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Florianópolis
2020
Lino Alves Arruda
Florianópolis
2020
Lino Alves Arruda
Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresetanção travesti/trans* sudaca
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi
julgado adequado para obtenção do título de Doutor em Literatura.
___________________________________
Coordenação do Programa de Pós-Graduação
____________________________ _____________________________
Profa Dra Claudia Junqueira de Lima Costa Prof. Dr. João Manuel Calhau de Oliveira,
Orientador(a) Coorientador.
Florianópolis, 2020.
AGRADECIMENTOS
Às orientadoras Susan Stryker e Adela Licona, que, apesar das barreiras culturais e
linguísticas, me receberam na University of Arizona e me encorajaram a desenvolver um
capítulo ilustrado para esta tese.
À amiga e professora Melissa Gonzalez que além de colaborar na tradução dos zines
selecionados para esta pesquisa, ofereceu apoio, afeto e oportunidades para a divulgação das
produções dissidentes sudacas nos EUA.
This project carries out a dissident (queer) decolonial perspective for the analysis of sudaca
zines in which transgender, travesti and transsexual people create self-representations that
embody monstrous and animal tropes. Using a partially autoetnographic methodology
structured in dissident knowledge, vocabularies and mediums, I trace a genealogy of monstrous
travesti/trans* self-representations within the feminist field, and offer comparative analysis
between imagery depicted in the north and the global south. Carefully scrutinizing the rhetoric
and representational strategies that set apart the North-American repertoire (especially
considering the figures that first emerged in Mary Daly’s and Susan Stryker’s essays) from
sudaca autonomous self-representations published in zines and other countercultural projects, I
pose the question: in their alignments with the non/human, what are sudaca monstrans* stances
on micropolitical strategies, marginalized temporalities, gender coloniality and structural
violence? While mapping different responses to these questions, in this dissertation I emphasize
the singularities of travesti/trans* monstrous and animal self-representations’s potential to
pluralize and counter normative discourse (such as academic, medical and legal approaches to
trans*) in an effort to fortify community bonds and share survival strategies.
Keywords: Self-representation. Trans*. Travesti. Monstrosity. Zine.
LISTA DE FIGURAS
1 APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 15
2 INTRODUÇÃO AO BABADO ....................................................................... 20
2.1 AUTORREPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA TRAVESTI/TRANS*:
PERSPECTIVAS DA CULTURA DISSIDENTE SUDACA ............................................... 20
7 CONCLUSÃO................................................................................................ 278
REFERÊNCIAS............................................................................................. 280
15
1 APRESENTAÇÃO
1
Nas palavras da teórica trans Viviane Vergueiro: cistema é “uma corruptela de ‘sistema’, com a intenção de
denunciar a existência de cissexismo e transfobia no sistema social e institucional dominante” (VERGUEIRO,
2015, p. 225). Ou seja, o neologismo (cisgênero + sistema) é aqui empregado para explicitar os efeitos e processos
assimétricos operantes nas estruturas organizativas sociais e institucionais que beneficiam subjetividades
hegemônicas, tais como a cisgeneridade.
2
Termo que se refere pejorativamente à América Latina e a seus habitantes. Seu emprego se dá especialmente a
partir dos fluxos migratórios dos anos 1990 no contexto espanhol, visando a interpelação negativa de imigrantes
latino-americanos. Neste trabalho a apropriação dessa terminologia visa evocar os tensionamentos
xenofóbicos/raciais e ressignificar seu uso e sentido original
16
3
Conforme sugerido por Kai M. Green em seu artigo Troubling the Waters: Mobilizing a Trans* Analytic (2016),
a proposta de uma analítica trans*expande a definição de “trans” enquanto identidade categórica para uma analítica
teórica, ou seja, um método de análise que “tem ramificações ontológicas, ideológicas e epistemológicas. Não se
trata de alteridade perpétua, mas de presença perpétua” (2016). As metodologias associadas a essa analítica são
desenvolvidas no primeiro capítulo da pesquisa.
17
4
A discussão acerca da desidentificação virá em momento oportuno, mas cabe delinear o processo de
desidentificação. Nesse sentido: “desidentificar-se é ler a si mesma/o e à sua narrativa de vida num momento,
objeto ou sujeito que não é culturalmente codificado para ‘conectar’ com o sujeito desidentificante” (MUÑOZ,
1999, p.12).
18
2 INTRODUÇÃO AO BABADO
“Produzo outro tipo de saber, um que a acadêmica em mim sabe que não é
acadêmico”.
(DUMARESQ, 2014)
5
“Desaquendar” é uma terminologia do dialeto Pajubá, que se traduz como “desfazer-se”, “desapegar-se” ou
“rejeitar”.
21
Tranimais também brinca com o prefixo “trans” enquanto pluralidade – assim como
em animais – para sugerir o constante trabalho de agentes que cruzam espécies. Trans
sugere o cruzamento energético e material que desestabiliza categorias bifurcadas.
Animais sugere organismos literais, não seres metafóricos ou puramente
representativos, que existem somente na intencionalidade antropocêntrica.
(HAYWARD; KELLEY, 2013, p.115-116. Tradução minha6.)
Esses desvios tranimal e não/humano acenam à ideia de que a feitura do corpo implica
a contaminação de ontologias que se organizam em entidades comuns, levando ao limite o que
o monstro vem a representar no plano simbólico:
6
Todas os textos escritos em línguas estrangeiras que têm excertos traduzidos e reproduzidos nesta tese
tiveram tal tradução feita por mim. Assim, visando a facilitar a leitura do texto, não mais explicitarei no mecanismo
de referência autor-data que se trata de “Tradução Minha”.
25
Observa-se que esse artifício representativo tem sido cada vez mais empregado em
suportes contraculturais contemporâneos (como zines, livretos e outros materiais literais
autônomos), especialmente em projetos que pretendem interpelar o/a observador/a (através do
emprego da figura de um corpo que rápida e intuitivamente gera identificação) e, ao mesmo
tempo, evadir o fardo de evocar compulsoriamente, através da representação do corpo, uma
unidade identitária. Principalmente em autorrepresentações dissidentes, a estratégia que agencia
o animalizado no campo visual abrange diferentes possibilidades identitárias ao mesmo tempo,
podendo inclusive conter combinações contraditórias (alude simultaneamente a trans*, gay,
lésbicas, travestis etc.), sem encerrar o sujeito em nenhuma delas, a exemplo da logo da
distribuidora de zines Monstruosas (Figura 3) e do cartaz do festival feminista Vulva la Vida
(Figura 4).
binárias), nos quais é impossível atribuir sexo e gênero à figura representada, uma vez que os
registros que conferem essas demarcações no campo visual (as estilizações e estéticas
gendradas) são neutralizados pela animalidade.
7
Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.
Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando
eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia
e viver no centro da cidade”.
8
Tradução: “Tudo o que não posso gritar como o grito que dá o homem elefante, eu sublimo e escrevo
ternamente...”.
9
Tradução: “Às vezes pareço com a Marilyn... Quando pego o cigarro e olho fixamente pro passado...
volto a levantar, a me sentir travesti e minotaura”.
34
do gênero na formação subjetiva travesti sudaca (especialmente nas passagens em que a autora
referencia Marylin, Pamela Anderssen e outras celebridades de Holiwood). Essas
monstruosidades, em especial a figura da King Kong travesti, serão detalhadamente analisadas
nos capítulos 3, 4 e 5 deste trabalho, focalizando a potência contra-reivindicativa, vingativa e
ressentida com a qual operam essas representações.
Além da King Kong travesti e da Minotaura, outra personagem animalizada que
representa a liminaridade das vivências sexo/gênero-dissidentes é o Lobis-homem-trans (Figura
13). Aparecendo pela primeira vez no zine de quadrinhos dissidentes Quimer(d)a #1, o lobis-
homem-trans é acionado como efeito colateral da hormonização em interações sociais em que
a transmasculinidade é ininteligível. A contrapelo do ativismo tradicional LGBTTQI (que
reivindica visibilidade às identidades marginalizadas) a faceta invisível ou inapreensível da
transmasculinidade emerge através dessa personagem como recurso: sua monstruosidade
animalizada oferece uma alternativa não só de recusa, como também de ameaça às
masculinidades cis-heteronormativas e à cultura subjacente (Figuras 14 e 15), conforme
demonstrarei no terceiro capítulo deste trabalho.
Figura 18 – Trecho do zine Estiercol: Suplemento Diverso de Binder (sem data de publicação)
10
Do original: “En la calle un seductor poeta de la construcción me dijo: porque no me regala una
sonrisa? Y la boca se me abrió de par en par, mostrando mi ensalá de dientes chuecos, como desponiendome a
comerme el hombre, porque mi sonrisa es la de un monstruo. Mi resistencia, mi arma, mi puñal, mi fusil es
mostruosiarme; admitir que no soy otra cosa que un fracasso para cualquier modelo, que no sé amar como dicen
que hay que amar, que el amor es privativo y no incomensurable. Soy un monstruo, señores, sobre todo cuando
me seducen y me hacen reír, porque tiendo a comérmelos” (RODRÍGUEZ, 2015, p.83).
41
substituídas pelo desejo de habitar a ferida colonial e permanecer às margens da sociedade. Esse
gesto antissocial e anarquista é acompanhado de estéticas, vocabulários e suportes que
substituem aqueles empregados institucionalmente para representar as experiências
travesti/trans*. Por exemplo, o zine – enquanto publicação independente e autônoma – surge
como alternativa à imprensa oficial, escapando do crivo e da censura das editoras e ignorando
o cânone literário e seu público expandido. A escolha 11 desse formato já implica por si uma
série de fracassos: depositando confiança na necessidade de manter alguns saberes isolados de
maneira separatista, as publicações autônomas dispensam o sucesso de vendas e desarmam,
assim, as premissas do sistema capitalista imperante. Ao mesmo tempo que essa atitude
antissocial garante a oportunidade de contarmos histórias-outras (desde a perspectiva da lupa
cis-heteronormativa), essa ferramenta desautorizada é subestimada, uma vez que restrições na
circulação e na difusão são consideradas indicativas de uma derrota supostamente não
reivindicável.
O zine também é por excelência um suporte do fracasso no sentido de que seu formato
implica a perda do conteúdo e a dificuldade de arquivamento: as páginas saem da sequência
original ou simplesmente desaparecem, a fotocópia borra e corta alguns trechos do conteúdo
(um convite ao improviso e à interpretação criativa), a matriz se dobra, molha e rasga durante
o transporte etc. A dinâmica de vida desse tipo de objeto cultural é mais um elemento que
impossibilitaria o enredamento de seu conteúdo na história oficial, a qual normalmente se
afirma coerentemente organizada a partir da comprovação, do registro e do arquivamento. É
interessante observar essas características analogamente às formas fragmentadas, orais,
afetivas, pouco ou nada registradas e completamente desautorizadas através das quais as
histórias das dissidências subalternadas sudacas persistiram, se transformaram e também se
perderam ao longo do percurso. Todas essas condições apontam para formas alternativas de
arquivar as memórias dissidentes e, complementarmente, para uma concepção também
inusitada da noção de temporalidade, que se desvencilha de propostas reivindicativas,
comumente orientadas para o futuro.
Por outro lado, esse formato favorece e encoraja a hibridização do conteúdo e sua
constante reterritorialização: o copyleft (que incentiva a livre edição do conteúdo), as traduções
localizadas e essas “redefinições circunstanciais” do registro desafiam a aura estática de
oficialidade que acompanha a noção de “original” (seja na literatura ou nas artes visuais). Assim
11
Aqui “escolha” pode abarcar também os projetos que, tendo sido negados pelas editoras, assumem
formatos independentes.
42
não é um termo descritivo para um tipo de organização social (não tradicional), nem
um projeto para uma sociedade futurística, utópica ou distópica […], trata-se, senão,
de um termo para um espaço conceitual e experiencial talhado fora do campo social,
um espaço de contradições, no aqui e agora, que precisa ser afirmado mas não
resolvido. (2007, p. 181. Grifos meus)
A escolha por negatividade não passa, então, de uma inversão da maneira de encarar
preceitos praticamente intrínsecos às subjetividades dissidentes: Halberstam sugere que, em vez
de abdicar da marginalidade e almejar o sucesso, a plenitude, a legitimidade, o direito e a
normalização; muitas proposições de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e
travestis assumem e acolhem o fracasso como prerrogativa e a margem como local de suas
produções.
Apesar das diferenças estruturais entre o “sujeito excêntrico”, de Lauretis, e o “sujeito
queer”, de Halberstam, ambas as propostas convergem celebrando e encorajando à
receptividade ao perceber-se e constituir-se como uma outra coisa – uma espécie de des-tornar-
se, des-ser, des-fazer, que abre caminho para outros modos, menos categóricos e estáveis, de
(auto)representação, aos quais se alinham as animalidades e as monstruosidades dos projetos
selecionados para essa pesquisa.
Podemos tomar emprestadas partes dessas teorias que conectam as subjetividades
marginais a formatos e desejos-outros, entretanto, é preciso ressaltar que, mais que um elemento
de caracterização do sujeito queer, excêntrico, kuir ou cuir, a precariedade das produções
contraculturais que analisarei é aqui abordada principalmente enquanto ressonância de um
estigma colonial que está sendo reapropriado e explicitado principalmente pelos corpos não-
brancos e gênero-diversos no nível local. Dessa forma, aqui é inserida uma camada adicional
de fracasso e de precariedade a essas teorias importadas que esboçam o sujeito
queer/excêntrico: depois de devorado por meio da proposta antropofágica (ROLNIK, 1998) do
sul global, esse quadro teórico é excretado e diluído na diarreia do nosso cu do mundo
(PELÚCIO, 2012) ou, então, desponta hibridizado e encarnado/parodiado nas monstruosidades
44
travesti/trans* sudacas famintas: “Soy la Marylin travesti que se come a los hombres como um
acto de generosidad hacia mis amigas travestis, porque sé que no existe perdón con hambre”12.
Considerando que tanto os materiais selecionados para esta pesquisa como seus
proponentes se localizam – e, em sua maioria, desejam permanecer – fora do marco institucional
de produção de conhecimento, antes de iniciar as análises aqui propostas é preciso atentar aos
questionamentos metodológicos e epistemológicos que emergem atualmente no campo dos
Estudos Trans*, especialmente considerando os métodos extrativistas tradicionalmente
associados à pesquisa acadêmica.
Levando em conta que se pretende instaurar uma metodologia pautada na validação de
retóricas, representações e cosmo-visões enredadas em conhecimentos-outros, se faz necessário
levantar uma série de indagações epistemológicas: como produzir uma pesquisa acadêmica
centrada em materiais e posições subjetivas que foram histórica e sistematicamente excluídas
da produção oficial de conhecimento? Como gerar um produto do qual a comunidade
travesti/trans* possa usufruir? Como lidar com as assimetrias que minha posição subjetiva de
pesquisador transmasculino branco, feminista e antirracista engendra? Quais partes dos
discursos institucionais que “norteiam” os corpos e as experiências sexo-gênero dissidentes
podem ser reapropriadas e quais devem ser descartadas, questionadas e substituídas para que
possamos imaginar epistemes e analíticas dissidentes sudacas, atribuindo uma perspectiva
descolonial aos estudos travesti/trans*? E, ainda, como formular uma metodologia que seja
ética e formalmente compatível com uma perspectiva travesti/trans* descolonial?
Nos próximos tópicos, através de análises de metodologias e de práticas institucionais
de produção de conhecimento, pretendo demonstrar que muitos métodos contingentemente
reiterados na pesquisa acadêmica produzem representações e outros conteúdos institucionais
profundamente alienados das vivências travesti/trans*. O destrinchar desses métodos
tradicionais de pesquisa será justificado a partir da necessidade de abrir espaço para novas
perspectivas e metodologias orientadas pela autorrepresentação travesti/trans* latino-
americana.
12
Tradução: “Sou a Marylin travesti que come os homens como um ato de generosidade às minhas
amigas travestis, porque sei que não existe perdão com fome”.
45
13
O sexo biológico deixa de ser considerado suporte (indiscutível, material, inquestionável) que reflete
o gênero, passa-se a questionar a categoria “sexo” enquanto culturalmente instituída, em vez de natural.
46
Nessa carta, identificamos que aos “homens vestidos de mulheres”, assim nomeados
na limitada perspectiva de Cieza de León, eram delegadas importantes funções espirituais
dentro da comunidade indígena em questão. O fato de haver para esses seres análogos às
travestis um lugar social nessa etnia pré-inca solidificava a justificativa do genocídio dessas
comunidades, de seus saberes e crenças, uma vez que os corpos indígenas e negros e que, ainda
por cima, escapavam da heteronorma eram vistos como bestiais, demoníacos, selvagens e,
portanto, inferiores e sub-humanos. Esse documento permite identificar que o regime cis-
heterossexual, ao menos no continente americano, é uma das primeiras imposições coloniais.
Infelizmente, situar as subjetividades travesti e trans* sudacas num quadro anterior e
contínuo de resistência à colonialidade do gênero ainda é um desafio para a pesquisa acadêmica.
Esse debate aponta para a importância de se elaborar um quadro teórico de pesquisa que
centralize a colonialidade do gênero nas análises das proposições travesti/trans* sudacas
selecionadas para este projeto, a fim de situar esses corpos num enredo histórico localizado.
Essas considerações permitem também lançar um olhar crítico às epistemes que sobrepassam o
cenário Latino-Americano (especialmente aos processos de colonização), ou seja,
contemplando as formas que determinadas comunidades subalternizadas criaram para produzir
seus próprios saberes, representações, linguagens, signos e categorias.
Complementar às indagações de Mombaça e questionando os efeitos do uso da queer
theory e a soberania de perspectivas e referências históricas euro-americanas na produção
acadêmica latino-americana, a cineasta e ativista travesti chilena Hija de Perra comenta acerca
da aparente impossibilidade de firmar uma vertente histórica dissidente sudaca:
Hija de Perra sugere que, através de marcos teóricos importados, a academia tende
muitas vezes a reinventar o “trans*” a partir de uma versão histórica isenta de referentes de
auto(re)conhecimento sudaca, deslegitimando a autorrepresentação que comunicaria sobre as
50
Existimos desde que nos descobriram? Parece que nossa voz só se valoriza quando o
dominante nos encontra, nos faz existir. Como se a história anterior à colonização não
existisse e tudo partisse do descobrimento da América para estes indivíduos que não
sabiam nem sequer onde estavam. [...] de onde falamos hoje em dia? De uma terra
com história ou de um novo terreno descoberto por outros? (HIJA DE PERRA, 2014,
p.2)
Sou uma nova mestiça latina do Cone Sul que nunca pretendeu ser identificada
taxonomicamente como queer e que agora, segundo os novos conhecimentos, estudos
e reflexões que provêm do Norte, me encaixo perfeitamente, para os teóricos de
gênero, nessa classificação que me propõe aquele nome botânico para minha
mirabolante espécie achincalhada como minoritária. (2014, p. 3)
Mas como traduzir o queer para o contexto brasileiro? Qual a disseminação desse
campo de estudos no Brasil? Se eu perguntar para qualquer pessoa no Brasil “você é
queer?”, provavelmente escutarei “o que é queer?” [...] devemos reconhecer a
dificuldade que os estudos/ativismos transviados têm encontrado para se consolidar
no contexto nacional e parece que há um buraco entre a academia brasileira (espaço
de recepção dos estudos queer) e os movimentos sociais. Depois de quase quinze anos
do meu encontro com esses estudos, ainda escuto com frequência: “Queer o quê?”.
(BENTO, 2016, p. 23-14)
“[...] falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.
Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a
hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.”
(RIBEIRO, 2017, p.38)
14
Berenice Bento (2011, p.555) atenta para o fato de que o termo “evasão escolar” sugere que a baixa
frequência ou ausência/abandono da população LGBTT da educação formal aponte para casos
individuais/isolados, ou seja, que destituindo de responsabilidade os sistemas de organização social, o termo
“evasão escolar” culpabiliza o indivíduo ao empregar os valores da meritocracia (sintomáticos do regime
neoliberal). Sua substituição por “expulsão escolar” enfatiza a ordem estrutural e política da questão.
15
Esses dados foram fornecidos pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, que é presidente da
Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil e membro conselheiro do Conselho
Municipal de LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) em Cuiabá. Fonte:
<http://flacso.org.br/?p=15833>.
55
(1) Richard, durante o seminário falou-se muito nas transformações das políticas de
reconhecimento das chamadas minorias raciais, sexuais, de gênero etc. Como você
enxerga a não presença dessas pessoas aqui sem lugar direto de fala? Como reverter
tal quadro se ainda precisamos falar por eles (ou nós)? [...] (2) Na sua fala de ontem
você falou brevemente sobre o conceito de cisgênero. Hoje, no seu apanhado do
contexto histórico e social do país, você repetiu os termos “política sexual”,
“feminismo” e “homossexual”. Onde estão as pessoas trans na sua exposição da teoria
queer? [...] (3) O I Seminário Queer é uma grande iniciativa para a difusão dos estudos
de gênero no Brasil. Entretanto, é nítida a presença majoritária de acadêmicos brancos
de classe média/alta. Como ampliar a visibilidade da teoria queer e fornecer meios e
espaços para que seus próprios agentes (travestis, pessoas trans, drag queens etc.)
possam se expressar de forma direta sem o intermédio da academia e de seus poucos
privilegiados? (PELÚCIO; MISKOLCI; VENCATO, 2015, 83’28”)
Eu também sofri violências, eu também tenho essa experiência. [...] Não estou falando
“pelos” outros, eu estou falando “com” os outros. [...] No que toca falar pelo outro, eu
penso na Spivak. Vamos pegar a Spivak. A ideia da Spivak é a seguinte: o subalterno
não pode falar, não porque ele não tem voz. Você pode trazer às vezes pessoas e dar
o microfone pra elas: falta o vocabulário. Nosso trabalho é construir um vocabulário
que permita reconhecer violências, ampliar as possibilidades da gente compreender a
nossa política, o lugar que a gente ocupa nelas e, sobretudo, pensar em espaço que
podem ser mais compartilhados, vividos em conjunto, que possam ser positivos pra
todos e não nas pequenas políticas das divergências, atomizantes, neoliberais, que
fazem pessoas quererem ser, na verdade, estrelas representantes de outros grupos.
(PELÚCIO; MISKOLCI; VENCATO, 2015, 91’57”. Grifos Meus)
[...] Não, não é isso. Que quando a Spivak fala, e ele tá falando no contexto da Spivak,
é o seguinte que ela diz: pra você ser realmente escutado e levado a sério você tem
que falar com os termos hegemônicos. E o que a gente tem que fazer é muito como o
Pedro Paulo estava falando: valorizar outros saberes, então, assim, é saber que outras
sociologias são possíveis, e que esse vocabulário que hoje é desprestigiado, e eu talvez
fico pensando quantos de nós aqui presentes já em assembleias estudantis ou outros
fóruns não demos menos ouvidos a outras pessoas que pareciam não dominar os
vocabulários que nós achávamos legítimos para aqueles fóruns. Então é nesse sentido
que a Spivak vai dizer que o subalterno não pode falar. Não porque não tem voz, não
porque não tem o vocabulário, mas porque a forma como eles se expressam não é
reconhecida pelos saberes hegemônicos e é brutalmente desqualificada. (PELÚCIO;
MISKOLCI; VENCATO, 2015, 93’40”)
[...] não é o mesmo que dizer que o conhecimento subjetivo de “ser transgênero” é de
alguma forma mais valioso que o conhecimento [...] alcançado de uma posição
exterior, mas é uma asserção de que nenhuma voz no diálogo deve ter o privilégio de
mascarar particularidades e especificidades de suas próprias posições de fala, através
das quais poderia reivindicar uma falsa universalidade ou autoridade. (STRYKER,
2006, p.12).
(em especial as travesti/trans*) nesse ambiente. O bordão “não falo por, senão com [as
comunidades marginalizadas]” agrada, pois está calcado num modelo ideal de alianças
políticas: insinua que as/os acadêmicas/os inauguram e fazem circular as reivindicações
marginais dentro daqueles lugares aonde elas não chegam. Cabe frisar mais uma vez que o
objetivo final dessa mediação deveria ser abrir espaço para que as perspectivas excluídas se
façam presentes, o que implicaria necessariamente a transformação desses territórios, de
seus/suas interlocutores/as, dos vocabulários vigentes, de sua estrutura fundacional, ou seja,
subversões generalizadas do formato tradicionalmente instituído, em especial a propriedade da
escuta. Entretanto, é preciso reconhecer que seu real efeito é a manutenção de um cargo de
mediação entre as instituições (de ensino, de saúde, políticas etc.) e as subjetividades
marginalizadas, cujos vocabulários continuam sendo percebidos como inadequados, conforme
exemplificado pelas ideias de Miskolci.
A fala de Pelúcio na ocasião do Cisminário é aparentemente sensível a todas essas
perturbações. Entretanto, afirmar passionalmente que não se está falando “por”, senão “com”
as comunidades travesti/trans*, sem especificar as medidas tomadas para tanto, acaba sendo
uma estratégia esquiva e insuficiente, que levanta ainda mais questionamentos: de que forma
as pessoas trans, negras, de classe baixa participam ativamente da produção de conhecimento
da intelectual? A escrita é feita em conjunto? É endereçada a essas comunidades? O formato e
o conteúdo são por elas escolhidos e revisados? Afinal, que tipo de metodologia foi empregada
para contemplar a ambiciosa proposta de se falar “com” as comunidades marginalizadas?
Retomando o bordão “não falo ‘por’ ninguém, falo ‘com’ [as comunidades
marginalizadas]”, primeiramente, cabe estabelecer o pressuposto de que “falar com as
comunidades marginalizadas” implica não só consentimento, como também cumplicidade entre
pesquisador/a e “sujeito” pesquisado. A esse respeito, em seu artigo Undoing Theory: The
“transgender question” and the Epistemic Violence of Anglo-American Feminist Theory
(2009), Namaste questiona as metodologias feministas anglo-americanas empregadas em
pesquisas sobre transexualidade/transgeneridade e, inspirando-se em critérios feitos por
comunidades indígenas para avaliar as pesquisas que as têm como objeto, a autora esboça três
princípios para a produção de conhecimentos feministas emancipatórios, sendo eles: relevância,
equidade na participação e autoria/propriedade (ownership).
O princípio de equidade na participação da produção acadêmica é defendido por
Namaste como sendo um dos principais critérios de sua proposta, pois é o elemento que institui
que a comunidade pesquisada deve necessariamente beneficiar-se do projeto. Essa deliberação
61
de que o conhecimento produzido seja útil à população pesquisada tem também como efeito a
regulação da relevância do estudo, uma vez que a hipótese da pesquisa passa a ser informada
por uma agenda interna. Ao mesmo tempo, o princípio de autoria/propriedade compartilhada
assegura que o conhecimento não seja extraído, apropriado, comodificado e reificado e que a
pesquisa tampouco gere imaginários ou estereótipos que prejudicariam a comunidade
representada.
Namaste aponta que é preciso transformar radicalmente as relações entre os/as
acadêmicos/as e as comunidades por eles/as pesquisadas através da insistência na equidade da
participação na produção do conhecimento. Entretanto, a autora reconhece que na prática
acadêmica as “parcerias têm comumente significado que a comunidade fornece acesso a um
campo para que o/a pesquisador/a possa obter dados para responder às perguntas que ele/ela
criou” (NAMASTE, 2009, p.16). Nesse sentido, atento para o fato de que, no Brasil, é comum
observarmos pesquisadoras/es cisgênero se infiltrando nos ambientes exclusivos de pessoas
sexo/gênero-diversas (muitas vezes sem anunciar seus interesses e identidades) e criando
metodologias que extraem dados para suas pesquisas sem o consentimento dos “objetos de
pesquisa”16.
2.5 REPRESENTAÇÃO COMO PONTO DE VISTA: MAIS ALGUMAS NOTAS SOBRE
MOTIVAÇÕES, OBJETIVOS E PÚBLICOS DOS CISTEMAS ACADÊMICOS
“Mas escrevo com um espelho na minha frente, porque se esqueço quem está
escrevendo, a hegemonia começa a escrever através de mim.” (Leila Dumaresq, Ensaio
(travesti) sobre a escuta (cisgênera)).
16
Exemplos dessa asserção podem ser observados nas metodologias empregadas, por exemplo, na tese
FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: a emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo,
em que a pesquisadora Simone Ávila cria um site para atrair seus objetos de pesquisa fazendo-se passar por homem
trans*.
62
proponentes. Como explica Ella Shohat: “embora não haja verdade absoluta, nenhuma verdade
além da representação e da disseminação, existem ainda perspectivas verdadeiras contingentes
e qualificadas, nas quais as comunidades investem” (SHOHAT; STAM, 1994, p. 179).
Pensando em metodologias para análises culturais, Shohat rejeita a busca por uma
representação que ofereça uma realidade mais real ou mais fidedigna (mais próxima da
comunidade representada) e nos encoraja a assumir que toda representação é o resultado de um
aglomerado de discursos contingentes, condicionados a perspectivas de determinadas
comunidades e em conformidade com seus interesses.
As principais críticas da comunidade travesti/trans* à academia problematizam o fato
de que os dispositivos institucionais de representação têm se concentrado nas mãos de um grupo
hegemônico e homogêneo, que comumente constrói, através da extração de dados, uma
alteridade objetificada, alienada e exotizada. As ideias de Shohat induzem à observação dos
efeitos da representação levando em conta os interesses (motivação), os meios e os acessos de
suas/seus propositoras/es. Uma análise desses componentes explicita que o disputado terreno
da representação está necessariamente imbricado na produção de campos de exclusão e de
inadequação e que, dependendo da perspectiva através da qual opera, pode vir a rejeitar os
pontos de vista e interesses das comunidades que pretende representar, conforme explicado
também na escrita de Vergueiro:
Aqui, mais que solidificar uma categoria rígida e identitária para abrigar “o/a
pesquisador/a cisgênero”, Vergueiro identifica a reincidência de métodos tradicionais de
pesquisa acadêmica que geram representações profundamente desidentificadas das vivências
travesti/trans*. De maneira complementar, na citação que inaugura este tópico, a ativista e
escritora trans* Leila Dumaresq insinua que sua escrita trans-situada é tecida a contrapelo
daquelas convenções acadêmicas que, se agrupando e se repetindo, sedimentaram-se
naturalizando determinadas perspectivas e forjando neutralidade na escrita institucional.
Todas as indagações levantadas neste capítulo permitiram questionar reincidências
metodológicas que se pretende evitar na formulação da metodologia que será utilizada nesta
pesquisa. Mas o que haverá de proveitoso a ser extraído desse desmantelamento das
63
Uma metodologia com princípios semelhantes aos mencionados se faz necessária para
o projeto em questão, uma vez que este prioriza comunicar dentro da subcultura dissidente.
Assim sendo, é reconhecida aqui a necessidade de aplicação de um vocabulário distintivo e
separatista (embora estruturado através de uma linguagem acessível), bem como de estipular
um campo de referências também singular, que ganha significado no interior das comunidades
interpeladas. Partindo da ideia de que reunir as autorrepresentações travesti/trans* através de
um quadro analítico trans* significa reconhecer e empregar os termos e gestos antissociais
corporificados pelas subjetividades dissidentes e expressos em seus projetos, analisarei as
proposições selecionadas empregando uma metodologia também dissidente: a Teratologia
trans*.
65
Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar
de origem como sendo “cu do mundo”, ou já fomos sistematicamente localizando
nesses confins periféricos e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografia
como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma cabeça. Uma cabeça
pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora
morfológica desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento
e onde se produz os espaços de experimentação daquelas teorias. (PELÚCIO, 2012,
p. 413)
A Teratologia trans* reúne projetos marginais a partir do gesto antissocial que está
epistemologicamente vinculado à constituição das subjetividades dissidentes e, assim, designa
não só uma produção que trata de temáticas culturais dissidentes e contra-hegemônicas, mas
também compreende os sujeitos (ou seja, as/os proponentes) por trás delas: as pessoas trans* e
travestis, com as quais se afirma, neste exercício acadêmico, um compromisso de
responsabilidade. Ou seja, a proposta reúne proposições criativas que surgem às margens dos
sistemas hegemônicos de produção e difusão de conhecimento, necessariamente elaboradas por
66
3 A ALTERIDADE MONSTRIFICADA
Com efeito, a proposição que indica a construção social e imaginária não só do gênero,
mas também do sexo em última instância criou uma vaga de penetração de homens
no movimento feminista não como parceiros para eliminar a violência e a
discriminação contra as mulheres, mas para reivindicar um pertencimento ao
feminino, mesmo com aparelho genital masculino, símbolo maior da importância a
ele conferida. (SWAIN, 2018)
Importa ressaltar que a mesma revista publicou, em 2003, o artigo Transexuais, corpos
e próteses (2003) no qual, em suas análises sobre transexualidade, Berenice Bento aplica as
teorias de Judith Butler e desafia a naturalização da categoria “sexo”, referindo-se a ela como a
“primeira cirurgia” pela qual todos passamos no campo social. É interessante analisar o sinuoso
percurso editorial da Labrys levando em conta a emergência dos transativismos: apesar de ter
incorporado publicações alinhadas às teorias advindas dos Estudos Trans* (como a de Berenice
Bento), com a polarização exacerbada entre estudos feministas lésbicos e os estudos
travesti/trans* (especialmente no momento em que travestis e pessoas trans* acessam
paulatinamente as esferas autorizadas de produção de conhecimento), a comissão editorial
efetua uma verdadeira guinada reacionária. Ou seja, analogamente ao ocorrido no contexto
norte-americano, o backlash feminista radical desponta no Brasil quando as subjetividades
travesti/trans* começam a atuar como agentes – e não mais objetos – no campo dos saberes
feministas e a disputar novos territórios de pertencimento e de produção de conhecimento. Nos
Estados Unidos, algumas vertentes de teorias feministas radicais se proliferaram
progressivamente investindo na expulsão de pessoas trans* dos espaços construídos
exclusivamente por e para lésbicas e mulheres cisgênero17 e, analogamente, no Brasil
contemporâneo observa-se que, embora embebidas em suas particularidades, arquiteturas
semelhantes são ensaiadas dentro e fora da academia.
17
Os casos de Beth Elliott e de Sandy Stone são emblemáticos, pois representam as primeiras
imposições de exclusão das mulheres trans* dos projetos, ambientes e grupos lésbico-feministas.
72
Dada a evidente pertinência desta discussão no atual cenário de disputa teórica, julgo
oportuno inaugurar este capítulo analisando as primeiras iniciativas de monstrificação da
transexualidade no âmbito da produção de saberes feministas. Para tanto, como já disse,
analisarei um dos mais relevantes registros dessa temática: a relação entre transexualidade
feminina e a criatura de Frankenstein, elaborada por Mary Daly em Gyn/ecology: The
Metaethics of Radical Feminism (1978), assim como a subsequente resposta elaborada pela
teórica trans* Susan Stryker em seu artigo My words to Victor Frankenstein above the Village
of Chamounix: Performing Transgender Rage (1994). Esse roteiro introduzirá questões chave
para as subsequentes análises das autorrepresentações monstruosas sudacas travesti/trans*, uma
vez que proporcionará uma base para a comparação entre a história científica e cultural
implicada na construção da subjetividade trans* norte-americana e suas trajetórias,
entretextualizações e hibridizações em contextos latino-americanos.
18
Na metade do século, as terminologias “sexo biológico”, “gênero” e “sexualidade” emergiram
separando e diferenciando-se da palavra “sexo” que, anteriormente, abrigava todos esses significados.
73
19
A cirurgia de Jorgensen ocorreu na Dinamarca sucedendo as operações de Dora Richter e Lili Elbe,
que, orientadas pelas práticas desenvolvidas por Magnus Hirschfeld, ocorreram sucessivamente em 1922-1931 e
em 1930 na Alemanha.
20
Stone explica que “levou um tempo surpreendentemente longo – muitos anos – para os/as
pesquisadores/as perceberem que o motivo pelo qual o perfil comportamental dos/das candidatos/as combinava
tão bem com o de Benjamin era porque os/as candidatos/as também tinham lido o livro de Benjamin, que passava
74
de mão em mão dentro da comunidade transexual, e elas/es estavam mais que contentes de providenciar o
comportamento que levaria à aprovação da cirurgia” (STONE, 1992, p.9)
21
Ver Linda Alcoff (1988). Alcoff define o “feminismo cultural” como uma vertente investida na
redefinição daquilo que “mulher” significaria, ou seja, uma das características dessa ideologia seria a insistência
na categoria e a tentativa de positivação da mesma através da proposta de substituição da definição original
(patriarcal) por uma reformulação orientada por mulheres.
75
com a segunda-onda feminista nos EUA do pós-guerra e “rapidamente passou a ser percebido
por agentes culturais e políticos de esquerda como sendo branco, de classe média, heterossexual
[...]” (STRYKER, 2008, p.97). Rebatendo a homofobia (em especial as perseguições à
lesbianidade, que ainda era patologizada) no interior de movimentos feministas, ativistas
feministas culturais, como Robin Morgan e Rita Mae Brown, asseguraram a “significativa
recontextualização de algumas subculturas sexuais lésbicas, um desenvolvimento que não foi
necessariamente benéfico a todas as envolvidas” (STRYKER, 2008, p.99).
O feminismo radical transformou os movimentos feministas do período com seu
pioneiro combate à homofobia, propiciando a criação e disseminação de culturas lésbicas no
interior desses espaços, bem como alargando rachaduras que possibilitaram outros
questionamentos acerca de quem seria o “sujeito do feminismo”. A faceta menos proveitosa
desse processo (à qual Stryker se refere na citação acima) é um desdobramento do objetivo
lésbico radical de “destronar o gênero”: um dos efeitos estéticos e ideológicos dessa abordagem
foi a promoção do estilo andrógeno como alternativa mais próxima de um gênero-neutro e a
consequente depreciação das “excessivas” masculinidades (sapatão/dyke) e feminilidades
(sapatilha/femme) lésbicas, que passaram então a serem consideradas retrógradas e
heterocentradas. Posteriormente derivaram-se dessas ideias algumas das críticas às
transmasculinidades e transfeminilidades: por exemplo, segundo esse pensamento, os corpos
trans* reificariam os estereótipos de gênero, uma vez que reproduziriam de forma estereotipada
os arquétipos representativos da masculinidade (agressividade, autoridade, superioridade etc.)
e da feminilidade (docilidade, ingenuidade, fragilidade, submissão etc.). Assim sendo,
“emulando a norma da mulheridade” ou “construindo uma fantasia conservadora sobre o que
as mulheres deveriam ser” (JEFFREYS, 1997, p.59), os corpos transfemininos estariam
espessando os imaginários que o feminismo radical lésbico visava combater em sua busca pela
oclusão do gênero. Já a transmasculinidade, mais invisível talvez porque menos reivindicativa
desses espaços, era percebida como a confirmação de estereótipos lesbofóbicos: as pessoas
transmasculinas seriam produto da “internalização da misoginia” e, segundo Sheila Jeffreys,
seu desejo pela masculinidade subsidiaria “o espetáculo de lésbicas como aberrações que na
verdade querem ser homens” (JEFFREYS, 1997, p.68).
76
Esse raciocínio está enredado na ideia de que as pessoas transfemininas seriam homens
que deliberadamente reiteram os “papéis sexuais” 22 e as estéticas associadas à feminilidade,
contribuindo para a preservação das assimetrias de gênero. Complementarmente, uma das
principais críticas à transexualidade feminina diz respeito à suposta invasão masculina do
universo feminino (a metáfora do “cavalo de Tróia” e um vocabulário que alude ao estupro
foram recorrentemente utilizados por feministas radicais para ilustrar essa ideia): esses “homens
disfarçados de mulheres” estariam se infiltrando no universo feminino para assegurar a
dominação masculina e a subordinação feminina, neutralizando, assim, as reivindicações
feministas e as lutas das mulheres (cisgênero) contra os gêneros e as hierarquias deles derivadas.
Sustentando o argumento de que as mulheres transexuais pertenciam ao sexo
masculino originalmente, as teóricas feministas radicais exaltavam o “dimorfismo sexual”
enquanto critério determinante ou “destino” do gênero. Algumas autoras, como Janice
Raymond, enfatizaram a importância do “sexo biológico” na construção da identidade e
defenderam que ele seria uma condição anterior ao gênero – tendo-se que o segundo estaria de
certa forma subordinado ao primeiro. Nesse sentido, “mulher” seria a junção do componente
biológico (muitas vezes referido como “sexo cromossômico”) e da subsequente experiência do
papel social a ele atribuído. Embora muitas vertentes do feminismo radical contemporâneo
entendam “gênero” como construção cultural edificada a partir da designação de um sexo
também culturalmente atribuído, há, principalmente nos textos fundadores dessa linha (como
os escritos de Mary Daly), uma ênfase essencialista no “sexo biológico” e, com ela, a tentativa
de positivar a “mulheridade”. A crença na anterioridade do sexo em relação à cultura e à
linguagem também era muitas vezes acompanhada de vínculos essencialistas entre mulher e
natureza, a exemplo da ideia de “sagrado feminino” articulada em retóricas fundacionais do
ecofeminismo (a exemplo de Woman and Nature, lançado em 1978 por Susan Griffin, e The
Death of Nature, lançado em 1989 por Carolyn Merchant).
De forma geral pode-se dizer que, ao se depararem com o “fenômeno transexual” e
com as possibilidades de “mudança de sexo” que se popularizavam e passavam a tomar corpo
inclusive no interior dos espaços feministas e lesbo-separatistas, as teóricas lésbicas feministas
radicais viram ameaçadas as bases fundamentais de suas argumentações: se os órgãos genitais
seriam o ponto de partida para a definição do gênero e da identidade sexuada, sua mutabilidade
22
Apesar de não estar vinculado ao feminismo radical, esse termo, cunhado por Talcott Parsons no
contexto da sociologia funcionalista norte-americana e disseminado também por Margaret Mead, foi comumente
empregado no contexto.
77
23
Esse aspecto é ressaltado no livro Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism,
de Sheila Jeffreys.
24
A noção de “materialidade política do sexo” é elaborada por Christine Delphy e Diana Leonard em A
materialist Feminism is Possible (1980).
78
Essa “experiência das mulheres”, que mais tarde passou a ser chamada de
“socialização de gênero”, reduziu-se a simplificações aplanadoras: se edificou sob a ilusão
colonialista de que existe uma unidade (ou ao menos um “mínimo denominador comum”)
universal na experiência de opressão vivenciada por mulheres no campo social. Um dos efeitos
dessa manobra foi a criação de novos obstáculos à legitimação das mulheridades travesti/trans*,
já que, em vez de indexar-se ao sexo de forma essencialista, a “mulheridade” passou a emergir
associada a determinadas funções sócio-biológicas e à adjacente experiência de gênero que, por
sua vez, só poderia ser alcançada por meio de processos de socialização regulados pelas
premissas feministas radicais e centradas no “corpo feminino”.
O reforço e a delimitação autoritária dessa unidade totalizante “mulher” (enquanto
espelhamento do desejo patriarcal), além de policiar e apagar as diferenças, aparentemente
comunica a incapacidade ou a resistência da parte de algumas teóricas do feminismo radical
lésbico em conceber “gênero” enquanto processo e produto de sua própria representação. É
desconsiderada, assim, a potencial reciprocidade existente no percurso de moldar e ser
moldada/o pela norma e a constante negociação e recontextualização implícita na formulação
da subjetividade. Algumas feministas radicais, como Jeffreys, justificaram sua oposição às
teorias queer e pós-estruturalistas afirmando a necessidade de que seja assumida uma postura
“mais extrema”, capaz de promover a total abolição dos gêneros e, ao mesmo tempo, reconhecer
a necessidade de abordar seus efeitos, já que “gênero” seria uma “materialidade com
consequências políticas” (JEFFREYS, 1997, p.65). De forma geral, pode-se dizer que Jeffreys
rejeita as proposições queer pois as entende enquanto investimento, manutenção ou atualização
do sistema que pretende exterminar. Nesse sentido, observa-se que o discurso feminista radical,
apesar de otimista e incisivo, contempla um espaço fora da cultura e da linguagem, ecoando
muitas vezes em antíteses utópicas como: “não haverá mais gênero quando as mulheres forem
livres” (JEFFREYS, 1997, p.64), da qual entende-se: “não haverá mais gênero quando as
mulheres deixarem de ser mulheres”).
Nesse breve panorama, dialoguei a proliferação da figura transexual no imaginário
norte-americano e as formulações dos pensamentos feministas radicais. Esse exercício
proporcionou uma base contextual e teórica para adentrarmos a análise do texto Boundary
Violation and the Frankenstein Phenomenon, em que Mary Daly relaciona transexualidade
feminina à obra de Frankenstein. Contudo, antes disso convém fazer uma breve introdução para
situar Frankenstein na teratologia contemporânea.
79
“Like a letter on the page, the monster signifies something other than itself.” (Jeffrey
J. Cohen, “Monster Theory”, 1996)
Segundo J. Jack Halberstam, por ser uma figura que abriga em si uma variedade de
monstruosidades específicas, a criatura em Frankenstein se enquadra na categoria de “monstro
totalizante” (totalizing monster), criada por Franco Moretti (2005). Essa característica está
vinculada à habilidade que determinados monstros (como vampiros ou lobisomens) têm de se
atualizar em diferentes contextos, ou seja, sua capacidade de ressurgir na contemporaneidade
encetando novas possibilidades interpretativas. É justamente a variedade de leituras e releituras
de Frankenstein o que faz de seu personagem um monstro contemporâneo e “totalizante”: uma
criatura que retorna, em diferentes períodos e lugares, simbolizando uma miríade de ameaças.
A constante atualização da criatura indica que ela desafia à própria definição, e essa mesma
impossibilidade de fixá-la em uma única leitura (sua hibridização constante) previne o seu
abate.
Um sintoma que sugere a característica totalizante de Frankenstein seria, por exemplo,
o fato de que a obra já foi lida enquanto representação do gênero feminino, do proletariado, da
sociedade industrial, da revolução francesa, do desejo homoerótico, da transexualidade
feminina, entre outros. No mesmo sentido, observa-se certa permissividade nas tentativas de
localização de sexo, gênero e orientação sexual no monstro em questão: se, por um lado, a
criatura trazida à vida pelo Dr. Frankenstein manifesta indícios de desejo heterossexual ao
solicitar a criação de uma companheira feminina feita à sua imagem, por outro lado, é pouco
substancial inferir um sexo (dimorfismo sexual) e adjacentes identidade de gênero e orientação
sexual à criatura, visto que tal monstro, composto de pedaços de diferentes corpos, escapa ao
humano.
Nota-se que a “verdade” acerca do sexo, do gênero e da orientação sexual desse
monstro humanoide se esvai e se dilui em contingentes possibilidades interpretativas – que
variam de acordo com os interesses daquelas/es que o evocam. Nem mesmo a autoenunciação
é suficiente para localizar com precisão essas categorias, conforme explicitado por Halberstam,
que aponta para a instabilidade no gênero da personagem:
Depois de ler Paradise Lost, por exemplo, ele [o monstro] se sente impulsionado a
perguntar se ele seria um outro Adão “aparentemente não unido por nenhum outro
80
laço a qualquer outro ser existente”. Mas, ele conclui, “eu considero Satã como um
emblema mais adequado à minha condição”. Críticas feministas também observaram
uma relevante semelhança entre o monstro e Eva. Note, entretanto, que nada se ganha
fixando o monstro a alguma dessas identidades. [...] O monstro é sempre todas essas
figuras. Em sua própria composição, ele não pode nunca ser uma coisa, nunca
representar somente uma ansiedade singular. (HALBERSTAM,1995, p.36)
[...] o monstro pode carregar a marca daquela interpretação não porque aquela
interpretação o descreve de forma mais útil. Os monstros seduzem as/os leitoras/es e
consumidoras/es porque representam na própria forma o jogo de leitura e escrita,
reescrita e contação [telling], contação e interpretação. [...] cada medo, cada fonte
literária, cada desejo, cada evento histórico, cada estrutura social da qual o texto se
alimenta, se torna combustível para a manufatura de significados.
(HALBERSTAM,1995, p.34)
Technology, and the Idea of Gender, Hausman coloca que “demandando a intervenção
tecnológica para ‘mudar de sexo’, transexuais demonstram que seu relacionamento com a
tecnologia é de dependência” (HAUSMAN, 1995, p. 110), pois “transexuais precisam procurar
e obter tratamento médico para serem reconhecidos como transexuais. Toda a sua posição de
sujeito depende de uma relação necessária com a instituição médica e seus discursos”
(HAUSMAN, 1995, p. 148). Também nesse sentido, Hausman alega erroneamente que,
diferentemente dos homossexuais, que conseguiram se libertar da medicina, as/os transexuais
pedem por mais regulações médicas.
Pode-se dizer que Hausman reduz a experiência transexual ao controle e às
intervenções médicas e, nesse exercício, descreve os sujeitos transexuais como tolos
(verdadeiros marionetes da medicina e dos regimes hegemônicos de sexo/gênero), além de
representá-los como seres manipulativos e enganosos (dupes of gender)25. Ademais, a autora
acaba também deslegitimando o desejo e a agência dos sujeitos transexuais ao inscrever os laços
da transexualidade com a medicina numa estrutura que remonta à soberania da ciência na
construção da categoria e à total submissão dos/as transexuais aos termos por ela instituídos.
Em sua resposta a Hausman, Prosser aponta que a teoria construtivista da
transexualidade tolhe a autonomia transexual ao excluir e invisibilizar sua contribuição para a
construção de sua identidade. O autor identifica que alguns dos efeitos dessa vertente ideológica
são a dessubjetivação e a deslegitimação da autoenunciação trans*: os/as transexuais não são
vistos como sujeitos que constroem, o poder enunciativo (lembrando que o diagnóstico de
“transexualismo” se dá através de sessões de terapia, as quais são de natureza puramente
discursiva) que corresponde a esse sujeito é atribuído exclusivamente ao legado médico, de
forma a invalidar “não só a capacidade do sujeito de iniciar e efetuar sua própria transição
somática, mas também de informar e redefinir a narrativa médica da transexualidade”
(PROSSER, 1998, p.8). Como resposta, o autor afirma que a quem se instituiu nomear
“transexuais” compreende uma subjetividade ativa, que existiu como sujeito discursivo antes
25
Cabe mencionar que a representação que Hausman faz das pessoas transexuais (“marionetes da
medicina”) é indicativa de sua própria posição subjetiva e de seu distanciamento das comunidades transexuais. Em
contraponto, Sandy Stone relata alguns dos artifícios utilizados por pessoas trans* para navegar estrategicamente
o sistema médico, dentre eles, a leitura dos livros de Harry Benjamin e o aprendizado da narrativa que acarretaria
o diagnóstico de “transexual verdadeiro”. No contexto brasileiro, Rodrigo Borba analisa como diferentes sujeitos
travesti/trans* aprendem o vocabulário médico nas sessões de terapia do processo transexualizador oferecido pelo
SUS e utilizam-se do artifício da mentira para conseguirem os recursos somáticos que desejam. Numa nota mais
pessoal, me lembro de ir às reuniões de grupo do Centro de Referência LGBT de Campinas aos domingos
(obrigatórias para o processo transexualizador do SUS) e do contraste entre o conteúdo do que contávamos na
reunião mediada pela psicóloga e pelas/os estagiárias/os e o teor das conversas que tínhamos no bar, logo após a
reunião.
84
da patologia, das cirurgias e da terapia hormonal, ou seja, que essa categoria implica a trajetória
histórica de sujeitos desejantes, que forjaram recursos diversos (inclusive tecnologias
científicas e não-científicas) para a sua corporificação (embodiment). Retrucando os
argumentos feministas radicais (que, vale dizer, geraram um marco teórico ainda
recorrentemente utilizado nas pesquisas acadêmicas sobre transexualidade), Prosser oferece a
perspectiva de que não foi a ciência que criou o sujeito transexual, foram as pessoas transexuais
quem transformam profundamente o saber científico e suas tecnologias.
Alinhando-se às teorias de Hausman, Janice Raymond (1994) reforça a ideia de que a
instituição médica inventou o sujeito transexual. Mas sua retórica tem nuances mais investidas
contra o “regime patriarcal” e é construída com argumentos e vocabulários enraizados nas
ideias feministas radicais: por exemplo, um dos artifícios utilizados para invalidar a identidade
transexual é a substituição do termo “mulher transexual” ou MTF (male to female / de-homem-
para-mulher) por male-to-constructed-female (de-homem-para-mulher-construída), sugerindo
que há algo (mais) artificial na construção da identidade transexual, uma espécie de falsificação
do real. Raymond argumenta que o “transexualismo” não teria sido meramente acolhido pela
ciência, senão construído por ela afim de regular os corpos e divergir a atenção do real problema
social: a divisão dos sexos e gêneros. Para a autora, o “transexualismo” reafirmaria os gêneros 26,
e seria mais uma ferramenta de “controle patriarcal”, cujo objetivo seria o de reinstaurar a
norma contestada pelos movimentos de libertação da mulher.
No segundo capítulo do polêmico The Transsexual Empire: the making of the she-
male (cuja tradução literal seria “O Império Transexual: a feitura do traveco”) Raymond indaga:
“Os transexuais nascem ou são feitos – ou ambos?”. Para responder à pergunta, a autora analisa
as pesquisas e experimentos científicos de John Money e refuta a proposição do sexologista de
que o ‘transexualismo’ seria produto tanto de componentes biológicos como de contextos
socioculturais (environmental). Colocando que “Money tão somente negou a ideia de que seria
um ou outro, mas não provou que realmente são ambos [aspectos biológicos e sociais que
formam o ‘transexualismo’]” (RAYMOND, 1994, p.49), a autora questiona as análises
“biologicistas” de Money, assim como as teorias psicanalíticas misóginas de Robert Stoller e
reinsere o debate nature-nurture (natureza-socialização) para provar que as “perturbações” que
26
Em seu livro, a autora também entrevista algumas mulheres transexuais a fim de oferecer dados para
fundamentar uma de suas principais críticas à transfeminilidade: a ideia de que essa identidade foi deliberadamente
criada pela ciência para reafirmar estereótipos de gênero e interferir nas lutas feministas de libertação da mulher.
85
atribuiu-se à biologia o poder soberano de qualificar o que seria construído como “natural” e
opor a esse critério o seu outro (o “antinatural”).
Em La Invención Del Sujeto Transexual, referenciando os trabalhos de Fausto-Sterling
(2000), Meyerowitz (2002) e Laquer (1990), entre outros, Francisco Vázquez García (2018)
historiciza os contextos e dispositivos históricos que culminaram na criação da transexualidade
enquanto patologia associada ao domínio científico europeu. Nesse exercício o autor conecta
as raízes desse fenômeno ao momento em que “masculinidade” e “feminilidade” passaram a
ser entendidas como naturalmente derivadas das leis da biologia, deixando de estarem
estritamente circunscritas a outras instituições sociais (como a igreja, a família e as autoridades
civis). Segundo García, a criação da biologia teria sido o primeiro gesto de domínio do
científico sob a identidade sexuada, uma vez que proporcionou as condições para que se
instaurasse uma instituição médica responsável pela regulação dos processos vitais, ou seja,
uma entidade institucional encarregada do manejo da vida via saber científico e a serviço de
um governo: o biopoder. Nas palavras de García:
Segundo o autor, o triunfo desse modelo biologicista, teve como efeito (i) o reforço e
o aprofundamento da normalização da masculinidade e da feminilidade, pautadas pelo sexo
reprodutivo e por práticas heterossexuais; e (ii) a reformulação e o manejo de seres
intermediários do antigo regime sexual, como hermafroditas (intersexo) e viragos e,
eventualmente, invertidos, homossexuais, pseudo-hermafroditas, hermafroditas-psicológicos e,
finalmente, transexuais.
Baixo o domínio do biopoder, tanto a noção de “sexo masculino” e “sexo feminino”,
como a posterior invenção do “transexualismo” foram tecidas por tratados médicos, pesquisas
laboratoriais, exames psicológicos e endocrinológicos e intervenções cirúrgicas. Entretanto, o
estudo dos sexos feminino e masculino se estabeleceu como observação de processos do corpo
e instituiu uma normalidade rígida, em oposição à qual outras possibilidades e realidades
emergiriam na condição de monstruosidade e anomalia.
87
Vale também destacar que, assim como aconteceu com a sexualidade a partir dos
XVIII e XIX, a transexualidade, a partir das primeiras décadas do século XX, também surgiu
entrelaçada (porém não necessariamente “capturada”) em relações e práticas de poder, em
especial do âmbito médico e psiquiátrico, o que permite entender que sua inscrição (como
patologia) dentro de um marco institucional orientado pela matriz heterossexual foi o que lhe
conferiu inteligibilidade no limitado escopo de possibilidades então existente.
Conforme brevemente pincelado, a agência, a experiência e a contribuição das pessoas
transexuais são raramente reconhecidas na história da criação da categoria, uma vez que essa
identidade foi expelida do domínio natural, construída como “corpo doente” através dos saberes
médicos e reformulada no discurso feminista radical como “objeto artificial” (dessubjetivado).
Se, de um lado, o feminismo radical oferece um transexualismo-Frankenstein, que só passa a
existir quando é inventado pela ciência, de outro lado surgem perspectivas que enxergam a
transexualidade enquanto “conceito interativo” capaz de intervir na realidade que a designa,
indicando que talvez as/os transexuais estiveram por muito tempo presas/os em um corpo
teórico errado.
De forma alternada e, por vezes, simultânea, a obra literária Frankenstein oferece uma
sucessão de retornos e expulsões dos domínios da natureza e da cultura, desafiando, assim, a
separação desses domínios e incitando o questionamento: “até onde podemos levar o artifício
sem prejudicar a nossa identidade humana ‘natural’?”. Essa perturbação gerada pela
impossibilidade de se equilibrar “natureza” e “cultura” na equação que produz o “humano”, é
descrita por José Gil como um conflito de cerne identitário inaugurado pelo monstro:
Assim, dividido entre ‘tudo (na natureza) é humano’ (visto que o homem não é senão
natureza e código genético) e ‘tudo (no homem) é artificial’, o homem ocidental
contemporâneo já não sabe distinguir com nitidez o contorno da sua identidade no
meio dos diferentes pontos de referência que, tradicionalmente, lhe devolviam uma
imagem estável de si próprio. (GIL, 2000, p.170)
pela carne tem como efeito a transformação da relação que até então se tinha com a
monstruosidade:
Outras perguntas que despontam orientando a análise da escolha de Daly pelo monstro
em Frankenstein são: o que essa criatura, símbolo dos avanços tecnológicos, pode vir a
representar em termos de sexo, gênero e orientação sexual? E como são expressos e articulados
esses elementos no pensamento feminista radical? A esse propósito demonstrarei que o monstro
de Frankenstein é solicitado na escrita de Daly como metáfora depreciativa: o caráter
“artificial” do processo de sua criação é articulado para deslegitimar a transexualidade, gerando
uma polarização entre o chamado “sexo biológico” e o resultado dos processos cirúrgicos
transexualizadores. A intenção de Daly seria revitalizar as fronteiras entre natureza e cultura,
89
real e artificial (vida de origem biológica/vida originada na tecnologia), vivo e morto (a vida
impossível ou a morte em vida) e, por fim, a divisão última do humano e do inumano.
É importante frisar que, na escrita de Daly, as subjetividades sexuadas e seus processos
constitutivos não são evocados a partir da localização ou da fixação de determinada identidade
à criatura de Frankenstein, mas, sim, através da reiteração da distinção entre natureza e cultura,
bem como da separação entre real e artificial. Ou seja, apesar das características atribuídas ao
monstro de Frankenstein via economia visual (a dimensão de seu corpo, sua robustez,
racialização e masculinidade) e dos vestígios identitários na sua designação e auto-enunciação
na obra literária, a autora não ensaia uma comparação direta entre o “sexo biológico” ou a
orientação sexual do monstro e os marcadores que norteariam sua concepção de
transfeminilidade. Em vez disso, para formular a expulsão da transexualidade feminina do
domínio da mulheridade, Daly atenta ao ato de criação da criatura e articula a ideia de
“maternidade tecnológica”, apontando para o “berço científico” da transexualidade,
anteriormente mencionado. É nesse sentido que a escolha pelo monstro de Frankenstein se
sustenta em sua proposta: esboçando a (im)possibilidade de edificação científica de uma outra
ideia do corpo humano.
27
Cabe pontuar que “narcisismo” era um dos sintomas de diagnóstico do “transexual verdadeiro” de
acordo com as teorias desenvolvidas por David Oliver Cauldwell.
91
qualquer outro ser existente” (SHELLEY, 1831, p.65 apud DALY, 1978, p.51). Ressoando nas
teorias de Hausman e de Raymond, a solidão estrutural, a falta de consciência e o
despertencimento crônico são associados tanto ao monstro de Frankenstein como à figura
transfeminina em virtude de suas filiações aberrantes. A autora exalta a impossibilidade de
hereditariedade, frisando que tanto a identificação do “corpo originário” como a reprodução de
sua “espécie” ou “raça” seriam inviáveis. Esse elemento alienante expele a criatura (e a
transexualidade análoga a ela) do domínio da inteligibilidade e lhe confere abjeção, visto que,
segundo Julia Kristeva, dentre outras coisas, “a abjeção se constrói sobre o não reconhecimento
de seus próximos: nada lhe é familiar, nem mesmo uma sombra de recordação” (KRISTEVA,
1980, p.5).
Esse profundo despertencimento faz da criatura (o monstro em Frankenstein e a
mulher transexual) um “não-ser”, cuja monstruosidade se adensa com a incorporação de outras
abjeções: a impossibilidade da vida via tecnologia (a artificialidade de sua criação que a
empurra para fora do domínio da natureza, ao mesmo tempo em que a aliena da cultura
humana), o inusitado aspecto físico (que a marginaliza da vida social) e o fato de que corporifica
a vida em morte, pois traz “de volta à (uma outra) vida” partes de corpos que já faleceram, ou,
no caso da figura transexual, partes de um corpo dissociadas do ser “original” (referenciado, no
vocabulário feminista radical, como “corpo nativo”28).
Visto que a monstruosidade está fora da economia do ser, no pensamento de Daly a
criatura não seria mais que um mero artifício tecnológico, fruto da imaginação necrófila de seu
pai, mas que dele não chega a se separar completamente: existe, afinal, na crítica literária, a
contundente teoria de que há uma continuidade entre criatura e criador, ou seja, a ideia de que
o monstro de Frankenstein é o duplo do cientista, seu Outro, ou aquele que abriga o que o seu
“pai tecnológico” não aceitaria sobre si mesmo.
Nesse raciocínio, “Frankenstein” 29 representa ao mesmo tempo criatura e criador,
confirmando a comum e talvez deliberada confusão sobre quem seria o sujeito ao qual o nome
se refere. Estima-se que, na escrita substancialmente hermética (em relação ao feminismo
radical separatista) de Daly, essa perspectiva (que divide o sujeito em “antes” e “depois” e
28
Complementarmente, cabe ressaltar a reincidência de componentes necrófilos na vernácula trans*,
como a adoção do termo “nome morto”, as “despedidas” na frente do espelho que precedem as cirurgias, as
retóricas de familiares que afirmam ter “perdido uma filha e ganhado um filho”, entre outros exemplos que serão
explorados nos próximos capítulos.
29
Na obra literária, a criação do Dr. Frankenstein é interpelada pelos termos “criatura”, “monstro”,
“demônio”, “aborto”, “inimigo” e “coisa”.
92
confunde também os limites entre paciente e médico) faça referência a Christen Jorgensen, uma
vez que ela adotou seu nome em homenagem ao cirurgião que a operou, sugerindo uma espécie
de linearidade/parentalidade (kinship) alcançada através da cirurgia:
Jorgensen escolheu o nome Christine. Ela se lembrou mais tarde, “Eu sempre gostei
[desse nome] ... Sempre disse para mim mesma que seria Christine. Então, depois de
conhecer o Dr. Hamburguer, cujo nome era Christian – o masculino de Christine – me
decidi definitivamente.” (MEYEROWITZ, 2002, p.60)
A violação de fronteiras para a qual Daly alerta seria, na teoria contemporânea, o que
define a função do monstro teratológico: segundo José Gil (2000), “monstro” pode vir a
representar a impossibilidade dialética, já que uma das características que o define é a
sobreposição de dois termos opostos (elementos de um binômio, na esteira da divisão
mestre/escravo de Hegel) em um único ser.
Essa ambiguidade constitutiva possibilita ao monstro emergir como “terceiro termo”
operante no interior das duas categorias de uma relação dialética e é também o que lhe concede
potência subversiva/destrutiva: transitando fugitiva e desautorizadamente pelas fronteiras, o
monstro excede – e por isso desestrutura – o equilíbrio arquitetônico do binômio. Nas palavras
93
de Cohen, “em sua função como Outro dialético ou suplemento que funciona como terceiro
termo, o monstro é a incorporação do Fora, do Além – de todos aqueles loci que são
retoricamente colocados como distantes e distintos, mas que se originam no Dentro” (COHEN,
1996, p.7).
O perímetro da monstruosidade, ao mesmo tempo interno (porque fronteiriço às
categorias binárias) e externo à relação dialética (pois se opõe a essa estrutura), forma o
chamado interstício: trata-se, aqui, do limite que, aparentemente, separa duas categorias
ontológicas opostas (homem/mulher, branco/negro, natureza/cultura etc.), mas que também não
deixa de ser um ponto marginal de contato entre elas. Nesse sentido, o interstício pode ser uma
área que se alastra contaminando as categorias (explicitando sua porosidade), como também
pode se reduzir ao tênue limite que faz a manutenção das fronteiras (demonstrando a solidez
das categorias em questão). Ambas são possibilidades contingentes que dependem das
distâncias entre os polos que compõem uma relação dialética: a aproximação extrema dos
termos do binômio (sobreposição das categorias) gera monstros capazes de confundir seus
limites, ao passo que sua separação adormece a latente ameaça monstruosa.
Para ilustrar essas teorias, tomando como exemplo a relação dialética
feminino/masculino (e esboçando a divisão interna sexo/gênero), disponho abaixo uma
ficcionalização30 simplificada de como e onde surgiriam os monstros de acordo com a lógica
explicada. Esse exercício permite visualizar possíveis configurações e efeitos do interstício:
interessa enfatizar tanto sua atuação na manutenção como também a serviço da desestabilização
de sistemas reguladores de categorias ontológicas e das identidades a elas associadas.
30
Cabe ainda uma ressalva: a título de ilustração, a imagem apresenta um modelo aplanador e simplista,
em que são empregadas categorias ontológicas puras (que se autodefinem em si mesmas, em vez de serem
contingentemente delineadas em relações de interseccionalidade com outras). Ademais, interessa pontuar também
que as simbologias elegidas são frutos de escolhas imperfeitas, afinal, não há intenção de definir o local preciso e
o funcionamento adequado das identidades às quais se alude, senão vislumbrar algumas possibilidades. Apesar de
correr o risco de elaborar uma construção cartesiana de pensamento, acredito que o modelo ilustrado possa ser útil,
pois acrescenta um componente visual à discussão.
94
inviabilizam, de forma que essa poderia tomar corpo somente enquanto monstruosidade, na
imagem que sucede.
O segundo esquema apresenta os loci de onde despontam as monstruosidades de
acordo com a teratologia contemporânea e o faz explicitando sua interioridade em relação às
categorias ontológicas: na imagem, ao menos uma fração delas é designada ao cultivo de
monstros. O modelo permite também visualizar a ideia previamente articulada de que as
categorias binárias (interconstituintes e autoexcludentes) se pressupõem moldadas não só pela
oposição dicotômica constituinte da relação dialética, mas também pela suposta expulsão de
termos incompatíveis (abjetos), que são lançados para o exterior do sistema. Pode-se dizer que
tais estruturas se afirmam expelindo as ambiguidades (incongruências) em direção a um falso
fora, com a intenção de mascarar a interioridade da repressão que cria o abjeto, o qual, por sua
vez, volta a emergir, com forma monstruosa, no interstício.
Nesse modelo, que faz reverberar alguns apontamentos da teoria queer, observam-se
também possíveis efeitos da aproximação e da contaminação dos binômios: a opacidade dos
termos (simbolizando a dessolidificação e maleabilidade, por exemplo, da identidade
“mulher”), a redução dos núcleos (representativa da dissolução das “verdades biológicas”: aqui
é apresentado o questionamento de “sexo” enquanto dado natural, ou seja, sugere-se que o “sexo
biológico” poderia ser uma construção culturalmente orientada) e o surgimento do terceiro
termo, que pode vir a representar qualquer perturbação dos elementos da cadeia (sexo >gênero
>desejo >prática sexual) que dá coerência à matriz de inteligibilidade. Assim sendo, a área lilás
pode abarcar transgressões (desvios do regime cis-heterosexual) que desestabilizam os pilares
sustentadores de sexo e gênero, sinalizando a ameaça à categoria “mulher” alertada por Daly.
Em seu exercício de monstrificação, Daly emprega alguns dos elementos da teratologia
contemporânea explicados acima, em especial a capacidade do monstro de reunir em um único
termo dois polos opostos – a característica que confere à criatura a condição de aberração.
Entretanto, a estrutura desse monstro transexual, criado a serviço do feminismo lésbico radical,
inviabiliza a produção de efeitos desestabilizadores nas categorias ontológica, conforme
explicarei adiante.
É importante atentar à terminologia adotada por Daly, uma vez que o vocabulário
empregado denuncia seu investimento na relação dialética que Frankenstein exalta: a separação
entre natureza e cultura e, análoga a ela, a divisão entre o chamado “sexo biológico” e as
intervenções somáticas transexualizadoras. Ao adotar os termos “macho” (male) e “fêmea”
(female) a autora enaltece a “natureza biológica do sexo” e invalida a possibilidade de trânsito
via procedimentos cirúrgicos, reiterando a ideia de que existe uma identidade sexuada que
essencialmente orienta a (real) experiência de gênero. Cabe também ressaltar que, nessa citação,
a menção às “mães originais” surge como crítica ao trabalho de Robert Stoller (1975), que em
seu livro A experiência transexual, associa o “transexualismo” a perturbações ou interrupções
na passagem pelo complexo de Édipo e culpabiliza as “mães dominantes” (mais que os “pais
ausentes”) pelos comportamentos de gênero “inadequados” expressos por crianças que se
tornarão transexuais, em especial, garotos afeminados.
É pertinente frisar que a autora não nega à mulher transexual feminilidade, mas, sim,
o status de mulheridade. Esse fracasso na tentativa de alcançar a mulheridade, ou seja, a
condição de “pseudofêmea” ou “quase-outro” da qual o monstro transexual não consegue
escapar, ressoa na metáfora de Frankenstein, traduzindo-se como inviabilidade da produção
97
Nossa esperança reside em nosso poder de ver o que essas próteses e cosméticos
realmente são. Os rostos, membros e respostas artificiais condicionados são matéria
morta modelada para parecer imitações realísticas de mulheres, rotuladas de “A Coisa
Real”. É essencial que estejamos cientes dos métodos alternantes dos ginecologistas
macabros, esses filhos de Frankenstein, cuja especialidade é “a ciência da mulheridade
[womankind]”. (DALY, 1978, p.51)
Para concluir, enunciando-se como bruxa (um monstro tipicamente feminino), Daly
reforça a ameaça simbolizada pela transexualidade e expressa sua própria responsabilidade de
neutralizá-la e de inviabilizar os fluxos entre as categorias “homem” e “mulher”. Visando
defender as fronteiras da mulheridade, Daly propõe: “essa [a maternidade masculina científica]
é uma violação/invasão real que requer que nós, Bruxas, nos tornemos impenetráveis às
violações dos invasores e exorcizemos os efeitos de sua presença” (DALY, 1978, p.51). A
autora alega proteger o corpo e o espírito das mulheres (no texto indexados aos elementos
naturais “terra”, “fogo”, “ar” e “água”) e forja, então, uma separação absoluta entre “homens”
e “mulheres” para destituir qualquer possibilidade de trânsito entre essas categorias ontológicas:
delas, como sendo território “inimigo”. [...] Esse tipo de “violação” pertence à arena
dos jogos de meninos e essencialmente não tem nada a ver com as prioridades das
mulheres. [...] Nossa sobrevivência sã requer que enxerguemos através dos
enlouquecedores limites artificiais feitos-pelos-machos, assim como requer que
zombemos da “violação” masculina dessas falsas divisões fronteiriças. (DALY, 1978,
p.51)
Aplicando uma lógica paradoxal, nesse trecho Daly identifica a construção dos limites
entre os sexos e os gêneros como sendo “falsas divisões fronteiriças” representativas dos
interesses “patriarcais”. Ainda assim, de certa forma, a autora rende-se a esse sistema simbólico
e reconhece o “sexo biológico” enquanto critério de pertencimento, passando então a defendê-
lo para erguer as fronteiras da “mulheridade”. O principal efeito dessa manobra seria o
isolamento da transexualidade feminina na categoria “macho”, da qual, segundo a autora, esses
corpos derivam e ao mesmo tempo deixam de pertencer (implícito na referência à morte no
termo “ciências mortuárias”), conforme ilustrado no esquema disposto abaixo.
O abjeto não é o meu correlato que, oferecendo-me um apoio sobre qualquer um outro
ou qualquer coisa outra, permite-me ser, mais ou menos, destacada ou autônoma. Do
objeto, o abjeto tem somente uma qualidade – aquela de se opor ao eu (je). Mas se o
objeto, fazendo oposição, me equilibra na trama frágil de um desejo de sentido que,
de fato, me homologa indefinidamente, infinitamente a ele, o abjeto, pelo contrário,
objeto baixo, é radicalmente um excluído e me lança lá onde o sentido desmorona.
(KRISTEVA, 1980, p.1)
Esse monstro precisa ser afastado, posto à distância e voltar a ser introduzido no
discurso de todos os dias: far-se-á dele uma curiosidade (de feira) e ele tornar-se-á
paradoxalmente num factor libertador da angústia. Reordenará do exterior as relações
entre os homens sem os fazer sofrer um constrangimento comum: sem os obrigar a
acorrentar-se a um monstro rígido e permitindo-lhes reconhecer-se como humanos,
iguais, singulares e diferentes uns dos outros. Os homens precisam de monstros para
se tornar humanos. (GIL, 2006, p.82, Grifos meus)
O fóbico não tem outro objeto além do abjeto. [...] Assim, com o medo colocado entre
parênteses, o discurso só se torna sustentável com a condição de se confrontar sem
cessar com esse outro lugar, peso repelente e repelido, fundo de memória inacessível
e íntimo: o abjeto. (KRISTEVA, 1980, p.6)
Se aplicarmos as teorias de Kristeva à equação proposta por Stryker, pode-se dizer que
a monstrificação da transexualidade refletiria uma tentativa de purificação de si do sujeito
motivada pela fobia: uma vez transformado em depositório dos medos e ansiedades, o abjeto é
expulso a um falso exterior e retorna ao jogo dialético e ao simbólico na condição de monstro.
102
Essa fobia seria, portanto, uma reação à força desestabilizadora do monstro e à vulnerabilidade
diante de seu poder de contágio:
Stryker realça a ideia de que esse medo (força motriz da abjetificação) é provocado
pela proximidade ou interioridade do abjeto em relação ao sujeito, ou seja, que o abjeto (a
criatura transexual) representa aquilo que o sujeito (as criadoras/ teóricas feministas radicais
em questão) não aceitaria sobre si mesmo: nesse caso, a instabilidade e mutabilidade do sexo e
do gênero, a subsequente transformação da noção de “natureza” e a consequente revisão do que
se considera “humano”. Esse investimento obsessivo das teóricas feministas radicais na
monstrificação da transexualidade apontaria, então, para uma fissura interior (no âmago da
identidade “mulher”), ressoando na ideia de Cohen, de que “esse corpo incoerente,
desnaturalizado e sempre sob risco de desagregação, pode muito bem ser o nosso próprio corpo”
(COHEN, 2000, p.35)
A autora destrincha a operação desses processos de abjetificação e de subsequente
monstrualização para reiterar a ameaça que a criatura representa, atribuindo-lhe poder e
potencializando, assim, sua capacidade subversiva (da qual o medo ou fobia é sintoma). Pode-
se dizer que essa manobra realça a ideia de que “os monstros, felizmente, existem não para nos
mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser” (GIL, 2000, p.168) afinal, “o que vemos
espelhado no monstro são os vazamentos e fluxos, as vulnerabilidades no nosso próprio ser
corporificado [embodied]”. (SHILDRICK, 2002, p.4, apud NIRTA, 2017, p.136).
depois reformulá-las através de uma perspectiva trans*. Pode-se dizer que Stryker legitima
algumas das principais críticas feministas radicais à concepção institucional (biomédica) da
transexualidade ao colocar que “as políticas culturais do discurso científico estão alinhadas com
uma tentativa profundamente conservadora de estabilizar a identidade de gênero a serviço de
uma ordem heterossexual naturalizada” (STRYKER, 1994, p.242). Mas em vez de advogar pela
extinção da transexualidade, a autora enxerga nas/os transexuais “paisagens viáveis de
subjetividade” e usa a figura do monstro em Frankenstein para opor-se ao diagnóstico de
“transexual verdadeiro” e ao projeto de estado direcionado às dissidências: “na medida em que
nos levantamos das mesas de cirurgias de nosso renascimento, nós transexuais somos algo mais,
e algo diferente das criaturas que nossos criadores queriam que fôssemos” (STRYKER, 1994,
p.242).
A autora se espelha na criatura de Frankenstein anunciando que, como ele, também
encontrou os diários de seus criadores (referência às teorias de Benjamin, Cauldwell e de
feministas radicais como Daly e Raymond) e conheceu a história de seu corpo através de uma
perspectiva patologizante. Consequentemente, assim como o monstro, Stryker é mobilizada
pela fúria contra o sistema que a confere a condição de anomalia e uma posição instável nos
domínios da identidade.
No corpo em que nasci, fui invisível enquanto a pessoa que considerava ser; fui
invisível como dissidente [queer] quando a forma do meu corpo me fazia parecer
hétero. Agora, como sapatão eu sou invisível entre as mulheres; como transexual, sou
invisível entre as sapatões. Como companheira de alguém que recentemente se tornou
mãe, sou frequentemente invisível enquanto transexual, mulher e lésbica. [...] O preço
alto de qualquer autorrepresentação visível e inteligível que eu alcancei faz com que
a experiência contínua de invisibilidade seja enlouquecedoramente difícil de suportar.
(STRYKER, 1994, p.246)
104
Eu cheguei o mais perto possível de dar à luz hoje – literalmente. Meu corpo não
consegue fazer isso; eu não consigo nem sangrar sem uma ferida e, ainda assim, me
reivindico mulher. Como? Por que sempre me senti assim? Eu sou uma maldita
aberração. Jamais poderei ser uma mulher como outras mulheres, mas eu não poderia
nunca ser um homem. Talvez realmente não haja lugar pra mim em toda a criação.
Estou tão cansada desse movimento incessante. Eu realmente duelo contra a natureza.
Eu sou alienada do “ser”. Eu sou uma deformidade automutilada, uma pervertida, uma
mutante, presa em carne monstruosa. (STRYKER, 1994, p.246-247)
dentro de uma dinâmica familiar pautada pela reprodução heterossexual), aprende a noção de
“família” exclusivamente como sinônimo de afeto. Observando a família De Lacey, a criatura
em Frankenstein também imagina nas relações familiares um lugar para si desassociado dos
laços de sangue e das convenções formais que regulam “família” perante o estado e a igreja.
No mesmo sentido, para Harlan Weaver, o desejo por uma companheira manifestado
pelo monstro de Frankenstein não é pautado pela heterossexualidade, uma vez que a criatura
busca um laço afetivo que consiste “num intercambio de simpatias, não de sêmen” (WEAVER,
2013, p.293). De acordo com Weaver, “o monstro deseja outro monstro que vai adentrar os
laços afetivos do vínculo familiar [kinship], umx que vai trocar com elx o cuidado que, para x
monstrx, é um vínculo familiar”. Revisitando sua publicação, Stryker faz ecoar uma intenção
semelhante de investimento em arquiteturas dissidentes de parentescos e laços familiares:
Eu queria ajudar a definir “queer” como sendo uma família à qual transexuais
pertencessem. A visão “queer” que animava a minha vida, e a vida de tantas/os
outras/os no breve momento histórico do início dos anos 1990, abrigava a estonteante
possibilidade de uma reconfiguração compensatória e utópica de comunidade. Parecia
um salto anti-édipo e extasiante rumo a um espaço pós-moderno de possibilidade, no
qual os recipientes fundadores do desejo pudessem ser rompidos para liberar um poder
erótico cru, que poderia ser direcionado a uma agenda social radical. (STRYKER,
2004, p.213)
Há, portanto, nessa monstruosidade, um otimismo que não é articulado como elevação
nem superação da condição de monstro, mas como construção de um “fora” habitável. Em igual
proporção, o texto enfatiza o poder destrutivo ou desestabilizador do monstro furioso: no
exercício de análise do seu fracasso em performar as normas de gênero, a autora associa-se ao
sombrio e tece uma narrativa autodestrutiva que culmina numa alternativa poética e criativa,
pautada pela apropriação da interpelação injuriosa. Em vez de recusar os elementos
depreciativos e alienantes, a autora abraça a negatividade, o vazio, a impossibilidade e a falta
que seu corpo representa. Nas palavras de Halberstam: “criando uma conexão com a criação de
Frankenstein, Stryker reivindica a escuridão e o não-natural, faz as pazes com a fissura e
aceita/incorpora o monstruoso” (HALBERSTAM, 2018).
Forçada para fora dos registros de inteligibilidade, a criatura acolhe a desidentificação
com posições compulsórias de subjetivação e, assumindo-a, passa a aceitar a impossibilidade
da identidade que representa. Essa guinada, que inaugura um novo jogo linguístico, coloca em
risco as macroestruturas edificadoras da identidade, bem como os pilares da noção de
“humano”. Pode-se dizer que Stryker teoriza a “fúria transgênero” enxergando além de sua
história pessoal: identifica nas corporalidades e subjetividades desviantes a constante da fúria e
106
da revolta e convida-nos a mobilizar essa força em uma ação política efetiva capaz de
transformar o conceito de “natureza”.
A criatura que Stryker corporifica atua como portenta ideológica: partindo da ideia de
que o monstro vem para advertir, a mensagem ou revelação que a autora anuncia alerta acerca
da construção da divisão entre natureza e cultura e chama atenção para a ideia de que a cultura
estaria imbricada na concepção da noção de “natureza”, apontando, assim, para a formulação
do contínuo “natureza-cultura”. Sua proposta seria desmantelar as relações dialéticas que
condicionam sua monstruosidade e, para tanto, tem como alvo o emprego compulsivo das
conjunções aditivas e subordinativas “e” e “ou” para representar fenômenos como partes
separadas: natureza ou cultura, feminino e masculino etc.
Nesse processo de automonstrificação, a autora emula o encontro entre o monstro de
Frankenstein e seu criador e volta-se mais uma vez aos sujeitos que a abjetificaram para
devolve-lhes o questionamento de sua natureza:
A natureza com a qual você me ensombra [bedevil] é uma mentira. Não confie que
ela vai te proteger do que eu represento [...] Você é tão construído quanto eu; o mesmo
útero anárquico nos pariu. Eu te incito a investigar sua natureza, da mesma forma
como fui compelida a confrontar a minha. (STRYKER,1994, p.240)
Assim sendo, esse monstro autodeclarado não pretende humanizar-se. Não lhe
interessa pleitear um lugar para si na categoria “humano”, estendendo-a ou higienizando-se. Ao
expor sua natureza imperfeita, o monstro reivindica um pertencimento enviesado e intersticial
à categoria “humano”, objetivando a quebra de seus paradigmas e a transformação do termo.
Longe de arquitetar uma salvação individual, essa reivindicação se assemelha a uma estratégia
de sabotagem: a inclusão justamente daquilo que o “humano” expulsou para se formular como
tal possibilitaria a implosão de sua própria estrutura, a formulação de novos significados para a
categoria e o vislumbrar de um futuro pós-humano.
Agenciando sua fúria, Stryker dá à luz sua própria monstruosidade, habilitando-se a
manejar os termos de sua representação, a desenhar seus contornos e a contar, com suas próprias
palavras, a sua história. Pode-se dizer que, como a criatura de Frankenstein, enquanto “monstra
de si mesma” é Stryker quem formula seu próprio problema ontológico e pergunta: “quem sou
eu?”, resvalando na noção de humano e nas bases que estruturam a pessoidade. A pergunta que
emerge então é: estaria esse questionamento ontológico comprometido com o encontro de uma
“identidade monstruosa”? Como poderia o “eu” ser formulado por uma monstruosidade que
não só não deve ser superada, mas que é também condicionante da possibilidade de articulação
de uma fala subalterna?
Segundo Peter Brooks (autor também referenciado por Stryker), os monstros não são
mais que corpos que existem para serem olhados, corpos aos quais se aponta o dedo: “Não se
pode fazer nada com um monstro, a não ser olhar para ele” (BROOKS, 1993, p.220). De acordo
com essa prerrogativa (de perspectiva antropocêntrica), é impossível que o monstro fale, ou
melhor, que se possa interpretar o que a criatura tenta comunicar com seus rugidos e grunhidos.
Para Brooks, a monstruosidade seria a exclusão total do significado e do sentido: “o
monstro não poderia jamais aceder ao simbólico, ele está para sempre preso no imaginário
devido à sua aparência medonha” (HALBERSTAM, 1995, p.44). Ou seja, a monstruosidade se
dá predominantemente num campo visual que se sobrepõe ao domínio discursivo. Apesar de
excluí-lo da possibilidade de articular significado, o autor reconhece que o monstro em questão
reserva uma complexa e íntima relação com a linguagem, uma vez que é por ela constituído, ao
mesmo tempo em que a afronta:
Nirta sugere que, como consequência dessa impossibilidade, “nós preenchemos esse
déficit investindo em sua monstruosidade” (NIRTA, 2017, p.146) e atenta para o fato de que
esse “investimento”, por si só, pode carregar camadas de domesticação:
109
[...] pode trazer demasiado do que seria melhor permanecer selvagem à atenção das
forças normatizantes, produzir formas de inteligibilidade de gênero que encerram
alternativas e restringem a liberdade, consolidar identidades em formas rígidas e
hierarquizadas, policiar discursos através da institucionalização, e privilegiar
determinados enunciadores em detrimento de outros. (STRYKER, 2015, p.228)
Victor Frankenstein above the Village of Chamounix, Stryker assegura sua monstruosidade
empregando um novo jogo linguístico.
A autora situa a monstruosidade no interstício/brecha formado pela justaposição das
práticas discursivas (que conferem materialidade e subjetivação) e do colapso das categorias (a
impossibilidade de classificação que o monstro representa). Dessa forma, Stryker vislumbra um
ato enunciativo instável que reúne ao mesmo tempo o dentro e o fora da materialidade e dos
processos de assujeitamento, ou seja, uma forma alternativa de acesso à linguagem.
Reconhecendo que tornar-se monstro implica um processo de desassujeitamento, mas
que para adentrar a linguagem enquanto enunciador é preciso tornar-se sujeito, Stryker elabora
uma autoenunciação monstruosa que pretende expressar justamente essa “liminaridade
ontológica” que representa. Para tanto, inaugura “um novo jogo linguístico”, que não assume
um formato classificatório, senão de denúncia dos processos através dos quais a linguagem
viabiliza a criação de determinados corpos. Para permanecer arisca à linguagem, Stryker
adentra-a através da “fúria transgênero” que “está localizada às margens da subjetividade e no
limite do significado” (STRYKER, 1994, p.253).
Sua autoenunciação não reivindica “ser um monstro”, senão ocupar o termo de forma
fugidia e articular a monstruosidade como um local de filiações improváveis que, assim como
o termo “queer”, não deveria descrever plenamente aquelas/es que pode vir a representar.
Apesar de reconhecer que é impossível prever como a reformulação do termo “monstro” vai se
estabelecer, a intenção de Stryker é de ocupá-lo provisoriamente, não para expressar a
descoberta de uma verdadeira identidade, mas para reinventar a recusa do que é e expressar sua
desidentificação com os sistemas identitários.
Pode-se dizer que ao se enunciar sem se descrever, Stryker transita de uma posição
onde a linguagem preestabelecida não funciona (a ininteligibilidade que descreve em seu diário)
ao uso estratégico desse recurso. Ou seja, em vez de criar uma estrutura linguística inteiramente
nova, a autora se serve da linguagem disponível, domina-a e se introduz nela enquanto sujeito
de fala para citar e explicitar o sistema que faz dela um monstro. É através da apropriação
estratégica de uma interpelação injuriosa que a autora forja não só a possibilidade de subversão
do termo “monstro”, mas da formulação de uma subjetividade incompleta, falha e obtusa.
Revisitando seu artigo, Stryker explica que esse gesto apropriativo, tipicamente
associado ao momento e ao contexto histórico de produção do texto (a estratégia queer por
excelência), implica um investimento linguístico então inovador:
A única opção além de dizer reativamente “não somos não” a toda asserção negativa
sobre nós, era mudar a conversa, inaugurar um novo jogo de linguagem. Minha
estratégia para tentar isso foi alinhar o meu lugar de fala a tudo com o que “eles” “nos”
abjetificavam. (STRYKER, 2015, p.227)
De acordo com Butler, esse chamado (que fabrica o sujeito) é, acima de tudo, um
chamado para a lei, portanto, a resposta implica necessariamente cumplicidade e desejo pela
lei. Entretanto, o que Butler (analisando a ressignificação do termo queer) e Stryker (investindo
na autodeclaração monstruosa) ressaltam é que a apropriação da interpelação injuriosa pode
mobilizar um componente de desobediência e figurar um tipo de resistência que emerge através
de uma “interpelação falha”, a qual, por sua vez, tem como efeito a “dessubjetivação crítica”, a
criação de um sujeito incompleto, desassujeitado: forma-se, assim, o híbrido impossível
representado pelo sujeito-monstro.
Butler explica que o potencial componente de resistência da apropriação da
interpelação injuriosa se dá justamente pela possibilidade de ocupar de forma enviesada o termo
interpelado e, através desse ato, ressignificá-lo. Essa premissa pressupõe que o chamado carrega
um significado original (a ele é atribuída, por exemplo, a intenção de machucar), mas, ao mesmo
tempo, disponibiliza novos usos para esse mesmo signo – dentre eles, a reversão do seu
significado original e a inclusão de quaisquer outros que o excedam. Ou seja, essa mesma lei
que constitui o sujeito também oferece a ele as condições para a sua desconstituição ou
ressignificação através da apropriação da interpelação negativa.
Assim sendo, incidindo no mesmo local de constituição (a linguagem), a
ressignificação permite transmutar o termo naquilo que opõe ou excede seu sentido original. É
importante mencionar que tal ressignificação toma efeito através da repetição ou iteração (no
sentido deleuziano de “repetição com diferença”): os sentidos originalmente depositados no
termo em questão não são apagados, senão ecoam como história ou bagagem (que chamarei de
acúmulos) que permanecem indexadas à nova iteração ou à reterritorialização da interpelação
injuriosa e do sujeito por ela agenciado. Em outras palavras, enquanto termo apropriado,
“monstro” ao mesmo tempo cita e repete contra a sua própria origem: a mesma
“homossexualidade” vai primeiro ser empregada a serviço da normalização da
heterossexualidade e depois a serviço de sua própria despatologização. Ou seja, o primeiro
sentido está sempre contido dentro do segundo, de forma que não há dissociação, senão uma
continuação em que o sentido excede os objetivos normalizadores originalmente enredados no
termo (podendo, entretanto, gerar novas normalizações).
113
Parece-me, nesse sentido, que o pensamento de Butler, ao recusar uma explicação que
confirme os efeitos totalizadores da injúria (e da interpelação), tende a uma
formulação da possibilidade de agência calcada na constituição de um sujeito crítico
que, mesmo em face de sua eventual dessubjetivação – isto é, da impossibilidade de
ser um ser auto-idêntico como o sujeito moderno parece querer ser –, sabe ainda
articular uma certa ontologia, um certo modo de existência que o posiciona no mundo
das palavras e das entidades como um ser dotado de inteligibilidade própria. Essa
inversão crítica da injúria, portanto, desvia da cena de interpelação sem, contudo, ser
capaz de desviar-se da cena de sujeição: o sujeito se faz, contra a totalização da lei
que interpela (e da interpelação injuriosa), e é – para citar Butler – “um tipo de ser do
e para o futuro”. (MOMBAÇA, 2017. Grifos Meus)
Mombaça sugere que ainda que esteja calcada no uso enviesado da linguagem, essa
“estratégia queer por excelência” aponta para um sujeito crítico, que se mantém não-totalizável,
mas não deixa de articular uma ontologia própria (um ser e um fazer-se), uma resposta, ainda
que borrosa, à pergunta: “quem sou eu?”. A estratégia de Stryker dispõe então um sujeito que,
apesar de ininteligível no sistema operante, é dotado de inteligibilidade própria, ou seja, um ser
que, em seu contínuo tornar-se, sabe se localizar, especialmente porque “posiciona-se no mundo
das palavras e das entidades”. Sua estratégia discursiva faz reverberar em sua enunciação um
acúmulo histórico que, situando-a em alinhamentos de tempo e espaço, lhe confere o sentido
da continuação (e por isso aponta ao futuro).
Tendo em vista as colocações de Mombaça, argumentarei em seguida que esse “saber”
(centrado no domínio da linguagem e na administração da bagagem histórica que venho
nomeando “acúmulo” e “contínuo”) é uma característica que também marca a escolha de Styker
pela criatura de Frankenstein: esse monstro europeu humanoide, dotado das cordas vocais
necessárias para proferir suas reivindicações e questionar eloquentemente os termos
tradicionalmente atribuídos à sua monstruosidade.
114
31
Paradise Lost, de Milton, de temática bíblica, Lives of the noble Greeks and Romans, de Plutarch
reconta biografias de homens gregos famosos e importantes na tradição europeia e The Sorrows of Young Werther,
em que Goethe descreve as conturbadas relações românticas heterossexuais.
116
conforme apontado por Brooks: “Encerrando sua narrativa a Walton, Frankenstein adverte e
aconselha o seu interlocutor a não escutar a voz do Monstro: ‘Ele é eloquente e persuasivo, e
certa vez suas palavras tiveram até poder sob o meu coração; mas não confie nele... não o ouça’”
(SHELLEY, 1983, p.198-199 apud BROOKS, 1993, p.214. Grifos Meus). O que preocupa
Victor é que o horror gerado pela aparência da criatura (uma das principais insígnias de sua
monstruosidade) seja encoberto pela sua habilidade argumentativa, conferindo-lhe a chance de
convencer seu eleitorado e alcançar suas reivindicações. Afinal, conforme apontado por
Halberstam, o doutor conhece os poderes de persuasão das palavras de sua criatura:
“Recordamos que Frankenstein concorda em fazer uma companheira para o monstro porque ele
foi, de certa forma, tocado pelas súplicas de seu monstro por tolerância” (HALBERSTAM,
1995, p.44).
Com a conquista da arguição eloquente, a capacidade de fala do monstro deixa de ser
uma mera habilidade para tornar-se uma poderosa ferramenta de persuasão, desde que sua
aparência não lhe negue a oportunidade de ser escutado. Ou seja, a partir do momento em que
a criatura domina a linguagem faz-se preciso evitá-la não pelo horror de sua aparência, mas
pelo poder de suas palavras e das transformações que sua capacidade argumentativa pode
acarretar. Pode-se dizer que esse monstro cria um agenciamento de enunciação em que o saber
e a razão aparecem intimamente ligados a um poder tão incontrolável quanto perigoso e, ao
mesmo tempo, não deixam de aparecer como entidades problematizáveis.
O apelo de Victor a Walton sugere também que uma camada da monstruosidade de
Frankenstein (a feiura) poderia ser superada pela capacidade de se comunicar de forma
convincente, como se o componente visual fosse atenuado pela ferramenta discursiva: “O
monstro consegue sua resistência dominando a linguagem para reivindicar sua posição
enquanto sujeito de fala e para praticar verbalmente a mesma subjetividade que lhe foi negada
no domínio especular” (STRYKER, 1994, p.241). É também nesse sentido que Halberstam
destaca que há “no contexto do romance, uma agora familiar oposição entre linguagem e visão,
em que o visual registra horror enquanto a linguagem confere humanidade” (HALBERSTAM,
1995, p.44).
A esse respeito, Styker identifica um ponto de divergência (senão de inversão) entre
sua monstruosidade e a da criatura de Frankenstein. A autora considera que o horror que o
monstro causa no campo visual não corresponde àquele incitado por pessoas trans*, visto que
as últimas possuem corpos humanos que citam efetiva e compulsoriamente as normas de gênero
no âmbito especular:
117
Seus argumentos se estruturam sob a premissa de que ver um corpo humano acarreta
automaticamente a atribuição de gênero, uma vez que a visão é culturalmente gendrada. Ou
seja, Stryker infere que a norma que rege a economia visual solicita às engrenagens do olhar o
exame de demarcações de sexo e gênero em figuras humanas. Essa ideia é também endossada
por David Getsy, que, em seu livro Abstract Bodies, especula acerca da projeção compulsória
de sexo e gênero em esculturas abstratas comumente percebidas como humanoides:
Outro fator pertinente que emerge na oposição traçada por Stryker entre sua
monstruosidade e a da criatura de Frankenstein diz respeito à interferência do plano visual na
possibilidade de escuta e de empatia, especialmente considerando que lendo Frankenstein não
é possível visualizar o monstro, somente imaginá-lo. Discordando de Stryker, Harlem Weaver
indica que em Frankenstein “não é só que o/a leitor/a pode sentir empatia pelo monstro, mas
que, tocada/o por sua eloquência, em parte devido ao fato de que o livro existe como romance,
ela/ele/elx é ativamente encorajada/o/x a fazê-lo” (WEAVER, 2013, p.301. Grifos Meus). Aqui
o autor sugere que a empatia se dá com mais facilidade na obra literária, uma vez que aí a/o
leitor/a não é reiteradamente defrontada/o com a imagem visual do monstro (seja através de
descrições de sua aparência ou do emprego de ilustrações).
Sugiro que, nesse sentido, não haveria oposição, antes ressonância, entre a
monstruosidade da criatura e a de Styker: em seu texto a autora descreve suas experiências,
intimidades e sentimentos, mas não oferece ao seu leitorado os elementos para uma composição
visual monstruosa de seu corpo, pelo contrário, pode-se dizer que, escondendo-se na escrita
prodigiosa, na ortografia impecável e no prestigioso formato de seu texto (artigo publicado),
mais que empatia, a autora alcança a validação dentro de um sistema tradicional de produção
de conhecimento, processo que facilita a viabilidade de sua transexualidade.
Para Stryker, mesmo sendo humanoide, a criatura de Frankenstein falha no plano
visual (se torna ali ininteligível) e tem sucesso integral no campo discursivo, ao passo que a
monstruosidade e a resistência trans* não se dariam no campo visual, senão na relação que
estabelecem com a linguagem, uma vez que se encontram impossibilitadas de adentrar
integralmente a estrutura linguística que foi produzida tendo como norma a cisgeneridade. A
esse respeito, contrariando a autora, Weaver aponta que, no domínio da linguagem, Stryker
alcança “entendimentos” e, diferentemente da criatura de Frankenstein, conquista
reivindicações:
Colocando que a monstruosidade transexual “não pode jamais reivindicar uma forma
de resistência tão segura” como o monstro de Frankenstein, Stryker contrasta o
discurso do monstro com o de uma pessoa trans. Enquanto o monstro fala de uma
maneira muito poderosa, “a inabilidade da linguagem de representar o movimento do
sujeito transgênero através do tempo entre posições de gênero estáveis em uma
estrutura linguística” faz com que as pessoas trans sejam incapazes de agir de forma
semelhante (2006:247); elxs não podem administrar a linguagem para fazer as orações
persuasivas que servem tão bem ao monstro. Entretanto, diferente das mulheres em
Frankenstein, pessoas trans não são contidas, pois a irrepresentabilidade dos sujeitos
trans pode forçar a própria linguagem a mudar – testemunhe a proliferação de
pronomes de gênero neutro em muitas comunidades LGBTQ – uma questão diferente
do silêncio. Questionando a estabilidade do gênero na linguagem, as pessoas trans
alteram a forma como a linguagem funciona. (WEAVER, 2013, p.291)
119
No texto de Stryker a razão aparece embebida no ato de se apoderar das palavras para
dar sentido às suas emoções, se fazer escutar e estabelecer suas reivindicações. Conforme
indicado no fragmento abaixo, no poema em que narra o parto monstruoso de si, a autora
sinaliza que não havia possibilidade de gerar som no interior da monstruosidade crua que
experimenta com a fúria transgênero:
Rage No sound
constitutes me in my primal form. Exists
It throws my head back in this place without language
pulls my lips back over my teeth my rage is a silente raving
opens my throat
and rears me up to howl:
: and no sound
dilutes Fúria
the pure quality of my rage. me constitui em minha forma primária.
Ela joga minha cabeça para trás
16
puxa meus lábios para trás sobre meus dentes Nenhum som
Existe
abre minha garganta nesse lugar sem linguagem
e me empina para uivar: minha fúria é um falatório silencioso
: e nenhum som
dilui
a qualidade pura da minha fúria.
Nessa passagem, o substantivo raving (na última linha do trecho traduzido) significa
“fala incoerente, irracional ou selvagem” (to speak in tongues), podendo indicar “o falar de uma
mulher louca”. Ao procurar uma tradução aproximada, descartei os termos “balbucio” ou
“murmúrio”, uma vez que aludem à loucura de forma menos direta, e optei pela palavra
“falatório” referenciando a forma como Stela do Patrocínio 32 nomeia sua própria expressão
enunciativa enquanto mulher negra sequestrada pelo estado em uma instituição psiquiátrica.
Acredito que essa tradução também enfatiza a complementaridade contrastante entre
o vazio do silêncio e o excesso que a palavra “falatório” evoca: fala contínua, incessante,
excessiva e, por isso, esvaziada de sentido e de racionalidade. Esse marcador é importante pois
é exatamente a justaposição de loucura (monstruosidade crua) e razão (característica atribuída
exclusivamente ao humano) que se destaca na minha leitura dessa passagem e no exercício que
pretenderei adiante ao distinguir as estratégias autoenunciativas de monstruosidades
frankensteinianas daquelas que emergem em autorrepresentações monstruosas sudacas.
Em seu poema Stryker descreve sua trajetória rumo à linguagem reivindicativa
dispondo a fúria como impulsionadora, o falatório silencioso como local de partida e a
apropriação de um status articulatório como destino. Interpretando seu poema, vemos que o
sofrimento da autora não leva o “eu” à resignação; ao contrário, conduz à consciência de sua
situação e à mobilização: a insanidade incoerente é filtrada pela linguagem e se dilui em
racionalidade para desafiar e demonstrar a insuficiência da experiência trans* diante do
humano. Não é à toa que seu poema desemboca (não tão organicamente) na seção do artigo
intitulada “teoria”, dispondo uma cisão que separa a parte poética da parte acadêmica que dá o
tom final ao texto. Importa ressaltar que, orientada pela razão, a linguagem se faz audível num
processo que implica formatos e leitoras/es específicos.
Pode-se dizer que a racionalidade empregada no texto de Stryker tem em sua raiz a
loucura, uma vez que é alcançada nesse estado intersticial de monstruosidade furiosa.
32
É importante frisar que Stela do Patrocínio não era uma autora: seu falatório foi gravado, transcrito,
editado, rearranjado e publicado por Viviane Mosé no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2002).
Ademais, não é possível ter acesso às gravações que originaram a publicação, visto que esses estão retidos como
propriedade de Viviane Mosé.
121
Entretanto, seu uso não deixa de delinear uma trajetória de superação, justamente por ser a
ferramenta que permite ao monstro se projetar no futuro que reivindica, em vez de meramente
se expressar e se comunicar entre os seus (para isso um urro bastaria). Atento a esse fato,
Weaver interpreta o trecho do poema disposto acima como sendo o ponto de partida de uma
trajetória rumo ao simbólico, inferindo que a única maneira de acesso seria através da maestria
da linguagem dominante:
O “falatório silencioso” que Stryker descreve se torna alto e público nesse momento.
Ela desfaz a mudez de sentimentos que vêm de ‘um lugar sem língua’ (252) ao fala-
los e publicá-los. Seu parto expulsa pela sua boca e pela sua caneta aquilo que, antes
desse momento, ela não conseguia falar. (WEAVER, 2013, p.298. Grifos Meus.).
colonial (e, justamente por resistir à colonialidade, não estabelece uma relação estável com a
linguagem dominante)?
Se pudéssemos escutar o que e para quem as criaturas comunicam em seu estado cru
de monstruosidade, quais estratégias discursivas notaríamos? Ressoaria nessa linguagem o
acúmulo por trás da citação ou o vazio de uma história marcada por epistemicídios e
genocídios? Que formatos monstruosos emergiriam se a relação com a palavra estivesse num
marco que rejeita a razão e se edifica no “não-saber” (o não-saber como local não só de partida
como de permanência)? E se em vez de superarmos a mudez, hibridizássemos os balbucios e
grunhidos monstruosos com as pronúncias humanas? Seria esse balbucio monstruoso uma
reivindicação de mudança social (um corpo para o futuro) ou a expressão crua da ferida que
habita uma temporalidade dissidente? E se em vez da “fúria transgênero” mobilizadora da
mulher transexual norte-americana, o sentimento que motivasse a expressão monstruosa fosse,
por exemplo, o ressentimento estancado de uma travesti sudaca?
Para atender a essas provocações, proponho inaugurar a análise das monstruosidades
sudacas com a escrita horrorista que a travesti chilena Cláudia Rodríguez oferece em seus zines
Dramas Pobres, Contodomisida, Enferma del Alma e Manifiesto Horrorista e no livreto
autônomo Cuerpos para Odiar.
123
“Não trabalho com a inteligência / Nem com o pensamento / Mas também não uso a
ignorância.” (PATROCÍNIO, 2001, p. 62)
33
Tradução: “Tudo o que não posso gritar como o grito que dá o homem elefante, eu sublimo e escrevo
ternamente”.
124
34
LYNCH, David et al. The Elephant Man. Widescreen version. Hollywood, Calif: Paramount Pictures,
2007.
125
anteriormente fora capaz de provar sua inteligência, arguição e erudição (demonstrando ter
memorizado os textos da bíblia) e, com isso, pôde conquistar a empatia do Dr. Frederick Treves,
o médico cirurgião do Hospital de Londres, que enxergou nele sinais de humanidade.
Essa cena figura um momento decisivo de “virada subjetiva”. Com seu grito o Homem
Elefante é finalmente capaz de agenciar sua representação no simbólico e de assegurar sua
humanidade. Em seu livro, Peter Graham e Fritz Oehlschlaeger analisam as diferentes edições
literárias (autobiográficas e adaptações teatrais) e a versão cinematográfica de O Homem
Elefante e identificam que, em comparação com os manuscritos autobiográficos, a cena do grito
é exclusividade da produção de Lynch. Os autores interpretam-na como rito de passagem da
objetificação (alteridade) ao agenciamento de subjetivação:
A reordenação dos eventos [na narrativa talhada por Lynch em relação à versão
autobiográfica] faz o retorno à exposição mais horrível e dá tempo para Merrick
desenvolver força pessoal para resistir às indignidades e brutalidades de seu status
como Homem Elefante. Sua chegada a Londres na estação Liverpool é muito diferente
daquela da reminiscência. Aqui ele não é um “emaranhado disforme” conectado à
humanidade somente através do cartão pessoal de Treves. Em vez disso, ele é capaz
de assegurar sua identidade a uma multidão que o persegue e que o encurrala nos
urinóis da estação: “Eu não sou um elefante! Eu não sou um animal! Eu sou um ser
humano!”. Por mais que esteja fraco e amedrontado, o Merrick do filme não espera,
como um objeto, para ser reivindicado por Treves; com o apoio de policiais, ele
caminha de volta ao hospital, reentrando em seu lar com sua própria agência.
(GRAHAM; OEHLSCHLAEGER, 1992, p. 135)
esboça ao Dr. Victor35 e a cena do grito do Homem Elefante, em especial sua tentativa de
escapar silenciosamente e o primeiro urro, quase indecifrável, que a sucede. Matizados pela
progressão de audibilidade, os percursos enunciativos desses três monstros desembocam na
pronúncia articulada e num subsequente agenciamento subjetivo tangencial à humanização, ou
seja, seus esforços para dominar a estrutura linguística e o vocabulário institucional são
gratificados e lhes garantem inteligibilidade e a oportunidade de reivindicar.
Enquanto o Homem Elefante, a criatura em Frankenstein e o monstro transexual
corporificado por Stryker transitam do “falatório silencioso”, da mudez e do ruído ininteligível
à reivindicação alta e clara (clamando respectivamente por humanidade, por uma companheira
e por uma monstruosidade agenciável), ao “sublimar e escrever ternamente” um grito
animalizador, Rodríguez cria uma alternativa à estratégia de apropriação da linguagem. Aqui a
busca por superação e a própria noção de reivindicação são substituídas pela expressão (o
processo e produto) da monstruosidade, que Rodríguez elabora com crueza gramatical e
estilística, conforme argumentarei adiante.
Assim sendo, ao referenciar o Homem Elefante, o grito que a autora assume que não
consegue dar é aquele que seria capaz de humanizá-la: o ato enunciativo que forjaria uma ponte
de empatia entre ela e uma multidão furiosa que a persegue em local público ou em um
confronto com a polícia. Seus textos seriam, portanto, a explicitação de uma expressão grotesca,
ou seja, o urro inaudível ou inassimilável na linguagem que, convertido em palavra de ortografia
também monstruosa, articula a impossibilidade e a recusa de superação de sua condição
não/humana. Para Rodríguez, não há opção nem risco de transmutação através do emprego da
palavra: tal como o pus, sua escrita é produto e expressão da ferida que habita e na qual
permanece elaborando sua monstruosidade. Para sustentar esse argumento, cabe analisar sua
trajetória pela linguagem, pontuando três etapas descritas pela autora na publicação
autobiográfica Cuerpos para Odiar (2014), sendo elas: aquela que antecede sua alfabetização,
as experiências escolares e a escrita de zines de poesia travesti na vida adulta.
35
Me refiro aqui à passagem: “Suas mandíbulas se abriram, e ele resmungou alguns sons inarticulados,
enquanto um sorriso enrugava suas bochechas. Pode ser que ele tenha falado, mas eu não ouvi; uma mão estava
esticada, aparentemente tentando deter-me, mas eu escapei, e me apressei escada abaixo” (SHELLEY, 1992, p.56
- 57).
127
Tendo como projeto o desenvolvimento de uma escrita travesti capaz de expressar seus
processos de monstrificação, em vez de apropriar-se de uma linguagem clara, articulada e
totalmente inteligível, Rodríguez cria em seu trabalho recursos enunciativos combinando
linguagens que adquiriu em diferentes períodos da sua vida: a autora descreve seus primeiros
processos articulatórios como um “balbucio da manada” durante a infância, relembra a
monstrificação de seu corpo e de sua voz contando suas experiências escolares (através das
quais descobre seu despertencimento ao mundo das palavras) e, finalmente, combina o balbucio
animalizado de sua infância à patologização da subjetividade travesti e ao seu desconforto com
a educação formal para criar recursos enunciativos como a (h)ortografia e o errorismo, através
dos quais expressa as articulações monstruosas marcadas pelas suas experiências de gênero, de
classe e de raça.
36
Tradução: “Despertamos em um barraco sem nome, mudo como nuvens estendidas ao sol, dadas às
amoreiras, moscas e lagartixas coloridas. O balbucio era nossa linguagem, balbucio e adivinhação”.
128
acariciadas por ella [la maere]37” (RODRÍGUEZ, 2014, p.11). Dessa proximidade e
identificação com o selvagem e com o animalesco derivam o balbucio e a adivinhação enquanto
processos articulatórios imprecisos e irracionais que, apesar de antecederem sua escolarização,
não deixam de operar como linguagem.
A ideia de selvagem, indexada aqui à autorrepresentação animalizada, pode ser
compreendida como “o espaço que o colonialismo constrói, marca e repudia, assim como um
espaço de vibratibilidade que desenha todas as tentativas de demarcar sujeito separado de objeto
e um espaço de normatividade que decididamente controla e desarma o dissidente e o
monstruoso” (HALBERSTAM, 2014, p.141). Por outro lado, pensando a selvageria alinhada à
monstruosidade indomesticável, ou seja, como aquilo que excede o significado, abre-se uma
brecha epistêmica criativa na identificação com o animalizado, em especial considerando a
potencial desestabilização das estruturas que regulam a identidade e os processos articulatórios
comumente associados à racionalidade que a sustentam. Dessa forma, adivinhação e balbucio
emergem enquanto linguagens animalizadas e outrificadas que não pretendem ser entendidas,
tão somente representam essa fenda epistêmica, um despertencimento dissidente do mundo das
palavras.
Pode-se dizer que, opondo-se aos saberes confiáveis (históricos, geográficos etc.) e à
lógica racional, o balbucio animalizado abre caminho a formas alternativas de conhecer e
atribuir significado ao mundo que Rodríguez habitava: “El mundo consistió en tocar las cosas
con la boca, emitíamos raspeos con la lengua y los dientes para que supieran que estábamos
ahí38” (RODRÍGUEZ, 2014, p.22). Nesse fragmento a autora descreve formas-outras de
experienciar o mundo (“tocar com a boca”) e as ferramentas de comunicação que excedem e
dispensam a linguagem humana: em vez de utilizar palavras, a autora conta que emitia ruídos
que aparentemente não comunicam mais que sua presença que, por sua vez, exalta sua
resiliência. Essa passagem ecoa nos escritos da teórica Eva Hayward (2015), que também se
alinha a outras espécies (como aranhas, éguas e estrelas do mar) para dar sentido à sua
experiência enquanto mulher transexual.
Em seu artigo Spider City Sex, Hayward apresenta a transexualidade como
agenciamento [assemblage] que se constitui nas relações tecidas com termos sociais,
37
Tradução: “essa manhã acordamos e éramos filhotes de formigas despenteadas, ruins para comer e
pouco acariciadas por ela [a mãe]”.
38
Tradução: “O mundo consistiu em tocar as coisas com a boca, emitíamos rabiscos ásperos com a
língua e os dentes para que soubessem que estávamos ali”.
129
econômicos e políticos, assim como com registros espaciais, afetivos e de espécies. A autora
apresenta o corpo como campo poroso multiespécie quando, por exemplo, chama atenção para
o fato de que a hormonização transfeminina está necessariamente enredada em ontologias-
outras: enfatizando que a transexualidade feminina se dá através da contaminação dos corpos e
vidas das éguas, cuja urina é utilizada para a produção industrial do hormônio feminino, a autora
coloca que a “experimentação e instrumentalização animal estão enredadas nas genealogias de
tornar-se transexual”, e conclui que “mudar o sexo é, portanto, também sempre sobre mudar na
carne os sentidos e as espécies.” (HAYWARD, 2010, p.228-229).
Em seu artigo, através de um jogo sensório que a relaciona figural e literalmente a
aranhas, a autora marca a singularidade da experiência transfeminina expandindo as potências
do corpo para além do humano. Quando se identifica com aranhas que “sentem com as suas
teias” as experiências de Hayward ressoam nas comunicações animalizadas de Rodríguez, que
balbucia e “toca o mundo com a boca”. Ambas apontam para uma vibratibilidade trans-humana
e selvagem (que escapa à regra colonial) quando gesticulam ordens táticas onde o tocar, através
da analogia, cria sentidos e perspectivas para corpos dissidentes. Enquanto Hayward estabelece
novas genealogias para representar sua experiência transexual fora dos cânones da humanidade,
Rodríguez assume em seu corpo capacidades não-humanas denotando a selvageria ou
incivilidade associadas às experiências de travestis sudacas, enfatizando o limite da existência,
a promessa de morte e o epistemicídio das subjetividades dissidentes terceiro-mundistas.
Essas ontologias-outras com as quais Rodríguez se alinha lhe permitem assumir
processos enunciativos não-humanos e voltados à sua comunidade híbrida dissidente. Ou seja,
seu balbucio não faz sentido dentro da estrutura social e linguística imperante cis-
heteronormativa, uma vez que não estabelece uma comunicação precisa e inteligível, senão
interna e voltada à sua manada. Assim sendo, essas capacidades interespécies representam, no
trabalho de Rodríguez, uma dissociação não só com o Humano, mas também com as instituições
a ele associadas, dentre elas os saberes hegemônicos, a linguagem institucionalizada, a
articulação e a racionalidade.
Representando a selvageria e a precariedade da posição social que ocupou durante sua
infância e, ao mesmo tempo, sugerindo potencialidades e saberes internos de uma subcultura,
o balbucio e a adivinhação aparecem então como efeito da condição de estar alheia ao mundo
das palavras e dos conhecimentos institucionais e, de certa forma, alheia também à civilização
– à nação e sua geografia, como quando referencia o “terreno baldio que implica ser travesti”
(RODRÍGUEZ, 2015, p.89) – e ao Humano. Essa alienação e o processo articulatório dela
130
derivado podem ser percebidos como fuga da ficção de progressão histórica e da tradição de
citação, própria da estratégia queer de apropriação da interpelação negativa: o acúmulo que a
erudição carrega é substituído pelo vazio e pela incapacidade/irrelevância de nomear: “a mi
hermana nunca la vi antes, ni siquiera sabía su nombre”39 (RODRÍGUEZ, 2014, p.22).
O balbucio incorpora também o silêncio e exacerba a perda da linhagem e da
ancestralidade, apontando para o genocídio tipicamente associado aos processos de
colonização, como sugerido nessa passagem em que a autora descreve sua mãe: “La mujer
caída entre el norte y el sur de um país imaginário, era como la última de las mujeres de su
abundancia”40 (RODRÍGUEZ, 2014, p.13). Aqui Rodríguez indica uma ruptura entre o
passado, o presente e a possibilidade de futuro e desafia a geopolítica da nação, posicionando-
se na fissura histórica (o entrelugar) em que seu corpo flutua híbrido e diluído numa manada
que balbucia: “Me afecta saber que provengo de generaciones de mujeres desparramadas en
el sur, que nadie sabe que existieron antes de llegar aquí41” (RODRÍGUEZ, 2014, p.60).
Nessas passagens a autora assume uma autorrepresentação (sua e de sua família) que
incorpora o vazio, o esquecimento, o silêncio e a falta para marcar o próprio lugar de
enunciação. A esse respeito, Giancarlo Cornejo (2010), que utiliza a autoetnografia em suas
escritas acadêmicas, comenta que: “Não explorar e problematizar o próprio lugar de enunciação
é estruturá-lo como um lugar vazio. Tal pretensão é inevitavelmente imperialista e
colonizadora. Para Gayatri Spivak ‘este lugar vazio do agente se enche com o sol histórico da
teoria: o sujeito europeu’ (1998:180)” (CORNEJO, 2010, p.180).
É interessante notar que a estratégia de Rodríguez organiza uma análise crítica de sua
posição enunciativa elaborando justamente esse lugar vazio como prerrogativa, de forma a
realçar os processos colonizadores de emudecimento, esquecimento e epistemicídio
mencionados por Cornejo e Spivak. Trata-se, portanto, de uma representação fugidia, que
reitera criticamente o seu apagamento e silenciamento, sem oferecer, entretanto, uma alternativa
em seu lugar.
Pode-se dizer que o tropo animalizado da manada que emite ruídos, balbucia e
adivinha, emerge em sua escrita representando um estado cru e anterior (porque associado ao
selvagem e ao “primitivo”) à linguagem e tem como efeito o desnortear do gênero (uma vez
39
Tradução: “antes nunca tinha visto minha irmã, nem mesmo sabia seu nome”.
40
Tradução: “a mulher caída entre o norte e o sul de um país imaginário, era como a última das mulheres
de sua abundância”.
41
Tradução: “Me afeta saber que provenho de gerações de mulheres esparramadas no sul, que ninguém
sabe que existiram antes de chegar aqui”.
131
que este se sustenta, dentre outros lugares, na linguagem e através dela). Ou seja, essa
representação animalizada articula também um desprendimento do gênero ou um apelo à sua
frouxidão. Por exemplo: quando a autora refere a si própria e às suas irmãs como sendo “filhotes
de formiga” e agrupa suas experiências baixo essa insígnia animal acaba também descartando
a diferenciação de gênero, uma vez que, no imaginário cultural ocidental, o gênero dos insetos
não é veementemente caracterizado nas representações disponíveis. Em outras palavras, esses
seres são classificados como ontologicamente distintos da espécie humana e, por isso, não é
contundente a diferenciação sexual e de gênero em suas representações. Essa ideia se evidencia
ainda mais na passagem: “Nunca imaginamos alguna diferencia en eso de ser perro o perra,
niño o niña. Todas en la manada, no éramos más que hermanas y hormigas. Siempre todas
fuimos niñas hasta que escuché que un viejo al pasar por el camino me dijo: -tu no eres niña
porque eres fea”42 (RODRÍGUEZ, 2014, p.39).
Conforme sugerido na passagem acima, a opção pela autorrepresentação ancorada em
figuras de animais logra, até certo ponto, a ofuscação do gênero, a ênfase na ambiguidade e
uma possibilidade de evasão da diferenciação sexual no imaginário visual. Utilizando essa
estratégia em sua escrita autorrepresentativa, Rodríguez recorrentemente evoca o não/humano
(indexado à selvageria) para articular uma representação borrada e imprecisa do gênero no
domínio visual, conforme disposto no trecho: “eramos feas, pero inconscientes del reflejo.
Eramos salvajes como el pasado, como los tiuques y la zarzamora, como el barro, como troncos
secos y como piedras43” (RODRÍGUEZ, 2014, p.37. Grifos Meus)
Essa ideia de “não ter reflexo de si”, apresentada em diversas passagens, sugere que,
diluída na manada, a diferenciação visual (por exemplo, do gênero) é turva, resultando na
frouxidão da identidade sexuada. Aparentemente não havia identidade individual separada da
manada - que por ser multiespécie, também despista as engrenagens visuais que projetam
gênero de forma compulsória. Aludindo à pobreza de sua infância, à alienação ou isolamento
da zona rural onde vivia e às relações estabelecidas com sua manada, em outras passagens
Rodríguez sugere um estado de animalização (abutre, formiga, cão) e evoca alteridades
ontológicas (amoras, barro, tronco) onde o gênero não se materializa com solidez:
42
Tradução: “Nunca imaginamos alguma diferença nisso de ser cachorro ou cachorra, menino ou
menina. Todas na manada, não éramos mais que irmãs e formigas. Sempre fomos todas meninas até que escutei
que um velho ao passar pelo caminho me disse: - você não é menina porque é feia”.
43
Tradução: “éramos feias, mas inconscientes do reflexo. Éramos selvagens como o passado, como os
abutres e a amora, como o barro, como troncos secos e como pedras”.
132
Éramos perversas como las hormigas y los perros, como las libélulas y como el barro,
oscuras. No teníamos reflejo de nosotras mismas. Mi hermana era mi hermana con
todas sus mechas tiesas. Por mucho tiempo yo fui la sombra de ella, hasta que me
dijeron que tenía que ir al colegio. Antes nunca me lo pregunté. En la manada todas
éramos igualmente chasconas, malas, tercas, desobedientes, chijeteras y llegadas del
sur, de lejos44. (RODRÍGUEZ, 2014, p.10)
Importa ressaltar que, nesse trecho, muitos dos adjetivos utilizados para descrever a
manada são predominantemente empregados para caracterizar os comportamentos de animais
indomesticados e emergem intimamente relacionados à selvageria, à ignorância e à indocilidade
(que, nessa passagem, se opõem à escolarização), exercendo um efeito particular na
representação do gênero. No mesmo sentido, o isolamento rural remapeia o imaginário
gendrado atribuindo-lhe particularidades próprias e a pobreza não só limita a aquisição de
adereços que reforçariam feminilidade ou masculinidade, como também recodifica a forma
como feminino e masculino operam no campo visual: quando a autora escreve “minha irmã era
minha irmã, com todos os seus trapos duros”, retira da estética da vestimenta a insígnia do
gênero e a desloca a uma nova ordem de significados.
Quando confere desimportância ou frouxidão ao gênero, a manada o desterritorializa
e o reinscreve em uma nova economia simbólica: por exemplo, o componente do sexo é
deslocado enquanto critério principal, que se transforma em sua intersecção com selvageria,
pobreza, racialização, fome e isolamento e redesenha, assim, os próprios contornos do gênero.
Nesse sentido, nota-se que um dos principais marcadores que se intersecionam dando forma à
feminilidade da manada é a pobreza, representada pela imagem reiterada de seus dentes tortos
e pela fome. Aqui a categoria “menina” aparece esvaziada ou totalmente reimaginada, de forma
a abarcar Rodríguez (que, então, seria “menino”). Aparentemente, a desimportância desse
marcador abre caminho a outros pontos de identificação que permitem, por sua vez, imaginar o
que mais a feminilidade poderia significar e abarcar. Pode-se dizer que a selvageria e a pobreza
se emaranham ofuscando a noção de gênero e, consequentemente, a pessoidade passa a operar
no plano de fundo, sobreposta a uma animalização onde nem mesmo o sexo (macho ou fêmea)
se pronuncia com solidez.
Na manada, todas, inclusive Rodríguez, eram igualmente irmãs porque eram
“igualmente despenteadas, más, indomáveis, desobedientes”. Nota-se que a caracterização de
feminilidade elaborada aqui contrasta e se opõe àquela tradicionalmente imposta às mulheres e
44
Tradução: “Éramos perversas como as formigas e os cachorros, como as libélulas e como o barro,
escuras. Não tínhamos reflexo de nós mesmas. Minha irmã era minha irmã com todos os seus trapos duros. Até
que me disseram que tinha que ir ao colégio. Antes nunca me questionei. Na manada éramos todas igualmente
despenteadas, más, indomáveis, desobedientes, alvoroçadas e vindas do sul, de longe”.
133
45
Tradução: “Descosturadas, manchadas, enrugadas, descalças, pálidas, avermelhadas, olhudas ou de
olhos puxados, desnutridas, todas éramos selvagens, meninas sobreviventas do frio. Como ia imaginar que eu não
era linda?”.
134
46
Tradução: “Aprender a ler e a escrever foi começar a me encher de medos. Na infância, com o reflexo
do meu corpo obrigado a dobrar-se ao chão, devo ter ouvido milhões de vezes as risadas das pessoas por causa do
meu nome, da minha voz e dos meus dentes tortos. Eu falava como um gato nascido no campo, como uma formiga,
como um tordo com fome atrás dos olhos”.
135
(o fim do seu mundo, o desfazer de sua manada e de seus processos articulatórios) decorrente
da invalidação da sua feminilidade e da pobreza que experiencia. A esse respeito, pode-se dizer
que sua literatura, embora circunscrita em suas experiências pessoais, ressoa em
macroestruturas, como, por exemplo, na recorrente expulsão de travestis/trans* da educação
formal (BENTO, 2011).
O ingresso na escola interrompe o processo articulatório desenvolvido na manada e
promove um novo encontro com linguagens (interpelativa e institucional) que instauram outros
olhares sobre seu corpo, abalando sua visão de mundo e principalmente seu gênero e a relação
com seu corpo. Acerca desse tema, a autora menciona que, na escola, nem seu nome
(masculino) nem seus trejeitos afeminados (estilização de gestos) corresponderam às
expectativas sociais e, como consequência, as palavras que essas/es utilizavam para interpelá-
la também não foram aquelas com as quais ela se identificava:
En el colegio aprendi a mirarme mala, por esta locura fea de querer ser niñita. Me
dieron dos cuadernos y un lápiz y dijieron que el pelo crece, así que sólo tenía que
dejar pasar el tiempo y volvería a ser la misma, pero ni mi nombre ni mi voz fueron
los esperados por nadie.47 (RODRÍGUEZ, 2014, p.19. Grifos Meus)
O nome a que se refere seria aquele atribuído no registro civil, que não corresponde à
sua aparência e voz afeminadas (de “gato nascido no campo, formiga e tordo com fome atrás
dos olhos”). Essa incoerência, que opera pela primeira vez no ambiente institucional, tem como
efeito a evocação de novos nomes – “Tereso! Colipato!”48 (RODRÍGUEZ, 2014, p.21) – que
dissolvem sua manada, desabam seu mundo e, ao mesmo tempo em que a “chamam para a
existência” (assujeitamento), também desfazem seu pertencimento e lançam-na para o não-
lugar sem linguagem habitado pelo monstro. Separada de sua manada, Rodríguez é projetada
para fora do tecido social e das relações dialéticas que ali operam provendo identidade, de forma
que a autora sente que não há retorno (“voltar a ser eu mesma quando os cabelos crescerem”),
já que no ambiente onde está inserida o seu corpo afeminado torna-se ininteligível:
47
Tradução: “No colégio aprendi a ver-me má, por essa loucura feia de querer ser menininha. Me deram
dois cadernos e um lápis e disseram que o cabelo cresce, de forma que eu só tinha que deixar o tempo passar e
voltaria a ser eu mesma, mas nem meu nome nem minha voz foram os esperados por ninguém”.
48
Tradução: “Viado! Bichinha!”.
136
hasta que me gritaron Tereso y me habían dejado sin batalla, sin herencia y maldita49.
(RODRÍGUEZ, 2014, p.45. Grifos Meus)
Quando a autora escreve que deixou de ser menina e ficou “cuspida nesse mundo
partido em dois”, localiza-se no interstício onde surgem os monstros: o exílio das categorias é
análogo à expulsão do abjeto para fora da relação dialética, à qual depois retorna na condição
de terceiro-termo (monstra, “aleijada”, “torcida”, “desprezível”, “maldita”). Assim sendo,
pode-se dizer que, não estando disponível uma identidade que abarcasse sua feminilidade, na
escola a “afeminadofobia” a empurrou para fora do inteligível e do aceitável e lhe impôs a
condição de monstro (associada às identidades “viado” e “bicha”).
Deslocando-se do balbucio e da adivinhação, a autora passa a adentrar o mundo das
palavras e da linguagem através da interpelação injuriosa e da imposição de uma estrutura
linguística institucional que não a inclui. Pode-se dizer, portanto, que em vez de expandir seu
mundo, a linguagem aprendida na escola anuncia o desfazer de seu corpo, o que, nessa
passagem, a autora representa como um tipo de “aleijamento”. O fantasma da instituição médica
ressoa nesse e em outros trechos em que a autora associa sua feminilidade e sua forma de se
comunicar a um tipo de “aleijamento”, “loucura”, “torção” e “deformidade”. Essa metáfora faz
reverberar encontros entre a patologização de pessoas trans* e aquela experienciada por corpos-
mentes (CLARE, 2017) deficientes, em especial no que diz respeito à narrativa do “corpo
errado”, conforme relacionado por Nikki Sullivan em seu artigo The role of medicine in the
(trans)formation of “wrong” bodies. Essa indexação de seu gênero a uma deformidade
congênita, que se revela visualmente no corpo e é interpretada como doença a ser tratada ou
corrigida (via processo de transexualização ou aniquilamento), será explorada em sua relação
com a loucura no próximo tópico.
A recordação da interpelação injuriosa (“Bichinha, Viado”) ressoa também nos
trabalhos “Me gritaron Negra” , de Victoria Santa Cruz, e “Me gritaram monstra” , de Jota
Mombaça, assim como na experiência de Giancarlo Cornejo, um menino afeminado que nasceu
no Peru e, em seu artigo La guerra declarada contra el niño afeminado: una autoetnografía
“queer”, tenta “dar conta de si mesmo” elaborando a lembrança de ter sido interpelado pela
palavra maricón (viado) na escola: “Assim como as palavras criam e dão certezas, também
49
Tradução: “Me gritaram Bicha e fiquei aleijada porque riram de mim e dos meus dentes tortos. Mãe,
não quero ir ao colégio! Viadinho me gritaram e fiquei torcida. A linguagem calou e destruiu tudo em seu caminho,
arrancando-me de ser menina para me deixar cuspida nesse mundo partido em dois, e eu desprezível. Eu não sabia,
que não sabia ler nem escrever, até que me gritaram Viado e tinham me deixado sem batalha, sem herança e
maldita”.
137
desfazem e dissolvem (BUTLER, 2004). Essa cena no lar pode ser entendida como uma
experiência de ser desfeito por outros [...] Nesse caso a injúria marca um corpo muito antes de
que esse corpo tome consciência de dita marca. A injúria “viadinho” me interpelou antes de me
dar conta que eu era um” (CORNEJO, 2011, p.82).
De maneira semelhante, Rodríguez é interpelada por uma linguagem que não a
assujeita, senão a desfaz. Pode-se dizer que, não só as interpelações negativas dos/as colegas,
como também o conteúdo dos ensinamentos escolares e a própria alfabetização se apresentaram
como processos usados contra sua existência: “Había letras tan relegadas al exilio como yo al
miedo, pero lo más curioso es que las profesoras no se dieron cuenta, que a ellas el mundo no
las incluía”50 (RODRÍGUEZ, 2014, p.29). Na escola Rodríguez aprende que não sabe (“não
sabia, que não sabia ler nem escrever”), ou seja, os ensinamentos não comunicam mais que seu
despertencimento e o desabamento de seu mundo, conforme sugerido na passagem: “Maere, no
quiero ir al colégio. Todas las letras que aprendi hablaban del fin del mundo. Crecí con miedo
a caerme del mundo, a que en cualquier momento se acabara”51 (RODRÍGUEZ, 2014, p.58).
O desabamento de seu mundo, derivado do encontro com a escolarização que reforça
a norma, se efetiva quase como premonição diante da fragilidade de sua posição subjetiva:
“Santiago es más antiguo que todas nosotras. Nosotras nacimos y Santiago ya era Santiago.
Con mi madre habíamos nacido despojadas de un interior y un principio; así, como con la
imposibilidad de ser una historia para contar”52 (RODRÍGUEZ, 2015, p.47). Complementar
ao despertencimento ao mundo das palavras, essa impossibilidade de contar histórias (ou de ser
uma história a contar) pode ser percebida como mais outra forma de alinhamento à selvageria,
em especial considerando o gesto não como sintomático da ignorância, mas como recusa
absoluta de empregar epistemologias, linguagens e temporalidades colonialistas:
O selvagem não pode contar porque ele conceitua “o contar” como mais uma
ferramenta da regra colonial. O selvagem não pode falar sem produzir ambos a ordem
colonial que lhe dá sentido e a perturbação dessa mesma ordem através de excessos e
excentricidades temporais, espaciais e corporais. (HALBERSTAM, 2014, p.140)
50
Tradução: “Tinha letras tão relegadas ao exílio como eu ao medo, mas o mais curioso é que as
professoras não perceberam que o mundo não as incluía”.
51
Tradução: “mainha, não quero ir pro colégio. Todas as letras que aprendi falavam do fim do mundo.
Cresci com medo de cair do mundo, de que a qualquer momento se acabaria”.
52
Tradução: “Santiago é mais antiga que a gente♀. Nós♀ nascemos e Santiago já era Santiago. Com a
minha mãe tínhamos nascido despojadas de um interior e um princípio; assim, como com a impossibilidade de ser
uma história para contar”. (Foi incluído na tradução o signo ♀ porque em espanhol os pronomes “a gente” e “nós”
estão gendrados).
138
Esses trechos metalinguísticos, nos quais Rodríguez descreve seu desconforto com a
escrita, apontam para a forma como o silenciamento e a exclusão informaram a criação de suas
próprias linguagens, formatos e públicos em suas publicações, conforme argumentarei a seguir.
“Llegue tarde a la lectura, a esto de juntar las letras que sirven para delimitar estos
bordes. […] Creemos que somos libres y todo lo que nos rodea es prisión, incluso las letras
de las que nací huérfana.”
(RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data / sem paginação)
Uma das sensações mais recorrentes descritas pela autora é a de que não pode contar
histórias, pois a linguagem é sua inimiga e foi usada contra ela devido à sua feminilidade, à
inadequação de seu corpo e ao apagamento dos signos que falam sobre o seu mundo:
Desde niño el lenguaje y el saber demostraron su odio por mí. Cada palabra ponía
en cuestión mi capital y mi economía. Todas las palabras, por mi forma afeminada,
ponían en duda el sustento productivo, fuerza laboral y mi aporte al momento de la
devolución de tributos. Fue el lenguaje el dispositivo que me traducía el comienzo de
mi vida en una inversión riesgosa y perdida; material deshechable. Por lo que el
lenguaje se convirtió en otro enemigo al que no se le debía dar importancia. De que
nos puede servir hablar a las travestis si es imposible encontrarle el cariño? Para mi
el lenguaje ha sido siempre un atributo masculino, económico y de dominio. Hoy me
doy cuenta que lo puedo enfrentar cara a cara.53 (RODRÍGUEZ, 2015, p.13. Grifos
Meus)
53
Tradução: “Desde que eu era menino a linguagem e o saber demonstraram seu ódio por mim. Cada
palavra colocava em questão meu capital e minha economia. Todas as palavras, por minha forma afeminada,
colocavam em dúvida o sustento produtivo, força laboral e minha contribuição no imposto de renda. Foi a
linguagem o dispositivo que traduzia o começo da minha vida em um investimento arriscado e perdido; material
descartável. Por isso que a linguagem se converteu em outro inimigo ao qual não se devia dar importância. De que
nos pode servir falar às travestis se é impossível ter carinho por elas? Pra mim a linguagem sempre foi um atributo
masculino, econômico e de domínio. Hoje me dou conta que posso enfrentá-la cara a cara”.
139
travesti em zines e livretos autônomos, a autora agencia uma espécie de vingança contra a
linguagem, o conhecimento e o epistemicídio da cultura dissidente, ou seja, “os enfrenta cara a
cara” com estratégias e recursos enunciativos que pervertem a escrita e a cultura hegemônica,
empregando outras gramáticas, formatos e vocabulários.
Ao analisar as passagens em que Rodríguez conta sobre sua infância e sua experiência
de escolarização, sugeri que a animalização é um recorrente artifício autorrepresentativo que
remete à incivilidade, à selvageria, à pobreza e à dissidência de gênero associadas a uma forma
enviesada de adentrar a linguagem. Transcorrendo essa trajetória e observando os tropos
animalizantes relacionados aos processos enunciativos de Rodríguez desde a infância até a vida
adulta, sugiro que a autorrepresentação animalizada aparece em seus zines apontando também
para processos irracionais tangenciais à loucura e à patologização, bem como à promessa de
morte e à ausência de passado e de futuro, que agenciam um ressentimento esvaziado de
propósito reivindicativo. Trata-se de, conforme argumentarei ao longo deste capítulo,
características singulares das monstruosidades travesti/trans* sudacas.
Pode-se dizer que a louca compartilha com o monstro e com a figura da travesti muitas
características: são consideradas excentricidades, aberrações e seres que estão fora de lugar,
cuja presença causa mal-estar e sensação de ameaça. Há, de certa forma, um interesse em torno
do tema da loucura, mas não do indivíduo, da mesma maneira que há um interesse em torno do
tema da “transexualidade” (como tópico teórico para pensar o gênero abstratamente e desafiar
sua naturalização), ao passo que travestis e pessoas trans* são muitas vezes marginalizadas/os
desse debate. Dessa forma, a transexualidade, assim como a loucura, é comumente vista e
discutida desde um exterior (biomédico, clínico, terapêutico, acadêmico etc.), ou seja, há
sempre uma interpretação da situação do louco e raramente uma autoteorização, justamente
devido à sua exclusão dos domínios da razão, ao seu apagamento do pensamento e do discurso.
Na escrita de Rodríguez o componente da loucura aparece intimamente associado à
patologização e à deficiência, tanto remetendo ao discurso médico sobre transexualidade como
também intimamente conectado à prostituição e à soropositividade. Visto que a transexualidade
é particularmente marcada por uma patologização histórica que persiste até os dias de hoje nos
modelos médicos, quando Rodríguez se representa como animal, deficiente, insuficiente e
anormal, entre outros, faz reverberar os discursos médicos sobre a loucura e outras doenças
140
Se presume que mi trastorno es negarme a ser niño y querer ser hija de mi madre. La
psiquiatra dice que si no hubiera sido hija, seria un niño alegre y fuerte y las palabras
hubieran sido otras, y la forma de mirar, resistente. Se dice que la pequeñez intima
que conservo me debe excluir del mundo y determinar infeliz por cobarde y débil, por
llorona.55 (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação. Grifos Meus)
Ao referenciar um “transtorno” e afirmar que se ela fosse menino “as palavras teriam
sido outras”, nessa passagem, Rodríguez alude ao discurso médico (CID:F640) que
circunscreve a narrativa do “transexual verdadeiro”, recordando que o diagnóstico em questão
é baseado predominantemente na análise autobiográfica da/do paciente, ou seja, se dá em
conformidade com as narrativas contadas às/aos médicas/os e psicólogas/os para dar sentido às
suas vivências pautando o gênero. Diante desse contexto, a autora indica que as palavras que
escolhe para representar-se, dentro e fora do consultório médico, não são suficientes ou
satisfatórias, talvez porque não correspondam ao modelo de diagnóstico do “transexual
verdadeiro” que provém de um quadro epistemológico elaborado a partir das perspectivas cis-
heteronormativas.
As narrativas de si que a autora elabora em seus zines não oferecem uma “história
plausível” e tampouco apresentam um sujeito coerente nos moldes oficializados pelo
diagnóstico de transexualismo, senão incorporam as incertezas, a fluidez e as contingências das
experiências travesti sudacas e empregam formatos e linguagens igualmente difusos, fluídos e
voláteis. Nessa perspectiva, embora a referida “incapacidade de contar histórias” expresse uma
recusa à cosmo-visão cis-heteronormativa, a irracionalidade e a assincronia que orientam a
organização enunciativa da autora são patologizadas e passam a ser interpretadas como
transtorno:
Dicen que no sé contar historias porque desde la niñez poseo una salud que esquiva
la costumbre, que me hace desaparecer de las ideas tradicionales. Mi problema de
salud no es precisamente organico. La psiquiatra presume de un transtorno cerebral
en las palabras y en la forma de mirar porque tiendo a repetir pensamientos y frases
inconexas por causa de una necesidad interna. Mi problema de salud es atómico,
como una especie de dislexia, una desconexión de la comprensión del estar y del ver.
[…] un desajuste más allá de lo cerebral que impide que una especie de molécula me
54
O título cria o trocadilho “conto-da-minha-aids”.
55
Tradução: “Pressupõe-se que meu transtorno é me negar a ser menino e querer ser filha da minha
mãe. A psiquiatria diz que se eu não tivesse sido filha, seria um menino alegre e forte e as palavras teriam sido
outras, e a forma de olhar, resistente. Diz-se que a pequenez íntima que conservo deve me excluir do mundo e
determinar infeliz por covarde e fraca, por chorona”.
141
haga feliz como a todo el mundo, así que dicen que soy mala y que miento56.
(RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação. Grifos Meus)
56
Tradução: “Dizem que não sei contar histórias porque desde a infância possuo uma saúde que esquiva
o costume, que me faz desaparecer das ideias tradicionais. Meu problema de saúde não é precisamente orgânico.
A psiquiatra presume que seja um transtorno cerebral nas palavras e na forma de olhar porque tendo a repetir
pensamentos e frases desconexas por causa de uma necessidade interna. Meu problema de saúde é atômico, como
uma espécie de dislexia, uma desconexão da compreensão do estar e do ver. [...] um desajuste mais além do
cerebral que impede que uma espécie de molécula me faça feliz como todo mundo, assim que dizem que sou má
e que minto”.
142
57
Tradução: “Se as pessoas insistissem em olhar fixamente para a gente, parecemos toscas, despidas de
um princípio e de um interior”.
58
Tradução: “As ruas e avenidas me fazem saber o escasso tamanho de mim e as manhãs, as tardes, os
dias e os anos que demoro a coletar papelões e garrafas e chegar tarde na minha casa, com essa sensação de nunca
me encontrar”
59
Tradução: “Desde um princípio, uma [travesti/mulher/pessoa] acredita ter a razão de que o sólido
nunca poderia ser relativo e nos fazemos de uma segurança impossível, falsa, porque o incerto sabe mostrar-se a
si mesmo, fulminantemente, para cair sobre nós♀, em vingança”.
143
60
Tradução: “Nós as travestis nem mesmo somos conscientes das características de nossa potência. Um
dia podemos nos chamar de Lady Godiva, ou Rapunzel, outro dia ser Marta-a-número-um ou a Quintrala e terminar
a semana como Madame Butterfly ou a Múmia. Cada um dos nomes que momentaneamente levemos, nos
estabelece como sujeitas de um verbo, um sujeito e um predicado; hipóteses, ensaios e erros”.
61
Tradução: “Meu problema de saúde é precisamente a angustiante perseguição das palavras e dos
olhos, e é que não consegui as letras unidas para dizer que a cidade se move. Meu caminhar pela cidade o vê,
nunca nada foi igual nas mesmas ruas. [...] Dizem que não sei contar histórias e desde que me diagnosticaram de
incompreensível, emudeceram a cidade que levo dentro”.
144
Enmudecieron la ciudad que llevo dentro”62 (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação). Nesse
sentido, o emudecimento não se efetua calando a interlocutora, senão, opera desacreditando sua
palavra, designando-lhe inaudibilidade e incentivando a não-escuta:
E deixe que a selvageria fale não na língua da ordem e da explicação, mas com a bela
e contra-mitologizante gramática da loucura. Selvageria não é a falta de inscrição; é a
inscrição que procura não ler ou ser lida, senão deixar uma marca como evidência da
ausência, perda e morte. (HALBERSTAM, 2014, p.147)
62
Tradução: “Dizem que não sei contar histórias, mas não há nada para contar porque dizem que estou
doente e desde que me diagnosticaram me deixaram sem nada pra dizer. Emudeceram a cidade que levo dentro”.
63
Tradução: “Segundo meu diagnóstico, se recomenda que não ponham muita atenção em mim, que
não me escutem por causa da minha tendência à má interpretação da realidade e a repetir descontextualizadamente
frases que não se juntam nem colam. Isso poderia se agravar se me contradizem ou corrigem. É sugerido, diante
do meu mal, que quem me rodear não elabore perguntas complexas, nem me confronte. O melhor remédio, diz a
psiquiatra, é que me deixem elucubrar plasticamente e em momentos de crises, antes de dormir, que chore como
as mulheres”.
145
64
É pertinente recordar que, conforme sugerido no capítulo anterior, em Frankenstein a personagem
Walton pede que não sejam escutadas as palavras da criatura devido à sua capacidade de convencer, gerar empatia
e, portanto, validar suas reivindicações: “Ele é eloquente e persuasivo, e certa vez suas palavras tiveram até poder
sob o meu coração; mas não confie nele... não o ouça.” (SHELLEY, 1983, p.198-199 apud BROOKS, 1993,
p.214).
65
Tradução: “não sabia que não sabia me defender porque não sabia ler nem escrever”.
146
incoerente, de escrita também desviada, que Rodríguez comunica acerca da experiência travesti
em seus zines.
Essa autorrepresentação animalizada e monstruosa, que transcorre atravessando a
impossibilidade de diálogo e de escuta, transborda em formato desautorizado, patologizado e
não-reivindicativo: em publicação autônoma, informal e não-mediada pelas instituições
literárias, como os livretos e zines independentes. Em seus zines, o balbucio animalizado
reprimido na escola reemerge monstruoso misturando-se ao “elucubrar plástico” que se situa
nas fronteiras entre loucura e razão: a linguagem literária se hibridiza às prerrogativas travesti
e a loucura surge em si mesma como linguagem.
Tendo em vista esses apontamentos, analisarei adiante como as características da
escrita monstruosa se manifestam não só nas palavras empregadas e na ortografia que
Rodríguez dispõe, como também no conteúdo do texto, no formato e na composição da edição
gráfica, no suporte de suas publicações (o zine e o livreto) e no público que pressupõe: suas
“amigas travestis que morreram de AIDS sem ter escrito uma única carta de amor”
(RODRÍGUEZ, 2007, sem paginação). As análises desses elementos oferecerão bases para
observarmos outros monstros que a autora elege em sua autorrepresentação.
literárias registradas com ISBN e publicadas oficialmente através de editoras. Também vale
dizer que o zine é uma literatura sem gênero, ou seja, pode abarcar uma miríade de formatos,
estéticas e conteúdos: alguns zines são traduções piratas de textos acadêmicos, outros são
compilados de cartas, diários, imagens, relatos, quadrinhos etc.
Complementarmente, o zine carrega uma tendência inerente à transformação: os
grampos que mantêm sua estrutura enferrujam e se soltam, fazendo com que as folhas se
percam, as páginas escapam à sequência original por equívoco ou descuido, quando exposto, o
material dificilmente resiste às intempéries (rasga, molha e se decompõe facilmente), as
máquinas de xerox cortam trechos ou páginas inteiras por casualidade. É impossível e descabido
afirmar a originalidade de uma matriz de zine: assim como o gênero performado, cada volume
pode facilmente se converter em uma nova cópia sem original.
A precariedade do formato é acompanhada de um arquivamento também informal,
muitas vezes involuntário, conforme conta Stephen Duncombe: “Espalhados pelo apartamento,
empilhados precariamente em mesas de centro, enterrados embaixo de caixas de pizza,
esquecidos entre as almofadas do sofá, lá estavam esses pequenos panfletos desajeitados e feitos
à mão” (DUNCOMBE, 2008, p.1). Essa passagem faz recordar que foi também por acidente
que me deparei por primeira vez com os zines de Rodríguez: ao incluir meus zines na biblioteca
de uma ocupação lésbica separatista no Chile, encontrei uma cópia em xerox do livreto Cuerpos
para Odiar. A diagramação desse exemplar tinha sido alterada e algumas passagens foram
cortadas pela máquina, dificultando a leitura, conforme mostra a imagem abaixo:
150
e a historicidade de arquivos dissidentes (queer archives) que resistem aos modelos históricos
convencionais (tempo linear, origem e telos, causa e efeito), Joseph Allen Boone coloca que:
Pode-se dizer que o trabalho de Rodríguez tem caráter autobiográfico, mas não se
adequa ao gênero da biografia. Por exemplo, em suas poesias travesti, a autora mistura seu
corpo e suas histórias às de suas amigas. Com esse gesto que aglomera e justapõe experiências
marginalizadas, Rodríguez borra a autoria e dilui seu corpo numa multidão, impossibilitando
atribuir contornos precisos à subjetividade travesti. Assim, a opção pela escrita que incorpora
diversas experiências pode ser interpretada como tentativa de despistar os vetores identitários
que tentam condensar e simplificar o que a categoria “trans*” poderia significar. Essa estratégia
é recorrentemente usada em outros projetos autônomos: em seus livretos, Susy Shock também
conta histórias de suas amigas, compilando relatos dissonantes e, de forma semelhante, os zines
colaborativos Sapatoons e Quimer(d)a incorporam histórias de diferentes pessoas que
compartilham uma rede afetiva: sendo “feitos por e para a comunidade”, esses zines aportam
representações múltiplas e reúnem experiências dissonantes e antagônicas baixo uma mesma
insígnia.
Se, de acordo com Prosser (1998), a autobiografia é por excelência o gênero literário
trans* e também o local onde se pretende articular um “sujeito coerente”, vemos nos zines
153
66
Um exemplo emblemático de como o vínculo institucional transforma o conteúdo e orienta o/a leitor/a
é disposto em Queda para o Alto de Anderson Herzer, cuja experiência análoga à transmasculinidade (termo então
indisponível e não utilizado na autorrepresentação do autor) é antecipada e explicada por uma psicóloga e pelo
organizador do livro no prólogo, de forma a violar e deslegitimar de antemão o quadro autorrepresentativo ofertado
pelo autor ao longo de seu exercício autobiográfico.
154
Por mis amigas travestis que sufren más, porque son menos escuchadas que yo, que
no hablo sino que grito con todo mi sida que es el silencio y los silenciadores los que
nos matan, que no se muere ni de sida, ni de pobre, ni de FEA, por eso no voy a
guardar silencio, porque se muere de callar, es por eso que no voy a ser obediente y
voy a volver infinitamente a la conquista de la voz para nombrar todo lo que en
nuestras vidas aun no tiene nombre, aunque digan que no es conveniente nombrar el
horror en nosotras, porque han sido tantos siglos, que en nuestros casos tanto silencio
forzado, el tamaño de la venganza tiene un olor corrosivo en nuestros nombres,
guacha sin tierra, quiltra sin sangre, guaren sin história, que hoy no tenemos deudas
con nadie, la única deuda que tenemos por pagar es entre nosotras travestis, antes de
morir derrotadas, solo entre nosotras mismas67. (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem
data).
67
Tradução: “Por minhas amigas travestis que sofrem mais, porque são menos escutadas que eu, que
não falo, senão grito com toda a minha AIDS que é o silêncio e os silenciadores quem nos matam, que não se
morre de AIDS, nem de pobre, nem de FEIA, por isso não vou guardar silêncio, porque se morre de calar, é por
isso que não vou ser obediente e vou me voltar infinitamente à conquista da voz para nomear tudo o que nas nossas
vidas ainda não tem nome, ainda que digam que não é conveniente nomear o horror em nós mesmas, porque foram
tantos séculos, que em nossos casos tanto silêncio forçado, o tamanho da vingança tem um cheiro corrosivo em
nossos nomes, criatura sem terra, bicho híbrido sem sangue, ratazana sem história, que hoje não temos dívidas
com ninguém, a única dívida que temos que pagar é entre nós travestis, antes de morrer derrotadas, só entre nós
mesmas”.
155
Trinh observa como para aquelas/es que se intitulam autores “no contexto de uma
comunidade em que a maior parte ‘não só não consegue ler como também pensa que
ler é uma perda de tempo’ (gossett), ser a/o “escrivã/o da vizinhança” é sem dúvida
uma das formas mais gratificantes e despretensiosas de dedicar-se aos seus”.
(LICONA, 2005, p.36)
La Delirio me grita en la calle: eeeeella la poeta... qué pretenciosa soi, cuando deci
que escribi Poesia. Nada de lo que me lees rima ¡Maraca! Escribir es otra cosa, no
es lo que deci que haci. La escritura primero que nada ¡weona! Es de cosas bellas,
no porquerías. La escritura no pueden ser las mismas conversaciones de todos los
días, ni mis problemas. Si el este me pega, eso, no puede ser literatura. […] maraca!
Las cortadas que tengo no deberían ser ni una palabra que recordar, sino lo
contrario, pura vergüenza y fracaso. La poesía, como deci vo, no e ni amarga, ni
venenosa68. (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação)
68
Tradução: “A Delírio grita na rua: eeeeeeela a poeta… que pretenciosa é, quando diz que escreve
Poesia. Nada do que você lê pra mim rima. Vadia! Escrever é outra coisa, não é o que você diz que faz. A escritura
mais que nada, miga, é de coisas belas, não imundices. A escritura não podem ser as mesmas conversas de todos
os dias, nem meus problemas. Se aquele lá me bate, isso, não pode ser literatura [...] Vadia! Os cortes que tenho
não deveriam ser nem uma palavra pra recordar, ao contrário, pura vergonha e fracasso. A poesia, como você diz,
não é nem amarga, nem venenosa”.
156
analisar as características singulares que a escrita de Rodríguez agencia para representar seus
conflitos com a linguagem e com a escrita. Para tanto, no próximo tópico analisarei alguns
recursos linguísticos inaugurados pela autora, em especial a (h)ortografia e o errorismo, que
permitem um retorno ressentido e resistente à linguagem.
69
Tradução: “não sei falar mas não sou muda”.
157
de acesso ao simbólico. A esse respeito, comentando como se deu a escrita de seus zines, a
autora coloca que começou “primero por enfrentar los recuerdos, luego traducirlos en palavras
y por ultimo escribirlos como fuera, ortografia y mala redaccion70” (RODRÍGUEZ, 2015,
p.13).
Em vez de demonstrar resignação, a autora explicita, em tom hipervigilante, as
deformidades de sua gramática e de seu vocabulário subalternizados. Rodríguez ressalta esses
signos de equívoco (má redação e falta de ortografia) empregando uma “(h)ortografia”, ou seja,
o processo literário que, ao mesmo tempo em que exalta as complexas camadas de sua exclusão,
representa o silenciamento estrutural (emudecimento/inaudibilidade) no campo articulatório,
explicita sua hipervisibilidade no domínio especular e forja uma inserção obtusa na linguagem:
70
Tradução: “primeiro enfrentando as recordações, depois as traduzindo em palavras e por último as
escrevendo como seja, sem ortografia e [com] má redação”.
71
Tradução: “Dizem que não sei escrever. Não sei de ortografia. Não é todas as palavras que têm letras
mudas. Pensava que ortografia se escrevia com h, mas não, estava completamente alterada. A letra h é muda como
é tonta. Os acentos e as vírgulas se aglomeram, mas, sobretudo, desordeno o caminho das palavras. Minha mãe
me diz que sou tonto. Geralmente torço a dureza das coisas. Não sabia que não saber escrever era tão ruim”.
158
72
Tradução: “existe coisas que se vive e que não foi permitido que sejam escritas, para assegurar que o
mundo seja sobretudo seu mundo. Minha ideia é escrever da forma e das coisas que, segundo o mundo nasceram
aleijadas”.
159
“A mis amigas les da miedo el fin del mundo pero yo me rio como una loca cuando
me rio. A veces me ahogo de tanto pensar en serio y me enfermo de pulmonía de no saber
escribir como la gente” (RODRÍGUEZ, 2014, p.32)
73
Tradução: “‘errorismo’ é uma posição filosófica equivocada, ritual da negação, uma organização
desorganizada: a falha como perfeição, o erro como acerto”.
160
74
Tradução: “uma [travesti] sabe que os que te olham de canto de olho, arrastam uma sombra que você
sabe ler. Você sabe ler as sombras e cheirar os gárgolas”.
168
Todo el mundo dijo que nadie me podría querer, pero como una sorda, como una
travesti estúpida incapaz de leer el mundo, me hice la linda. Y aquí estoy, hambrienta.
Aprendí a copiar el maquillaje de la burguesía para ocultar mi hambre y mi necesidad
de amor.76 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data / sem paginação. Grifos Meus)
Nesse trecho, espelhando-se mais uma vez na deficiência, Rodríguez apresenta o não-
saber como ferramenta de resiliência: a ignorância (“fiz a egípcia”) se transforma em resistência
às expectativas da hegemonia, configurando assim um emprego artificioso do não-saber que
permite desorientar momentaneamente a rota que invariavelmente a capturará no seu destino
trágico, ou seja, a promessa de tornar-se um “corpo para ser odiada”. A proposta do “errorismo”
pautado pela declaração do não-saber não previne, portanto, que a autora reconheça ou sofra os
efeitos desse sistema de opressões (afinal, está faminta), mas oferece um fator surpreendente
de resistência: “E aqui estou, faminta.”. Esse elemento possibilita seu atravessamento rumo ao
simbólico e aos outros domínios que lhe foram negados, conforme argumentarei ao longo deste
capítulo.
75
Tradução: “ainda que sequer entendamos, nem imaginemos, não saber ler nem escrever nos constrói
como corpos para ser odiadas”.
76
Tradução: “Todo mundo disse que ninguém poderia me amar, mas como uma surda, como uma
travesti estúpida incapaz de ler o mundo, fiz a egípcia. E aqui estou, faminta. Aprendi a copiar a maquiagem da
burguesia para ocultar minha fome e minha necessidade de amor”.
169
“¿Qué era ser analfabeta? ¿Era lo mismo que ser fea?” (RODRÍGUEZ, 2014, p.16)
77
Tradução: “Nós estamos adestradas à própria negação; por exemplo, no âmbito acadêmico, para as
ciências sociais, dizem que só uns poucos iluminados são os que geram conhecimento, motivo pelo qual para as
travestis seria impossível sequer fazer reflexões críticas sobre sua percepção do mundo”.
172
Sé que cuando vea una película voy a llorar. Holliwood destruyó la ilusión de mi
infancia. Siempre los malos de las películas morían o quedaban tullidos, ninguno se
salvaba de su cruel destino. Cuando vi morir a King Kong supe que era a mí a quien
la industria estaba matando. No se puede ser tan grande, tan fea y vivir en el centro
de la ciudad.78 (RODRÍGUEZ, 2015, p.70)
Assim como a criatura em Frankenstein, King Kong pode ser considerado um monstro
totalizante, ou seja, que sempre retorna em diferentes contextos carregando significados
específicos, que representam as ansiedades e medos de determinado período e cultura.
Entretanto, diferentemente do monstro em Frankenstein (que evoca a ciência, a tecnologia e o
“artificial” desafiando a noção de “natureza”), o primata mobiliza um agenciamento subjetivo
78
Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.
Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando
eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia
e viver no centro da cidade”.
173
O filme incentiva identificação com King Kong como sendo uma figura animal
misteriosa, cujo domínio é violado por um cineasta de exploração arrogante, macho e
branco. Atacado e provocado repetidamente por esse cineasta, o macaco gigante
eventualmente se volta contra ele e se vinga. Minha hipótese é que o clamor de King
Kong pela identificação com a posição de um marginal atormentado tem sido
historicamente respondido por espectadoras/es que estão fora do “mainstream”,
incluindo artistas e audiências internacionais, gays, negras e feministas. (ERB, 2009,
p.2)
Pode-se dizer que a versão travesti de King Kong proposta por Rodríguez confirma
essa hipótese: em vez de identificar-se com a personagem feminina do filme (que, nas películas
de Hollywood, é geralmente uma mulher branca, de beleza hegemônica, não-deficiente, loira e
indefesa) ou com o herói no enredo romântico, a autora elege King Kong para sua
autorrepresentação, esboçando um comentário crítico ao binarismo de gênero e situando-se nos
interstícios formados por humano/não-humano, feminino/masculino, selvagem/civilizado,
branquitude/racialização etc.
Ao escolher uma figura que oscila entre vilão e anti-herói para sua autorrepresentação,
Rodríguez engendra uma desidentificação com King Kong. Conforme teorizado por José
Muñoz, a desidentificação se manifesta na experiência dissidente (queer) em virtude da
exclusão desse grupo da representação mainstream. O autor coloca que “dissidentes de
sexo/gênero/sexualidade [queers] nem sempre são ‘propriamente’ interpelados/as pelos
mandatos heterossexistas da esfera pública dominante” (MUÑOZ, 1999, p.), ou seja, esses
sujeitos “fracassaram em se girar ao chamado interpelativo da heteronormatividade ‘Ei, você
aí!’” (MUÑOZ, 1999, p.20). Em outras palavras, raramente nos encontrarmos diretamente
interpeladas/os ou representadas/os nos canais hegemônicos de produção de imagens (filmes,
174
televisão, revistas etc.), uma vez que priorizam as subjetividades cis-heteronormativas, que são
processo e produto de suas próprias representações reiteradas79.
Teorizando a “desidentificação”, Muñoz argumenta que, ao sermos excluídas/os do
chamado interpelativo mainstream, tendemos a criar maneiras enviesadas de identificação que
implicam a transformação e a adaptação dessas representações às nossas experiências e
subculturas. Nas palavras de Halberstam, esses “sujeitos queer estão sempre envolvidos em um
processo de reciclagem e de reelaboração dos significados codificados” (HALBERSTAM,
2014, p.143).
Analisando a recorrência com a qual a desidentificação se dá nos circuitos
contraculturais e underground, Muñoz sugere que a via desidentificatória opera ao mesmo
tempo dentro e fora da esfera pública dominante: “Desidentificação é o terceiro modo de lidar
com a ideologia dominante, um que não opta por assimilar dentro da estrutura estabelecida nem
se opõe a ela estritamente; em vez disso, a desidentificação é uma estratégia que funciona na e
contra a ideologia dominante” (MUÑOZ, 1999, p.11).
Nesse sentido, ao alinhar-se ao monstro em King Kong, Rodríguez se volta à cultura
dominante (em vez de recusá-la totalmente) e se serve de uma figura icônica para resistir à sua
exclusão do imaginário mainstream. Ou seja, acessando essa representação a contrapelo da
ideologia da indústria cultural, a autora agencia uma espécie de negociação com a cultura
dominante: sua identidade desviante acede ao repertório imagético (domínio que lhe foi negado)
através de uma identificação enviesada, que permite uma ficcionalização de si pautada na
afirmação de diferenças (de raça, de sexo, de gênero, de sexualidade, de cidadania, de
temporalidade etc.).
Ao se desidentificar com King Kong Rodríguez trabalha dentro da cultura dominante,
mas também contra ela, uma vez que seu alinhamento com a criatura (ou com vilões, de uma
forma geral) não era esperado ou desejado pelas instituições culturais: “desidentificar-se é ler a
si mesma/o e à sua narrativa de vida num momento, objeto ou sujeito que não é culturalmente
codificado para ‘conectar’ com o sujeito desidentificante” (MUÑOZ, 1999, p. 12). King Kong,
o animal selvagem cujo destino trágico é premeditado antes mesmo do filme começar, não é
79
Em seu trabalho, ao enfatizar que “o sistema sexo/gênero é tanto um construto sociocultural quanto
um aparato semiótico, um sistema de representação que designa significados (identidade, valor, prestígio,
localização no parentesco, status na hierarquia social etc.) aos indivíduos de uma sociedade” (DE LAURETIS,
1987, p. 5. Grifos Meus), de Lauretis identifica o cinema como sendo uma tecnologia social – faz menção ao
aparato cinematográfico, o analisa como “um processo semiótico em que o sujeito se vê continuamente envolto,
representado e inscrito na ideologia” (1987, p. 12) – e explicita que se trata simultaneamente de uma tecnologia
de gênero. Resumidamente pode-se dizer que a noção de “tecnologia de gênero” sintetiza a ideia de que gênero é
ao mesmo tempo o produto e o processo de sua própria representação.
175
uma figura criada para gerar identificação ou para representar as noções de pessoidade, de
futuro da nação e da cultura cis-hetero-reprodutiva. Ou seja, o monstro não é idealizado como
modelo para a subjetividade do humano. Pelo contrário, King Kong é muitas vezes lido como
narrativa de reiteração da soberania branca cis-heteronormativa e como representação que pune
a alteridade e regula as identidades dominantes.
Em alguns sentidos, espelhar-se em King Kong pode ser considerado um gesto análogo
a “desejar contra os próprios interesses”, uma vez que implica o desejo por uma existência em
conflito com os interesses do estado-nação, acionando, assim, certos riscos. Levando em
consideração essa ideia, pode-se dizer que as escolhas autorrepresentativas de Rodríguez, assim
como outras proposições dispostas em zines e projetos contraculturais dissidentes sudacas, não
estão sempre investidas em transformações sociais nem são articuladas de forma propositiva e
otimista: em vez disso, apontam para limites nos discursos endossados por muitas organizações
LGBTTQI, cujo trabalho se baseia em agendas políticas neoliberais que recorrentemente
clamam por visibilidade, direitos e humanidade.
Em vez de propor reivindicações assimilacionistas, através da desidentificação a
autora responde à sua exclusão e ao silenciamento com uma postura crítica e de objeção às
estruturas dominantes, acenando à contracultura tipicamente associada aos projetos autônomos
dissidentes. Uma proposta semelhante é disposta na capa do zine Quimer(d)a II, que, em vez
de celebrar a nova política de retificação de sexo e de nome para pessoas trans* no Brasil,
identifica possíveis armadilhas que chocam com os interesses de alguns grupos de pessoas
trans*.
176
autorrepresentação monstruosa, a autora pretende expressar sua experiência travesti sudaca para
além das polaridades “representação positiva versus representação negativa” ou “representação
real versus representação falsa”, esquivando-se da necessidade de produzir imagens e narrativas
romantizadas ou necessariamente “empoderadoras”. A desidentificação se ativa quando a
autora encontra na criatura um veículo de expressão das particularidades da dissidência que
incorpora, incluindo as camadas complexas e conflitantes da experiência marginal.
Também nesse sentido é importante salientar que a desidentificação é uma
reordenação de signos, que cita e ao mesmo tempo transforma os discursos sedimentados em
determinado objeto/sujeito/figura. Conforme explicado por Muñoz:
Ann, inicialmente aterrorizada pela criatura e pelos esqueletos humanos ali dispostos, começa
a criar empatia pelo primata ao identificar nele demonstrações de senciência: a atriz tenta
comunicar-se com Kong entretendo-o com danças e malabarismos e negociando os seus limites
com o monstro.
Simultaneamente, numa batalha selvagem que inclui dinossauros e insetos gigantes,
alguns membros da tripulação e da equipe cinematográfica de Carl sobrevivem e avançam em
sua missão: Jack encontra a morada de Kong e resgata Ann (que se junta relutantemente aos
seus companheiros) enquanto Carl traça um plano para capturar o primata que os persegue no
caminho de volta ao navio em busca de Ann. Sob os protestos da atriz, a equipe seda e sequestra
a criatura, que é levada de navio para Nova York. Na cidade, Carl cria uma peça da Broadway
intitulada “Kong, a oitava maravilha do mundo”, que tem como atração principal o primata
acorrentado. Entorpecido e desorientado pelos flashes fotográficos, Kong confunde a atriz
(também loira) da peça com Ann e, ao perceber a diferença, durante um surto de fúria se
desvencilha das amarras, destrói o teatro e escapa para vingar-se de seu rival Jack e buscar Ann.
A criatura e sua amiga se encontram e dividem um breve momento de afeto: deslizam
pelo lago congelado, se divertem, riem e brincam numa cena afetuosa, até que o exército os
ataca com mísseis. Kong foge com Ann em suas mãos e escala o Empire State Building, mas
não resiste aos tiros da força aérea e, numa cena dramática, troca olhares profundos com Ann
enquanto seu corpo desliza caindo das torres. Ann é devolvida a Jack, a população geral e o
exército se aglomeram ao redor do cadáver de Kong e, na cena final, Carl aparece observando
o corpo da criatura e anuncia: “It wasn’t the airplanes. It was Beauty killed the Beast” (tradução:
“Não foram os aviões. Foi a Bela/beleza matou a Fera”).
Essa narrativa carregada de códigos de gênero, de discursos sobre raça e colonialismo,
de premissas capitalistas e representações (in)humanas é apropriada por Rodríguez, que se
desidentificando com King Kong, oferece comentários críticos sobre a colonialidade do gênero,
o travesticídio e a impossibilidade de comunicação entre ontologias-outras, conforme sugiro
adiante.
Ao desidentificar-se com King Kong, Rodríguez alude, entre outras coisas, à noção
iluminista de que a linguagem, associada à razão, configura um limite de separação entre o
deshumanizado (animal não-humano) e o humano. No filme, o primata nunca aprende a falar,
sequer utiliza a linguagem de sinais, tampouco reivindica que sua comunicação seja escutada
com atenção, como se fosse discurso. Os sons que emite são representados como ruídos e nem
sempre percebidos enquanto comunicação, como demonstrado na análise de Natasha Giardina
que, em seu artigo Queer eye for the Ape Guy?, interpreta King Kong como representação de
uma “masculinidade primitiva”: “A evidência primária da alegria de Kong são suas
demonstrações descontroladas de golpes no peito, acompanhadas de mais urros. É improvável
que esse rugir tenha significado linguístico” (GIARDINA, 2005, p.189).
Sua vocalização não articulada – que, de uma perspectiva antropocêntrica, não possui
significado linguístico – não conseguiria clamar por mudanças sociais ou reivindicar demandas
políticas. Se não há linguagem para reivindicar, de que mais pode servir a vocalização? Por
não estar formalizada como discurso, sua expressão se resume a puro barulho, que não passa
de uma perturbação aos ouvidos alheios. O ruído é, entretanto, uma qualidade marcante e
significativa do filme, conforme apontado por Fatimah Rony: “o que impulsiona o King Kong
adiante não é a dublagem ou os entretítulos do filme de pesquisa científica ou do filme de
etnografia lírica, mas som de um outro tipo – os gritos da heroína loira, o rugir de Kong, o gorila
gigante” (RONY, 1996, p.160). O barulho é inevitavelmente audível (em diversas cenas as
personagens humanas escutam a criatura se aproximando antes de vê-la) e engendra efeitos
reais (como a intimidação), entretanto, pode-se dizer que a comunicação humana não é
propriamente um investimento de King Kong. Essa criatura incide antes no confronto e explicita
a quebra da comunicação, ou seja, esse lugar inegociável, onde não há palavras ou onde as
palavras são tão outras que se tornam intraduzíveis. No interstício entre humano e
desumanizado e nas margens do discurso, os urros de King Kong se misturam com outras
linguagens não/humanas também muitas vezes inoperantes fora de seus ambientes originários,
como, por exemplo, o Pajubá das travestis brasileiras e a (h)ortografia dos zines de Rodríguez.
Na metáfora elaborada pela autora, a barreira que a King Kong travesti encontra para
aceder à linguagem inteligível é apresentada em sua intersecção com deficiência, raça e espécie,
evocando diferentes camadas de colonialidade enveredadas na formulação da ideia de
pessoidade. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao evocar o primata, Rodríguez faz ecoar a
181
Aristóteles argumentou há mais de dois mil anos atrás que a linguagem separava os
humanos dos animais. Essa crença facilitou um caminho na tradição ocidental para
que a linguagem fosse tratada filosófica e cientificamente como sendo ao mesmo
tempo uma característica exclusivamente humana e também central do que significa
ser humano. Aristóteles também afirmou que escutar era necessário para a fala, o que
ele também acreditava ser central para o pensamento, permitindo que sugerisse que
pessoas surdas estivessem desprovidas do pensar e da inteligência – um legado que
muitas vezes associou as pessoas surdas aos animais ou ao menos-que-humano.
(TAYLOR, 2017, p.49)
80
Importa realçar que as histórias do racismo e da xenofobia comprovam que, se Pedro Vermelho fosse
real, não atingiria o status de humano e a equidade de direitos sem travar diversas batalhas legais e discursivas
devido às suas diferenças ontológicas (a sua aparência, forma de mover-se, seus valores, culturas, local de origem,
espécie etc.).
183
Em sua busca para demonstrar que a teoria evolucionista era tão importante para o
desenvolvimento da espécie humana quanto para outros animais, Darwin se voltou a
estereótipos racistas e capacitistas de “selvagens” e “idiotas”, sugerindo que esses
grupos eram de fato fósseis vivos, exemplos de estágios intermediários da evolução
humana. (TAYLOR, 2017, p.88)
A recorrência com a qual Rodríguez descreve sua linguagem como expressão de uma
deficiência ecoa na lógica explicada por Taylor: a autora sugere que a animalidade que
compartilha com King Kong está enredada em sua travestilidade e é produto e processo de uma
linguagem ininteligível nos ambientes sociais institucionais. Nesse sentido, tendo em vista a
história da noção de pessoidade explicada por Taylor (2017), aqui o vínculo com o animalizado
fortalece um despertencimento e um desprendimento da linguagem e da razão e favorece outras
vias comunicativas e diferentes possibilidades de agenciamento, pautadas no irracional e na
recusa radical do conhecimento formal, como, por exemplo, estratégias decoloniais
separatistas.
Desprovida de cordas vocais humanas, de anatomia inegociavelmente diferente e
desinteressada da cultura que a sequestrou, a King Kong travesti resiste à linguagem e aos
saberes institucionalizados como se resistisse à colonização e ao epistemicídio: posiciona-se
num estado de alienação ontológica e de recusa radical ao conhecimento dominante, afinal,
como conta Rodríguez: “nem sabia que não sabia ler e escrever”. Assim sendo, ao eleger King
Kong como monstro de sua autorrepresentação, a autora insiste na quebra da comunicação
imposta por uma linguagem-outra e, exaltando seu confronto com as palavras, faz ecoar uma
virada (in)humana.
Através do alinhamento com outros seres desumanizados e com criaturas
não/humanas, a autora explicita potências criativas desviantes do status de pessoidade
sustentado pela lente antropocêntrica. Nessa perspectiva, representar-se como pertencente a
uma outra espécie retém um significado duplo, pois cita esse emprego exordial da classificação
racional e taxonômica que atribui soberania ao Humano, ao mesmo tempo em que alude a uma
alteridade estrutural, conforme teorizado por Haraway: “espécie contém seu próprio oposto na
forma mais promissora – ou especial. Espécie significa diferença radical e ao mesmo tempo
tipo lógico e classificatório” (HARAWAY, 2016, p.14).
Somente por meio de uma virada (in)humana, ou seja, da proposta de descentramento
radical do humano, poderíamos nos aproximar da visão de mundo de monstros como King
Kong e é através dessa metáfora de alteridade extrema (uma verdadeira barreira ontológica)
que Rodríguez se autorrepresenta: seus escritos nos impelem a abandonar a pergunta “por que
ela não escreve como nós? Por que não usa nosso vocabulário e traduz suas experiências de
forma inteligível para nossos ouvidos? Porque não usa analogias e perspectivas cis para
explicar-nos suas vivências?”; e, em vez disso, convida o público a questionar suas próprias
185
limitações e as barreiras estruturais que isolam as dissidências: “por que nós não conseguimos
entender? Por que nós não nos comunicamos assim? Por que não conhecemos os seus zines?”.
A autorrepresentação através da figura de King Kong expressa uma diferença
ontológica que abarca a intraduzibilidade e a imprecisão, bem como uma premissa de fracasso
e morte: como resultado da imposição dessas barreiras culturais e de suas inegociabilidades, a
criatura é incapaz de agenciar a própria salvação, ou seja, ao mesmo tempo em que resiste à
linguagem colonizadora, o primata é massacrado pela norma por ela sustentada devido à sua
incapacidade de defender-se – “No sabia que no sabía defenderme porque no sabia leer ni
escribir” (RODRÍGUEZ, 2014, p.57). Enquanto Booee, Pedro Vermelho e os primatas de
Planeta dos Macacos se antropomorfizam e agenciam suas reivindicações e resistências
apropriando-se estrategicamente da linguagem para melhorar suas condições, King Kong
permanece ontologicamente dissidente e em risco. Dessa forma, vislumbrando outras vias
comunicativas e diferentes possibilidades de agenciamento pautadas no irracional e na recusa
radical do conhecimento formal, a autora forja uma estratégia separatista decolonial, que opera
com a premissa irracional do “não-saber” e com afetos ressentidos e vingativos, sem articular
a própria salvação ou prosperidade.
186
“Soy de esas locas Estuardas, que entre tantos amores y orgasmos no puede decir que
vive, si cada cierto tiempo, no se pone en riesgo de muerte” (RODRÍGUEZ, 2015, p.54.)
“To speak of black social life is to speak of this radical capacity to live – to live deeply
righteous lives even in the midst of all that brings death close or, as Lucille Clifton puts it, to
celebrate “everyday / something has tried to kill me / and has failed” (WILLIAMSON, 2016,
p.9)
Justamente por configurar uma ameaça às barreiras culturais que sustentam a ideia de
pessoidade, o destino de King Kong, como nos conta Rodríguez, já é conhecido antes mesmo
do filme começar. Entretanto, curiosamente, a previsibilidade da morte da criatura não
neutraliza sua potência, de acordo com Rony “o resultado é conhecido – o monstro será
destruído, e os brancos heroicos vão triunfar – mas sempre há uma tensão, um elemento de
incerteza, a possibilidade de que a corrida vá para qualquer dos lados” (RONY, 1996, p.170).
Analisar uma proposta autorrepresentativa centrada na promessa de morte implica
reorientar paradigmas tradicionalmente investidos na resolução do conflito, para que seja
possível imaginar existências que habitam estados permanentes de tensão (como aqueles
mencionados por Rony) e preservam uma relação de inegociabilidade ontológica com seu
entorno. Vislumbrando potências inusitadas no investimento e na permanência no conflito,
nesta seção argumentarei que, em sua (des)identificação com King Kong, sobretudo através de
uma premissa de morte ancorada em marcadores de raça, classe, sexualidade e gênero,
Rodríguez articula temporalidades, perspectivas e agenciamentos dissidentes e mobiliza afetos
carregados de vetores descoloniais. Para tanto, primeiramente é pertinente analisar a propensão
da criatura à aniquilação traçando paralelos entre o assassinato de King Kong no filme e o
travesticídio, focalizando especialmente a política estatal de criminalização e de extermínio das
dissidências.
Analisando a trama do filme, paralelos frágeis relacionam o fato de que King Kong foi
sequestrado e escravizado pela indústria de entretenimento ao tráfico humano e às condições
187
normalmente enfrentadas por travestis como Rodríguez, cuja principal (senão única)
possibilidade de renda advém do trabalho sexual81 . Numa metáfora literal, é possível relacionar
a captura forçada da criatura na indústria do entretenimento à suscetibilidade de travestis e
pessoas transfemininas ao tráfico humano pela via do mercado sexual. Entretanto, talvez seja
mais proveitoso relacionar a matabilidade de Kong ao travesticídio ressaltando um tipo
específico de fascínio e de desejo particularmente reservado às monstruosidades. A esse
respeito, analisando a criminalização que a ciência sexual impôs aos corpos desviantes, Jorge
Leite Júnior (2012) coloca que:
Historicizando o conceito de monstro, percebemos que não é apenas terror que a figura
monstruosa provoca, é também fascínio, encanto, dúvida, fonte de curiosidade e
desejo: “o monstro é transgressivo, demasiadamente sexual, perversamente erótico,
um fora-da-lei”. Nesse sentido, talvez o monstro tenha em demasia algo que o abjeto
tenha de menos: o fascínio pela quebra das normas conhecidas, o encanto pela
transgressão, a sedução pelo quase desconhecido, a curiosidade pela inteligibilidade.
[...] Mas nossa cultura criou uma forma específica de tratar com as pessoas que se
encaixam na categoria de monstros: ao encará-las como o equivalente ao Mal e ao
caos, a única ação ou reação socialmente inteligível é a destruição ou o anulamento
(literais ou simbólicos) dessas pessoas. O monstro não é apenas uma domesticação do
abjeto, mas sua organização como uma categoria específica que legitima tanto a
atração quanto a destruição ou punição do sujeito sobre o qual recai essa mesma
atração. (LEITE, 2012, p.562-563. Grifos Meus)
Dessa forma, pode-se dizer que a figura da King Kong travesti inspira um desejo letal:
a faceta monstruosa das prostitutas travestis e de King Kong (oriunda da inviabilização de sua
integração no tecido social e de sua ininteligibilidade nas categorias identitárias) incita um
fascínio especificamente direcionado aos corpos desumanizados e legalmente matáveis. Nesse
cenário, a hipervisibilidade tipicamente associada ao monstro e à transfeminilidade (efeito da
alteridade que excede o registro visual) atua complementarmente como instrumento da
violência instituída contra o monstro: pode-se dizer que a hipervisibilidade é uma condição ao
mesmo tempo necessária (para instigar o fascínio e o desejo dos clientes no trabalho sexual da
rua) e vulnerabilizante (facilitadora do controle social), afinal, conforme relatado por
Rodríguez, é justamente a dimensão do seu impacto no campo visual que a transforma em corpo
para ser odiado: “não se pode ser tão grande, tão feia, e viver no centro da cidade”.
Considerando também que King Kong se torna uma ameaça destrutiva e aciona o
exército quando se liberta e destrói a cidade “em busca de sua loira” (como muitas/os críticas/os
81
Entende-se a prostituição como exploração capitalista análoga a qualquer outra atividade remunerada,
entretanto, ressalta-se que a condenação moral e a criminalização da prática em questão tornam precárias e
marginalizam as vidas de muitas travestis, impactando principalmente as pessoas pobres e racializadas
188
colocam), é possível conectar a matabilidade da criatura à sua busca por uma feminilidade
proibida, fazendo ecoar a frase emblemática proferida pelo cineasta no final do filme: “Não
foram os aviões, foi a Bela/Beleza [que] matou a Fera”. Nesse sentido, a trágica e letal
atração/identificação com a feminilidade se aplicaria tanto à figura de King Kong quanto à
releitura que Rodríguez faz do filme: “a tragédia de King Kong é que Kong está eternamente
condenado: essa besta não pode viver sem a beleza, mas também não pode sobreviver a ela”
(GIARDINA, 2005, p.190-191). Desenvolverei essa ideia profundamente mais adiante, de
momento, basta sugerir que no assassinato da criatura está implicado o desejo por uma
feminilidade que lhe foi negada e que essa é também a particularidade que diferencia o
travesticídio e o transfeminicídio de outros feminicídios.
Complementarmente, pode-se argumentar que o exército que ataca King Kong (devido
à sua ontologia outrificada, ao seu desejo pela feminilidade e à ameaça que representa às
estruturas urbanas, sociais e identitárias) é análogo aos esquadrões policias que historicamente
perseguiram e assassinaram travestis na América Latina, especialmente durante o período da
ditadura vivido por Rodríguez. Esses paralelos entre a matabilidade de King Kong e de travestis
apontam para a possibilidade de articular o assassinato para além de uma ocorrência isolada e
individual (uma história pessoal trágica), senão como projeto de uma política estrutural do
regime cis-heterocapitalista. Afinal, nesse caso a morte é, na verdade, um genocídio
condicionado pela marginalização e pelo despertencimento/expulsão de instituições sociais e
de categorias identitárias. Ademais, vale atentar que em ambos os casos é o arsenal bélico do
estado (o exército e a polícia) que leva a cabo a execução do monstro (traduzida na experiência
de Rodríguez como violência estrutural estatal).
A esse respeito, em seu artigo Antitrans State Terrorism: Trans and travesti women,
human rights and recent history in Chile, Hillary Hinter e Juan Carlos Garrido (2019) utilizam-
se da história oral difundida por travestis chilenas (dentre as quais Rodríguez está incluída junto
a Lohana Berkins e outras ativistas da OTD) para traçar o panorama de violência que foi
excluído da história e dos registros oficiais da ditadura. Hinter e Garrido comentam que, além
das violências estruturais e simbólicas cotidianas enfrentadas (violência física, psicológica,
social, sexual e econômica), um tipo específico de opressão foi aplicado contra as travestis e
mulheres trans* durante a ditadura chilena (1973-1990): um terrorismo estatal antitrans baseado
no transfeminicídio e no travesticídio.
Segundo os autores, diferente de outros estudos que mapeiam crimes de ditadura, esse
trabalho se alia à:
189
Hinter e Garrido contam que essa lei, efetiva durante o regime ditatorial e também no
democrático, se aplicava contra as trabalhadoras sexuais, em especial as travestis e mulheres
trans*, que enfrentavam violências multifacetadas, como agressões na rua, abuso sexual,
homicídio, criminalização e assédio policial e social.
Dentre os exemplos de histórias orais de terrorismo estatal antitrans, o artigo menciona
o livreto Cuerpos para Odiar e reproduz passagens em que Rodríguez reconta as ações policiais
nos bordéis e os sucessivos encarceramentos, agressões e desaparecimentos de travesti:
Esa noche como ninguna otra, nos encontramos de frente con el gobierno militar, con
el toque de queda y el trauma de nuestra juventud. Esa noche terminamos
acurrucadas traicioneramente como basura em uma callejuela cualquiera,
acobardadas entre las hormigas por los estruendos de las balas, queriendo olvidar
los gritos de las prostitutas a quienes habíamos dejado desamparadas82.
(RODRÍGUEZ, 2014, p.68)
Absolutamente por haber nacido aquí, cuando hablo y cuando escribo relato la
historia de ese territorio. De manera implícita, infratextual o incluso desde la
82
Tradução: “Essa noite, como nenhuma outra, nos encontramos de frente com o governo militar, com
o toque de recolher e o trauma de nossa juventude. Essa noite terminamos traiçoeiramente como lixo em uma ruela
qualquer, acovardadas entre as formigas pelos estrondos das balas, querendo esquecer os gritos das prostitutas que
havíamos deixado desamparadas”.
190
83
Tradução: “Absolutamente por ter nascido aqui, quando falo e quando escrevo relato a história desse
território. De maneira implícita, infratextual ou inclusive a partir da negação, descrevo as avós de minhas avós e
sua subordinação. Falo de ser migrante, da mesma forma que falo de ter nascido em um mundo com cordilheira e
da mesma forma do espaço baldio que implica ser travesti, nas narrações de quem nasceu aqui e não nos nomeia.
Assim, com a pouca importância que têm as biografias, embora não acreditem, quando falo de ser analfabeta,
também estou falando do medo que tem significado ter uma voz depois do onze de setembro, porque também
nascemos aqui”.
191
O que significaria engajar-se nos estudos minoritários sem ser impulsionada/o pelo
desejo de reabilitar os sujeitos/objetos do nosso conhecimento? Que tipos de teorias
produziríamos se notássemos a dor e, em vez de automaticamente procurarmos sua
origem para aliviá-la, ou de a explorarmos buscando recursos para nossos prazeres
192
Em seu artigo, Awkward-Rich cria uma ferramenta de análise pautada pela doença
mental (depressão), para “ler com, e não contra, formas de sentir e hábitos de pensamento
depressivos” (AWKWARD-RICH, 2017, p.836). Essa ferramenta, teorizada a partir da
vivência negra transmasculina do autor, permite abarcar a impossibilidade de integração do
sujeito transmasculino no (trans)feminismo. Seu método propõe que “ler como um/a transexual
deprimida/o seria, então, ler desde uma posição compromissada com a ideia de que as vidas
trans são ‘vividas, portanto, vivíveis’, e também com a consideração de que sentir-se mal é fato
mundano (Scheman 1996, 132)” (AWKWARD-RICH, 2017, p.826). Sua proposta incorpora o
genocídio e a constante promessa de aniquilação à viabilidade das vidas trans*, ressoando na
inesperada desidentificação de Rodríguez com King Kong.
A aniquilação que Awkward-Rich teoriza diz respeito tanto à negação ou
impossibilidade ontológica com a qual se deparam as pessoas trans* (o autor emprega a figura
do fantasma para representar a inadequação e as “angústias de ininteligibilidade” tipicamente
associadas às experiências trans*), como também ao risco de morte:
Segundo Cameron “o/a transexual deprimido/a pode lidar com a situação e determinar
que o problema não é tanto que (algumas) feministas gostariam que ele desaparecesse. Mas,
que o problema é que ele está aqui, e agora nós todos temos que descobrir como viver com esse
fato” (AWKWARD-RICH, 2017, p.832). É nessa chave teórica que a monstruosidade de
Rodríguez opera através da figura de King Kong: enfatiza a presença inexorável (um mero
“estar aqui”) como permanência no conflito, ou seja, experiencia um corpo de alta capacidade
destrutiva e de grande propensão ao aniquilamento, que “estando aqui” contra todas as
expectativas, produz a fenda ou ferida que habita. Enfatizando as potências contra-
reivindicativas pautadas na recusa, na negatividade e nesse inusitado “aqui estou”, cabe analisar
algumas estratégias negativas monstruosas sudacas acentuando tanto seus efeitos
micropolíticos como sua capacidade de explicitar as violências estruturais.
84
Tradução: “Escrevo porque não fui a única, por todas as travestis que não conseguiram saber que
estavam vivas”.
199
Ambas as imagens tensionam o espaço da vida social (as zonas do ser, num paralelo
à noção fanoniana) com a presença dessa morte social trans que o atravessa e circunda,
e dão a ver – a partir de evocações do ódio e da violência socialmente destinadas a
interditar a possibilidade mesma de emergência e articulação dessas vidas – o modo
como o que estrutura o mundo e a possibilidade de ser no marco da supremacia cis é
a reprodução da interpelação negativa que projeta as corporalidades trans e
desobedientes de gênero em espaços de inexistência que são zonas de não-ser e são
também o que aqui vem sendo chamado morte social. (MOMBAÇA, 2017, p.40)
Identificando o mundo como projeto de extermínio trans* e/ou negro, a autora articula
a noção de “morte social” enquanto componente estruturante da vivência e do lugar social
compartilhado pela dissidência de gênero e pela negritude, especialmente considerando a
inviabilidade ontológica e a desumanização. A partir dessa conexão, através do quadro teórico
do afropessimismo 85 e na esteira de Jared Sexton (2016), a autora pontua algumas das
características particulares dos investimentos autorrepresentativos pautados pela premissa de
morte e inaugura em sua análise uma abordagem que:
não nega a vida da morte social, ou seja: que insiste na aposta tão impopular quanto
improvável de que a morte em vida é tanto uma forma de morte quanto de vida, que
o inexistente habita, enfim, uma certa posição, e paradoxalmente existe em sua
inexistência. [...] Uma morte viva é tanto uma morte quanto uma vida. Nada no afro-
pessimismo sugere que não haja uma vida (social) negra, somente que a vida negra
não é uma vida social no universo formado pelos códigos do estado e da sociedade
civil, do cidadão e do sujeito, da nação e cultura, da pessoa e do lugar, da história e
da herança, de todas as coisas que a sociedade colonial tem em comum com o
colonizado, de tudo que o capital tem em comum com o trabalho – o sistema mundial
moderno. A vida negra não é vivida no mesmo mundo em que o mundo vive, mas
vivida underground, no espaço exterior. (MOMBAÇA, 2017, p.41. Grifos Meus)
85
O afropessimismo situa histórica e politicamente a subjetividade negra em sua coextensão com a
escravidão em seu contínuo pós-abolição. Essa vertente teórica se distingue das ideias humanistas, na medida em
que concebe a história da negritude como inseparável da discriminação política e do isolamento social, de forma
a demonstrar sua exclusão das categorias constitutivas do “sujeito político” (que retém e se constitui através dos
direitos humanos).
200
Resumidamente, pode-se dizer que nos escritos de Rodríguez não é a superação (da
ignorância, da vulnerabilidade, da deshumanização, da promessa de morte) que marca seu
acesso ao simbólico e o agenciamento de seus desejos, senão um estado de permanência na
ferida (“e aqui estou”) que excede as expectativas sem oferecer uma alternativa assimilacionista
ou “positiva”. Estar e existir efemeramente, a contrapelo das forças sociais e alheia à cultura
que se sustenta a partir de sua negação, é o vetor de potência destrutiva da King Kong travesti
que não reivindica um futuro para si, antes opera em uma temporalidade dissidente, produzida
ao mesmo tempo com e apesar da promessa de morte. Quais afetos podem emergir de uma
proposta anti-assimilacionista, contra-propostiva, não-reivindicativa e, ao mesmo tempo,
carregada de potência negativa?
Argumenta-se que a força-motriz de projetos autorrepresentativos como o de
Rodríguez não é propriamente a “fúria transgênero” tal qual teorizada por Susan Styker
(abordada no capítulo 3), senão o ressentimento e a vingança, que induzem ao despretensioso
agenciamento micropolítico e operam espontaneamente no cotidiano. Se a reivindicação formal
de uma transformação estrutural não abarca efetivamente todas as contradições, possibilidades
e desejos dos corpos dissidentes sudacas, outras estratégias e afetos despontam especificamente
vinculados às potências travestis, como a recusa, a negatividade e uma fúria particularmente
enredada no ressentimento: “Ustedes no creen que se pueda ser una travesti teñida, tonta, pero
furiosa, una teñida resentida”86 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data) Aqui, o adjetivo
“tonta” se opõe à articulação, inteligência e perspicácia que Stryker reafirma em sua
identificação com a criatura em Frankenstein. O ressentimento travesti que emana da “travesti
tingida, tonta e furiosa” pode ser associado, então, à figura de King Kong que, nos momentos
86
Tradução: “Vocês não acreditam que se possa ser uma travesti tingida, tonta, mas furiosa, uma tingida
ressentida”.
201
que antecedem sua inevitável derrota, se vinga de seus malfeitores e destrói seu entorno sem a
pretensa de triunfar.
Em Viva el Ressentimiento! Mark Fisher (2014) propõe a revisão da ideia de que o
ressentimento seria um sentimento miserável e contrapropositivo, que faz com que a pessoa se
volte contra si própria, colocando-se em posição desprezível ou de autopiedade. Citando Owen
Hatherley, Fisher coloca que “o ressentimento é a força que se recusa a deixar que as feridas se
curem, que recorda as velhas derrotas para um dia poder vingar-se” (FISHER, 2014, p.273).
Essa colocação faz ressoar a recorrência com a qual Rodríguez alude à vingança, além de ecoar
a insistência em localizar-se numa ferida que não pretende curar, mas, sim, através da qual
produz criativamente. Quando confrontado e autodeclarado, o ressentimento evadiria o risco de
afirmação reiterativa da própria posição inferior e subordinada, e a consequente autopiedade:
“A vontade de tornar-se mais (“não sou nada e deveria ser tudo”) se converte em uma defesa
do que um já é. ‘My defences/ become fences...’ [Minhas defesas / se convertem em
barreiras...]” (FISHER, 2014, p.275). Numa estrutura semelhante, é possível associar essa
teoria ao cultivo das raízes negras que delatam o “loiro tingido” de Rodríguez.
O autor argumenta que “o ressentimento é um afeto muito mais marxista que o ciúme
ou a inveja. A diferença entre ressentir a classe dominante e invejá-la, é que o ciúme implica
um desejo por tornar-se a classe dominante, enquanto o ressentimento sugere uma fúria contra
a sua posse de recursos e privilégios” (FISHER, 2014, p.274). Argumentando que o
ressentimento “não tem por que terminar em impotência”, Fisher identifica nesse afeto o
primeiro passo ao confronto de sentimentos de inferioridade, em especial no que tange à
consciência de classe. Fisher entende que ressentir é diferente de invejar, uma vez que não é o
mesmo que desejar o que o/a outro/a tem: trata-se de um sentimento de descontentamento que
inspira a vingança. Nesse sentido o ressentimento representa adequadamente a forma como
Rodríguez retrata a relação que estabelece tanto com a escrita como com o desejo de imitar a
feminilidade holliwoodiana: enreda nessas práticas a sabotagem das respectivas categorias
“literatura” e “mulher”, conforme argumentarei mais adiante.
O ressentimento é também o que mantém ativa a repulsa do próprio regozijo da classe
dominante, que se desdobraria em repulsa de si. Essa ideia se explicita com alguns movimentos
pendulares que oscilam entre o desejo pela feminilidade gringa loira, alternando com a
recorrente contestação dessa mesma categoria, a necessidade de marcar alteridade, de
desconfiar do próprio desejo e de se denunciar quando alcança com êxito o que almeja. O êxito,
202
nesse projeto, nunca é completamente desfrutado, uma vez que produz contradições que
engendram novas angústias e conflitos.
Em vez de contentar-se com o que lhe foi designado ou de sugerir a derrota da sua
assimilação, por exemplo, em seu projeto de feminilidade (apontando para a
transnormatividade) ou com a publicação oficial de Dramas Pobres pela editora Ediciones del
Interstício – que a autora descreve, no prólogo, como sendo uma “versão [de seu zine] porfiada
para a academia” (RODRÍGUEZ, 2015, p.15) –, Rodríguez ocupa certos domínios
hegemônicos para então deslegitimar a exclusividade e o privilégio implicados nesse “mérito”.
Sua ambição (seu desejo, por exemplo, por corporificar a loira de Holliwood) converge com
sua recusa pela assimilação. A proposta, então, seria a de desestruturar o sistema presente e não
o inverter num novo jogo de valores. Nesse sentido as palavras de Fisher ecoam na escrita de
Rodríguez: “Ressentimento versus desprezo e condescendência. Ressentimento e
descontentamento: o começo da resistência contra a positividade obrigatória do realismo
capitalista” (FISHER, 2014, p.277).
Um exemplo desse tipo de proposta micropolítica orientada pelo ressentimento que se
desdobra em vingança é articulada pelo simples transitar pelo mundo (“e aqui estou!”),
conforme sugerido no poema de Rodríguez:
87
Tradução: “Na rua um sedutor poeta da construção me disse: porque não me dá um sorriso de
presente? E a minha boca se abriu de lado a lado, mostrando minha salada de dentes tortos, meio que me
predispondo a comer o homem, porque meu sorriso é o de um monstro. Minha resistência, minha arma, meu
punhal, meu fuzil é monstruorizar-me; admitir que não sou outra coisa senão um fracasso para qualquer modelo,
que não sei amar como dizem que se deve amar, que o amor é privativo e não incomensurável. Sou um monstro,
senhores, sobretudo quando me seduzem e me fazem rir, porque tendo a comê-los”.
203
chamado do pedreiro, já que o interpela de volta invertendo a ordem do desejo e a prática sexual
em jogo (implícita na ambiguidade da colocação “tendo a comê-los”).
Essa passagem sugere que a mera existência do corpo dissidente no simbólico
desregula a matriz de inteligibilidade (que atribui correspondência entre sexo–gênero–desejo–
prática sexual) e contamina os corpos que encontra. O ato de “monstrificar-se”, representado
em diversos projetos autorrepresentativos travesti/trans*, implica a incitação de um desejo que
escapa à norma e está ancorado no “desvio de gênero” da proponente. Seu sorriso/resposta a
monstrifica e transforma também seu interlocutor interferindo, assim, no funcionamento da
norma: a vingança e a maior ameaça do monstro é seu potencial de monstrificar de volta, ou
seja, de despertar e exaltar no outro a monstruosidade que leva dentro.
Esse episódio em que a autora responde a uma das mais cotidianas e recorrentes
interações sociais é narrado como um tipo de batalha: trata-se de uma prática de “resistência,
arma, punhal, fuzil” mobilizada desde o fracasso e sem teor reivindicativo. Nessa passagem a
vingança é o principal vetor de instigação a impulsionar a sensação generalizada e ambígua de
vitória frente ao fracasso inexorável que a travesti representa perante às categorias delineadas
e projetadas naquela interação. Entretanto, é importante frisar que essa vingança não pretende
abalar a macroestrutura política. Utilizando o espaço urbano como seu campo de batalha
pessoal, Rodríguez simula um gesto desautorizado que agencia o horror e o medo, a ameaça
que representa está embebida em saberes ocultos e, na melhor das hipóteses, suas vinganças
micropolíticas podem vir a nutrir a sua comunidade, oferecendo-lhes alternativas e ferramentas
para navegar espaços públicos.
De maneira semelhante, o lobisomem-trans* no zine Quimer(d)a #2 mobiliza saberes
dissidentes e pequenas “vinganças” que têm efeitos micropolíticos localizados contra a cis-
heteronorma. No trecho disposto abaixo, uma interação social cotidiana dentro de um ônibus
se converte em uma guerra simbólica:
204
Nessa história em quadrinhos a personagem principal não “é” um monstro, senão que
se monstrifica quando sua masculinidade diverge daquela regulada pela cis-
heteronormatividade. Ou seja, a monstruosidade selvagem do lobisomem-trans* representa de
antemão um fracasso da masculinidade hegemônica indesejada da qual se vinga. Ao longo da
história, a ininteligibilidade da personagem explicita ao mesmo tempo a pretensa inexistência
da transmasculinidade e a inusitada resposta (e aqui estou!) que corporifica essa
impossibilidade. Em uma batalha simbólica de pequena relevância e que não chega a impactar
as macroestruturas identitárias, as masculinidades rivais utilizam as armas de suas respectivas
culturas: a força física, associada à soberania masculina hegemônica, se estabelece inicialmente
como vantagem, entretanto, com a inversão dos paradigmas da disputa, o investimento da
masculinidade cisgênero é desmobilizado diante da automonstrificação que, acolhendo a
própria alteridade e o fracasso como armas, localiza a fragilidade de seu oponente e ataca com
o “toque gay” representativo dos “saberes marginais”.
O ressentimento, a raiva e a vingança são os afetos que inspiram esse duelo não-
reivindicativo e, assim como o sorriso monstrificante e monstrificador de Rodríguez, a carícia
da alteridade se converte em ameaça de contaminação/monstrificação e garante a vitória. A
evocação do medo de contaminação, uma das principais forças ocultas da monstruosidade, e a
real possibilidade de contaminação é referenciada de forma ainda mais explícita e com o mesmo
caráter de guerra social cotidiana no poema em que Rodríguez se mune como vetor de
contaminação por HIV: “Me aferro a esos hombres que cuando me miran con odio me desean
para hacerme desangrar y no saben que aquí los espero para eso, para mesclar sin que ellos
lo sepan, mi sangre con la de ellos, porque soy travesti y todo lo que me hace un hombre yo lo
puedo hacer a ellos y mejor”88 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data / sem paginação).
Em outra passagem semelhante a esse trecho, os riscos e as vulnerabilidades de seu
corpo se convertem em arsenal inusitado: “llegaron a contarme que el SIDA te está devorando
lentamente mientras a mi me hará escribir poesía. Esa será mi venganza” 89 (RODRÍGUEZ,
Contodomisida, s/n). Produzindo a partir da ferida e incorporando o próprio fracasso num duelo
vingativo como arma contra os sistemas imperantes, essas proposições agenciam a
contaminação como prerrogativa monstruosa sudaca. Esses saberes ocultos não prometem mais
88
Tradução: “Me agarro a esses homens que quando me olham com ódio me desejam para fazer-me
sangrar e não sabem que aqui os espero para isso, para misturar sem que eles saibam, meu sangue com o deles,
porque sou travesti e tudo o que um homem faz contra mim eu posso fazer contra eles e melhor”.
89
Tradução: “chegaram a me contar que a AIDS está te devorando lentamente enquanto no meu caso
me fará escrever poesia. Essa será minha vingança”.
210
o nome próprio que me prescreva Ciência nenhuma”. Nessas passagens Shock cita as
instituições (o vaticano, o jurídico, a ciência, a linguagem etc.) somente para reiterar seu
despertencimento e articula uma versão monstruosa de si que escapa ao principal dispositivo
de regulação sob as quais essas entidades se fundamentam: a identidade.
À primeira vista, o poema em questão soa propositivo, pois “reivindica”
reiteradamente, ou seja, emprega o vocabulário de grupos e organizações que atuam, através de
agenda política institucional, em prol da visibilidade e do reconhecimento dos direitos
LGBTTQI enquanto categoria excluída e desamparada pelo estado. Entretanto, a reivindicação
de Shock não é pela criminalização da transfobia ou pela despatologização das identidades
trans*, nem pela inclusão no matrimônio igualitário ou pela lei de identidade de gênero: a autora
se posiciona contra os pilares identitários de regulação e controle biopolítico incidindo
criticamente nos sistemas por eles amparados, como o carcerário, o militar, o científico, o
matrimonial, o político etc. Ou seja, a autora clama pela permanência num estado liminar que
conflita com a noção de pessoidade.
É pertinente salientar que Shock forja um emprego irônico da linguagem de que se
apropria, posto que aquilo que reivindica seria uma impossibilidade: a monstruosidade não é
capaz de operar nos termos legais que regulamentam a pessoidade e a cidadania, ou seja, não
poderia ser articulada enquanto identidade civil, já que desafia os principais critérios da
identificação. Quando reivindica ser um monstro, em vez de propor mudanças no sistema
imperante, a autora “reivindica” a sua própria exclusão e alienação, ou seja, não está de fato
requerendo, senão recusando a coerência, a estabilidade e a respeitabilidade como as únicas
formas de existência diante do estado. Com esse gesto, Shock antecipa a própria captura no
elástico tecido social do estado neoliberal e arquiteta uma via de fuga das políticas de
visibilidade e de reconhecimento através das quais as dissidências correm o risco de assimilação
e de neutralização, conforme argumentarei mais adiante.
Um dos efeitos desse poema é a explicitação da função da identidade enquanto aparato
biopolítico de regulação (ferramenta histórica de criminalização, patologização e controle
social) que serve ao estado. Aqui Shock evoca o debate sobre os riscos de assimilação da
dissidência nas políticas públicas que regulam a identidade e recusa as negociações que tendem
a docilizar corpos não-binários e domesticar sexualidades através da nomeação e do
reconhecimento social nos termos da hegemonia. Nesse sentido, pode-se dizer que a autora se
apropria de terminologias e brinca com elementos institucionais e jurídicos de identificação e
de controle social (como o número do RG) objetivando expor o funcionamento dessas
214
estruturas. Complementarmente, esse poema pode ser analisado junto ao projeto DNI: De
Natura Incerta, que integra o Museo Travesti del Peru de Giuseppe Campuzano, em que a
artista cria documentos de identificação que incorporam a travestilidade como identidade oficial
no registro civil.
O Museo Travesti del Peru é “um meio termo entre performance e pesquisa histórica”
(CAMPUZANO; LÓPEZ, 2013). Intersticial, promíscua e irreverente às disciplinas, a proposta
da artista representa a travestilidade ao mesmo tempo como impossibilidade identitária e como
existência que permanece em transformação desde o período pré-colonial: colecionando,
criando e expondo um arquivo que comprova a presença, a permanência e as tentativas de
aniquilação/captura de corpos análogos aos de travestis ao longo da história, a artista imagina
formas de aludir à travestilidade a situando em um contínuo histórico fracionado e, ao mesmo
tempo, cria representações que logram escapar o fardo de produzir aquilo que alegam
meramente representar.
Com estratégias representativas singulares e distintas daquelas que clamam por
visibilidade e reconhecimento, o Museo Travesti critica o modelo científico, a história e a
produção de conhecimento ocidental que apagaram as travestis dos registros oficiais.
Entretanto, Campuzano efetua essas críticas sem oferecer contornos nítidos à categoria à qual
alude: entendendo “identidade” enquanto instrumento colonizador de premissas genocidas, o
projeto em questão explicita a exclusão da dissidência e, ao mesmo tempo, recusa a assimilação
da travestilidade enquanto identidade reconhecível no âmbito institucional.
A provocação de Campuzano em DNI é um exemplo excepcional de estratégia contra-
reivindicativa: a crítica se sustenta através do estranhamento produzido pelo contraste entre o
215
90
Tradução: “Não vamos contar coisas da nossa espécie. Isso não é um zoológico. Tampouco é um
circo. Mas passem e vejam”.
91
Podemos recordar a icônica figura circense da “mulher barbada” e também a história de Sarah
"Saartjie" Baartman, proveniente do povo Khoisan (África do Sul), cujo corpo passou, vivo e morto, por diversas
instituições científicas (museus e laboratórios) e de entretenimento (zoológicos e circos).
218
“dois viados trans de Buenos Aires”) sugerem que as corporalidades trans* escapam à espécie
humana e se codificam em signos ininteligíveis à humanidade, marcando assim a existência de
uma cultura visual própria que serve aos propósitos internos da comunidade dissidente e não
manifesta o desejo de compartir da história oficial.
É pertinente evidenciar que nessa passagem o convite “passem e vejam” reivindica
certa opacidade e ininteligibilidade (a recusa em explicar-se, bem como a recusa de um quadro
visual identitário) e presume, ao mesmo tempo, invisibilidade (talvez aludindo à ideia de
“passabilidade”) e hipervisibilidade (dissidência como espetáculo e excesso no campo visual),
uma característica fundamentalmente monstruosa:
O registro civil não corresponde ao corpo ali presente, não remete a nenhuma
identificação real da pessoa trans*, não serve no processo de produção daquela
subjetividade que não para constranger e marcar aquela humanidade como diferente.
A “Carteira de nome social para Travestis e Transexuais” criada pelo decreto n°
49.122, explicita visualmente essas marcas de monstruosidade, pois ao invés de
propor mudanças nas lógicas de identificação civil, instaura um documento de
segregação que mantém as normas vigentes. (PEREIRA, 2015, p. 70)
Também nesse sentido ressalta-se que reivindicar o direito à identidade nos termos
do estado significa ser conivente com uma noção de sujeito que privilegia a hegemonia e produz
novas outrificações, conforme explicado por Butler: “Com efeito, a lei produz e depois oculta
a noção de sujeito perante a lei, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa
básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei”
(BUTLER, 2003, p.19). Além disso, a visão reformista, que reivindica a inclusão da dissidência
nas estruturas hegemônicas por via da expansão da elegibilidade no sistema, encontra meios
para formalizar a existência dessas pessoas dentro do aparato burocrático e jurídico da
cidadania, mas deixa escapar a densidade do problema que a inexistência social impõe à
sociabilidade.
Investigando os paradoxos e considerando as tensões constitutivas entre a relação
estabelecida entre o estado e a dissidência, em seu artigo É possível um ESTADO* que abarque
a multidão queer? Breves considerações sobre a política sexual na biopolítica contemporânea
(2014), Fátima Lima vislumbra possibilidades e limites nessas propostas de negociação,
atentando para a necessidade de prever a captura da dissidência e objetivando preservar sua
potência desestabilizadora:
Mais do que afirmar que o Estado é aberto às políticas queer ou rarefeito a elas, é
interessante refletir, por dentro da noção de Estado, as tensões e alargamentos nos
quais as possibilidades queer são capturadas e/ou mantém a sua potência de máquina
de guerra, suas resistências e singularidades como expressões desestabilizadoras,
principalmente das performances de gênero. (LIMA, 2014, p.3)
220
Se, por um lado, uma proposta de recusa radical (separatismo) deixaria intacta a
soberania do sistema estatal, por outro lado, o alargamento das políticas identitárias vigentes
seria insuficiente, visto que engendraria uma armadilha assimilacionista que, fantasiada de
transgressão, mantém e atualiza estruturas que se regeneram sempre através da criação de novos
marcos hierárquicos e outrificantes. De que forma, então, o separatismo e seus projetos
micropolíticos sustentados pela recusa, pela negação e pela premissa de fracasso poderiam
impor ameaças às engrenagens da hegemonia?
Segundo Haraway, é preciso imaginar figurações feministas que ao mesmo tempo
penetram no imaginário hegemônico impactando os sistemas imperantes e resistem aos fardos
e capturas da representação:
Eu acredito que precisamos ter figuras feministas da humanidade. Elas não podem ser
homem ou mulher; elas não podem ser o humano como a narrativa histórica
apresentou o universal genérico. Figuras feministas não podem, finalmente, ter um
nome; elas não podem ser nativas. A humanidade feminista precisa, de alguma forma,
ao mesmo tempo resistir à representação, resistir à figuração literal e ainda assim
irromper em tropos novos poderosos, novas figuras de linguagem, novas guinadas de
possibilidade histórica. (HARAWAY, 2004, p.47)
O monstro, enquanto figura necessariamente clandestina que não goza do status pleno
de sujeito, se encaixa no apelo que Haraway faz por um tropo feminista capaz de resistir à
própria clausura na representação. Complementarmente, é importante ressaltar que a
monstruosidade não pode ser circunscrita e aprisionada em posicionamentos separatistas (que
teoricamente mantém inabaladas as estruturas soberanas), pelo contrário, o monstro, apesar de
ininteligível, é visível e habita o mesmo plano que o Humano. A função do abjeto para a
constituição epistêmica do sujeito (a partir de sua expulsão das operações dialéticas) se
desdobra no retorno do monstro a esse sistema, do qual se faz indispensável, seja objetivando
a manutenção das fronteiras da normalidade (regulação do espectro do Humano) ou trazendo
ameaças de desestabilização da categoria. Dessa forma, diferentemente do abjeto (figura do
separatismo pleno), a criatura monstruosa se insere forçosamente nas categorias de pensamento
socialmente inteligíveis, ou seja, não é mantida fora do domínio humano, mas em sua
limiaridade, mediando e criando pontes entre os termos das relações dialéticas que sustentam
pessoidade.
Ao mesmo tempo em que evoca o domínio dos seres abjetos (aqueles expulsos do
Humano e que compõem o exterior constitutivo ao domínio do sujeito), o monstro transita entre
mundos e categorias, impactando os sistemas vigentes: “Se o abjeto não é inteligível na
episteme social, o monstro, por outro lado, ingressou nesse território e tem certo
221
O que causa a agressiva reação com que essas pessoas são tratadas não é o fato de elas
se apresentarem como “mulher de verdade”, “homem vestido de mulher” ou qualquer
coisa do tipo, mas o fato de já serem compreendidas dentro de uma categoria
(científica, religiosa ou jurídica) de desvio, de “monstruosidade” que legitima e
autoriza a violência contra elas. (LEITE, 2012, p.566)
[...] se essas pessoas estão categorizadas no campo dos monstros sexuais, e esses só
são inteligíveis ora como criminosos, ora como doentes, como torná-las inteligíveis
fora desses limites? Como escapar desse movimento pendular? Será que a inclusão
dessas pessoas na lógica da segurança médica da sociedade de controle, tornando-as,
por exemplo, “agentes de prevenção”, é capaz de fazê-las transitar da categoria de
monstros para a de humanos ou apenas reforça a estigmatização dessas através da
íntima relação simbólica, novamente, com a doença? Mas creio que, antes de tudo,
necessitamos não apenas retirar determinados seres da categoria de monstros e alocá-
los no campo dos “humanos”, necessitamos repensar os limites da própria categoria
“humano”. (LEITE, 2012, p.567)
e incompleta, a autora escapa à lógica que opõe natureza e cultura, empregando o contínuo
“naturezas-culturas” na formação da monstruosidade travesti.
De maneira semelhante, reorientando o discurso da ciência sexual que associa
“natureza” ao biológico e à diferenciação sexual, Rodríguez recupera a conexão entre natureza
e selvageria, incivilidade e o incapturável, para forjar uma travestilidade animalizada que
pretende escapar aos processos de domesticação, regulação e vigilância do estado. Essa
proposta se explicita, por exemplo, em sua desidentificação com King Kong, bem como na
ocasião em que protestou fantasiada de animal segurando um cartaz com os dizeres: “sou
travesti: um animal contra o neoliberalismo Marri Chiweu!” (a palavra mapuche Marichiweu,
aqui referenciada, significa “dez vezes venceremos”).
Sé que cuando vea una película voy a llorar. Holliwood destruyó la ilusión de mi
infancia. Siempre los malos de las películas morían o quedaban tullidos, ninguno se
salvaba de su cruel destino. Cuando vi morir a King Kong supe que era a mí a quien
la industria estaba matando. No se puede ser tan grande, tan fea y vivir en el centro
de la ciudad93. (RODRÍGUEZ, 2015, p.70)
92
Do original: “Las políticas públicas y la diversidad sexual nunca me van a poder constituir a mi
porque yo soy mucho mas monstruosa, soy perversa, me gusta el pico, me gusta el poto, y estoy escribiendo de
toda esa mudre que da verguenza saber, que es muy pobre saber, que es antihigienico saber”.
93
Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.
Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando
eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia
e viver no centro da cidade”.
225
“The discursive tie between the colonized, the enslaved, the non-citizen and the
animal – all reduced to a type, all others to rational man, and all essence to his bright
constitution – is at heart to racism and, lethally, flourishes in the entrails of humanism”
(HARAWAY, 2008, p. 14)
Penetrar o labirinto de barreiras à experiência negra nos trópicos era tão estranho, que
um filme de horror bizarro sobre um macaco gigante chegou a se estabelecer como
alegoria underground da experiência negra. King Kong poderia ser descartado como
um mero pesadelo racista, de fato, na Alemanha era King Kong und die Weisse Frau.
[...] No final, Kong se tornou uma figura mítica duradoura, parte “preto mau” e parte
vítima universal da exploração. (CRIPPS, 1977, p.278)
[...] está repleta de criaturas que não são macho nem fêmea: lagartas monstruosas com
tentáculos gosmentos e penetrantes, mas úmidas e rosas, como bocetas, larvas que
parecem pequenos caralhos que se abrem e se tornam vaginas dentadas para decapitar
a equipe. Outras se aproximam mais da iconografia de gênero, mas dentro do domínio
da sexualidade polimorfa: aranhas peludas, massas de brontossauros cinza e idênticos,
parecendo uma manada de espermatozoides estabanados. (DESPENTES, 2010,
p.106)
228
Despentes enxerga King Kong e seu habitat como uma espécie de caos natural que
antecede a divisão dos gêneros e, nesse sentido, vê o primata como uma figura híbrida isenta
de sexo e de gênero:
King Kong se torna uma metáfora da sexualidade antes da separação dos gêneros
politicamente impostos no final do século dezenove. King Kong está além de macho
e de fêmea. Está atado ao link entre homem e besta, adulto e criança, bom e mau,
primitivo e civilizado, negro e branco. É híbrido, antes da imposição do binário.
(DESPENTES, 2010, p.106)
[...] ver a animação como uma abordagem que inevitavelmente facilita uma diferença
representacional, e que interroga intrinsecamente as posições ortodoxas, ideologias
embutidas, e a certeza epistemológica em si. [...] Ademais, permitir um espaço para
que personagens ou fenômenos operem em termos e condições mais simbólicos e
metafóricos, convida a um maior grau de interpretações possivelmente bastante
carregadas de emoção ou de abstracionismo. [...] O bestiário animado corporifica a
abertura de um debate e não a fixação de conclusões. (WELLS, 2009, p.5)
229
Para o autor, por se tratar de uma animação e não de um animal real, King Kong estaria
mais predisposto a abarcar projeções ambíguas ou conflitantes no que diz respeito ao sexo, ao
gênero e à sexualidade. Nessa esteira, pode-se dizer que os trabalhos de Rodríguez, assim como
os projetos analisado nos capítulos anteriores, preferem a ficção à realidade, privilegiam a
imaginação à representação mimética e, assim, abrem brechas criativas que permitem imaginar
lugares e corpos outros.
Observa-se que a King Kong travesti de Rodríguez alude ao não/humano manejando
precisamente os mesmos termos explicados por Lugones: aqui o desumanizado é também
racializado, não correspondente aos padrões de gênero e representativo de selvageria. Há,
entretanto, uma diferença entre essas duas propostas. Se por um lado Lugones insiste na
importância de resistirmos à desumanização, nos zines selecionados para essa pesquisa as
pessoas trans* e travestis a reconhecem como constitutiva das histórias de seus corpos e
vislumbram em sua apropriação uma significativa estratégia de resistência calcada na
reivindicação da autonomia de sua representação e de sua história. Ou seja, em vez de reificar
esses mesmos termos que justificaram o genocídio, a exploração e o abuso de corpos
racializados e não gendrados, em seus projetos autônomos as pessoas trans* e travestis sudacas
reformulam as categorias não-humano e Humano enfatizando uma outra perspectiva, que é
inaugurada pela autorrepresentação imprecisa dos corpos dissidentes até então silenciados.
Conforme anteriormente mencionado, apropriando-se da interpelação injuriosa
“não/humano”, travestis e pessoas trans* tecem também um laço indexical com outros corpos
que foram forçosamente submetidos a essa categoria e, a partir desse vínculo, se projetam num
complexo e fragmentado campo histórico que lhes permite disputar a escrita e a legitimidade
das histórias de subjetividades subalternadas, racializadas e dissidentes da matriz heteronormal.
Esse exercício subverte completamente o emprego exordial da interpelação injuriosa, visto que,
segundo Lugones, a desumanização visava originalmente silenciar e deslegitimar culturas que
destoavam dos princípios e crenças dos colonizadores. Nesse sentido, Lugones explica que o
propósito da imposição de um sistema colonial de gênero era o de hierarquizar os corpos de
forma a privilegiar aqueles considerados plenamente humanos, que eram os civilizados
(europeus, brancos e burgueses). Ou seja, apesar da fachada da “missão civilizatória”, “tornar
os/as colonizados/as em seres humanos não era uma meta colonial” (LUGONES, 2014, p. 938),
tratava-se, senão, de uma justificativa para a “colonização da memória e, consequentemente,
das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual,
230
com a terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica” (LUGONES, 2014, p.938).
Assim sendo, apoiando-se no pretexto clássico e naturalizado de dominação do
humano sobre o não/humano (uma herança do pensamento colonial ainda latente e pouco
questionada na contemporaneidade) os “humanos e civilizados” garantiam a legalidade de
práticas de tortura, exploração e genocídio de seus outros constituintes, visando lucros materiais
através do trabalho escravo e da exploração direta, a imposição de sua cultura e a
implementação de suas “verdades”, dentre elas, o sistema que sustenta a matriz binária e
heteronormativa. Pode-se dizer que os mecanismos que privilegiam os saberes brancos e
eurocêntricos são interrompidos e expostos com a desidentificação de Rodríguez com King
Kong, uma vez que ela permite situar pessoas trans* e travestis na história latino-americana,
validar suas perspectivas e culturas e explicitar a violência cistêmica que naturalizou, por
exemplo, o travesticídio. Esse lócus fragmentado da memória subalterna se torna, assim, um
terreno fértil repleto de referenciais de autorreconhecimento cultural e histórico que nutrem as
produções dissidentes sudacas.
Relacionando raça à noção de colonialidade do gênero, argumentei que a King Kong
travesti investe na metáfora animalizada para citar as punições e o genocídio que
impossibilitaram a existência ou a inserção de corpos transfemininos na sociedade, resultando
na monstrualização (processo e efeito da hipervisibilidade e do estranhamento no domínio
visual) que, por sua vez, agencia um regime contemporâneo de aniquilamento desses sujeitos
inoperantes segundo as normas coloniais de inteligibilidade de gênero. Complementarmente,
pode-se dizer que a hipervisibilidade citada por Rodríguez (“Não se pode ser tão grande, tão
feia e viver no centro da cidade”) e os “problemas de visão” referenciados, por exemplo, no
zine Ofensivo Trans se dão através de um estranhamento tipicamente associado à forma como
são percebidas as corporalidades visivelmente trans* e/ou travestis (aquelas que não dispõem
de “passabilidade”), especialmente as que se encontram no espectro da transfeminilidade.
Para efetuar uma análise profunda de como essa criatura explicita esse efeito, cabe
observar a forma como a versão travesti de King Kong recicla e agencia os componentes de
sexo e gênero enredados em raça nas leituras do filme que a antecedem. Quais discursos se
edificaram em torno da identidade racializada e gendrada do primata e de que forma a versão
travesti do monstro transforma esses componentes? Para atentar a essas questões, é pertinente
primeiramente investigar como foram historicamente projetados gênero, sexo e sexualidade em
231
sua intersecção com raça na figura de King Kong, para, então, enredá-los criativamente à versão
travesti da criatura.
Rhona Berenstein identifica que o gênero dos monstros foi historicamente indiferente
nas análises cinematográficas. Segundo a autora, por algum tempo a crítica dispensou
referências específicas ao gênero de King Kong e optou por descrições vagas e imprecisas, que
aludem à criatura como sendo algo diferente, nunca antes visto (BERENSTEIN, 2015, p.151).
Por outro lado, em seu artigo Monster as Woman, Karen Hollinger defende que o monstro foi
tradicionalmente percebido como inquestionavelmente masculino: “críticas/os foram lentas/os
em investigar conexões entre as representações dos monstros de horror e da imagem feminina
porque o monstro de horror foi tradicionalmente apresentado como masculino” (HOLLINGER,
2015, p.346). De acordo com Hollinger, a masculinidade da criatura não era contestada,
tampouco se afirmava uma neutralidade consistente a esse respeito, devido à tradição
cinematográfica de horror que inscrevia monstruosidade automaticamente como análoga à
masculinidade.
Berenstein menciona que, quando através da crítica feminista o gênero e a sexualidade
se estabeleceram como elementos a serem explorados nas análises de filmes de terror, teorias
pautadas na psicanálise começaram a eclodir interpretando a ausência de genitais do primata
como símbolo e, ao mesmo tempo, rejeição/medo da castração. Se, por um lado, o sexo da
criatura em King Kong é editado do registro visual (não há representações de vagina, seios,
testículos ou pênis), por outro, pode-se dizer que, substituindo uma análise puramente especular
por outra enredada na narrativa do filme, mais elementos (além dos genitais e de características
secundárias) despontam instruindo sobre sexo e gênero, especialmente levando em
consideração as engrenagens visuais orientadas pelo regime cis-heterossexual e a tradição da
economia simbólica que as sustenta.
Argumentou-se, por exemplo, que somos compelidas/os a projetar gênero masculino
na criatura devido à sua agressividade, à virilidade, à sua estatura, à quantidade de pelos que
tem no corpo e ao poder que retém. Nesse sentido, Giardina coloca que: “o Kong é um gorila,
mas ele é também uma coleção exagerada de significantes tradicionalmente masculinos: voz
grave, músculos enormes, altura de torre, pelo desgrenhado. Não há uma única parte dele que
seja macia, gentil ou delicada” (GIARDINA, 2005, p.188). Analisando as conexões feitas pela
232
autora, pode-se dizer que o público é induzido a interpretar o sexo e o gênero de King Kong
como masculino devido às engrenagens binaristas da cultura visual, as quais opõem a criatura
à feminilidade incontestável representada por Ann. Dessa forma, a masculinidade de Kong
passa a ser definida pela ausência da feminilidade excessivamente reiterada e codificada na
personagem com a qual contracena e que, em algumas instâncias, deseja. O contraste entre a
criatura e a donzela se traduzem no olhar ocidental opondo masculinidade à feminilidade em
diversos âmbitos comportamentais (estilização de gestos), estéticos e fisiológicos: a suavidade
das vestes de Ann versus a rugosidade da superfície tátil do primata, os gritos agudos versus
urros graves, a pele lisa versus camada de pelos, pequenez versus estatura colossal, os cabelos
loiros e a pele branca versus pele negra e pelos escuros. Todo significante passa a ser percebido
como alteridade uma vez instaurada a estrutura visual binária, que hierarquiza os termos
simultaneamente interdependentes (um só existe em relação ao seu oposto) e excludentes (as
categorias se definem através da exclusão de termos que compõem as categorias opositoras).
Aplicando essa lógica (que atribui gênero comparando a criatura à personagem
feminina) à figura da King Kong travesti, argumenta-se que a travestilidade se estabeleceria em
oposição à feminilidade cisgênero, mas em vez de operar como “outro”, organiza-se enquanto
uma alteridade indesejada no interior da categoria “mulher”: monstro. Argumenta-se que a King
Kong travesti emerge como intersticial e monstruosa porque hibridiza os termos “feminino” e
“masculino”, visto que ao mesmo tempo em que a travestilidade em questão deseja e performa
feminilidade, também arrasta essa masculinidade historicamente depositada na recepção de
King Kong. Em outras palavras, no caso da King Kong travesti, sua aproximação (desejo) e
simultâneo desvio da feminilidade, combinados à designação histórica de masculinidade à
criatura, são os fatores que lhe atribuem monstruosidade. Nessa perspectiva, a travestilidade da
criatura contrastaria com a mulheridade-cis da personagem feminina sem necessariamente se
opor a ela, dando novos contornos à narrativa.
Se na desidentificação de Rodríguez o componente que confere dissidência, alteridade,
hipervisibilidade e vulnerabilidade é a escala da mulheridade cisgênero, o inimigo do monstro
(o componente que o abjetifica) passa a ser justamente a norma que informa cisgeneridade
compulsória, de forma que a noção de feminilidade nela implicada entra em disputa. Como
propulsora desse embate de categorias, pode-se dizer que essa criatura desnaturaliza a norma
cis-heterossexual, expondo as premissas que a sustentam (como a colonialidade do gênero e o
epistemicídio travesti/trans*), bem como os artifícios através dos quais essa norma se instaura,
se atualiza e se mantém (como o repertório visual mainstream e o travesticídio). Nesse sentido,
233
pode-se dizer que a autora nos convida a olhar criticamente para a economia simbólica do
imaginário imperialista e a atentar à relação colonial que os códigos da feminilidade cisgênero
branca do repertório cinematográfico estabelecem com os corpos dissidentes sudacas
racializados. Esse debate será analisado mais adiante.
Quando Rodríguez conta que “não se pode ser tão grande, tão feia e viver no centro da
cidade” relaciona também a hipervisibilidade à propensão à morte, uma realidade que King
Kong e as travestis compartilham. Nesse fragmento, a autora sugere que o padrão hegemônico
de feminilidade, regulado por imaginários imperialistas institucionais (como o repertório visual
de Holliwood) e pautado na cisgeneridade, é desafiado e desestabilizado por corpos que
introduzem outras possibilidades de feminilidade, como os de travestis e pessoas
transfemininas. Ressaltando a negação e o excesso (“não se pode ser tão grande, tão feia [...]”)
de sua feminilidade, a autora exalta a norma que sustenta a feminilidade holiwoodiana branca
e cisgênero (a delicadeza, os gestos contidos, a pele lisa e sem pelos, as dimensões do corpo, a
estatura etc.) e comenta acerca da tentativa de reiteração da mesma via aniquilação de
representações que a ameaçam: “Quando eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a
indústria estava matando”. Fora de seu habitat, em um ambiente inóspito, o monstro sequestrado
não consegue se esconder e se torna um alvo fácil: a escala humana lhe oferece, por contraste,
dimensões gigantescas e, como efeito do exagero de suas proporções, a sua alteridade e o seu
despertencimento são amplificados.
Em outras palavras, o descumprimento da restrita norma estética e performativa
(estilização de gestos) da feminilidade cis torna hipervisíveis não só os corpos trans*, mas
também outras corporalidades desviantes do espectro feminino, como as feminilidades gordas,
deficientes, racializadas etc. A esse respeito, na publicação autônoma (sem editorial) La Cerda
Punk, a autora e ativista chilena Constanza Alvarez Castillo explicita, numa passagem dedicada
a Cláudia Rodríguez, como esse local monstruoso é compartilhado por diferentes feminilidades
desviantes:
Corpas para odiar, corpas estrangeiras a si mesmas, que aparentemente nada têm em
comum, corpas unidas pelo monstruoso, ali onde se recicla todo o lixo da
heterossexualidade. Nós, corpas doentes, aparentemente inúteis para qualquer
revolução. Nos encontramos na selva de cimento, nas ramas entre letras de contos
tristes sobre o que nunca pudemos ser, na vontade de tomar tudo e destruir, armando
pouco a pouco nossas corpas com todas estas migalhas, lambendo nossas feridas
deixando de ser minhas para converter-se em nossas... Algumas nascemos com vagina
e nos chamaram “naturalmente” mulheres, socializadas para calar, servir, parir,
aguentar, para ser belas, para ser de alguém, do patriarcado. Outras nasceram com
234
pênis, outras com algo que não pode ser nenhuma das anteriores, e nem sequer tiveram
nome para existir... Claudia... quem matarão primeiro, você ou eu? Te escrevo como
sua amiga, a cono, a lésbica feia e barriguda, essa que gosta de mostrar as pernas e a
pança. Por acaso não percebe que se notam os pneus e as estrias? E essa, a travesti por
acaso não percebe que se notam seus pelos? Por acaso não percebe que se nota o
homem? Por que não se cobrem? Por que não desaparecem? (CASTILLO, 2014,
p.101-102)
Em seu texto, Castillo aponta para locais de encontro das feminilidades dissidentes,
que não correspondem às imagens de mulheridade advindas da cultura imperialista ocidental,
em especial o imaginário de Holliwood. Conforme indicado pela autora, esses corpos são
vulnerabilizados pela hipervisibilidade no domínio público e se tornam alvo da interpelação
excessiva – que é, sobretudo, um artifício de regulação biopolítica.
Tendo em vista as colocações de Castillo, em especial a passagem: “E essa, a travesti
por acaso não percebe que se notam seus pelos? Por acaso não percebe que se nota o homem?”,
pode-se dizer que a estranheza ou desvio de feminilidade articulados por Rodríguez em sua
desidentificação com King Kong diz respeito não só à incoerência entre sexo e gênero (desvio
da matriz de inteligibilidade) num plano teórico, mas também a excessos de características
culturalmente associadas à masculinidade no campo especular.
Nesse sentido, é possível interpretar a estatura de King Kong travesti (“Não se pode
ser tão grande”) como símbolo de masculinidade e relacionar sua aparência física (“Não se pode
ser tão feia”) com a presença de traços excedentes de masculinidade na composição de sua
feminilidade desviante (outros fatores como, por exemplo, a quantidade de pelos no corpo, a
desubicação diaspórica, a racialização, o comportamento descomedido, a agressividade, a
gravidade de sua voz e a proporção de seus membros também são evocados de forma adjacente).
Dessa forma, se, como apontado por Castillo “se nota o homem”, a King Kong travesti se torna
um referente monstrificado do interstício que contamina masculinidade e feminilidade.
Nesse sentido, ao apropriar-se da figura de King Kong, Rodríguez ao mesmo tempo
transforma e faz ecoar a racialização e a masculinidade historicamente depositadas nas análises
e interpretações críticas dessa representação e no imaginário cultural dominante. Através dessa
desidentificação, a autora levanta as partículas que se sedimentaram solidificando a figura de
Kong no repertório visual ocidental como estereótipo racista do macho negro e as rearranja:
conforme argumentando, na desidentificação de Rodríguez com a criatura a racialização opera
abrangendo não só a negritude, mas a população nativa andina vitimada pela colonização das
Américas, ao passo que a masculinidade tipicamente associada ao primata passa a operar como
um rastro da transição de gênero, ou seja, como masculinidade-fantasma presente (seja como
235
Comumente, nessas cenas (mas não sempre – um ponto ao qual retornarei em breve),
o monstro é codificado como macho, a vítima, fêmea. Tipicamente, a vulnerabilidade
e sexualidade dela são acentuadas porque ela é uma donzela atraente “usando uma
camisola ou um vestido de noiva ou algum outro traje de cores leves”. (GRANT, 2015,
p.5)
É pertinente salientar que no caso de King Kong a raça (a negritude é projetada pela
lente racista que relaciona a complexão escura da criatura e sua “primitividade” à negritude) é
um elemento chave que instrui acerca da interpretação de sexualidade na cultura ocidental. É
imperativo observar que, através da lente cis-hetero-reprodutiva branca, King Kong
representaria uma masculinidade viril amparada por estereótipos que reiteram a sexualidade do
237
homem negro como sendo violadora e abusiva. A esse respeito, Erb intersseciona (concebe de
forma inseparável) raça, gênero e sexualidade na representação da criatura animalizada quando
menciona a “histórica representação ocidental da sexualidade masculina negra como bestial
devido à sua natureza excessiva e predatória, especialmente em relação a mulheres brancas”
(ERB, 2009, p.4).
Complementarmente, uma análise mais profunda de como esse estereótipo racista se
sustentou no imaginário cultural permite relacionar a figura do “homem negro violador”
mencionada por Erb à ansiedade e ao medo que a branquitude tem da miscigenação, uma vez
que é a violação da feminilidade branca, através de uma prática hetero-reprodutiva, que
mobiliza ansiedade em torno dessa representação: “a atração do monstro Kong por Ann é
transgressiva: King Kong, uma figura híbrida, uma besta parecida com o homem, ameaça o
tabu do sexo interracial” (ERB, 2009, p.165). Neste sentido, é mobilizado o medo da
“contaminação” (característica fundamental da monstruosidade), que se soma às demais
ameaças que a criatura representa.
Importa ressaltar que a interpretação de King Kong como representativa da figura do
homem negro violador serve ao propósito de sustentar o regime cis-heterossexual racista,
beneficiando uma representação da masculinidade branca triunfante. Nesse sentido, algumas
críticas identificam que a heterossexualidade compulsória é ao mesmo tempo naturalizada,
mantida e gerada por tramas de filme de horror tradicionais que regulam o regime identitário:
Nessa perspectiva, o monstro passa a ser interpretado como o desejo selvagem primal
ou “impulso sexual incontrolável” (ameaça de estupro potencializada pela racialização da figura
do “homem negro selvagem”) a ser combatido pela noção de civilidade implicada na relação
cis-heterossexual branca consentida (rotulada de amor legítimo) entre a donzela e o herói que a
salva. Argumenta-se, entretanto, que para acessar essa interpretação combativa da
obsolescência do herói branco (representado tanto pelo par romântico de Ann como pelo arsenal
do exército que abate o animal) é preciso editar ou suprimir do enredo a afinidade, a amizade e
a empatia sustentadas entre a figura feminina e o primata.
238
Não devem ser interpretados como uma erupção da sexualidade animal normalmente
reprimida do homem civilizado (o monstro como duplo para o espectador masculino
e os personagens do filme), mas como temerosos do poder e da potência de um outro
tipo de sexualidade (monstro como duplo da mulher). (WILLIAMS, 2015, p.22)
“It is obvious that no mere beast provoked such a depth of response in Fay and
others, but rather the intimations of something other, within, something frightening,
incredible, even transcendent” (BERNARD 1976, p. 130 apud WELLS, 2009, p.5).
239
busca pela feminilidade que lhe foi negada. Ou seja, o momento em que King Kong merece
morrer é quando desestabiliza as categorias que sustentam a noção de pessoidade (vinculada à
humanidade) ao colocar em risco a feminilidade tal como a conhecemos: “Não foram os aviões,
foi a Bela que matou a fera”. Essa perspectiva exalta a forma como a mulheridade cis, amparada
pelo regime cis-heteronormativo e seus dispositivos de manutenção (o exército), está implicada
na abjeção, na monstrualização e no travesticídio.
É interessante notar que muitas vezes nos filmes de terror o monstro chega a substituir
a figura feminina como espetáculo e objeto. Nesse sentido, pode-se dizer que em King Kong o
monstro se localiza para além da objetificação experienciada pela feminilidade domesticável
de Ann: a criatura experiencia abjetificação, o que estabelece o principal elemento de
diferenciação entre as violências sofridas pela feminilidade cis (no caso, objetificação) e
aquelas experienciadas pelas transfeminilidades. A abjeção que a criatura experimenta
representa a impossibilidade de se sustentar como outro-do-homem, a incapacidade de ser
absorvida no tecido social e de operar na sociedade. Dessa forma, a alteridade que Ann e Kong
compartilham em relação à masculinidade cis-heteronormativa não apaga uma diferença
estrutural que as separa no interior da categoria “mulher”, exaltando que o que distingue suas
feminilidades é justamente sua viabilidade no projeto de nação.
A esse respeito, Despentes (2010) atenta para o fato de que, no final do filme, o desejo
de Ann pelo animalizado e pelo selvagem (dissidente) é neutralizado e domesticado (pelo seu
ingresso no contrato heterossexual), ao passo que King Kong é executado. Na tradução para a
metáfora: a travesti precisa ser aniquilada para que a mulheridade tradicional possa sobreviver.
Segundo a autora essa narrativa configura uma espécie de traição ou divergência no interior do
lugar subalternizado que as figuras ocupam: “O closeup em câmera lenta nos olhos da loira,
quando ela percebe que foi usada. Ela era somente isca para capturar o animal. A animalidade.
Sua escolha pela heterossexualidade e a vida na cidade são a decisão de trair seu aliado, seu
protetor” (DESPENTES, 2010, p.107).
A domesticação da mulheridade e sua reinserção na trama social converte o monstro
em bode expiatório, ou seja, em um elemento necessário para reinstaurar a soberania das
categorias identitárias. Entretanto, é importante pontuar que, no enredo da King Kong travesti,
o limite que separa transfeminilidade de cisfeminilidade no interior da categoria mulher
demarca também uma “natureza” (a feminilidade selvagem indomesticável) associada à
criatura, enquanto a civilidade ou a noção de cultura (muitas vezes relacionada ao “artificial”)
é constitutiva da fração reservada à feminilidade cis. Essa articulação de uma transfeminilidade
242
monstruosa, feroz e selvagem (que se associa à natureza indomável) inaugura uma mirada
particularmente dissonante daquelas comumente estruturadas em torno da transexualidade (as
quais aproximam o trans* do “artificial” e do “científico” através da perspectiva biomédica e,
em contrapartida, associam a mulheridade cis ao domínio natural). Para sustentar esse
argumento, proponho uma leitura críticas das passagens em que Rodríguez comenta sua relação
com as tecnologias de feminilidade.
De acordo com Erb, “O status de King Kong, enquanto primata, ativa duradouras
pressuposições ocidentais sobre o processo de evolução. No mito de King Kong, o macaco vê
a mulher branca, e ao estender sua mão para alcançá-la, tenta alcançar a possibilidade de evoluir
e tornar-se humano” (ERB, 2009, p.4). Conforme argumentado, no enredo da King Kong
travesti a figura de Ann deixa de ser objeto de desejo sexual para se converter em representação
de uma beleza feminina branca impossível ou inalcançável. Assim sendo, aplicando a lógica
apresentada por Erb à figura da King Kong travesti e considerando a potência descolonial da
recusa que essa figura exalta, a “humanidade” ou a “pessoidade” referenciada na citação estaria
depositada na feminilidade autêntica (mais que “passável”), análoga à da mulheridade cis, ao
passo que o assassinato do monstro reiteraria a impossibilidade de efetivação desse desejo.
Adiante argumentarei que ao agarrar a feminilidade (e a “pessoidade” por ela simbolizada) com
suas mãos peludas, a criatura retém também o poder de a analisar de perto e de lhe lançar uma
mirada crítica sem negar, entretanto, o próprio desejo. Afinal, que tipo de afeto poderia originar-
se de uma relação tão ambígua, onde o desejo se converte em sabotagem, ameaça e punição?
Apresentando a complexidade de seu desejo pela feminilidade, em seus zines
Rodríguez desessencializa e desnaturaliza a categoria “mulher”, especialmente quando enfatiza
a natureza performática do gênero e explicita o papel de diferentes tecnologias na sua regulação
e produção: em diversas passagens a autora comenta criticamente acerca da economia simbólica
e dos imaginários de mulheridade produzidos pelo cinema e, nesse processo, narra também sua
própria relação com procedimentos estéticos, cirúrgicos e performáticos. Analisando passagens
em que Rodríguez referencia a feminilidade que deseja, “imita” e, por vezes, ressente – e
observando a forma como descreve as figuras de Holliwood nas quais se espelha –, neste tópico
ressaltarei a crítica que a autora faz às “tecnologias de beleza” e aos aparatos cinematográficos
243
que sustentam o simulacro de mulheridade. Argumentarei que a autora enreda sua trajetória
pela feminilidade em questões de raça, classe, trabalho, acesso e saúde, arquitetando uma
narrativa que desessencializa toda feminilidade (cis, travesti e trans*) com a explicitação do
caráter performativo que sustenta a noção cultural de mulheridade.
Pode-se dizer que, principalmente quando expressa o desejo de “imitar” a mulher
holliwoodiana, a autora incide criticamente na construção de uma feminilidade inalcançável,
enredando críticas de classe, raça e cidadania, bem como referências à colonialidade de gênero,
no prazer que sente ao corporificar feminilidades. Especialmente nas passagens em que
referencia celebridades norte-americanas como Madonna, Pamela Anderson e Marylin Monroe,
a autora enfatiza a natureza conflituosa e ambígua de seu desejo: reconhece nele uma dimensão
sudaca (por exemplo quando identifica subalternidade em seu anseio pela feminilidade
imperialista branca), mas também afirma os prazeres que encontra ao “imitá-las” e corporificá-
las.
Em diversas passagens a autora oferece um olhar crítico ao próprio desejo pela
feminilidade holiwoodiana pautando a classe como principal diferenciação entre mulheridade
cis e travesti/trans*: “Madonna querida: el imaginário proletário travesti latinoamericano
contradice tu soberbia juvenil... el hambre ignorante nos impide hacer la dieta proteica”94
(RODRÍGUEZ, 2015, p.44). Aqui a possibilidade de acesso às culturas e tecnologias que
produzem os significantes de feminilidade em questão é pautada pela classe e, mais
precisamente, pela fome. A autora menciona ironicamente a pobreza como elemento que
aparentemente criaria as condições de se obter uma silhueta magra, semelhante à de Madonna.
Entretanto, a magreza à qual se refere é insustentável, pois não advém da “dieta proteica”
(inalcançável devido à falta de recursos) e gera uma “fome ignorante” incontrolável e condições
precárias de saúde. Complementarmente, a autora volta a expressar a ambiguidade do desejo
de incorporar essa faceta da feminilidade justapondo o sofrimento que a fome traz e também a
sedutora possibilidade de alcançar determinados padrões estéticos: “El vestido de leopardo
apegado a la epidermis lucia mi estomago plano, um estomago a punto de quedar pegado al
espinazo. El vestido quedaba a medida en mi cuerpo pero ocultaba la muerte que se
experimenta cuando se sufre de hambre”95 (RODRÍGUEZ, 2014, p.90).
94
Tradução: “Madonna querida: o imaginário proletário travesti latino-americano contradiz sua soberba
juvenil... a fome ignorante nos impede de fazer a dieta proteica”.
95
Tradução: “O vestido de leopardo grudado na epiderme fazia luzir meu estômago plano, um estômago
a ponto de ficar colado na espinha. O vestido ficava na medida em meu corpo mas ocultava a morte que se
experimenta quando se sofre de fome”.
244
96
Tradução: “Sou a Marylin travesti que come os homens como um ato de generosidade a minhas
amigas travestis, porque sei que não existe perdão com fome”.
97
Tradução: “Eu gosto de me pentear como a Pamela Anderssen. Eu gosto de imitar sua maquiagem.
Às vezes quando estou cheia de energia busco fotos dela e fixo minha atenção durante horas no delineado de suas
sobrancelhas, olhos e lábios. Ela tem toda a cara delineada com laser, por isso suas sobrancelhas são tão perfeitas.
Seu rosto deve ser o resultado das últimas tecnologias de beleza porque esses traços de juventude nunca se vão.
Ela não deve ter os problemas que tenho ao acordar. Ela deve abrir os olhos, escovar os dentes com uma escova
elétrica, sair para a sacada e ser fotografada por repórteres privilegiados diante de tanta divindade fixa”.
245
“natural” que designaria sexo (os órgãos genitais, a composição cromossômica, os sistemas
gonadais externos e internos, as características secundárias etc.) pelos procedimentos
tecnológicos comumente associados ao “artificial” e ao “cultural”. Dessa forma, a “verdade”
que sustenta o seu pertencimento ou despertencimento à categoria “mulher” é associada às
tecnologias de produção de imagem e aos procedimentos estéticos, cujo acesso está restringido
por fatores como classe, raça e cidadania.
É pertinente frisar que, ao comentar aspectos cotidianos da vida da atriz (quando
imagina essa figura se despertando, escovando os dentes e saindo à sacada), a autora começa a
personificar essa figura (retrata-a como “uma de nós”) e, na sequência, volta a representá-la
como imagem inalcançável, uma vez que substitui seu status “humano” pelo de “divindade”.
Combinando esses dois componentes antagônicos, a autora explicita a capacidade das
representações (em especial do imaginário de mulheridade) de reter significantes indexados a
um corpo individual (de uma pessoa que existe no mundo) e, simultaneamente, desprender-se
dele para tornar-se signo de uma unidade maior que, ao ser repetida e constantemente retificada
no campo visual, é capaz de regular as identidades.
Expondo a “artificialidade” implicada na construção do corpo de Anderssen, a autora
teoriza um diferencial em sua própria imitação dessa mulheridade (a maneira como escreve o
nome da atriz conferindo-lhe uma marca sudaca compreende, em si, a ideia de apropriação ou
repetição com diferença) e situa-a num processo mais extenso, ou seja, num contínuo de
imitações: Anderssen é também a imitação (representação reiterada) de uma feminilidade, uma
cópia de outra cópia sem original (conforme teorizado por Butler), forjada através de processos
tecnológicos e sustentada por dispositivos da indústria cinematográfica. Essa intenção se
explicita quando a autora atribui a “divindade fixa” de Anderssen aos procedimentos laser que
disfarçam sinais de envelhecimento, contaminando, assim, a noção de divindade (pura, natural,
imaculada etc.) com aspectos culturais (procedimentos tecnológicos, “artificialidade” e
ciência). Pode-se dizer que, com esse gesto, a autora sugere que as categorias “natureza”
(divino, inalterado, perfeito, biológico, cisgênero) e “cultura” (artificial, tecnológico, enganoso,
trans*) não são necessariamente excludentes, senão simbióticas, ou seja, estabelecem uma
relação interconstitutiva.
Além de citar as “tecnologias de beleza” às quais não tem acesso, a autora lança
também um olhar crítico e “desconfiado” aos artifícios de produção de imagem:
La vida y el cine quieren aplastarse una a la otra. Se puede ignorar lo que digo pero
cuando vi unas pruebas de cámara, inéditas, de la última película de ella, de esa que
246
98
Tradução: “A vida e o cinema querem esmagar uma à outra. Pode-se ignorar o que digo mas quando
vi umas provas de câmera, inéditas, do último filme dela, dessa que não terminou porque a encontraram morta [...].
Se você visse essas provas de câmera no Youtube, poderia se comover comigo. Sabe? Em uma cena, onde a estrela
deve interatuar com um cachorro que não obedece as indicações do seu mestre (instalado detrás das câmeras) ela
inesperadamente se conecta como uma menina desesperada com o mascote, e a cena se perde porque libera uma
monstruosa gargalhada, um som gutural estridente que parece vir do raspar do ar pelas cartilagens, raivosa de
desejo de que não houvesse em sua frente uma câmera, um diretor e um desses homens que redigem roteiros, toda
uma estrondosa queda de glamour cinematográfico. No século de ouro do cinema, uma mulher pode fazer cenas
de nus, mas não será nunca possível que uma estrela ria assim, como um animal, como uma fera dolorida. A
indústria do cinema, deve manter esses rolos de filme muito ocultos, até muito tempo depois da morte dela, porque
representam outra coisa, uma muito humana miséria. [...] É isso finalmente o que me afeta, a trama extravagante
que se cortou e colou em nossas vidas, e que provocou que todas acreditávamos enganadas e falsas. Cê percebe
como a vida pende de um fio? Cuidado! Do cinema não se pode perder o medo”.
247
De acordo com Rodríguez, o cinema produz imagens “enganosas e falsas” com seus
artifícios e edições (“copia e cola”) que têm efeitos reais nas vidas e corpos que pleiteiam
mulheridade. Identificando no “animalizado” uma categoria que abarca os corpos travesti e
trans*, pode-se dizer que, ao denunciar estéticas, comportamentos e representações que devem
ser excluídos (senão destruídos) da imagem de “mulher”, a autora referencia, junto com a
gargalhada animalizada, sua própria exclusão do imaginário mainstream e da cultura visual que
sustenta a noção de mulheridade. Nesse sentido, Rodríguez conclui sua colocação atentando
para o fato de que nunca se deve perder o medo do cinema e revela os efeitos dessa tecnologia
na regulação biopolítica e, em seu desdobramento mais detalhado, no regime político de
aniquilação das dissidências.
É interessante notar que em suas análises críticas da mulheridade holliwoodiana
Rodríguez não atenta primordialmente ao conteúdo (o discurso que a representação forja sobre
mulheridade, como, por exemplo, sua associação com a fragilidade e a delicadeza), senão ao
que a representação “faz” com os corpos que pleiteiam a feminilidade. Combinando seu
investimento pessoal e desejo por algumas características dessa mulheridade holliwoodiana ao
seu olhar desconfiado aos aparatos de representação que atuam como tecnologias de gênero, a
autora se esquiva dos desgastados debates sobre transnormatividade (que têm como alvo
principal a subjetividade transexual) e expõe o potencial da representação (mais precisamente,
das imagens de mulheres) de construir realidades/identidades, contestando a rigidez dos limites
que separam “ficção” de “realidade”. Ou seja, quando “mulher” é apresentada enquanto um
produto do repertório imagético, identifica-se a tentativa de explicitar – senão a própria noção
de representação e seus efeitos – características inerentes a ela, como sua capacidade de
produzir o que aparenta meramente evocar.
Ao referenciar a ideia de “mulher como imagem” (ARRUDA, 2013) apontando para
os efeitos reais do simulacro e para a sua própria exclusão (através de seu alinhamento com
aquilo que foi projetado para fora do repertório imagético humano), a autora atenta para a forma
como a noção de “real” é forjada no domínio especular. Essa ideia se evidencia quando
Rodríguez associa “mulher” às representações brancas, jovens e gringas e contrasta essa
categoria com “travesti” enquanto experiência sudaca e monstruosa: “A veces me parezco a la
Marilyn. Cuando tomo el cigarro y miro fijamente al pasado: me vuelto a levantar, a sentirme
travesti y minotaura”99 (RODRÍGUEZ, 2007, sem paginação).
99
Tradução: Às vezes pareço com a Marilyn. Quando pego o cigarro e olho fixamente pro passado:
volto a levantar, a me sentir travesti e minotaura”.
249
É pertinente pontuar que o verbo “latir” em espanhol tem duplo significado: seu
emprego está primordialmente associado ao “batimento cardíaco” (“el corazón late”).
Entretanto, embora menos comum que o verbo “ladrar”, “latir” também pode ser utilizado para
referenciar o latido de um cachorro. Com essa ambiguidade o animalizado emerge para
representar um ser intersticial (que “parece ou se faz ou acredita ser” e que “parece só parece
[mas não é]”) exaltando vida, existência terrena e corpo material (o coração que bate/late como
um cão selvagem) e contrapondo, assim, a sensação de “farsa”, “mentira”, “volatilidade” e
“engano”, ou seja, a obscuridade e a falta de fixidez ontológica e taxonômica na descrição
sabotada que antecede o latir. Através desse artifício, a autora cria uma estratégia de visibilidade
100
Tradução: “PARECE… / Que é e não é, / Ou se faz ou acredita ser, / Parece que nem pá nem pum, /
Nem branco nem negro, / Nem isso nem o outro, / Parece só parece. / Entretanto late/bate, / Late/bate, late/bate,
late/bate, late/bate, late/bate, late/bate, late/bate, late/bate.
250
que permanece borrada e imprecisa. A qualidade selvagem desse ser animalizado que evade as
categorias identitárias se assemelha ao emprego que Rodríguez faz da figura da travesti
minotaura: ambas terminam seus poemas atribuindo existência física e empírica a um ser que é
também mitológico ou possuidor de uma alteridade ontológica inegociável – seja através da
presença repetida do batimento cardíaco na última linha do poema de Shock ou pelo “levantar-
se e sentir-se travesti e minotaura”, que sugere o momento em que Rodríguez se desperta de
um devaneio.
De certa forma, a mulheridade aparece na escrita de Rodríguez enquanto
imagem/representação (ou seja, atada ao domínio visual e descolada da vivência cotidiana), ao
passo que a travestilidade diz respeito à “experiência empírica” de uma feminilidade enredada
em marcadores de classe e raça e representada pelo animalizado. É pertinente ressaltar que,
atribuindo concretude, empirismo e experiência à vivência travesti e caracterizando a
mulheridade cis holliwoodiana como etérea, intangível ou impalpável, a autora inverte a lógica
comumente empregada para deslegitimar as feminilidades dissidentes associando-as ao
“artificial” ou ao “enganoso”. É também nesse sentido que a autora ironiza: “el me mintió pero
yo le dije la verdad: soy travesti”101 (RODRÍGUEZ, 2015, p.95) Aqui o questionamento do
“real” é deslocado e redirecionado à categoria “mulher”, sugerindo que, quando se espelha nas
celebridades de Holliwood, a autora deseja imitar a estética que eleva essas figuras à condição
de divindade (“sobrenatural” e “irreal”). Ou seja, não é propriamente a “verdade biológica” ou
a coerência entre sexo e gênero que Rodríguez pleiteia se espelhando na feminilidade em
questão, senão o domínio de outras dimensões representativas, em especial daquelas que
regulam mulheridade a associando ao “sobrenatural”:
Expressando seu desejo por parecer “uma espécie de anjo frágil” a autora apela
novamente ao divino e ao sobrenatural enredando-os no “artificial” e no tecnológico: atinge
101
Tradução: “ele mentiu para mim, mas eu disse a verdade para ele: sou travesti”.
102
Tradução: “Meu corpo é como um violão. Recém-tingida, ondulada e maquiada ao estilo Pamela,
com saltos altos e vestida de cores claras, pareço uma atriz de cinema, uma aparição. Sim, desde as profundezas
do meu coração, minha esperança é parecer uma espécie de anjo, frágil. Fazer com que os homens tenham a
impressão de que uma [travesti/mulher] é uma aparição da noite; porque uma [travesti/mulher], é uma aparição
sobrenatural, mais que o cinema, mais que a televisão”.
251
esse efeito com saltos altos, maquiagem, empregando uma paleta de cores específica e imitando
Pamela Anderssen.
A autora sugere ainda que quando alcança a aparência de uma atriz de cinema se
transforma numa “aparição”, visto que as celebridades não circulam nos espaços que Rodríguez
frequenta, se localizam, senão, exclusivamente no repertório imagético gringo (nas revistas e
na televisão). Pode-se dizer que o mencionado aspecto sobrenatural singularmente intrínseco à
subjetividade travesti (aquilo que estaria além das ilusões do cinema e da televisão) está calcado
na inusitada materialização de um corpo, agora palpável, que vemos exclusivamente nas
revistas e nos programas de televisão, bem como na sua inscrição como “mito” no imaginário
cultural devido à exclusão de travestis da esfera social e dos veículos de representação
mainstream. Aqui o componente etéreo e impalpável da mulheridade cis (enquanto simulacro
e cópia sem original) se combina à presença inusitada das travestis agenciando uma insólita
“aparição” hipervisível e, ao mesmo tempo, implausível.
Outro elemento recorrentemente utilizado por Rodríguez para abordar sua alteridade e
expressar seu desejo conflituoso pela feminilidade holliwoodiana é a referência aos seus
cabelos tingidos de loiro. Pode-se dizer que em seus zines a branquitude (indexada às imagens
de celebridades norte-americanas) é criticamente exposta como componente fundamental da
beleza (quase como sinônimo de mulheridade cis) e que, nesse sentido, sua opção pelos cabelos
loiros evoca diferentes faces de um debate racial. Enquanto King Kong destrói a cidade atrás
de sua loira (no filme a criatura agarra pelo menos três outras mulheres loiras ao correr pelas
ruas de Nova York em sua busca por Ann), a versão travesti do monstro deixa um rastro de
destruição (uma simbolização da desestabilização da norma em virtude de seu desejo e
corporificação desviante da feminilidade) em sua busca por tornar-se loira (o duplo feminino
do monstro), acendendo um conflito racial que contrapõe a branquitude da feminilidade cis
gringa ao corpo travesti sudaca.
Rodríguez representa os cabelos tingidos de loiro como um artifício sedutor e acessível
de beleza, que a aproxima dos padrões de feminilidade justamente devido à sua associação com
a branquitude. Por conta disso, esse desejo é descrito com criticidade e muitas vezes retém
significantes de alteridade. Em Cuerpos para Odiar, a autora relata o ritual de tingir o cabelo
de loiro enredando esse ato a uma complexa relação de (des)pertencimento em diferentes
culturas ou linhagens de feminilidade, aparentemente antagônicas:
252
103
Tradução: “Minha cor preferida é o tom onze-um de tinta de cabelo. Quando a coloco e armo o ritual
do cabelo, depois de descolorir, colocando variedades de cremes de massagem, que misturo para dissimular a
morte da cutícula capilar, como dizem na televisão, e começo a revivê-lo lentamente com o secador, e cubro
totalmente com óleo de silicone capilar, e o amarro em um coque por horas, para que ao soltá-lo fique volumoso
e ondulado como recordo que ficava o da minha mãe quando era jovem. Ela tinha o cabelo escuro e comprido
como a Sofía Loren, mas o meu é loiro e comprido como o da Pamela Anderssen. Eu gosto de me pentear como a
Pamela Anderssen. Eu gosto de imitar sua maquiagem”.
253
Tengo el pelo rubio, casi Blanco y largo, delgado y quemado. Muerto, como pelo de
choclo, como bien dirían las que me conocen de cerca. La mayoría de las veces pasan
más semanas de las recomendables para teñir las raíces. La mayoría de las veces, las
raíces de mi pelo crecido se notan tan negras que me delatan cuando camino por el
centro de Santiago. Los hombres, a las travestis, las prefieren rubias.104
(RODRÍGUEZ, 2014, p.67. Grifos Meus)
Quando conta que suas raízes negras a “delatam”, referencia mais uma vez a
“imitação” (racial, de gênero, de classe etc.) como qualidade moral e socialmente condenável e
volta a referenciar a pressuposição difundida de que “travesti” não seria uma identidade, senão
uma enganação ou uma mentira (artifício que esconde uma verdade biológica). Nessa
passagem, o “loiro tingido”, além de estar enveredado em um desejo pessoal, emerge como
posicionamento estratégico condicionado a uma estrutura social de
desejabilidade/respeitabilidade, visto que sua aceitabilidade está constantemente em risco em
ambientes públicos. Assim, pode-se dizer que a autora enreda diferentes elementos (como o
trabalho, a possibilidade de circulação, sua segurança e desejabilidade) na análise de seu desejo
pelos cabelos loiros, fazendo ressoar as palavras de Glória Anzaldúa: “Pero es dificil
differentiating between lo herdado, lo adquirido, lo impuesto”105 (ANZALDÚA, 2007, p.104).
Desfazendo-se de valorações ético-morais e pautando sua sobrevivência e felicidade, a autora
reconhece os múltiplos vetores que orientam seu desejo por ter cabelos loiros.
Quando Rodríguez cita o “cabelo de milho” (talvez a tradução mais adequada seria
“cabelo de palha”) para representar a morte da cutícula capilar resultante da descoloração, ela
escolhe um componente natural e orgânico (o milho), cujo capital simbólico está depositado
em representações de nações nativas, especialmente nos imaginários mexicanos e norte-
americanos: o milho, além de compor a base alimentar de indígenas mexicanos e de outras
comunidades nativas, é utilizado como símbolo de resistência e de autorrepresentação por
diferentes culturas.
Além disso, o milho é representativo do encontro colonial em sua figuração
emblemática, por exemplo, no repertório visual norte-americano do “dia de ação de graças”. O
emprego desse elemento nessa passagem faz ecoar um comentário de Anzaldúa sobre
racialização e colonização: “indígena como milho, como o milho, a mestiça é um produto do
cruzamento, projetado para preservação sob uma variedade de condições. [...] ela sobreviverá
104
Tradução: “Tenho o cabelo loiro, quase branco e comprido, magro e queimado. Morto, como cabelo
de milho, como bem diriam as que me conhecem de perto. Na maioria das vezes passam mais semanas que as
recomendáveis para tingir as raízes. Na maioria das vezes, as raízes do meu cabelo crescido se mostram tão negras
que me delatam quando caminho pelo centro de Santiago. Os homens, às travestis, as preferem loiras”.
105
Tradução: “Mas é difícil diferenciar entre o herdado, o adquirido, o imposto”.
254
Los matices de colores claros de mi maquillaje, de mis labios y de mis ojos, se rompen
abruptamente por la línea negra que atraviesa desde mi frente hasta la nuca y los
hombres dejan de mirarme con admiración y respeto, y comienzan directamente a
mirarme con un burlesco deseo de someterme […] Es cierto, he comprobado la
hipótesis de que la línea negra sobre el rubio onceuno de tinturas para el pelo color
europeo, me delata indiscutiblemente ante el agudo ojo del cliente chileno. Los
jóvenes al caminar despreocupados por el centro de Santiago, hacen gestos
desaprobando la seducción que ejerzo sobre ellos, porque la línea de mis raíces
significa más que la línea de mi insubordinación, más aun, la de sus deseos. También
son sus ganas de traspasar mis líneas, de juguetear con las líneas de mi cuerpo, en
secreto y sin asco.106 (RODRÍGUEZ, 2014, p.81. Grifos Meus)
Nessa passagem a autora conta que apesar de utilizar matizes claros na maquiagem e
nos lábios, acentuando os traços da branquitude, a cor escura do cabelo desponta denunciando
que o tom europeu não é natural, senão “loiro tingido”: trata-se de um artifício que, quando
descoberto, denuncia o “sudaca” e faz despencar sua desejabilidade no “olho agudo do cliente
chileno”, colocando-a em risco. É possível apontar que, nessa passagem, Rodríguez mistura em
seu desejo pelos cabelos loiros uma crítica à economia simbólica imperialista norte-americana
e europeia, explicitando como o imaginário cultural da mulheridade branca torna indesejáveis
os corpos latinos: sua insubordinação a esses padrões (deixar que a raiz dos cabelos cresça
106
Tradução: “Os tons de cores claras da minha maquiagem, de meus lábios e de meus olhos, se rompem
abruptamente pela linha negra que atravessa desde a minha testa até a nuca e os homens deixam de me olhar com
admiração e respeito, e começam diretamente a me olhar com um desejo burlesco de me submeter [...]. é verdade,
eu comprovei a hipótese de que a linha negra sobre o loiro onze-um de tinta para o cabelo cor europeia me delata
indiscutivelmente diante do olho agudo do cliente chileno. Os jovens ao caminhar despreocupados pelo centro de
Santiago, fazem gestos desaprovando a sedução que exerço sobre eles, porque a linha de minhas raízes significa
mais que a linha da minha insubordinação, mais ainda, a de seus desejos. Também são suas vontades de ultrapassar
minhas linhas, de brincar com as linhas do meu corpo, em segredo e sem nojo”.
255
Uma tolerância por contradições, uma tolerância por ambiguidade. Ela aprende a ser
indígena na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vista Anglo. Ela aprende
a fazer malabarismos com culturas. Ela tem um senso de personalidade plural, ela
opera em um modo pluralista – nada é forçado para fora, o bom e o mau e o feio, nada
é rejeitado, nada é abandonado. Ela não só sustenta contradições, ela transforma
ambivalência em outra coisa. (ANZALDÚA, 2007, p.101)
limitações, mas contamina também os restritos caminhos para superá-las: por exemplo, a autora
ressente a branquitude que corporifica com prazer e glamour quando tinge seus cabelos de loiro,
assim como a mulheridade colonial que anseia. Manifestando desejos ambíguos, Rodríguez
desconfia de suas conquistas e olha criticamente para a forma como ocupa categorias: nas
ocasiões em que corporifica com sucesso a figura da loira, a autora é tomada pela necessidade
de reafirmar os efeitos de sua diferença em relação ao ideal de mulheridade cis-
heteronormativa: “mi rubio está lleno de um sida”107 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data
/ sem paginação). Nesse sentido, pode-se dizer que a relação que estabelece com a mulheridade
não é de reflexo (tipicamente associada à imitação) senão de difração, conforme desenvolvido
por Haraway:
Difração não produz “o mesmo” fora de lugar, como o reflexo e a refração fazem.
Difração é um mapeamento da interferência, não replicação, reflexo ou reprodução.
Um padrão de difração não mapeia onde as diferenças aparecem, senão mapeia onde
os efeitos da diferença aparecem. (HARAWAY, 2004, p.70)
107
Tradução: “meu loiro está cheio de uma AIDS”.
108
Tradução: “Aprendi a me fazer de linda e a me agarrar a esses homens, aos filhos desses homens e a
seus netos, e aos netos de seus netos, que nunca imaginaram a existência de uma travesti ressentida como eu”.
257
Soy llamativa. Así, con este nivel de producción los hombres se vuelven amables y
caballeros. “Contigo Lola, soy el hombre más feliz del mundo”. No es uno el que te
lo dice, son tantos que pierdes la cuenta, y de noche son más, sobre todo jóvenes que
de día no se atreven ni siquiera a desviar el ojo por ti, porque presienten que una
pudiera despertar algo incontrolable que llevan dentro, tan dentro que llega a ser
más monstruoso que la historia de mi cuerpo, más monstruoso que la entrada y salida
de silicona y agujas de mi piel. Más monstruosa que mi tolerancia al dolor.
109
(RODRÍGUEZ, 2015, p.23. Grifos Meus)
109
Tradução: “Sou chamativa. Assim com esse nível de produção os homens ficam amáveis e
cavalheiros. ‘Contigo Lola, sou o homem mais feliz do mundo’. Não é só um que te diz, são tantos que você perde
a conta, e de noite são mais, sobretudo os jovens que de dia não se atrevem nem sequer a desviar o olho por você,
porque pressentem que uma [travesti] poderia despertar algo incontrolável que levam dentro, tão dentro que chega
a ser mais monstruoso que a história do meu corpo, mais monstruoso que a entrada e saída de silicone e agulhas
da minha pele. Mais monstruosa que minha tolerância à dor”.
258
Pessoas com menor acesso às tecnologias de mudanças corporais – aqueles/as que não
puderam pagar eletrólises caras, que não puderam pagar médicas/os para prescrever e
acompanhar seu uso de hormônios, que não puderam pagar por cirurgias caras-
terminaram ocupando os corpos mais visivelmente gênero-divergentes e, por isso,
sofrendo os piores estigmas e punições sociais, enquanto as mulheres trans* ricas que
já estavam na posição de privilégio relativo puderam pagar para se livrarem dessas
exclusões e violências. (PLEMONS, 2017, p.95)
Pode-se dizer que o breve aceno de Rodríguez à faceta transnormativa das cirurgias
(que supostamente afirmaria positivamente a estrutura vigente e lhe renderia uma posição de
privilégio em relação à sua comunidade) é desconstruído na porção final de seu texto, quando,
em difração à mulheridade cis, caracteriza os frutos desse empreendimento (os efeitos de sua
“alta produção”) como relações arriscadas, por exemplo, mencionando a dimensão monstruosa
do desejo dos homens com quem se relaciona. Pode-se dizer que, nesse sentido, a autora
explicita as potencialidades antagônicas dos efeitos da almejada cirurgia: os mesmos
procedimentos que tornam seu corpo desejável e atraente para clientes e/ou pretendentes, são
também responsáveis pela sua vulnerabilidade e monstrualização, visto que, nas palavras de
Rodríguez, o desejo desses homens “chega a ser mais monstruoso que a história do meu corpo,
mais monstruoso que a entrada e saída de silicone e agulhas da minha pele. Mais monstruosa
que minha tolerância à dor”.
Nesse sentido, quando descreve os efeitos dos procedimentos somáticos como
potencialmente monstrificantes em vez de normalizantes, a autora desvirtua a premissa de que
essas intervenções (como as cirurgias comumente associadas à noção de passabilidade) retêm
um componente intrinsecamente normativo ou que refletem e projetam uma mulheridade cis
idêntica, porém deslocada. Ou seja, Rodríguez reconhece e alude ao desejo de adentrar as
estruturas que beneficiam privilegiadamente as subjetividades cis-heterosexuais, mas afirma
que a trajetória travesti está embebida em particularidades que demandam a reconfiguração do
paradigma amoroso e da própria estrutura do relacionamento:
Ellos dicen; Tú pelo es tan claro que me gustaría tenerlo en mi cuerpo, esparcido en
mi cuerpo. Contigo – y lo trágico es que una comienza a dudar – Una, rápidamente
comienza a encontrar la posibilidad de que todo pueda jugar a nuestro favor. Que la
vida comienza a tomar sentido. Que los pinchazos de silicona, los años de tintura
onceuno, los mismos años desenredando el pelo choclo, la añorada operación de
readecuación sexual, la primera impresión que te queda entre las piernas, las
curaciones, la cicatrices y los años de hormonas van a cumplir su objetivo y vas a
259
conocer a ese hombre que mereces, al príncipe de la tele, de esas malditas películas
que nunca se acaban, un príncipe que perdonará tu alcoholismo, tu consumo y tu
infección.110 (RODRÍGUEZ, 2014, p.89. Grifos Meus)
Cuando vi mis tetas / Enormes volcanes con pezones / Supe que la aureola de la
Hayworth / Por fin, era mía. / Que acá, en el Sur, / Nacía esta yegua de marfil y
purpurina. / En el Sur sólo conocen escarcha, / Me dije, / Así que mis tetas serían /
Un oasis a tanto arco iris sudaca marchito. / Y las vesti de noche, / Para el juego de
la avispa enamorada / Y pasaron uno, veinte, cuatrocientos, miles / De soldados
perforadores de carne / Y ninguno supo ser mi Glenn Ford.111 (SHOCK, 2011, p.26.
Grifos Meus)
Shock compara sua prótese aos seios da estrela Rita Hayworth, espelhando sua
feminilidade na da atriz e introduzindo-se de forma enviesada no roteiro do filme norte-
americano noir Gilda (1946), que se passa em Buenos Aires. Nessa película, Hayworth
110
Tradução: “Eles dizem: seu cabelo é tão claro que eu gostaria de tê-lo no meu corpo, espalhado no
meu corpo. Contigo – o trágico é que você começa a duvidar – você rapidamente começa a encontrar a
possibilidade de que tudo possa jogar a nosso favor. Que a vida começa a tomar sentido. Que as espetadas de
silicone, os anos de coloração onze-um, os mesmos anos desembaraçando o cabelo de milho, a esperada operação
de readequação sexual, a primeira impressão que fica entre as pernas, as ataduras, as cicatrizes e os anos de
hormônios vão cumprir seu objetivo e você vai conhecer esse homem que você merece, o príncipe da televisão,
desses malditos filmes que nunca acabam, um príncipe que perdoará seu alcoolismo, seu consumo e sua infecção”.
111
Tradução: “Quando vi minhas tetas / Enormes vulcões com mamilos / Soube que a aureola da
Hayworth / Por fim, era minha. / Que aqui, no Sul, / Nascia essa égua de marfim e purpurina / No Sul só conhecem
geada, / [eu] Me disse / De forma que minhas tetas seriam / Um Oasis a tanto arco-íris sudaca murcho / E as vesti
de noite, / Para o jogo da vespa apaixonada / E passaram um, vinte quatrocentos, mil / Soldados perfuradores de
carne / E nenhum soube ser meu Glenn Ford”.
260
interpreta uma femme fatale e adentra um relacionamento abusivo e ambíguo com o ator Glenn
Ford, que interpreta um apostador vigarista. No poema de Shock a personagem é apropriada e
rearticulada para representar a solidão estrutural experienciada por transfeminilidades sudacas:
“nenhum soube ser meu Glenn Ford”. Semelhantemente ao poema de Rodríguez, em vez de
“príncipes”, os homens que Shock encontra são “soldados perfuradores de carne”, que
simbolizam a violência policial, o transfeminicídio e outras opressões que travestis comumente
enfrentam nas interações sociais e em seus relacionamentos sexo-afetivos.
É interessante notar que, assim como na passagem em que Rodríguez alinha-se a King
Kong, no poema de Shock os gêneros (homem, mulher e o relacionamento entre eles) são
sustentados por referências a celebridades de Holliwood (como Rita Hayworth e Glenn Ford),
ao passo que a prótese de seio (local de designação de transfeminilidade no texto) e a
autorrepresentação da travestilidade são na maior parte articuladas através de símbolos
hibridizados do mundo natural, como vulcões, marfim, égua, oasis e vespa. Através desse
recurso a autora vincula o tornar-se outro/monstro/animal à mulheridade da experiência travesti,
marcando uma forma singularmente dissidente de corporificação da feminilidade. Tanto nesse
poema como também em diversas passagens dos zines de Rodríguez, a animalidade é evocada
para representar uma experiência que desvia do final feliz cis-heterossexual, oferecendo, em
seu lugar, parcerias inusitadas e alinhamentos com outras espécies que, se desdobrando para
além da metáfora, permitem imaginar a experiência e o próprio corpo trans* como processo e
produto de relações não/humanas capazes de expandir a concepção canônica de relacionamento,
amor e vínculo familiar.
Nessa esteira, cabe incorporar a essa análise o quadrinho do zine Estiercol: suplemento
diverso, da artista argentina Gabriela Binder (imagem disposta abaixo).
261
Binder desenha uma personagem que recebe destinos diferentes de acordo com as
feminilidades que lhe são projetadas: quando a vidente a interpela como mulher cis, seu futuro
inclui amor, família, ascensão econômica e um cachorro, e ao contar que é trans, todas as
promessas desaparecem, menos a companhia animal. Da perspectiva que projeta cis-
heterossexualidade na personagem, o cachorro seria considerado mais um objeto (listado junto
ao carro e à casa) e simbolizaria a ascensão social prometida pelo contrato cis-heterossexual.
Entretanto, observando a recorrência com a qual o animalizado emerge associado ao
despertencimento de travestis/trans* em zines e projetos autônomos semelhantes aos de Binder,
pode-se dizer que, no destino transfeminino da personagem, o animal é transposto da condição
de objeto e estabelece um vínculo especial com a subjetividade trans*. Mais que um simples
consolo para a solidão reservada à personagem, o animal e a figura transfeminina compartilham
um laço de solidariedade interconstitutiva, que se forja através das diferentes desumanizações
que experienciam.
Levando em conta a bagagem não/humana que eclode em projetos
autorrepresentativos como os de Shock e Rodríguez, argumentarei que, focalizando a solidão
112
Tradução: “Você vai ter um marido fiel, 4 filhos, uma família linda, um lar muito feliz, um carro 4x4
e um cachorro.../ Sou trans! / Então fodeu!... O único garantido é o cachorro...”.
262
Tranimais também brinca com o prefixo “trans” enquanto pluralidade – assim como
em animais – para sugerir o constante trabalho de agentes que cruzam espécies. Trans
sugere o cruzamento energético e material que desestabiliza categorias bifurcadas.
Animais sugere organismos literais, não seres metafóricos ou puramente
representativos, que existem somente na intencionalidade antropocêntrica.
(HAYWARD; KELLEY, 2013, p.115-116)
113
Tradução: “é definitivamente a negação do amor o que nos une”.
263
“We must find another relationship to nature besides reification and possession”
(HARAWAY, 2004, p.64)
Soy llamativa. Así, con este nivel de producción los hombres se vuelven amables y
caballeros. “Contigo Lola, soy el hombre más feliz del mundo”. No es uno el que te
lo dice, son tantos que pierdes la cuenta, y de noche son más, sobre todo jóvenes que
de día no se atreven ni siquiera a desviar el ojo por ti, porque presienten que una
pudiera despertar algo incontrolable que llevan dentro, tan dentro que llega a ser
más monstruoso que la historia de mi cuerpo, más monstruoso que la entrada y salida
de silicona y agujas de mi piel. Más monstruosa que mi tolerancia al dolor.
114
(RODRÍGUEZ, 2015, p.23. Grifos Meus)
114
Tradução: “Sou chamativa. Assim com esse nível de produção os homens ficam amáveis e
cavalheiros. ‘Contigo Lola, sou o homem mais feliz do mundo’. Não é só um que te diz, são tantos que você perde
a conta, e de noite são mais, sobretudo os jovens que de dia não se atrevem nem sequer a desviar o olho por você,
porque pressentem que uma [travesti] poderia despertar algo incontrolável que levam dentro, tão dentro que chega
a ser mais monstruoso que a história do meu corpo, mais monstruoso que a entrada e saída de silicone e agulhas
da minha pele. Mais monstruosa que minha tolerância à dor”.
265
115
Tradução: “O cirurgião me agarrou e remendou tudo junto: a cartilagem, os nervos, e a pele do meu
nariz. Agora eu rio e minha cara toda dói. Terei que aprender a rir como a Monalisa, fazendo careta de felicidade.
Antes beijava sempre as cicatrizes de meus amantes. Agora não sei quem beijará as minhas”.
267
ardor y tortura, como si recordaras una violación. Con el tiempo, niegas qué pasó,
apartas los detalles que se enquistan y haces como que te olvidas, pero nunca logras
dejarlos atrás. Si eres una verdadera travesti, vuelves a la Dolores116. (RODRÍGUEZ,
2014, p.72. Grifos Meus)
116
Tradução: “A Dolores, assim a chamavam todas as travestis importantes e conhecidas ou que se
vangloriavam de sê-lo, que tinham feito o corpo com ela. Depois você descobria o porquê do nome. E é que o
ritual de entrada do espesso óleo na carne, era tão sofrível e grotesco como os rituais exercidos pelos selvagens
sobre a carne viva. Sua mão na pele e sua voz dura no processo: cê tem base boa garota, vai ficar com uma teta
linda, se cê é travesti de verdade, tem que aguentar. Porque segundo sua lógica, dada a impossibilidade de usar
anestesia pelos riscos que envolve, a penetração, é a marca da passagem do que não se é, a de um ser real. A dor
da entrada da agulha na pele, essa agulha grossa usada para injetar os cavalos, e o som cego que perfura a carne,
todos esses detalhes te fazem recordá-la com ardor e tortura, como se recordasse uma violação. Com o tempo,
você nega o que aconteceu, afasta os detalhes que se alojam e finge que se esquece, mas nunca conseguirá deixá-
los pra trás. Se você é uma verdadeira travesti, voltará à Dolores”.
268
travesti” narrados por Rodríguez ressoam na descrição que Machuca Rose oferece ao
diferenciar travestilidade de mulheridade cis e de transexualidade:
Travesti não é mulher e não é trans. Travesti é classe e raça: significa que você não se
apresenta de forma feminina o tempo todo porque você não tem dinheiro pra isso.
Significa que o uso de tecnologias para transformar o corpo não vem da clínica de um
doutor, mas de gambiarras [resourcefulness] diante da precarização, o ato através do
qual a matriz de dominação torna precários nossos corpos e vidas. Más clarito?
Significa que você usa a criatividade, usa canetas em vez de delineador, consegue seus
hormônios e silicones das/os amigas/os underground, ou usa tinta em vez de
testosterona para transformar o seu corpo. (ROSE, 2019, p.243)
Figura 38 – Capa do zine Truques para produzir testosterona de forma natural e antiespecista
plantas nativas, dietas específicas que induzem maior produção de determinados hormônios e
dicas de acessórios e vestimentas (como as camisetas com bolsos anteriores, para dissuasão
visual do volume dos seios transmasculinos) são difundidos e se tornam propulsores de estéticas
e saberes internos. Além disso, zines como os de Rodríguez e Shock oferecem versões plurais
e antagônicas do que trans* pode significar, dos recursos criativos e das intervenções somáticas
disponíveis, especialmente quando oferecem narrativas que contradizem a versão biomédica
formalizada como conhecimento oficial. O quadrinho Transição da Depressão, publicado no
zine Quimer(d)a #2, também exemplifica este argumento, uma vez que celebra um efeito
monstruoso do uso desregulamentado e ilegal de substâncias farmacêuticas apropriadas pela
comunidade dissidente.
Figura 40 – Trecho do zine Quimer(d)a #2
Eu amo o fato que o genoma humano pode ser encontrado somente em cerca de 10
por cento de todas as células que ocupam o espaço mundano que chamo de meu corpo;
os outros 90 por cento das células são preenchidos com genomas de bactérias, fungos,
protistas, e tais, alguns dois quais tocam numa sinfonia necessária ao meu estar viva
de um modo geral, e alguns dos quais estão de carona e não fazendo mal ao resto de
mim, de nós. Eu sou vastamente minoria em relação às minhas pequeninas
companhias; melhor dito, eu me torno um ser humano adulto na companhia dessas
pequenas parceiras de bagunça. Ser um é sempre tornar-se com muitos (HARAWAY,
2008, p.3)
117
Em oposição à visão de mundo antropocêntrica, a noção de ontologia orientada ao objeto (OOO)
oferece uma perspectiva que valida a ontologia de objetos para além da percepção/consciência tecida pelo
Humano. De acordo com essa vertente de pensamento, a ontologia dos objetos incorre de forma independente e
descentrada do Humano e, deixando de condicionar-se limitadamente às relações humanas, a ontologia dos objetos
sugere que toda a relação, incluindo aquelas que ocorrem entre não/humanos, formulam a existência do objeto.
273
Lo que había pasado, es que con el tiempo, la turgencia de las primeras tetas se
perdió. Al principio, el aceite espeso, recién ingresado a la piel, concentrado, se
acumuló hermosamente por la resistencia de la carne al extraño fluido, pero con el
paso del tiempo, ese efecto de oposición, ese bello abultamiento en los senos brillosos,
quedó claro, que fue por una reacción inflamatoria provocada por el producto
inorgánico enfrentando a mi sistema inmunológico, una irritación en los tejidos
invadidos y tirantes, que imperceptiblemente, día a día, el mismo organismo fue
controlando con naturalidad. Con tanta naturalidad que una noche, cuando me
encontré desnuda y excitada frente a un cliente, este me reclamó sin ninguna sutileza:
que chicas las tetitas. Desde ese momento me vi en la necesidad de volver a
conectarme con la Dolores.118 (RODRÍGUEZ, 2014, p.54. Grifos Meus)
118
Tradução: “O que tinha acontecido, é que com o tempo, a turgescência das primeiras tetas se perdeu.
No princípio, o óleo espesso, recém-ingressado na pele, concentrado, se acumulou lindamente pela resistência da
carne ao estranho fluído, mas com o passar do tempo, esse efeito de oposição, essa bela protuberância nos seios
brilhosos, ficou claro, que foi por uma reação inflamatória provocada pelo produto inorgânico enfrentando o meu
sistema imunológico, uma irritação nos tecidos invadidos e tensos, que imperceptivelmente, dia a dia, o mesmo
organismo foi controlando com naturalidade. Com tanta naturalidade que uma noite, quando me vi pelada e
excitada diante de um cliente, esse reclamou pra mim sem nenhuma sutileza: que pequenas as tetinhas. Desde esse
momento vi a necessidade de voltar a me conectar com a Dolores”.
274
Assim, já que a maioria das plantas é intersexo, a maior parte dos fungos tem múltiplos
sexos, muitas espécies transexualizam, e bactérias desafiam completamente as noções
de diferença sexual, isso significa que a classificação humana de dois sexos faria
pouco sentido para a maioria dos organismos nesse planeta, e que a crítica da
transexualidade baseada na separação conceitual de natureza e cultura faria menos
sentido ainda. (HIRD, 2006, p.41)
Na porção final de seu argumento, a autora convida a uma inversão completa na lente
de análise do trans*, de forma a priorizar uma perspectiva não/humana: “é muito mais
interessante considerar como nós poderíamos entender trans na forma humana, digamos, desde
276
uma perspectiva bacteriana.” (HIRD, 2006, p.45). Ou seja, em vez de projetar categorias
humanas nos animais não-humanos (identificar abutres lésbicas, bonobos gays ou minhocas e
peixes trans), a autora promove o abandono de comparações antropocêntricas entre “nós” e
“elas/es” e postula uma inversão: como perspectivas descentradas do Humano informariam essa
categoria? O que a animalidade poderia ensinar ao Humano em termos de gênero, sexo e
sexualidade?
Pode-se dizer que em algumas de suas poesias Rodríguez experimenta justamente com
a proposta de Hird de vislumbrar o corpo travesti/trans* a partir de uma lente não/humana que
desafia o paradigma antropocêntrico. Além de evidenciar o trabalho de diferentes agentes e
espécies na constituição de um ser que deixa de ser individual e passa a ser visto como processo
de um encontro de entidades múltiplas (por exemplo, referenciando o seu seio como resultado
do encontro de diferentes agentes e centralizando a dor como vetor estruturante da
travestilidade), Rodríguez também nos compele a ir além das formas mais familiares de
hibridismo para entender o corpo através de espelhamentos em ontologias-outras:
Los colores no tienen género / Los colores no son ni femeninos ni masculinos / Ni las
flores son todas mujeres / Hay flores que no son ni flores, / Sino armas. / Hay flores
que son caníbales, / Pero no son todas. / Ni las flores son tan flores todas, / Ni son
tan mujeres. / Ni todas las mujeres, tan mujeres. / Tambiém habemos otras cosas.119
(RODRÍGUEZ, Contodomisida, s/n.)
A figura da flor emerge aqui como entidade híbrida para complicar o trans* e,
consequentemente, as categorias humanas (como “mulheridade”). A articulação da alteridade
que trans* e travesti podem representar opera na contracorrente dos processos de
individualização que conferem excepcionalismo Humano: ver-se e conhecer-se a partir do
não/humano, substituindo relações de oposição, aponta para a desconstrução da categoria
Humano e das identidades que a sustentam. Nessa passagem, o “natural” não é empregado na
tradição do espelho que reflete e articula moralmente o Humano, senão emerge numa relação
que se bagunça em uma ontologia difusa e inassimilável e, nesse processo, arrasta consigo o
Humano, que já não pode mais permanecer hermeticamente selado.
Ou seja, a confusão ontológica das flores permite à autora canalizar sua própria
alteridade por uma lente que, ao mesmo tempo em que projeta uma noção atualizada de
“natureza” em sua própria subjetividade, desarticula as engrenagens que sustentam a noção
119
Tradução: “As cores não têm gênero / As cores não são nem femininas nem masculinas / Nem as
flores são todas mulheres / Existem flores que não são nem flores, / Senão armas. / Existem flores que são canibais,
/ Mas não são todas. / Nem as flores são tão flores todas, / Nem são tão mulheres. / Nem todas as mulheres, tão
mulheres. / Também existimos outras coisas”.
277
tradicional de “natureza” que orienta o Humano. Proclamando sua própria existência enquanto
simultaneamente análoga e distinta da mulheridade cis, em sua autorrepresentação a autora
traça paralelos com uma entidade não-humana que retém, na tradição literária, uma associação
expressiva com a natureza e, ao mesmo tempo, é reiteradamente questionada no que diz respeito
à pureza de sua ontologia: a flor não é sempre mulher, às vezes sequer é flor, senão arma e
canibal. Dessa forma, ao explicitar a contingência dos critérios que designam identidade, a
autora sugere que estamos sempre em risco de tornar-nos “outra coisa”.
Nos entrelaçamentos que Rodríguez cria entre sujeito e objeto, Humano e não-
humano, destaca-se a recusa em nivelar e solucionar ambiguidades: a flor pode ser flor e não-
flor ao mesmo tempo, assim como a categoria “mulher” pode conter mulheres que de uma forma
ou de outra não são todas sempre tão mulheres. Ou seja, no poema o efeito da interferência do
natural no Humano é a reinvenção de flor, de gênero, de corpo e de suas funções num enredo
de identidades que se descalcificam.
Na asserção “também existimos outras coisas”, a autora apela ao domínio não/humano
e monstruoso da “coisa” para vislumbrar uma autorrepresentação multifacetada de si, instruída
por uma aglomeração de agentes ontologicamente distintos. Aqui a própria filiação ao
não/humano representa a qualidade embreante e híbrida das categorias ontológicas:
destrinchando e reorganizando a própria ideia de ontologia, a autora faz recordar que “não
existe ponto de partida ontológico, nem ordem nem desordem, fronteiras ou violações de
fronteiras” (HARAWAY, 2008, p.24) Mais bem, essa proposição faz ressoar a asserção de
Haraway de que “Natureza é um lugar comum e uma poderosa construção discursiva, efetivada
nas interações entre atores materiais-semióticos, humanos e não.” (HARAWAY, 2004, p.68).
Assim o descentramento do Humano, enquanto prerrogativa para a observação das
autorrepresentações monstruosas e animalizadas travesti/trans*, se desdobra na proposta de que
“nenhuma espécie nunca é Um; ser uma espécie é ser constitutivamente uma multidão, em
naturezas-culturas simbiogenéticas, sem ponto de parada.” (HARAWAY, 2008, p. 23).
278
7 CONCLUSÃO
120
Esse formato possibilita que o trabalho se desprenda desta pesquisa, do público institucional e de
seus fóruns, almejando a circulação em ambientes-outros. O exercício conclusivo que apresento nas próximas
páginas foi realizado durante o intercâmbio na University of Arizona com a orientação e supervisão da Profa. Dra.
Susan Stryker e foi recentemente contemplado pelo edital Itaú Rumos, que financiará o desenvolvimento e a
publicação de dois mil exemplares em português, espanhol e inglês. Dessa forma, indico o desdobramento futuro
dessa pesquisa apontando para a possibilidade de desenvolver uma publicação autoral.
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