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Direito Comercial I
Prof. Doutor Cassiano dos Santos
Prof. Doutor Nogueira Serens
Eduardo Figueiredo
2016/2017
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Entendemos, neste curso, o direito comercial como um sector que existe como tal, isto é, que tem
autonomia substancial e não apenas formal ou didáctica. O primeiro problema que naturalmente se
coloca é o de saber a que relações se aplica essa regulamentação, no quadro geral do direito privado.
Apresentando-se o direito civil como direito das relações estabelecidas entre os cidadãos entre
si, uma vez verificado que a prática social fez surgir um corpo especial de normas que consagra
soluções distintas das previstas pelo direito civil, há que começar por determinar quais as
particulares relações entre sujeitos a que ele se aplica – é necessário delimitar o seu âmbito de
aplicação. No fundo, temos que começar a identificar as relações jurídico-privadas a que se aplica o
regime especial de direito privado a que se designa por direito comercial.
Esta tarefa pode ser iluminada pela análise da história da afirmação do direito comercial face ao
direito civil. Historicamente, afirmam-se especialidades do regime mais ou menos amplas assentes
em três critérios de delimitação no quadro geral das relações jurídico-privadas:
1) Num primeiro momento, o direito comercial surge como o direito especial que se aplica aos
comerciantes – ou melhor, nas relações jurídicas celebradas entre comerciantes (e ainda que
não se aplicasse a todos os aspectos de regime dessas relações). O direito especial visa
regular especialmente a actividade comercial em sentido próprio – a actividade de
interposição ou inter-mediação das trocas – exercida por mercadores e comerciantes,
justificando-se pelas especiais necessidades de tutela que o exercício profissional implica. O
sistema centra-se na figura do comerciante e a presença na relação de um sujeito que caiba
nessa noção Critério subjectivista de delimitação da matéria mercantil.
2) Num segundo momento, as normas de direito especial tomam como ponto de partida para
a sua aplicação determinadas características da relação estabelecida. Passa-se de uma
delimitação assente nos sujeitos da relação – subjectivismo – a uma delimitação assente na
relação em si mesma, ou melhor, nas características da relação – objectivismo. O direito
comercial já não é um direito dos comerciantes, mas sim o direito que se aplica a actos de
comércio.
3) Num terceiro momento, ensaia-se a aplicação de um outro critério. As normas especiais
aplicam-se já não aos comerciantes, e também não aos actos de comércio, mas às empresas
(comerciais) e às relações estabelecidas por estas (ou pelos seus titulares no quadro das
actividades das empresas).
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IDADE MÉDIA
A história moderna do direito comercial como ramo autónomo do direito privado iniciou-se na
Idade Média, numa altura em que a economia essencialmente autárquica deu lugar a uma
actividade económica centrada nas novas urbes, dinamizada pelas comunicações e finalizada à
obtenção de um lucro ilimitado, em que o comércio assume o papel de catalisador da economia.
O comércio torna-se a actividade dominante, baseando-se no seu dinamismo, quer nas relações
entre sujeitos, quer na invenção de mecanismos específicos ao serviço dessa actividade.
Por razões diversas, os sujeitos que se dedicam ao comércio começaram a organizar-se em
corporações, organizadas em regra por sector de actividade, e às quais pertenciam aqueles que se
dedicavam à actividade de interposição nas trocas e às actividades que giravam em torno dela, de
tal modo que, numa primeira fase, havia uma quase total identificação entre actores económicos e
os membros das corporações.
O desenvolvimento da actividade comercial e esta especial forma de associativismo determinou
o desajustamento do direito civil para regular as relações que se estabeleciam no novo contexto.
Começa, assim, a surgir no âmbito das corporações um conjunto de regras destinadas a regular a
actividade desses sujeitos. Essas regras foram-se formando a partir de usos e costumes mantidos na
prática do comércio, mas também por aplicação dos estatutos das corporações e pela formação de
jurisprudência dos seus tribunais privativos. Começa a surgir um autêntico direito comercial ou
mercantil (que se opõe ao direito civil e até ao direito legal, de origem estadual), que se destinava a
regular relações de que eram sujeitos os mercadores ou comerciantes. Este direito mercantil surgia
contra e não a partir do direito civil existente- e traduzia-se num corpo de regras próprias de origem
consuetudinária, estatutária e jurisprudencial.
Nesse contexto, o critério que decidia da aplicação do direito comercial nascente era a qualidade
dos sujeitos que intervinham numa relação – tinha portanto uma matriz subjetivista. Era a
qualidade do comerciante (enquanto membro da corporação) que desencadeava a aplicação das
novas regras – o direito comercial surgia como um direito especial e profissional.
O critério jurídico subjectivista (aplicava-se aos sujeitos comerciantes) que se elege tende a
coincidir com o critério material ou substancial (actividades económicas – comercial, ficando de fora
a agricultura e o artesanato, aos quais se aplica o direito civil).
Há que não esquecer que esta feição subjectivista do direito mercantil não se apresentava em
absoluto independente de factores objectivos: subjacente ao critério subjectivo estava já um critério
material ou objectivo. (Os membros da corporação, para poderem aceder a uma tal condição, deveriam
responder a certos requisitos, os quais pressupunham uma certa qualidade, e esta identificava-se pela
actividade que exerciam.)
Com o desenvolvimento de Estados centralizados, o direito comercial veio a ser absorvido pela
produção legislativa. Na verdade, os textos legais desse período corresponderam basicamente à
compilação e legalização do direito anterior e mantiveram a feição subjectivista-profissional.
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A dinâmica da actividade comercial nessas novas condições e a sua afirmação como centro da
actividade económica levou a profundas mutações. Essa dinâmica traduziu-se essencialmente no
alargamento subjectivo: a actividade mercantil passou a ser exercida por cada vez mais pessoas, de
tal modo que as corporações deixam de poder conter no seu seio todos esses sujeitos. Isto implica
um desfasamento entre aqueles que se dedicavam à actividade mercantil e aqueles a quem se
aplicava o direito comercial.
Essa dinâmica reflectiu-se também num alargamento objectivo (isto é, das próprias actividades
abrangidas), na medida em que a propulsão do comércio se reflectiu em necessidades ao nível da
produção, num processo que veio a ter o seu auge com as revoluções industriais – expansão que
contribuiu para a expansão do âmbito do novo direito, agora objectivista: com a superação do modo
de produção artesanal, a indústria foi entrando para o domínio do direito comercial.
Com isso, gerou-se um desfasamento entre aqueles que estavam à partida sujeitos às novas
regras especiais (membros das corporações) e aqueles que actuavam na vida económica (esses e os
novos actores não inscritos), criando-se objectivamente uma desigualdade.
Se o critério de aplicação do direito comercial era a inscrição nas corporações, então quem não
estava inscrito não podia ver a sua actuação sujeita a esse regime, ficando antes sob a alçada do
direito civil.
Neste contexto, o critério subjectivista-formal tornou-se desajustado: a realidade passou a impor
que todos os que exercessem actividades idênticas às exercidas pelos membros das corporações
ficassem sujeitos às mesmas regras e à mesma jurisdição, sob pena de isso conduzir a desigualdades
e distorções. Daqui uma solução de compromisso, assente numa ficção: formalmente, os sujeitos
nessas condições passaram a ser reputados comerciantes ocasionais e eram, a esse título,
equiparados aos membros das corporações; deste modo, o regime especial passou a poder ser-lhes
aplicado pelos tribunais consulares.
Nesta fase, o direito comercial manteve uma feição formalmente subjectivista: o que decidia a
sua aplicação era a qualidade de comerciante, seja por ele ser membro de uma corporação, seja por
se equiparar a ele. No entanto, insinuava-se um novo dado objectivo: a extensão do âmbito de
aplicação do direito comercial implicava uma consideração mais directa da materialidade, portanto
era efectivamente na identidade das actividades que residia o fundamento para a aplicação e
extensão do regime especial.
Com o Code de Commerce de 1807, subsequente à Revolução Francesa de 1789, o direito comercial
passou a demarcar-se do direito civil a partir de um critério objectivista. Face ao peso do
pensamento liberal e desenvolvimento económico da França, o objectivismo surgiu com uma feição
particularmente aguda: a aplicação do direito comercial passou a ser realizada tão só com base no
acto de comércio, bastando a presença de uma operação económica que se subsumisse na noção
legal de «acto de comércio», independentemente de se integrar ou não numa actividade (isto é, numa
sequência de actos interligados em vista de um fim determinado, com uma estrutura ou organização
subjacente), para se aplicar o direito mercantil.
Esta configuração tinha relação directa com a assunção do princípio da liberdade de exercício da
actividade económica (proclamada pela Lei Le Chapelier).
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ORLANDO DE CARVALHO fala de um “compromisso objectivista” a fuga ao objectivismo
mantém o direito comercial autónomo e permite que este aparentemente fuja ao sistema de casta, servindo
como máscara ideológica. E isto porque as normas que estão nesse Código visam o exercício dos
profissionais/mercadores e não os outros.
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FASE DO UNITARISMO
Esta aparência de igual tratamento entre sujeitos trazida pelo objectivismo teve consequências
importantes para a vida ulterior do direito mercantil como direito autónomo. O direito comercial
parte do acto de comércio, que é aquilo que está definido pela lei comercial, sendo que este define-
se a si mesmo, coincidindo o ponto de partida e de chegada. Para além disso, por esta razão, não se
funda uma contraposição substancial e segura da fronteira entre direito civil e direito comercial.
Deste modo, a partir da consagração do objectivismo no Código francês, o direito mercantil não
teve mais uma existência pacífica: foi posto em causa na sua autonomia por muitos autores, que
sustentavam a inexistência de bases e fundamento para a existência ou subsistência de um direito
comercial autónomo face ao direito civil. Há quem entenda que o direito comercial se diluiu no
direito civil, com vários dos seus institutos e mecanismos a tornarem-se de uso comum, isto é,
mesmo fora da esfera mercantil e com muitas das suas regras e soluções a cobrarem crescente
vigência em certos domínios do direito civil.
Muitas vozes defenderam a desnecessidade de um Código comercial e a integração das suas
normas num novo capítulo do Código Civil – veja-se o Código Suíço de 1907.
O objectivismo abriu assim caminho a uma corrente unitarista ou pacificadora.
Neste contexto, a reafirmação de um direito comercial autónomo só se podia realizar por via
de um regresso às origens – isto é, um regresso ao critério que justificava a existência de um cirpo
de regras distinto do direito civil: se o direito comercial era um direito dos comerciantes, sustentou-
se que deve ser nesse plano, e com correspondente campo de aplicação, que se há-de encontrar
justificação para a existência de um corpo especial de normas.
O problema pôs-se na Alemanha no século XIX, que foi um período de grande
industrialização e desenvolvimento da actividade bancária e financeira. Estes sectores supõem
necessariamente a empresa e tal como o comércio, não se bastam com o direito civil. Era necessário
um direito comercial autónomo, que regulasse simultaneamente o sector comercial e também a
indústria e o sector financeira crescentes. Existia, agora, um comerciante, ou seja, um profissional da
actividade económica que se apresentava não como aquele que estava inscrito numa corporação ou
associação, mas como aquele sujeito que exercia uma empresa mercantil que actuava num dos
sectores de actividade económica mais desenvolvida. Foi este o critério inscrito, em 1897 no HGB2.
Essa foi a primeira referência explícita à empresa para efeitos de delimitação da matéria
mercantil. A juventude da empresa como mecanismo de exercício de uma actividade económica,
não permitia, porém, a consideração dos seus aspectos organizativo e objectivo. A empresa do HGB
tinha o sujeito como primeiro referente e era compreendida como sequência de actos da qual
decorria a aquisição da qualidade de comerciante, e não se apresentava com algo objectivado e
estruturado.
Acentuava-se o perfil subjectivo da empresa, permanecendo na sombra quer o lado objectivo,
quer na sua dimensão institucional. Mesmo naquele plano, nem todas as empresas ficavam
necessariamente sujeitas ao direito comercial.
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Que, note-se exclui o comércio ocasional do âmbito de aplicação do Direito Comercial, passando este a estar
sujeito ao Código Civil.
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Só mais tarde, com Wieland e Mossa, a empresa foi apresentada directa e absolutamente como o
critério primeiro e central da delimitação do direito comercial – que se reflectiu na Holanda e no
Codice Civile Italiano. Nesta época vislumbrava-se já que a restrição estrita do direito comercial a um
direito das empresas mercantis é também fortemente limitativa e que, com isso, o direito especial se
reduz a um magro complexo de normas insuficiente para sustentar uma efectiva autonomia. Aqui
resultava uma nova vulnerabilidade às tendências unitaristas que teve como resposta o recurso a
uma noção genérica de empresa, susceptível de tornar o direito comercial como direito de todas as
empresas.
É com a afirmação da empresa como critério de delimitação da matéria mercantil que se dá um
novo passo na afirmação da autonomia do direito comercial. Essa noção de empresa deve ser
centrada na empresa tal como ela se apresenta na ponta da actividade económica – empresas que se
estruturem com base em modelos de racionalidade e organização e, assim, de autonomia similares
aos da empresa-matriz.
ORLANDO DE CARVALHO considera que esta evolução histórica do direito comercial, dotada
de sucessivas refracções e expansões se deve à sua própria natureza – é um direito bifronte ou
bidimensional. O DOUTOR CASSIANO acrescenta que a história nos prova que quando há uma
fase de desenvolvimento económico, o direito comercial se expande; em épocas de retracção, há um
encolhimento do direito comercial.
Toda esta evolução histórica tem um problema básico: demarcar as actividades humanas que
justificam e desencadeiam, em cada época, a aplicação de um regime especial destinado a regular a
actividade daqueles sujeitos que actuem em sectores mais dinâmicos e avançados do sistema
económico, regime contraposto ao direito civil. Esta análise tem de ser realizada sempre de acordo
com a configuração que cada sector ocupa num determinado momento histórico e tendo em
consideração os condicionamentos ideológicos e políticos subjacentes.
O direito teve, em cada momento, sempre condicionado pelas circunstâncias históricas, a tarefa
de encontrar um critério especificamente jurídico geral e abstracto que servisse como ponto de
partida para a demarcação do âmbito de incidência do regime especial.
Assim, ao longo da história e até ao presente, a questão da delimitação do direito comercial foi
sempre reconduzida à questão de saber se o direito mercantil se aplica só às actividades exercidas
profissionalmente, elegendo-se nesse caso como ponto de partida do sistema o critério jurídico
correspondente, o comerciante, ou se, pelo contrário, regula também as actividades não
profissionais, ou seja, ocasionais, tomando nesse caso um critério não subjectivo (o acto de
comércio).
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O DOUTOR CASSIANO fala de um corte vertical e horizontal, sendo que consoante o critério
eleito naquele plano vertical (comerciante, acto de comércio ou empresa), assim se abrange de
forma mais ou menos ampla cada sector e o conjunto de actividades económicas.
Por outro lado, cada sector de actividade económica historicamente afirmado foi sendo trazido
para o direito especial com recurso ao critério jurídico que mais se lhe adequava e que na fase
histórica se impunha também pela confluência de razões extra jurídicas.
Assim:
Na Idade Média predominava o comércio exercido pelo comerciante ou mercador inscrito nas
corporações. O corte vertical coincidia com o horizontal.
Com a Revolução Francesa, embora ainda predominasse o comércio, era agora muito mais
fluido e por pressão de factores extrínsecos, toma-se o acto de comércio como base do direito
comercial. Há um alargamento do âmbito de aplicação do direito especial, que passou a abranger
também o exercício não profissional ou ocasional: o objectivismo é o corte vertical de delimitação
mais abrangente e desestruturante, porque, nas actividades que comercializa prescinde de qualquer
referente profissional ou ligado à empresa. Trouxe o comércio em sentido económico para o
âmbito da matéria mercantil. A indústria e os serviços são também matéria sujeita ao direito
mercantil, sendo que neste âmbito as leis não puderam deixar de tornar a empresa como critério de
delimitação/inclusão – porque todo o exercício industrial e as prestações de serviços mais
avançadas necessariamente se analisam numa estrutura empresarial patente.
Numa primeira fase, a empresa ou foi compreendida como um acto ou como uma sequência de
actos ou foi tomada essencialmente no seu perfil subjectivo – remetendo também para a actividade
e para o sujeito. A consequência disto foi que, compreendida a empresa como actividade, tornou-se
por referência a empresa mercantil – e era só para essas que se impunha a sujeição a um direito
especial. O resultado final foi o de que, fora do direito comercial ficavam – como no objectivismo –
as actividades não submetidas à lógica do sistema, fosse por não serem compatível com o modo de
exercício empresarial, fosse por não estarem integradas no sistema económico dominante. O
corte vertical, quando realizado no todo ou apenas em parte através do recurso à empresa em
sentido subjectivista comportava, à partida, exclusões no plano horizontal.
Pode, assim, concluir-se que os vários critérios historicamente afirmados para a delimitação do
direito comercial face ao direito civil não se contrapõem em absoluto: não só eles correspondem a
duas faces da mesma realidade, exprimindo um as fases mais expansivas e abrangentes do sistema
económico e outros os seus momentos de retracção, mas sempre com vista a alcançar um plano
idêntico no plano horizontal; como sobretudo têm que ser vistos como critérios complementares e
susceptíveis de coexistir e concorrer, numa mesma época e ordenamento jurídico.
Em casa momento se configuram diferentemente os sectores que carecem de regulação
específica e em cada momento há sucessivas alterações no seu exercício. Por isso eles são
apreendidos pelo sistema jurídico com base em critérios distintos, que podem variar em cada
momento.
O objectivismo é o critério que serve para determinar um regime especial para o comércio em
sentido económico (intermediação das trocas) nas fases de evolução da economia em que esse era o
sector dominante; o subjectivismo e o empresarialismo foram os critérios encontrados para a
comercialização da indústria e do sector financeiro e para as prestações de serviços de ponta, e
tornaram-se critério único ou principal quando estes sectores assumiram papel principal.
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Prescinde-se do momento estritamente subjectivo à medida que a empresa se impõe como modo
de organização e exercício da actividade económica capitalista. Este processo culmina com a
generalização e universalização da empresa e homogeneização no plano funcional e organizativo da
actividade económica. Isto é, a empresa é o ponto de partida para o regime especial. Assim, o corte
vertical, eminentemente jurídico, tende a coincidir de novo com o corte horizontal ou económico.
1.4. A empresa como fundamento do regime comercial e o seu papel na delimitação face ao
direito civil – actividades económicas incluídas e sentido das exclusões. Noção de
empresa.
Tudo o que vimos até agora permite concluir que um regime alternativo ao do direito comum é
justificado historicamente e continua a explicar-se actualmente pelas especiais necessidades de
regulamentação dos sectores que em cada fase situam nas zonas mais dinâmicas e de vanguarda da
actividade económica – zonas essas que arrastam outras para a sua lógica, quer por força da
voracidade da procura do lucro, quer, de certo modo, do seu pioneirismo: veja-se o que se passa
com a comercialização das esferas culturais e desportivas, ou mais no plano jurídico, com a
empresarialização da actividade imobiliária operada com o fenómeno dos centros comerciais.
Ora, quando as actividades nesses sectores assumem ostensivamente o modo de exercício
empresarial – ou seja, quando correspondem à existência de uma empresa – é esta que passa a estar
no cerne do direito e que deve ser o ponto de partida da sua aplicação. É a empresa, coma as suas
características relevantes no plano jurídico e com os interesses que se suscitam em seu torno, que
justifica e desencadeia a aplicação do regime mercantil. E é assim que o direito positivo se apresenta
formalmente, total ou parcialmente, tomando por ponto de partida outro ou outros critérios.
Devemos, por isso, definir empresa.
ORLANDO DE CARVALHO defende que a empresa é uma realidade da vida, e não uma noção
jurídica. A empresa, antes de ser para o direito, é algo que existe na vida social. Não significa isto
que o direito não possa conformar essa realidade para lhe associar a produção de certos efeitos
jurídicos. No entanto, num plano anterior, a empresa é o que é, e não o que a lei identifica como tal.
No entanto, não se olvide que não se intenta aceder a uma pura noção económica de empresa,
mas à empresa enquanto realidade juridicamente relevante. Ora, neste sentido, há que reter que
aquilo que a empresa é para o direito não pode ser mais do que aquilo que é a empresa para a
realidade social (ainda que a lei possa equiparar, mais ou menos extensamente, outras realidades à
empresa). Sendo assim, o ponto central da determinação daquilo que é empresa deve ser a
específica conformação que o OJ mercantil dela faz, explicita ou implicitamente.
No DC português há uma disposição que faz a qualificação como comerciais de certas empresas
– ver art. 230º CCP. Este preceito, em bom rigor, apenas identifica as empresas comerciais, tomando
como pressuposto aquilo que é a empresa. Não obstante, a partir do art. 230º CCP podem ser
extraídos alguns dados que ajudam à caracterização da empresa no Código Comercial português.
As empresas que são consideradas comerciais são as que se propuseram exercer certas
actividades. É patente que a comercialização das empresas se dá em função de intentos e de
actividades. Qual o significado disto?
A referência directa à empresa como pressuposto e veículo para a comercialização de sectores
ou actividades económicas não pode deixar de ser relevante. Na terminologia da época convocava
essencialmente o seu perfil subjectivo: a empresa como actividade de um sujeito, composta por
uma sequência de actos e exercida profissionalmente.
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Mas o art. 230º permite ir mais além na caracterização da empresa. É significativo que o
legislador tenha identificado as empresas que são qualificadas como comerciais tomando como plus
a sua inserção num dos vários sectores ou actividades. Ora as actividades enumeradas no art. 230º
correspondiam, para la dos domínios já consagrados noutras disposições do código (comércio,
banca e seguros), aos sectores mais avançados e estruturados da actividade económica da época:
sectores com elevado grau de estruturação e organização. Ao tomá-los como referente da empresa
para efeitos de comercialização, a lei estava implicitamente a considerar a dimensão estrutural, a
organização, que já era patente à época.
O art. 230º revela ainda uma outra dimensão da empresa. O preceito refere-se explicitamente ás
empresas “que se propuserem” exercer certas actividades. Propósito, neste contexto, é o mesmo que
objectivo, intuito, fim. Os intuitos são sempre de pessoas humanas e ultrapassam estruturas ou
organizações. O art. 230º pressupõe a empresa como essa estrutura dotada de intuitos próprios – e
portanto, como um sujeito com identidade própria (distinta da das pessoas humanas que a criam ou
nela intervêm) no tráfico, e como uma estrutura em que há um sujeito que define os seus fins e
que controla a actividade em que ela se analisa.
O art. 230º possui ainda um importante dado para a caracterização da empresa no plano jurídico
– tratam-se das exclusões do âmbito de aplicação do preceito. Sentido das exclusões:
Inclui Exclui
230º/1 CC Indústria transformadora, Fabricação ou manufactura de produtos
incluindo a manufactureira agrícolas acessórios da exploração agrícola;
artesanato.
230º/2 CC Empresas de fornecimentos de Actividade de fornecimento directo de
bens produtos agrícolas – proprietário cou
explorador rural que fizer fornecimentos a
terceiros de produtos agrícolas por si
produzidos.
230º/5 CC Editoras A edição, publicação ou vendas directas
pelo autor.
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Note-se que mesmo nos sectores excluídos, a introdução do exercício empresarial permite,
em certa medida, a comercialização: é o que se passa na agricultura e em certas franjas de prestações
tipicamente liberais. Destas exclusões surge outra nota da empresa: as empresas caracterizam-se
pela autonomia e analisa-se numa estrutura de meios com densidade e organização caracterizadas
pela complexidade, que a dotam de auto-suficiência produtiva, justamente porque disso depende a
dessubjetivação implicada na autonomia.
De todos os dados extraídos até agora, podemos concluir que a empresa se caracteriza pelas
seguintes notas:
1) A empresa é uma estrutura complexa de pessoas, bens, direitos e outros valores, na qual
assumem hoje particular importância a ideia organizatória e a estratégia definidas pelo
empresário e a forma como ele gere a intervenção no mercado;
2) Essa estrutura desenvolve uma actividade que se analisa num processo de produção em
sentido amplo, no qual se produz um resultado que consiste num valor económico novo
(acrescentado) susceptível de troca no mercado – o que abrange desde a transformação
industrial até ao fornecimento de serviços, passando pela actividade de intermediação nas
trocas, pela agricultura ou pelas pescas, mas também pela prestação de serviços nas áreas
desportivas, artísticas ou culturais;
3) De entre os meios colocados pelo sujeito na estrutura, avulta particularmente o capital, o
qual corresponde ao investimento realizado por ele ou que ele mobilizou.
4) Esse processo é caracterizado pela autonomia funcional, por o seu resultado decorrer do
próprio processo no seu conjunto e não defender absorventemente de um ou alguns
elementos nele integrados ou participantes, nem, tão pouco, de factores extrínsecos.
5) A estrutura actua tendo em vista a autonomia financeira, isto é, a criação de condições para a
auto-reprodução do processo e para a remuneração dos investimentos, visando um ganho
que normalmente consiste num lucro.
6) A estrutura apresenta-se no tráfico e no mercado como uma entidade própria, surgindo
como um verdadeiro actor ou sujeito económico que comunica com os demais e que deles se
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distingue – sem que isto signifique que seja necessária ou sequer, naturalmente, um sujeito
em sentido jurídico.
Uma outra conclusão a retirar do sentido das inclusões e exclusões é que a empresa é a que se
situa nos sectores de ponta do sistema económico. Tais características exprimem os três perfis com
que a empresa se apresenta na realidade e nas leis:
1) Perfil Subjectivo Actividade ou conjunto de actividades do sujeito, mas devendo-se pôr
em especial ênfase a gestão realizada pelo empresário.
2) Perfil Objectivo Conjunto de meios detidos pelo sujeito.
3) Perfil Institucional ou Corporativo Existência como entidade no mercado.
Assim, assistimos hoje à empresarialização de todos os sectores da actividade económica. Na
actualidade, a empresa assume as características especificas da empresa comercial de tal modo que
a empresa e a empresa comercial se tornam sinónimos.
Tudo isto torna a empresa um critério apto para, no plano jurídico, delimitar o campo de
aplicação das normas jurídicas ou mesmo de um sector de regulamentação. Assim, o corte vertical
identifica-se com o corte horizontal, e os sectores que podem ser trazidos para um direito especial
com apelo ao critério jurídico da empresa coincidem com a totalidade dos sectores capitalistas da
actividade económica.
O direito comercial é hoje o direito especial da actividade económica do sistema capitalista, a
qual juridicamente pode ser apreendida a partir da existência de uma empresa.
Identificado o papel da empresa no direito comercial, importa identificar quais os interesses que
estão presentes no tráfico e que correspondem aos interesses do sistema empresarial no seu todo.
Da análise que vamos realizar importa ter presente que esses interesses não são estáticos e nãos e
reflectem na regulamentação, ao longo da história do direito comercial, de forma unívoca: em cada
fase novos interesses se vão revelando, já presentes, vão-se moldando em novos termos. Estes
interesses reflectem as verdadeiras características centrais do direito comercial. São eles:
Tutela do crédito, facilitando à empresa a sua obtenção pela via da tutela daquele que
lhe concede o crédito. O fácil acesso ao crédito do fornecedor e dos financiadores
directos é essencial à vida da generalidade das empresas. Deve o Direito Comercial tem
um conjunto de mecanismos que protejam mais fortemente o credor da empresa; o
concreto titular da empresa – devedor por força de um acto de comércio – fica numa
posição mais difícil, mas as empresas em geral acederão mais facilmente ao crédito. Num
sistema objectivista, a tutela do crédito faz-se ao nível de quem dá crédito àqueles que
praticam actos mercantis e não apenas à empresa. A tutela faz-se principalmente pelo
alargamento maximizado do âmbito subjectivo da responsabilidade (ver art. 100º
CCom.; art. 15º CCom., conjugado com art. 1691º/d CC). Em segunda linha, a tutela faz-
se através do estabelecimento de regras que asseguram o cumprimento por parte do
devedor. (p.e. aval, nas letras e livranças; falência)
Promoção da celeridade e complexização dos negócios. Muitas vezes realizada em
massa, a celebração de negócios deve ser desformalizada ou simplificada. Vale, assim o
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Depois de analisar toda a evolução histórica do direito comercial, chegamos à conclusão de que
este se apresenta histórica e actualmente como um sector necessário da regulamentação da
actividade daqueles sujeitos que intervêm nas zonas mais dinâmicas da actividade económica.
Como essa intervenção implica a empresa, será em torno dela que se estrutura o direito comercial.
Assim, qualquer que seja o critério utilizado para delimitação do Direito Comercial – e que se
traduz na sua extensão – é na empresa e nos seus interesses que se encontra a explicação e o
fundamento último para as soluções de regime.
É, portanto, na sua dimensão profissional, estrutura na e pela empresa – e não, pois, num
profissionalismo assente numa pura perspectiva dinâmica ou subjectiva – que radica a essência do
direito mercantil.
No entanto, viu-se já que a empresa é um mecanismo dinâmico e tendencialmente
expansionista. Neste contexto, nos casos em que as soluções que o regime das empresas consagra
não atendem tanto à circunstância de ser possível a sua utilização fora da empresa, mas antes e
fundamentalmente, aos interesses que são postos quando a sua utilização se faz num contexto
empresarial, não há razão para os afastar do direito comercial.
Assim vistas as coisas, a natureza profunda do direito comercial é ser um direito especial e
bifronte (ORLANDO DE CARVALHO), simultaneamente objectivo e empresarial: é um direito que
regula mecanismos empresariais e outros que, engendrados para servir a empresa, são com mais
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frequência dispostos para utilização mais ampla, mas que continuam a servir os interesses da
empresa.
O actual direito comercial é, assim, por natureza um direito inegavelmente objectivo. Todavia
este objectivismo assenta no papel da empresa e dos seus interesses típicos, assumindo essa
dimensão, mas centrando-se nos mecanismos e nos interesses que o seu regime serve,
independentemente do concreto uso. Esta dimensão objectiva corresponde à tendência das zonas
preferenciais da economia para a expensão e para a conquista de novos espaços às zonas civis.
Sendo assim, o direito comercial tem um conteúdo histórico e mutável, sensível ás mutações da
própria actividade económica e à dinâmica da empresa.
Ora, a empresa é o critério real subjacente ao sistema, que pontualmente aflora sem ser sempre
assumido autonomamente e que, no plano prospectivo, é o critério que deve valer na compreensão
do sistema legalmente eleito. Com isto determina-se um critério para compreender o sentido e
alcance do direito comercial e da chamada comunização de mecanismos e institutos – distinguindo-
se os casos em que se mantém o selo comercial daqueles em que a ela corresponde uma
descaracterização - e um regresso ao direito civil. Mas ganha-se também uma consciência do papel
da empresa na explicação do direito positivo e até na delimitação de regime nela instituído. Por
exemplo, toma-se consciência da simbiose entre faixas fundamentais do direito comercial e o direito
do consumidor.
A qualificação de uma relação jurídica como mercantil depende de normas qualificadoras, que
são as normas que estabelecem os pressupostos cuja verificação vai desencadear a aplicação do
direito mercantil.
A identificação das fontes onde consta esse regime especial de natureza mercantil, toma por
base a própria qualificação legal ou uma similitude no plano das características do regime neles
inseridos.
Assim, o diploma central do direito comercial português é o Código Comercial de 1888.
Inicialmente, a lei comercial e o Código comercial tendiam a coincidir, o que se reflecte no art. 1º do
CCom. Ora, a coincidência foi desaparecendo com os tempos, à medida que iam surgindo outros
diplomas legais que integram o direito comercial e são, portanto, suas fontes. Ex: CSC, CPI, CVM,
Leis uniformes relativas a letras e livranças, CRC, CIRE, etc…
Todos estes diplomas devem ser considerados leis comerciais, ainda que o CCom. continue a
ser a lei comercial central, a partir da qual se delimitada e caracteriza o direito mercantil. E isto,
ainda que cada diploma contenha ou possa conter, regras próprias quanto ao seu âmbito de
aplicação: o critério do acto de comércio, eleito pelo legislador em 1888, é o ponto de partida do
nosso direito mercantil, e o seu critério caracterizante, mas não é critério universal da lei comercial
portuguesa.
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A primeira parte consagra como actos de comércio aqueles que estão previstos no
Código. Revela para efeito de sabermos o que é em geral acto de comércio.
A segunda parte comercializa certos contractos e obrigações dos comerciantes. Os actos
que retiram deste preceito a sua qualificação como comerciais pressupõem a existência
de um comerciante, de acordo com o art. 13º CCom.
Atentaremos na primeira parte do artigo, que remete para o elenco que consta do próprio
Código, o qual funciona como uma espécie de lista implícita. Serão, pois, actos de comércio todos
aqueles que têm algum aspecto do seu regime regulado no Código Comercial (em, em geral, na lei
comercial) e que são explícita ou implicitamente aí previstos, de forma completa ou incompleta:
basta que seja uma regulação substantiva (e não meramente adjectiva); não é necessário que seja
explícita (pode ser feita por remissão, como o caso do art. 363º CCom.); nem é necessária a
existência de uma regulamentação específica para aquele acto: “especialmente regulada” significa
tão só que a previsão no Código importe a aplicação do regime especial do próprio Código, e não
um regime especial daquele acto.
A própria previsão não tem que ser completa – basta um aditamento ao tipo conhecido do
direito civil das notas específicas de que depende a sua qualificação como comercial. (ex: compra e
venda comercial – que se distingue da civil pelo “intuito” de revenda que preside a cada uma das
duas declarações em que se decompõe.)
Assim, concluímos que os actos de comércio são quase sempre contractos. Mas a lei mercantil
também prevê mecanismos ou institutos que são regulados como tais – é o caso da letra de câmbio,
firma, marca, sociedade, etc… Nestes casos, é o próprio mecanismo ou instituto, e não o acto que
lhe dá origem ou as declarações singulares que o integram, que é qualificado como comercial –
excepto se o acto ou as declarações forem eles próprios negócios unilaterais ou contractos e tiverem
um tratamento jurídico diferenciado, caso em que são também eles actos de comércio.
Em todo caso, para haver acto de comércio é necessário que a previsão envolva que os regimes
especial e geral se devam aplicar directamente, e não como consequência de uma qualificação
anterior de outro acto de comércio – assim, não podem ser qualificados como actos mercantis os
simples actos jurídicos societários, porque os efeitos de regime que a lei lhes associa dependem da
prévia qualificação como sociedade comercial.
Além destes, são actos de comércios os facto ilícitos previstos na lei comercial. São ainda matéria
mercantil, embora não actos de comércio em sentido próprio, os factos jurídicos voluntários a que a
lei associa efeitos jurídicos especiais e que geram obrigações mercantis, bem como os factos jurídicos
não voluntários. Estes, com os actos de comércio, formam os factos jurídicos mercantis.
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Quando o artigo diz “especialmente regulado”, já vimos que basta que o acto esteja previsto e
que se lhe aplique o regime geral das relações mercantis. Mas como interpretar a expressão “neste
Código”?
FERRER CORREIA e VASCO LOBO XAVIER consideram que a expressão integra não só o
Código Comercial, mas sim toda a lei comercial.
1) Decorre dos primeiros artigos do CCom. a identificação entre o Código e a lei comercial. Isto
deve-se a que inicialmente o código abrangia praticamente todas as matérias mercantis, mas
com o tempo tal deixou de acontecer, porque muitas matérias do código foram objecto de
nova regulação que substitui a existente, ou porque surgiram novas matérias carentes de
regulação e que foram tratadas em diplomas avulsos. Assim, a interpretação literal do
preceito não tem sentido.
2) Não se pode invocar uma vontade do legislador histórico em contrário, decorrente da
declaração, constante do art. 4º da Carta de Lei que aprova o CCom., segundo a qual a
substituição, supressão ou aditamento à matéria contida no Código deveria nele ser
incluído. Esta vontade é historicamente inverosímil Sendo que nada permite concluir que o
legislador queria tornar rígido o CCom., no sentido de ele se identificar sempre e
necessariamente com toda a lei comercial.
No entanto, a referência ao Código tem evidentemente um alcance na determinação do que se
deve entender, para efeitos do art. 2º, como lei comercial. É com referência ao Código Comercial que
se deve fixar o âmbito da lei comercial. Ora, importa afirmar que nem a circunstância de o
legislador subsequente ao Código ter optado por não integrar no Código uma certa matéria
significativa, sem mais, que ele se torna ou é não comercial; nem a simples circunstância de a ter
inserido no CCom. que a torna, sem mais, real e materialmente comercial, no sentido de estar
presente no novo regime um conteúdo regulativo similar ao do Código – ainda que, neste caso, a
integração formal deva relevar para efeitos do art. 2º. Em suma, não é a decisão do legislador de
integrar ou não uma matéria no Código que decide da sua natureza como lei comercial.
Partindo daqui, podíamos pensar que lei comercial era toda aquela que se autoqualifica como
comercial. Ora, CASSIANO DOS SANTOS considera que a auto-qualificação não deve ser critério
relevante e adequado da comercialidade de uma lei.
1) Desde logo, a lei não se qualifica, por regra, como comercial ou como civil. Aliás, não se
deve confundir auto-qualificação de uma lei como lei comercial com a qualificação ulterior
de um acto, mecanismo ou empresa como mercantil, por outro diploma que não o CCom.:
seja directamente (art. 3º/1 DL 148/90) seja indirectamente (5º/1 do DL 148/90).
2) Por outro lado, não há auto-qualificação quando simplesmente existem menções feitas numa
lei, seja em sede da sua própria designação ou na designação do mecanismo ou instituto que
regula, às palavras comércio, indústria ou outras similares. (p.e. RAU não era lei comercial,
tal como o contrato não era acto de comércio, pelo simples facto de que a lei o designasse
como “arrendamento para comércio ou indústria”.)
a. Embora tal também não significa que o arrendamento destinado ao comércio
previsto no CC não possa ser qualificado como lei comercial: serão comerciais as
soluções que se afastarem das soluções gerais do arrendamento civil para tutelar os
interesses empresariais. E isto sem prejuízo de, perante as alterações que se vêm
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introduzindo, ser cada vez menos assim, e estarmos perante matéria basicamente
civil.
3.2. Alguns actos de comércio regulados fora do Código Comercial: o trespasse (art. 1112º
CC), o contrato de locação financeira (DL 178/86) e o contrato de associação em
participação (DL 231/81)
TRESPASSE
Ainda que formalmente esteja no CC (art. 1112º), é uma norma comercial. O art. 1112º, em rigor,
só regula uma questão que emerge do trespasse: o da transmissão da posição de arrendatário por
ocasião do trespasse ou transmissão do estabelecimento comercial, quando o titular deste é
arrendatário do imóvel em que o estabelecimento funciona e trespassante e trespassário querem que
este, com a aquisição da empresa, seja emitido na posição de arrendatário. Neste regime, o CC faz
prevalecer o interesse específico do titular do estabelecimento comercial ou empresa
(arrendatário/contraente), em ceder a sua posição contratual de arrendatário sem necessidade de
consentimento do proprietário/senhorio (e outro contraente) – desde que o faça com a transmissão
da empresa.
Por esta via prevalece o interesse do titular da empresa em assim poder mobilizar o seu
investimento e em ver facilitada a alienação da empresa; no caso em que esta funciona em prédio
arrendado, esse interesse contrapõe-se ao interesse civil do senhorio, ao qual a contraposição de
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ASSOCIAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
É um acto de comércio, já que o DL 231/81 é claramente uma lei mercantil. Vejamos as razões
que sustentam esta afirmação:
Este é um contrato pelo qual um sujeito (associado) se associa a actividade económica de outro
(associante), mediante uma contribuição de natureza patrimonial, que presta logo no momento da
celebração do contrato ou que se obriga logo a prestar (normalmente é uma quantia de dinheiro,
mas também pode ser direitos sobre bens; a prestação pode ser recíproca), ficando investido numa
participação nos lucros do associante. (a participação pode ser nos lucros e nas perdas) – e sabendo
que a participação nos lucros da actividade se mede pelo investimento do associado, que é sempre
avaliado em dinheiro e que há lucro quando há excedente relativamente ao investimento inicial de
ambos, que se manteve e foi incrementado. A identificação do contrato deriva dos arts. 21º/1/2, 24º
e 22º DL 231/81.
1) No regime actual, este contrato estendeu-se a toda a actividade económica (art. 21º),
continuando, não obstante, a pressupor uma empresa do lado do associante (art. 26º/1/b/c).
Ora, o direito comercial tende a ver o seu âmbito de aplicação definido pela presença de
uma empresa.
2) O seu regime continua a revelar a opção pela tutela do associado como sujeito que contrata
com a empresa e se coloca como uma espécie de credor especial dela e, ainda, pela tutela da
continuidade da empresa: confiam-se os arts. 25º/4, 26º/1, 30º/3 e 28º/2 do DL. A tutela do
interesse assinalado tem algumas expressões importantes. Destaca-se a este propósito o
regime do art. 28º/2 do diploma em análise.
Art. 28º/2 – É relativo aos efeitos sobre o contrato da morte do associado. O princípio é que a
morte do associado não extingue a associação, a qual continuará em princípio com os herdeiros. A
manutenção do contrato pode interessar à empresa, permitindo-lhe manter estabilidade, e é este o
valor que se tutela. No entanto, esta tutela da continuidade é temperada com a ponderação dos
interesses do cônjuge e dos herdeiros do associado, aos quais se permite a denúncia do contrato nos
noventa dias seguintes ao falecimento. É ainda de sublinhar que a cessação do contrato por via de
denúncia especial, nos termos do art. 28º/2 se aplica a todos os contractos, com excepção dos
previstos no nº3, nos quais há caducidade com extinção automática. Quando há obrigações
subsistentes mas não opera o número 3, a denúncia não extingue as obrigações que se vençam até
ao momento em que esta produz efeitos.
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Art. 28º/3 -Há outro aspecto em que os interesses do cônjuge e dos sucessores do associado
prevalecem absolutamente, e isto sucede naquele caso em que a empresa tem maior vantagem na
subsistência do contrato: se o associado assumiu uma responsabilidade para além da entrada a que
se obrigou, ilimitada ou não (ver art. 25º/1/4 DL), o contrato extingue-se automaticamente, isto é,
caduca decorridos noventa dias sobre o falecimento do associado, sem qualquer necessidade de
actuação por parte dos seus sucessores (art. 28º/3). Registe-se, no entanto, que mesmo essa cessação
não é imediata, defendendo a empresa e permitindo que o contrato subsista enquanto procura
soluções.
Mas o campo de aplicação do art. 28º/3 não é assim tão amplo, não operando a caducidade se o
associado se obrigou a uma certa entrega mas não realizou ainda integralmente a prestação por ela
ter sido diferida, nem no caso de mora ou incumprimento por causa do associado – neste caso,
apesar das responsabilidade do associado ser superior à contribuição por ele efectuada, tal deve-se
a uma violação do contrato, do qual os sucessores não devem poder sair por simples exoneração da
obrigação – têm de cumprir ou indemnizar nos termos gerais.
É ainda de reafirmar que o contrato subsiste durante os 90 dias de pré-aviso, vencendo-se todas
as obrigações cujo prazo se completa nessa fase e podendo a empresa exigir o seu cumprimento.
Art. 23º/1 – Prevê o regime de solidariedade, ou seja, quando à empresa se associam dois ou
mais associados, não se presume que os créditos e débitos para estes decorrentes do contrato sejam
solidários. Isto é assim, mas não se trata de um regime distinto daquele previsto no art. 100º CCom.
quanto à solidariedade das obrigações mercantis. Este artigo tutela o credor, quando este dá crédito
à empresa que actua em conjunto com outra, onerando a posição de cada empresa, pois qualquer
um dos devedores responde por toda a dívida. Ora, no caso deste contrato, a empresa está do lado
do associante, não sendo o associado mais do que um investidor nela, que se torna credor, pelo que
a comercialidade do acto de associação se verifica pelo lado da empresa associante: o associado
pode ser devedor da empresa com outro, e não responde solidariamente, (art. 22/1º DL), num claro
beneficio para os devedores, que visa tornar mais fácil o acesso ao crédito por parte da empresa.
O associado pode ser também credor da empresa com outro associado, sendo que o art. 24º
também não prevê a solidariedade de credores, pelo que cada um deles pode reclamar apenas a sua
parte e o devedor não se exonera com o pagamento total a qualquer dos credores.
É de concluir que, mesmo sem ao rt. 22º/1, esses créditos e débitos já não cairiam no âmbito de
aplicação do art. 100º, do mesmo modo que a disposição do art. 22º não contraria a ratio que subjaz
ao art. 100º e que é a de facilitar o acesso à empresa ao crédito.
3.3. Conclusão geral: sectores comercializados pelos actos explicitamente previstos na lei.
O problema das indústrias, das (outras) prestações de serviços e de outros sectores.
O CCom. prevê e regula os actos centrais da actividade de interposição nas trocas. (art.
463º, para a compra e venda e 480º para a troca) e os contractos mais significativos que se
situam no coração da actividade económica – são actos objectivos de comércio.
São objectivamente mercantis os actos previstos nas leis comerciais, como:
o Contractos relativos à estruturação da actividade da empresa (agência,
arrendamento, etc…)
o Prestação de serviços financeiros ou bancários
o Contrato de transporte
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O art. 230º prescreve literalmente, que são comerciais as empresas que enumera e que, nos
termos actuais, mas respeitando a letra da lei sempre que isto puder ter significado interpretativo,
são as que exercem uma das seguintes actividades:
1) Indústria transformadora (nº1)
2) Fornecimento de géneros mediante preço convencionado (nº2)
3) Agenciamento de negócios de leilões “por conta de outrem” e “mediante salário” (nº3)
4) Exploração de espectáculos públicos (nº4)
5) Edição e publicação de obras científicas, literárias ou artísticas (nº5)
6) Construção civil e empreitada de casas quando com materiais suministrados pelo
empresário (art. 6º)
7) Transportes por água ou terra (nº7)
Os parágrafos do artigo excluem dos seus números algumas actividades ou sectores, a saber:
As explorações industriais ou manufactureiras conexas ou acessórias de exploração
agrícola, quando explorados pelo agricultor e nelas se transformam ou preparam apenas
produtos da exploração agrícola, não entram no nº1.
Oficina de artesanato não é reputada como abrangida pelo nº1.
A exploração agrícola que fizer fornecimento de produtos seus não está incluída no nº2.
A edição, publicação ou vendas pelo próprio autor não se consideram uma empresa
prevista no nº5.
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Quando dois ou mais sujeitos elegem como objectivo ou fim comum um determinado empreendimento e
depois comprometem-se a ambos contribuíres para a realização daquele empreendimento. Cada um se obriga
pessoalmente a realizar uma prestação que é instrumental à realização do fim comum. As prestações de cada
um, todas somadas e articuladas, resultam no empreendimento comum.
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O art. 230º qualifica como comerciais certas empresas, que por sua vez se qualificam pela
actividade que exercem. A sua hipótese assenta manifestamente na existência de uma empresa:
enumerando uma série de actividades ou sectores, o Código pressupõe, para eu sejam comerciais,
que elas sejam exercidas no quadro de empresas. O art. 230º tem como hipótese a existência de uma
empresa que exerce uma das actividades nele previstas e como estatuição que essas empresas são
reputadas como comerciais. Não obstante, ainda que a sua letra seja clara que o primeiro efeito
deste artigo é estabelecer que determinadas empresas são comerciais, tal não obsta a que este tenha
um alcance mais amplo e a que dele se retire outro efeito ou sentido para lá deste.
Devemos analisar a hipótese da norma, começando por indagar qual a relação empresa e
actividade estabelecida por este artigo.
Numa norma legal, a previsão e estatuição não são dissociáveis: assim, actividades e empresas,
de um lado, e comercialidade, do outro, têm necessariamente uma especial relação. Cada uma das
actividades enumeradas no art. 230º conforma-se de uma determinada forma, que é a empresa, e
esta, por exercer uma dessas actividades, assume uma certa configuração e justifica a qualificação
como mercantil. Tal significa que a actividade sem empresa não acede à comercialidade, sendo
apenas um elemento caracterizante da própria empresa.
Assim, neste artigo, o legislador comercializou o tipo de empresas que tinham peso na realidade
económica do nosso país no séc. XIX. Sendo, assim, no art. 230º é a empresa que é determinante, e a
enumeração das actividades corresponde simplesmente ao elenco disponível à época das empresas
mais relevantes no sistema económico. Pode, pois, dizer-se que o elenco do art. 230º não é fechado
ou taxativo, ainda que não possa ser considerado meramente exemplificativo: trata-se de uma
enumeração positiva ou referencial, na medida em que apresenta, através dos casos abrangidos, a
qualidade a que devem obedecer as empresas para poderem incorrer na estatuição.
O art. 230º traz para a esfera da comercialidade todas as empresas com um certo nível de
organização, autonomia e racionalidade. São, portanto, consideradas mercantis todas as empresas
análogas ás explicitadas no artigo, isto é, que sejam exercidas em modo empresarial e alcancem uma
estruturação idêntica à que o legislador vislumbrava nessas outras. Tal permite qualificar como
comercial, a empresa que se situa em sectores novos de actividade económica, de desenvolvimento
em novos moldes de actividade já existente ou mesmo de uma actividade contemporânea do
Código e não especificada no art. 230º. Desde que atinjam um grau idêntico de estruturação e de
organização, todas elas são análogas às previstas no Código e são, por isso, também comerciais.
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Há quem entenda que o art. 230º é o veículo que o legislador encontrou para comercializar actos
nos sectores em que a actuação empresarial é praticamente o único modo de actuar e não há actos
isolados ou que eles não têm relevo prático. Se o alcance da disposição fosse simplesmente
comercializar empresas, teríamos que concluir que o direito comercial instituído pelo Código
Comercial seria, a ser assim, um direito comercial configurado como um sistema misto, em aprte
assente nos actos, para o comércio em sentido económico, e noutra parte assente na empresa, para a
indústria, construção civil e demais sectores abrangidos pelo art. 230º.
Ora, tal, contraria o disposto no art. 1º e 2º do CCom., a sistematização do código e os seus
títulos, bem como os próprios dados fornecidos pela comparação com outros códigos e pelo
enquadramento na doutrina na época:
Podemos dizer que, a ter querido criar tal dicotomia, o legislador podia ter sido explícito
no art. 1º, num dos artigos seguintes, ou no próprio art. 230º. Ora tal não acontece,
porque os primeiros artigos são claros no sentido objectivista seguido pelo legislador.
Para além do mais, o Código não tem qualquer referência à empresa para efeitos de
regime em qualquer plano – baseia-se em actos e não em empresas.
E seria historicamente improvável que o empresarialismo tenha surgido em Portugal
antes do subjectivismo alemão, tendo em consideração o decurso da história.
Há, portanto, uma relação entre o art. 230º e o acto de comércio, enquanto critério assumido pelo
legislador mercantil para a delimitação do direito especial. Não é, contudo, a própria empresa que é
um acto de comércio. Tal permite-nos concluir que o art. 230º tem um sentido ou alcance que vai
para lá da sua letra e do alcance imediato ou primário que ela revela: o preceito não se limita a
qualificar empresas como comerciais, e dele resulta, a mais disso, uma relação entre a empresa
(qualificada como comercial) e os actos de comércio.
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Ora, qual é essa relação? Que actos são comerciais pelo art. 230º sabido que não é propriamente
a empresa que é um acto?
O art. 230º deve ser apreciado à luz do sistema adoptado, pelo diploma em que se insere e da
própria sistemática do Código:
O Código é fiel à linha do objectivismo tradicional, para o qual o recurso aos actos de
comércio não exclui a referência à empresa.
A relação entre empresa e acto de comércio é patente na inserção sistemático doa rt…
230º no título IV do Livro Segundo, onde se contém o elenco dos actos constantes do
Código.
Nas permite supor que o art. 230º se afastou do sistema geral do Código assente em actos
de comércio.
Por outro lado, não se vê que seja a própria empresa a ser um acto de comércio: não é a
empresa que é um acto, mas sim os contractos e mecanismos em que a sua actividade
consiste.
Isto ponderado deve entender-se que a norma tem por objectivo qualificar como actos
objectivamente mercantis os actos em que se analisa a actividade das empresas nela elencadas.
Esses actos são, nessas actividades, os que são correspondentes aos actos centrais da actividade
propriamente dira e que conferem essencialidade mercantil à empresa – os que estão na sua base e
permitem identificar uma actividade, mas também todos os demais actos que se integram nessa
actividade. A lei não restringe a comercialidade àqueles e não se vislumbra nenhuma razão para
que todos os actos praticados no quadro de uma empresa não sejam, sem necessidade de mais
requisitos, actos comerciais.
A referência à empresa no art. 230º explica-se pela circunstância de o legislador ter assumido,
nestas actividades que são distintas pela sua natureza, alguma especificidade na própria
qualificação como mercantil – toma como pressuposto especifico da comercialidade objectiva de
actos, a existência de uma empresa.
O legislador conferiu relevo ao modo por que se exerce a actividade e (implicitamente) à
profissionalidade. O art. 230º toma como comerciais os actos que se integram na actividade da
empresa, embora seja importante registar que tal supõe a prova efectiva da integração do acto na
empresa, ao contrário do que sucede co o art. 2º/2ª parte. Aqueles relativamente aos quais não se
faz a tal prova serão eventualmente também susceptíveis de qualificação como comerciais na
medida em que preencham os requisitos de comercialidade subjectiva previstos na 2ª parte do art.
2º. Os titulares das empresas comerciais (previstas pelo art. 230º) são sempre comerciantes pelo art.
13º/1.
O art. 230º não se sobrepõe, mas antes se harmoniza, com os dois preceitos centrais do sistema
mercantil subjectivista – art. 2º e 13º CCom. Ele tem apenas relevo autónomo para qualificar as
empresas: os actos que sejam praticados no exercício da empresa são sempre comerciais pela
conjugação do preceito com o art. 2º/1ª parte, e os titulares da empresa serão comerciantes na
medida em que a empresa é mercantil e, consequentemente, os actos em que se analisa a sua
actividade são comerciais, preenchendo eles então, sem mais, os pressupostos do art. 13º/1 CCom.
Não há, assim comerciante sem exercício de actos de comércio, mas o art. 230º pressupõe logo a sua
profissionalidade. A esta luz, é necessário que se exerça efectivamente a empresa mercantil, pois só
assim pratica actos de comércio. Não há, pois, comerciantes por intenção ou escopo, mas apenas por
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se verificar uma certa materialidade ou realidade (a existência de uma empresa e o seu exercício
efectivo).
Cabe uma última precisão. Os actos em que a actividade da empresa se analisa não são apenas
os actos constitutivos da actividade, isto é, aqueles que são praticados reiteradamente e interligados
constituem a actividade e são a base da empresa. Essa actividade é também integrada por actos
preparatórios, pelos actos instituidores e em geral por todos os actos organizatórios da actividade
da empresa. Em suma, todos os actos que definem o modo como a empresa actua e que estruturam
a sua organização.
Todos eles recebem a comercialidade como actos do art. 230º. E esta comercialização é
autónoma: sendo comerciais as empresas, são comerciais quer os actos constitutivos quer os actos
organizatórios, ainda que um destes grupos ou actos já seja comercializado por outra via (norma).
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A elas junta-se o exercício de profissões liberais, que também não está incluído no Direito Comercial.
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No entanto, tal não impede que se abranja a agricultura quando exercida empresarialmente, na
esfera da comercialidade – Só assim pode caber no art. 230º, directamente ou por analogia. Nestas
hipóteses, havendo empresa, ela é comercial por ser análoga às previstas no art. 230º.
As explorações avícolas, suiniculturas e produção animal em geral, que hoje são exercidas
empresarialmente, estão naturalmente dentro e nem se coloca essa questão.
Em suma: a empresa agrícola é empresa comercial, pelo art. 230º e o seu titular é empresário – e
comerciante, à luz do art. 13º/1. Excluída fica apenas a agricultura tradicional e não empresarial.
A identificação dos actos de comércio através do recurso à lei comercial – em sentido material –
implica uma limitação de base: a atermo-nos estritamente aos actos ou empresas previstos na lei,
afastar-se-iam da matéria mercantil todos aqueles mecanismos que germinam na prática dos
negócios e na actividade das empresas e que não são objecto de tratamento legal por força quer do
natural desfasamento entre a previsão pela lei e a utilização na prática, quer por razão de opção
assumida pela não intervenção legislativa.
É por isso que parte significa da doutrina vem defendendo o recurso à analogia para efeito de
qualificação de um acto como comercial. A esta luz, um acto não previsto na lei comercial, mas com
características análogas a outro legalmente previsto, seria qualificado como comercial, por analogia
com este.
E isto porque se entende que não é compreensível que se excluam do direito comercial
mecanismos ou contractos, pela simples circunstância, que pode ser meramente fortuita ou devida a
inércia do legislador, de ele não estar previsto na lei comercial.
No entanto, há que ponderar que o recurso à analogia entre actos num sistema objectivista,
conduz a uma possível extensão do âmbito do direito comercial a partir de actos meramente
ocasionais – actos isolados previstos na lei comercial poderiam permitir a comercialização de novos
actos isolados, a partir da semelhança entre eles. Isto acarreta o risco de se perder o critério da
própria comercialização, o que contraria a lógica e essência do direito mercantil.
Ora, é a empresa o fundamento último da disciplina mercantil. Deste modo justificar-se-á a
analogia quanto a actos praticados no quadro da empresa, mas não quanto a actos isolados ou
desgarrados – que levaria a uma extensão anómala do direito comercial.
Em suma: não devemos admitir o recurso à analogia directamente entre actos, mas somente
entre empresas: quando um acto é praticado no exercício de uma empresa, ainda que ele não esteja
previsto na lei, esse acto será comercial se a empresa for análoga a uma das previstas do art. 230º
CCom. – sendo análoga a empresa, como os actos das empresas comerciais são actos de comércio, o
acto será também ele comercial. A existência de uma empresa e a prática do acto no quadro da sua
actividade são necessariamente pressupostos da sua comercialidade.
Poemos interpretar o art. 230º de duas maneiras:
Interpretação restritiva: só se incluem aqui os actos fundamentais, estruturantes da
actividade realizada pela empresa análoga ás do art. 230º.
Interpretação ampla: incluem-se não só actos nucleares e fundamentais, mas também
todos os outros actos praticados pelo titular no exercício da empresa, mesmo que
acessórios. CASSIANO DOS SANTOS concorda com esta posição.
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O Código Comercial consagra uma via para contornar a rigidez excessiva que resultaria de um
sistema puramente objectivista, em que os actos de comércio seriam simplesmente aqueles que a lei
especificamente prevê. O art. 2º, após inscrever como comerciais os actos objectivos de comércio5,
refere ainda como actos comerciais “os contractos e obrigações dos comerciantes, que não forem de
natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar” – com a intenção de
alcançar os actos acessórios dos comerciantes.
Assentes na qualidade de comerciante do sujeito que os pratica, são os actos subjectivamente
comerciais ou actos subjectivos de comércio.
São subjectivos porque são necessariamente praticados por um sujeito – o comerciante.
Não são tipificados na lei – qualquer acto, típico ou atípico, regulado ou não em alguma
lei, pode vir a ser considerado acto subjectivo de comércio. E isto desde que preencha os
requisitos da 2ª parte do nº2.
Fala a lei de “contractos e obrigações” – que serão dos comerciantes, como é óbvio. Assim, um
contracto será comercial quando um dos sujeitos que o pratica for comerciante (e cumpra os demais
requisitos), e que uma obrigação, independentemente da origem comercial, também o pode ser sob
o mesmo pressuposto. Como a comercialidade se reporta sempre ao sujeito e à sua actuação, deve
ser dissecado nas duas declarações em que se analisa, porquanto apenas é comercial aquela que é
emitida por um comerciante.
Requisitos da subjectividade comercial:
1) É necessário que seja praticado por um comerciante – art. 13º, comerciante é aquele que
pratica actos objectivamente comerciais e faz dessa prática uma profissão.
2) O acto não deve ser de “natureza exclusivamente civil”6 – reporta-se à natureza do acto.
Excluem-se aqueles negócios que não podem tipicamente ter qualquer conexão com o
comércio, independentemente dos intuitos que realmente em concreto lhes possam presidir
– actos pessoais (casamento, perfilhação, adopção, testamento). Só se incluem os actos
patrimoniais.
3) Do acto não pode resultar o “contrário” – o contrário quanto à sua conexão com a actividade
comercial do sujeito, bem entendido. Nesta parte o art. 2º visa abranger no manto da
comercialidade outros actos, para lá dos enumerados especificamente no Código: esses actos
são actos de comerciantes relativos à sua actividade cuja comercialidade não seja definida
objectivamente. Assim, a referência ao contrário refere-se à actividade do sujeito
comerciante.
a. Para analisar a verificação este requisito devemos proceder à análise do concreto acto
e da sua relação com a actividade do comerciante que nele intervém. Este art. 2º/2ª
parte é claramente influenciado pela teoria do acessório em sentido estrito, nos
5
Apesar de objectivos, não podemos esquecer que há actos previstos na lei comercial (e por isso
objectivamente comerciais), mas para os quais a lei exige características relativamente ao sujeito. Por exemplo,
veja-se o art. 230º quando determina que os actos só são comerciais se forem exercidos pelo titular de uma
empresa.
6
CASSIANO DOS SANTOS rejeita a tese dos que consideram que actos de natureza exclusivamente civil são
aqueles que só estão regulados no CC, importando a localização do acto para efeitos de classificação.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
termos da qual se deverão ter como comerciais todos os actos que se integram na
actividade comercial de um comerciante. Assim:
i. Se o acto tem conexão com a actividade do comerciante – é comercial.
ii. Se o acto não tem conexão com a actividade do comerciante – não é comercial.
iii. Se do acto nada resulta – é comercial. (CASSIANO DOS SANTOS não fala
aqui de uma presunção, mas sim de uma qualificação.)
Não foi, porém, exactamente esta teoria que obteve consagração no art. 2º. O legislador elegeu,
na verdade, como critério a aparência do acto e não a sua real conexão com a actividade – a
aparência quanto à conexão, naturalmente. Daqui decorre que o art. 2º/2ª parte pode fazer chegar a
resultados que não coincidem com a teoria do acessório – p.e. podem ser subjectivamente
comerciais actos que não têm qualquer conexão com a actividade de um comerciante. Isto decorre
da formulação duplamente negativa da lei: de acordo com a lei só não será comercial se não resultar
dele que não tem conexão com a actividade profissional do comerciante.
Não obstante, há um limite ao relevo da aparência do acto: deste nunca poderá resultar
relevantemente algo contra a real e efectiva conexão. O objectivo da norma é abranger, e não
excluir, actos efectivamente integrados na actividade do comerciante, e a aparência do acto é apenas
um veículo para concluir algo sobre a conexão – não para ir contra ela.
Resta analisar a forma como funciona o art. 2º/2ª parte. Como se formula o juízo sobre a
aparência quanto à conexão com a actividade?
O preceito é esclarecedor: revela o “acto”, como o próprio art. 2º indica. O acto, entenda-se, e
não a forma que o reveste: valem, assim, além desta, as declarações ou manifestações do sujeito,
bem como todas as circunstâncias que o rodearam, desde que, em qualquer dos casos, se verifique
que o sujeito que contactou com o comerciante estava em condições de as perceber. E é assim pela
própria letra do art. 2º, e pelo facto que a qualificação de um acto como comercial causar a aplicação
de um regime que tem a protecção daqueles que contratam como comerciantes como objectivo
essencial.
Sendo assim, para concluir se algo resulta do acto, quanto à sua conexão com a actividade
comercial do comerciante, deve ter-se em conta o próprio acto. Releva não apenas aquilo que conste
estritamente do acto e muito menos apenas o que conste do documento que o formaliza, mas sim
tudo o que foi convencionado ou referido na ocasião da prática do acto e tudo o que o acto revelar e
todos as circunstancias que o rodearam.
Para o completo esclarecimento do art. 2º/2ª parte não basta saber quais os elementos que
relevam para o juízo sobre a aparência quanto à conexão. É necessário ainda saber qual o critério de
apreciação do acto e suas circunstâncias. Tal é realizado de acordo com o critério objectivo do ponto
de vista do destinatário normal, razoável na posição daquele concreto sujeito e conclui-se pelo que
ele concluiria. Tal deriva da própria ratio do artigo que é alargar a comercialidade e o campo de
aplicação do direito comercial, em função também dos interesses daqueles que contratam com
comerciantes.
Relativamente a dados ulteriormente revelados ou conhecidos e à sua importância, CASSIANO
DOS SANTOS, tem a seguinte opinião:
1) Se resultava que o acto tem conexão ou do acto nada resulta, mas a posteriori verifica-se que
o acto afinal não tinha conexão Devemos não dar relevo a este facto e continuar a
qualificar o acto reportando-nos ao momento da prática do próprio acto.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
2) Se resultava que o acto não tinha conexão, mas a posteriori verifica-se que esta existia
Devemos dar prevalência à realidade (e não à aparência) porque o que está em jogo são
actos conexos ou acessórios à actividade do sujeito. Se o acto é realmente conexo, deve estar
sujeito ao direito comercial (relevando estas circunstâncias posteriores), desde logo porque
se pretende a tutela do tráfico – daqueles que contratam com comerciantes, devendo dar-se
prevalência à sujeição ao direito comercial.
NOTA IMPORTANTE: O problema dos actos conexos pode ser resolvido através do art. 230º
CCom porque este comercializa não apenas os actos nucleares, mas também os actos acessórios
ou conexos aos actos das empresas. Comerciais são não só as empresas expressamente previstas
no art. 230º, mas também todas as análogas a essas. Isso leva-nos a concluir que fora desse
artigo, ou seja, para o art. 2º/2 ficam apenas os actos que não se conseguir provar que integram
a actividade da empresa, porque para este artigo o critério que releva não é a prática do acto
pelo titular de uma empresa e no âmbito da actividade dessa empresa, mas a aparência do acto
quanto à conexão.
Embora objectivista, o direito português não ignora a existência de sujeitos que têm por
profissão uma actividade que se reconduz à prática de actos de comércio – comerciante. Isso
acontece, desde logo, em conexão com a delimitação da matéria mercantil – seja para comercializar
alguns actos objectivos (que dependem directa ou indirectamente de um requisito subjectivo de
comercialidade subjectiva), que para conferir o manto da comercialidade à generalidade dos actos
de natureza patrimonial dos comerciantes. Por outro lado, o Código prevê um regime especial para
os comerciantes em matéria de prova e outros deveres gerais.
É o art. 13º CCom que identifica “quem” são os comerciantes, prevendo-o em dois números:
1º “As pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão” Há que
preencher cada um dos requisitos do artigo.
2º “As sociedades comerciais” As sociedades nascem comerciantes e, por isso, pelo simples facto
de serem sociedades, serão comerciantes. (falamos das sociedades qualificadas como sociedades
comerciais nos termos da lei) Estas têm por objecto a prática de actos de comércio (e note-se, não é
necessário que os pratiquem efectivamente, senão apenas que os tenham por objecto!) e, por isso,
são comerciantes natos (FERRER CORREIA) Todas as entidades que mereçam outra qualificação,
que não de sociedades comerciais, serão ou não comerciantes pela via geral do nº1, e não pelo art.
13º/2. Esta posição apoia-se num argumento:
Literal: a lei só se refere a “sociedades comerciais”
Histórico: já existiam, ao momento, outras pessoas colectivas conhecidas pelo legislador,
sendo que, se as tivesse querido integrar, teria sido explícito.
Teleológico: o legislador pretendeu abranger as demais pessoas colectivas no nº1 e é aí
que elas cabem realmente.
Podemos, por isso afirmar que o nº1 é a regra geral para a aquisição da qualidade de
comerciante, tomando como matriz do modo de aquisição dessa qualidade o exercício por pessoas
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
O art 13º/1 enumera alguns requisitos fundamentais para que um sujeito seja comerciante. Estes
não têm sentido autónomo, devendo ser entendidos à luz uns dos outros e da lógica global da
norma.
1) Capacidade
Refere-se à capacidade de exercício, desde logo porque é evidente que o requisito inscrito no art.
13º é de natureza excludente e, a entender-se que a referência era feita à capacidade de gozo,
nenhuma pessoa humana seria excluída – e são as pessoas humanas que estão no centro desse nº1.
Por outro lado, lendo os requisitos em conjunto, a capacidade que se exige será naturalmente aquela
que é necessária para praticar actos de comércio e fazê-lo profissionalmente. Esta é
inequivocamente a capacidade de exercício: só pode ser comerciante quem actua no domínio da sua
capacidade para exercitar a sua esfera de direitos.
Ora, deste requisito não se pode retirar a conclusão que os incapazes de exercício (menores,
interditos e inabilitados) não podem de todo exercer o comércio e aceder à qualidade de
comerciante. Este equisito deve ser analisado à luz do funcionamento do instituto da incapacidade
no direito civil e, deste modo, exige-se que os actos praticados pelo sujeito não sejam atingidos pela
sanção que se comina no CC para a prática de actos abrangidos pela incapacidade – a anulabilidade
– e que não sejam efectivamente anulados.
Assim, se a incapacidade for suprida nos termos legais, para efeitos do art. 13º deve entender-se
verificado o requisito da capacidade. O mesmo, se o incapaz actuar praticando actos de comércio
sem o necessário suprimento, na medida em que os actos são meramente anuláveis e venham a ser
consolidados por confirmação ou pelo decurso do prazo para arguir a anulabilidade.
O mais complicado é saber como se passam as coisas até os actos serem efectivamente anulados
pelo tribunal, já que a anulabilidade significa que os actos devem ser tratados até que sobrevenha a
efectiva anulação judicial. O problema é tanto mais grave quando o sujeito praticar actos de
comércio e anulação só seja declarada tardiamente – ou seja, o sujeito é tratado como comerciante e
deixa de o ser por força da anulação? No conflito entre a tutela do tráfico e a tutela do incapaz, a
solução não pode deixar de ser a de o sujeito ser tratado como comerciante, para todos os efeitos,
enquanto os actos que permitirem uma tal qualificação sejam aptos para tal, caindo tal qualificação
com a queda dos actos que a suportaram. Como a anulação produz efeitos retroactivos, não pode
subsistir a qualidade de comerciante suportada em actos afastados do mundo jurídico.
A incerteza que ainda assim se incorre pode ser evitada, porquanto os terceiros interessados
poderão obter o esclarecimento da situação, notificando o titular do direito de anular para exercer o
direito de anulação, com a consequência de se considerar o vicio sanado se ele não intentar a acção
de anulação em 180 dias – veja-se analogicamente o art. 49º CSC e 125º/2 CC.
Assim, compatibiliza-se o CCom com os artigos relativos à capacidade do CC: art. 1889º/1/c,
1938º/1 e 139º, que supõem a possibilidade de os incapazes exercerem profissão mercantil. Assim,
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evitamos ter no tráfico mercantil um sujeito que não adquiria qualidade de comerciante e como tal,
não adstrito aos deveres que impendem sobre estes.
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Os actos praticados no exercício da actividade bancária, ainda que formalmente comerciais, são entendidos
como operações de banco nos termos do art. 362º CCom e por isso têm substancialidade real.
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No caso do mandato, o mandatário pratique múltiplos actos em nome do mandante, sendo que
será este a adquirir a qualidade de comerciante. É por dar lugar a uma actuação em nome alheio e
que se repercute no mandante, e não por ser acessório, que o mandato não permite, em regra, que o
mandatário adquira a qualidade de comerciante. Nada obsta a que o mandato seja objecto de uma
profissão, se o sujeito fizer a actividade de mandatário a sua actividade profissional. Em tal suposto,
ele pratica um acto de comércio em nome próprio – qual seja o próprio mandato.
Isto ponderado, há que concluir que nada obsta a que os actos acessórios relativamente aos
quais não há razões para impedir o seu exercício profissional possam dar lugar à aquisição da
qualidade de comerciante – é o que se passa com o depósito.
3) Profissionalidade
O CCom não esclarece o que é profissão, embora possamos retirar dele elementos que nos
permitem preencher essa noção – veja-se o art. 364º (“estabelecimento”), art. 362º (“objectivo de
realizar lucros nas sua operações”), art. 367º, 368º, 377º (“empresa ou companhia regular ou
permanente”; “fim lucrativo”). Veja-se ainda o art. 17º que identifica um conjunto de entidades que,
embora pratiquem actos de comércio não são comerciantes exactamente porque não têm escopo
lucrativo e destinam a sua actuação no comércio a fins distintos desses objectivos.
Tudo isto ponderado nos permite afirmar que, no âmbito jurídico privado, pode dizer-se que o
termo profissão corresponde a 3 notas essenciais:
A profissão envolve sistematicidade e unidade, o que implica uma sequência de actos
com continuidade ou estabilidade e um mínimo de densidade e organização (ainda
que não continuidade perfeita e exclusividade)
Uma profissão é exercida com um escopo lucrativo que se reporta à actividade no
seu conjunto.
A profissão caracteriza-se pela autonomia, ou seja, pode ser exercida como um modo
de vida, como um fim em si mesma, e não como actividade subordinada a um fim
distinto, em termos de com isso se alterar o sentido típico do exercício mercantil no
mercado em que se actua.
Em regra, a profissão mercantil está associada e corresponde ao exercício de uma empresa e,
existindo esta, existe profissionalidade.
4) Em nome próprio
Está subjacente ao Código que só o exercício em nome próprio é susceptível de tornar um
sujeito comerciante. Os actos praticados em nome de outrem repercutem-se na esfera jurídica do
representado ou, em qualquer caso, e na falta de relação jurídica que funde um tal resultado, não
produzem efeitos na esfera do sujeito que actua e por isso não conduze à aquisição da qualidade de
comerciante por quem os pratica. Poderão é tornar comerciante o sujeito em cuja esfera vão ter
eficácia no caso de que se verifiquem os pressupostos.
Em todo o caso, se a própria relação que funda a prática de actos em nome de outrem for
mercantil, nada obsta a que aquele que faz da prática desse acto uma profissão seja considerado
comerciante – p.e. mandato.
Importa responder a uma última questão: em que momento é que um sujeito de torna
comerciante? É no momento em que é possível fazer um juízo de sistematicidade sobre a prática de
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
actos que caracterizem uma actividade que um sujeito adquire a qualidade de comerciante. Ainda
que esta qualidade, uma vez adquirida, deva retroagir ao momento em que iniciou a formação da
empresa ou se iniciaram os actos preparatórios da actividade – actos que serão subjectivamente
comerciais. Ver, neste sentido, o art. 366º CCom.
O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes em nome
individual, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob a forma comercial e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. (art. 1º/1 CRCom.) Ver ainda o art. 2 e
55/1/a CRCom.
Ode questionar-se sobre o papel da matrícula na aquisição da qualidade de comerciante.
FEERER CORREIA entendia que a matrícula não é condição necessária nem suficiente da aquisição
da qualidade de comerciante. Esta é uma mera presunção da qualidade de comerciante.
Que o registo não é condição necessária decorre logo do art. 95º CCom, que prevê
que também são estabelecimentos abertos ao público aqueles que forem estabelecidos
por comerciantes não matriculados e se conservem abertos por oito dias consecutivos
ou hajam sido publicitados por meio de avisos, jornais ou letreiros usuais. Há que
conformar isto ainda com o CRCom. Que não estabelece a obrigatoriedade do
registo: é este o significado da não inclusão do art. 2º na hipótese do art. 15º; e daí
decorre que as pessoas singulares podem, portanto, ser comerciantes independentes
da matrícula.
Que a matrícula não é condição suficiente para que por si só exista comerciante
decorre de o art. 11º CRCom. estabelecer que o registo definitivo constitui mera
presunção de que existe a situação jurídica, nos termos em que é definida (pelo
registo), e de em consonância os factos sujeitos a registo, ainda que não registados
poderem ser invocados entre as partes e os seus herdeiros. (art. 13º)
As sociedades comerciais são comerciantes por via do art. 13º/2 CCom. O processo de
constituição da sociedade comercial é sucessivo e complexo:
Acordo dos sócios. (art. 36º/2 CSC)
Formalização do contrato em documento escrito com as assinaturas dos sócios
reconhecidas presencialmente (art. 7º/1 CSC)
Publicações (art. 3º/1/a CRCom. e 166º CSC)
Questionamos então em qual destes momentos há sociedade comercial e quando há sociedade
comerciante? O art 5º CSC não resolve a questão, porque não se entende se existir como tais
significa existir como sociedade comercial, ou se se reporta simplesmente à aquisição da
personalidade jurídica, existindo já a sociedade comercial antes da personalização. Este último
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entendimento é o melhor, porque mais próximo da lei, mas sobretudo por ser patente a outras
disposições. (veja-se o art. 37º CSC)
Não é, pois, com o registo que surge a sociedade comercial. Em face do disposto no art. 36º/2
poderíamos pensar que ela surge lofo com o acordo societário, mesmo que não formalizado. Não é
assim, porque os requisitos da norma nuclear do art. 2º/1 CSC se se cumprem com segurança com a
formalização do acordo. Até aí haverá sempre falibilidade do juízo sobre a verificação dos seus
pressupostos.
Assim, devemos interpretar o art. 36º/2, da seguinte maneira: não tem que apurar a existência
de uma sociedade comercial, nos termos do art. 2º/1 CSC, mas basta a prova de um acordo que, a
ser transposto nesses termos para um documento escrito com os requisitos do art. 7º, será
qualificável como tal. Em qualquer caso, esta norma só se aplica se a actividade iniciada se analisar
na prática de actos de comércio.
Em suma, as sociedades comerciais são comerciantes – e só elas o são (excluem-se as sociedades
civis sob a forma comercial – art. 1º/4 CSC). E a sociedade comercial existe logo (mas não antes)
com a formalização nos termos do art. 7º/1 CSC – desde que aí se revelem os requisitos do nº2 do
art. 1º CSC. Antes desse momento há sociedade (aplicam-se já as disposições do CSC), mas ainda
não há sociedade comercial.
7.5. Sujeitos que não podem adquirir a qualidade de comerciante. Pessoas colectivas que
exercem o comércio anti-estatutariamente ou com subordinação a outros fins.
Quem não preenche os requisitos do art. 13º não será comerciante. Agora, coloca-se a questão de
saber se há sujeitos que, ainda que pratiquem actos de comércio, não podem adquirir a qualidade
de comerciante. Vejamos os arts. 14º e 17º CCom a este respeito.
Art. 17º - Abrange pessoas colectivas de direito público, de qualquer tipo, cujas atribuições não
são o exercício de actividades económicas a título principal e que se regem estritamente pelo direito
público. Excluem-se do seu âmbito apenas as entidades públicas empresariais e empresas públicas
municipais e intermunicipais – não sendo abrangidas pelo art. 14º, estas entidades podem ser
comerciantes se preencherem os requisitos do art. 13º.
Abrange ainda misericórdias, asilos e outros institutos de beneficência, embora não incluam
todas as pessoas colectivas privadas de fim altruístico, mas apenas aquelas que actuam fins de
relevo público e às quais a lei confere um estatuto especial – as outras, sendo que não têm por
objecto interesses materiais, caem no âmbito de aplicação do art. 14º e não do art. 17º.
Esses sujeitos não podem adquirir a condição de comerciantes, embora possam praticar actos de
comércio e fiquem sujeitos às disposições do Código.
Art. 14º - A letra da lei é ambígua e a sua diferença flagrante com o art. 17º sugere que o art. 14º
não se reporte autonomamente à proibição da aquisição de qualidade de comerciante por sujeitos
que pratiquem actos de comércio – disso cura somente o art. 17º.
Assim, a melhor interpretação deste artigo será a seguinte: a referência da letra da lei à
“profissão de comércio” permite relacioná-la com o art. 13º, estabelecendo casos em que , antes
mesmo de se proibir o exercício profissional, a prática de actos de comércio não releva para efeitos
de essa norma. Não há também profissão, é certo, mas isso acontece porque não há conteúdo dessa
profissão – os actos de comércio.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
O art. 14º reporta-se, assim, a casos em que não há actos nem profissão que os qualifique: a nota
da profissionalidade nãos e verifica por não ter referente válido, em face da lei. Que casos são esses?
As pessoas colectivas que têm outros fins e cujos actos são, por isso, inválidos, por
aplicação dos preceitos que regem a actividade dessas pessoas
Aquelas pessoas que por lei ou disposição especial são impedidas da prática de actos
de comércio e esse impedimento sancionado com a invalidade dos actos praticados.
Assim, não praticam actos de comércio relevantes para efeitos do art. 13º, todos aqueles que
pratiquem actos que não subsistem por não serem válidos por força de um preceito legal que não o
art. 14º: sendo nulos os actos em que se analisa uma certa actividade, não pode haver actos de
comércio para efeitos do art. 13º. O art. 14º é uma concretização do art. 13º.
Este entendimento do art. 14º afasta do seu âmbito a hipótese de as pessoas colectivas de fim
ideal que trocam de facto a sua finalidade estatutária pelo exercício de uma actividade económica
lucrativa. FERRER CORREIA sustentava que essas, até serem extintas, deviam ser tratadas como
uma sociedade comercial irregular. Hoje, os actos em que se analisa a actividade dessa sociedade
devem estar sujeitos a um regime especial (art. 36º/2 CSC) e não são inválidos.
Na generalidade dos casos, pode imputar-se a situação a uma decisão expressa ou tácita dos
associados que assumiram a conversão da pessoa colectiva – normalmente uma associação – numa
entidade que se subsume na hipótese do art. 980º CC, isto é, acordaram a conversão da associação
numa sociedade – que será comercial se se detectarem as notas do art. 1º/2 CSC. Ora os actos
praticados pro esta associação convertida de facto em sociedade não serão nulos, justamente porque
não se aplica o regime das associações, mas antes o regime do CSC (art. 36º/2 CSC – porque há um
acordo para o exercício de uma sociedade – prática de actos de comércio - que não passou pelo crivo
do procedimento apropriado). Esta é a melhor solução para tutela do tráfico, de quem contrata com
na entidade, etc… Coma s devidas alterações, tudo quanto acabou de ser dito vale para as
fundações.
Distinto deste caso, é o caso das pessoas jurídicas que exercem o comércio, mas subordinam
esse exercício à sua actividade estatutária e actuam dentro dos limites da regra da especialidade do
fim. Não há, muitas dessas situações, profissão comercial, por faltar a autonomia (veja-se o caso de
um bar interno de uma associação – não será comerciante). No entanto, não é de excluir que, em
certos supostos, estas entidades sejam tratadas como comerciantes e a tal não se opõe o direito
vigente.
Concluímos, portanto, que as pessoas humanas legalmente inibidas em que a lei que prevê a
inibição prescreva a nulidade do acto, mas que, contrariando a inibição, exerçam o comércio em
moldes que se enquadrem no art. 13º/1 são consideradas, à partida, comerciantes. Esta conclusão,
além de não ter obstáculo no art. 14º/2 deve-se ao facto de os actos praticados em contravenção da
proibições não serem inválidos e porque há que tutelar os interesses daqueles que contactam com o
inibido, por estarem na ignorância da incompatibilidade.
Em matéria de pessoas colectivas, o art. 14º aplica-se às pessoas colectivas de fim
desinteressado ou altruístico e às de fim interessado ou egoístico, quer esse fim seja ideal, quer seja
económico (não lucrativo) – ponto é que actuem fora do domínio de sua capacidade jurídica e
pratiquem, por isso actos nulos.
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CAPÍTULO II: O regime jurídico das relações mercantis – consequências da qualificação de uma
relação como jurídico-mercantil
Às relações jurídicas que se qualificam como comerciais aplica-se a lei comercial, isto é, o
Código Comercial e as leis mercantis avulsas. (art. 1º e 3º CCom.) O direito comercial, como
qualquer outro sector, tem lacunas. É, no entanto, um sector menos completo que os outros. É um
direito especial face ao direito civil e isso significa que ele apenas prevê os aspectos que carecem de
uma regulamentação que se afaste do estabelecido no direito geral ou comum.
1º) O direito comercial não contém uma norma especial para regular o aspecto da concreta
relação jurídica;
2º) Essa lacuna não pode ser resolvida pelo seu espirito (analogia iuris);
3º) Também não é viável o recurso a uma norma que regule uma situação análoga (analogia
legis).
O art 3º parte da natureza especial do direito comercial, mas estabelece a precedência dele e a
aplicação tão somente subsidiária, depois de esgotada a possibilidade de resolução no quadro do
direito comercial, do direito civil – que se aplica na qualidade de direito comum das relações
jurídico-privadas.
Assim, o art 3º CCom. prevê indirectamente o modo de resolução de lacunas – as questões
mercantis serão resolvidas pelo direito civil se não o puderem ser, sucessivamente, pelo texto da lei
comercial, pelo seu espírito ou por um caso análogo.
Recorde-se que os preceitos do direito comercial não são, por regra e no seu conjunto, de
natureza excepcional. No seu conjunto, o direito comercial relaciona-se com o direito civil como
direito especial. A natureza de cada norma mercantil tem que ser aferida por referência ao próprio
sector de regulamentação, isto é, ao próprio direito comercial, sendo excepcional se contiver uma
solução que se contrapõe aquela que é a regra no seu interior. (ex: 1112º/1 CC.)
VASCO LOBO XAVIER ensina-nos que a uma relação jurídico-mercantil se pode aplicar o CC
porque o legislador comercial, deixa de caso pensado a disciplina de grande número de aspectos
das relações comerciais ao abrigo de preceitos de direito civil, como direito comum das relações
privadas ou porque estamos ante uma verdadeira (mas muito improvável!) omissão na
regulamentação e se encontra no direito civil a norma com afinidade substancial com o caso omisso.
Isto dito torna-se patente que, em face de uma omissão da regulamentação comercial para um
aspecto de regime suscitado por uma relação mercantil, é importante saber se estamos num desses
casos em que o legislador deixou de caso pensado essa questão para ser resolvida pelo direito
comum. Não basta, para tal, que o direito comercial seja omisso e se encontre uma norma de direito
civil sobre o ponto. Há, em primeiro lugar, que verificar se o próprio direito comercial renunciou a
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
A aplicação da lei comercial depende da existência de um acto de comércio. Mas há que ter em
consideração que o legislador objectivista, para identificar o acto como mercantil, elegeu critérios de
comercialidade que valem apenas para um dos lados da relação. A lei comercial faz, portanto, uma
separação do acto em dois lados. Se é certo que um acto pode ser comercial pelos dois lados, é
também patente que ele pode ser comercial por um dos lados e não pelo outro – actos
unilateralmente comerciais (ou mistos).
Se o acto é apenas comercial por um dos lados, que regime se lhe aplica? O regime a aplicar à
relação, no seu todo, é o comercial – art. 99º CCom. Ou seja, o regime mercantil aplica-se a uma
relação jurídica no seu todo, mesmo que os pressupostos de comercialidade se verifiquem apenas
em relação a um dos seus lados.
Porém, o nosso CCom. criou uma excepção à regra: o direito comercial não se aplica a toda a
relação, mas apenas ao lado por que ela é mercantil, se se tratar, em concreto, de disposições que só
forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil. Quais são elas?
O art. 99º não se reporta a preceitos que excluam explicitamente a sua aplicação a actos mistos,
como é o caso do art. 100º CCom. O art. 99º reporta-se aos preceitos cujo regime indica, vistas as
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
razões que lhe presidem, que a concreta solução tem uma conexão específica com as condições da
comercialidade e pressupõe, por isso, a verificação destas do lado a que se aplica.
Esta é uma limitação interna ao direito comercial. Mas existe hoje uma importante limitação
externa que resulta da aplicação e um importante sector de regulamentação a certos actos mistos.
Quando o sujeito for um consumidor – ver art 2º/1 Lei 24/96 – aplicam-se um conjunto de leis que
visam protegê-lo na contratação com profissionais. Esta aplicação faz-se por força do âmbito de
aplicação dos diplomas que os introduzem, os quais se deve entender que revogam o art. 99º tácita e
parcialmente.
Além do mais, muitos dos contractos comerciais hoje celebrados são celebrados como contractos
de adesão com recurso a cláusulas contratuais gerais. Neste sentido reconhecemos: (por via do
Regime das Clausulas Contratuais Gerais)
- Deveres de informação e comunicação - O contraente deve comunicar e esclarecer
o conteúdo do contrato a quem a ele adere.
- Regime da conformidade das cláusulas - Existem um conjunto de cláusulas que são
sempre proibidas e outras que são relativamente proibidas, porque são proibidas em função, já não
de um critério absoluto, mas relativo. Estas últimas têm de se analisar à luz do padrão adoptado
nesses tipos de contractos. Além disso, todas as cláusulas que sejam contrárias à boa-fé serão
inválidas. CASSIANO DOS SANTOS considera que são sempre contrárias à boa-fé as cláusulas que
se afastam do direito supletivo sem que exista uma razão que justifique esse afastamento.
A interpretação da lei comercial não tem particularidades relevantes, obedecendo aos preceitos
do CC. Mas devem considerar-se dois factores:
1) Muitas leis mercantis foram elaboradas em épocas em que as relações comerciais eram
substancialmente diferentes das actuais, devendo ser analisadas historicamente e a
interpretação deve adaptar a norma às novas realidades.
2) Impõe-se a apreciação dos interesses que lhe presidem, distinguindo-os dos que existem no
âmbito do direito civil.
REGIME GERAL DAS RELAÇÕES MERCANTIS: REGRAS GERAIS EMERGENTE DO DIREITO COMERCIAL
O art 15º Ccom. estabelece que as dívidas comerciais do cônjuge comerciante se presumem
contraídas no exercício do seu comércio. Este é um preceito instrumental de uma regra básica do
casamento em regime de comunhão de bens (1691º/d CC). (respondem os bens comuns do casal e,
subsidiária e solidariamente, os bens próprios de cada um – 1695º CC).
No quadro de aplicação do preceito do CC, o sujeito que tem interesse em que a dívida
contraída por um sujeito casado se comunique ao outro cônjuge tem que provar que quem contraiu
a dívida é comerciante e que o acto do qual ela resultou se integrou no exercício dessa específica
actividade de comerciante.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
O art 15º torna as coisas mais simples para o credor: ele prova que o sujeito casado que
contraiu a dívida é comerciante e que ela resulta de um acto de comércio, e com isso presume-se
que a dívida foi contraída no exercício de comércio do comerciante. O credor não tem, pois, que
provar a relação do acto com a actividade do comerciante: basta provar que ele é um acto objectivo
ou subjectivo para se presumir essa relação. A presunção do art. 15º assenta na constatação de que
os actos de comércio praticados por um comerciante se inserem na sua actividade comercial ficando
o credo dispensado de provar a integração do concreto acto no comércio do sujeito que o praticou.
A tutela é dada ao credor do comerciante casado, facilitando o acesso ao crédito pelo
comerciante. Ora, resumindo, por aplicação da presunção do art. 15º, o comerciante ou o seu
cônjuge ficam na posição seguinte:
1º) Ou fazem a prova de que um dos pressupostos em que assenta a presunção não é exacto
(provar que o acto não é comercial ou que cônjuge não é comerciante).
2º) Ou ilidem a presunção através da prova de que, apesar do devedor ser comerciante e o
acto comercial, este não se integra na actividade comercial dele – o que é possível quanto aos actos
objectivamente comerciais; ou nos subjectivamente comerciais quando nada resulte quanto à sua
conexão.
Não haverá também responsabilidade de ambos os cônjuges quando se provar que a dívida
não foi contraída em proveito comum. Torna-se necessário que o outro cônjuge tenha brido alguma
vantagem patrimonial com a actividade e que o acto a vise. (ainda que baste que o acto seja
objectivamente apto a prosseguir os fins gerais da actividade de acordo com o padrão de um
comerciante ordenado e diligente.)
CASSIANO DOS SANTOS entende que o preceito pode ter um alcance mais amplo: todo e
qualquer acto de comércio praticado por um comerciante deve presumir-se contraído no exercício
da sua actividade comercial, para quaisquer efeitos.
Por argumento de identidade de razão (tendo em consideração o art. 2º/2ª parte), a prescrição
do art 15º valerá no caso de comerciantes não casados: se isso interessar para algum efeito, os actos
de comércio desses comerciantes também se presumem contraídos no exercício do seu comércio. E
na hipótese inversa – comerciantes casados – é a própria lei que não contempla restrições – os seus
actos são geralmente tidos como praticados no exercício do comércio, para efeitos do art. 1689º CC
ou qualquer outro que a lei estabeleça.
Esta interpretação do art 15º, quando conjugado com o 2º/2ª parte, permite que este tenha um
significativo alcance no direito positivo – prescrições presuntivas, juros mercantis, direito do
consumidor, etc...
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
Directamente, o diploma diz que são devidos juros, sempre que o contracto não fixar a data
ou prazo de pagamento, a partir do decurso dos prazos referidos nas várias alíneas, que em termos
gerais se contam desde a data da emissão da factura ou da data correspondente a esta (4º/3) Ora,
declarando a lei que se vencem juros, daí resulta indirectamente que desde esse momento se deve
considerar a obrigação vencida e o devedor em mora.
O vencimento decorre:
De disposição legal – ex lege (na ausência de estipulação das partes, que será inválida
se contraria o disposto no art. 8º)
Não depende de qualquer actuação do credor, ou seja, é automático.
A mora, além do vencimento de juros, pode eventualmente dar lugar a indemnização nos
termos do art. 7º.
O art 8º identifica-nos os casos em que a estipulação das partes, afastando este regime de
maneira excessiva, é considerada nula. As cláusulas contra este regime supletivo só são admitidas e
válidas se houver uma justificação fundada nas circunstâncias do caso concreto que seja causa do
afastamento. Ou seja, além do dado objectivo que resulta da comparação entre o prazo contractual e
o prazo supletivamente fixado na lei, há que ver se a ultrapassagem pelo primeiro do segundo tem
uma justa causa em face da concreta relação de acordo com o previsto no nº2. Em caso de nulidade,
aplicam-se os prazos do art. 4º/3.
Este DL surge porque o acrescido peso dos grandes agentes económicos no mercado tem
levado a que estes imponham condições abusivas àqueles com quem contratam. Um exemplo é o
alargamento do prazo de cumprimento das obrigações de pagamento imposto pela parte mais forte
à outra. A lei presume que isso revela um desequilíbrio nas condições contratualizadas e intervém
para evitar regimes livremente estipulados que não correspondam ao equilíbrio natural das
relações.
Há ainda que tecer algumas notas quanto ao âmbito de aplicação deste diploma:
Empresa define-se como uma organização que desenvolve uma actividade
económica profissional de maneira autónoma. Permite abranger não apenas
actividades comerciais, mas também as demais, desde que realziadas através
de uma organização e autonomamente.
Há organização quando o exercício não assenta pura e simplesmente
no sujeito, mas implica uma estrutra de meios objectivos e subjectivos
com um minimo de densidade que a autonomizam relativamente a
ele.
CASSIANO DOS SANTOS ainda alerta para o facto de que se aplica o CC quanto às
obrigações pecuniárias que consistam no pagamento do preço da compra e venda ou contrapartida
nos demais contractos onerosos, quando não forem abrangidos pelo DL 62/2013, nem pelo DL
178/86 – aqui o vencimento dá-se na data da entrega. Tratando-se de prestações financeiras, aplica-
se por analogia o art. 348º e o DL 142/2000 – vencem na data da liquidação da prestação que
compete à outra parte, o que ocorrerá normalmente na data de celebração do contrato.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
Não havendo convenção das partes, rege o art. 777º CC : regra geral – a falta de estipulação de
prazo implica que não haja vencimento definido, e que o credor possa exigir o cumprimento a todo
o tempo.
- Interpelação do devedor (nº1)
- Caso a natureza da prestação, as circunstâncias que a determinaram ou os usos imponham
a fixação de prazo, há lugar a fixação judicial, a qual é produzida num processo especial (nº2 e art.
1456º CPC e ss.)
Não há, pois vencimento automático ou por força da lei, sendo necessária a interpelação ou
fixação judicial para que se desencadeie a mora.
Disposições especiais:
Para obrigações pecuniárias decorrentes de transacções entre empresas – regime do DL
62/2013 – vencimento ex lege a médio prazo.
Contrato de Agência – regime do DL 178/86 - vencimento decorre directamente da lei e a
médio prazo. (art. 18º/3)
Obrigação de entrega de coisa comprada à vista – art. 472º CCom.
Obrigação de entrega de coisa vendida não à vista e troca comercial – art. 473º CCom.
Estas disposições especiais devem-se ao facto de que não deve haver morosidade no
cumprimento dos negócios de modo a não serem colocados entraves ao tráfico mercantil, em
qualquer uma das suas direcções. Quando a coisa não está à vista, pretende-se proteger o
comerciante naqueles casos em que o comerciante não tem o bem, logo não pode ficar sujeito a
entregar no curto prazo.
Deve entender-se que estas regras valem para todas as compras e vendas comerciais, qualquer
que seja o lado em que se verifica a comercialidade.
CASSIANO DOS SANTOS considera que o art 777º CC está em contradição com a lógica
global da regulação mercantil e não convém às relações mercantis e seus interesses. Ora, deve
concluir-se que o legislador não pressupôs a aplicação do CC, mas como também não estabeleceu
uma regra com carácter geral, conclui-se que há uma lacuna. Esta, em obediência ao art. 3º CC, deve
ser integrada à luz das valorações que se retiram do art. 473º CCom e demais disposições
comerciais. Assim:
Obrigações de cumprimento decorrentes de actos comerciais em que contraente tem
o bem, direito ou serviço na sua disponibilidade Dia seguinte.
Prestações cujo cumprimento não está na disponibilidade imediata do contraente
São objecto de fixação judicial.
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O CC, ao estabelecer o regime geral de prescrição de direitos, contém normas comerciais que são
relativas à prescrição de créditos de que são titulares comerciantes. A norma central nesta matéria é
a do art. 317º CC, na qual se estabelece um regime de prescrição de dois anos assente na presunção
de cumprimento (art. 312º CC).
a) Âmbito subjectivo activo (titulares de crédito abrangidos) – Todos os que são comerciantes
ao abrigo do art. 13º Ccom.
a. Comerciantes em sentido económico
b. Industriais
c. Prestadores de serviços (não abrange as prestações liberais)
Esta é uma prescrição presuntiva – a empresa tem certos compromissos e uma estrutura para
garantir o cumprimento das dívidas pelos seus devedores; Ora, se não interpela os seus clientes
para que paguem em determinado prazo, a lei presume que houve cumprimento. As dividas que
não cabem na presunção entram na regra geral da prescrição de 20 anos (art. 309º Ccom) ou,
tratando-se de prestações periodicamente renováveis, prescrevem ao cabo de 5 anos. (art. 309º CC)
Estes factores ponderados, pode assentar-se em que a prescrição em análise se funda na
existência, do lado dos credores abrangidos, de uma organização de controlo dos créditos
concedidos aos clientes, a qual actua com rapidez na respectiva cobrança. A solução legal tutela a
fluidez no tráfico em geral.
Além desta prescrição a lei apresenta ainda outras relevantes no nosso domínio – art. 316º CC e
371º/a CC. Merece ainda destaque a prescrição de 6 meses da Lei de Serviços Públicos Essenciais
(Lei 23/96, de 26 de Julho), a contar desde a data do fornecimento do serviço de água, luz, gás e
telefone. Neste caso, o que prescreve não é o crédito, mas o direito a exigir o seu pagamento,
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
mediante apresentação da factura – o crédito, tendo sido apresentada factura nos seis meses
subsequentes ao fornecimento, prescreve nos termos gerais do CC.
Em suma:
Comerciante – Comerciante (20 anos, a contar do momento do vencimento da obrigação)
Não Comerciante – Comerciante (20 anos, a contar do momento do vencimento da obrigação)
Comerciante – Não Comerciante (2 anos, a contar do momento do vencimento da obrigação)
O Direito Comercial não tem qualquer norma de carácter geral que regule os termos da cessão
da posição contratual. Uma tal disposição existe no Direito Civil – a cessão depende do
consentimento do outro contraente (art. 424º/1 CC)
Este artigo não pode, porém, valer como direito privado comum, porque existem na lei
comercial preceitos que revelam a existência de uma lacuna, impedindo assim o recurso ao direito
civil como direito comum das relações jurídico-privadas. A lacuna só existe no âmbito das relações
contratuais estabelecidas no quadro da exploração de uma empresa, e se a transmissão da posição
contratual se realizar como elemento envolvido na transmissão da empresa. Veja-se o art. 1112º CC
e art. 11º/1 DL 149/85.
Assim, neste caso, estamos ante uma lacuna do Direito Comercial: integrada no trespasse – que
é acto de comércio – a cessão da posição contractual fica sujeita ao regime comercial e não ao direito
comum. Já se se tratar de uma transmissão isolada da posição contratual deve valer o direito
comum – art. 424º/1 CC.
Para integrar esta lacuna deve recorrer-se ao caso mais próximo da relação que se pretende
regular e que encontre solução no direito positivo, quando os interesses sejam similares.
Art. 1112º Aplica-se quando, estando em causa a transmissão de uma posição contratual com
a transmissão global de uma empresa, ao interesse tipicamente comercial que sustente a cessão
estiver contraposto um interesse civil.
Art. 11º/1 DL 149/85 Quando a transmissão envolve o jogo de dois interesses mercantis p.e.
contractos de concessão ou agência, com a transmissão da empresa do concessionário ou do agente).
Nestes casos, o “locador” pode opor-se à transmissão se provar que contraente não oferece
garantias bastantes de boa e cabal execução do contrato. (nº3)
O art. 100º Ccom consagra a regra de que as obrigações comerciais são solidárias – ainda que se
permita convenção em contrário. Esta solução opõe-se à regra do direito civil que é a da conjunção.
Assim, cada um dos obrigados, numa obrigação comercial, responde pela totalidade da prestação,
podendo o credor exigir toda a prestação a qualquer deles (art. 512º e 519º CC), cabendo depois
àquele cumprir, nas relações internas com os demais obrigados, actuar o direito de regresso,
obtendo o pagamento que cabe a cada um dos outros.
O art 100º reporta-se aos co-obrigados em relações comerciais.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
1) Pressupõe-se que exista uma obrigação mercantil – aquela que emerge de um acto de
comércio (o acto tem que ser comercial pelo lado daqueles que se obrigam – o que exclui a
solidariedade quanto às obrigações de não comerciantes que não resultam de actos
comerciais pelo lado dos obrigados). Exclui-se ainda a solidariedade quando dois
comerciantes assumem obrigação que não é, pelo seu lado, um acto de comércio.
2) Pressupõe dois ou mais co-obrigados - Só há solidariedade se houver pluralidade de
devedores em actuação directa conjunta, ou seja, quando dois ou mais sujeitos assumem,
sem interposição de qualquer estrutura, uma obrigação mercantil.
3) Não há requisitos do lado activo, ou seja, o credor pode ser ou não comerciante e pode ou
não ter praticado, pelo seu lado, um acto de comércio.
Este preceito revela que o preceito visa a protecção de todo aquele que concede crédito aos
sujeitos que, conjuntamente, actuam na esfera mercantil, concedendo ao credor um regime
privilegiado. Desfavorecem-se os concretos obrigados a favor do benefício geral do tráfico.
O art 101º Ccom estabelece a solidariedade do fiador e do afiançado que assumiu a obrigação
mercantil – a letra da lei fala de obrigação e não de acto exigindo também que o acto seja comercial
do lado do devedor. É a obrigação garantida que deve resultar de um acto de comércio, e esta
exigência não se comunica ao acto de afiançamento, que não tem que ter características especiais.
Do mesmo modo, a solidariedade beneficia qualquer credor.
Penaliza quem dá garantia, por fiança, a uma obrigação comercial, para beneficiar o credor e o
garantido. O fiador apenas responde perante o credor e, tendo pago a este integralmente, poderá
actuar contra o afiançado – o risco deste é o da demora e eventualmente da impossibilidade de
reembolso.
A ratio da norma visa a protecção do credor e só instrumentalmente do garantido. É o benefício
geral da obtenção de crédito por parte de quem entra na esfera mercantil que explica a solução
legal.
Este regime afasta o regime-regra no direito civil que é o do benefício de excussão prévia- o
credor tem que esgotar as possibilidades de receber do devedor e só depois pode exigir do fiador.
Este regime pode ser afastado por convenção.
Como vimos, a regra é a de que quando exista um contrato comercial, este será sujeito ao direito
comercial e, em princípio, só ao direito comercial - art. 1º CComercial.
Há obviamente uma ressalva a fazer aqui: o direito comercial é um direito especial que
marca as especialidades do regime comercial face ao regime civil, havendo, porém, muitas matérias
que não são tratadas no Código Comercial, aplicando-se o Direito Civil como direito privado
comum ou geral porque o legislador entendeu que não há especialidade frente ao regime mercantil.
Que casos são esses? Capacidade das partes, divergências entre a vontade e a declaração,
vícios da vontade, etc...
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
No entanto, como é que nós sabemos se podemos ir buscar ao CC uma solução de direito
privado comum ou não? Podíamos ser tentados a dizer que se não há tratamento na lei comercial,
devemos ir ao CC. Isto não é verdade.
Para responder a esta questão, tomemos como exemplo o contrato de cedência de espaço
ou loja em centro comercial - contrato celebrado entre os donos e gestores dos centros comerciais e
os comerciantes que lá se instalam.
Este contrato não está previsto na lei. Ou seja, será este contrato um acto de comércio? Sim,
pois cabe no art. 230º CCom, que qualifica empresas e os actos praticados no exercício dessas
empresas como actos de comércio, qualificando tanto os actos fundamentais, como todos os outros,
nomeadamente os actos que servem para estruturar o exercício. Este contrato é normalmente o
primeiro contrato celebrado, muitas vezes ligado ao contrato de franquia. Estes dois contractos
estabelecem a base do exercício da empresa. O art 230º CCom diz-nos que isto é um acto de
comércio, logo um contrato comercial.
Mas o contrato não está sequer regulado, ou seja, não tem regime. Para determinar o regime,
podemos distinguir 3 posições doutrinais:
1) Corrente inicial - Qualificava o contracto como um arrendamento. Este foi objecto de uma
regulação fortemente protectora do arrendatário (O contrato de arrendamento, para proteger o
arrendatário, criou um regime vinculístico, cujo traço típico era que, sendo um contrato a prazo
temporário, só o arrendatário é que podia por termo ao contrato, bastando que o inquilino
quisesse para que se verificasse uma renovação obrigatória e automática do contrato). Ora, se o
contrato era de arrendamento, ficava o arrendador sujeito a este regime vinculístico, não
podendo ele cessar o contrato. Este ponto de partida, não era adequado à realidade dos centros
comerciais. O regime do arrendamento estava previsto para arrendamentos realizados noutro
contexto.
2) Corrente Dominante (Antunes Varela e Oliveira Ascensão) - Entendem que este contrato não é
um contrato de arrendamento, mas sim um contrato atípico, porque apesar de envolver o gozo
de um imóvel, tem outras prestações de serviços e um conjunto de obrigações que alteram a sua
natureza. A consequência dessa afirmação é que, ao ser atípico, não está regulado na lei, não
tendo regime, valendo a liberdade contractual. Ou seja, este contrato rege-se pelas estipulações
das partes, podendo elas regular aquilo que desejarem, a menos que possa ferir princípios
fundamentais. Ou seja, os interesses que iam prevalecer eram os da parte mais poderosa – o
gestor do centro comercial.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
comerciante. E então qual o regime que se lhe aplica - sendo o contrato um arrendamento
atípico? Podemos aplicar algumas regras do arrendamento que se possam aplicar por analogia.
Supomos agora que o lojista pretende transmitir a sua loja e quer transmiti-la com o contrato de
cedência de espaço - que é um arrendamento atípico. Normalmente nestes contractos prevê-se uma
cláusula a dizer que o lojista não pode ceder o espaço sem autorização do outro contraente (sendo
que CASSIANO DOS SANTOS têm dúvidas se esta clausula será válida.
Imaginemos, porém, que o contrato nada diz. Neste caso, sendo este contrato um acto de
comércio, estamos obrigados, pelo art. 3º CCom a fazer um percurso pelo direito comercial, antes de
acudir ao CC.
Já vimos que a não regulação na lei comercial pode significar : (1) que se aplica o CC ou (2) que
estamos ante uma lacuna e, nesses casos, não se aplica o CC, mas sim o direito comercial. Para saber
perante que caso estamos, vamos ao CComercial e vemos se há alguma coisa aí que nos permita
concluir que o legislador incorreu numa lacuna. Ou seja, vamos procurar normas que tratem da
cessão da posição contratual para outros contractos. Ora, há duas normas fundamentais em matéria
de cessão da posição contratual:
- Art 1112º CC- Está no CC, mas é uma norma comercial, permitindo em caso de
transmissão do estabelecimento comercial (trespasse), a transmissão da posição contratual de
arrendatário sem necessidade do consentimento do senhorio. Vale para o trespasse e não para os
arrendamentos clássicos.
- Contrato de Leasing - Decreto-lei 149/95, art 11º - também tem norma especial para
a cessão da posição contratual.
Se há está regulação, então podemos dizer que o regime da cessão da posição contratual tem
particularidades no direito comercial, e o legislador não o tratou porque incorreu numa omissão.
Nesse caso, devemos resolver a questão dentro do direito comercial.
Portanto, ao contrato comercial não se aplica o regime civil, mas sim um regime que se
determina por integração da lacuna a partir das regras específicas que existem em matéria mercantil
para a cessão da posição contratual.
Aplicamos um preceito ou outro em função da analogia. Ou seja, devemos saber que estão
em questão interesse civil-interesse comercial (aplica-se o art. 1112º) ou interesse comercial-
comercial. (Aplica-se o art 11º)
Neste caso, aplicavamos o art 11º porque estão em causa dois interesses comerciais. Não
seria necessário o consentimento do gestor do centro comercial, salvo que fosse um caso do 11º/3.
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Ainda que se tratem de obrigações de um regime geral especifico dos comerciantes, não são
reconhecidas apenas a estes, na medida em que o âmbito de aplicação destas obrigações se estende
para lá do círculo dos comerciantes.
Em todo o caso, surgiram historicamente para eles e é a eles que essencialmente se aplicam. Quando
se estende para lá desse círculo, tal deve-se à constatação de que outras actividades ou actuações
justificam em muitos pontos um tratamento análogo ao daquelas que são estritamente mercantis.
Todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (art. 29º
CCom), na qual deve inscrever todos os factos relativos à sua actividade mercantil, e apenas eles –
não há, no Código, qualquer suporte para defender a extensão aos “factos civis”.
Ao contrário do estabelecido na versão originária dos preceitos do Código, a sua redacção actual
(2006), prescreve o princípio de liberdade de organização (art. 30º), o qual se impõe mesmo face a
autoridades administrativas e judiciárias (art. 41º CCom). Apenas para as sociedades são
estabelecidas regras específicas quanto aos livros de actas (art. 31º, 37º e 38º).
Em todo o caso, prevalece nesta matéria o art. 29º, que diz que a escrituração deve ser efectuada de
acordo com a lei – do princípio da liberdade de organização decorre que esta conformidade não é
hoje com a lei mercantil, devendo em todo o caso ser respeitadas as leis de natureza fiscal ou
contabilística que estabeleçam parâmetros a obedecer na elaboração dos livros.
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O art 40º CCom estabelece uma obrigação de arquivar a escrituração mercantil, sendo que o seu
prazo se conta a partir da data a que respeita cada lançamento ou inscrição neles efectuados, pelo
que têm que ser mantidos até se perfazerem 10 anos sobre o último lançamento deles constante, e
da emissão ou recepção, conforme os casos, quanto aos documentos e à correspondência.
A regra é que os livros são privativos do comerciante e só por eles podem ser usados e exibidos
(ainda que possa recorrer a terceiros para a sua elaboração – art. 38º CCom). A excepção legal é a
prevista no art 42º, relativo ao pedido de exibição judicial. Fora desses casos, a lei prevê, no seu art.
43º que, em sede judicial, possa haver exame de escrituração quando o comerciante nisso tenha
interesse e por solicitação da outra parte ou do tribunal, neste caso quando a questão envolva
responsabilidade do comerciante e os livros sejam adequados a fixar os factos a ela relativos (e só
nessa medida).
Ora, como resulta da regra e suas excepções, este princípio da privacidade da escrituração funda-se
em razões de ordem pública económica ligadas ao funcionamento do sistema empresarial.
O comerciante pode vincular-se contratualmente a fazer a exibição dos seus livros ou a permitir a
sua consulta, mesmo que fora de um processo judicial. (associação e participação, franchising,
arrendamento empresarial, etc…)
As razões de ordem pública e o princípio da adequação e proporcionalidade que estão na base no
art. 43º/2 conduzem a dizer que a liberdade contratual não é plena, havendo um mínimo de
imperatividade nos preceitos dos arts. 41º e ss. Essa imperatividade consiste em ser exigida uma
justa causa para a vinculação, pelo que deverá ser considerada nula, e correspondentemente
reduzida, a cláusula contratual que permita uma devassa superior àquilo que é instrumental à
execução dos compromissos validamente estabelecidos no concreto contrato.
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A actividade dos comerciantes desenvolve-se no mercado, tendo relevância para o tráfico jurídico
em geral. Para mais, a segurança é um dos valores fundamentais na actividade mercantil.
Por isso, o ordenamento jurídico predispôs um sistema organizado justamente para dar publicidade
à situação jurídica dos comerciantes (ver art. 1º CRC)
Os factos registados destinam-se à consulta dos interessados, que pode ser feita num website
de acesso público (art. 70º CRC) e através das chamadas certidões permanentes online, que visam
justamente publicitar a situação jurídica dos comerciantes individuais, sociedades comerciais,
sociedades civis sobre a forma comercial, empresas públicas, entre outras, inscritas no registo
comercial. (Portaria 1416-A/2006)
Estão sujeitos a registo o início da actividade do comerciante em nome individual
(matrícula) e a alteração ou cessação desta actividade (art. 2º CRC) Quanto ás sociedades comerciais:
Actos fundamentais ou estruturantes da vida da sociedade (art. 3º/1/a/r/t)
Actos relativos a quotas, nas sociedades por quotas (als. c/d/i)
Amortização, conversão e remissão de acções, nas sociedades anónimas (al. J)
Designação e cessação de funções nos membros das sociedades (al. M)
Prestação de contas das sociedades (al. N)
Algumas acções judiciais (art. 9º CRC)
O registo pode ser facultativo ou obrigatório. Os casos de obrigatoriedade estão previstos no art. 15º
CRC, e não abrangem os factos relativos a comerciantes em nome individual – excepto em matéria
de interdição e insolvência. O incumprimento da obrigação fica sujeita a coima (art. 17º CRC)
O registo pode ser solicitado pelo comerciante ou seu representante, e no caso das pessoas jurídicas,
pelo órgão de administração – art. 28º/1 e 29º CRC)
O registo é hoje feito por transcrição ou por depósito, consistindo este no mero arquivamento, sem
qualquer controlo substancial, dos documentos que titulam factos sujeitos a registo, salvo
(estranhamente) no que respeita a quotas e partes sociais, para o registo das quais (rectius, dos actos
a ela relativos) a lei estabelece que se faz menção do facto na ficha, tomando por base o pedido – art.
53º-A CRC.
O registo não é constitutivo, mesmo quando é obrigatório. Nos termos do art. 11º o registo por
transcrição constitui presunção de que existe a situação inscrita, nos precisos termos em que é
definida no registo. Os factos não registados podem ainda ser invocados nos termos do art 13º CRC.
Vale aqui também a prioridade do registo, segundo a qual o facto registado em primeiro lugar
prevalece sobre os que se lhe seguirem, relativamente às mesmas quotas ou partes sociais, segundo
a ordem do respectivo pedido, seja qual for o tipo de registo. O registo é mera condição de
oponibilidade a terceiros dos factos a ele sujeitos (art. 14º; em matéria de sociedades, além do
registo, exige-se a publicação, quando esta é obrigatória, ainda que possa haver oponibilidade se a
sociedade provar que o terceiro tinha conhecimento dos factos – art. 168º/2/3 CSC), o que significa
que o sujeito que pode promover o registo (ou aquele que lhe sucede mortis causa) não pode invocar
o facto face a todos os demais sujeitos (que são terceiros).
Apesar de valer em geral o princípio da legalidade (art. 47º CRC), o Conservador do registo não
poderá recusar qualquer pedido de registo por depósito, desde que se trate de um acto sujeito a
registo, mas poderá recusar o registo por transcrição em certos casos (art. 48º CRC, destacando-se a
50
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alínea d)). No registo por transcrição pode ainda efectuar o registo provisoriamente, por dúvidas
quando há deficiências que não são fundamento de recusa mas obstam ao registo do acto tal como é
pedido e elas não foram sanadas (art. 49º CRC – o que não é o caso do acto meramente anulável, por
ter de ser tratado como válido até à anulação).
Todo o comerciante é obrigado a dar balanço anual do seu activo ou passivo, nos três primeiros
meses de cada ano, relativamente ao ano anterior (art. 62º CCom). E isto, embora as sociedades
possam ter um exercício social não reportado ao ano civil (art. 9º/1/i CSC). Esta disposição vale no
domínio mercantil, embora possam existir dispensas.
Os comerciantes têm o dever geral de não colocar no mercado produtos e serviços que já não
estejam seguros. (DL 69/2005) Trata-se da transposição de uma directiva que visa a protecção dos
consumidores, mas também a realização do mercado único e da disciplina da concorrência.
Qual o âmbito e conteúdo desta obrigação?
«Produto», para efeitos do art. 4º, é qualquer bem móvel, abrangendo-se os bens utilizados no
âmbito de uma prestação de serviços. Não se abrangem os produtos usados que sejam fornecidos
como antiguidades ou que necessitem de recuperação ou reparação desde de o fornecedor informe
o adquirente destas características, antes ou na celebração do contrato.
Mas a obrigação de segurança incide apenas sobre os bens que são fornecidos ou disponibilizados, a
título oneroso ou gratuito, no âmbito de uma actividade profissional e que são destinados aos
consumidores ou que, não o sendo, são susceptíveis de circunstâncias razoavelmente previsíveis,
por eles serem utilizados. (abrangem-se brindes, ofertas, e promoções) Assim, a protecção estende-
se a toda a pessoa humana, em geral, independentemente da sua condição.
«Produtor» vem definido no art. 3º/e, que (re)lida em conjunto com a noção de produto nos conduz
a uma definição mais correta: a obrigação recai sobre o industrial ou todo aquele que actua sobre o
produto, mas há que acrescentar também todo aquele que, no exercício da sua actividade
profissional, coloque bens ou serviços no mercado. No mesmo sentido aponta o art. 2º da Lei de
Defesa do Consumidor.
«Produto seguro» é o bem que não apresenta quaisquer riscos ou que apresenta apenas riscos
reduzidos, que sejam compatíveis com a sua utilização e que sejam conciliáveis com um elevado
risco de protecção da saúde e da segurança dos consumidores. Para esta qualificação devem ser
tidos em conta os factores do art. 3º/1/b. Importa apenas destacar que os riscos que estejam
associados ao produto, mas resultem de circunstâncias de utilização anómalas não relevam.
Considerando-se um uso norma ou razoavelmente previsível, têm que ser tidos em conta todos os
usos compatíveis com as características e natureza do produto, incluindo os usos laterais ou
errados, mas possíveis.
«Colocar no mercado» é fazer entrar na cadeia de comercialização do produto.
A existência de riscos mede-se, me primeira linha, pelos efeitos que o produto provoca no
consumidor; só relevam os outros critérios (art. 5º/b) quando é necessário verificar se os riscos
detectados são toleráveis. São ainda tolerados riscos e até riscos tecnicamente evitáveis – basta que
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se formule um juízo de compatibilidade desses riscos com a utilização e que eles sejam conciliáveis
com um nível elevado de protecção.
O art. 4º/2 estabelece uma presunção de conformidade com a obrigação geral de segurança, já que,
no momento de lançar um produto no mercado, há sempre um grau de incerteza. Ver ainda o nº3.
Como funciona esta presunção?
Desde logo, o funcionamento da presunção não impede que o produto seja efectivamente perigoso
– a própria lei o assume (art. 3º/4).
Podemos considerar que, ao funcionar a presunção e ao não se verificar o caso do art. 3º/4, não se
verificam as consequências jurídicas que em principio decorrem da violação da obrigação geral de
segurança, ainda que o produto se venha a revelar realmente perigoso. Assim:
Não há lugar à aplicação de qualquer coima. (resulta do teor do art. 26º/1/e)
Não se verifica responsabilidade civil por parte do produtor. A violação da obrigação de
segurança importa responsabilidade civil nos termos do art. 483º CC. Se se presume que
não se viola o art. 4º/1, desaparece o pressuposto da responsabilidade.
Esta presunção é, pois, uma presunção absoluta, mas não para todos os efeitos, de segurança. Ora,
se o produtor respeita as normas e recomendações é razoável que se parta do princípio que há
conformidade com a obrigação e não se sancione o produtor.
No entanto, pode acontecer que a realidade venha a demonstrar a inadequação dos padrões: em tal
caso, o produto será perigoso, e podem ser tomadas medidas em conformidade, pois o valor
superior que se prossegue é a protecção dos consumidores. Neste plano, a conformidade com os
padrões não produz qualquer efeito especial, excepto um maior cuidado na demonstração da
perigosidade pela entidade competente.
O direito comercial, sendo o direito das zonas preferenciais da economia, é, antes de mais, o direito
das empresas e de todos os mecanismos que, tendo nascido historicamente para a empresa, se
tornaram de utilização comum, continuando, porém, a sua regulamentação a obedecer aos
interesses da empresa.
Podemos caracterizar “empresa” pelas seguintes notas:
7) A empresa é uma estrutura complexa de pessoas, bens, direitos e outros valores, na qual
assumem hoje particular importância a ideia organizatória e a estratégia definidas pelo
empresário e a forma como ele gere a intervenção no mercado;
8) Essa estrutura desenvolve uma actividade que se analisa num processo de produção em
sentido amplo, no qual se produz um resultado que consiste num valor económico novo
(acrescentado) susceptível de troca sistemática e vantajosa no mercado – o que abrange
desde a transformação industrial até ao fornecimento de serviços, passando pela actividade
de intermediação nas trocas, pela agricultura ou pelas pescas, mas também pela prestação de
serviços nas áreas desportivas, artísticas ou culturais;
9) De entre os meios colocados pelo sujeito na estrutura, avulta particularmente o capital, o
qual corresponde ao investimento realizado por ele ou que ele mobilizou.
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10) Esse processo é caracterizado pela autonomia funcional ou técnico-produtiva, por o seu
resultado decorrer do próprio processo no seu conjunto e não defender absorventemente de
um ou alguns elementos nele integrados ou participantes, nem, tão pouco, de factores
extrínsecos.
11) A estrutura actua tendo em vista a autonomia financeira ou económico-reditícia, isto é, a
criação de condições para a auto-reprodução do processo e para a remuneração dos
investimentos, visando um ganho que normalmente consiste num lucro.
12) A estrutura apresenta-se no tráfico e no mercado como uma entidade própria, surgindo
como um verdadeiro actor ou sujeito económico que comunica com os demais e que deles se
distingue – sem que isto signifique que seja necessária ou sequer, naturalmente, um sujeito
em sentido jurídico.
Estes perfis são lados ou momentos incindíveis à empresa, que se apresenta, ora realçando um ou
alguns deles, ora outro ou outros, mas que se reconduz sempre a uma essencial unidade.
No perfil objectivo, a empresa é um instrumento de um sujeito na actividade produtiva e é,
necessariamente, uma criação de um sujeito que é exteriorizada, objectivando-se: em certo sentido, a
empresa emana do sujeito que se “estabelece”. Assim, na prática dos negócios e até na lei, usamos
empresa (destaca o perfil subjectivo) e estabelecimento (destaca o perfil objectivo) como sinónimos.
Por vezes também, por razões essencialmente históricas, associa-se o adjectivo comercial ao
estabelecimento. Hoje devemos entender como estabelecimento comercial todo aquele que se
apresenta como empresa, com as notas que a caracterizam no direito mercantil.
Como já vimos que hoje se identifica a empresa com as empresas comerciais, podemos concluir que
o estabelecimento comercial é toda a empresa com a qual se exerce qualquer actividade qualificada
como comercial pela nossa lei mercantil, englobando-se também na expressão empresas industriais
e aquelas em que são prestados serviços.
Assim, a empresa ou estabelecimento comercial é o mecanismo por excelência e central da
actividade mercantil de um sujeito e, na medida em que esse mecanismo é objectivado, enquanto
instrumento para a actuação, ele é objecto de interesse por outros sujeitos e é, por essas duas
circunstâncias, objecto de negócios.
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A empresa moderna, surgida para vencer a barreira do artesanato a uma mais vasta e contínua
produção de bens e serviços, funde a produção com quatro notas que indelevelmente a
caracterizam:
a) Extroversão: é a produção para fora, para a intercomunicação produtiva. O mercado é o
seu horizonte e espaço ideal dessa intercomunicação. As organizações para autoconsumo não são
empresas.
b) Auto-reprodução - é a produção que se reproduz ou repete conseguindo, com a troca
sistemática e vantajosa, assegurar o seu auto financiamento e o estímulo ao seu próprio
processamento. É esse estímulo ou esse ganho em termos financeiros que marca o sentido reditício
da empresa (e não lucrativo) – distinguindo-se rédito de lucro, não tanto por uma natural
modicidade, mas distinguindo-se da simples remuneração da prestação do empresário, porque
independente do valor desta última e predisposto a ser tão total como o risco que a empresa co-
envolve. Sem este estímulo não há lógica da empresa- que é uma lógica de processo-estrutura – que,
se obedecer aos seus princípios internos, realiza automática e autonomamente os seus fins.
Ora, mas a auto-reprodução não pode ser um fim em si mesma porque é preciso admitir que há
lógicas que se introduzem na empresa e que não são estranhas a ela. Já que devemos apenas
procurar a prossecução de um rédito, tal não é incompatível com práticas que não são contrárias ao
exercício da empresa (p.e. mecenato, etc...).
c) Racionalização - desdobra-se numa certa planificação, adequação ao fim e na
contabilização. (Contabilidade)
d) Dessubjetivação - trata-se de uma despersonalização. A empresa como mecanismo que é,
visa dessubjetivizar a produção, libertando-a da contingência da disponibilidade física, psicológica
ou financeira do agente. Tal explica a tendência da empresa para a objectivação. A empresa é um
simples mecanismo e não uma pessoa, embora excepcionalmente seja personificada. (P.e. Entidades
públicas empresariais). Nos usos da língua, as empresas são muitas vezes personalizadas - é uma
linguagem metonímica. E não devemos esquecer que as empresas pertencem ao mundo das coisas.
A empresa é um meio e como tal exige um sujeito que o empregue. É essa a função do empresário,
cuja tarefa abrange a iniciativa económica o correspondente risco, a decisão global, controle do
processo e correspondente lucro. Já não é o domínio dos bens que tem relevância para efeito de
classificação de empresas, já que estas surgem hoje como entidades suficientemente maleável para
envolver factores de produção que não cabem no domínio no sujeito, mas de que ele dispõe por
outro título jurídico. Fundamental apenas é que possa dispor deles com a estabilidade exigida pelo
fim produtivo.
O mesmo sucede com os capitais que lhe são fornecidos a crédito. Nas PME's o sujeito tende a
participar com trabalho no processo produtivo, mas este não faz parte da sua função empresarial –
o que acontece até com trabalho directivo, ou administrativo, que o sujeito pode delegar em
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managers ou directores técnicos sem pôr em causa a plenitude dos seus poderes ou funções. A
própria máquina da empresa pode mesmo ser montada por um organizador e não pelo empresário.
Já aqui se vislumbra que a propriedade dos factores - propriedade da empresa – titularidade do
processo produtivo são coisas distintas. Também já se pode adiantar que processo e estrutura estão
devisamente articulados entre si – porque a estrutura só se realiza através do processo e o processo
só se realiza através da estrutura. Veremos o que isso significa agora.
Enquanto bem no património do sujeito (plano objectivo da empresa), a empresa não pode ser vista
numa óptica puramente estática: ela é simultaneamente um instrumento do sujeito ordenado à
prossecução dos seus fins mediatos, mediante a produção de bens ou serviços. Mas esta relação
sujeito/fim e a sua especial concretização, que é o estabelecimento, alcançam uma dimensão
objectiva, sem a qual o estabelecimento não seria apto a atingir o escopo pretendido. Na verdade, a
empresa adquire um valor que suscita o especifico interesse de outros sujeitos e pode ser objecto de
negócios.
Neste plano, o estabelecimento é um bem – mas não surge como um bem qualquer, mas como uma
realidade complexa, existindo várias noções que a procuram apreender.
A lei não resolve a questão, nem pode resolvê-la: o estabelecimento existe antes da lei e
independentemente dela, o que não impede que a ela se associem certas características para efeitos
de conformação jurídica. Porém, como bem que é objecto de negócios, o que supõe que é
previamente querido por sujeitos por ter um certo valor, aquilo que o estabelecimento é não
depende de uma definição legal – mas sim daquilo que na realidade ele é.
Há várias correntes que tentam compreender e definir o estabelecimento enquanto bem objecto de
negócios:
Visão empírica e agregacionista – o estabelecimento é o conjunto de meios e bens de que
um sujeito se serve para exercer a sua actividade comercial.
Visão organizativa – não é só um conjunto de meios, destacando a organização a que eles
são sujeitos pelo seu titular. Seria, pois, algo de imaterial.
Visão externa – a empresa é um conjunto de relações com o exterior, designadamente com
os clientes. O estabelecimento é visto essencialmente como clientela.
Ora, mas a empresa, enquanto objecto de interesse por parte dos indivíduos, não se reduz a um
conjunto de bens, nem a uma organização de bens, nem sequer a uma clientela.
Um dado essencial da empresa é que ela é constituída e pretendida pelos indivíduos porque é o
instrumento de intervenção na actividade económica que se diferencia dos demais e que, no circulo
das relações complexas em que esta se desenvolve, permite àquele que a detém ocupar uma posição
especifica na relação com os outros intervenientes. Esta posição diferenciada constitui o valor que
lhe é intrínseco com vista à intervenção no mercado e advém da identidade própria assumida nesse
plano – identidade que decorre, a um tempo, da ideia organizatória do sujeito que constitui a
empesa, da organização que é a concretização dessa ideia, com referência aos bens e meios
reunidos, e dos valores imateriais que se formam a partir das relações potenciais ou já actuais com o
exterior. Em suma, o estabelecimento apresenta-se essencialmente como um instrumento para
intervir no mercado.
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3. Os valores do estabelecimento
Sabemos já que o valor da empresa não se traduz na soma do valor dos vários elementos que a
compõem, mas sim num valor novo. O que compõe este valor novo?
ORLANDO DE CARVALHO identificava vários valores do estabelecimento:
Valores periféricos ou externos – valor dos elementos que constituem a organização.
Existem enquanto tais fora do estabelecimento – lastro ostensivo.
Valores de organização e valores de exploração – valores sui generis do
estabelecimento; que só o estabelecimento tem, que não existem sem o estabelecimento,
nem dele podem ser destacados.
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No mesmo sentido, CASSIANO DOS SANTOS, diz: “Quanto aos factores produtivos, entendidos lato sensu, abrangem
todos os elementos que participam a título principal ou instrumentalmente no processo de produção de bens ou serviços,
incluindo tudo o que está a montante e a jusante da produção propriamente dita. Em suma, é tudo o que o sujeito afecta
originária ou supervenientemente à actividade e à prossecução do fim imediato que é obter aviamento através da
integração na organização. Só elementos com autonomia, isto é, tratamento jurídico distinto do estabelecimento podem
fazer parte de uma organização e ter nela um relevo próprio. Em todo o caso, supõe-se sempre a afectação por parte do
sujeito.”
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situação de vantagem na luta competitiva, seja pelas expectativas de ganho que permite, seja pelas
experiencias que também aumentam a expectativa do lucro.
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Lei tendencial (formulação positiva): quanto mais um estabelecimento funciona, de menor número
de valores do seu lastro ostensivo necessita para se apresentar como valor de posição no mercado.
Lei tendencial (formulação negativa): quanto menos um estabelecimento funciona, de maior
número de elementos do lastro ostensivo necessita para se apresentar como valor de posição no
mercado.
Esta lei não é uma autêntica lei, é uma tendência, porque tem limites à partida e à chegada.
Limite à partida da lei tendencial: O estabelecimento nunca é um puro conjunto de valores
ostensivos. Antes mesmo de funcionar, ele tem que ser mais do que isso. Ele tem que ter um
aviamento, que se trata de um valor de acreditamento diferencial. Não é sequer apenas um conjunto
de valores organizados, mas algo mais- já significa uma posição particular no mercado e ocupação
de um lugar no mundo da intercomunicação produtiva. É quando ele atinge esse parâmetro de
estabelecimento aviado que surge um novo valor de exploração.
O limite à partida da lei tendencial deve-se ao facto de que não é apenas necessário que haja um
lastro ostensivo, nem um conjunto de valores de organização, mas um estabelecimento por esse
conjunto particularmente organizados que já constitui per si uma especifica posição no mercado,
isto é, um valor de acreditamento diferencial.
Limite à chegada da lei tendencial: Podíamos ser levados a pensar que, com o tempo, o
estabelecimento se desprendia do lastro ostensivo. Trata-se de um limite à chegada, porque o
estabelecimento, por mais que funcione, necessita sempre de um conjunto mínimo de elementos
indispensáveis em cada negociação concreta para que aquele valor de posição no mercado seja
identificado e seja transmissível. O âmbito mínimo do estabelecimento constitui um limite à
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chegada da própria lei tendencial – por mais que funcione, o estabelecimento precisa sempre de um
mínimo de bens do seu lastro ostensivo que permitam em cada negociação identificar, sensibilizar e
transportar de uma esfera jurídica para outra o valor de posição no mercado que o estabelecimento
é.
A dicotomia do art. 1302º e 1303º, relativa ao direito de propriedade não coloca obstáculo definitivo
a que a empresa seja entendida como objecto de direitos reais. Nogueira Serens (na linha de
Cassiano dos Santos e Orlando de Carvalho) defende que a empresa é uma coisa composta
funcional; é um bem imaterial encarnado radicado num lastro material ou corpóreo que o
concretiza e concretizando-o, o sensibiliza. Ou seja, é uma coisa com uma incorporalidade sui
generis.
Sendo uma coisa composta funcional, perguntar-se-á se tem natureza móvel ou imóvel?
Normalmente, no lastro ostensivo, haverá imóveis (essas coisas podem pertencer por propriedade
ao empresário); mas essa constituição do lastro ostensivo por coisas imóveis não fazem do
estabelecimento uma coisa imóvel.
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Ora, o estabelecimento é uma coisa composta funcional com natureza mobiliária. Sendo
assim, a nossa lei trata a empresa como objecto do direito de propriedade e de direitos reais em
geral (Cfr. art. 1112º CC e 1889º/1/c CC). Recorde-se que no perfil objectivo podemos falar de
propriedade; no perfil subjectivo devemos falar de titularidade.
a) Penhor
Sendo assim, o estabelecimento pode ser também objecto de uma garantia real. Na medida em que
se trata de um móvel (art. 205º CC), a garantia é um penhor. O penhor do estabelecimento será, por
regra um acto de comércio, quer por garantir uma dívida comercial (art. 397º CCom), quer por ser
um acto praticado no exercício de uma empresa (art. 230º CCom.). Por isto, o penhor de
estabelecimento que seja um acto mercantil rege-se pelo direito comercial, sendo-lhe aplicáveis os
arts. 398º e ss. CCom. se o acto for comercial pelo art. 397º CCom; em todo o caso nãos e pode
aplicar o regime do penhor civil.
A questão que se coloca aqui é a da possibilidade de ser feito penhor sem desapossamento, isto é,
com a manutenção do estabelecimento em poder do seu titular, que presta a garantia. Nesta
matéria, o CCom. não se afasta do regime civil: prevê nos penhores mercantis propriamente ditos, a
possibilidade de entrega da coisa a terceiro e uma entrega simbólica, mas esta, analisadas as
hipóteses inscritas nos parágrafos do art. 398º CCom, envolve sempre o desapossamento – simbólica
é apenas a entrega ao credor pignoratício. Supõe, pois, o CCom, o desapossamento por parte do
devedor.
Porém, o art. 402º CCom. ressalva as disposições especiais sobre penhores feitos a bancos e
entidades autorizadas para garantia de empréstimos – o art. 1º/1 DL 29/833 permite um penhor
sem desapossamento, mantendo o devedor a exploração. Ora, deve entender-se, face a este quadro
legal, que o penhor mercantil de estabelecimento comercial não é objecto de disposição de carácter
geral. Mesmo o art. 398º não se reporta especificamente à empresa. Para mais, os interesses em jogo
contrapõem-se claramente ao regime civil e até ao regime geral mercantil. Como efeito, dada a
especificidade do bem, a exigência de desapossamento não é adequada porque a administração do
credor faria a empresa e o direito do devedor correr riscos elevadíssimos. Tudo ponderado, há uma
lacuna que deve ser preenchida de acordo com o art. 3º CCom. Ora, a norma a utilizar deve ser a do
art. 1º/1 DL 29/833.
b) Usucapião
O estabelecimento pode, pois, ser objecto de posse e de usucapião. Não há hoje razões para se
aplicar, em matéria de prazos, o regime dos imóveis. Os argumentos nesse sentido eram os da
natureza anómala do estabelecimento como móvel e o tratamento que certos preceitos legais lhe
dão, sujeitando-o ao regime dos imóveis. Estes não procedem por várias razões:
o Se é certo que o imóvel tinha grande peso na empresa, isto é cada vez menos verdade,
existindo empresas nas quais não há imóveis, ou nas quais este tem um papel lateral.
Veja-se ainda o fenómeno da desvalorização e relativização do local da exploração
associada aos fenómenos da deslocalização.
o Os prazos de usucapião para imóveis são longos graças ao peso do interesse do titular
do direito de propriedade imobiliária face ao mero possuidor – não é isso que se passa
no âmbito da empresa, na qual o sujeito que a detém em cada momento tem um papel
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O estabelecimento comercial é um bem (coisa) no património de um sujeito que não tem qualquer
autonomia nesse plano, no que respeita a dívidas. Quer o titular seja um comerciante em nome
individual, quer ele seja uma sociedade, o estabelecimento não fica imune às dívidas que o sujeito
contraia fora do exercício da actividade em que se analisa o estabelecimento; e pelas dívidas
resultantes da sua exploração responde todo o património do sujeito, em plano de igualdade. (art.
601º CC)
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Em geral, as dívidas emergentes de actos de comércio não convocam a afectação especial de bens,
mesmo quando o sujeito é comerciante e tem um património especialmente afectado ao exercício
mercantil.
Só não será assim quando o sujeito constituiu um EIRL. Neste caso, o estabelecimento é constituído
como património autónomo. O comerciante destaca do seu património geral uma massa de bens
que passa a constituir um património autónomo e pelas dívidas decorrentes do exercício da sua
actividade mercantil, responde unicamente essa massa de bens. (DL 248/86) Cassiano dos Santos
diz-nos que, mesmo neste caso, não há autonomia ou separação patrimonial total.
O estabelecimento como bem (coisa) que é pode constituir objecto de negócios, isto é, pode ser
retro-transferido. Uma vez que muitos dos problemas específicos que se suscitam têm que ver com
a natureza sui generis desse bem, o tráfico e a lei utilizam muito frequentemente um conceito –
trespasse – para designar um conjunto de negócios que tenham por objecto o estabelecimento e que
tenham por efeito a transmissão da sua propriedade. Trespasse, portanto, não corresponde a
nenhum específico tipo contratual e a sua definição não é susceptível de ser estabelecida a priori.
Na verdade, visando-se apreciar o que de específico se coloca na transmissão da propriedade do
estabelecimento, mostra-se irrelevante a causa em concreto da transmissão. São o objecto do negócio
e os efeitos que ele visa produzir que suscitam problemas específicos. Uma vez que esses problemas
são comuns aos diferentes negócios que tenham o mesmo objecto e os mesmos efeitos, compreende-
se o uso de um conceito comum para os designar.
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Dado o especial modo de ser do estabelecimento como bem composto por múltiplos outros bens e
elementos, que, como se viu, são dotados de autonomia pelo menos relativa e, assim, são
susceptíveis de serem dele cindidos, qualquer negócio sobre o estabelecimento tem como principal
problema o do âmbito da entrega. A ambivalência da empresa releva aqui, por duas razões:
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É cada vez mais raro o exercício do comércio a título individual já que hoje muitos dos exercícios
económicos se fazem por intermédio de sociedades. Isso deve-se ao facto de o comerciante individual incorrer
em responsabilidade ilimitada pelas dívidas que decorrem do seu exercício, respondendo todo o seu
património, quer o afecto à actividade comercial, quer o património civil. Só não é assim se o sujeito criar uma
sociedade, respondendo a sociedade nos mesmo termos que o comerciante responde - sem limitação pelas
suas dívidas. Mas, neste caso, entre a dívida e o sujeito interpõe-se um elemento: a sociedade.
Ora, há assim uma tendência cada vez mais actual que é a de não se negociar a empresa, mas sim, como
muitas delas integram o património de sociedades comerciais (especialmente em processos de concentração
empresarial) se proceder à aquisição das participações sociais (acções/quotas) de uma sociedade (A), por
parte de outra sociedade (B) que, tornando-se eventualmente sócio único ou quase único, fica com o domínio
(total) sobre a empresa (A). Tem-se, pois, distinguido:
Asset deal - Compra da empresa
Chair deal - Compra das participações sociais (acções ou quotas)
Nestes casos, há que fazer o “levantamento do véu” da personalidade jurídica e tratar sociedade e
sócio como se fossem a mesma pessoa. Sendo assim, para certos efeitos há que equiparar estas duas figuras
que tal tem muita importância para efeito de garantia e vícios da coisa (Art. 905º CC); para a obrigação de não
concorrência; direito de denúncia de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor (alteração da
titularidade em + de 50%) (art. 26º/6/b e 28º da lei 6/2006 RAU e ainda 56º/c).
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A translação da empresa como bem de uma esfera jurídica para outra pode ainda incluir, no ver de
ORLANDO DE CARVALHO, prestações para obter a imissão do adquirente na posse do
estabelecimento. Isto é, pode acarretar um certo tipo de obrigações para o alienante - pode ter de
fornecer listas de clientes, apresentação aos novos fornecedores, apresentação aos novos clientes,
explicar a contabilidade, etc... Para que o adquirente seja imitido no know-how é preciso que o
alienante lho explique. Procura-se essencialmente potenciar a transmissão da organização e
sobretudo dos valores de imagem pública, tendo um relevo complementar na transmissão dos
factores produtivos. Em caso de incumprimento destas obrigações, há lugar a responsabilidade por
cumprimento defeituoso nos termos gerais do CC - em último caso determinará a invalidade do
negócio.
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âmbito mínimo é fixado para determinada negociação (varia com o negócio) de um determinado
estabelecimento num determinado momento (por força da lei tendencial, quanto mais o
estabelecimento funcionar de menor número de elementos se irá compor o seu âmbito mínimo). A
negociação de um determinado estabelecimento sempre postulará, pois, a transmissão de um
conjunto mínimo de elementos do lastro ostensivo que será menor quanto mais tempo a empresa
esteja em funcionamento – nesses casos, será o mínimo dos mínimos. (lei tendencial)
O âmbito mínimo determina-se com base no critério da essencialidade do elemento para aprisionar
o valor de posição no mercado do estabelecimento. A este âmbito mínimo, contrapõe-se o âmbito
não mínimo ou conjunto de elementos cuja transmissão pode ser excluída pelas partes, ao abrigo da
liberdade de conformação do estabelecimento na negociação. Depende pois da essencialidade do
elemento na transmissão ou não.
Ora, o âmbito natural integra aqueles elementos que passam com o estabelecimento, mesmo sem
vontade específica das partes nesse sentido: a vontade de transmitir o estabelecimento abrange
naturalmente a transmissão de tais elementos. Quanto a estes elementos, as partes podem acordar a
sua exclusão do negócio mediante vontade específica (expressa ou tácita) nesse sentido – mas tal
exclusão poderá determinar que o direito que incidia sobre o elemento não se transmita, mas o
elemento em si mesmo, se pertencer ao concreto âmbito mínimo da negociação do estabelecimento,
poderá passar, não ao abrigo daquele direito que não passou, mas sim ao abrigo de um outro direito
– direito de disponibilidade simples.
A liberdade das partes para excluírem os elementos do âmbito natural da negociação do
estabelecimento é limitada pelo âmbito mínimo: tratando-se de um elemento do âmbito mínimo, as
partes podem excluir da negociação o direito que incidia sobre esse mesmo elemento (p.e. o direito
de locação), mas já não podem convencionar que o trespassário não terá nenhum outro direito sobre
esse elemento, posto que em tais circunstâncias admite-se, no mínimo, um direito de
disponibilidade simples.
Note-se que, em bom rigor, não são os elementos em si mesmos que são objecto de transmissão
natural mas os direitos ou títulos sobre eles ou as posições jurídicas dele emergentes. Para mais,
permite apenas a transmissão da posição jurídica pré-existente ou de uma de conteúdo mais
restrito, mas não mais ampla.
Deve entender-se que integram o âmbito natural das transmissões da propriedade do
estabelecimento (a título oneroso ou gratuito, inter vivos ou mortis causa):
1) Os direitos obrigacionais sobre imóveis (arrendamento, p.e.)
2) Os direitos reais sobre móveis (matéria primas, mercadorias, equipamentos)
3) O logótipo, quando nele não figure o nome individual, a firma ou a denominação social do
seu titular ou requerente do respectivo registo (art. 31º/5 CPI a contrario)
4) A marca quando nela não figure o nome individual, a firma ou a denominação social do seu
titular (art. 31º/5 CPI a contrario)
5) Direitos de propriedade industrial (como a patente)
6) Posições contratuais;
7) Créditos impuros (art. 577º/1 e 583º CC)
8) Débitos impuros (deve aplicar-se o regime civil do art. 595º CC – Cassiano dos Santos)
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Quanto aos últimos três, afirmar-se que integram o âmbito natural significa apenas que, na relação
entre transmitente e transmissário do estabelecimento, tais elementos se transmitem, salvo acordo
em sentido contrário. Outra questão será de saber qual os efeitos disto relativamente ao terceiro – o
contraente cedido, o devedor ou credores cedidos. Como é bom de ver, o facto de, por exemplo, ser
necessário o consentimento do contraente cedido para que a cessão lhe seja oponível (p.e. art.
32º/1/8 CPI) não significa que, sem tal consentimento, não existe cessão: significa apenas que
apesar de ter havido cessão, esta é ineficaz em relação a ele. Inversamente, mesmo admitindo que a
cessão, a existir, não carece de consentimento do contraente cedido (art. 1112º CC e art. 11º DL
149/95), sempre será necessário mostrar que ocorreu efectivamente essa cessão.
É composto por aqueles elementos los lastro ostensivo que só mediante declaração de vontade ad
hoc (específica, seja ela expressa ou tácita) acompanham a negociação do estabelecimento. A
vontade das partes para a transmissão doe estabelecimento não é suficiente para transmitir tais
elementos, requerendo-se um outro acordo de vontades para que acompanhem o estabelecimento.
Nos negócios de transmissão definitiva do estabelecimento, o âmbito máximo integra:
1) Os direito reais sobre imóveis. E é assim porque avulta o princípio segundo o qual esses
direitos não se transmitem sem uma declaração especialmente dirigida a essa transmissão e
que se revista da forma legalmente exigida para tal. Essa declaração não tem que ser
expressa, podendo ser tácita.10
2) O direito sobre a firma do comerciante, adquirindo na realidade, não o direito à firma, mas o
direito a utilizar a firma do trespassante ao lado da sua. (art. 44º DL 129/98)
3) O logótipo quando nele figure o nome individual, a firma ou a denominação social do seu
titular ou requerente do respectivo registo (art. 31º/5 CPI a contrario)
4) A marca quando nela figure o nome individual, a firma ou a denominação social do seu
titular (art. 31º/5 CPI)
5) Os créditos11 e débitos puros. (aqueles aos quais não corresponde no momento do trespasse
qualquer contraprestação, p.e., uma dívida a um banco decorrente de um empréstimo;
dívida a um fornecedor pelo fornecimento efectuado por este. – ver art. 595º/1/a CC)
Compõe-se daqueles elementos que a lei impede que as partes, transmitindo o estabelecimento,
excluam da transmissão. Depende da vontade das vontades transmitir o estabelecimento; fazendo-
o, já não depende da vontade delas a transmissão deste elemento. É o que sucede com os contractos
de trabalho. (art. 318º/1 º CT)
10 CAROLINA CUNHA e RICARDO COSTA defendem que este direito pertence ao âmbito natural.
11
Quando se trate de uma letra de câmbio, não se transmite sem que haja o endosso nos termos próprios.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
Pode acontecer que os elementos transmitidos, de acordo com o critério para a determinação do
âmbito convencional, natural e imperativo, fiquem aquém do âmbito mínimo. Nestas circunstâncias
impõe-se a opção entre uma ou duas possibilidades: uma vez que a transmissão do estabelecimento
só pode ocorrer mediante a transmissão de determinados elementos do lastro ostensivo – âmbito
mínimo-, então ou esses elementos passam ou não haverá transmissão do estabelecimento.
O primeiro passo consistirá em re-apreciar a interpretação do negócio celebrado: é que quando as
partes não incluem no negócio elementos do âmbito mínimo de negociação, então pode dar-se o
caso de que elas não queriam negociar o estabelecimento. Se esta interpretação concluir pela
inexistência de um negócio sobre o estabelecimento, nenhum problema subsistirá quanto ao
preenchimento do âmbito mínimo. Mas se se confirmar que a vontade das partes consistiu na
transmissão do estabelecimento, então impõe-se encontrar uma via que permita conjugar essas duas
vontades aparentemente contraditórias.
A conjugação dessas duas vontades faz-se através do já referido direito de disponibilidade simples
sobre os elementos do âmbito mínimo que não tiverem passado – de acordo com as regras do
âmbito convencional e natural.
Por exemplo, suponhamos que o imóvel integrava o âmbito mínimo e que o titular do estabelecimento
dispunha de um direito de propriedade sobre aquele. Uma vez que os direitos reais sobre imóveis pertencem ao
âmbito máximo ou convencional, se não tiver havido uma vontade ad hoc para a transmissão do direito de
propriedade, este nãos e transmitiu. Nem tanto se mostra necessário para o preenchimento do âmbito mínimo:
para o preenchimento do âmbito mínimo é imprescindível apenas que o adquirente do estabelecimento possa
utilizar esse elemento do lastro ostensivo, já sendo para este efeito irrelevante o título jurídico a que o faça. Ou
seja, ponto é que, tratando-se de um elemento do âmbito mínimo, o novo titular do estabelecimento disponha
do direito de usar o imóvel no âmbito da exploração do estabelecimento adquirido. Cassiano dos Santos diz que
se o transmitente não reconhecer esse direito de disponibilidade simples, incorrerá em incumprimento da
obrigação de entrega do estabelecimento.
Ora, o direito de disponibilidade simples é, portanto, o direito mínimo que permite assegurar ao
adquirente do estabelecimento o uso de um elemento imprescindível à transmissão:
1) É um direito obrigacional – e não real.
2) Atípico – porque não se encontra previsto na lei.
3) À exploração pessoal – só o adquirente do estabelecimento goza deste direito, sendo ele
intransmissível, com ou sem o respectivo estabelecimento.
4) E produtiva – o direito só existe na medida em que sirva a exploração produtiva do
estabelecimento objecto de transmissão.
Este direito obrigacional atípico a uma exploração pessoa e produtiva de um elemento do âmbito
mínimo é, em princípio, temporário, só durando pelo tempo necessário para que o adquirente
estabilize na sua esfera o valor de posição no mercado que o é. Os elementos do âmbito mínimo
servem para transmissão daquele valor específico do estabelecimento – uma vez transportado esse
valor para a esfera do adquirente, este poderá dissociar o valor de posição no mercado daquele
elemento em concreto, deixando então e existir motivo para que persista este direito.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
Só não será assim quando se tratar de um estabelecimento vinculado a tal elemento, caso em que,
visto não ser possível dissociar um do outro, o direito de disponibilidade simples tenderá a
converte-se num direito à locação.
Se o direito de disponibilidade simples não for reconhecido, incorre o sujeito transmitente em
incumprimento da obrigação de entrega do próprio estabelecimento.
Pode também acontecer um incumprimento da obrigação de entrega de um bem especificamente
negociado ou que faz parte do âmbito natural e não foi excluído. O adquirente terá, neste caso,
direito à entrega do elemento nos termos gerais – há que distinguir consoante o bem se encontre ou
não no património do trespassante. Em qualquer caso, o adquirente poderá exigir a entrega do bem
e mesmo, se for o caso, reivindica-lo de terceiro, sempre nos termos gerais ou pode optar por
invocar o incumprimento. Neste caso, se o bem pertencer ao âmbito mínimo, o incumprimento é
um incumprimento da própria obrigação de entrega do estabelecimento; se o bem não pertencer ao
âmbito mínimo, terá lugar uma mera redução do preço (art. 911º, aplicável por força do 913º CC)
Dos muitos elementos que integram o lastro ostensivo, destaca-se, pela sua importância, o imóvel
em que o estabelecimento se encontra instalado. Esta importância pode decorrer do valor do imóvel
ou da sua adequação ao estabelecimento em causa; à escassez de outros imóveis para onde o
estabelecimento se pode transferir, etc…
Por qualquer uma de tais razões, é frequente que as partes tenham interesse em que o imóvel
acompanhe o trespasse: nisso tem interesse o trespassante, porque a transmissão do imóvel pode
valorizar muito o estabelecimento; nisso tem interesse o trespassário, porque o imóvel, mesmo que
não integre o âmbito mínimo, pode sempre facilitar a passagem dos valores de posição no mercado
– além de que podem nem sequer existir no mercado outros imóveis com características ou custo
idênticos. No fundo, é frequentemente do interesse das partes que o imóvel integre o trespasse.
Quando o trespassante do estabelecimento, além de proprietário do estabelecimento, seja também
proprietário do imóvel, então depende apenas da vontade das partes no negócio de trespasse para a
passagem desse elemento do lastro ostensivo.
Já no caso de que o imóvel esteja integrado no estabelecimento ao abrigo de um contrato de
arrendamento celebrado com um terceiro, a questão coloca-se diferentemente, visto que a
transmissão do direito sobre o imóvel já não é matéria que se cinja à relação entre o trespassante e o
trespassário do estabelecimento. O senhorio, não sendo parte no contrato de trespasse, é parte no
contrato de arrendamento.
Se as partes no trespasse excluírem da negociação qualquer direito sobre o imóvel, nenhuma
questão específica se coloca – o trespassante, deixando de ser titular do estabelecimento, continuará
a ser arrendatário do imóvel. Mas já será diferente o caso em que as partes pretendam também
transmitir, juntamente com o estabelecimento, o direito sobre o imóvel. Ora, à luz do regime geral
de cessão da posição contratual (art. 424º/2) é necessário o consentimento do contraente cedido,
para que a cessão lhe seja oponível. Este regime geral da cessão da posição contratual parece ser
aplicável à generalidade das posições contratuais inscritas no lastro ostensivo do estabelecimento.
Mas, em certos casos, o legislador isentou deste mesmo regime a cessão da posição de arrendatário
em contractos de arrendamento para fins não habitacionais. (art. 1112º/1/a CC)
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O actual art. 1112º/2 CC apresenta os casos em que não há trespasse. O que se discute é se a lei
pode e deve ser levada à letra, concluindo-se pura e simplesmente que não há trespasse quando a
transmissão não seja acompanhada da transferência em conjunto dos utensílios, o que podia levar a
situações inaceitáveis. A doutrina tem considerado que o preceito não pode ser levado à letra, isto é,
que o simples facto de a transmissão do estabelecimento não ser acompanhada da totalidade dos
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
elementos do seu lastro ostensivo não determina, por si só, a inexistência de trespasse, nem tão-
pouco arreda a aplicação do nº1. Carece o texto de interpretação restritiva.
Porém, diverge a doutrina quanto à exacta interpretação que deve ser dada ao preceito:
1) Seria uma presunção de inexistência de trespasse, com a consequente inversão do ónus da
prova?
2) Seria um mero indício da inexistência do trespasse, impondo ao juiz um especial cuidado na
averiguação de uma possível simulação do negócio?
3) Imposição de que o estabelecimento passe no essencial, tal como existia na esfera do
arrendatário – não tendo e se transmitir todos os elementos do lastro ostensivo, mas também
não bastando a simples observância do âmbito mínimo.
Nogueira Serens defende que o que está em causa é a transmissão do âmbito mínimo. Cassiano dos
Santos entende não se exige apenas o âmbito mínimo, sendo necessário que seja transmitidos os
elementos que permitam reconhecer o estabelecimento com a mesma configuração essencial, em
termos de justificar a dispensa de autorização do senhorio – o estabelecimento tem que passar, no
essencial, tal como existia na esfera do arrendatário. Desde logo, porque entende que se fosse
apenas necessário o âmbito mínimo cairíamos num vício: sem o âmbito mínimo, não há trespasse e
nem sequer há funcionamento do art. 1112º/1 CC.
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CASSIANO DOS SANTOS alerta-nos que a norma não deve ser interpretada de forma literal, sob pena de
incongruência. Assim, o legislador, ao dizer “não há trespasse”, pretende, neste caso do art. 1112º/2/b CC
dizer que não há trespasse para efeitos do art. 1112º/1 CC, isto é para efeitos de dispensa do senhorio. Ou
seja, haverá trespasse, mas não para efeitos do art. 1112º/1 CC. Desde logo, porque o autor considera que o
intuito que subjaz à transmissão não tem qualquer relação com a existência ou não de trespasse – desde logo,
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No primeiro caso, nos dizeres da lei não há trespasse para efeitos no nº1, isto é, a cessão da posição
de arrendatário não estava dispensada do consentimento do senhorio (e por isso a cessão é ilícita ab
initio); no segundo caso, emerge para o senhorio, no momento da mudança do destino, um direito
de resolução do contrato – que fora válida e eficazmente cedido sem o consentimento do senhorio,
visto ter sido incluído num trespasse.
Assim, este artigo 1112º/2 deve ser entendido com um artigo que estabelece requisitos adicionais
para que a cessão da posição contratual dispense consentimento do senhorio. Cada uma das alíneas
é autónoma.
O art. 1112º/5 prevê uma causa de resolução directa, com fundamento na mudança de destino, e
não consequencial como a do nº2. Trata-se de uma causa objectiva e autónoma de resolução do
contrato de arrendamento, assente num facto de fácil verificação e cuja constatação permite concluir
pela inexigibilidade da aceitação da mudança de inquilino comercial por parte do senhorio. O
preceito visa impedir os negócios em que a dispensa de consentimento do nº1 não se justifica e que
são aqueles em que o adquirente passa a explorar outra empresa que não aquela cuja transmissão a
lei tutela pelo nº1 ou em que, simplesmente, tem esse intuito.
O objectivo dos dois preceitos é, pois, o de equilibrar a relação contratual de arrendamento, não
impondo ao senhorio que suporte mudanças de inquilino para lá do necessário a uma tutela do
valor que é o estabelecimento. Neste artigo, a resolução só é possível quando a mudança se dá após
a transmissão da posição de arrendatário. Temos que saber se este após é imediato ou mediato, para
efeitos deste artigo.
Para CASSIANO DOS SANTOS, se o adquirente, após a transmissão, passar a explorar o
estabelecimento em exploração estável e consistente, e só mais tarde, por isso, der outro destino ao
prédio, não se aplica o art. 1112º/5, ficando a situação coberta pelo fim estabelecido no contrato ou
dando ao senhorio base para resolver com fundamento na violação do contrato – da cláusula sobre
o fim. Ou seja, o art. 1112º/5 refere-se ás mudanças mais subsequentes à transmissão. Esta
interpretação é confirmada pelo elemento racional, já que os nº2 e 5 servem para restringir a
possível transmissão àquela empresa que existia e da qual o contrato era um elemento. Realizada a
transmissão (nº2) ou firmada ela (nº5), não há razão para intervir o art. 1112º CC, devendo voltar-se
a aplicar as regras gerais de resolução do contrato. Se o nº5 fosse interpretado de maneira
intemporal, o arrendatário ficaria numa posição muito limitada dos seus poderes de alterar a
empresa naquela imóvel e o interesse de terceiros na aquisição da empresa seria bastante reduzido.
E não se pode invocar que o interesse do senhorio é injustificadamente sacrificado à luz desta
porque se foi esse o negócio efectuado realmente, declarado e querido, o destino que se pretende dar ao bem
após o negócio é irrelevante.
Assim, para CASSIANO DOS SANTOS, a existência de um trespasse resulta logo do nº 1 como condição para
que seja dispensada a autorização do senhorio. Se não há trespasse, não se põe sequer a questão de aplicação
do art. 1112º/2 CC. Ambos os requisitos adicionais introduzidos neste nº 2 são de verificação automática,
independentemente do juízo global que se faça sobre o negócio: havendo trespasse, mas verificado que se está
perante uma das hipóteses do nº2, a consequência imediata é que, sem amais ponderação, não há dispensa da
autorização.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
interpretação porque ele não tem qualquer interesse relevante em limitar o exercício no imóvel para
lá do que fez inscrever no contrato pelo qual se vinculou a arrendar.
Neste âmbito, a lei 6/2006 veio ainda a impor uma outra diminuição aos contractos de
arrendamento cedidos no âmbito do trespasse. Assim sendo:
Se se tratar de um contrato de duração indeterminada anterior ao NRAU, o simples facto
de ocorrer trespasse (que inclua a posição de arrendatário) atribui ao senhorio um direito
de denúncia livre, que poderá operar passados 5 anos (art. 28º e 26º/4/c NRAU e 1101º
CC); neste caso mesmo que venha a ser dado outro destino ao prédio (como se requer no
art. 1112º/5, o senhorio poderá, através de denuncia ad nutum, por fim ao arrendamento.
Se se tratar de um contrato com prazo certo anterior ao NRAU, o direito caducará com o
decurso do prazo e, antes disso, o senhorio também poderá resolver o contrato se se
verificar o pressuposto do art. 1112º/5 CC.
Num caso ou noutro, se o contrato for anterior ao DL 257/95, então o senhorio poderá,
em vez da denúncia ou resolução do contrato, optar pela actualização das rendas. (art.
30º, 50º e 56º/b Lei 6/2006)
Concluindo, o contrato de arrendamento em que o trespassário irá ser parte é o mesmo, mas não
será o mesmo o regime a que ele ficará sujeito.
Com o NRAU, esta temática passou a ter uma importância prática muito menores: o senhorio pode
denunciar com um pré-aviso de 5 anos, caso se trate de um contrato por tempo indeterminado; e
pode resolver logo que o novo inquilino dê novo destino ao imóvel; e como quer que seja, os novos
contractos já não estão sujeitos ao regime vinculísticos.
Na lei anterior, discutia-se qual era a consequência de não notificar o senhorio ou notificar o
senhorio fora de prazo - a jurisprudência entendia que a falta de notificação conduzia a resolução
do contrato de arrendamento; outra parte dizia que a falta de comunicação não é um requisito que
possa conduzir à resolução do contrato, provocando apenas uma ineficácia, ou seja, aquela
transmissão do contrato de arrendamento não produz efeito face ao senhorio - o que determina que
tudo se vai passar como se não houvesse transmissão do arrendamento.
Hoje, a transmissão da posição de arrendatário tem de ser notificada ao senhorio, em caso de
trespasse – art. 1112º/3 - devendo a comunicação ser feita em 15 dias. (art. 1038º/g CC) – mas o
transmissário pode substituir-se-lhe (art. 1049º/in fine CC). A lei não estabelece a sanção para o não
cumprimento ou atraso no cumprimento da obrigação. CASSIANO DOS SANTOS entende, porém,
que hoje é possível sancionar autonomamente a falta de comunicação, com base na conjugação do
art. 1112º/3 com a cláusula geral prevista no art. 1083º/2 CC. Afasta, pois, a aplicação do art.
424º/2, cuja aplicação não teria justificação, ou o art. 1083º/2/e CC desde logo, porque a
notificação desempenha aqui uma função limitada dado que a exigência de notificação visa
controlar o uso da autorização que foi conferida e era necessária.
Neste âmbito, a comunicação desempenha um papel importante. Ela permite ao senhorio
desencadear o controlo da licitude da transmissão à luz do art. 1112º/1/2/5, assim como é a
condição prática para a atribuição de de direitos relevantes atribuídos na lei ao senhorio,
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permitindo-lhe ainda exercer certos direitos associados à existência de trespasse. Sendo grave a falta
de comunicação, serve de base à resolução do contrato, ponto é que “pela sua gravidade (…) torne
inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento” – isto é que se verifiquem consequências
graves que se tenham repercutido na situação do senhorio no contrato.
CASSIANO DOS SANTOS diz-nos ainda que a falta de comunicação deve ser entendida como
presunção de facto da inexistência de trespasse para efeitos do art. 349º/1 CC, colocando o ónus da
prova da regularidade substancial da transmissão da posição contratual na pessoa do trespassante e
trespassário.
Para efeitos do art. 1049º CC o reconhecimento do cessionário pelo senhorio impede a resolução
mas, no caso de trespasse, e por interpretação da norma, o reconhecimento deve ser equiparado ao
conhecimento não casual (aquele que decorre de um qualquer comportamento que se dirige ao
senhorio e leva ao seu conhecimento directa ou indirectamente o trespasse e a transmissão do
arrendamento- basta o conhecimento completo). Não o suprem o simples pagamento da renda pelo
adquirente nem a notificação para trespasse prévia ao negócio, porque os fins da comunicação não
são realizados por esses actos.
Até 2006, o trespasse estava sujeito a escritura pública. Porém, atento o principio da liberdade de
forma do art. 219º CC, parece que hoje já nãos e encontra sujeito a forma, visto que a lei deixou de
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Há quem entenda que este artigo se refere ao trespasse, retirando-se daí a exigência de que seja realizado
em forma escrita. CASSIANO DOS SANTOS e NOGUEIRA SERENS rejeitam esta posição. Razões:
A desformalização do trespasse está em conformidade com o principio geral da liberdade de forma,
que tem especial expressão no direito comercial.
O art. 1112º regula especificamente a transmissão do contrato de arrendamento para fins não
habitacionais e não o trespasse.
A solução que resulta do enquadramento sistemático é a de que ao estabelecer a exigência de forma
escrita para a transmissão, não pode deixar de se referir à transmissão do contrato de arrendamento e
não ao trespasse em geral.
É o sentido literal da norma que se harmoniza com o sentido regulativo geral do sistema em que se
insere.
A restrição do âmbito de aplicação do art. 1112º/3 ao sentido que imediatamente resulta da sua letra é
a solução mais conforme com a preservação do valor segurança jurídica.
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Importa, porém, distinguir os casos em que o acordo versa directamente sobre a própria liberdade
de concorrência e aqueles casos em que a restrição desta é tida como consequência necessária ou
implícita da celebração de um outro contrato. (ancillary restraint of trade)
Neste segundo tipo de casos, quando não expressamente convencionada a obrigação de não
concorrência, o trespasse acarreta naturalmente, para o trespassante, a obrigação de se abster
(durante um certo tempo e em certo espaço) de concorrer com o adquirente do bem que o
estabelecimento é. Tal deve-se ao facto de o vendedor dever entregar a coisa vendida e assegurar o
seu gozo pacífico (obrigação de não evicção). À luz desses deveres pode afirmar-se que só há
violação de entregar e respeitar o gozo do bem pelo adquirente quando há um ataque ao concreto
bem transmitido e aos valores que o integram, o que significa que o alienante não pode reapossar os
bens envolvidos e não pode também produzir total ou parcialmente a organização para com ela vir
a recuperar a posição diferenciada que transmitiu ou parte dela. Para aferir tal coisa, é
imprescindível que as organizações sejam, elas próprias similares.
Ou seja, a natureza sui generis do bem em causa impõe ao trespassante a abstenção de concorrer com
o adquirente, pois que o bem transmitido, em caso contrário, seria facilmente desfalcado de valores
importantes, como o aviamento e acreditamento público. Isso deve-se ao facto de o trespassante
surgir como um concorrente diferenciado e especialmente perigoso, dada a natural tendência de a
clientela ser atraída para o novo estabelecimento do trespassante. Isto porque a clientela é, em
princípio, fiel ao trespassante seguindo-o para o novo estabelecimento. Mas note-se, não há aqui um
dever geral de não concorrência de natureza absoluta, porque a proibição de concorrer só se
apresenta na medida em que se comporte violação dos deveres gerais de entrega e não evicção,
atacando o transmitente os valores transmitidos, o que pressupõe necessariamente que ele reproduz
total ou parcialmente a organização, imitando-a, para com esse mecanismo concorrente se
apresentar no mercado com uma identidade similar da empresa transmitida e recuperar parte ou
todos os valores de imagem pública transmitidos.
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para o adquirente de uma empresa, fica obrigado a não concorrer se não for o
alienante dela; por outro lado a perigosidade tem que ser analisada de uma ponto de
vista objectivo – a reprodução tem de ser possível e verificável externamente.
b. Analisando o que foi dito, não vale esta obrigação contra o cônjuge não contitular,
sobre filhos, outros familiares, empregados ou colaboradores – relativamente a estes
vale apenas a proibição de concorrência desleal. (art. 317º CPI)- CASSIANO DOS
SANTOS
4) Âmbito real ou merceológico – Círculo de condutas proibidas. Deve ser estrito, de tal
maneira que não são proibidas actuações que não consistam na reprodução do
estabelecimento trespassado. No fundo, é necessário que se reproduza a organização de tal
modo que se torna possível identifica-la externamente com a anterior, podendo assim
recuperar valores ou até a própria empresa. Pode, por exemplo, desempenhar funções em
empresa concorrente. E a participação em sociedade só será proibida se se concluir que há
uma utilização da personalidade jurídica da sociedade para contornar a obrigação, havendo
primeiro que verificar a reprodução da organização trespassada nas mãos da sociedade.
Poderá, em tal hipótese, a violação da obrigação, além de responsabilidade em termos
gerais, acarretar a desconsideração da personalidade própria da sociedade, considerando-se
obrigado e sociedade como um só sujeito. Relativamente à sociedade, a desconsideração sío
produzirá efeitos se se verificar que ela foi absoluta e exclusivamente instrumentalizada pelo
obrigado para concretizar a violação.
A densificação e cada um destes âmbitos não é uniforme na doutrina, ainda que seja unânime que
se as partes nada convencionarem, a obrigação e não concorrência implícita só vale por certo tempo,
num certo espaço, para certas pessoas e para certas actividades.
Nota: em caso de que a obrigação de não concorrência seja explícita e fora dos limites e
fundamentos acima analisados, sem que exista uma justa causa para tal, deve o juiz reduzir a
cláusula e torna-la válida – teoria do blue pencil. Cassiano dos Santos diz que a cláusula será nula
por violação do principio da ordem pública.
Os contraentes podem ainda afastar ou restringir a obrigação de não concorrência (clausulas de
restabelecimento). Não podem, no entanto, afastar a obrigação e entrega e o dever de não evicção,
que são imperativos (sendo nulas as clausulas que os afastem – art. 294º CC). Deve haver pois muito
cuidado com a interpretação destas cláusulas. Uma cláusula de restabelecimento pode significar
que os sujeitos não quiseram negociar a empresa ou que o objecto do negócio foi restringido
indirectamente.
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existe para isso e não pode existir para além disso, sob pena de ser uma restrição proibida da
concorrência, contrária à CRP e ao art. 101º TFUE.
O nosso legislador, quanto ao tempo, não fixou um prazo, tendo a doutrina tentado fixar critérios
para delimitar a extensão temporal desta obrigação. De uma maneira geral, podemos dizer que a
proibição dura pelo tempo necessário à consolidação dos valores de posição no mercado nas mãos
do adquirente. Ou seja, é necessário o tempo para que o sujeito fixe os valores sui generis do
estabelecimento em causa, avaliando esse período temporal do ponto de vista de um adquirente
médio, normalmente sagaz e diligente (CASSIANO DOS SANTOS). Nesse momento, a concorrência
do trespassante já não terá de ser diferenciada, mas pode ser igual à de qualquer outro concorrente.
Há, pois, critérios para a determinação da duração desta obrigação:
O âmbito temporal da proibição varia consoante o tipo de estabelecimento em causa,
dependendo da periodicidade do consumo, rapidez do relacionamento da clientela com
o estabelecimento, etc…
Ela não depende da aptidão ou inaptidão que o trespassário revele para consolidar nas
suas mãos o aviamento da empresa. Esta obrigação não assegura que o trespassário se
apoderará efectivamente de todos os valores do estabelecimento, mas sim que desfrutará
de condições objectivas para a consecução desse desiderato. Neste sentido, esta
obrigação não oferece resultados, mas sim meios para os alcançar.
Deve ter-se em consideração o princípio da liberdade de concorrência, no quadro de um
processo económico cada vez mais rápido, devendo evitar-se prazos desmesurados.
A obrigação dura pelo tempo necessário e suficiente para que o sujeito se apodere dos
valores sui generis de determinado estabelecimento, fixando-se este período no momento
do próprio negócio.
O art 102º CCom. é uma norma de escasso valor preceptivo, pois limita-se a consagrar aquilo que já
resultaria dos princípios gerais ou de outras disposições: em caso de convenção nesse sentido, ou de
disposição legal que o preveja, os actos de comércios vencerão juros. Duas notas:
1) A convenção de juros deve ser reduzida a escrito, ainda que possa ser posterior ao acto a que
respeita – mas se estiver sujeito a forma mais exigente do que a simples forma escrita, a
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convenção de juros deverá obedecer a essa mesma forma, pois que, dado o relevo da taxa de
juro, as razões que determinam a exigência de forma do acto comunicam-se-lhe (art. 221º
CC)
2) Aplicam-se aos juros comerciais o preceituado sobre juros usurários nos arts. 559º-A e 1146º
CC.
Este regime vale para os juros compensatórios e para os moratórios. O preceito mais significativo é
o do 3º parágrafo que diz que os créditos de que sejam titulares sujeitos detentores de empresas
comerciais para os quais resulte da lei o vencimento de juros de mora ou que, por convenção,
estejam sujeito a um juro sem determinação da taxa ou quantitativo, beneficiam de uma taxa de
juros especial fixada em portaria conjunta do Ministério das finanças e da Justiça. Vigora a Portaria
597/2003 que diz que a taxa de juro é a aplicada pelo BCE à sua mais recente operação de
refinanciamento efectuada antes do 1º dia de Janeiro ou do 1º dia de Julho, consoante se esteja no 1º
ou 2º semestre do ano, acrescida de 7%, prevendo a divulgação dessa taxa por aviso da direcção
geral do tesouro, em cada semestre (antes do dia 15/01 e 15/07).É uma taxa de juros especial
supondo que o vencimento dos juros decorre de previsão legal ou contratual. Se a convenção previr
a taxa, vale a previsão, excepto se incorrer em usura.
Apesar de a lei não o especificar, deve entender-se que os créditos ficam sujeitos à taxa de juro
especial são aqueles que decorrem da actividade profissional do sujeito titular da empresa – ainda
que os créditos que resultarem de actos comerciais, por via do art. 15º, se presumem contraídos no
exercício do seu comércio. Serão, pois, créditos necessariamente emergentes de actos de comércio,
mas não relevando os créditos que resultem de actos subjectivos que se demonstre ulteriormente
que não foram praticados no exercício da empresa e actos objectivos que se apure serem também
exteriores a esse exercício.
A restrição que se assinala funda-se na ratio do preceito e é indiciado pela letra da lei e pelo sentido
que nela se empresa o termo empresa. (sentidos subjectivo e institucional).
A cessão de exploração é um negócio temporário que tem por objecto a empresa. Não é um contrato
legalmente tipificado, havendo que recorrer à tipificação social que se pode identificar. Observada a
sua prática constante, pode dizer-se que a cessão de exploração é o contrato através do qual o
proprietário de uma empresa cede a outrem o seu gozo com o inerente leque de poderes, incluindo
o de fazer apropriação dos lucros, por certo prazo, mediante uma certa contrapartida, que se
designa por renda, a qual pode livremente ser estipulada (dinheiro, renda mista – participação nos
lucros e assunção das dívidas), o se configure uma participação do cedente no exercício do
cessionário que aproxime o contrato de uma associação em participação. A cessão tem por objecto
um estabelecimento, mesmo que ele ainda não tenha funcionado. Esta expressão é a mais utilizada
pela jurisprudência e a mais adequada. Não pode ser reconduzida esta figura à locação prevista no
art. 1022º CC porque essa não tem regulação adequada para a especialidade deste contrato, para
além de que a natureza do bem e especificidade do negócio implicam um dever de exploração que
não tem qualquer paralelo nos devedores do locatário civil.
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Este negócio não está tipificado, nem regulado. É, porem, acto de comércio porque é um acto de
uma empresa comercial pelo art. 230º CCom, sendo um acto organizatório que se enquadra
implicitamente neste preceito. Assim, a integração do regime deve ser feita com recurso ao direito
comercial, mas na medida em que se verifique a analogia nada obsta a que se apliquem regras civis
sobre a locação.
Note-se, porém, que o objecto do negócio é a empresa, que é um bem móvel. Deste modo, à cessão
de exploração não se aplicam as regras do arrendamento. E não se pode invocar aqui ao rt. 1109º CC
que diz que as regras de arrendamentos para fins não habitacionais se aplicam à transferência
temporária e onerosa do gozo do prédio que se verifique em conjunto com a exploração do
estabelecimento. As normas do arrendamento, aplicam-se, pois, à cedência do prédio, e não à cessão
de exploração propriamente dita – e naturalmente porque não há um arrendamento mas apenas
uma cessão do gozo de um imóvel atípica, com as devidas adaptações.
Nem teria lógica que o legislador construísse um regime do contrato de cessão de exploração no
quadro do regime do contrato de arrendamento porque são contractos diferentes e autónomos, de
tal modo que a aplicação do regime do arrendamento para dina não habitacionais conduziria a
resultados absurdos, como o derivado da aplicação do art. 1113º CC, submetendo-se a cessão à
legislação vinculística, algo que a doutrina e a jurisprudência procuraram evitar, por ser totalmente
contrária aos interesses em jogo. O contrato sobre a empresa, quando temporário é eminentemente
pessoal e nada permite impor ao cedente que o veja a ser transferido aos sucessores daquele com
quem contratou.
O art. 1109º CC estatui a aplicação do regime do arrendamento. Deve entender-se, porém, que o
cessionário não se torna arrendatário do imóvel, a não ser que tal seja especificamente estipulado
pelas partes. Qualquer que seja a situação jurídica do prédio, a lógico do negócio enquanto negócio
pro tempore sobre o estabelecimento levam à conclusão de que, na falta de menção específica em
contrário, a cessão de exploração comporta a cedência de um mero direito do cessionário a dispor
do imóvel para e durante a exploração da empresa. O direito sobre o imóvel que decorre da cessão
de exploração e o direito do arrendatário têm conteúdos diferentes: o locatário tem, pois um direito
a dispor o imóvel de natureza obrigacional que envolve estritamente as faculdades inerentes à
exploração daquela empresa; não pode, assim, mesmo que respeite o fim contratual, dar qualquer
outro uso ao imóvel. O art. 1109º CC reporta-se agora apenas ao regime que se aplica à cedência do
imóvel e vale sí para os imóveis sujeitos a arrendamento.
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Prevê-se a não intervenção do senhorio na cessão da exploração. (art. 1109º/2 CC) Dispensa-se,
pois, a autorização do senhorio para se ceder o gozo do imóvel, quando há cessão de exploração do
estabelecimento, e não a autorização para a cessão da empresa em si mesma.
Não sendo necessária a autorização, o arrendatário deve comunicar ao senhorio a celebração do
negócio, na medida em que ele envolva a transposição do gozo do prédio. Tem 30 dias para o fazer.
A falta de comunicação pode conduzir, por si só, à resolução do contrato.
O cedente fica obrigado a não concorrer com o cessionário, por força da obrigação que assume de
assegurar o gozo da coisa pelo locatário (art. 1031º/b e 1037º CC). Trata-se de uma obrigação
derivada da obrigação principal, não podendo o cedente perturbar a fruição do cessionário dos
valores transmitidos, estando este proibido de reproduzir a organização. Em qualquer caso, ele não
está proibido de actuar, desde que não desvie valores de organização ou de exploração
transmitidos. Esta obrigação dura pelo tempo em que durar a cessão.
Sobre o cessionário não impende qualquer obrigação de não concorrer, nem antes nem depois do
contrato. Mas sobre ele impende um dever de exploração e proibição de concorrência desleal que
limita qualquer actuação exterior à exploração do estabelecimento locado.
Os âmbitos de entrega coincidem aqui com os das transmissões definitivas. Sendo a transmissão
temporária, no fim do prazo, devem os elementos ser restituídos. Quanto ao contrato de
arrendamento, o cessionário adquire apenas um direito de disponibilidade, o mesmo se passando
com os demais contractos.
A firma é naturalmente envolvida neste caso – faz parte do âmbito natural, mas não é a propriedade
da firma que se transmite. O regime da transmissão dos sinais distintivos não se aplica em casos de
transmissão temporária, o que se conclui da leitura do art. 44º RNPC, que deixa claramente de fora
do seu âmbito de aplicação as disposições pro tempore. Em todo o caso, como o cessionário é
comerciante, deve adoptar uma firma. Na medida em que a transmissão é temporária e o interesse
de ambos os contraentes vai no sentido de que a exploração se faça nas melhores condições, a firma
passa com o estabelecimento por todo o tempo da cessão, ficando o cessionário investido no direito
de a usar na exploração da empresa. (direito de disponibilidade) Aplica-se o art. 44º/1 RNPC na
parte que prevê o aditamento da menção à firma do anterior titular.
Os bens (e seus direitos e posições) transmitem-se a título de mero direito a dispor deles para fins
da exploração. Mas só é assim na falta de menção em contrário das partes e para os bens que estão
sujeitos ao dever de restituir a empresa no termo do contrato. Não é assim para os bens, como
matérias-primas, em que a exploração norma da empresa implica o seu consumo. Se se entender
que o cessionário tem uma faculdade difusa relativamente a eles, que não se qualifica precisamente,
e que não passam em propriedade para o cessionário, não se vislumbra o titulo jurídico pelo qual
ele as pode vender ou incorporar na produção.
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Ora, sabemos que salvo a existência de disposições imperativas, é a vontade das partes que decide.
Nada obsta a que os bens que integram o estabelecimento passem para o cessionário a título
diferente e mesmo mais amplo do que aquele a que passa a própria empresa: ponto é apenas que o
cedente possa transmitir esses direitos e que a vontade dos contraentes seja nesse sentido. Isto
significa que aquilo que as partes estipularem é o que vale. Se nada foi convencionado, há uma
lacuna a integrar nos termos gerais valendo a vontade hipotética das partes ou a boa-fé, que aponta
para a transmissão da propriedade. Quando o poder-dever de exploração seja especificamente
acordado, pode entender-se que o problema é de interpretação – dessa cláusula resultará a
transmissão da propriedade dos bens.
13.6. Forma.
A lei não prevê regra especial para a cessão de exploração, ficando sujeita à liberdade de forma. Nos
casos em que envolva a transmissão do gozo do imóvel, por força do art. 1109º/1 CC, é necessária a
forma escrita para essa cedência, excepto se o negócio for por 6 meses ou menos (art. 1109º/1 e
1069º CC).
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Os sinais distintivos surgiram para satisfazer os interesses dos empresários mercantis, mas hoje
estendem-se a outros campos. Dentro de certos limites, qualquer sujeito pode ser titular de uma
marca, nem se exigindo a sua condição de empresário mercantil. Estes sinais podem ser:
- Típicos (têm um regime legal especifico)
Firma (Sinal distintivo de destinação subjectiva – nome comercial do comerciante que
permite individualizá-lo.)
Nome (Sinais de destinação objectiva de natureza nominativa. Ex: Caixa Geral de
Depósitos)
Insígnia (Sinal de destinação objectiva de natureza figurativa ou emblemática)
Logótipo (Substitui o nome e a insígnia, após a reforma em 2008 realizada ao CPI,
podendo ser constituído por um sinal ou conjunto de sinais, com elementos nominativos e
figurativos ou combinação de ambos. É um sinal de destinação sobretudo objectiva.) art. 304º-A a
304º -S CPI
Marca (sinais distintivos de produtos que supõe a existência de um corpus. A terciarização a
economia permite hoje que se fale de marcas de serviços. Ex: Nestlé) art. 222º a 270º CPI
Denominação de Origem (Sinal distintivo de produtos. Ex: Serra da Estrela) art. 305º a 315º
CPI
Indicações geográficas. (Sinal distintivo de produtos. Ex: Tapete de Arraiolos) art. 305º a 315º
CPI
- Atípicos (Não têm regime legal especial, valendo para eles algumas normas de soft law)
Nomes de domínio (p.e. www.eidelberg.de)
A adopção da firma constitui uma das obrigações do comerciante (art. 18º/1 CCom.) A firma pode
ser de vários tipos:
Firma-Nome: Constituída com nomes de pessoas ou firmas dos sócios.
Firma-Denominação ou Firma-Objecto: Firmas com uma expressão particularizando a
actividade económica que os sócios exerciam em comum.
Firma-Mista: com os nomes ou firmas dos sócios e uma denominação em particular.
Com a entrada em vigor do CSC, e consequente revogação dos artigos 20º a 23º CCom., as regras de
constituição das firmas constam do art. 38º do RNPC:
1) As firmas de sociedades em nome colectivo ou em comandita têm obrigação de incluir
pelo menos o nome ou firma de um sócio (art. 117º e 467º CSC) Esta obrigatoriedade não
é absoluta, porque não se quis inviabilizar a possibilidade de uma sociedade dos
referidos tipos ser constituída apenas por outras sociedades. Nessa hipótese não haverá
nomes de sócios para ser incluídas na firma da respectiva sociedade, mas sim firmas
desses mesmos sócios.
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2) A firma das sociedades por quotas e anónimas (art. 200º e 275º CSC) tanto pode ser
firma-nome, como uma firma denominação ou uma firma-mista. Mais recentemente
passaram a admitir firmas de fantasia, que podem ser puras ou impuras, graças ao DL
111/2005 ter admitido a constituição imediata de sociedades comerciais e civis sob a
forma comercial do tipo por quotas e anónimas (Empresa na Hora) e cuja adopção é feita
depender da opção da firma constituída por expressão de fantasia previamente criada e
reservada a favor do estado ou da apresentação de certificado da admissibilidade de
firma emitido pelo RNPC. No caso de adopção de firma de fantasia, aplica-se o art. 10º
do referido DL.
Ora, a firma constitui sempre um sinal de destinação subjectiva, visando individualizar a pessoa do
empresário mercantil. A realidade da vida do tráfico tende à objectivação ou des-subjectivização da
firma que basta para afastar a ideia de que nome comercial do comerciante – a firma- teria função
meramente administrativo-ordenacional: permitir a identificação de um sujeito que intervém no
tráfico com uma qualidade particular.
Na perspectiva do titular, a firma constitui um bem mais ou menos valioso, já que o tráfico a
valoriza enquanto instrumento de concorrência, socorrendo-se dela para seleccionar os
concorrentes. Assim, a firma serve de colector da clientela – sendo esta função inerente ao seu uso e
nada tem que ver com o carácter obrigatório ou facultativo do sinal. Vale o princípio da unidade da
firma, segundo o qual o comerciante pode adoptar uma só firma.
Entre os requisitos para a constituição definitiva de uma sociedade anónima – art. 162º/4 CCom
referia a adopção de uma denominação social que não fosse idêntica à de outra já existente, ou por
tal forma semelhante que pudesse induzir em erro. Aqui acolhia-se o princípio da novidade da
firma, ou vendo as coisas do lado de quem é titular do sinal distintivo, princípio da exclusividade.
Mas a lei não se limitava a acolher este princípio reclamado pelo interesse da ordem pública em
arredar a confundibilidade entre sujeitos – impunha o registo especial das denominações das
sociedades anónimas. Este registo estendia a área de exclusividade da denominação a todo o
território nacional (tutelando o principio da novidade), não podendo o notário celebrar escritura de
celebração de sociedades anónimas enquanto não tivesse certidão comprovativa da inexistência de
denominação idêntica ou semelhante. Este requisito estendia-se à constituição de uma sociedade
por quotas, cujos sócios pretendessem adoptar uma denominação particular.
Em suma: qualquer denominação social estava sujeita a registo prévio, sendo o âmbito de protecção
o território nacional. Quando estas sociedades tivessem por objecto o exercício de empresas que
desenvolvessem a mesma actividade, as denominações respectivas sempre teriam a diferenciá-las os
aditamentos impostos por lei: Sociedade anónima (S.A.R.L); sociedades por quotas (limitada;
responsabilidade limitada). Permitia-se, neste âmbito, a co-existência de denominações idênticas ou
semelhantes quando registadas para sociedades de tipo diferente.
Destacamos a importância da criação do RNPC neste âmbito – ver art. 1º e 3º. A partir da sua
criação, a constituição de qualquer tipo societário ou não, passou a depender da obtenção de um
documento atestando a possibilidade de registo da firma ou denominação que se pretende adoptar.
As normas para requerimento, emissão, validade e eficácia do certificado de admissibilidade de
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firma e denominação, bem como sobre os princípios que informam a constituição dos sinais e
consequências da sua violação estão previstas neste RNPC.
Da leitura conjugada do art. 54º/1, 55º e 56º/1 RNPC resulta a impossibilidade de se constituir
sociedade comercial, não importa de que tipo e independentemente da espécie de firma que se
pretenda adoptar, sem prova de que a firma em causa foi admitida a registo. Essa prova é feita
mediante exibição ao conservador e no caso do art. 7º também ao notário de um documento emitido
pelo RNPC a pedido dos interessados (art. 45º e ss RNPC). O processo do registo, segue os seguintes
trâmites:
a) Avaliação pelo RNPC se a firma pode ou não ser admitida, de acordo com as normas e
princípios aplicáveis.
b) Emitido o certificado da sua admissibilidade, pode ser constituída a sociedade.
c) Pode acontecer que firma certificada pelo RNPC viole direitos de terceiro emergentes de
um registo anterior feito da sua própria firma – veja-se o art. 35º/2 RNPC.
Um sinal, para poder ser firma, tem de ter carácter distintivo. O registo como firma de um sinal
desprovido do referido carácter – p.e. art. 10º/4 CSC e 33º/3 RNPC – é, necessariamente, inválido.
Pode ser sanada esta invalidade? A aceitação da teoria do secondary meaning, que vale em matéria de
marcas (art. 238º/3 e 265º/2 CPI) e em matéria de logótipos (art. 304º-H/2 e 304º-G/2 CPI)
conduzirá necessariamente a esse resultado. Sendo assim, ocorrendo o registo como firma de um
sinal desprovido de carácter distintivo, este registo será nulo; mas no caso de se aceitar esta teoria
de forma ampla, a competente acção poderá ser julgada improcedente se, à data em que sobre ela
cumpre decidir, o sinal já tiver adquirido carácter distintivo, isto é, já se tenha tornado uma firma. (a
prova cabe ao titular do registo).
Está previsto no art. 33º/1 RNPC e art 1’º/2/3 CSC e 37º/1 RNPC. O nosso legislador previu, no art.
33º/2 RNPC, um conjunto de critérios para avaliar a confundibilidade das firmas e denominações.
Ora:
1) As várias formas ou tipos de sociedade são, em certa medida, pessoas de diferente tipo,
devendo a firma e denominação evidenciar essa diferença.
a. Sociedade em nome colectivo: “e Companhia” ou outro que indique a existência de
outros sócios (art. 177º/1 CSC)
b. Sociedade em comandita: “Em Comandita”, “& Comandita”, “Em comandita por
acções” ou “& Comandita por acções) (art- 467º/1 CSC)
c. Sociedade por quotas e sociedade anónima: “Limitada”, “Lda.” (art. 200º/1 CSC) e
“sociedade anónima” ou “S.A.” (art. 275º/1 CSC)
A capacidade diferenciadora destes elementos é unidireccional – os elementos infalíveis, que
também podem ser apelidados de personalísticos ou subjectivos, só diferenciam as firmas e as
denominações porque caracterizam juridicamente os seus titulares, ou seja, só interessam a um
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número restrito de pessoas – credores actuais ou potenciais. Ora, para a clientela não interessa a
estrutura jurídica da empresa. Veja-se o acórdão do STJ de 19 de Junho de 1984.
2) O art. 37º/2 RNPC diz que o âmbito geográfico da exclusividade das firmas e denominações
das sociedades comerciais é todo o território nacional. Terá sentido fazer intervir no juízo sobre a
confundibilidade entre esses sinais distintivos o local da sede das sociedades ou o âmbito territorial
das actividades por elas desenvolvidas? Nogueira Serens entende que os critérios do art. 33º/2
RNPC devem actuar de moco coadjuvante na aplicação de outros critérios, esses sim
verdadeiramente decisivos. O autor entende que a opção do legislador de estender o âmbito
geográfico de protecção das firmas e denominações a todo o território nacional só pode significar
que independentemente de onde esteja situada a sede e seja qual for o âmbito territorial das
actividades desenvolvidas pela sociedade, não se poderá excluir que essa actividade adquira
dimensão nacional. O mercado de cada sociedade comercial nacional é, pois, a área geográfica do
país.
3)_Será a tutela das firmas e denominações registadas limitada em termos merceológicos? Está
em causa de saber se as firmas e denominações registadas apenas logram tutela de acordo com o
princípio da especialidade – que supõe a necessidade de se ter em conta o objecto da empresa
explorada pela sociedade; ou o princípio da relatividade da tutela – é uma tutela mais extensa, não
condicionada pelo objecto das respectivas empresas. (Caso SEARA (Carnes) vs. CEARA
(cerâmicas))
Se considerarmos o princípio da especialidade – não é necessário averiguar a confundibilidade dos
sinais, porque ambas as sociedades exploram actividades diferentes. Há quem entenda que, sendo a
actividade diferente, as sociedades não são concorrentes, não se colocando o problema da
confundibilidade. Ora, Nogueira Serens considera que, mesmo assim importa averiguar a
possibilidade de confundi-las com referência à diligência normal do homem médio.
Ora, o art. 33º/2 indica como critério a afinidade ou a proximidade das actividades, o que aponta
para que a denominação de uma sociedade comercial só ser tutelável no quadro do princípio da
especialidade. No fundo o que queremos saber é se a denominação registada de uma sociedade é
tutelável face a denominações idênticas ou semelhantes adoptadas por sociedades concorrentes, por
um lado, e não concorrentes, por outro.
Importa, desde logo, afirmar que a denominação não pode deixar de particularizar o objecto da
sociedade que individualiza, o que determina que o risco de confusão entre denominações de duas
sociedades que exercem actividades diferentes (sendo não concorrentes) é de muito difícil
verificação. No seu núcleo vivo e viral, não se vê como essas denominações sejam susceptíveis de se
confundir, ainda que apresentem alguns elementos subjectivos ou personalísticos em comum.
Assim, efectuado o registo, a denominação da sociedade comercial só é tutelada face às
denominações de sociedades que se apresentem como suas concorrentes.
Nogueira Serens defende que há ainda que distinguir, para efeitos de tutela, neste âmbito, este caso
das e denominações (incluam ou não nomes de pessoas), que vimos agora, com as firmas compostas
só com nomes de pessoas – art. 10º/2/3 CSC.
Assim, entende que, ao contrário do que acontece com a denominação registada, em relação à qual
só se põe a questão da confundibilidade com as denominações de outras sociedades se estas se
propuserem a exercer a mesma actividade ou actividade similar àquela que é exercida pela
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As firmas e denominações, para serem válidas e tuteladas juridicamente, hão-de ser licitas – não
contrárias à ordem pública, nem à lei, nem aos bons costumes. O princípio da licitude recobre, quer
o princípio da verdade (as firmas deceptivas são ilícitas), quer o princípio da novidade (as firmas
que não são novas são insinceras e nessa medida, são também ilícitas). O verdadeiro conteúdo deste
princípio encontramo-lo no art. 32º/4/b/c/d RNPC.
O art. 3º RNPC, apesar da sua letra não o indicar, não pode deixar, pois, de ser entendido no sentido
de que a atribuição de firmas e denominações está sujeita à observância do princípio da licitude.
Devemos considerar que há aqui uma lacuna, que terá de ser integrada no sentido de que a firma e
denominação contrária ao principio da licitude (quando se encontre alguma expressão referida no
art. 32º/4/b/c/d) não pode ser admitida a registo e caso esse registo seja efectuado, a sanção que ao
caso cabe é a mesma que a aplicável por violação do principio da verdade.
De forma mais sóbria encontramos ainda este princípio do art. 10º/5 CSC.
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Ferrer Correia entendia que uma sociedade comercial não pode ter mais do que uma firma.
Já quanto aos comerciantes individuais, a questão era discutível porque se pelas dívidas do
comerciante responde todo o seu património, não haveria risco para o tráfico do comerciante
adoptar mais do uma firma. É possível, pois, identificar uma dupla dimensão do princípio da
unidade:
1) “Um comerciante, uma firma” Princípio da unidade para o comerciante individual e SC.
1) “Uma empresa, uma firma.” Princípio da unidade para a SC; possibilidade de várias firmas para
o comerciante individual.
O art. 38º RNPC parece adoptar a visão "um comerciante, uma firma". Mas Nogueira Serens
entende que não se deve entender a lei à letra. O legislador parte do princípio que o comerciante
individual só tem uma empresa (porque é o habitual). Mas isso não significa que se o comerciante
individual tiver várias empresas, não possa adoptar várias firmas - uma firma para cada empresa.
Em relação às sociedades comerciais, o princípio da unidade está salvo, no sentido de que
apenas podem adoptar uma firma.
Na hipótese de ter havido um despacho final favorável, isto é, a admitir a firma de uma sociedade
comercial, e um terceiro a considere confundível com aquela por si anteriormente registada, pode
questionar a sua legalidade através:
Recurso hierárquico: art. 63º a 65º RNPC
Recurso contencioso: art. 66º a 73º RNPC
Ambos os recursos são meios concedidos pela lei ao titular de uma firma para impedir que outrem
obtenha o registo de firma contrária ao princípio da novidade – apura-se a legalidade de um acto da
Administração cuja ingerência é necessária para a constituição de um direito de natureza privada –
a firma. Serão esses os únicos meios de tutela do direito à fira registada?
Em relação às sociedades comerciais, independentemente da firma que se deva ou possa adoptar, o
âmbito geográfico da sua exclusividade, como vimos, é o espaço coberto pelo princípio da novidade
– território nacional (art. 35º/1 e 37º/2 RNPC). Este primeiro preceito consagra o sistema de registo
constitutivo, o que não significa que o direito à firma seja inatacável após o registo.
O art. 35º/4 não deixa dúvidas quanto a isso, importando, porém, fixar o seu conteúdo. Ao afirmar
a possibilidade do direito à exclusividade da firma ser objecto de uma decisão de nulidade,
anulação ou revogação, proferida em sentença judicial, bem como de declaração da sua perda, em
certos casos – art. 60º e 61º RNPC – a norma está a pressupor a existência de diferentes fattispecies,
todas elas juridicamente enfermas, mas às quais não cabe o mesmo regime. Assim:
Declaração de anulação do direito à exclusividade por sentença judicial. Em que
casos?
o O art. 239º/2/a CPI prevê uma possibilidade anulação da marca registada
quando esse sinal reproduza ou imite uma firma, ou apenas parte
característica de uma firma, que não pertença ao requerente, ou que o mesmo
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Como sinal de destinação subjectiva, a firma acaba por vale perante o público como sinal distintivo
da própria organização comercial ou empresa (ainda que não se confunda como no nome do
estabelecimento, que é um sinal de destinação objectiva – art. 282º CPI). Quanto à sua natureza
jurídica, distinguem-se três posições:
Direito à firma como direito de personalidade (influencia do direito alemão) – Tem-se
essencialmente em consideração a firma do comerciante individual composta pelo seu
nome. Sendo certo que, em relação às sociedades comerciais, a sua firma é o único nome
que elas têm. A firma das sociedades comerciais goza da tutela do direito ao nome do
CC, aplicando-se essa norma por analogia e até da tutela constitucional dos direitos
fundamentais. (Art. 14º/2 CRP)
Direito à firma como direito de propriedade sobre uma coisa imaterial (Coutinho de
Abreu).
Firma como uma coisa imaterial próxima do direito de propriedade e do direito de
personalidade, mas essencialmente um direito misto no qual confluem dimensões
jurídico-pessoais e dimensões jurídico-patrimonial.
Partindo de uma noção de direito à firma como direito misto, Nogueira Serens retira duas
conclusões:
Tem traços jurídico-pessoais, podendo a firma beneficiar da tutela que é dispensada
ao nome no CC.
Tem traços jurídico-patrimoniais, podendo ser transmitida a firma do comerciante.
Em relação à transmissão da firma vale o princípio da vinculação, ou seja, só é permitida a
transmissão da firma conjuntamente com a transmissão do estabelecimento que a ela se achar
ligada. (art. 44º/4 RNPC). Este princípio obsta à existência de riscos de confusão – impedir que a
firma que ligava um comerciante a uma empresa passe a ligar um ouro comerciante a uma empresa
diferente. Releva o engano sobre a identidade do titular da firma – para isso bastaria fazer depender
a transmissão da firma da obrigação de esta ser acompanhada da firma do seu novo titular – mas o
engano sobre a identidade da própria empresa à qual a firma está ligada.
Para que a firma se transmita, ocorrendo a transmissão do estabelecimento, é necessário o acordo
das partes. (art. 44º/1 RNPC) A autorização há-de ser dada por escrito, que há-de ser dada pelo
órgão de representação no caso das sociedades comerciais. Essa autorização pode não ser, porém,
suficiente (art. 44º/2 RNPC). Nogueira Serens critica este preceito e corrige-o, considerando que
uma sociedade só não pode alienar a sua firma sem o consentimento do sócio cujo nome se integra
se esse sócio for uma pessoa humana. O autor critica ainda a exigência de o adquirente da firma a
fazer acompanhar da sua própria firma com a menção de haver nela sucedido. Assim, temos que
distinguir dois casos:
Situação em que a firma é obrigatoriamente composta pelo nome de pessoas -
(Sociedades em nome colectivo e Sociedades em comandita simples) É obrigatório
que os sócios deixem que o seu nome integre a firma, logo deve ser exigido o seu
consentimento para mantê-lo na firma. Porém, isto só se aplica quando se tratem de
sócios pessoas humanas, já que se se tratar de um “nome” de uma sociedade sócia – a
sua firma-, não é necessário o seu consentimento para a firma se transmitir.
Situação em que a firma-nome é uma mera opção - (Sociedades por quotas e
Sociedades anónimas) Não é preciso o consentimento do sócio, porque a firma só
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integra o nome do sócio porque o sócio assim quis, aplicando-se isto aos sócios pessoas
humanas e também aos sócios pessoas jurídicas.
Por fim, apresentando-se à insolvência uma sociedade comercial, não cabem dúvidas que a firma
passará a fazer parte da massa insolvente. Questão diferente é a de saber se o liquidatário judicial,
decidindo-se pela alienação do estabelecimento da sociedade insolvente, pode alienar a respectiva
firma sem o consentimento do seu titular. Na opinião do professor, não deve permitir-se que a
sociedade se oponha à alienação da sua firma com a do estabelecimento a que estava ligada,
prejudicando os seus credores – “Quem anda à chuva molha-se”.
Apesar disto, nas sociedades em nome colectivo e em comandita cuja firma seja composta em nome
de sócios pessoas humanas pode perceber-se que não se possa alienar a firma sem o consentimento
desses sócios. Nesse caso, não havendo consentimento dos sócios, se ocorrer a alienação da firma
em processo de insolvência, o liquidatário judicial deverá constituir uma firma sucedânea que será
usada até que a sociedade seja extinta, o que só acontece com o registo do encerramento de
liquidação.
Para resolver este problema, melhor será a celebração de acordos, sendo o consentimento necessário
à transmissão da firma atribuído no momento da constituição da sociedade.
A marca é um sinal, qualquer que seja, desde que adoptado para identificar a origem ou
proveniência de bens, produtos ou serviços. Esse sinal tem aptidão para distinguir esses bens
doutros bens que provêm de um empresário concorrente. Vamos focar-nos nas marcas nacionais
que são aquelas que se afirmam no espaço geográfico do nosso país – princípio da territorialidade
do direito à marca- e que estão reguladas no art. 222.º e segs. do CPI. Hoje esta matéria está
substancialmente harmonizado no quadro dos países da UE graças à criação da Directiva
EU/2015/2436 do PE e do CE, de 26/12/2015.
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Hoje, por via dos contractos de licença de marca, diz-se que são de titularidade única, mas de uso
plúrimo); e colectivas (a titularidade é una, mas o uso é plúrimo. A marca diz-se colectiva porque é
utilizada por vários sujeitos membros de uma mesma entidade, p.e. em compropriedade ou por
comunhão.). De acordo com a lei, estas últimas podem ser marcas de associação e certificação
garantida, arts. 228.º, 229.º e 230.º, sendo que neste caso a titularidade é una e o uso plúrimo, mas o
direito a usar a marca não decorre da titularidade de ser membro dessa entidade. O direito a usar a
marca pertencerá a todos aqueles que preencham as condições pré-fixadas para o uso do sinal
distintivo. Na marca de garantia o titular dela não pode empenhar-se na promoção da marca.
• Regime da protecção: temos as marcas registadas, art. 224.º/1, e não registadas (marcas de facto
ou livres). Temos ainda as marcas notórias, que mesmo quando não registadas gozam de protecção
especial (arts. 241.º e 242.º).
A marca pode ser constituída por todos estes sinais desde que tenham representatividade gráfica.
(art. 222º CPI). A nova directiva sobre a marca determina hoje que este requisito já não é necessário,
sendo que o número de marcas tem tendência a aumentar exponencialmente no futuro e
eventualmente terá de se adaptar a nossa lei a essa alteração da directiva.
As marcas e demais sinais distintivos gráficos nacionais são registados no INPI – Instituto Nacional
da Propriedade Industrial. As marcas europeias, ao serem registadas, afirmam o direito em todo o
espaço da EU, ainda que , por via da Convenção de Paris, possa exigir-se que se registe a marca
como sinal especificamente num país estrangeiro para que seja tutelada nesse país, sendo que o
registo depende do regime que aí valha, podendo ser recusado e, por conseguinte, não gozará aí de
protecção. Hoje, verifica-se pois a coexistência das marcas nacionais (PME's) e marcas europeias
(mais adequadas para as multinacionais). Eventualmente, as marcas nacionais podem vir a
desaparecer graças à facilidade de registar marcas europeias.
Quanto ao surgimento do direito à marca, Nogueira Serens entende que a disciplina das
marcas surge quando a concorrência não é livre, já que a monopolização da concorrência é que
torna necessária a tutela da marca, pelo surgimento da necessidade de distinguir os vários produtos
através de sinais. A protecção da marca é contrária à liberdade de concorrência. A marca foi criada
para distinguir o que é igual; quanto às coisas que são diferentes, a marca apenas evidencia essa
diferença.
As marcas têm funções no plano socioeconómico (não t~em que ser jurídicas ou de usufruir
de tutela do Direito) e no plano jurídico. Vamos focar-nos apenas nestas últimas. Neste âmbito, fala-
se de uma tríplice função da marca.
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(2) A marca como sinal distintivo para identificar a fonte de proveniência dos bens ou indicação da
sua origem. A função vai para além dos produtos e chega às fontes produtivas - é assim mesmo
quando a marca é anónima (Nogueira Serens)
Toda a tutela das marcas está construída para se proteger a função de indicação de proveniência.
Sendo esta a função rainha da marca, visa-se impedir que o consumidor médio, razoavelmente
informado, atento e advertido possa ser induzido em erro sobre a proveniência dos produtos. Pra
que exista essa confusão é necessário que haja semelhança entre os produtos e semelhança sobre os
sinais usados.
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No âmbito de tutela da marca e das suas funções devemos identificar dois círculos:
Círculo de autorização: têm que ser indicados os produtos para os quais se faz o registo
da marca; fazendo-se esse registo fica-se com o direito a usar a marca para os produtos
ou serviços indicados. Indica o que o sujeito fica habilitado a permitir a terceiros.
Círculo de proibição: O que o sujeito fica habilitado a proibir a terceiros, com base no
seu direito à marca.
Daqui não se pode concluir que a tutela dos interesses dos consumidores é objectivo central da
legislação sobre marcas, uma vez que esta serve essencialmente os interesses dos seus titulares;
porém, os interesses dos consumidores são também aqui tidos em conta e protegidos.
Durante muito tempo concebeu-se que só podia ser titular do direito à marca quem fosse
empresário - alguém titular de uma organização da qual decorria a possibilidade de colocar
produtos e bens no mercado. Isso hoje está quebrado; já nos anos 70 se fez um corte entre a
empresarialidade e a titularidade do direito à marca, introduzindo-se que pode ser titular de uma
marca "quem nisso tenha legítimo interesse".
Então o que se deve entender sobre interesse legítimo? Há jurisprudência comunitária que
aponta no sentido de que baste que o sujeito não esteja de má-fé. Em que casos é que é pensável que
exista um registo de má-fé que possa conduzir à nulidade do registo da marca? Por exemplo,
quando um sujeito regista uma marca adoptada por um empresário espanhol que negociava com
outro sujeito a promoção da marca em Portugal, registando-a antes que esse segundo o fizesse para
o impedir de realizar tal plano – tal demonstra a má-fé.
Antigamente, aquele que primeiramente usava uma marca, não obstante não a ter registado,
poderia opor-se ao registo que outro realizava de marca igual ou semelhante. Aqui colocava-se a
questão de saber se aquele que não se tinha oposto ao registo por dele não conhecer, podia vir a
utilizar tal como fundamento para a indicação da anulabilidade do registo.
Nogueira Serens diz que quem investe no registo e não sabe nem tem que saber que o sinal
está a ser previamente utilizado por outro sujeito, não tem de arcar com eventual anulação do
registo, caso este primeiro individuo se oponha ao registo. O professor defende, pois, uma
duopolização do direito à marca, porque, apesar do dito anteriormente, defendia ainda que o
anterior titular da marca não registada tinha o direito de continuar a usar a marca em certos termos
desde que um sujeito e outro não viessem a interferir um com o outro na utilização da marca. Tal
relacionava-se nomeadamente com a chamada preclusão por tolerância - alguém que não se opõe ao
registo de marca igual em certas condições, determina que não se pode opor depois.
Hoje, nesse caso, em vez de se admitir que quem registou o direito à marca fique com ele
respeitando a utilização desta pelo sujeito anterior prevê-se a possibilidade do sujeito que utilizava
a marca com anterioridade venha a anular o registo realizado por outro sujeito no prazo de 10 anos.
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Quem adquire um direito à marca com base no uso pode fazer claudicar o direito que se adquire
como marca com base no registo. Tal é uma grande desvalorização do registo da marca.
É necessário tecer algumas considerações quanto às causas de caducidade do art. 269.º/1 e 2/a).
• Art. 269.º/1:
O uso de marca é sério quando ela assinala produtos colocados no mercado de modo estável ou
não esporádico e em quantidades significativas, mas pode também bastar-se com a sua utilização
em campanhas preparatórias.
Questão importante é saber quando é que há justo motivo para não uso de uma marca. Entende-
se que existe justo motivo quando existam circunstâncias independentes da vontade do titular que
tal imponham, por ex., catástrofes naturais ou medidas de autoridade públicas proibindo a
produção dos respectivos produtos.
• Art. 269.º/2/a): refere-se ao fenómeno da vulgarização e reproduz o art. 12.º/2 da Directiva. Não
basta o uso generalizado de uma marca como denominação específica de produto para que o registo
possa ser declarado caduco, ou seja, a lei não perfilhou a tese da vulgarização objectiva, mas sim da
subjectiva. Isto significa que a caducidade da marca quando a sua vulgarização seja consequência
da actividade do seu titular (porque este inicia ou promove a utilização da marca como nome
comum do produto), ou da sua inactividade (porque não reage contra aqueles que iniciam ou
promovem essa utilização).
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