possível transmissão àquela empresa que existia e da qual o contrato era um elemento. Realizada a
transmissão (nº2) ou firmada ela (nº5), não há razão para intervir o art. 1112º CC, devendo voltar-se
a aplicar as regras gerais de resolução do contrato. Se o nº5 fosse interpretado de maneira
intemporal, o arrendatário ficaria numa posição muito limitada dos seus poderes de alterar a
empresa naquela imóvel e o interesse de terceiros na aquisição da empresa seria bastante reduzido.
E não se pode invocar que o interesse do senhorio é injustificadamente sacrificado à luz desta

porque se foi esse o negócio efectuado realmente, declarado e querido, o destino que se pretende dar ao bem
após o negócio é irrelevante.
Assim, para CASSIANO DOS SANTOS, a existência de um trespasse resulta logo do nº 1 como condição para
que seja dispensada a autorização do senhorio. Se não há trespasse, não se põe sequer a questão de aplicação
do art. 1112º/2 CC. Ambos os requisitos adicionais introduzidos neste nº 2 são de verificação automática,
independentemente do juízo global que se faça sobre o negócio: havendo trespasse, mas verificado que se está
perante uma das hipóteses do nº2, a consequência imediata é que, sem amais ponderação, não há dispensa da
autorização.

72
Eduardo Figueiredo 2016/2017

interpretação porque ele não tem qualquer interesse relevante em limitar o exercício no imóvel para
lá do que fez inscrever no contrato pelo qual se vinculou a arrendar.

Neste âmbito, a lei 6/2006 veio ainda a impor uma outra diminuição aos contractos de
arrendamento cedidos no âmbito do trespasse. Assim sendo:
 Se se tratar de um contrato de duração indeterminada anterior ao NRAU, o simples facto
de ocorrer trespasse (que inclua a posição de arrendatário) atribui ao senhorio um direito
de denúncia livre, que poderá operar passados 5 anos (art. 28º e 26º/4/c NRAU e 1101º
CC); neste caso mesmo que venha a ser dado outro destino ao prédio (como se requer no
art. 1112º/5, o senhorio poderá, através de denuncia ad nutum, por fim ao arrendamento.
 Se se tratar de um contrato com prazo certo anterior ao NRAU, o direito caducará com o
decurso do prazo e, antes disso, o senhorio também poderá resolver o contrato se se
verificar o pressuposto do art. 1112º/5 CC.
 Num caso ou noutro, se o contrato for anterior ao DL 257/95, então o senhorio poderá,
em vez da denúncia ou resolução do contrato, optar pela actualização das rendas. (art.
30º, 50º e 56º/b Lei 6/2006)

Concluindo, o contrato de arrendamento em que o trespassário irá ser parte é o mesmo, mas não
será o mesmo o regime a que ele ficará sujeito.
Com o NRAU, esta temática passou a ter uma importância prática muito menores: o senhorio pode
denunciar com um pré-aviso de 5 anos, caso se trate de um contrato por tempo indeterminado; e
pode resolver logo que o novo inquilino dê novo destino ao imóvel; e como quer que seja, os novos
contractos já não estão sujeitos ao regime vinculísticos.

9.3. A notificação da transmissão em caso de trespasse

Na lei anterior, discutia-se qual era a consequência de não notificar o senhorio ou notificar o
senhorio fora de prazo - a jurisprudência entendia que a falta de notificação conduzia a resolução
do contrato de arrendamento; outra parte dizia que a falta de comunicação não é um requisito que
possa conduzir à resolução do contrato, provocando apenas uma ineficácia, ou seja, aquela
transmissão do contrato de arrendamento não produz efeito face ao senhorio - o que determina que
tudo se vai passar como se não houvesse transmissão do arrendamento.
Hoje, a transmissão da posição de arrendatário tem de ser notificada ao senhorio, em caso de
trespasse – art. 1112º/3 - devendo a comunicação ser feita em 15 dias. (art. 1038º/g CC) – mas o
transmissário pode substituir-se-lhe (art. 1049º/in fine CC). A lei não estabelece a sanção para o não
cumprimento ou atraso no cumprimento da obrigação. CASSIANO DOS SANTOS entende, porém,
que hoje é possível sancionar autonomamente a falta de comunicação, com base na conjugação do
art. 1112º/3 com a cláusula geral prevista no art. 1083º/2 CC. Afasta, pois, a aplicação do art.
424º/2, cuja aplicação não teria justificação, ou o art. 1083º/2/e CC  desde logo, porque a
notificação desempenha aqui uma função limitada dado que a exigência de notificação visa
controlar o uso da autorização que foi conferida e era necessária.
Neste âmbito, a comunicação desempenha um papel importante. Ela permite ao senhorio
desencadear o controlo da licitude da transmissão à luz do art. 1112º/1/2/5, assim como é a
condição prática para a atribuição de de direitos relevantes atribuídos na lei ao senhorio,

73
Eduardo Figueiredo 2016/2017

permitindo-lhe ainda exercer certos direitos associados à existência de trespasse. Sendo grave a falta
de comunicação, serve de base à resolução do contrato, ponto é que “pela sua gravidade (…) torne
inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento” – isto é que se verifiquem consequências
graves que se tenham repercutido na situação do senhorio no contrato.
CASSIANO DOS SANTOS diz-nos ainda que a falta de comunicação deve ser entendida como
presunção de facto da inexistência de trespasse para efeitos do art. 349º/1 CC, colocando o ónus da
prova da regularidade substancial da transmissão da posição contratual na pessoa do trespassante e
trespassário.
Para efeitos do art. 1049º CC o reconhecimento do cessionário pelo senhorio impede a resolução
mas, no caso de trespasse, e por interpretação da norma, o reconhecimento deve ser equiparado ao
conhecimento não casual (aquele que decorre de um qualquer comportamento que se dirige ao
senhorio e leva ao seu conhecimento directa ou indirectamente o trespasse e a transmissão do
arrendamento- basta o conhecimento completo). Não o suprem o simples pagamento da renda pelo
adquirente nem a notificação para trespasse prévia ao negócio, porque os fins da comunicação não
são realizados por esses actos.

9.4. O direito de preferência do senhorio (1112º/4 CC)

A lei atribui ao senhorio o direito de preferência na venda e na dação em cumprimento do


estabelecimento efectuadas pelo comerciante/arrendatário, incluindo aí a venda executiva e a
venda em processo de insolvência (art. 829º CPC e 165º CIRE). Este é um direito legal, ainda que
desencadeado apenas com a celebração do contrato. Só poderá ser exercido nos casos em que o
senhorio está habilitado a exercer a actividade, se esta estiver sujeita a condições – mas é livre nos
demais.
Este direito pode ser afastado pelos contraentes, devendo ela constar do contrato de arrendamento
ou outro acordo – mesmo que não escrito. Caso a exclusão não conste do contrato, na medida em
que este esteja sujeito a forma escrita, como será comum por força da exigência da lei ou por escolha
das partes, é duvidoso, dada a razão de ser da consagração do direito na lei, que a forma escrita seja
condição de validade do acordo (art. 220º/1). Contudo, sempre se lhe aplicará a restrição de prova
prescrita no art. 394º/1 CC: o acordo não poderá ser provado por prova testemunhal.
Sendo um direito de preferência legal, aplicam-se as regras do art. 414º e ss. como direito comum,
assim como o art. 1410º CC – acção de preferência.
A atribuição deste direito de preferência a favor do senhorio é passível de crítica, porque é raro na
prática que o titular do imóvel tenha interesse em tornar-se dono da empresa. Já não vale hoje o
argumento de que é um meio de o senhorio recuperar o prédio, dadas as novas disposições da lei e
o regime aplicável. A solução legal parece mais justificada por razões fiscais do que por um real
interesse presente no ordenamento jurídico-privado. Se se atribui um direito de preferência ao
senhorio, os sujeitos (trespassante ou trespassário) não são tão tentados a simular o preço. O
verdadeiro alcance do preceito é proteger o estado contra simulações para efeitos de tributação.

10. Forma do trespasse.

Até 2006, o trespasse estava sujeito a escritura pública. Porém, atento o principio da liberdade de
forma do art. 219º CC, parece que hoje já nãos e encontra sujeito a forma, visto que a lei deixou de

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

exigir forma para a transmissão do estabelecimento. A liberdade de forma a que o legislador


sujeitou a transmissão do todo não reduz, porém, a exigência de forma que a lei imponha a cada
uma das partes. Tal está de acordo com o interesse geral de ausência de formalismo nos negócios
mercantis e a actual tendência para a simplificação das exigências formais e de procedimento dos
negócios e actos em geral.
Caso não se cumpram essas exigências de forma (p.e. art. 31º/3/6 CPI; em caso de imóveis, exige-se
a escritura pública; 1112º/3 CC – relativo à transmissão da posição de arrendatário que tem que ser
realizada por escrito13), tudo se passará como se as partes, transmitindo o estabelecimento não
tivessem transmitido um dos elementos que o integram.
Não obstante, é certo que a exigência de forma para a transmissões de posição contratual conduzirá,
na prática, à necessidade de redução a escrito do próprio trespasse, sempre que a cessão seja
realizada no quadro deste, Isto é assim forçosamente naqueles casos em que a cessão do contrato se
faça por fora da mera realização do contrato de trespasse, sem menção (isto é, incluindo-se no
âmbito natural) e será assim normalmente nos casos em que se convenciona especificamente a
transmissão do contrato de arrendamento no quadro da realização do trespasse. Em qualquer caso,
o trespasse do estabelecimento que não funciona em prédio arrendado ou no qual não se inclui o
arrendamento não está sujeito a forma, directa ou indirectamente.
Assim, em suma: a exigência de forma para a cessão da posição contratual de arrendatário será
preenchida se o trespasse do estabelecimento que funciona em prédio arrendado for celebrado por
escrito e não se excluir especificamente a transmissão do arrendamento: nesse caso, como o contrato
de arrendamento faz parte do âmbito natural, essa transmissão dá-se com e por força da celebração
do contrato de trespasse, considerando-se formalizada no documento que formaliza o negócio sobre
o próprio estabelecimento.

11. Obrigação implícita de não concorrência.


11.1. A restrição à liberdade de concorrência decorrente da transmissão de um
estabelecimento comercial. Fundamento.

A liberdade de iniciativa económica (privada), jurídico-constitucionalmente consagrada, conhece


vários limites. Entre eles os que decorrem do princípio da autonomia privada. Vale por isto dizer
que as pessoas podem, não ilimitadamente decerto, restringir a sua liberdade económica fazendo
uso da sua liberdade de contratar.

13
Há quem entenda que este artigo se refere ao trespasse, retirando-se daí a exigência de que seja realizado
em forma escrita. CASSIANO DOS SANTOS e NOGUEIRA SERENS rejeitam esta posição. Razões:
 A desformalização do trespasse está em conformidade com o principio geral da liberdade de forma,
que tem especial expressão no direito comercial.
 O art. 1112º regula especificamente a transmissão do contrato de arrendamento para fins não
habitacionais e não o trespasse.
 A solução que resulta do enquadramento sistemático é a de que ao estabelecer a exigência de forma
escrita para a transmissão, não pode deixar de se referir à transmissão do contrato de arrendamento e
não ao trespasse em geral.
 É o sentido literal da norma que se harmoniza com o sentido regulativo geral do sistema em que se
insere.
 A restrição do âmbito de aplicação do art. 1112º/3 ao sentido que imediatamente resulta da sua letra é
a solução mais conforme com a preservação do valor segurança jurídica.

75
Eduardo Figueiredo 2016/2017

Importa, porém, distinguir os casos em que o acordo versa directamente sobre a própria liberdade
de concorrência e aqueles casos em que a restrição desta é tida como consequência necessária ou
implícita da celebração de um outro contrato. (ancillary restraint of trade)
Neste segundo tipo de casos, quando não expressamente convencionada a obrigação de não
concorrência, o trespasse acarreta naturalmente, para o trespassante, a obrigação de se abster
(durante um certo tempo e em certo espaço) de concorrer com o adquirente do bem que o
estabelecimento é. Tal deve-se ao facto de o vendedor dever entregar a coisa vendida e assegurar o
seu gozo pacífico (obrigação de não evicção). À luz desses deveres pode afirmar-se que só há
violação de entregar e respeitar o gozo do bem pelo adquirente quando há um ataque ao concreto
bem transmitido e aos valores que o integram, o que significa que o alienante não pode reapossar os
bens envolvidos e não pode também produzir total ou parcialmente a organização para com ela vir
a recuperar a posição diferenciada que transmitiu ou parte dela. Para aferir tal coisa, é
imprescindível que as organizações sejam, elas próprias similares.
Ou seja, a natureza sui generis do bem em causa impõe ao trespassante a abstenção de concorrer com
o adquirente, pois que o bem transmitido, em caso contrário, seria facilmente desfalcado de valores
importantes, como o aviamento e acreditamento público. Isso deve-se ao facto de o trespassante
surgir como um concorrente diferenciado e especialmente perigoso, dada a natural tendência de a
clientela ser atraída para o novo estabelecimento do trespassante. Isto porque a clientela é, em
princípio, fiel ao trespassante seguindo-o para o novo estabelecimento. Mas note-se, não há aqui um
dever geral de não concorrência de natureza absoluta, porque a proibição de concorrer só se
apresenta na medida em que se comporte violação dos deveres gerais de entrega e não evicção,
atacando o transmitente os valores transmitidos, o que pressupõe necessariamente que ele reproduz
total ou parcialmente a organização, imitando-a, para com esse mecanismo concorrente se
apresentar no mercado com uma identidade similar da empresa transmitida e recuperar parte ou
todos os valores de imagem pública transmitidos.

Esta obrigação abrange quatro âmbitos:


1) Âmbito temporal – Tempo por que dura essa obrigação. (2-3 anos é tendência europeia, com
um máximo de 5 anos)
2) Âmbito espacial ou geográfico – Espaço em que ela vale. Varia em função do âmbito local,
regional, nacional ou internacional da empresa – espaço de irradiação da empresa
transmitida – ainda que qualquer actuação, dentro ou fora dessa área, desde que não
permita identificar uma reprodução da empresa transmitida seja irrelevante. Para mais, com
os novos meios de actuação, a irradiação deve medir-se a partir dos meios a que a empresa
transmitida recorre para chegar aos clientes.
3) Âmbito pessoal – Círculo de sujeitos abrangidos por essa obrigação. Exige-se na sua
apreciação, a especial relação do sujeito com o estabelecimento que o torne perigoso, sob o
ponto de vista da reprodução da organização e da recuperação dos valores transmitidos. Se
esta relação não existir, poderá haver identidade objectiva das organizações, mas faltará a
identidade dos elementos subjectivos da empresa. O critério da perigosidade e um índice
para constatar a existência de reprodução. (não vale para herdeiros ou cônjuges sem relação
com a empresa, p.e.)
a. Atente-se que o critério da perigosidade não é um critério autónomo para a
imposição de uma vinculação a não concorrer: ninguém, por muito perigoso que seja

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para o adquirente de uma empresa, fica obrigado a não concorrer se não for o
alienante dela; por outro lado a perigosidade tem que ser analisada de uma ponto de
vista objectivo – a reprodução tem de ser possível e verificável externamente.
b. Analisando o que foi dito, não vale esta obrigação contra o cônjuge não contitular,
sobre filhos, outros familiares, empregados ou colaboradores – relativamente a estes
vale apenas a proibição de concorrência desleal. (art. 317º CPI)- CASSIANO DOS
SANTOS
4) Âmbito real ou merceológico – Círculo de condutas proibidas. Deve ser estrito, de tal
maneira que não são proibidas actuações que não consistam na reprodução do
estabelecimento trespassado. No fundo, é necessário que se reproduza a organização de tal
modo que se torna possível identifica-la externamente com a anterior, podendo assim
recuperar valores ou até a própria empresa. Pode, por exemplo, desempenhar funções em
empresa concorrente. E a participação em sociedade só será proibida se se concluir que há
uma utilização da personalidade jurídica da sociedade para contornar a obrigação, havendo
primeiro que verificar a reprodução da organização trespassada nas mãos da sociedade.
Poderá, em tal hipótese, a violação da obrigação, além de responsabilidade em termos
gerais, acarretar a desconsideração da personalidade própria da sociedade, considerando-se
obrigado e sociedade como um só sujeito. Relativamente à sociedade, a desconsideração sío
produzirá efeitos se se verificar que ela foi absoluta e exclusivamente instrumentalizada pelo
obrigado para concretizar a violação.

A densificação e cada um destes âmbitos não é uniforme na doutrina, ainda que seja unânime que
se as partes nada convencionarem, a obrigação e não concorrência implícita só vale por certo tempo,
num certo espaço, para certas pessoas e para certas actividades.

Nota: em caso de que a obrigação de não concorrência seja explícita e fora dos limites e
fundamentos acima analisados, sem que exista uma justa causa para tal, deve o juiz reduzir a
cláusula e torna-la válida – teoria do blue pencil. Cassiano dos Santos diz que a cláusula será nula
por violação do principio da ordem pública.
Os contraentes podem ainda afastar ou restringir a obrigação de não concorrência (clausulas de
restabelecimento). Não podem, no entanto, afastar a obrigação e entrega e o dever de não evicção,
que são imperativos (sendo nulas as clausulas que os afastem – art. 294º CC). Deve haver pois muito
cuidado com a interpretação destas cláusulas. Uma cláusula de restabelecimento pode significar
que os sujeitos não quiseram negociar a empresa ou que o objecto do negócio foi restringido
indirectamente.

11.2. Âmbito temporal da obrigação implícita de não concorrência.

Esta obrigação é uma excepção do princípio da não liberdade de concorrência. Na fixação em


concreto do conteúdo desta obrigação não pode, pois, perder-se de vista que esta obrigação só existe
se e na medida em que se afigure imprescindível ao trespasse do estabelecimento. Por outras
palavras, a determinação do conteúdo da obrigação implícita de não concorrência está
absolutamente funcionalizada à consecução de um certo fim que a legitima: garantir a entrega do
estabelecimento ao trespassário. Este carácter funcional ou instrumental afirma que a obrigação só

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existe para isso e não pode existir para além disso, sob pena de ser uma restrição proibida da
concorrência, contrária à CRP e ao art. 101º TFUE.
O nosso legislador, quanto ao tempo, não fixou um prazo, tendo a doutrina tentado fixar critérios
para delimitar a extensão temporal desta obrigação. De uma maneira geral, podemos dizer que a
proibição dura pelo tempo necessário à consolidação dos valores de posição no mercado nas mãos
do adquirente. Ou seja, é necessário o tempo para que o sujeito fixe os valores sui generis do
estabelecimento em causa, avaliando esse período temporal do ponto de vista de um adquirente
médio, normalmente sagaz e diligente (CASSIANO DOS SANTOS). Nesse momento, a concorrência
do trespassante já não terá de ser diferenciada, mas pode ser igual à de qualquer outro concorrente.
Há, pois, critérios para a determinação da duração desta obrigação:
 O âmbito temporal da proibição varia consoante o tipo de estabelecimento em causa,
dependendo da periodicidade do consumo, rapidez do relacionamento da clientela com
o estabelecimento, etc…
 Ela não depende da aptidão ou inaptidão que o trespassário revele para consolidar nas
suas mãos o aviamento da empresa. Esta obrigação não assegura que o trespassário se
apoderará efectivamente de todos os valores do estabelecimento, mas sim que desfrutará
de condições objectivas para a consecução desse desiderato. Neste sentido, esta
obrigação não oferece resultados, mas sim meios para os alcançar.
 Deve ter-se em consideração o princípio da liberdade de concorrência, no quadro de um
processo económico cada vez mais rápido, devendo evitar-se prazos desmesurados.
 A obrigação dura pelo tempo necessário e suficiente para que o sujeito se apodere dos
valores sui generis de determinado estabelecimento, fixando-se este período no momento
do próprio negócio.

11.3. Sanção pelo não cumprimento desta obrigação.


A violação da obrigação explícita ou implícita de não concorrência acarreta o direito a indemnização
ou da pena prevista na cláusula penal (art. 810º CC). O juiz pode, ordenado o encerramento por
decisão judicial, aplicar uma sanção pecuniária compulsória - art. 829º-Aº CC.
Aplica-se ainda o art. 829º que se aplica em casos de violação da obrigação de não
concorrência, podendo ser o sujeito condenado no encerramento dessa mesma empresa. Porém a
defesa da aplicação desta norma tem que ser temperada. O nº2 não pode ser aplicado ao caso, sob
pena de beneficiarmos o infractor de maneira clara, não podendo pois essa solução vigorar no
direito mercantil.
Em caso de utilização de uma sociedade que foi absoluta e exclusivamente
instrumentalizada pelo obrigado para concretizar a violação da obrigação e não concorrência, deve
desconsiderar-se a personalidade jurídica da sociedade.

12. Juros Comerciais: regime especial.

O art 102º CCom. é uma norma de escasso valor preceptivo, pois limita-se a consagrar aquilo que já
resultaria dos princípios gerais ou de outras disposições: em caso de convenção nesse sentido, ou de
disposição legal que o preveja, os actos de comércios vencerão juros. Duas notas:
1) A convenção de juros deve ser reduzida a escrito, ainda que possa ser posterior ao acto a que
respeita – mas se estiver sujeito a forma mais exigente do que a simples forma escrita, a

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convenção de juros deverá obedecer a essa mesma forma, pois que, dado o relevo da taxa de
juro, as razões que determinam a exigência de forma do acto comunicam-se-lhe (art. 221º
CC)
2) Aplicam-se aos juros comerciais o preceituado sobre juros usurários nos arts. 559º-A e 1146º
CC.
Este regime vale para os juros compensatórios e para os moratórios. O preceito mais significativo é
o do 3º parágrafo que diz que os créditos de que sejam titulares sujeitos detentores de empresas
comerciais para os quais resulte da lei o vencimento de juros de mora ou que, por convenção,
estejam sujeito a um juro sem determinação da taxa ou quantitativo, beneficiam de uma taxa de
juros especial fixada em portaria conjunta do Ministério das finanças e da Justiça. Vigora a Portaria
597/2003 que diz que a taxa de juro é a aplicada pelo BCE à sua mais recente operação de
refinanciamento efectuada antes do 1º dia de Janeiro ou do 1º dia de Julho, consoante se esteja no 1º
ou 2º semestre do ano, acrescida de 7%, prevendo a divulgação dessa taxa por aviso da direcção
geral do tesouro, em cada semestre (antes do dia 15/01 e 15/07).É uma taxa de juros especial
supondo que o vencimento dos juros decorre de previsão legal ou contratual. Se a convenção previr
a taxa, vale a previsão, excepto se incorrer em usura.
Apesar de a lei não o especificar, deve entender-se que os créditos ficam sujeitos à taxa de juro
especial são aqueles que decorrem da actividade profissional do sujeito titular da empresa – ainda
que os créditos que resultarem de actos comerciais, por via do art. 15º, se presumem contraídos no
exercício do seu comércio. Serão, pois, créditos necessariamente emergentes de actos de comércio,
mas não relevando os créditos que resultem de actos subjectivos que se demonstre ulteriormente
que não foram praticados no exercício da empresa e actos objectivos que se apure serem também
exteriores a esse exercício.
A restrição que se assinala funda-se na ratio do preceito e é indiciado pela letra da lei e pelo sentido
que nela se empresa o termo empresa. (sentidos subjectivo e institucional).

13. A cessão de exploração.


13.1. Noção. Outras designações.

A cessão de exploração é um negócio temporário que tem por objecto a empresa. Não é um contrato
legalmente tipificado, havendo que recorrer à tipificação social que se pode identificar. Observada a
sua prática constante, pode dizer-se que a cessão de exploração é o contrato através do qual o
proprietário de uma empresa cede a outrem o seu gozo com o inerente leque de poderes, incluindo
o de fazer apropriação dos lucros, por certo prazo, mediante uma certa contrapartida, que se
designa por renda, a qual pode livremente ser estipulada (dinheiro, renda mista – participação nos
lucros e assunção das dívidas), o se configure uma participação do cedente no exercício do
cessionário que aproxime o contrato de uma associação em participação. A cessão tem por objecto
um estabelecimento, mesmo que ele ainda não tenha funcionado. Esta expressão é a mais utilizada
pela jurisprudência e a mais adequada. Não pode ser reconduzida esta figura à locação prevista no
art. 1022º CC porque essa não tem regulação adequada para a especialidade deste contrato, para
além de que a natureza do bem e especificidade do negócio implicam um dever de exploração que
não tem qualquer paralelo nos devedores do locatário civil.

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13.2. Regime da cessão de exploração.


13.2.1. O art. 1109º CC e a (não) aplicação do regime de arrendamento à cessão de exploração
do estabelecimento.

Este negócio não está tipificado, nem regulado. É, porem, acto de comércio porque é um acto de
uma empresa comercial pelo art. 230º CCom, sendo um acto organizatório que se enquadra
implicitamente neste preceito. Assim, a integração do regime deve ser feita com recurso ao direito
comercial, mas na medida em que se verifique a analogia nada obsta a que se apliquem regras civis
sobre a locação.
Note-se, porém, que o objecto do negócio é a empresa, que é um bem móvel. Deste modo, à cessão
de exploração não se aplicam as regras do arrendamento. E não se pode invocar aqui ao rt. 1109º CC
que diz que as regras de arrendamentos para fins não habitacionais se aplicam à transferência
temporária e onerosa do gozo do prédio que se verifique em conjunto com a exploração do
estabelecimento. As normas do arrendamento, aplicam-se, pois, à cedência do prédio, e não à cessão
de exploração propriamente dita – e naturalmente porque não há um arrendamento mas apenas
uma cessão do gozo de um imóvel atípica, com as devidas adaptações.
Nem teria lógica que o legislador construísse um regime do contrato de cessão de exploração no
quadro do regime do contrato de arrendamento porque são contractos diferentes e autónomos, de
tal modo que a aplicação do regime do arrendamento para dina não habitacionais conduziria a
resultados absurdos, como o derivado da aplicação do art. 1113º CC, submetendo-se a cessão à
legislação vinculística, algo que a doutrina e a jurisprudência procuraram evitar, por ser totalmente
contrária aos interesses em jogo. O contrato sobre a empresa, quando temporário é eminentemente
pessoal e nada permite impor ao cedente que o veja a ser transferido aos sucessores daquele com
quem contratou.

13.2.2. O direito do cessionário sobre o imóvel: o sentido do art. 1109º/1 CC.

O art. 1109º CC estatui a aplicação do regime do arrendamento. Deve entender-se, porém, que o
cessionário não se torna arrendatário do imóvel, a não ser que tal seja especificamente estipulado
pelas partes. Qualquer que seja a situação jurídica do prédio, a lógico do negócio enquanto negócio
pro tempore sobre o estabelecimento levam à conclusão de que, na falta de menção específica em
contrário, a cessão de exploração comporta a cedência de um mero direito do cessionário a dispor
do imóvel para e durante a exploração da empresa. O direito sobre o imóvel que decorre da cessão
de exploração e o direito do arrendatário têm conteúdos diferentes: o locatário tem, pois um direito
a dispor o imóvel de natureza obrigacional que envolve estritamente as faculdades inerentes à
exploração daquela empresa; não pode, assim, mesmo que respeite o fim contratual, dar qualquer
outro uso ao imóvel. O art. 1109º CC reporta-se agora apenas ao regime que se aplica à cedência do
imóvel e vale sí para os imóveis sujeitos a arrendamento.

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13.2.3. Desnecessidade de autorização do senhorio quando o prédio é arrendado. Notificação.

Prevê-se a não intervenção do senhorio na cessão da exploração. (art. 1109º/2 CC) Dispensa-se,
pois, a autorização do senhorio para se ceder o gozo do imóvel, quando há cessão de exploração do
estabelecimento, e não a autorização para a cessão da empresa em si mesma.
Não sendo necessária a autorização, o arrendatário deve comunicar ao senhorio a celebração do
negócio, na medida em que ele envolva a transposição do gozo do prédio. Tem 30 dias para o fazer.
A falta de comunicação pode conduzir, por si só, à resolução do contrato.

13.3. Obrigação de não concorrência.

O cedente fica obrigado a não concorrer com o cessionário, por força da obrigação que assume de
assegurar o gozo da coisa pelo locatário (art. 1031º/b e 1037º CC). Trata-se de uma obrigação
derivada da obrigação principal, não podendo o cedente perturbar a fruição do cessionário dos
valores transmitidos, estando este proibido de reproduzir a organização. Em qualquer caso, ele não
está proibido de actuar, desde que não desvie valores de organização ou de exploração
transmitidos. Esta obrigação dura pelo tempo em que durar a cessão.
Sobre o cessionário não impende qualquer obrigação de não concorrer, nem antes nem depois do
contrato. Mas sobre ele impende um dever de exploração e proibição de concorrência desleal que
limita qualquer actuação exterior à exploração do estabelecimento locado.

13.4. Âmbitos de entrega.

Os âmbitos de entrega coincidem aqui com os das transmissões definitivas. Sendo a transmissão
temporária, no fim do prazo, devem os elementos ser restituídos. Quanto ao contrato de
arrendamento, o cessionário adquire apenas um direito de disponibilidade, o mesmo se passando
com os demais contractos.
A firma é naturalmente envolvida neste caso – faz parte do âmbito natural, mas não é a propriedade
da firma que se transmite. O regime da transmissão dos sinais distintivos não se aplica em casos de
transmissão temporária, o que se conclui da leitura do art. 44º RNPC, que deixa claramente de fora
do seu âmbito de aplicação as disposições pro tempore. Em todo o caso, como o cessionário é
comerciante, deve adoptar uma firma. Na medida em que a transmissão é temporária e o interesse
de ambos os contraentes vai no sentido de que a exploração se faça nas melhores condições, a firma
passa com o estabelecimento por todo o tempo da cessão, ficando o cessionário investido no direito
de a usar na exploração da empresa. (direito de disponibilidade) Aplica-se o art. 44º/1 RNPC na
parte que prevê o aditamento da menção à firma do anterior titular.
Os bens (e seus direitos e posições) transmitem-se a título de mero direito a dispor deles para fins
da exploração. Mas só é assim na falta de menção em contrário das partes e para os bens que estão
sujeitos ao dever de restituir a empresa no termo do contrato. Não é assim para os bens, como
matérias-primas, em que a exploração norma da empresa implica o seu consumo. Se se entender
que o cessionário tem uma faculdade difusa relativamente a eles, que não se qualifica precisamente,
e que não passam em propriedade para o cessionário, não se vislumbra o titulo jurídico pelo qual
ele as pode vender ou incorporar na produção.

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Ora, sabemos que salvo a existência de disposições imperativas, é a vontade das partes que decide.
Nada obsta a que os bens que integram o estabelecimento passem para o cessionário a título
diferente e mesmo mais amplo do que aquele a que passa a própria empresa: ponto é apenas que o
cedente possa transmitir esses direitos e que a vontade dos contraentes seja nesse sentido. Isto
significa que aquilo que as partes estipularem é o que vale. Se nada foi convencionado, há uma
lacuna a integrar nos termos gerais valendo a vontade hipotética das partes ou a boa-fé, que aponta
para a transmissão da propriedade. Quando o poder-dever de exploração seja especificamente
acordado, pode entender-se que o problema é de interpretação – dessa cláusula resultará a
transmissão da propriedade dos bens.

13.5. Direitos e poderes do cessionário: o poder-dever de exploração. Restituição.

O cessionário adquire o poder de explorar o estabelecimento durante o prazo acordado e de fazer


suas as vantagens dessa exploração. Nada obsta a que a transmissão dos elementos que compõem o
estabelecimento seja feita a outro título, concretamente definido no contrato. Na falta de acordo,
devemos olhar para vontade hipotética das partes, que nos indica que, fora os casos anteriormente
vistos em que se transmite a propriedade, sobre a generalidade dos bens o cessionário adquire
apenas um direito de disponibilidade simples.
Sucede, por vezes, que se convenciona explicitamente no contrato o arrendamento ou
subarrendamento do imóvel. Tal exige interpretação cautelosa:
1) Pode corresponder a um negócio autónomo sobre o imóvel, querendo as partes que no fim
do contrato sobre o estabelecimento, este e o imóvel se separem;
2) Pode o arrendamento ser um veículo para legitimar o gozo do imóvel pelo locatário,
subordinado à cessão da exploração e em linha com ela.
3) Pode acontecer que tenha ocorrido um erro na qualificação do título a que procede a
transmissão desse gozo. Aqui aplicam-se as regras dos contractos mistos.
O poder de explorar é simultaneamente um dever, devendo o sujeito manter a organização e os
valores de exploração, de modo a preservar a identidade essencial da empresa enquanto valor de
posição no mercado, salvo as alterações que decorrem da própria exploração acordada e da
evolução norma da actividade no mercado. Ele não pode proceder a alterações importantes nos
bens da organizações, nem nas relações com os clientes (art. 1038º/i/h e 1043º) – dever de gestão
criteriosa e dever de aviso.
A restituição deve acontecer nas condições que decorreram do exercício do poder dever de
exploração: devolução do estabelecimento tal como el se encontra no fim do prazo. As mercadorias
e stocks transmitidos a título de propriedade, se não tiverem sido objecto de remuneração específica,
devem ser substituídos por outros de quantidade e valor correspondentes. Se o estabelecimento
aumentar de valor, este pertence ao cedente, sem que o locatário tenha direito de compensação. Às
benfeitorias que tenha introduzido aplica-se o art. 216º, 1046º e 1273º CC.

13.6. Forma.
A lei não prevê regra especial para a cessão de exploração, ficando sujeita à liberdade de forma. Nos
casos em que envolva a transmissão do gozo do imóvel, por força do art. 1109º/1 CC, é necessária a
forma escrita para essa cedência, excepto se o negócio for por 6 meses ou menos (art. 1109º/1 e
1069º CC).

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14. Sinais distintivos

Os sinais distintivos surgiram para satisfazer os interesses dos empresários mercantis, mas hoje
estendem-se a outros campos. Dentro de certos limites, qualquer sujeito pode ser titular de uma
marca, nem se exigindo a sua condição de empresário mercantil. Estes sinais podem ser:
- Típicos (têm um regime legal especifico)
 Firma (Sinal distintivo de destinação subjectiva – nome comercial do comerciante que
permite individualizá-lo.)
 Nome (Sinais de destinação objectiva de natureza nominativa. Ex: Caixa Geral de
Depósitos)
 Insígnia (Sinal de destinação objectiva de natureza figurativa ou emblemática)
 Logótipo (Substitui o nome e a insígnia, após a reforma em 2008 realizada ao CPI,
podendo ser constituído por um sinal ou conjunto de sinais, com elementos nominativos e
figurativos ou combinação de ambos. É um sinal de destinação sobretudo objectiva.)  art. 304º-A a
304º -S CPI
 Marca (sinais distintivos de produtos que supõe a existência de um corpus. A terciarização a
economia permite hoje que se fale de marcas de serviços. Ex: Nestlé)  art. 222º a 270º CPI
 Denominação de Origem (Sinal distintivo de produtos. Ex: Serra da Estrela)  art. 305º a 315º
CPI
 Indicações geográficas. (Sinal distintivo de produtos. Ex: Tapete de Arraiolos)  art. 305º a 315º
CPI
- Atípicos (Não têm regime legal especial, valendo para eles algumas normas de soft law)
 Nomes de domínio (p.e. www.eidelberg.de)

14.1. A Firma das Sociedades Comerciais

A adopção da firma constitui uma das obrigações do comerciante (art. 18º/1 CCom.) A firma pode
ser de vários tipos:
 Firma-Nome: Constituída com nomes de pessoas ou firmas dos sócios.
 Firma-Denominação ou Firma-Objecto: Firmas com uma expressão particularizando a
actividade económica que os sócios exerciam em comum.
 Firma-Mista: com os nomes ou firmas dos sócios e uma denominação em particular.
Com a entrada em vigor do CSC, e consequente revogação dos artigos 20º a 23º CCom., as regras de
constituição das firmas constam do art. 38º do RNPC:
1) As firmas de sociedades em nome colectivo ou em comandita têm obrigação de incluir
pelo menos o nome ou firma de um sócio (art. 117º e 467º CSC) Esta obrigatoriedade não
é absoluta, porque não se quis inviabilizar a possibilidade de uma sociedade dos
referidos tipos ser constituída apenas por outras sociedades. Nessa hipótese não haverá
nomes de sócios para ser incluídas na firma da respectiva sociedade, mas sim firmas
desses mesmos sócios.

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2) A firma das sociedades por quotas e anónimas (art. 200º e 275º CSC) tanto pode ser
firma-nome, como uma firma denominação ou uma firma-mista. Mais recentemente
passaram a admitir firmas de fantasia, que podem ser puras ou impuras, graças ao DL
111/2005 ter admitido a constituição imediata de sociedades comerciais e civis sob a
forma comercial do tipo por quotas e anónimas (Empresa na Hora) e cuja adopção é feita
depender da opção da firma constituída por expressão de fantasia previamente criada e
reservada a favor do estado ou da apresentação de certificado da admissibilidade de
firma emitido pelo RNPC. No caso de adopção de firma de fantasia, aplica-se o art. 10º
do referido DL.

Ora, a firma constitui sempre um sinal de destinação subjectiva, visando individualizar a pessoa do
empresário mercantil. A realidade da vida do tráfico tende à objectivação ou des-subjectivização da
firma que basta para afastar a ideia de que nome comercial do comerciante – a firma- teria função
meramente administrativo-ordenacional: permitir a identificação de um sujeito que intervém no
tráfico com uma qualidade particular.
Na perspectiva do titular, a firma constitui um bem mais ou menos valioso, já que o tráfico a
valoriza enquanto instrumento de concorrência, socorrendo-se dela para seleccionar os
concorrentes. Assim, a firma serve de colector da clientela – sendo esta função inerente ao seu uso e
nada tem que ver com o carácter obrigatório ou facultativo do sinal. Vale o princípio da unidade da
firma, segundo o qual o comerciante pode adoptar uma só firma.

Entre os requisitos para a constituição definitiva de uma sociedade anónima – art. 162º/4 CCom
referia a adopção de uma denominação social que não fosse idêntica à de outra já existente, ou por
tal forma semelhante que pudesse induzir em erro. Aqui acolhia-se o princípio da novidade da
firma, ou vendo as coisas do lado de quem é titular do sinal distintivo, princípio da exclusividade.
Mas a lei não se limitava a acolher este princípio reclamado pelo interesse da ordem pública em
arredar a confundibilidade entre sujeitos – impunha o registo especial das denominações das
sociedades anónimas. Este registo estendia a área de exclusividade da denominação a todo o
território nacional (tutelando o principio da novidade), não podendo o notário celebrar escritura de
celebração de sociedades anónimas enquanto não tivesse certidão comprovativa da inexistência de
denominação idêntica ou semelhante. Este requisito estendia-se à constituição de uma sociedade
por quotas, cujos sócios pretendessem adoptar uma denominação particular.
Em suma: qualquer denominação social estava sujeita a registo prévio, sendo o âmbito de protecção
o território nacional. Quando estas sociedades tivessem por objecto o exercício de empresas que
desenvolvessem a mesma actividade, as denominações respectivas sempre teriam a diferenciá-las os
aditamentos impostos por lei: Sociedade anónima (S.A.R.L); sociedades por quotas (limitada;
responsabilidade limitada). Permitia-se, neste âmbito, a co-existência de denominações idênticas ou
semelhantes quando registadas para sociedades de tipo diferente.

Destacamos a importância da criação do RNPC neste âmbito – ver art. 1º e 3º. A partir da sua
criação, a constituição de qualquer tipo societário ou não, passou a depender da obtenção de um
documento atestando a possibilidade de registo da firma ou denominação que se pretende adoptar.
As normas para requerimento, emissão, validade e eficácia do certificado de admissibilidade de

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firma e denominação, bem como sobre os princípios que informam a constituição dos sinais e
consequências da sua violação estão previstas neste RNPC.
Da leitura conjugada do art. 54º/1, 55º e 56º/1 RNPC resulta a impossibilidade de se constituir
sociedade comercial, não importa de que tipo e independentemente da espécie de firma que se
pretenda adoptar, sem prova de que a firma em causa foi admitida a registo. Essa prova é feita
mediante exibição ao conservador e no caso do art. 7º também ao notário de um documento emitido
pelo RNPC a pedido dos interessados (art. 45º e ss RNPC). O processo do registo, segue os seguintes
trâmites:
a) Avaliação pelo RNPC se a firma pode ou não ser admitida, de acordo com as normas e
princípios aplicáveis.
b) Emitido o certificado da sua admissibilidade, pode ser constituída a sociedade.
c) Pode acontecer que firma certificada pelo RNPC viole direitos de terceiro emergentes de
um registo anterior feito da sua própria firma – veja-se o art. 35º/2 RNPC.

14.2. Princípios reitores da constituição das firmas das sociedades comerciais.


14.2.1. Capacidade distintiva

Um sinal, para poder ser firma, tem de ter carácter distintivo. O registo como firma de um sinal
desprovido do referido carácter – p.e. art. 10º/4 CSC e 33º/3 RNPC – é, necessariamente, inválido.
Pode ser sanada esta invalidade? A aceitação da teoria do secondary meaning, que vale em matéria de
marcas (art. 238º/3 e 265º/2 CPI) e em matéria de logótipos (art. 304º-H/2 e 304º-G/2 CPI)
conduzirá necessariamente a esse resultado. Sendo assim, ocorrendo o registo como firma de um
sinal desprovido de carácter distintivo, este registo será nulo; mas no caso de se aceitar esta teoria
de forma ampla, a competente acção poderá ser julgada improcedente se, à data em que sobre ela
cumpre decidir, o sinal já tiver adquirido carácter distintivo, isto é, já se tenha tornado uma firma. (a
prova cabe ao titular do registo).

14.2.2. Princípio da novidade

Está previsto no art. 33º/1 RNPC e art 1’º/2/3 CSC e 37º/1 RNPC. O nosso legislador previu, no art.
33º/2 RNPC, um conjunto de critérios para avaliar a confundibilidade das firmas e denominações.
Ora:
1) As várias formas ou tipos de sociedade são, em certa medida, pessoas de diferente tipo,
devendo a firma e denominação evidenciar essa diferença.
a. Sociedade em nome colectivo: “e Companhia” ou outro que indique a existência de
outros sócios (art. 177º/1 CSC)
b. Sociedade em comandita: “Em Comandita”, “& Comandita”, “Em comandita por
acções” ou “& Comandita por acções) (art- 467º/1 CSC)
c. Sociedade por quotas e sociedade anónima: “Limitada”, “Lda.” (art. 200º/1 CSC) e
“sociedade anónima” ou “S.A.” (art. 275º/1 CSC)
A capacidade diferenciadora destes elementos é unidireccional – os elementos infalíveis, que
também podem ser apelidados de personalísticos ou subjectivos, só diferenciam as firmas e as
denominações porque caracterizam juridicamente os seus titulares, ou seja, só interessam a um

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número restrito de pessoas – credores actuais ou potenciais. Ora, para a clientela não interessa a
estrutura jurídica da empresa. Veja-se o acórdão do STJ de 19 de Junho de 1984.

2) O art. 37º/2 RNPC diz que o âmbito geográfico da exclusividade das firmas e denominações
das sociedades comerciais é todo o território nacional. Terá sentido fazer intervir no juízo sobre a
confundibilidade entre esses sinais distintivos o local da sede das sociedades ou o âmbito territorial
das actividades por elas desenvolvidas? Nogueira Serens entende que os critérios do art. 33º/2
RNPC devem actuar de moco coadjuvante na aplicação de outros critérios, esses sim
verdadeiramente decisivos. O autor entende que a opção do legislador de estender o âmbito
geográfico de protecção das firmas e denominações a todo o território nacional só pode significar
que independentemente de onde esteja situada a sede e seja qual for o âmbito territorial das
actividades desenvolvidas pela sociedade, não se poderá excluir que essa actividade adquira
dimensão nacional. O mercado de cada sociedade comercial nacional é, pois, a área geográfica do
país.

3)_Será a tutela das firmas e denominações registadas limitada em termos merceológicos? Está
em causa de saber se as firmas e denominações registadas apenas logram tutela de acordo com o
princípio da especialidade – que supõe a necessidade de se ter em conta o objecto da empresa
explorada pela sociedade; ou o princípio da relatividade da tutela – é uma tutela mais extensa, não
condicionada pelo objecto das respectivas empresas. (Caso SEARA (Carnes) vs. CEARA
(cerâmicas))
Se considerarmos o princípio da especialidade – não é necessário averiguar a confundibilidade dos
sinais, porque ambas as sociedades exploram actividades diferentes. Há quem entenda que, sendo a
actividade diferente, as sociedades não são concorrentes, não se colocando o problema da
confundibilidade. Ora, Nogueira Serens considera que, mesmo assim importa averiguar a
possibilidade de confundi-las com referência à diligência normal do homem médio.
Ora, o art. 33º/2 indica como critério a afinidade ou a proximidade das actividades, o que aponta
para que a denominação de uma sociedade comercial só ser tutelável no quadro do princípio da
especialidade. No fundo o que queremos saber é se a denominação registada de uma sociedade é
tutelável face a denominações idênticas ou semelhantes adoptadas por sociedades concorrentes, por
um lado, e não concorrentes, por outro.
Importa, desde logo, afirmar que a denominação não pode deixar de particularizar o objecto da
sociedade que individualiza, o que determina que o risco de confusão entre denominações de duas
sociedades que exercem actividades diferentes (sendo não concorrentes) é de muito difícil
verificação. No seu núcleo vivo e viral, não se vê como essas denominações sejam susceptíveis de se
confundir, ainda que apresentem alguns elementos subjectivos ou personalísticos em comum.
Assim, efectuado o registo, a denominação da sociedade comercial só é tutelada face às
denominações de sociedades que se apresentem como suas concorrentes.
Nogueira Serens defende que há ainda que distinguir, para efeitos de tutela, neste âmbito, este caso
das e denominações (incluam ou não nomes de pessoas), que vimos agora, com as firmas compostas
só com nomes de pessoas – art. 10º/2/3 CSC.
Assim, entende que, ao contrário do que acontece com a denominação registada, em relação à qual
só se põe a questão da confundibilidade com as denominações de outras sociedades se estas se
propuserem a exercer a mesma actividade ou actividade similar àquela que é exercida pela

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sociedade titular dessa denominação (primeiramente registada), no caso de a sociedade ter


adoptado uma firma-nome, a tutela será mais extensa, porque não condicionada pelo objecto da
empresa. Assim, uma sociedade que adopte uma firma-nome pode, por força do princípio da
novidade, obstar a que outra sociedade adopte uma firma susceptível de se confundir com a firma
anteriormente registada, mesmo que o objecto seja distinto, isto é, que não fosse sua concorrente.
Em suma, nas palavras de FERRER CORREIA, novidade significa inconfundibilidade aferida em
relação ao conteúdo global da firma. E isto porque o principio da novidade não se destina a
proteger apenas o titular da firma registada, mas ainda todos os terceiros que possam vir a ter
relações negociais com a empresa.

14.2.3. Princípio da verdade

Em matéria de marcas, o princípio da verdade não tem manifestações positivas necessárias. A


marca pode apresentar um conteúdo puramente arbitrário, sem qualquer referência directa ou
indirecta às qualidades ou características dos respectivos produtos. Só precisa de não ser
enganadora.
Ora, quanto às firmas, para ser verdadeira, tem de corresponder à situação real que respeita, não
podendo conter elementos susceptíveis de falsear ou provocar confusão, que quanto à identidade
do empresário (tratando-se de comerciante em nome individual), quer quanto à identidade dos
sócios (tratando-se de empresa colectiva), quer ainda quanto à natureza da sociedade e à índole ou
âmbito do próprio estabelecimento. Está consagrado no art. 32º/1/2 RNPC e art. 10º/1 CSC. Ambos
os preceitos condensam a doutrina emergente do art. 200º/2/3 e 275º/2/3. O art. 32º/4/a RNPC
recobre a proibição do art. 10º/5/a CSC.
Sendo a firma um sinal distintivo de destinação subjectiva, destina-se actualmente a montante,
sendo disso que cuida a alínea nº5 do art. 10º CSC que prevê elementos infalíveis das firmas e
denominações. Por outro lado, quando se negoceia com uma sociedade em nome colectivo ou com
uma sociedade em comandita, o conhecimento das pessoas dos sócios é muito relevante. Daí a firma
de tais sociedades só poder integrar o nome ou firma dos sócios – excepção feita para os casos de
substrato pessoal, que entorse o princípio da verdade.

14.2.4. Princípio da licitude

As firmas e denominações, para serem válidas e tuteladas juridicamente, hão-de ser licitas – não
contrárias à ordem pública, nem à lei, nem aos bons costumes. O princípio da licitude recobre, quer
o princípio da verdade (as firmas deceptivas são ilícitas), quer o princípio da novidade (as firmas
que não são novas são insinceras e nessa medida, são também ilícitas). O verdadeiro conteúdo deste
princípio encontramo-lo no art. 32º/4/b/c/d RNPC.
O art. 3º RNPC, apesar da sua letra não o indicar, não pode deixar, pois, de ser entendido no sentido
de que a atribuição de firmas e denominações está sujeita à observância do princípio da licitude.
Devemos considerar que há aqui uma lacuna, que terá de ser integrada no sentido de que a firma e
denominação contrária ao principio da licitude (quando se encontre alguma expressão referida no
art. 32º/4/b/c/d) não pode ser admitida a registo e caso esse registo seja efectuado, a sanção que ao
caso cabe é a mesma que a aplicável por violação do principio da verdade.
De forma mais sóbria encontramos ainda este princípio do art. 10º/5 CSC.

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14.2.5. Princípio da unidade.

Ferrer Correia entendia que uma sociedade comercial não pode ter mais do que uma firma.
Já quanto aos comerciantes individuais, a questão era discutível porque se pelas dívidas do
comerciante responde todo o seu património, não haveria risco para o tráfico do comerciante
adoptar mais do uma firma. É possível, pois, identificar uma dupla dimensão do princípio da
unidade:
1) “Um comerciante, uma firma”  Princípio da unidade para o comerciante individual e SC.
1) “Uma empresa, uma firma.”  Princípio da unidade para a SC; possibilidade de várias firmas para
o comerciante individual.

O art. 38º RNPC parece adoptar a visão "um comerciante, uma firma". Mas Nogueira Serens
entende que não se deve entender a lei à letra. O legislador parte do princípio que o comerciante
individual só tem uma empresa (porque é o habitual). Mas isso não significa que se o comerciante
individual tiver várias empresas, não possa adoptar várias firmas - uma firma para cada empresa.
Em relação às sociedades comerciais, o princípio da unidade está salvo, no sentido de que
apenas podem adoptar uma firma.

14.3. A impugnação da firma.

Na hipótese de ter havido um despacho final favorável, isto é, a admitir a firma de uma sociedade
comercial, e um terceiro a considere confundível com aquela por si anteriormente registada, pode
questionar a sua legalidade através:
 Recurso hierárquico: art. 63º a 65º RNPC
 Recurso contencioso: art. 66º a 73º RNPC
Ambos os recursos são meios concedidos pela lei ao titular de uma firma para impedir que outrem
obtenha o registo de firma contrária ao princípio da novidade – apura-se a legalidade de um acto da
Administração cuja ingerência é necessária para a constituição de um direito de natureza privada –
a firma. Serão esses os únicos meios de tutela do direito à fira registada?
Em relação às sociedades comerciais, independentemente da firma que se deva ou possa adoptar, o
âmbito geográfico da sua exclusividade, como vimos, é o espaço coberto pelo princípio da novidade
– território nacional (art. 35º/1 e 37º/2 RNPC). Este primeiro preceito consagra o sistema de registo
constitutivo, o que não significa que o direito à firma seja inatacável após o registo.
O art. 35º/4 não deixa dúvidas quanto a isso, importando, porém, fixar o seu conteúdo. Ao afirmar
a possibilidade do direito à exclusividade da firma ser objecto de uma decisão de nulidade,
anulação ou revogação, proferida em sentença judicial, bem como de declaração da sua perda, em
certos casos – art. 60º e 61º RNPC – a norma está a pressupor a existência de diferentes fattispecies,
todas elas juridicamente enfermas, mas às quais não cabe o mesmo regime. Assim:
 Declaração de anulação do direito à exclusividade por sentença judicial. Em que
casos?
o O art. 239º/2/a CPI prevê uma possibilidade anulação da marca registada
quando esse sinal reproduza ou imite uma firma, ou apenas parte
característica de uma firma, que não pertença ao requerente, ou que o mesmo

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não esteja autorizado a usar, se for susceptível de induzir em erro ou


confusão.
o O art. 304º-I/3/a CPI prevê a possibilidade de recusa de um sinal como
logótipo nas mesmas circunstâncias acima referidas. Ver ainda art. 304º-R
CPI.
Conclui-se, pois, que a existência de um direito à firma condiciona a aquisição por terceiro de um
direito à marca e de um direito ao logótipo, tratando-se de um princípio da circularidade dos sinais
distintivos. Mal se compreenderia que a existência de um direito a firma condicionasse a aquisição
por terceiro de um direito a marca ou ao logótipo e o inverso não se verificasse. Dessa implicação do
princípio da circularidade trata o art. 33º/5 RNPC.
Absurda pelo ónus que faz impender sobre os titulares dos referidos sinais distintivos é o art. 33º/6
que Nogueira Serens considera de duvidosa constitucionalidade. A norma dispõe que os titulares
de marcas ou logótipos, para se poderem prevalecer dos respectivos direitos, hão-de ter efectuado
previamente prova deles junto do RNPC.
Em suma: por identidade de razão, será anulável o registo de uma firma que interfira com um
direito à marca ou com um direito ao logótipo da titularidade de terceiro.
 Declaração de nulidade do direito à exclusividade da firma por sentença judicial. Em
que casos?
o Um sinal tem que ter capacidade distintiva, como vimos acima. Caso
contrário será nula. A aceitação da teoria do secondary meaning permitirá que
esta nulidade seja sanada, sendo a acção julgada improdcedente se à data em
que sobre ela cumpre decidir o sinal já tiver adquirido carácter distintivo, isto
é, se já se tiver tornado uma firma.
o Princípio da licitude (art. 32º)
o Princípio da verdade (art. 32º)
o Princípio da novidade (art. 33º)
Embora a letra da lei seja muito dúbia, falando de “perda do direito” (cuja constituição teríamos de
ficcionar), devemos entender que a violação de qualquer um destes preceitos deve conduzir à
nulidade do registo da firma em cuja composição se verificasse existir desrespeito desses princípios.
É assim inclusive que se passa em matéria de marca e de logótipo quando há violação dos referidos
princípios – embora para o princípio da novidade, por força do art. 243º e 266º/1 CPI, se preveja a
mera anulabilidade do registo da marca quando, na sua concessão tenha sido infringido o disposto
no art. 239º/1/a CPIb (admitindo-se a despublicização da tutela contra riscos de confusão – Que
Nogueira Serens entende não se estender a matéria de firmas, sob pena de “outorga de uma licença
de enganar” potencialmente danosa nesta matéria.). Compreende-se isso, tal como se compreende o
regime de preclusão por tolerância do art. 267º CPI, aplicável nessa matéria.
Ora, afirmando-se a nulidade do registo da firma (de conhecimento oficioso e invocável a todo o
tempo por qualquer interessado), quando esta contrarie o princípio da licitude, verdade ou
novidade, não deixa, ainda assim, de haver espaço para a sanção da perda (diga-se caducidade) do
respectivo direito: fica, sim, cingido aos casos do art. 61º/1 RNPC.

14.4. Transmissão da firma.

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Como sinal de destinação subjectiva, a firma acaba por vale perante o público como sinal distintivo
da própria organização comercial ou empresa (ainda que não se confunda como no nome do
estabelecimento, que é um sinal de destinação objectiva – art. 282º CPI). Quanto à sua natureza
jurídica, distinguem-se três posições:
 Direito à firma como direito de personalidade (influencia do direito alemão) – Tem-se
essencialmente em consideração a firma do comerciante individual composta pelo seu
nome. Sendo certo que, em relação às sociedades comerciais, a sua firma é o único nome
que elas têm. A firma das sociedades comerciais goza da tutela do direito ao nome do
CC, aplicando-se essa norma por analogia e até da tutela constitucional dos direitos
fundamentais. (Art. 14º/2 CRP)
 Direito à firma como direito de propriedade sobre uma coisa imaterial (Coutinho de
Abreu).
 Firma como uma coisa imaterial próxima do direito de propriedade e do direito de
personalidade, mas essencialmente um direito misto no qual confluem dimensões
jurídico-pessoais e dimensões jurídico-patrimonial.
Partindo de uma noção de direito à firma como direito misto, Nogueira Serens retira duas
conclusões:
 Tem traços jurídico-pessoais, podendo a firma beneficiar da tutela que é dispensada
ao nome no CC.
 Tem traços jurídico-patrimoniais, podendo ser transmitida a firma do comerciante.
Em relação à transmissão da firma vale o princípio da vinculação, ou seja, só é permitida a
transmissão da firma conjuntamente com a transmissão do estabelecimento que a ela se achar
ligada. (art. 44º/4 RNPC). Este princípio obsta à existência de riscos de confusão – impedir que a
firma que ligava um comerciante a uma empresa passe a ligar um ouro comerciante a uma empresa
diferente. Releva o engano sobre a identidade do titular da firma – para isso bastaria fazer depender
a transmissão da firma da obrigação de esta ser acompanhada da firma do seu novo titular – mas o
engano sobre a identidade da própria empresa à qual a firma está ligada.
Para que a firma se transmita, ocorrendo a transmissão do estabelecimento, é necessário o acordo
das partes. (art. 44º/1 RNPC) A autorização há-de ser dada por escrito, que há-de ser dada pelo
órgão de representação no caso das sociedades comerciais. Essa autorização pode não ser, porém,
suficiente (art. 44º/2 RNPC). Nogueira Serens critica este preceito e corrige-o, considerando que
uma sociedade só não pode alienar a sua firma sem o consentimento do sócio cujo nome se integra
se esse sócio for uma pessoa humana. O autor critica ainda a exigência de o adquirente da firma a
fazer acompanhar da sua própria firma com a menção de haver nela sucedido. Assim, temos que
distinguir dois casos:
 Situação em que a firma é obrigatoriamente composta pelo nome de pessoas -
(Sociedades em nome colectivo e Sociedades em comandita simples) É obrigatório
que os sócios deixem que o seu nome integre a firma, logo deve ser exigido o seu
consentimento para mantê-lo na firma. Porém, isto só se aplica quando se tratem de
sócios pessoas humanas, já que se se tratar de um “nome” de uma sociedade sócia – a
sua firma-, não é necessário o seu consentimento para a firma se transmitir.
 Situação em que a firma-nome é uma mera opção - (Sociedades por quotas e
Sociedades anónimas)  Não é preciso o consentimento do sócio, porque a firma só

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integra o nome do sócio porque o sócio assim quis, aplicando-se isto aos sócios pessoas
humanas e também aos sócios pessoas jurídicas.

Por fim, apresentando-se à insolvência uma sociedade comercial, não cabem dúvidas que a firma
passará a fazer parte da massa insolvente. Questão diferente é a de saber se o liquidatário judicial,
decidindo-se pela alienação do estabelecimento da sociedade insolvente, pode alienar a respectiva
firma sem o consentimento do seu titular. Na opinião do professor, não deve permitir-se que a
sociedade se oponha à alienação da sua firma com a do estabelecimento a que estava ligada,
prejudicando os seus credores – “Quem anda à chuva molha-se”.
Apesar disto, nas sociedades em nome colectivo e em comandita cuja firma seja composta em nome
de sócios pessoas humanas pode perceber-se que não se possa alienar a firma sem o consentimento
desses sócios. Nesse caso, não havendo consentimento dos sócios, se ocorrer a alienação da firma
em processo de insolvência, o liquidatário judicial deverá constituir uma firma sucedânea que será
usada até que a sociedade seja extinta, o que só acontece com o registo do encerramento de
liquidação.
Para resolver este problema, melhor será a celebração de acordos, sendo o consentimento necessário
à transmissão da firma atribuído no momento da constituição da sociedade.

15. Direito à Marca.

A marca é um sinal, qualquer que seja, desde que adoptado para identificar a origem ou
proveniência de bens, produtos ou serviços. Esse sinal tem aptidão para distinguir esses bens
doutros bens que provêm de um empresário concorrente. Vamos focar-nos nas marcas nacionais
que são aquelas que se afirmam no espaço geográfico do nosso país – princípio da territorialidade
do direito à marca- e que estão reguladas no art. 222.º e segs. do CPI. Hoje esta matéria está
substancialmente harmonizado no quadro dos países da UE graças à criação da Directiva
EU/2015/2436 do PE e do CE, de 26/12/2015.

15.1. Espécies de marcas.

Segundo diferentes critérios, podemos ter várias espécies de marcas:


• Natureza das actividades: marcas de industriais ou de fábricas, comércio, agricultura, serviços,
etc. (art. 225.º/a),b), c), e e)). As marcas de serviços são uma conquista relativamente recente, sendo
hoje as mais valiosas.
• Elementos componentes ou integrantes das marcas: nominativas (constituídas por nomes ou
palavras), figurativas (figuras ou desenhos), mistas, auditivas (sons representáveis graficamente –
TJUE 27/11/2003), gustativas, olfactivas (TJUE 12/12/2002), de cor (TJUE 6/05/2003),
tridimensionais ou de forma. Podemos ter ainda marcas simples, constituídas por só elemento, e
complexas, constituídas por vários. Ver arts. 222.º e 223.º/1/b). A marca pode ainda ser geral
(Renault) ou especial (Renault Clio).
• Titulares das marcas:
 Podemos ter marcas de empresários ou não empresários (art. 225.º).
 Marcas individuais, associada a um sujeito individual (seja comerciante individual ou
sociedade comercial. Antes dizia-se que estas marcas eram de titularidade única e de uso único.

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Hoje, por via dos contractos de licença de marca, diz-se que são de titularidade única, mas de uso
plúrimo); e colectivas (a titularidade é una, mas o uso é plúrimo. A marca diz-se colectiva porque é
utilizada por vários sujeitos membros de uma mesma entidade, p.e. em compropriedade ou por
comunhão.). De acordo com a lei, estas últimas podem ser marcas de associação e certificação
garantida, arts. 228.º, 229.º e 230.º, sendo que neste caso a titularidade é una e o uso plúrimo, mas o
direito a usar a marca não decorre da titularidade de ser membro dessa entidade. O direito a usar a
marca pertencerá a todos aqueles que preencham as condições pré-fixadas para o uso do sinal
distintivo. Na marca de garantia o titular dela não pode empenhar-se na promoção da marca.
• Regime da protecção: temos as marcas registadas, art. 224.º/1, e não registadas (marcas de facto
ou livres). Temos ainda as marcas notórias, que mesmo quando não registadas gozam de protecção
especial (arts. 241.º e 242.º).

A marca pode ser constituída por todos estes sinais desde que tenham representatividade gráfica.
(art. 222º CPI). A nova directiva sobre a marca determina hoje que este requisito já não é necessário,
sendo que o número de marcas tem tendência a aumentar exponencialmente no futuro e
eventualmente terá de se adaptar a nossa lei a essa alteração da directiva.
As marcas e demais sinais distintivos gráficos nacionais são registados no INPI – Instituto Nacional
da Propriedade Industrial. As marcas europeias, ao serem registadas, afirmam o direito em todo o
espaço da EU, ainda que , por via da Convenção de Paris, possa exigir-se que se registe a marca
como sinal especificamente num país estrangeiro para que seja tutelada nesse país, sendo que o
registo depende do regime que aí valha, podendo ser recusado e, por conseguinte, não gozará aí de
protecção. Hoje, verifica-se pois a coexistência das marcas nacionais (PME's) e marcas europeias
(mais adequadas para as multinacionais). Eventualmente, as marcas nacionais podem vir a
desaparecer graças à facilidade de registar marcas europeias.

15.2. Função da Marca.

Quanto ao surgimento do direito à marca, Nogueira Serens entende que a disciplina das
marcas surge quando a concorrência não é livre, já que a monopolização da concorrência é que
torna necessária a tutela da marca, pelo surgimento da necessidade de distinguir os vários produtos
através de sinais. A protecção da marca é contrária à liberdade de concorrência. A marca foi criada
para distinguir o que é igual; quanto às coisas que são diferentes, a marca apenas evidencia essa
diferença.
As marcas têm funções no plano socioeconómico (não t~em que ser jurídicas ou de usufruir
de tutela do Direito) e no plano jurídico. Vamos focar-nos apenas nestas últimas. Neste âmbito, fala-
se de uma tríplice função da marca.

1) Função Distintiva da Marca


A marca é um sinal distintivo que pode ser entendido de várias maneiras:
(1) Esta função esgota-se nos produtos ou serviços, porque ela serve para distinguir esses produtos
ou serviços. (Coutinho de Abreu) Estes autores não vêm o alcance desta sua afirmação. Sendo o
produto diferente parece, de acordo com esta tese, não haver problema na adopção de duas marcas
iguais por pessoas diferentes;

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(2) A marca como sinal distintivo para identificar a fonte de proveniência dos bens ou indicação da
sua origem. A função vai para além dos produtos e chega às fontes produtivas - é assim mesmo
quando a marca é anónima (Nogueira Serens)
Toda a tutela das marcas está construída para se proteger a função de indicação de proveniência.
Sendo esta a função rainha da marca, visa-se impedir que o consumidor médio, razoavelmente
informado, atento e advertido possa ser induzido em erro sobre a proveniência dos produtos. Pra
que exista essa confusão é necessário que haja semelhança entre os produtos e semelhança sobre os
sinais usados.

2) Função Publicitária da Marca ou de reclame.


Esta função pode ter origem na publicidade dos produtos. (Selling Power) Os sinais distintivos não
são uma obra onde alguém manifesta a sua inventividade. Sem prejuízo de a marca ter uma vis
atractiva - capacidade atractiva da marca. (Merchandising)
Quanto à função publicitária, sugestiva ou de reclame, tem hoje também tutela jurídica (P.e.
Protecção da marca de prestígio são objecto de uma tutela merceologicamente ilimitada - o titular
da marca de prestígio pode impedir o registo de marca semelhante para produtos não semelhantes,
sob pena de diluição da força atractiva da marca).
Diz-se, pois, que estas rompem com o princípio da especialidade, porque a sua protecção vai para lá
do círculo de proibição comum, podendo aspirar a uma tutela para marcas semelhantes para
produtos não semelhantes. (Art. 242º CPI) Tal não é suficiente, havendo ainda que provar-se que o
terceiro está a prejudicar o prestígio da marca de prestígio; tirar partido da marca de prestígio;
prejudicar o carácter distintivo da marca de prestígio. Diz-se pois, que a sua tutela é
tendencialmente absoluta. Note-se que se as marcas fizerem percursos autónomos no mercado, não
há nenhum risco destes aqui afirmado.
Importa distinguir as marcas de prestigio das marcas notoriamente conhecidas – são aquelas que se
tornam notórias noutra ordem jurídica que não aquela onde se adquire o direito a marca, rompendo
com o princípio da territorialidade.

3) Função de Garantia da Marca


Tradicionalmente, há quem entenda que esta função não deve ser reconhecida, ou pelo menos não
deve ser reconhecida de forma autónoma – é apenas uma consequência da função distintiva,
sobretudo na parte em que indica a proveniência. Temos aqui uma posição diferente: entendemos
que a função de garantia de qualidade deve ser reconhecida, seja quanto às marcas colectivas de
certificação, seja quanto às marcas individuais. Os consumidores adquirem mais seguramente e com
maiores garantias um produto de marca do que um produto sem marca, porque há uma garantia da
qualidade dos produtos ao expor o titular da marca.
Nogueira Serens considera que esta função existe no plano socio-económico e não no plano jurídico,
ainda que existam algumas disposições legais que parecem contrariar este entendimento, como o
art. 269.º/2/b) que se refere à caducidade do registo das marcas: o registo da marca caduca se esta
se esta tornar susceptível de induzir o público em erro, designadamente quanto à qualidade do
produto. O nosso professor entende que esta norma não pode servir de apoio para justificar a
função de garantia da marca porque na verdade não passa de uma consagração do princípio da
verdade em matéria de marcas.

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No âmbito de tutela da marca e das suas funções devemos identificar dois círculos:
 Círculo de autorização: têm que ser indicados os produtos para os quais se faz o registo
da marca; fazendo-se esse registo fica-se com o direito a usar a marca para os produtos
ou serviços indicados. Indica o que o sujeito fica habilitado a permitir a terceiros.
 Círculo de proibição: O que o sujeito fica habilitado a proibir a terceiros, com base no
seu direito à marca.

Daqui não se pode concluir que a tutela dos interesses dos consumidores é objectivo central da
legislação sobre marcas, uma vez que esta serve essencialmente os interesses dos seus titulares;
porém, os interesses dos consumidores são também aqui tidos em conta e protegidos.

15.3. Relação titularidade do direito à marca - empresarialidade.

Durante muito tempo concebeu-se que só podia ser titular do direito à marca quem fosse
empresário - alguém titular de uma organização da qual decorria a possibilidade de colocar
produtos e bens no mercado. Isso hoje está quebrado; já nos anos 70 se fez um corte entre a
empresarialidade e a titularidade do direito à marca, introduzindo-se que pode ser titular de uma
marca "quem nisso tenha legítimo interesse".
Então o que se deve entender sobre interesse legítimo? Há jurisprudência comunitária que
aponta no sentido de que baste que o sujeito não esteja de má-fé. Em que casos é que é pensável que
exista um registo de má-fé que possa conduzir à nulidade do registo da marca? Por exemplo,
quando um sujeito regista uma marca adoptada por um empresário espanhol que negociava com
outro sujeito a promoção da marca em Portugal, registando-a antes que esse segundo o fizesse para
o impedir de realizar tal plano – tal demonstra a má-fé.

15.4. Aquisição do direito à marca com base no seu uso.

Antigamente, aquele que primeiramente usava uma marca, não obstante não a ter registado,
poderia opor-se ao registo que outro realizava de marca igual ou semelhante. Aqui colocava-se a
questão de saber se aquele que não se tinha oposto ao registo por dele não conhecer, podia vir a
utilizar tal como fundamento para a indicação da anulabilidade do registo.
Nogueira Serens diz que quem investe no registo e não sabe nem tem que saber que o sinal
está a ser previamente utilizado por outro sujeito, não tem de arcar com eventual anulação do
registo, caso este primeiro individuo se oponha ao registo. O professor defende, pois, uma
duopolização do direito à marca, porque, apesar do dito anteriormente, defendia ainda que o
anterior titular da marca não registada tinha o direito de continuar a usar a marca em certos termos
desde que um sujeito e outro não viessem a interferir um com o outro na utilização da marca. Tal
relacionava-se nomeadamente com a chamada preclusão por tolerância - alguém que não se opõe ao
registo de marca igual em certas condições, determina que não se pode opor depois.
Hoje, nesse caso, em vez de se admitir que quem registou o direito à marca fique com ele
respeitando a utilização desta pelo sujeito anterior prevê-se a possibilidade do sujeito que utilizava
a marca com anterioridade venha a anular o registo realizado por outro sujeito no prazo de 10 anos.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Quem adquire um direito à marca com base no uso pode fazer claudicar o direito que se adquire
como marca com base no registo. Tal é uma grande desvalorização do registo da marca.

15.5. Extinção do direito à marca.

Estão previstas em geral e especial:


• Nulidade: o registo da marca é nulo nas hipóteses prevista no art. 33.º/1, ou nos casos em que o
registo tenha sido concedido com violação do disposto no n.º 1, 4, 5 e 6 do art. 238.º (art. 265.º/1). A
nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, e a respectiva declaração tem de
ser feita por tribunal (art. 33.º/2 e 35.º/1). Temos aqui proibições absolutas para protecção da ordem
pública. Segundo o art. 36.º, a declaração de nulidade não prejudica certos efeitos.
• Anulabilidade: o registo é anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto
no art. 239.º a 242.º, como determinar o art. 266.º/1 (proibições relativas de registo). A acção de
anulação pode ser proposta pelo MP ou qualquer interessado (art. 35.º/2 e 266.º/4), no prazo de 10
anos a contar da data do despacho da concessão do registo; mas o direito de acção não prescreve se
o registo tiver sido feito de má-fé (com conhecimento da existência de proibições relativas ao registo
conhecido, art. 266.º/4). O titular da marca perde o direito de requerer a anulação se, tendo
conhecimento do facto, tiver tolerado durante um período de 5 anos consecutivos o uso de uma
marca registada posterior (art. 267.º/1).
• Caducidade: o registo da marca caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por
falta de pagamento de taxas, art. 37.º/1. Para além disto, caduca em especial nos termos dos arts.
269.º, pelas causas previstas – falta de uso sério durante 5 anos consecutivos sem justo motivo (n.º
1); se a marca se tiver transformado na designação usual no comércio do produto (n.º 2, al. a)); e se a
marca se tiver tornado deceptiva (n.º 3). A deceptividade pode ser originária ou superveniente.
• Renúncia: o titular da marca pode abdicar da propriedade que o registo lhe conferiu, art. 38.º/1 e
2. A regra é a declaração unilateral e receptícia, dirigida ao INPI. O art. 38.º/5 diz que não prejudica
os direitos averbados (os contractos de licença de exploração estão salvaguardados).

É necessário tecer algumas considerações quanto às causas de caducidade do art. 269.º/1 e 2/a).
• Art. 269.º/1:
 O uso de marca é sério quando ela assinala produtos colocados no mercado de modo estável ou
não esporádico e em quantidades significativas, mas pode também bastar-se com a sua utilização
em campanhas preparatórias.
 Questão importante é saber quando é que há justo motivo para não uso de uma marca. Entende-
se que existe justo motivo quando existam circunstâncias independentes da vontade do titular que
tal imponham, por ex., catástrofes naturais ou medidas de autoridade públicas proibindo a
produção dos respectivos produtos.
• Art. 269.º/2/a): refere-se ao fenómeno da vulgarização e reproduz o art. 12.º/2 da Directiva. Não
basta o uso generalizado de uma marca como denominação específica de produto para que o registo
possa ser declarado caduco, ou seja, a lei não perfilhou a tese da vulgarização objectiva, mas sim da
subjectiva. Isto significa que a caducidade da marca quando a sua vulgarização seja consequência
da actividade do seu titular (porque este inicia ou promove a utilização da marca como nome
comum do produto), ou da sua inactividade (porque não reage contra aqueles que iniciam ou
promovem essa utilização).

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