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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Lino Alves Arruda

Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresentação travesti/trans* sudaca

Florianópolis
2020
Lino Alves Arruda

Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresentação travesti/trans* sudaca

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina
para a obtenção do título de Doutor em Literatura.
Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Junqueira de Lima
Costa.
Coorientador: Prof. Dr. João Manuel Calhau de Oliveira.

Florianópolis
2020
Lino Alves Arruda
Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresetanção travesti/trans* sudaca

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca


examinadora composta pelos seguintes membros:
_________________________________________
Prof. Maria Juracy Filgueiras Toneli, Dra.
Universidade Federal de Santa Catarina
_________________________________________
Profa. Lourdes Martínez Echazábal, Dra.
Universidade Federal de Santa Catarina
__________________________________________
Profa. Tatiana Nascimento dos Santos, Dra.
Universidade Federal de Santa Catarina
_________________________________________
Profa. Amara Rodovalho Fernandes Moreira, Dra.
Universidade de Campinas

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi
julgado adequado para obtenção do título de Doutor em Literatura.

___________________________________
Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________ _____________________________
Profa Dra Claudia Junqueira de Lima Costa Prof. Dr. João Manuel Calhau de Oliveira,
Orientador(a) Coorientador.

Florianópolis, 2020.
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Cláudia de Lima Costa e ao coorientador João Manuel de


Oliveira, pelo apoio, acolhimento, confiança e estímulo intelectual.

Às orientadoras Susan Stryker e Adela Licona, que, apesar das barreiras culturais e
linguísticas, me receberam na University of Arizona e me encorajaram a desenvolver um
capítulo ilustrado para esta tese.

À amiga e professora Melissa Gonzalez que além de colaborar na tradução dos zines
selecionados para esta pesquisa, ofereceu apoio, afeto e oportunidades para a divulgação das
produções dissidentes sudacas nos EUA.

À parceria CAPES/Fulbright que financiou a minha mastectomia, bem como o


desenvolvimento desta tese.

Ao Prêmio Itaú Rumos, por assegurar o futuro deste projeto.

Ao Raye e à vida que construímos juntos.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Fulbright Brasil e da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento
001.
“Aprendi a alimentarme por generosidad, porque si yo sobrevivo, sobreviverán más y más
travestis, locas y monstruos.” Claudia Rodríguez, Contodomisida (zine), 2016.
RESUMO

Neste trabalho utilizo referenciais e perspectivas descoloniais dissidentes para analisar as


diferentes maneiras como transgeneridade, travestilidade e transexualidade adentram o
simbólico (literatura e imagens) através da autorrepresentação monstruosa em projetos
autônomos (zines) e contraculturais sudacas. Para tanto, por meio de uma metodologia
parcialmente autoetnográfica e fundamentada nos saberes, vocabulários e suportes dissidentes,
proponho tecer uma genealogia da autorrepresentação monstruosa travesti/trans* no âmbito dos
saberes feministas, efetuando análises comparativas entre imaginários e figurações emergentes
no norte e no sul global. Atentando-me às retóricas e às estratégias representativas que
diferenciam o repertório imagético norte-americano (especialmente as figuras que despontam
nos textos de Mary Daly e de Susan Stryker) das autorrepresentações dissidentes autônomas
(presentes em zines e outras produções autogeridas), postulo a pergunta: em seus alinhamentos
com o não/humano, como se posicionam os monstrans* sudacas no que tange às estratégias
micropolíticas, às temporalidades dissidentes, à colonialidade do gênero e à violência
estrutural? A partir dessa indagação, enfatizo a potência singular das autorrepresentações
travestis/trans* que, encarnadas no monstruoso e no animalesco, voltam-se à própria
comunidade para pluralizar suas narrativas e fortalecer seus laços.
Palavras-chave: Autorrepresentação. Trans*. Travesti. Monstruosidade. Zine.
ABSTRACT

This project carries out a dissident (queer) decolonial perspective for the analysis of sudaca
zines in which transgender, travesti and transsexual people create self-representations that
embody monstrous and animal tropes. Using a partially autoetnographic methodology
structured in dissident knowledge, vocabularies and mediums, I trace a genealogy of monstrous
travesti/trans* self-representations within the feminist field, and offer comparative analysis
between imagery depicted in the north and the global south. Carefully scrutinizing the rhetoric
and representational strategies that set apart the North-American repertoire (especially
considering the figures that first emerged in Mary Daly’s and Susan Stryker’s essays) from
sudaca autonomous self-representations published in zines and other countercultural projects, I
pose the question: in their alignments with the non/human, what are sudaca monstrans* stances
on micropolitical strategies, marginalized temporalities, gender coloniality and structural
violence? While mapping different responses to these questions, in this dissertation I emphasize
the singularities of travesti/trans* monstrous and animal self-representations’s potential to
pluralize and counter normative discourse (such as academic, medical and legal approaches to
trans*) in an effort to fortify community bonds and share survival strategies.
Keywords: Self-representation. Trans*. Travesti. Monstrosity. Zine.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Zines da distribuidora “Fracassando: Edições Precárias” ..................... 21


Figura 2 - Cartaz de evento da Distro Dysca ........................................................... 25
Figura 3 - Logo Distro Dysca ................................................................................. 26
Figura 4 - Cartaz do Festival Vulva la Vida (2013) ................................................. 27
Figura 5 - Capa do livro La Cerda Punk. Ilustração de Lino Arruda (2014). ........... 28
Figura 6 - Capa do zine Plantas Marinhas .............................................................. 29
Figura 7 - Página do zine Ansiolítico ...................................................................... 30
Figura 8 - Página do zine Plantas Marinhas ........................................................... 31
Figura 9 - Capa do zine UNIPEGAPONI ................................................................ 31
Figura 10 – Trecho do zine Dramas Pobres ............................................................ 33
Figura 11 – Trecho do zine Dramas Pobres ............................................................ 33
Figura 12 – Trecho do zine Dramas Pobres ............................................................ 33
Figura 13 - |Trecho zine Quimer(d)a (2016) ........................................................... 34
Figura 14 - Trecho zine Quimer(d)a (2016) ............................................................ 35
Figura 15 – Trecho do zine Quimer(d)a #1 (2016) .................................................. 35
Figura 16 – Trecho do zine Ofensivo Trans (2013) ................................................. 36
Figura 17 - Trecho de Poemário Transpirado ......................................................... 37
Figura 18 – Trecho do zine Estiercol: Suplemento Diverso de Binder (sem data de
publicação) .......................................................................................................................... 38
Figura 19 – Trecho do zine Quimer(d)a #2, 2017. .................................................. 38
Figura 20 - Trecho de Poemário Transpirado ......................................................... 39
Figura 21 – Poema em Contodomisida ................................................................... 39
Figura 22 – Gráfico de categorias sólidas e categorias porosas................................ 94
Figura 23 – Esquema Feminista Radical ................................................................. 98
Figura 24 – Editorial de Cuerpos para Odiar........................................................ 147
Figura 25 – Zine Quimer(d)a – Quadrinhos dissidentes antiespecistas ................. 148
Figura 26 - Página fotocopiada de Cuerpos para Odiar. ....................................... 150
Figura 27 – Página do zine Dramas Pobres .......................................................... 160
Figura 28 – Trecho zine Quimer(d)a ..................................................................... 161
Figura 29 – Trecho de Cuerpos para odiar ........................................................... 170
Figura 30 – Capa zine Quimer(d)a #2 ................................................................... 176
Figura 31 – Trecho de Sapatoons #2..................................................................... 194
Figura 32 – Trecho zine Quimer(d)a #1 ................................................................ 204
Figura 33 – Trecho de Poemário Transpirado ...................................................... 211
Figura 34 – Trabalho artístico DNI (De Natura Incertus) ...................................... 214
Figura 35 – Trecho de Ofensivo Trans .................................................................. 217
Figura 36 – Foto de Cuerpos para odiar ............................................................... 223
Figura 37 – Capa de Estiercol: Suplemento Diverso ............................................. 261
Figura 38 – Capa do zine Truques para produzir testosterona de forma natural e
antiespecista ...................................................................................................................... 269
Figura 39 – Capa do zine The Transgender Herb Garden ..................................... 269
Figura 39 – Trecho do zine Quimer(d)a #2 ........................................................... 270
SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 15
2 INTRODUÇÃO AO BABADO ....................................................................... 20
2.1 AUTORREPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA TRAVESTI/TRANS*:
PERSPECTIVAS DA CULTURA DISSIDENTE SUDACA ............................................... 20

2.2 SÓ EXISTIMOS DESDE QUE NOS DESCOBRIRAM? EMBATES,


DESCONFORTOS E QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DO CAMPO DOS ESTUDOS
TRANS* 44

2.3 EMBATES ENTRE QUEER, KUIR E CUIR E OS ESTUDOS TRANS*


SUDACAS: ESTRATÉGIAS DE RECUSA E HIBRIDIZAÇÃO DOS SABERES DO NORTE
GLOBAL 47

2.4 QUANDO O OUTRO NOS ENCONTRA: REPRESENTAÇÃO


TRAVESTI/TRANS* NO CISTEMA ACADÊMICO BRASILEIRO .................................. 54

2.5 REPRESENTAÇÃO COMO PONTO DE VISTA: MAIS ALGUMAS NOTAS


SOBRE MOTIVAÇÕES, OBJETIVOS E PÚBLICOS DOS CISTEMAS ACADÊMICOS . 61

2.6 ESBOÇANDO UMA METODOLOGIA COMPATÍVEL.................................. 63

3 A ALTERIDADE MONSTRIFICADA .......................................................... 70


3.1 2.1 FRANKENSTEIN E A TRANSEXUALIDADE FEMININA: UMA TRILHA
NA GENEALOGIA DA MONSTRIFICAÇÃO DISSIDENTE ............................................ 70

3.2 CONTEXTUALIZANDO O SURGIMENTO DO MONSTRO TRANSEXUAL


NO CAMPO DOS SABERES FEMINISTAS RADICAIS ................................................... 72

3.3 MONSTRUOSIDADES REINCIDENTES ........................................................ 79

3.4 POR QUE FRANKENSTEIN? INTRODUZINDO ARTIFICIALIDADE E


CIÊNCIA NO DEBATE SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SEXUADA. ....... 81

3.5 O BERÇO CIENTÍFICO DA TRANSEXUALIDADE: RELAÇÕES ENTRE


“TRANSEXUALISMO” E A CRIATURA DE FRANKENSTEIN........................................ 82

3.6 AS INCISÕES DE FRANKENSTEIN NA IDENTIDADE .................................. 87

3.7 SEXO E GÊNERO NA ESCOLHA PELO MONSTRO DE FRANKENSTEIN .. 88

3.8 ADENTRANDO AS ENTRANHAS DO MONSTRO TRANSEXUAL ............ 89


3.9 OS MONSTROS E A AMEAÇA DA VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS ............ 92

3.10 O MONSTRO DESTITUÍDO DE POTÊNCIA .................................................. 95

3.11 MONSTRUOSIDADES AUTO-DECLARADAS: SUSAN STRYKER


CORPORIFICANDO A CRIATURA TRANSEXUAL...................................................... 100

3.12 REINSERINDO O MEDO E MOBILIZANDO A POTÊNCIA DO


MONSTRO........................................................................................................................ 101

3.13 CHACOALHANDO O BERÇO CIENTÍFICO ................................................ 102

3.14 A “FÚRIA TRANSGÊNERO”: PRODUTO DA ININTELIGIBILIDADE E


PROCESSO DA AUTO-MONSTRIFICAÇÃO ................................................................. 103

3.15 TRANSFORMAR A NATUREZA, DESESTRUTURAR O HUMANO ......... 106

3.16 MONSTRO DE SI MESMX: O STATUS ARTICULATÓRIO EM


QUESTÃO 107

3.17 UMA DAS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS MONSTRUOSAS:


APROPRIAÇÃO DA INTERPELAÇÃO INJURIOSA ...................................................... 110

3.18 ESCUTANDO NAS ENTRELINHAS: RAZÃO, ACÚMULO, ERUDIÇÃO,


ELOQUÊNCIA E OUTROS RASTROS OCULTOS ......................................................... 114

3.19 REIVINDICAÇÕES E ESCUTA: PROMESSAS DOS MONSTROS DO


FUTURO 115

3.20 PALESTRA OU FALATÓRIO? ...................................................................... 119

4 MONSTROS DO CU DO MUNDO: RETRUCANDO A COLONIALIDADE


DO GÊNERO ................................................................................................................... 123
4.1 “NO SÉ HABLAR PERO NO SOY MUDA”: A LÍNGUA BIFURCADA E
OUTRAS (TRAVA)LÍNGUAS DE CLÁUDIA RODRÍGUEZ .......................................... 123

4.2 LÍNGUA-MONSTRO: RECURSOS ENUNCIATIVOS DE CLÁUDIA


RODRÍGUEZ .................................................................................................................... 126

4.2.1 Balbucio e animalização: a linguagem-outra ou “lugar sem linguagem”? .. 127

4.2.2 “Viadinho me gritaram e eu fiquei torcida”: descobrir-se monstra ............ 134

4.2.3 Enfrentando a linguagem cara a cara: a “elucubração plástica”, o zine, a


(h)ortografia e o errorismo como projetos enunciativos travesti. .................................. 138

4.3 O CORPO MONSTRUOSO DO ZINE ............................................................ 146


4.4 PRAZAMIGAS: LÍNGUAS E FERIDAS INTRACOMUNITÁRIAS .............. 153

4.5 (H)ORTOGRAFIA COMO ESTILO E GÊNERO DE UMA ESCRITA


TRAVESTI ........................................................................................................................ 156

4.6 “ERRORISMO” E O “NÃO-SABER”: FERRAMENTAS PARA INTER/FERIR


N/A LINGUAGEM ........................................................................................................... 159

4.7 (H)ORTOGRAFIA, HIPERVISIBILIDADE E ININTELIGIBILIDADE: O


MONSTRO NO REGIME ESPECULAR .......................................................................... 168

4.8 . PROMESSAS E HORRORES DE UMA KING KONG TRAVESTI ............. 172

4.9 RELEMBRANDO KING KONG .................................................................... 178

4.10 LINGUAGEM E KING KONG: INCLINAÇÕES À VIRADA


(IN)HUMANA .................................................................................................................. 179

5 MONSTROS ANIQUILÁVEIS, ESTRATÉGIAS E AFETOS


MICROPOLÍTICOS ....................................................................................................... 186
5.1 A PROMESSA DE MORTE: MAPEANDO TRAVESTICÍDIO ATRAVÉS DE
KING KONG ..................................................................................................................... 186

5.2 QUADROS TEÓRICOS PARA AQUILO QUE NÃO SE PRETENDE


SALVAR 191

5.3 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E AS POTENCIALIDADES DE


AUTORREPRESENTAÇÕES MONSTRUOSAS: “ESTAR AQUI” E PERMANÊNCIAS NA
FERIDA 193

5.3.1 Substituindo a “agenda política” pela agência micropolítica: “E aqui estou!”,


ressentimento e vingança agenciadas por meras existências contra-reivindicativas ..... 200

6 CLOSE DA KING KONG TRAVESTI: MONSTRO, GÊNERO E RAÇA 225


6.1 HIPERVISIVILIDADE, RACIALIZAÇÃO E COLONIALIDADE DE GÊNERO:
REARTICULANDO KING KONG NO DOMÍNIO ESPECULAR ................................... 225

6.2 ACUENDOU A NECA? REMAPEANDO SEXO, RAÇA E GÊNERO EM KING


KONG 231

6.3 REINTERPRETANDO VIOLAÇÃO SEXUAL E HETEROSSEXUALIDADE


COMPULSÓRIA: UM OLHAR DISSIDENTE PARA O DESEJO DA CRIATURA ........ 235
6.4 MULHERIDADE OBJETIFICADA / TRAVESTILIDADE ABJETIFICADA:
ABISMOS E PONTES ENTRE CIS E TRANSFEMINILIDADES EM KING KONG ....... 238

6.5 ANIMALIDADES E MONSTRUOSIDADES TRAVESTI: MULHERIDADE


RECONFIGURADA ......................................................................................................... 242

6.6 DA SOLIDÃO ESTRUTURAL AO TRANIMAL ........................................... 257

6.7 CIRURGIAS ALGO-MAIS-QUE-HUMANAS ............................................... 263

7 CONCLUSÃO................................................................................................ 278
REFERÊNCIAS............................................................................................. 280
15

1 APRESENTAÇÃO

Como são representadas as experiências travesti/trans* na cultura contemporânea


(artes visuais, literatura, cinema, teatro etc.)? Quem opera os dispositivos de produção e difusão
dessas representações? A quais retóricas a transgeneridade, a transexualidade e a travestilidade
estão sendo associadas? E, o mais importante: a comunidade travesti/trans* latino-americana
se identifica com o imaginário que supostamente representa seus corpos e experiências? Essas
provocações instigam reflexões acerca de como algumas representações tendem a reificar
cistemas identitários1 e a vincular-se à produção de saberes, perspectivas e posições de sujeito
hegemônicas.
Reconhecendo que o repertório imagético e as técnicas representativas são ferramentas
básicas para forjarmos concepções massificadas e universalizantes de corporalidades (através
de estereótipos, simulacros etc.) e também evidenciando seu potencial de estimular
autorreconhecimento dentro de uma comunidade, neste projeto proponho análises críticas das
retóricas e estéticas trans* no âmbito dos Estudos Feministas norte-americanos – que associam
transgeneridade e transexualidade à monstruosidade – e as comparo às autorrepresentações que
emergem atualmente na contracultura dissidente sudaca 2. Os materiais originais reunidos para
este estudo são os poemas, histórias e imagens que compõem os zines e publicações
independentes Dramas Pobres, Manifesto Horrorista, Enferma del Alma, Contodomisida e
Cuerpos para Odiar, da poetisa prostituta travesti chilena Claudia Rodríguez; Relatos de
Canecalón e Poemário Transpirado, da artista travesti argentina Susy Shock; Ofensivo Trans,
de um coletivo argentino anônimo formado por homens trans gays; e Sapatoons e Quimer(d)a:
quadrinhos dissidentes antiespecistas, que produzi colaborativamente com amigas/os das
comunidades les-bi-trans*.
No primeiro capítulo, objetivando a elaboração de uma metodologia de pesquisa,
problematizo a representação dos corpos gênero-diversos nos discursos acadêmicos, frisando a
relação pouco contingente entre as posições de sujeito dos/as pesquisadores/as, o local de

1
Nas palavras da teórica trans Viviane Vergueiro: cistema é “uma corruptela de ‘sistema’, com a intenção de
denunciar a existência de cissexismo e transfobia no sistema social e institucional dominante” (VERGUEIRO,
2015, p. 225). Ou seja, o neologismo (cisgênero + sistema) é aqui empregado para explicitar os efeitos e processos
assimétricos operantes nas estruturas organizativas sociais e institucionais que beneficiam subjetividades
hegemônicas, tais como a cisgeneridade.
2
Termo que se refere pejorativamente à América Latina e a seus habitantes. Seu emprego se dá especialmente a
partir dos fluxos migratórios dos anos 1990 no contexto espanhol, visando a interpelação negativa de imigrantes
latino-americanos. Neste trabalho a apropriação dessa terminologia visa evocar os tensionamentos
xenofóbicos/raciais e ressignificar seu uso e sentido original
16

produção, a terminologia adotada, o formato do trabalho, os referenciais, os objetivos e o


público das pesquisas. Desvelando os agentes, processos (incluindo metodologias) e efeitos
dessas representações, indico, através de uma analítica trans* 3, que produto final é geralmente
alienante, objetificante e exotizante, uma vez que raramente incorpora os saberes e vocabulários
das comunidades gênero-diversas em questão. Esse exercício crítico ressalta a importância de
procurarmos por autorrepresentações travesti/trans* sudacas e por seus projetos de resistência
epistemológica em lugares-outros (DE LAURETIS, 2007), ou seja, nas margens das
instituições culturais, políticas e educativas que as excluíram histórica e cistematicamente.
Sobrevoando as singularidades monstruosas e precárias das autorrepresentações travesti/trans*
e brevemente apresentando seus potenciais de subversão dos cistemas de produção de
conhecimento, esboço também experimentações metodológicas que permitirão explorar outras
formas de produção e difusão de teoria, como a autoetnografia e a escrita combinada com
ilustrações e histórias em quadrinhos.
Com o intuito de tecer uma genealogia da autorrepresentação monstruosa, no segundo
capítulo introduzo o debate da monstrificação da transexualidade no âmbito dos saberes
feministas a partir da análise do texto Boundary Violation and the Frankenstein Phenomenon
(1978) de Mary Daly. Utilizando a teratologia contemporânea, identifico os elementos que
compõem o monstro transexual no contexto norte-americano e investigo sua operação enquanto
dispositivo do pensamento feminista radical. Na sequência, analiso o artigo My Words to Victor
Frankenstein above the Village of Chamounix, no qual Susan Stryker (1994) corporifica a
criatura de Frankenstein para responder às teorias de Daly, e destaco a centralidade das
intervenções somáticas, bem como as relações de classe e raça que eclodem no debate em
questão. Esmiuçando o processo de apropriação da interpelação injuriosa e identificando a
eloquência como um dos principais elementos de afinidade entre Stryker e a criatura em
Frankenstein, postulo a pergunta: o monstro poderia falar sem cair em uma armadilha
ontológica? As indagações formuladas nessa análise indicam que o emprego da criatura de
Frankenstein enquanto tropo autorrepresentativo da transexualidade está fundamentado numa
perspectiva norte/eurocêntrica, pautada pela racionalidade e pelo domínio das ferramentas de
produção institucional de conhecimento. Esse estudo oferece uma base comparativa para as

3
Conforme sugerido por Kai M. Green em seu artigo Troubling the Waters: Mobilizing a Trans* Analytic (2016),
a proposta de uma analítica trans*expande a definição de “trans” enquanto identidade categórica para uma analítica
teórica, ou seja, um método de análise que “tem ramificações ontológicas, ideológicas e epistemológicas. Não se
trata de alteridade perpétua, mas de presença perpétua” (2016). As metodologias associadas a essa analítica são
desenvolvidas no primeiro capítulo da pesquisa.
17

análises das autorrepresentações monstruosas sudacas, especialmente considerando as relações


limítrofes que tecem com a linguagem hegemônica e com a racionalidade.
Nos capítulos 3, 4 e 5 analiso a contracultura travesti/trans* observando as
monstruosidades que emergem em zines e outros projetos autorrepresentativos autônomos. Em
linhas gerais argumento que, criando resistências aos discursos patologizantes, estereotípicos e
abusivos, as monstruosidades travesi/trans* sudacas figuradas em zines anunciam seus
despertencimentos à matriz altamente gendrada e racializada do “humano”, ao mesmo tempo
em que recusam o alinhamento a formas compulsórias de designação de posições de sujeito e
se dissociam das temporalidades hegemônicas (cronológicas, progressivas, lineares, projetadas
para o futuro etc.).
Particularmente no terceiro capítulo exploro as publicações independentes Dramas
Pobres, Manifesto Horrorista, Enferma del Alma, Contodomisida e Cuerpos para Odiar, da
poetisa, artista e prostituta travesti chilena Claudia Rodríguez, e sugiro que as estratégias
representativas inauguradas nesses projetos operam através do emprego de linguagens-outras e
de vocabulários alternativos (a exemplo das noções de “(h)ortografia” e “errorismo” cunhadas
pela autora), dispostos também em formatos precários e dedicados à sua comunidade. As
análises das estratégias autoenunciativas de Rodríguez são intimamente conectadas com as
identificações que a autora traça com diferentes monstruosidades: por exemplo, seu rechaço da
personagem principal do filme O Homem Elefante (o monstro europeu capaz de agenciar sua
própria subjetividade empregando a linguagem hegemônica) contrasta como sua
desidentificação4 (MUÑOZ, 1999) com monstruosidades animalizadas e híbridas, como a
criatura em King Kong e a Minotaura, que figuram barreiras ontológicas inegociáveis e
intraduzíveis, acenando em direção a uma virada (in)humana.
Esboçando uma teratologia travesti, associo a escolha de Rodríguez pela figura de
King Kong ao desejo de produzir e permanecer dentro da “ferida colonial”, ou seja, o local de
onde proposições ressentidas e vingativas emergem parodiando o norte-global e denunciando a
colonialidade do gênero (LUGONES, 2014). Tecendo conexões entre a King Kong travesti de
Rodríguez e outras autorrepresentações monstruosas que também operam com a premissa de
aniquilamento da dissidência e abarcam a noção de morte social identifico, no capítulo 4,

4
A discussão acerca da desidentificação virá em momento oportuno, mas cabe delinear o processo de
desidentificação. Nesse sentido: “desidentificar-se é ler a si mesma/o e à sua narrativa de vida num momento,
objeto ou sujeito que não é culturalmente codificado para ‘conectar’ com o sujeito desidentificante” (MUÑOZ,
1999, p.12).
18

diferentes estratégias micropolíticas contra-reivindicativas e as diferencio das propostas


identitárias tipicamente associadas às agendas políticas LGBT (comumente pautadas nos
direitos humanos e nas políticas de visibilidade da dissidência). Nesse exercício utilizo
centralmente o poema “Yo monstruo mío”, da artista e musicista travesti argentina Susy Shock,
em que a recusa é articulada como principal estratégia de interferência nos sistemas
hegemônicos.
Experimentando metodologias alternativas fundamentadas na diferença entre “olhar
com” e “olhar para” os corpos gênero-diversos, no quinto capítulo proponho um mergulho
profundo na figura da King Kong travesti, objetivando remapear raça, gênero, sexualidade e
classe, dentre outras intervenções que a versão dissidente do primata oferece em relação ao seu
script original. Argumentarei que a desidentificação da autora com a figura de King Kong
promove um comentário crítico à colonialidade do gênero, inaugurando um gesto
autorrepresentativo descolonial que, dentre outras coisas, reelabora a noção de “mulheridade”.
Complementarmente, a análise aprofundada do alinhamento dissidente que Rodríguez tece com
Pamela “Anderssen”, Marylin Monroe, Madonna e outras figuras icônicas de “Holiwood”
exalta o potencial da figuração monstruosa de escapar dos efeitos estereotípicos e simulacrais
comumente reificados em representações humanoides.
Na sequência, focalizo os debates sobre as intervenções somáticas transexualizadoras
e emprego os quadros teóricos Tranimal e Não/humano, para organizar e justapor retalhos de
diferentes corpos monstruosos sudacas a partir de fragmentos dos zines Sapatoons, Quimer(d)a,
Estiercol, Contodomisida e do livreto Poemário Transpirado. Através da conexão de
fragmentos desses projetos, sugiro que as autorrepresentações monstruosas, híbridas e
animalizadas não só desestruturam as engrenagens do sistema visual em sua demanda de
projeção compulsória de gênero e sexo, como também reconfiguram as noções tradicionais
acerca das corporalidades travesti e trans*, especialmente no que tange às intervenções
somáticas: articulando agentes não/humanos (próteses, bactérias, substâncias químicas etc.).
Ademais, incorporando o impreciso e o precário nas incisões tecnológicas e prostéticas
comumente associadas à transexualidade, em vez de reivindicar novas constituições
identitárias, as proposições selecionadas promovem um olhar crítico ao Humano e às
hierarquias que o sustentam.
Em comprometimento com a prerrogativa de que é preciso expandir as epistemes
autorizadas pelo cistema acadêmico para estabelecer um diálogo com as comunidades por ele
marginalizadas, no capítulo conclusivo serão explorados outros formatos, suportes e modelos
19

de produção de teoria: combinando ilustrações e autoficções, Monstrans: experimentando


horrormônios é um capítulo-zine no qual enveredo o Não/humano em representações
autobiográficas para recontar minhas experiências transmasculinas de ininteligibilidade. As
ilustrações acompanhadas de texto e apresentadas no formato de história em quadrinhos
sugerirão que as subjetivações monstruosas rompem o laço indexical entre representação e
realidade ao empregarem, em narrativas autobiográficas, estéticas que se transformam
constantemente para escapar ao humano. Ou seja, tendo como ponto de partida as
impossibilidades subjetivas dissidentes, nesse trabalho aponto para a possibilidade de imaginar
representações que transitam de uma posição de gênero para outras potências de vida
informadas por temporalidades dissidentes.
Certificar-se de que o trabalho esteja em diálogo com as comunidades gênero-diversas
implica não somente o emprego de vocabulários desautorizados e a legitimação de saberes
subalternos, mas também a adoção de métodos eficazes de difusão e circulação do conteúdo em
questão. Assim sendo, o capítulo conclusivo será organizado no formato de zine e integrará a
iniciativa editorial autônoma (distro) de arquivamento, produção, distribuição e tradução de
zines autorais dissidentes sudacas Fracassando: edições precárias, a qual disponibilizará esse
material de forma acessível para travestis e pessoas trans*.
20

2 INTRODUÇÃO AO BABADO

“Produzo outro tipo de saber, um que a acadêmica em mim sabe que não é
acadêmico”.
(DUMARESQ, 2014)

2.1 AUTORREPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA TRAVESTI/TRANS*: PERSPECTIVAS


DA CULTURA DISSIDENTE SUDACA

Uma breve análise da retórica nacional sobre transgeneridade, travestilidade e


transexualidade sugere que as travestis e pessoas trans* foram subordinadas a um
entrelaçamento de censura e depreciação, patologização psicomédica, proibições legais,
representações estereotipadas nos meios de comunicação de massa e ridicularização pública.
Pode-se dizer que essas condições se deram, em parte, devido à marginalização histórica de
travestis/trans* das esferas autorizadas de produção de conhecimento (literatura, artes visuais,
política, instituições de ensino etc.), bem como em decorrência da subjacente conversão desses
sujeitos em objetos de projetos e pesquisas institucionais (educacional, médica e cultural), em
detrimento de seu envolvimento ativo na produção do conteúdo. Portanto, diante desse quadro,
faz-se necessário procurar em lugares-outros (DE LAURETIS, 2007), como, por exemplo, nos
arquivos dissidentes anti-institucionais, para encontrar os locais de enunciação dos saberes
travesti/trans* e as autorrepresentações capazes de comunicar premissas, experiências, culturas
e histórias travesti/trans* de maneira intracomunitária, promovendo o fortalecimento de laços
internos e de autorreconhecimento.
O principal objetivo desta pesquisa é identificar, organizar e analisar um arquivo
literário e imagético autorrepresentativo, autônomo e contracultural travesti/trans*, visando
criar canais através dos quais essas vozes dissidentes possam estar em diálogo produtivo com
outras, a fim de remodelar o repertório simbólico mainstream. Para tanto, desaquendar 5 dos
sistemas institucionais que consistentemente excluíram as autoenunciações e
autorrepresentações travesti/trans* é uma das prerrogativas deste projeto, especialmente
considerando os imaginários e os discursos exotizantes e alienantes comumente figurados nos
locais autorizados de produção de conhecimento acerca das subjetividades dissidentes. Diante

5
“Desaquendar” é uma terminologia do dialeto Pajubá, que se traduz como “desfazer-se”, “desapegar-se” ou
“rejeitar”.
21

dessa asserção faz-se necessário indagar: onde podemos encontrar proposições


autorrepresentativas, que comuniquem de forma intracomunitária? Quais projetos estariam
embebidos nos saberes subalternizados? E quais as ferramentas disponíveis para o
desenvolvimento de uma metodologia ética para abordar tal material?
Considerando a hipótese de que é possível enxergar na marginalidade e no
micropolítico formas afetivas e efetivas de resistência, sugiro que, à margem dos sistemas e dos
aparatos ideológico-culturais dominantes, muitos corpos dissidentes, impulsionadxs pelo ócio
criativo, têm se contaminado e se agrupado em manadas afetivo-políticas autônomas para
produzir imaginários incisivos e deliberadamente políticos voltados às suas comunidades. Os
espaços expositivos que abrigam essas produções autorrepresentativas são geralmente as
bibliotecas de ocupações e os eventos micropolíticos autônomos (por exemplo, encontros
transfeministas, como o Venir Al Sur), e, em vez de aparecerem em catálogos de exposição,
essas proposições, quando registradas, circulam xerocadas em baixa qualidade em zines e
outros tipos de publicação independente, como é o caso dos materiais que centralmente
compõem esta pesquisa.

Figura 1 – Zines da distribuidora “Fracassando: Edições Precárias”

Fonte: Acervo do Autor (2018)


22

Os projetos dissidentes em questão, por estarem circunscritos a lógicas e domínios


pouco abrangentes (se comparados aos filmes, às publicações oficiais, aos anúncios e
programas de televisão, às imagens das revistas, aos acervos de museus e galerias etc.),
pertencem a um grupo de proposições que teve seu potencial subversivo historicamente
deslegitimado, especialmente por destoarem dos modelos políticos hegemônicos e capitalistas
(que transformam o objeto em commodity e a informação em consumo) e das correspondentes
ambições de produção e de circulação em massa. Entretanto, justifica-se a potencialidade dos
zines de operar como tecnologias contra-hegemônicas reconhecendo os efeitos que proposições
locais e micropolíticas podem promover, por exemplo, no campo da construção ou
desconstrução do gênero:

A construção de gênero é atualmente continuada por várias tecnologias de gênero


(como o cinema) e discursos institucionais (como a teoria) que têm poder de controle
sobre o campo do significado social e que, portanto, produzem, promovem e
“implantam” representações de gênero. Mas os termos para uma construção diferente
de gênero também existem nas margens dos discursos hegemônicos. Propostos do
lado de fora do contrato social heterossexual e inscritos nas práticas micropolíticas,
esses termos também participam da construção do gênero, e seus efeitos residem num
nível “local” de resistência, na subjetividade e na autorrepresentação. (DE
LAURETIS, 1987, p. 18)

Enfatizando a significância política da impossibilidade que as subjetividades


sexo/gênero-diversas enfrentam para comunicar dentro do regime cis-heterossexual (tendo em
vista a limitação de acesso aos dispositivos midiáticos e a inadequação aos seus formatos),
atento para o potencial subversivo imbuído nessas proposições micropolíticas fronteiriças que
estão sendo produzidas nas brechas da cultura hegemônica e que incorporam os próprios
estigmas subalternizantes nos quais os corpos e experiências dissidentes se emaranharam
historicamente. Ou seja, diferentemente dos investimentos da agenda política neoliberal
LGBTTQI (que comumente higieniza e incorpora a dissidência dentro dos sistemas
humanitários imperantes, por exemplo, através de campanhas que reforçam a igualdade, a
visibilidade e os direitos humanos), em vez de suturar ou dispensar os estigmas (in)humanos
que situam as experiências travesti/trans* na sua própria trajetória histórica, as proposições
selecionadas para esta pesquisa incorporam na autorrepresentação a animalidade e a
monstruosidade, além de outras figurações e entrelaçamentos não/humanos.
Teóricas pós-coloniais como Greta Gaard, Giuseppe Campuzano, Hija de Perra e
Maria Lugones identificam investimentos coloniais na interdependência da noção de
pessoidade e da designação de sexo/gênero/sexualidade, avaliando também o impacto da
intersecção entre racialização e outros marcadores de dissidência no genocídio de corpos
23

considerados subhumanos ou (in)humanos durante o período colonial. Pautando a forma como


existências análogas às travestis, transexuais e transgêneras foram historicamente associadas à
animalidade, à abjeção e à monstruosidade no contexto latino-americano, esses percursos
teóricos permitem vislumbrar uma história fragmentada que aglomera distintas corporalidades
dissidentes sudacas baixo a insígnia “não/humano”.
A esse respeito, analisando a dicotomia humano/não-humano, em seu artigo Rumo a
um Feminismo Decolonial, Lugones apresenta uma perspectiva descolonial que permite
entender gênero como um dispositivo do colonizador e seu papel na deshumanização. A autora
explica que as categorias “homem” e “mulher” eram a distinção que “tornou-se a marca do
humano e a marca da civilização” (LUGONES, 2014, p.936) e enfatiza que, embora no contexto
da colonização não houvesse propriamente a diferenciação entre sexo e gênero,
paradoxalmente, o bestial não era gendrado: as/os colonizadas/os e escravizadas/os eram
submetidas/os a uma categorização com base em um “dimorfismo sexual” (macho/fêmea)
dissociado de gênero (pessoidade).
Relacionando “selvageria” aos processos de desumanização perpetrados no período
colonial, Lugones coloca que só os civilizados possuíam os status privilegiados “homem” ou
“mulher”, enquanto do outro lado da relação dialética (interconstitutiva e, ao mesmo tempo,
excludente) estavam os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as, que
“eram classificados/as como espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente
sexuais e selvagens” (LUGONES, 2014, p. 936). Essa formulação que, intermediada por
componentes raciais, isola sexo de gênero é o cerne da distinção que a autora faz entre
humano/não-humano e civilização/selvageria, e reverbera, com princípios semelhantes, nas
monstruosidades que emergem em alguns projetos autorrepresentativos travesti/trans* sudacas.
Acredita-se que a partir da organização e das análises das monstruosidades
reincidentes em autorrepresentações travesti/trans* é possível observar como a apropriação e a
desidentificação (MUÑOZ, 1999) do estigma colonial “não/humano” ou (in)humano
colaboram na reformulação propositiva das experiências, culturas e corpos travesti/trans*.
Embora essa proposta de situar as subjetividades travesti/trans* em sua própria história
focalizando os estigmas coloniais aparente reiterar os discursos depreciativos que
circunscrevem os corpos dissidentes, cabe ressaltar que, através do recurso apropriativo, esses
estigmas são reelaborados e transformados em artifícios de vetores desestabilizadores dos
discursos hegemônicos, conforme teorizado por Judith Butler. Suas ideias sobre a apropriação
da interpelação injuriosa (BUTLER, 1997) sugerem que a autoenunciação apropriativa de
24

palavras originalmente depreciativas (como, por exemplo, “traveco”) permite às comunidades


marginalizadas atribuir significados alternativos, organizados por perspectivas dissidentes e,
assim, promover novas iterações hibridizadas que, ao mesmo tempo, carregam e desafiam os
sentidos primordiais dos termos em questão.
Complementarmente, uma contribuição importante para a reestruturação do trans* a
partir de uma perspectiva autoenunciativa é oferecida pela teórica Susan Stryker, cuja análise
crítica do conceito “Humano” subsidia a teoria Pós-humana e oferece novos quadros
epistemológicos, através dos quais o desejo trans* é capaz de escapar à matriz do Humano para
então voltar-se a ela, destrinchá-la e finalmente, desafiar subversivamente a grande divisão
Natureza/Cultura.
Na esteira de Stryker, o investimento autorrepresentativo não/humano travesti/trans*,
além de explicitar a colonialidade de gênero (teorizada por Lugones), aponta para a
possibilidade de coalizões inusitadas e para encontros/parcerias que desafiam os binômios
sustentadores da identidade. A partir de alinhamentos entre diferentes subjetividades expulsas
do Humano, podem ser imaginadas forças que vislumbram um nível intenso de contaminação
das categorias ontológicas como, por exemplo, a potência “tranimal” teorizada por Eva
Hayward e Lindsay Kelley:

Tranimais também brinca com o prefixo “trans” enquanto pluralidade – assim como
em animais – para sugerir o constante trabalho de agentes que cruzam espécies. Trans
sugere o cruzamento energético e material que desestabiliza categorias bifurcadas.
Animais sugere organismos literais, não seres metafóricos ou puramente
representativos, que existem somente na intencionalidade antropocêntrica.
(HAYWARD; KELLEY, 2013, p.115-116. Tradução minha6.)

Esses desvios tranimal e não/humano acenam à ideia de que a feitura do corpo implica
a contaminação de ontologias que se organizam em entidades comuns, levando ao limite o que
o monstro vem a representar no plano simbólico:

Descrever a virada não-humana como um câmbio de atenção, interesse ou


preocupação aos não-humanos mantém em mente a qualidade física e o movimento
envolvido na ideia de uma virada, a virada não-humana deve ser entendida como uma
virada corporificada em direção ao mundo não-humano, incluindo a não-humanidade
que está dentro de todas/os nós. (GRUSIN, 2015, p.20)

6
Todas os textos escritos em línguas estrangeiras que têm excertos traduzidos e reproduzidos nesta tese
tiveram tal tradução feita por mim. Assim, visando a facilitar a leitura do texto, não mais explicitarei no mecanismo
de referência autor-data que se trata de “Tradução Minha”.
25

Ao sugerir que a virada não/humana instiga um questionamento ontológico (volta-se


criticamente à não-humanidade que levamos dentro) Grusin evoca a potência não/humana de
desestabilização da identidade, o que é também uma prerrogativa do monstro. Pode-se dizer
que, a partir da proposta monstruosa, ao invés de reivindicar visibilidade, integração e
inteligibilidade, as autorrepresentações dissidentes selecionadas para esta pesquisa desafiam as
armadilhas ontológicas que a identidade oferece. O “ser alguém/algo” é uma impossibilidade
para o monstro visto que ele não sustenta uma identidade fixa: trata-se, senão, do termo
antagônico a toda identidade, conforme articularei no próximo capítulo. Nesse sentido,
alinhando-se ao animalizado, ao monstruoso e ao não/humano as autorrepresentações
travesti/trans* selecionadas para a pesquisa vislumbram economias representativas pós-
identitárias, conforme exemplificarei a seguir.
No campo especular, as monstruosidades híbridas e animalizadas desafiam as
engrenagens dos sistemas visuais, uma vez que promovem a ininteligibilidade e a inconsistência
de gênero: argumenta-se que a opção por esse tipo de autorrepresentação logra, até certo ponto,
a ofuscação do gênero e a ênfase na ambiguidade, além de idealizar uma possibilidade de evasão
da diferenciação sexual no campo especular, conforme pode ser observado na figura abaixo
(Figura 2), em que a representação monstruosa/animalizada reorganiza (já que excede e ao
mesmo tempo evade) a designação compulsória de sexo e gênero.

Figura 2 - Cartaz de evento da Distro Dysca

Fonte: Arquivo do autor (2017)


26

Observa-se que esse artifício representativo tem sido cada vez mais empregado em
suportes contraculturais contemporâneos (como zines, livretos e outros materiais literais
autônomos), especialmente em projetos que pretendem interpelar o/a observador/a (através do
emprego da figura de um corpo que rápida e intuitivamente gera identificação) e, ao mesmo
tempo, evadir o fardo de evocar compulsoriamente, através da representação do corpo, uma
unidade identitária. Principalmente em autorrepresentações dissidentes, a estratégia que agencia
o animalizado no campo visual abrange diferentes possibilidades identitárias ao mesmo tempo,
podendo inclusive conter combinações contraditórias (alude simultaneamente a trans*, gay,
lésbicas, travestis etc.), sem encerrar o sujeito em nenhuma delas, a exemplo da logo da
distribuidora de zines Monstruosas (Figura 3) e do cartaz do festival feminista Vulva la Vida
(Figura 4).

Figura 3 - Logo Distro Dysca

Fonte: Acervo do Autor (2020)


27

Figura 4 - Cartaz do Festival Vulva la Vida (2013)

Fonte: Acervo do Autor (2020)

Algumas imagens animalizadas que representam corpos dissidentes logram interpelar


identidades específicas sem delinear outros marcadores sociais: baleias e porcas são utilizadas
para representar/interpelar pessoas gordas (respectivamente nos zines de Tatiana Nascimento e
no livro de Constanzx Álvarez), da mesma forma que sapos correspondem a lésbicas (em
cartazes e zines feministas) e imagens de veados evocam experiências e corporalidades gays
afeminadas. Enquanto essas estratégias representativas agrupam distintas subjetividades
marginalizadas baixo uma única insígnia, outros monstros e animais híbridos são cada vez mais
utilizados para aludir às travestis e pessoas trans* em suas intersecções com diferentes
marcadores sociais.
28

Figura 5 - Capa do livro La Cerda Punk. Ilustração de Lino Arruda (2014).

Fonte: Acervo do Autor (2020)

O monstruoso como impossibilidade identitária e, ao mesmo tempo, como chamado


político (convite à manada) é uma estratégia de representação visual mais ou menos alinhada à
ideia de coalizão: é esboçada a tentativa de efetivar uma aliança pós-identitária, entretanto,
permanece um recorte seletivo baseado no empirismo da dissidência, ou seja, essa estratégia
opera como chamado indistinto a vivências marginalizadas e interpela as diferentes
subjetividades que escapam à norma que circunscreve o Humano. Assim sendo, pode-se dizer
que o animalizado e o monstruoso emergem tanto na escrita como no repertório visual
contracultural dissidente evocando uma manada aberrante (o não/humano conecta facilmente a
racialização, a deficiência, a sexualidade desviante, a transição de gênero etc.), sem delimitar
contornos que especificariam as subjetividades interpeladas. Trata-se de uma estratégia
negativa e não identitária, visto que as únicas identidades demarcadas são aquelas excluídas do
domínio da monstruosidade, ou seja, as que correspondem à norma.
Para exemplificar essa ideia, cabe atentar à capa do zine Plantas Marinhas e ao
quadrinho do zine Ansiolítico (ambos produtos de colaborações entre pessoas trans*/não-
29

binárias), nos quais é impossível atribuir sexo e gênero à figura representada, uma vez que os
registros que conferem essas demarcações no campo visual (as estilizações e estéticas
gendradas) são neutralizados pela animalidade.

Figura 6 - Capa do zine Plantas Marinhas

Fonte: Acervo do Autor (2020)


30

Figura 7 - Página do zine Ansiolítico

Fonte: Acervo do Autor (2020)

De maneira semelhante, no zine Plantas Marinhas (Figura 8) a correspondência entre


as figuras representadas (lobisomem, vampiro e múmia) e as identidades evocadas no texto
(“bicha”, “viado” e “sapatão”) é inabilitada. Complementarmente, a estratégia de justapor
cabeças de animais sobre desenhos de corpos humanos na capa do zine UNIPEGAPONI (Figura
9) permite evocar corpos dissidentes sem aludir a alguma identidade específica: sabe-se que
esse zine evoca afetos LGBTTQI, de forma que qualquer combinação, excluindo-se a prática
cis e/ou heterossexual, pode se tornar o sujeito do chamado.
31

Figura 8 - Página do zine Plantas Marinhas

Figura 9 - Capa do zine UNIPEGAPONI

Fonte: Acervo do Autor (2020)


32

Servindo-se da potência teratológica que vislumbra a evasão aos gêneros e,


simultaneamente, o escape ao Humano, dando novos rumos à proposta apropriativa teorizada
por Butler, os zines selecionados para essa pesquisa exaltam o contraste entre margem e centro
para deliberadamente proclamar a negatividade como componente fundamental desse
investimento pós-identitário: trata-se de estratégias autorrepresentativas precárias e antissociais
que, segundo Jack Halberstam, são premissas distintivamente dissidentes. O autor interconecta
a contracultura dissidente ao fracasso, à perda, ao esquecimento, à descontinuidade e ao
precário afirmando que a negatividade imbuída nesses projetos, bem como na autodeclaração a
partir de alguns estigmas historicamente repudiados, são componentes praticamente intrínsecos
à formação subjetiva dissidente: em vez de abdicar à marginalidade e de aspirar ao sucesso, à
legitimidade e à normalização, muitas produções travesti/trans* contraculturais abarcam o
fracasso que elas representam de qualquer forma e, para tanto, designam a monstruosidade
como local privilegiado e multifacetado em busca de uma autorrepresentação plural, contra-
reivindicativa, vingativa, ressentida e pós-identitária.
Dessa forma, vislumbra-se nesta pesquisa a possibilidade de identificar nos zines
locais profícuos para a análise da contracultura travesti/trans*, focalizando especialmente a
autoenunciação e a autorrepresentação alinhadas ao não/humano e ao monstruoso como
propulsoras de perspectivas dissidentes no que diz respeito à noção de temporalidade, ao
emprego de linguagens alternativas, às estratégias micropolíticas de resiliência e, sobretudo, às
incisões críticas nos sistemas identitários e à noção de Humano. Para tanto, o repertório
monstruoso travesti/trans* selecionado reúne figuras como o Homem Elefante (Figura 11), a
Minotaura (Figura 12) e a versão travesti de King Kong (Figura 10), empregadas por Cláudia
Rodríguez para expressar sua relação limítrofe com a linguagem, com a colonialidade e com a
temporalidade hegemônica (diante das diferentes vias de organização temporal impostas pelo
travesticídio).
33

Figura 10 – Trecho do zine Dramas Pobres7

Fonte: Rodríguez (2015, p.70)

Figura 11 – Trecho do zine Dramas Pobres8

Fonte: Rodríguez (2015, p.81)

Figura 12 – Trecho do zine Dramas Pobres9

Fonte: Rodríguez (2017)

No trabalho de Rodríguez as monstruosidades King Kong, canibal e minotaura afloram


criando vocabulários dissidentes, representando mulheridades outras, sugerindo filiações e
redes de interconstituição com agentes não/humanos e expressando o impacto da colonialidade

7
Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.
Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando
eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia
e viver no centro da cidade”.
8
Tradução: “Tudo o que não posso gritar como o grito que dá o homem elefante, eu sublimo e escrevo
ternamente...”.
9
Tradução: “Às vezes pareço com a Marilyn... Quando pego o cigarro e olho fixamente pro passado...
volto a levantar, a me sentir travesti e minotaura”.
34

do gênero na formação subjetiva travesti sudaca (especialmente nas passagens em que a autora
referencia Marylin, Pamela Anderssen e outras celebridades de Holiwood). Essas
monstruosidades, em especial a figura da King Kong travesti, serão detalhadamente analisadas
nos capítulos 3, 4 e 5 deste trabalho, focalizando a potência contra-reivindicativa, vingativa e
ressentida com a qual operam essas representações.
Além da King Kong travesti e da Minotaura, outra personagem animalizada que
representa a liminaridade das vivências sexo/gênero-dissidentes é o Lobis-homem-trans (Figura
13). Aparecendo pela primeira vez no zine de quadrinhos dissidentes Quimer(d)a #1, o lobis-
homem-trans é acionado como efeito colateral da hormonização em interações sociais em que
a transmasculinidade é ininteligível. A contrapelo do ativismo tradicional LGBTTQI (que
reivindica visibilidade às identidades marginalizadas) a faceta invisível ou inapreensível da
transmasculinidade emerge através dessa personagem como recurso: sua monstruosidade
animalizada oferece uma alternativa não só de recusa, como também de ameaça às
masculinidades cis-heteronormativas e à cultura subjacente (Figuras 14 e 15), conforme
demonstrarei no terceiro capítulo deste trabalho.

Figura 13 - |Trecho zine Quimer(d)a (2016)


35

Figura 14 - Trecho zine Quimer(d)a (2016)

Figura 15 – Trecho do zine Quimer(d)a #1 (2016)


36

Figura 16 – Trecho do zine Ofensivo Trans (2013)

Fonte: Acervo do Autor (2020)

Complementarmente, através de uma proposta separatista (em que os agentes


organizam normas-outras, ativadas no interior de uma comunidade dissidente), os autores do
zine Ofensivo Trans (Imagem 16) imaginam a transmasculinidade como desvio da espécie
humana e propõem políticas representativas que negam explicações sobre as identidades e
sexualidades dissidentes, ao mesmo tempo em que explicitam o funcionamento das
engrenagens da cultura visual desumanizante (ao referenciarem o zoológico, o circo e o Freak
Show). Alinhando-se à investida Tranimal (HAYWARD; KELLEY, 2013) do Lobis-homem-
trans*, o zine Ofensivo Trans sugestivamente representa as subjetividades dissidentes sem
atribuir-lhes visibilidade e contornos bem delimitados, esboçando um projeto
autorrepresentativo pós-identitário também ancorado na ininteligibilidade.
Semelhantemente, no livreto Poemário Transpirado, as identificações de Susy Shock
com animalidades e monstruosidades híbridas (como vulcões, cachorros, borboletas etc.)
recusam a ordem binária dos gêneros e as políticas identitárias neoliberais calcadas em jargões
como “somos todos humanos”. Por exemplo, no poema Yo, monstruo mio, apropriando-se
ironicamente do vocabulário reivindicativo tipicamente associado às políticas dos direitos
37

humanos, Shock reclama a própria monstruosidade e enfatiza a inoperabilidade da sua


experiência nos sistemas identitários (jurídico, científico, educativo, religioso) em vigor.

Figura 17 - Trecho de Poemário Transpirado

Fonte: Shock (2011).

Através do quadro teórico Não/humano (GIFFNEY; HIRD, 2008) as


autorrepresentações animalizadas de Shock (Figuras 17 e 20) se conectam com a personagem
principal do zine Estiericol, de Gabriela Binder (Figura 18), com as figuras mutantes dos zines
Sapatoons e Quimer(d)a (Figura 19) e com os alinhamentos (in)humanos de Rodríguez (Figura
21). Justapostas, essas proposições tecem filiações e parentescos pós-humanos em que agentes
inusitados (como bactérias, cachorros e próteses) emergem como parte integral do corpo
prostético travesti/trans*, desafiando as separações entre cultura/natureza e humano/não-
humano.
38

Figura 18 – Trecho do zine Estiercol: Suplemento Diverso de Binder (sem data de publicação)

Fonte: Acervo do autor (2020).

Figura 19 – Trecho do zine Quimer(d)a #2, 2017.

Fonte: Acervo do Autor (2020).


39

Figura 20 - Trecho de Poemário Transpirado

Fonte: Susy Shock (2011, p.26)

Figura 21 – Poema em Contodomisida

Fonte: Rodríguez (S.N)


40

Diversas estratégias alternativas ao ativismo reivindicativo tradicional (tipicamente


associado às agendas de coletivos institucionais LGBTTQI que solicitam visibilidade,
integração e direitos humanos) são apresentadas nessas publicações autônomas que operam
primordialmente através da contação de histórias e da autoteorização. Formando um arquivo
contracultural, essas produções inventam e compartilham estratégias micropolíticas embebidas
em afetos vingativos e ressentidos, fomentando a sobrevivência das subjetividades dissidentes,
bem como a possibilidade de fortalecer laços intracomunitários. Um exemplo pode ser
observado na passagem em que Rodríguez narra a monstruosidade como arma em interações
sociais cotidianas, bem como na história em quadrinhos em que a personagem Lobis-homem-
trans* trava uma batalha vingativa micropolítica dentro do ônibus (vista nas figuras 14 e 15).

Na rua um sedutor poeta da construção me disse: por que não me dá um sorriso de


presente? E a minha boca se abriu de lado a lado, mostrando minha salada de dentes
tortos, meio que me predispondo a comer o homem, porque meu sorriso é o de um
monstro. Minha resistência, minha arma, meu punhal, meu fuzil é monstrificar-me;
admitir que não sou outra coisa senão um fracasso para qualquer modelo, que não sei
amar como dizem que se deve amar, que o amor é privativo e não incomensurável.
Sou um monstro, senhores, sobretudo quando me seduzem e me fazem rir, porque
tendo a comê-los. (RODRÍGUEZ, 2015, p.83)10

Essas produções culturais selecionadas para a pesquisa localizam-se fora do espaço


social (são marcadas por um gesto antissocial separatista ou anarquista), emaranham-se em
vocabulários desautorizados e se materializam em formatos precários, visando apresentar os
múltiplos pontos de vista que compõem mosaicos de experiências travesti/trans* sudacas.
Enredando-se nos estigmas coloniais, esses projetos elegem o abjeto, o animal, o monstruoso e
o (in)humano para expressarem sua ininteligibilidade e inadequação, ou seja, contemplam
estratégias representativas pós-identitárias subversivas e, ao mesmo tempo, afetivas e
canalizadas na negatividade, na recusa, na falta, no fracasso e, em última instância, no
despertencimento à categoria “humano”.
O fracasso aflora nessas produções dissidentes na medida em que as reivindicações
humanitárias da agenda política LGBTTQI (demandas às vezes acomodadas pelos governos
neoliberais como, por exemplo, o direito ao casamento e à constituição familiar) são

10
Do original: “En la calle un seductor poeta de la construcción me dijo: porque no me regala una
sonrisa? Y la boca se me abrió de par en par, mostrando mi ensalá de dientes chuecos, como desponiendome a
comerme el hombre, porque mi sonrisa es la de un monstruo. Mi resistencia, mi arma, mi puñal, mi fusil es
mostruosiarme; admitir que no soy otra cosa que un fracasso para cualquier modelo, que no sé amar como dicen
que hay que amar, que el amor es privativo y no incomensurable. Soy un monstruo, señores, sobre todo cuando
me seducen y me hacen reír, porque tiendo a comérmelos” (RODRÍGUEZ, 2015, p.83).
41

substituídas pelo desejo de habitar a ferida colonial e permanecer às margens da sociedade. Esse
gesto antissocial e anarquista é acompanhado de estéticas, vocabulários e suportes que
substituem aqueles empregados institucionalmente para representar as experiências
travesti/trans*. Por exemplo, o zine – enquanto publicação independente e autônoma – surge
como alternativa à imprensa oficial, escapando do crivo e da censura das editoras e ignorando
o cânone literário e seu público expandido. A escolha 11 desse formato já implica por si uma
série de fracassos: depositando confiança na necessidade de manter alguns saberes isolados de
maneira separatista, as publicações autônomas dispensam o sucesso de vendas e desarmam,
assim, as premissas do sistema capitalista imperante. Ao mesmo tempo que essa atitude
antissocial garante a oportunidade de contarmos histórias-outras (desde a perspectiva da lupa
cis-heteronormativa), essa ferramenta desautorizada é subestimada, uma vez que restrições na
circulação e na difusão são consideradas indicativas de uma derrota supostamente não
reivindicável.
O zine também é por excelência um suporte do fracasso no sentido de que seu formato
implica a perda do conteúdo e a dificuldade de arquivamento: as páginas saem da sequência
original ou simplesmente desaparecem, a fotocópia borra e corta alguns trechos do conteúdo
(um convite ao improviso e à interpretação criativa), a matriz se dobra, molha e rasga durante
o transporte etc. A dinâmica de vida desse tipo de objeto cultural é mais um elemento que
impossibilitaria o enredamento de seu conteúdo na história oficial, a qual normalmente se
afirma coerentemente organizada a partir da comprovação, do registro e do arquivamento. É
interessante observar essas características analogamente às formas fragmentadas, orais,
afetivas, pouco ou nada registradas e completamente desautorizadas através das quais as
histórias das dissidências subalternadas sudacas persistiram, se transformaram e também se
perderam ao longo do percurso. Todas essas condições apontam para formas alternativas de
arquivar as memórias dissidentes e, complementarmente, para uma concepção também
inusitada da noção de temporalidade, que se desvencilha de propostas reivindicativas,
comumente orientadas para o futuro.
Por outro lado, esse formato favorece e encoraja a hibridização do conteúdo e sua
constante reterritorialização: o copyleft (que incentiva a livre edição do conteúdo), as traduções
localizadas e essas “redefinições circunstanciais” do registro desafiam a aura estática de
oficialidade que acompanha a noção de “original” (seja na literatura ou nas artes visuais). Assim

11
Aqui “escolha” pode abarcar também os projetos que, tendo sido negados pelas editoras, assumem
formatos independentes.
42

sendo, tais proposições encorajam o nomadismo e a transformação ou atualização do objeto.


Essa tendência à transformação também pode ser interpretada como análoga à maior
receptividade que as subjetividades e corporalidades gênero-diversas têm à mutação e à
metamorfose. Argumento que outros formatos de publicação podem refletir desejos-outros e
formas alternativas de organizarmos e entendermos história, cultura e a própria construção dos
nossos corpos.
A vida curta e o malfeito, a precariedade e o fracasso podem ser encarados como
acessos reivindicáveis de negatividade que se sintonizam com os recursos e dispositivos
historicamente postos ao alcance da dissidência: embora a validação de uma trajetória marginal
não se manifeste universal e rigorosamente na totalidade da produção das comunidades
marginalizadas, estima-se que o gesto antissocial está epistemologicamente vinculado à
constituição de subjetividades dissidentes em vários contextos, a exemplo do “sujeito
excêntrico” (fora do centro) teorizado por De Lauretis. A autora, pesquisadora da obra de
Monique Wittig e de seu postulado de que as lésbicas não são mulheres, coloca que

a “lésbica” formulada por Wittig não é simplesmente um indivíduo com uma


“preferência sexual” pessoal ou um sujeito social com uma prioridade “política”, mas
um sujeito excêntrico constituído num processo de luta e interpenetração, uma
reescrita do ser […] em relação a uma nova compreensão de comunidade, de história,
de cultura. (DE LAURETIS, 2007, p. 181)

Esse “sujeito excêntrico” (que escapa do gênero para subverter a heteronorma) se


constitui dentro de um lugar outro (elsewhere) onde uma série de prerrogativas originais surge
para orientar suas estéticas, representações, ideologias, escritas, intenções e formas de relação
e organização. Um aspecto fundamental desse lugar outro é sua característica falta de unidade
e estabilidade, ou seja, sua capacidade de abarcar uma multiplicidade de contradições.
Exemplificando essa ideia, de Lauretis afirma que a “sociedade lésbica” (separatista)
originalmente concebida por Wittig

não é um termo descritivo para um tipo de organização social (não tradicional), nem
um projeto para uma sociedade futurística, utópica ou distópica […], trata-se, senão,
de um termo para um espaço conceitual e experiencial talhado fora do campo social,
um espaço de contradições, no aqui e agora, que precisa ser afirmado mas não
resolvido. (2007, p. 181. Grifos meus)

Uma versão mais contemporânea do “sujeito excêntrico” é apresentada por J. Jack


Halberstam, que expande o território lésbico para alcançar um escopo mais amplo e abrigar
também outras subjetividades dissidentes. Segundo o autor, a subjetividade queer exalta o
43

contraste entre centro e margem para vincular a subjetividade “excêntrica” à marginalidade, à


negatividade, à perda, ao fracasso, ao esquecimento, à descontinuidade e à falta de perspectivas
de futuro. Halberstam dissocia os projetos e as estéticas das subjetividades queer da produção
de significado humanitária e positiva para formular uma conexão entre dissidência e
negatividade. Citando o trabalho de Lee Edelman (2005), o autor coloca que

[...] o sujeito queer, conforme argumentado por Edelman, está epistemologicamente


conectado à negatividade, ao sem sentido, ao improdutivo e à ininteligibilidade, e, em
vez de lutar contra essa caracterização arrastando a dissidência para dentro do
reconhecimento, ele [Edelman] propõe que abracemos a negatividade que, de
qualquer forma, estruturalmente representamos. (HALBERSTAM, 2011, p.106)

A escolha por negatividade não passa, então, de uma inversão da maneira de encarar
preceitos praticamente intrínsecos às subjetividades dissidentes: Halberstam sugere que, em vez
de abdicar da marginalidade e almejar o sucesso, a plenitude, a legitimidade, o direito e a
normalização; muitas proposições de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e
travestis assumem e acolhem o fracasso como prerrogativa e a margem como local de suas
produções.
Apesar das diferenças estruturais entre o “sujeito excêntrico”, de Lauretis, e o “sujeito
queer”, de Halberstam, ambas as propostas convergem celebrando e encorajando à
receptividade ao perceber-se e constituir-se como uma outra coisa – uma espécie de des-tornar-
se, des-ser, des-fazer, que abre caminho para outros modos, menos categóricos e estáveis, de
(auto)representação, aos quais se alinham as animalidades e as monstruosidades dos projetos
selecionados para essa pesquisa.
Podemos tomar emprestadas partes dessas teorias que conectam as subjetividades
marginais a formatos e desejos-outros, entretanto, é preciso ressaltar que, mais que um elemento
de caracterização do sujeito queer, excêntrico, kuir ou cuir, a precariedade das produções
contraculturais que analisarei é aqui abordada principalmente enquanto ressonância de um
estigma colonial que está sendo reapropriado e explicitado principalmente pelos corpos não-
brancos e gênero-diversos no nível local. Dessa forma, aqui é inserida uma camada adicional
de fracasso e de precariedade a essas teorias importadas que esboçam o sujeito
queer/excêntrico: depois de devorado por meio da proposta antropofágica (ROLNIK, 1998) do
sul global, esse quadro teórico é excretado e diluído na diarreia do nosso cu do mundo
(PELÚCIO, 2012) ou, então, desponta hibridizado e encarnado/parodiado nas monstruosidades
44

travesti/trans* sudacas famintas: “Soy la Marylin travesti que se come a los hombres como um
acto de generosidad hacia mis amigas travestis, porque sé que no existe perdón con hambre”12.
Considerando que tanto os materiais selecionados para esta pesquisa como seus
proponentes se localizam – e, em sua maioria, desejam permanecer – fora do marco institucional
de produção de conhecimento, antes de iniciar as análises aqui propostas é preciso atentar aos
questionamentos metodológicos e epistemológicos que emergem atualmente no campo dos
Estudos Trans*, especialmente considerando os métodos extrativistas tradicionalmente
associados à pesquisa acadêmica.
Levando em conta que se pretende instaurar uma metodologia pautada na validação de
retóricas, representações e cosmo-visões enredadas em conhecimentos-outros, se faz necessário
levantar uma série de indagações epistemológicas: como produzir uma pesquisa acadêmica
centrada em materiais e posições subjetivas que foram histórica e sistematicamente excluídas
da produção oficial de conhecimento? Como gerar um produto do qual a comunidade
travesti/trans* possa usufruir? Como lidar com as assimetrias que minha posição subjetiva de
pesquisador transmasculino branco, feminista e antirracista engendra? Quais partes dos
discursos institucionais que “norteiam” os corpos e as experiências sexo-gênero dissidentes
podem ser reapropriadas e quais devem ser descartadas, questionadas e substituídas para que
possamos imaginar epistemes e analíticas dissidentes sudacas, atribuindo uma perspectiva
descolonial aos estudos travesti/trans*? E, ainda, como formular uma metodologia que seja
ética e formalmente compatível com uma perspectiva travesti/trans* descolonial?
Nos próximos tópicos, através de análises de metodologias e de práticas institucionais
de produção de conhecimento, pretendo demonstrar que muitos métodos contingentemente
reiterados na pesquisa acadêmica produzem representações e outros conteúdos institucionais
profundamente alienados das vivências travesti/trans*. O destrinchar desses métodos
tradicionais de pesquisa será justificado a partir da necessidade de abrir espaço para novas
perspectivas e metodologias orientadas pela autorrepresentação travesti/trans* latino-
americana.

2.2 SÓ EXISTIMOS DESDE QUE NOS DESCOBRIRAM? EMBATES, DESCONFORTOS


E QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DO CAMPO DOS ESTUDOS TRANS*

12
Tradução: “Sou a Marylin travesti que come os homens como um ato de generosidade às minhas
amigas travestis, porque sei que não existe perdão com fome”.
45

Embora o Word, o OpenOffice, o LibreOffice e outros programas de edição de texto


insistam em sublinhar em vermelho as palavras “transgeneridade” e “transgênero” enquanto
escrevo (constantemente recordando com um maneirismo colonial que elas não existem ou
estão erradas), é preciso reconhecer o protagonismo dos estudos travesti/trans* no cenário
acadêmico contemporâneo.
Pode-se dizer que a partir dos anos 1990 transgeneridade e transexualidade vêm
despontando de maneira inaugural nas esferas autorizadas de produção de conhecimento na
medida em que autoras/es renomadas/os, como Judith Butler (1990; 1993), apresentam-nas
como desafiadoras da matriz heteronormativa que regula e naturaliza a correspondência e a
coerência entre “sexo”, “gênero”, “desejo” e “prática sexual”. Segundo Butler, há um potencial
desestabilizador latente na práxis e na corporificação (embodiment) dissidente (gay, lésbica,
bissexual, trans, intersexo etc.), uma vez que a perversão de qualquer dos termos da cadeia
mencionada acima pode desestabilizar a estrutura de toda a matriz, expondo os artifícios de sua
construção e revelando que seu caráter supostamente rígido e natural é maleável, já que é
forjado através de convenções culturais. Nesse contexto, transgeneridade, acompanhada de
transexualidade, de travestilidade e de intersexualidade, passam a popular os trabalhos
acadêmicos para representar uma ameaça conceitual às concepções até então hegemônicas de
identidade, visto que perturbam diretamente o laço que une os dois termos tidos como mais
sólidos da matriz em questão: “sexo” e “gênero”.
Enredando os estudos trans* na história da produção acadêmica dos Estados Unidos,
Susan Stryker atesta que as contribuições da queer theory para um novo entendimento da
relação entre sexo e gênero13 proporcionaram as condições para a propulsão do protagonismo
trans* nas esferas de produção de conhecimento: “Lutando, nós conquistamos nosso lugar de
fala, reivindicamos nossas vozes com vingança, dissemos quem éramos, e irrompemos no
discurso” (STRYKER, 2006, p.11).
Esse pioneiro protagonismo trans* norte-americano culminou na criação do campo
intitulado Transgender Studies (Estudos Trans*) que, apesar de também ser dedicado aos
estudos das subjetividades gênero-diversas, se diferencia do chamado “study of transgender
phenomena” (estudo do fenômeno trans* / estudo da questão trans*). Essa diferença se dá tanto
no que diz respeito à centralidade das subjetividades trans* na produção do conhecimento,
como no quadro epistêmico empregado para abordar as relações entre sexo e gênero. Stryker

13
O sexo biológico deixa de ser considerado suporte (indiscutível, material, inquestionável) que reflete
o gênero, passa-se a questionar a categoria “sexo” enquanto culturalmente instituída, em vez de natural.
46

vincula o “estudo da questão trans*” às pesquisas acadêmicas (antropológicas e científicas) que


se servem de quadros teóricos modernos, nos quais “sexo” é considerado a base material e
objetiva inquestionável na qual o gênero se espelha, ou, nas palavras da autora, dentro dessa
linha de pensamento: “sexo é considerado a âncora referencial estável que dá suporte e se faz
conhecer através dos signos de gênero que o refletem” (STRYKER, 2006, p.9). Em
contraposição, os quadros epistemológicos pós-modernos, que se desenvolveram também
através da queer theory, desestabilizam a categoria “sexo”: contestam a naturalização da ideia
de que o chamado “sexo biológico” seja a base fundacional do gênero e o fazem através da
análise da função histórica e dos efeitos de sua construção como tal.
Acerca da preservação da centralidade dos saberes produzidos por pessoas trans*, uma
das principais características do Estudos Trans*, a autora coloca que:

Os Estudos Trans* consideram que a experiência corporificada do sujeito falante, que


clama possuir saber próprio acerca do tópico em questão, é um componente adequado
– de fato, essencial – para a análise do fenômeno transgênero; o conhecimento
experiencial é tão legítimo como outras formas supostamente mais “objetivas” de
conhecimento, e é, na verdade, necessário para o entendimento das dinâmicas
políticas da situação sendo analisada. (STRYKER, 2006. p.12. Grifos meus)

Otimista, Stryker assegura o pioneirismo trans* e de seus saberes no contexto dos


EUA, vinculando-o aos quadros epistemológicos desenvolvidos pela queer theory. Entretanto,
é importante apontar que, tanto no contexto sudaca como também em contextos anglo-
americano, as produções acadêmicas orientadas pela queer theory impulsionaram a projeção da
temática travesti/trans* na economia simbólica e geraram visibilidade – ainda que não
necessariamente protagonismo – a esse grupo que foi e continua sendo histórica e
cistematicamente marginalizado das esferas intelectuais e culturais institucionais.
Analisando o efeito da instrumentalização da “Questão Transgênero” na propulsão das
teorias feministas anglo-americanas, Viviane Namaste (2009) oferece um olhar crítico aos
trabalhos acadêmicos que, como o de Butler, ao mesmo tempo em que produzem conhecimento
teórico centrado na violência sofrida por pessoas trans* e travestis, se eximem da
responsabilidade de impactar politicamente o grupo em questão e de validar suas formas de
produzir conhecimento. Propondo-se a vislumbrar uma “teoria feminista que seja ao mesmo
tempo intelectualmente sofisticada e politicamente útil”, Namaste identifica a violência
epistêmica do conhecimento acadêmico de caráter estritamente “ideológico, de curta visão e de
valor político limitado” (2009, p.18-21), cujas teorias são geralmente produzidas de forma
desvinculada das experiências, saberes e projetos travesti/trans*, senão às suas custas.
47

No contexto sudaca observa-se uma duplicação da referida violência epistêmica: aqui,


além de terem seus corpos, experiências e saberes excluídos das instituições que produzem
conhecimento formal, as identidades travesti/trans* são muitas vezes instrumentalizadas para
alavancar os debates advindos de quadros teóricos que muitas vezes não reverberam nos saberes
e referenciais das pessoas impactadas (explicitando discrepâncias epistêmicas entre o/a
pesquisador/a e seus “objetos de pesquisa”), de vocabulários ineficientes (que não comunicam
fora do âmbito acadêmico) e de perspectivas externas à comunidade (muitas vezes inclinadas
ao “salvacionismo”).
Analisando as barreiras enfrentadas pelo incipiente protagonismo travesti/trans* nas
esferas formais de produção de conhecimento, em especial as dificuldades de aplicação de
epistemologias próprias, o teórico argentino transmasculino Blas Radi comenta que:

A academia é ainda surpreendentemente avessa às perspectivas e acadêmicos/as


trans*. As áreas e projetos dedicados aos estudos de gênero e sexualidade são talvez
os mais relutantes a serem afetados por abordagens trans*, e os mais hostis a eles. Em
muitos casos a teoria queer funcionou como um rótulo que ao mesmo tempo garante
a inclusão de pessoas trans* como objetos de investigação e impede sua participação
nesses mesmos espaços acadêmicos (Pérez and Radi 2016; Namaste 2000). Como
resultado, a pesquisa no campo dos Estudos trans* pode ser bastante solitária,
marginal e com escassas oportunidades para o diálogo, ainda mais dado que as
comunidades epistêmicas nas quais os Estudos Trans* alcançou algum nível de
aceitação institucional têm sido tradicionalmente desinclinadas (ou até mesmo
resistentes) à incorporação de perspectivas do Sul. (RADI, 2019, p.44)

Em seu artigo Radi relaciona o desafio de desenvolver epistemologias trans* para a


pesquisa acadêmica aos obstáculos que limitam o reconhecimento de pessoas trans* enquanto
produtoras de conhecimento, às dificuldades de acesso e permanência dessa comunidade na
universidade e ao fato de que os Estudos Trans* são ainda um campo acadêmico
majoritariamente enraizado nos Estados Unidos e cuja tradução é escassa. Esse quadro sinaliza
questionamentos a serem considerados no desenvolvimento de uma metodologia descolonial
de pesquisa, especialmente levando em conta que a urgência de atentar às questões postuladas
pela comunidade trans* advém do meu pertencimento e subsequente compromisso com esse
grupo. Cabe então aprofundar os questionamentos acerca das epistemologias trans*, do lugar
de fala, da representação e as metodologias tradicionais de pesquisa, para então vislumbrar um
método de análise propositivo.
2.3 EMBATES ENTRE QUEER, KUIR E CUIR E OS ESTUDOS TRANS* SUDACAS:
ESTRATÉGIAS DE RECUSA E HIBRIDIZAÇÃO DOS SABERES DO NORTE GLOBAL
48

A teórica não-binária Jota Mombaça identifica uma “atualização da norma colonial”


na relação estabelecida pela academia brasileira com a história, com os conceitos e,
principalmente, com o próprio termo “queer”:

é uma atualização da colonialidade na medida em que ambas, a heterossexualidade


compulsória e a teoria queer perturbadora dela, vêm do mesmo lugar e através dos
mesmos dispositivos, só que uma vem nas caravelas e a outra das caravelas queer que
são a academia. (MOMBAÇA; DANTAS, 2016, 23’01”)

Caracterizando o fenômeno do alastramento da queer theory nos trópicos como “um


gesto simultaneamente colonial e perturbador, que precipita a própria captura antes mesmo de
chacoalhar de fato a ordem contra a qual promete insurgir-se”, Mombaça identifica a repetição
atualizada de um padrão imperialista (em sua atualização neoliberal) na soberania da queer
theory na academia brasileira, ao mesmo tempo em que reconhece seu efeito “perturbador” ou
subversivo no tocante ao regime cis-heteronormativo (MOMBAÇA, 2016). Na sua visão, a
hipervalorização desses conhecimentos advindos do norte global seria, então, o efeito de uma
atualização do modelo colonialista através do qual o império heterossexual e a matriz sexo-
gênero foram impostos enquanto norma.
No pensamento de Mombaça está implícito que a imposição da norma colonial sobre
os trópicos resultou na punição e no genocídio de populações racializadas (tanto nativas como
africanas), muitas das quais não instituíam formas organizativas calcadas no binarismo
sexo/gênero. Essa temática também tem sido explorada pelas teóricas e produtoras culturais
travestis Hija de Perra (Chile) e Giuseppe Campuzano (Peru), que recorrem a documentos e
dados do período colonial para realçar não só a existência de comunidades que escapavam à
matriz sexo-gênero, como também as punições especialmente direcionadas aos membros dessas
etnias que representavam afrontas às normas de gênero instauradas pelos missionários e
colonizadores. Essa asserção é comprovada pelo conteúdo da carta do “conquistador” espanhol
Pedro Cieza de León, a qual forma parte do Museo Travestí del Perú, organizado por
Campuzano:

Verdad es, que generalmente entre lo serranos et Yungas ha el demonio introduzido


este vicio debaxo de specie de sanctidad. Y es, que cada templo o adoratorio principal
tiene vn hombre o dos, o más: según es el ydolo. Los quales andan vestidos como
mugeres dende el tiempo que eran niños, y hablauan como tales: y en su manera,
trage y todo lo demás remedauan a las mugeres. Con estos casi como por vía de
sanctidad y religión tienen las fiestas y días principales su ayuntamiento carnal y
torpe: especialmente los señores y principales. Esto sé porque he castigado a dos: el
vno de los indios de la sierra, que estaua para este efecto en un templo que ellos
llaman Guaca de la prouincia de los Conchucos, términos de la ciudad de Guánuco:
el otro era en la prouincia de Chincha indios de su magestad. A los quales
49

hablándoles yo de esta maldad que cometían, y agrauándoles la fealdad del pecado


me respondieron: que ellos no tenían la culpa, porque desde el tiempo de su niñez los
auían puesto allí sus Caciques, para vsar con ellos este maldito y nefando vicio, y
para ser sacerdotes y guarda de los templos de sus Indios. (CIEZA DE LEÓN, 1995
apud CAMPUZANO, 2009, p. 82)

Nessa carta, identificamos que aos “homens vestidos de mulheres”, assim nomeados
na limitada perspectiva de Cieza de León, eram delegadas importantes funções espirituais
dentro da comunidade indígena em questão. O fato de haver para esses seres análogos às
travestis um lugar social nessa etnia pré-inca solidificava a justificativa do genocídio dessas
comunidades, de seus saberes e crenças, uma vez que os corpos indígenas e negros e que, ainda
por cima, escapavam da heteronorma eram vistos como bestiais, demoníacos, selvagens e,
portanto, inferiores e sub-humanos. Esse documento permite identificar que o regime cis-
heterossexual, ao menos no continente americano, é uma das primeiras imposições coloniais.
Infelizmente, situar as subjetividades travesti e trans* sudacas num quadro anterior e
contínuo de resistência à colonialidade do gênero ainda é um desafio para a pesquisa acadêmica.
Esse debate aponta para a importância de se elaborar um quadro teórico de pesquisa que
centralize a colonialidade do gênero nas análises das proposições travesti/trans* sudacas
selecionadas para este projeto, a fim de situar esses corpos num enredo histórico localizado.
Essas considerações permitem também lançar um olhar crítico às epistemes que sobrepassam o
cenário Latino-Americano (especialmente aos processos de colonização), ou seja,
contemplando as formas que determinadas comunidades subalternizadas criaram para produzir
seus próprios saberes, representações, linguagens, signos e categorias.
Complementar às indagações de Mombaça e questionando os efeitos do uso da queer
theory e a soberania de perspectivas e referências históricas euro-americanas na produção
acadêmica latino-americana, a cineasta e ativista travesti chilena Hija de Perra comenta acerca
da aparente impossibilidade de firmar uma vertente histórica dissidente sudaca:

parece que tudo o que tínhamos feito no passado, atualmente se amotina e se


harmoniza dentro do que São Foucault descrevia em seus anos na História da
Sexualidade e que mesclado com os anos de maravilhoso feminismo finalmente
acabam no que Santa Butler inscreveu como queer. (HIJA DE PERRA, 2015, p. 3).

Hija de Perra sugere que, através de marcos teóricos importados, a academia tende
muitas vezes a reinventar o “trans*” a partir de uma versão histórica isenta de referentes de
auto(re)conhecimento sudaca, deslegitimando a autorrepresentação que comunicaria sobre as
50

experiências e os corpos travesti/trans* latino-americanos marcados pela colonialidade do


gênero. Nesse sentido, a autora indaga:

Existimos desde que nos descobriram? Parece que nossa voz só se valoriza quando o
dominante nos encontra, nos faz existir. Como se a história anterior à colonização não
existisse e tudo partisse do descobrimento da América para estes indivíduos que não
sabiam nem sequer onde estavam. [...] de onde falamos hoje em dia? De uma terra
com história ou de um novo terreno descoberto por outros? (HIJA DE PERRA, 2014,
p.2)

Além de reivindicar a importância de enredar os processos e efeitos da colonização na


construção da subjetividade dissidente latino-americana, em especial a categoria “travesti”,
Hija de Perra chama atenção para o lócus enunciativo: levanta questionamentos sobre a
representação (produção simbólica) e a representatividade (presença) da comunidade dissidente
nas esferas autorizadas de produção de conhecimento e atenta para a importância de
analisarmos quem fala em nome de quem, através de quais dispositivos, direcionado a qual
público e com quais interesses.
Muito já se debateu acerca da validade da aplicação do termo queer no contexto
sudaca. As primeiras questões levantadas dizem respeito à dificuldade de sua pronúncia,
conforme indicado pelas anedotas de Felipe Rivas em seu artigo Diga “queer” con la lengua
afuera: sobre las confusiones del debate latinoamericano (2012, p. 59-75) e à sua
intradutibilidade, que é constantemente remediada por neologismos (teoria cu, teoria kuir, teoria
quer, teoria transviada etc.) que investem na adequação, tradução e/ou reelaboração do termo,
muitas vezes acenando a uma perspectiva decolonial.
Acerca da intradutibilidade, costuma-se indicar que o termo queer passa
necessariamente por um processo de higienização quando é empregado no ambiente
institucionalizado latino-americano: desvinculando-se dos corpos que pretende representar,
queer aparece descarnado e perde a potência subversiva em que estava originalmente embebido
quando foi tomado pelas comunidades dissidentes enquanto apropriação autodeclarada de uma
interpelação injuriosa. Em sua aplicação sudaca, queer tende a tornar-se, então, um eufemismo
higienista que convenientemente adorna os títulos de exposições museológicas, livros, artigos,
dissertações e teses, substituindo significantes locais precários como travesti, sapatão, viado
etc.
Outro efeito paradoxal de seu emprego no contexto sudaca é que, se originalmente
queer apelava à coalizão (com potencial de abrigar múltiplas subjetividades dissidentes, o termo
possuía um efeito dessegregante que subvertia o formato identitário tradicional das
51

manifestações LGBTTQI) e estava associado às teorias pós-identitárias (às noções de fluidez e


de performatividade de gênero), aqui ele passa a ser utilizado quase exclusivamente no
ambiente acadêmico como ferramenta de interpelação. Ou seja, torna-se uma taxonomia
identitária e classificatória, conforme apontado por Hija de Perra:

Sou uma nova mestiça latina do Cone Sul que nunca pretendeu ser identificada
taxonomicamente como queer e que agora, segundo os novos conhecimentos, estudos
e reflexões que provêm do Norte, me encaixo perfeitamente, para os teóricos de
gênero, nessa classificação que me propõe aquele nome botânico para minha
mirabolante espécie achincalhada como minoritária. (2014, p. 3)

Hija de Perra comenta que dificilmente questiona-se qual seria a relação de


afetividade, corporificação e identificação entre esse bloco de conhecimento teórico importado
e os sujeitos classificados como queer. Essa ideia é também explorada por Mombaça:

O queer de Pindorama emerge, assim, de um movimento inverso ao da história oficial


do queer estadunidense: vai da teorização à ética; é antes uma abordagem do que um
modo de vida e sua geografia afetiva é menos a da boite, da noite, das tretas de rua,
dos inferninhos e cantos escuros, do conflito com a polícia, e mais a das salas de aula
e corredores departamentais das instituições de produção de conhecimento formal.
(MOMBAÇA, 2016)

As autoras atentam a essa dissociação entre o queer e os corpos e experiências gênero-


diversas sudacas “achincalhadas como minoritárias”, sugerindo que as abstrações acadêmicas
criam representações alienantes às comunidades que pretendem interpelar, uma vez que
raramente são consideradas suas categorias internas, seus vocabulários, suas experiências e os
formatos de seus saberes. Essa discussão sinaliza, para esta pesquisa, a necessidade de
desenvolver uma metodologia que valide os vocabulários e saberes representados nas
proposições autorrepresentativas selecionadas, especialmente atentando para os aportes da
autoteorização. Nesse sentido e tendo em vista a natureza dos materiais selecionados para
análise, reforça-se a necessidade de considerar a contação de histórias e as escritas de si como
produção de teoria. Além disso, esse projeto imagina uma metodologia e uma escrita que não
só legitima, senão que opera através das visões de mundo e dos vocabulários utilizados
internamente pela comunidade.
Essa questão do queer enquanto interpelação acadêmica desconhecida ou rejeitada
pelos sujeitos que pretende representar é também reconhecida entre as/os assíduas/os
estudiosas/os da queer theory, como manifesto por Berenice Bento:
52

Mas como traduzir o queer para o contexto brasileiro? Qual a disseminação desse
campo de estudos no Brasil? Se eu perguntar para qualquer pessoa no Brasil “você é
queer?”, provavelmente escutarei “o que é queer?” [...] devemos reconhecer a
dificuldade que os estudos/ativismos transviados têm encontrado para se consolidar
no contexto nacional e parece que há um buraco entre a academia brasileira (espaço
de recepção dos estudos queer) e os movimentos sociais. Depois de quase quinze anos
do meu encontro com esses estudos, ainda escuto com frequência: “Queer o quê?”.
(BENTO, 2016, p. 23-14)

Aqui Bento reconhece a lacuna entre o que é produzido na esfera acadêmica e os


agentes de movimentos sociais (categoria que substituo aqui por “comunidades dissidentes”
objetivando estendê-la mais além do ativismo LGBTTQI para abranger organizações
micropolíticas, afetivas, efêmeras e precárias). Essa citação permite identificar que o cistema
heteronormativo e a sua salvação não somente procedem do mesmo norte global, como também
instauram uma prática colonialista. Conforme mencionado previamente, da mesma forma que
a heterossexualidade como norma tem uma origem colonial e é calcada na negação de outros
modos de produção de significado, o queer, nos trópicos, muitas vezes atropela as categorias e
epistemes dissidentes locais e distancia-se dos sujeitos por ela interpelados, colaborando, assim,
para a exclusão das comunidades já marginalizadas das esferas autorizadas de produção de
conhecimento.
Além de considerar o emprego de um vocabulário acadêmico que não comunica em
comunidades marginalizadas, atenta-se também para os desafios de incorporar quadros teóricos
norte-americanos nas pesquisas sobre transexualidades, travestilidades e transgeneridades
sudacas, especialmente considerando que, conforme apontado por Radi, o campo dos Estudos
Trans* ainda é fortemente enraizado nos Estados Unidos. Como podemos nos alimentar de
determinadas teorias e também saber recusá-las? Como utilizar as teorias de um campo de
saberes norte-cêntricos em diálogo (considerando as possiblidades de oposição, comparação,
hibridização, difração etc.), em vez de limitar-se a sobrepô-las e aplicá-las aos saberes, às
representações e aos sujeitos implicados nos materiais selecionados para a pesquisa?
No tocante ao emprego e à aplicação de teorias advindas do norte-global, serão
consideradas propostas como as de Berenice Bento (que cunha o termo “teoria transviada”
como alternativa ao “queer”) e de Larissa Pelúcio (que, no mesmo sentido, cria o substituto
“teoria cu”), que propõem enredar o queer nas experiências e vocabulários latino-americanos,
objetivando a apropriação descolonizadora de alguns dos aportes da queer theory para a
promoção de conhecimentos locais hibridizados com as epistemes do sul.
Suas propostas experimentais podem apontar caminhos para as metodologias desta
pesquisa, visto que seria equivocado e ingênuo negar os frutos da contaminação da queer theory
53

com as pautas, experiências e culturas de movimentos trans* latino-americanos. Além disso, é


preciso reconhecer também que o queer não é essencialmente colonialista: em seus
deslocamentos e cruzamentos de fronteiras há potenciais de transformação e reelaboração do
conceito (OCHOA, 2004). Em suas iterações sudacas, o queer será necessariamente uma traição
de seu original numa sucessão de equívocos propositivos.
Uma das formas de operar com e, ao mesmo tempo, marcar diferenças entre as teorias
e experiências trans* do norte e do sul global é justamente a partir de um quadro comparativo
que relaciona, associa e também promove a difração (HARAWAY, 2004), entre outros tipos de
interferências localizadas. Considerando essa alternativa, propõe-se para esta pesquisa a
estruturação de uma análise das monstruosidades travesti/trans* sudacas em comparação
àquelas que emergiram no norte-global, como as pioneiras associações entre monstruosidade e
transexualidade proclamadas por Mary Daly e reestruturadas por Susan Styker, respectivamente
em Gyn/ecology: The Metaethics of Radical Feminism (1978) e em My words to Victor
Frankenstein above the Village of Chamounix: Performing Transgender Rage (1994).
Compondo uma genealogia da Teratologia trans* que combina fragmentos do norte e do sul
global, proponho, a partir da leitura detalhada desses textos, mapear as dissonâncias e as
ressonâncias de diferentes quadros teóricos dos Estudos Trans*: estudando as bases as
experiências norte/eurocêntricas da discussão sobre monstruosidade e transexualidade, tecerei
hibridizações e também desvencilhamentos das subjetividades travesti/trans* sudacas e das
figuras não/humanas que elegem em suas autorrepresentações.
Friso, portanto, que a proposta aqui não é a de encontrar um “fora da cultura” ou
elaborar uma perspectiva separatista, primordialista e pura, senão reconhecer os diversos fluxos
que compõem o corpo travesti/trans* sudaca, que é fruto da hibridização de saberes de diversas
naturezas-culturas e origens. A intenção é, por outro lado, evitar uma metodologia que exclui
do escopo da pesquisa dados latino-americanos a fim de compor uma história “transnacional”
dos estudos trans, que reitera uma narrativa colonialista em que o sul do mundo não só conhece
e se identifica plenamente com as produções e histórias do norte, como se vê por ela
representado. Esse levantamento limitado, além de comunicar exclusivamente dentro do
contexto elitista acadêmico, converte as pessoas travesti/trans* da América Latina em meras
consumidoras de suas próprias histórias, uma vez que lhes é negado protagonismo e agência.
Ressalto, portanto, a importância de alimentar-se atenta e criticamente dos saberes norte-
americanos e europeus, situando transgeneridade, transexualidade e principalmente
travestilidade num quadro que favoreça autorreconhecimento da comunidade sudaca.
54

As colocações de Bento, Mombaça e Hija de Perra levantam uma série de indagações


sobre as disputas por um lugar de fala e os problemas de se falar em nome de determinada
comunidade, sobre as hierarquias e territórios velados na produção institucional de
conhecimento e sobre capitalização, priorização e disputas de interesses quando o enunciado
“trans” entra em jogo. Pensando “lugar de fala” em sintonia com as ideias de Viviane Namaste,
Viviane Vergueiro, Blas Radi, Dean Spade e Djamila Ribeiro, a seguir elenco algumas reflexões
que relacionam privilégio social ao privilégio epistêmico (guiando a discussão ao âmbito
estrutural e não individual), a fim de argumentar a favor dos saberes produzidos por membros
de grupos historicamente marginalizados que, além de oferecerem importantes considerações
discursivas, apontam para as potências de cosmo-visões orientadas por perspectivas dissidentes.

2.4 QUANDO O OUTRO NOS ENCONTRA: REPRESENTAÇÃO TRAVESTI/TRANS*


NO CISTEMA ACADÊMICO BRASILEIRO

“Las vocales no decían nada compasivo. Cuando las profesoras me enseñaban a


juntar las letras, las confundía y las malinterpretaba porque nunca decían nada de mí. Yo
siempre incompleta.” (RODRÍGUEZ, 2016)

“[...] falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.
Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a
hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.”
(RIBEIRO, 2017, p.38)

No Brasil, país recordista de assassinatos de travestis/trans* e onde estima-se que 82%


dessa população seja expulsa 14 da educação formal15, tem-se questionado cada vez mais a
tradição que delega e autoriza o lugar de fala, de escrita e, especialmente, a obtenção de escuta
daquelas/es que retêm o conhecimento institucional formal (o qual, sabemos, é privilégio de

14
Berenice Bento (2011, p.555) atenta para o fato de que o termo “evasão escolar” sugere que a baixa
frequência ou ausência/abandono da população LGBTT da educação formal aponte para casos
individuais/isolados, ou seja, que destituindo de responsabilidade os sistemas de organização social, o termo
“evasão escolar” culpabiliza o indivíduo ao empregar os valores da meritocracia (sintomáticos do regime
neoliberal). Sua substituição por “expulsão escolar” enfatiza a ordem estrutural e política da questão.
15
Esses dados foram fornecidos pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, que é presidente da
Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil e membro conselheiro do Conselho
Municipal de LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) em Cuiabá. Fonte:
<http://flacso.org.br/?p=15833>.
55

poucas/os, que reúnem composições específicas de interseccionalidades raciais, de gênero, de


sexualidade, de classe etc.).
Assistimos a uma recente conscientização em grande escala da noção de que “aqueles
que têm o poder de representar e de descrever os outros claramente controlam como esses outros
serão vistos” (BAHRI, 2013, p. 666) e do fato de que a representação funciona como ferramenta
ideológica capaz de produzir efeitos materiais (como a construção de subjetividades) que
afetam diretamente as comunidades representadas. Consequentemente, na mesma medida em
que a produção institucional evoca (em seus fóruns acadêmicos, culturais e políticos) as
subjetividades até então marginalizadas, eclodem questionamentos acerca da representação
(entrada no simbólico) desses sujeitos historicamente emudecidos e da sua representatividade
(presença física em espaços de articulação da autorrepresentação).
Resumidamente, pode-se dizer que, à medida que a academia vai ao encontro das
comunidades que pretende interpelar, há um inevitável choque de mundos que favorece
diversas problematizações das representações da dissidência: Quem tem acesso aos dispositivos
da representação? Que perspectivas e interesses têm sido contemplados? Como pluralizar a
representação, gerando a oportunidade da autorrepresentação das/os excluídas/os? Um exemplo
emblemático que fez repercutir esse debate na cena dissidente acadêmica brasileira foi o
ocorrido no I Seminário Queer: cultura e subversão das identidades, que aconteceu no SESC
Vila Mariana, em São Paulo, nos dias 9 e 10 de setembro de 2015.
O evento institucional reuniu em mesas de debate diversas celebridades acadêmicas
nacionais e internacionais, sendo elas: Judith Butler, Marie-Helène Bourcier, Richard Miskolci,
Carla Rodrigues, Karla Bessa, Leandro Colling, Guacira Lopes Louro, Jorge Leite Junior, Pedro
Paulo Gomes Pereira, Berenice Bento, Marcia Tiburi e Larissa Pelúcio. Uma breve análise do
perfil das/os convidadas/os permite entender que não por acaso tal primeiro seminário queer
foi apelidado de “cisminário” (evocando a categoria cisgênero), em função das críticas
elaboradas pelo público.
A discussão em torno da escassa presença de subjetividades marginalizadas (pessoas
trans, negras, de classes sociais baixas etc.) na composição das mesas não surgiu
espontaneamente na fala das/os palestrantes, mas despontou em três perguntas do público na
mesa intitulada Contra-hegemonia: os estudos queer entre os saberes insurgentes,
protagonizada por Larissa Pelúcio e Richard Miskolci. Anunciadas pela mediadora Anna Paula
Vencato como sendo “perguntas mais críticas e duras”, as questões acerca do perfil das/os
56

pesquisadoras/es convidadas/os foram apresentadas no final da sessão de perguntas e estavam


em sua maioria direcionadas a Miskolci, conforme transcrito abaixo:

(1) Richard, durante o seminário falou-se muito nas transformações das políticas de
reconhecimento das chamadas minorias raciais, sexuais, de gênero etc. Como você
enxerga a não presença dessas pessoas aqui sem lugar direto de fala? Como reverter
tal quadro se ainda precisamos falar por eles (ou nós)? [...] (2) Na sua fala de ontem
você falou brevemente sobre o conceito de cisgênero. Hoje, no seu apanhado do
contexto histórico e social do país, você repetiu os termos “política sexual”,
“feminismo” e “homossexual”. Onde estão as pessoas trans na sua exposição da teoria
queer? [...] (3) O I Seminário Queer é uma grande iniciativa para a difusão dos estudos
de gênero no Brasil. Entretanto, é nítida a presença majoritária de acadêmicos brancos
de classe média/alta. Como ampliar a visibilidade da teoria queer e fornecer meios e
espaços para que seus próprios agentes (travestis, pessoas trans, drag queens etc.)
possam se expressar de forma direta sem o intermédio da academia e de seus poucos
privilegiados? (PELÚCIO; MISKOLCI; VENCATO, 2015, 83’28”)

A resposta de Miskolci às perguntas a ele direcionadas pode ser apreciada nos


fragmentos transcritos abaixo:

Eu também sofri violências, eu também tenho essa experiência. [...] Não estou falando
“pelos” outros, eu estou falando “com” os outros. [...] No que toca falar pelo outro, eu
penso na Spivak. Vamos pegar a Spivak. A ideia da Spivak é a seguinte: o subalterno
não pode falar, não porque ele não tem voz. Você pode trazer às vezes pessoas e dar
o microfone pra elas: falta o vocabulário. Nosso trabalho é construir um vocabulário
que permita reconhecer violências, ampliar as possibilidades da gente compreender a
nossa política, o lugar que a gente ocupa nelas e, sobretudo, pensar em espaço que
podem ser mais compartilhados, vividos em conjunto, que possam ser positivos pra
todos e não nas pequenas políticas das divergências, atomizantes, neoliberais, que
fazem pessoas quererem ser, na verdade, estrelas representantes de outros grupos.
(PELÚCIO; MISKOLCI; VENCATO, 2015, 91’57”. Grifos Meus)

Miskolci, um dos mais célebres pesquisadores brasileiros da teoria queer, apresenta


uma leitura controvertida da obra Pode o subalterno falar?, de Gayatri Spivak (1988), para
legitimar a estrutura hierárquica que garante à/ao acadêmico/a uma posição de superioridade
intelectual. Em sua fala, o pesquisador reforça a ideia de que as comunidades marginalizadas
não podem tomar autonomamente as rédeas de sua entrada no simbólico, uma vez que
dependem da figura de um/a especialista capaz de representá-las e de, generosa e
altruisticamente, oferecer um acervo terminológico que será acatado e utilizado inclusive
internamente. Enquanto Spivak aponta que, nos fóruns autorizados de produção de
conhecimento, a validação de alguns vocabulários e saberes em detrimento de outros é um dos
fatores responsáveis pelos processos de subalternização, Miskolci afirma que os subalternos
não possuem vocabulário (embora tenhamos desenvolvido um refinado dialeto próprio: o
pajubá), e acaba confirmando a distância entre pesquisador/a e objeto de pesquisa, reforçando
57

as assimetrias que legitimam alguns saberes e excluem outros e exaltando o egocentrismo


salvacionista de muitos/as pesquisadores/as.
A fala de Miskolci foi interrompida por Pelúcio, que, sensível ao desconforto que a
opinião de seu colega gerou no público e não compactuando com a exposição equivocada dos
conceitos canonizados por Spivak, explica:

[...] Não, não é isso. Que quando a Spivak fala, e ele tá falando no contexto da Spivak,
é o seguinte que ela diz: pra você ser realmente escutado e levado a sério você tem
que falar com os termos hegemônicos. E o que a gente tem que fazer é muito como o
Pedro Paulo estava falando: valorizar outros saberes, então, assim, é saber que outras
sociologias são possíveis, e que esse vocabulário que hoje é desprestigiado, e eu talvez
fico pensando quantos de nós aqui presentes já em assembleias estudantis ou outros
fóruns não demos menos ouvidos a outras pessoas que pareciam não dominar os
vocabulários que nós achávamos legítimos para aqueles fóruns. Então é nesse sentido
que a Spivak vai dizer que o subalterno não pode falar. Não porque não tem voz, não
porque não tem o vocabulário, mas porque a forma como eles se expressam não é
reconhecida pelos saberes hegemônicos e é brutalmente desqualificada. (PELÚCIO;
MISKOLCI; VENCATO, 2015, 93’40”)

As perguntas acima transcritas foram inicialmente respondidas por Pelúcio que,


sobrevoando as complexidades da crítica, anunciou e reconheceu seu status privilegiado (de
classe, sexualidade, gênero, raça etc.), citou uma série de intelectuais trans* e travestis (como
Jaqueline de Jesus, Luma Andrade, Viviane Vergueiro, Daniela Andrade e Amara Moira) com
o intuito de valorizar suas produções e expressou a vontade de transformar esse campo e dividir
o palco e o microfone com as subjetividades que estavam ausentes. A teórica ressaltou também
a confiança que deposita na carga política de seu trabalho e no seu potencial de transformação
da esfera social e, nesse sentido, ainda em defesa de sua pesquisa acadêmica (que tem como
objeto a população travesti e transfeminina), afirmou que: “O que a gente tem feito nos últimos
tempos, eu, e eu acho que a maior parte das minhas colegas e meus colegas, não foi falar ‘por’
ninguém, foi falar ‘com’” (PELÚCIO; MISKOLCI; VENCATO, 2015, 86’02”). Voltaremos a
esse ponto mais adiante.
O ocorrido no I Seminário Queer (cisminário) reflete que as/os teóricas/os que estudam
as dissidências estão sendo pressionadas/os a considerarem como suas próprias localizações e
posições subjetivas se refletem na sua produção intelectual. Essa lógica nos compele a
reconhecer as limitações de nossas perspectivas e a levar em conta o fato de que, ao pleitearmos
privilegiadamente um lugar de fala disputado, corremos o risco de colaborar para a exclusão
dos corpos que foram marginalizados da produção do conhecimento. Poderíamos supor que, ao
se confrontarem com tais questionamentos, essas/es pesquisadoras/es seriam impulsionadas/os
58

a reconhecerem a necessidade de autoteorização e de protagonismo de ditas comunidades na


produção dos saberes que as contemplam, conforme esboçado na fala de Pelúcio. Entretanto,
nós nos deparamos também com alguns posicionamentos que aplanam essa discussão,
confundindo “lugar de fala” com “representação”, conforme pode ser observado no
posicionamento de Tatiana Lionço em uma palestra a convite do CUS (Grupo de Pesquisa em
Cultura e Sexualidade) da UFBA em 9 de setembro de 2013:

A pesquisadora disse que, quando começou a pesquisar sobre transexualidade, não


existiam pessoas trans na universidade para falar por elas próprias. “Hoje, felizmente,
isso já existe, e tenho negado convites e indicado essas pessoas para falar sobre o
tema. Mas não posso ser acusada de ter cometido um pecado por falar sobre trans se
sou uma pessoa cis. Se for assim, estou fazendo uma pesquisa sobre intersexos e vou
cometer o mesmo pecado”, disse ela. (CUS, 2013)

Aqui, Lionço esvazia os conceitos do debate ao reduzi-lo a uma espécie de


policiamento identitário – um dispositivo de premissas essencialistas, supostamente capaz de
outorgar quem estaria “autorizada/o” a falar em nome das pessoas travesti/trans*.
Primeiramente, cabe ressaltar que “não há visão imediata do ponto de vista das/os
subjugadas/os. Identidade, incluindo autoidentidade, não produz ciência; posicionamento
crítico, sim.” (HARAWAY 1991, p.193 apud RADI, 2019, p.58). Além disso, é oportuno
salientar que a problematização que venho apresentando também incide sobre a noção de “falar
em nome de alguém”, “falar por alguém” e o “status (autodeclarado ou não) de representante
de uma comunidade”, de modo a evidenciar que os fardos da representação (sua capacidade
simulacral de gerar unidades e estereótipos) também precisam ser encarados criticamente.
Assim sendo, torna-se imprescindível caracterizar a diferença entre ser o/a representante de
determinada comunidade (“falar em nome de outros/as”), preconizado na fala de Lionço, e o
argumento que venho construindo acerca da necessidade de que múltiplas perspectivas internas
das comunidades trans* sejam reconhecidas. Afinal, o apelo desse trabalho é pela pluralização
e diversificação das vozes autorizadas, o que implica a escuta, a abertura aos confrontos, às
divergências, aos contrastes e às negociações, inclusive àquelas que emergem no interior dos
diversos universos travesti/trans*.
Além disso, conforme colocado pela teórica trans Viviane Vergueiro, nossa ênfase nos
saberes e lugares de fala travesti/trans* “não significa que somente individualidades
transgêneras e não-cisgêneras sejam capazes de pensar gêneros ou realidades transgêneras e
não-cisgêneras, mas sim que há um potencial inexplorado, em nossas histórias frequentemente
invisibilizadas, de desestabilizar os fundamentos nos quais se assentam os discursos dominantes
59

de gênero” (2015, p.13). Complementarmente, Stryker aponta que argumentar a favor do


protagonismo trans* na produção de conhecimento referente a esse grupo

[...] não é o mesmo que dizer que o conhecimento subjetivo de “ser transgênero” é de
alguma forma mais valioso que o conhecimento [...] alcançado de uma posição
exterior, mas é uma asserção de que nenhuma voz no diálogo deve ter o privilégio de
mascarar particularidades e especificidades de suas próprias posições de fala, através
das quais poderia reivindicar uma falsa universalidade ou autoridade. (STRYKER,
2006, p.12).

Esquivando-me da solução sugerida por Lionço, cabe fazer uma ressalva em


reconhecimento às contribuições de teóricas/os cisgênero que, bem-intencionadas/os,
produziram resultados muitas vezes profícuos, viabilizando medidas capazes de transformar as
realidades de travestis e pessoas trans*. Ademais, é preciso reconhecer que a formação de redes,
coalizões e alianças diversas é uma estratégia necessária, visto que “estamos bastante distantes
(mesmo) de um contexto em que pudéssemos, pessoas trans*, substituir as pesquisadoras cis
que nos estudam, assim como de um contexto em que efetivar tal substituição fosse
minimamente factível, de um ponto de vista político” (VERGUEIRO, 2015, p. 90).
Reitero que, em vez de regular autoritariamente “quem pode falar em nome de quem”
e objetivando diferenciar “lugar de fala” de “representação”, este trabalho reivindica a expansão
desse campo de enunciação, objetivando desarmar o “enunciador neutro” e os efeitos
estereotípicos da representação: é manifesto aqui o desejo de emergência da multiplicidade de
perspectivas dissidentes na produção de saberes e vislumbra-se a criação de canais através dos
quais as vozes dissidentes possam estar em diálogo produtivo umas com outras, objetivando
transformar o repertório simbólico alienante ao qual temos sido sujeitados/as. Esses anseios não
se realizarão, entretanto, sem a corrupção, perversão e subversão dos suportes, meios,
vocabulários, formatos e metodologias tradicionalmente impostos pelas disciplinas acadêmicas,
conforme apresentarei mais adiante.
Retomando as colocações de Pelúcio sobre o papel de travestis e pessoas trans* na
produção do conhecimento acadêmico, convém questionar o significado do bordão “não falo
‘por’ ninguém, falo ‘com’ [as comunidades marginalizadas]”, proferido por diversos/as
pesquisadores/as, visando, muitas vezes forjar a participação de grupos marginalizados, com a
esperança de abrandar a demanda contemporânea pela autorrepresentação dissidente.
Esse recurso retórico aparece como uma fórmula fácil e aceitável utilizada por
pesquisadores/as para justificar o trabalho produzido dentro das instituições autorizadas de
produção de conhecimento, esquivando-se dos embates da ausência da perspectiva dissidente
60

(em especial as travesti/trans*) nesse ambiente. O bordão “não falo por, senão com [as
comunidades marginalizadas]” agrada, pois está calcado num modelo ideal de alianças
políticas: insinua que as/os acadêmicas/os inauguram e fazem circular as reivindicações
marginais dentro daqueles lugares aonde elas não chegam. Cabe frisar mais uma vez que o
objetivo final dessa mediação deveria ser abrir espaço para que as perspectivas excluídas se
façam presentes, o que implicaria necessariamente a transformação desses territórios, de
seus/suas interlocutores/as, dos vocabulários vigentes, de sua estrutura fundacional, ou seja,
subversões generalizadas do formato tradicionalmente instituído, em especial a propriedade da
escuta. Entretanto, é preciso reconhecer que seu real efeito é a manutenção de um cargo de
mediação entre as instituições (de ensino, de saúde, políticas etc.) e as subjetividades
marginalizadas, cujos vocabulários continuam sendo percebidos como inadequados, conforme
exemplificado pelas ideias de Miskolci.
A fala de Pelúcio na ocasião do Cisminário é aparentemente sensível a todas essas
perturbações. Entretanto, afirmar passionalmente que não se está falando “por”, senão “com”
as comunidades travesti/trans*, sem especificar as medidas tomadas para tanto, acaba sendo
uma estratégia esquiva e insuficiente, que levanta ainda mais questionamentos: de que forma
as pessoas trans, negras, de classe baixa participam ativamente da produção de conhecimento
da intelectual? A escrita é feita em conjunto? É endereçada a essas comunidades? O formato e
o conteúdo são por elas escolhidos e revisados? Afinal, que tipo de metodologia foi empregada
para contemplar a ambiciosa proposta de se falar “com” as comunidades marginalizadas?

Retomando o bordão “não falo ‘por’ ninguém, falo ‘com’ [as comunidades
marginalizadas]”, primeiramente, cabe estabelecer o pressuposto de que “falar com as
comunidades marginalizadas” implica não só consentimento, como também cumplicidade entre
pesquisador/a e “sujeito” pesquisado. A esse respeito, em seu artigo Undoing Theory: The
“transgender question” and the Epistemic Violence of Anglo-American Feminist Theory
(2009), Namaste questiona as metodologias feministas anglo-americanas empregadas em
pesquisas sobre transexualidade/transgeneridade e, inspirando-se em critérios feitos por
comunidades indígenas para avaliar as pesquisas que as têm como objeto, a autora esboça três
princípios para a produção de conhecimentos feministas emancipatórios, sendo eles: relevância,
equidade na participação e autoria/propriedade (ownership).
O princípio de equidade na participação da produção acadêmica é defendido por
Namaste como sendo um dos principais critérios de sua proposta, pois é o elemento que institui
que a comunidade pesquisada deve necessariamente beneficiar-se do projeto. Essa deliberação
61

de que o conhecimento produzido seja útil à população pesquisada tem também como efeito a
regulação da relevância do estudo, uma vez que a hipótese da pesquisa passa a ser informada
por uma agenda interna. Ao mesmo tempo, o princípio de autoria/propriedade compartilhada
assegura que o conhecimento não seja extraído, apropriado, comodificado e reificado e que a
pesquisa tampouco gere imaginários ou estereótipos que prejudicariam a comunidade
representada.
Namaste aponta que é preciso transformar radicalmente as relações entre os/as
acadêmicos/as e as comunidades por eles/as pesquisadas através da insistência na equidade da
participação na produção do conhecimento. Entretanto, a autora reconhece que na prática
acadêmica as “parcerias têm comumente significado que a comunidade fornece acesso a um
campo para que o/a pesquisador/a possa obter dados para responder às perguntas que ele/ela
criou” (NAMASTE, 2009, p.16). Nesse sentido, atento para o fato de que, no Brasil, é comum
observarmos pesquisadoras/es cisgênero se infiltrando nos ambientes exclusivos de pessoas
sexo/gênero-diversas (muitas vezes sem anunciar seus interesses e identidades) e criando
metodologias que extraem dados para suas pesquisas sem o consentimento dos “objetos de
pesquisa”16.
2.5 REPRESENTAÇÃO COMO PONTO DE VISTA: MAIS ALGUMAS NOTAS SOBRE
MOTIVAÇÕES, OBJETIVOS E PÚBLICOS DOS CISTEMAS ACADÊMICOS

“Mas escrevo com um espelho na minha frente, porque se esqueço quem está
escrevendo, a hegemonia começa a escrever através de mim.” (Leila Dumaresq, Ensaio
(travesti) sobre a escuta (cisgênera)).

Considerar a perspectiva de quem produz o conhecimento e o repertório simbólico de


forma geral (seja literatura, imagem, discurso médico, cinema etc.) é um exercício que
complexifica esse debate sobre a representação subalterna, pois favorece o abandono de
análises baseadas em binarismos como “representação positiva” versus “representação
negativa” ou “representação real” versus “representação falsa” e convida a investigar os efeitos
desses produtos culturais/intelectuais levando em conta os acessos e interesses de suas/seus

16
Exemplos dessa asserção podem ser observados nas metodologias empregadas, por exemplo, na tese
FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: a emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo,
em que a pesquisadora Simone Ávila cria um site para atrair seus objetos de pesquisa fazendo-se passar por homem
trans*.
62

proponentes. Como explica Ella Shohat: “embora não haja verdade absoluta, nenhuma verdade
além da representação e da disseminação, existem ainda perspectivas verdadeiras contingentes
e qualificadas, nas quais as comunidades investem” (SHOHAT; STAM, 1994, p. 179).
Pensando em metodologias para análises culturais, Shohat rejeita a busca por uma
representação que ofereça uma realidade mais real ou mais fidedigna (mais próxima da
comunidade representada) e nos encoraja a assumir que toda representação é o resultado de um
aglomerado de discursos contingentes, condicionados a perspectivas de determinadas
comunidades e em conformidade com seus interesses.
As principais críticas da comunidade travesti/trans* à academia problematizam o fato
de que os dispositivos institucionais de representação têm se concentrado nas mãos de um grupo
hegemônico e homogêneo, que comumente constrói, através da extração de dados, uma
alteridade objetificada, alienada e exotizada. As ideias de Shohat induzem à observação dos
efeitos da representação levando em conta os interesses (motivação), os meios e os acessos de
suas/seus propositoras/es. Uma análise desses componentes explicita que o disputado terreno
da representação está necessariamente imbricado na produção de campos de exclusão e de
inadequação e que, dependendo da perspectiva através da qual opera, pode vir a rejeitar os
pontos de vista e interesses das comunidades que pretende representar, conforme explicado
também na escrita de Vergueiro:

as construções de conhecimento sobre identidades de gênero a partir dos olhares


cisgêneros não se configuram, necessariamente, a partir das epistemologias mais
relevantes às populações gênero-diversas: afinal, como aponta Namaste (2000, 1),
“muito poucas das monografias, artigos e livros escritos sobre nós lidam com as
realidades práticas de nossas vidas, nossos corpos, e nossas experiências do mundo
cotidiano”. (VERGUEIRO, 2015, p. 79)

Aqui, mais que solidificar uma categoria rígida e identitária para abrigar “o/a
pesquisador/a cisgênero”, Vergueiro identifica a reincidência de métodos tradicionais de
pesquisa acadêmica que geram representações profundamente desidentificadas das vivências
travesti/trans*. De maneira complementar, na citação que inaugura este tópico, a ativista e
escritora trans* Leila Dumaresq insinua que sua escrita trans-situada é tecida a contrapelo
daquelas convenções acadêmicas que, se agrupando e se repetindo, sedimentaram-se
naturalizando determinadas perspectivas e forjando neutralidade na escrita institucional.
Todas as indagações levantadas neste capítulo permitiram questionar reincidências
metodológicas que se pretende evitar na formulação da metodologia que será utilizada nesta
pesquisa. Mas o que haverá de proveitoso a ser extraído desse desmantelamento das
63

engrenagens da produção autorizada de conhecimento? Como uma proposta informada pela


analítica travesti/trans* poderia emergir das ruínas dos cistemas aqui contestados?
Estimo que as possíveis contribuições das analíticas travesti/trans* para a
transformação do campo de produção de conhecimento se permitem imaginar justamente a
partir do destrinchamento e da perversão das bases que sustentam as práticas acadêmicas
tradicionais, ou seja, através do questionamento dessas convenções, de suas motivações e
objetivos, da formulação de seus eleitorados (o endereçamento das falas), das referências
(outras produções acadêmicas, a queer theory etc.), de seus suportes (livros, leis, teses,
diretrizes, tratados etc.), vocabulários (escrita em terceira pessoa, pedantismo da articulação
eloquente etc.), artifícios (métodos de organização e coleta de dados estatísticos etc.) e dos
locais (institucionais) que acolhem e incentivam a produção desse tipo específico de
conhecimento.
Argumento ao longo desta pesquisa que essas desordens e contestações do território
institucional de produção de conhecimento tendem a uma carga negativa (propiciam o conflito,
o fracasso, o imperfeito, a intraduzibilidade, o despertencimento e a recusa) e não prometem
necessariamente modelos e alternativas “melhores” ou “mais corretas”, senão a proliferação de
perturbações propositivas capazes de surtir efeitos descoloniais. Elas são, portanto, um ponto
de partida favorável à criação/validação dos saberes dissidentes, especialmente àqueles que
pretendem resistir à própria acomodação e assimilação nas instituições neoliberais e investir na
desestabilização dos sistemas que excluem as dissidências.

2.6 ESBOÇANDO UMA METODOLOGIA COMPATÍVEL

“Uma tarefa importante dos Estudos Transgênero é articular e disseminar novos


quadros epistemológicos, e novas práticas representativas, em que variações nas relações
sexo/gênero possam ser entendidas como moralmente neutras e representativamente
verdadeiras, e através das quais a violência anti-transgênero possa ser vinculada a outras
formas sistêmicas de violência, como pobreza, racismo.” (STRYKER, 2006, p.10)

Selecionar proposições autorrepresentativas advindas das culturas travesti/trans* fora


do marco institucional de produção de conhecimento não é suficiente para garantir que este
trabalho acolherá as demandas e premissas esboçadas neste capítulo. No exercício de
vislumbrar uma metodologia compatível com a proposta, emergem mais perguntas que
64

respostas: se o endereçamento dessa produção almeja à própria comunidade, quais vocabulários


e formatos devem ser empregados? Se o que me compele a produzir é o desejo de formação e
de fortalecimento de uma comunidade afetivo-política, como esse projeto facilitará encontros
(necessariamente extra-acadêmicos) e a formação de redes? Quais referências podem ser
adotadas para sustentar, sempre que possível, as perspectivas dissidentes e sudacas? Como
marcar meu lugar de fala e minhas experiências (ou seja, minhas posições subjetivas) no
processo de escrita? De que forma posso garantir que o que será produzido aqui ressoará em
outras vidas e corporalidades travesti/trans*? Como valorizar os saberes dessas comunidades
subalternizadas e, ao mesmo tempo, colocá-los em diálogo com outras epistemes, evitando
fetichizações e possibilitando hibridizações teóricas?
No desenvolvimento desta pesquisa será formulada e aplicada uma metodologia
dissidente, a qual combina ferramentas, terminologias e acessos de um quadro epistemológico
diretamente relacionado às subculturas travesti/trans* aos métodos utilizados na pesquisa
acadêmica, como levantamento bibliográfico, pesquisas em acervos, análises dos materiais e
observação do contexto de inserção dos objetos da pesquisa. Acerca da formulação de
metodologias contra-hegemônicas, em seu livro Female Masculinity, Halberstam (1998, p.19)
explica algumas diretrizes de sua metodologia queer:

de certa forma, é uma metodologia carniceira (propõe revirar a pilha de descarte em


busca de métodos e alternativas rejeitados) que se serve de diferentes procedimentos
para coletar e produzir informação sobre sujeitos que foram deliberada ou
acidentalmente excluídos dos estudos tradicionais do comportamento humano. A
metodologia queer pretende combinar processos que são geralmente contraditórios, e
recusa a compulsão acadêmica pela coerência disciplinar.

Uma metodologia com princípios semelhantes aos mencionados se faz necessária para
o projeto em questão, uma vez que este prioriza comunicar dentro da subcultura dissidente.
Assim sendo, é reconhecida aqui a necessidade de aplicação de um vocabulário distintivo e
separatista (embora estruturado através de uma linguagem acessível), bem como de estipular
um campo de referências também singular, que ganha significado no interior das comunidades
interpeladas. Partindo da ideia de que reunir as autorrepresentações travesti/trans* através de
um quadro analítico trans* significa reconhecer e empregar os termos e gestos antissociais
corporificados pelas subjetividades dissidentes e expressos em seus projetos, analisarei as
proposições selecionadas empregando uma metodologia também dissidente: a Teratologia
trans*.
65

Primeiramente, convém ressalvar que, por reunir autorrepresentações monstruosas que


sinalizam uma forma sombria, nômade, incerta e negativa de constituir-se e representar-se, a
Teratologia trans* propõe um exercício de análise experimental, que é anunciado porém nunca
inteiramente formulado enquanto método, pois não se pretende uma estrutura estável ou
confiável e exime-se, portanto, de ser aplicado como modelo. Nesse sentido, vale destacar que,
reconhecendo e marcando a resistência e a rejeição aos cistemas que historicamente excluíram
os sujeitos excêntricos (marginais), a proposta de elaborar uma “genealogia monstruosa da
autorrepresentação travesti/trans*” é formulada como negação e expressão indisciplinada e
indisciplinar que, em vez de circunscrever os objetos de pesquisa em fronteiras e unidades
(de)limitadoras, alude, por exemplo, às artes visuais e à literatura somente para comunicar
aquilo que essas proposições não pretendem ser.
O emprego da “teratologia” combina o estudo do interstício em que as
monstruosidades emergem ao lugar-outro (elsewhere) designado histórica e pejorativamente
aos corpos dissidentes e às suas produções. Nesse sentido, os zines selecionados para esta
pesquisa podem ser considerados subprodutos do capitalismo, excedentes de um processo de
purificação e refinamento que visa separar o produto útil (commodity lucrativa / conhecimento
legítimo) do descarte inútil. Pensando também na geopolítica do saber, a Teratologia trans*
focaliza a produção precária do sul global, ou seja, transcorre na diarreia intelectual resultante
da devoração e do processamento das teorias produzidas no norte do mundo:

Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar
de origem como sendo “cu do mundo”, ou já fomos sistematicamente localizando
nesses confins periféricos e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografia
como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma cabeça. Uma cabeça
pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora
morfológica desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento
e onde se produz os espaços de experimentação daquelas teorias. (PELÚCIO, 2012,
p. 413)

A Teratologia trans* reúne projetos marginais a partir do gesto antissocial que está
epistemologicamente vinculado à constituição das subjetividades dissidentes e, assim, designa
não só uma produção que trata de temáticas culturais dissidentes e contra-hegemônicas, mas
também compreende os sujeitos (ou seja, as/os proponentes) por trás delas: as pessoas trans* e
travestis, com as quais se afirma, neste exercício acadêmico, um compromisso de
responsabilidade. Ou seja, a proposta reúne proposições criativas que surgem às margens dos
sistemas hegemônicos de produção e difusão de conhecimento, necessariamente elaboradas por
66

pessoas localizadas também nas bordas do gênero, da sexualidade, do capitalismo, da família,


da religião, do trabalho, do estado, da escola e dos banheiros.
Assim sendo, a metodologia esboçada interpela e tece um compromisso não só com
os produtos culturais, mas também com os próprios seres abjetos que retornam ao campo social
assumindo suas monstruosidades: focalizando as formas de vida que sobrevivem a condições
(sociais, psicológicas, culturais etc.) insalubres e a violências estruturais que modelam sua
relação com a temporalidade, as análises das inscrições desses corpos gênero-diversos no
simbólico relacionam as subjetividades dissidentes diretamente aos seus investimentos em
animalidades e monstruosidades, no abjeto e no ininteligível – especialmente no que diz
respeito à propensão à aniquilação, à sujeição à desumanização e às perspectivas e afetos que
emergem em identificações interespécie. Dessa forma, endossando o método instituído por
Jeffrey Jerome Cohen (1996) de ler culturas a partir dos monstros que elas criam e refutando
perspectivas salvacionistas tipicamente associadas à escrita acadêmica, as análises das
autorrepresentações monstruosas travesti/trans* selecionadas para esta pesquisa validam as
experiências dissidentes latino-americanas e as estratégias micropolíticas ancoradas nessas
posições subjetivas.
O projeto se desdobra, portanto, a partir das perspectivas dissidentes, abarcando as
diferentes estratégias comunicativas (dialetos e linguagens-outras), engajando as
temporalidades dissidentes (especialmente pautando as políticas públicas de aniquilação física
e epistêmica das pessoas trans* e travestis) e as propostas de desestabilização e de incisão crítica
que não estão orientadas pelo quadro racional/lógico ou pela via da argumentação
reivindicativa, antes por afetos ressentidos e vingativos investidos na contaminação e no
fracasso. Nesse sentido, na Teratologia Trans*, o tropo monstruoso representa a sistemática
exclusão de travestis e/ou pessoas trans* dos domínios da cultura, mas também pressupõe uma
contaminação que ameaça às estruturas legitimadas de produção de conhecimento, já que nas
monstruosidades selecionadas para esta pesquisa o despertencimento não é superado, senão
reivindicado e, portanto, carregado de potencial subversivo.
A metodologia associada à Teratologia trans* se dissocia muitas vezes dos termos e
vocabulários reconhecidos e autorizados da pesquisa acadêmica e científica, ao mesmo tempo
em que se serve deles para formar outras taxonomias. Ou seja, a proposta prioriza a utilização
e/ou instauração de terminologias tipicamente associadas às comunidades pesquisadas (à
oralidade anarquista, aos termos lesboterroristas, ao pajubá, às piadas internas etc.) e/ou
também vinculadas à cultura marginal, vulgar e popular. Assim sendo, os termos que
67

comunicam – muitas vezes hermeticamente – dentro da academia serão apropriados,


satirizados, parodiados e transformados (através da criação de trocadilhos e utilização de outras
formas de subversão linguística).
No mesmo sentido, é preciso exaltar a necessidade de utilizar um campo de referências
marginais e antiacadêmicas sustentado pela cultura travesti/trans*, afinal, não só a
transdisciplinaridade, mas também a indisciplinaridade e a promiscuidade são elementos chaves
da escrita e do pensamento dissidente. Visando a des-hierarquização dos conhecimentos e a
valorização da produção contracultural, serão priorizados os saberes difundidos por
propositores/as também dissidentes e preferencialmente sudacas (evitando, sempre que
possível, aqueles/as que partem de perspectivas cis-heterossexuais) e serão combinados e
equiparados referenciais teóricos acadêmicos e o material cultural da comunidade dissidente
(suas falas, escritas e produções em geral serão postas em diálogo). Dessa forma, o capital
cultural autorizado (os livros, artigos e palestras) de pesquisadoras/es acadêmicas/os e os
conhecimentos expressos em zines de travestis e pessoas trans* serão considerados referenciais
e fontes de pesquisa igualmente legítimos.
Urge reiterar, no tocante à adoção de terminologias especificamente vinculadas a
grupos marginalizados, que não se pretende uma apropriação capitalizada e/ou fetichizada
dessas culturas marginalizadas e de seus dialetos. Confio que, para driblar alguns dos desafios
mencionados neste capítulo (especialmente evitando extrativismos capitalizados da cultura
subalterna), convém servir-me de um vocabulário facilmente inteligível/acessível e também
evidenciar no exercício da escrita meu trajeto subjetivo: reconhecendo pertencimentos e
despertencimentos e atentando às dinâmicas de privilégios e opressões que compõem minha
experiência e meu corpo. É nesse sentido que a metodologia reconhece também a necessidade
de marcar a posição subjetiva na escrita, ou seja, as interseções de raça, classe, gênero e outros
marcadores que se manifestam nos processos e produtos elaborados. Pretendo alcançar essa
tonalidade autocrítica através da adoção da escrita autoetnográfica (CORNEJO, 2010.
VERGUEIRO, 2015, ADAMS; HOLMAN; ELLIS, 2015), que, além de garantir a produção de
um trabalho pessoalmente significativo (uma vez que se fundamenta nas narrativas individuais
articuladas em primeira pessoa), elimina a falsa neutralidade (supostamente “objetiva”) que
imuniza o/a pesquisador/a acadêmico/a.
A escrita autoetnográfica encoraja a/o autor/a sintonizar-se consigo mesma/o durante
a escrita, visando sua autoidentificação como agente e propositor/a, ou seja, como sujeito
situado e implicado em uma determinada forma de olhar, de interpretar e de produzir
68

conhecimento. Essa ferramenta pode conduzir à produção de uma escrita autoindulgente e


narcisista, mas também tende a facilitar uma mirada crítica às convenções que estruturam o
olhar e aos acessos da/o propositor/a, em especial no que tange a nossas localizações e
posicionamentos frente às dinâmicas assimétricas que nos atravessam. Ou seja, a autoetnografia
tende a engendrar também um processo de vulnerabilização, que abre caminho ao
reconhecimento dos privilégios e opressões que proporcionam pertencimento e exclusão,
circulação e restrição em determinados espaços.
A autoetnografia, além de se desvincular dos métodos tradicionais de produção de
teoria, pode tornar a escrita mais fluida, interessante e envolvente, justamente porque permite
que realmente se aproxime, tanto em formato como em conteúdo, da oralidade, do botar-a-cara-
no-sol e do empirismo caracteristicamente articulados por agentes culturais subalternizadas/os
em suas produções diversas. Acredito que, dentro do contexto acadêmico brasileiro, onde há
uma evidente escassez de ferramentas autoenunciativas travesti/trans*, a autoetnografia pode
se tornar um artifício criativo proveitoso, pois aproxima a escrita do formato autobiográfico
e/ou anedótico que comumente utilizamos para significarmos nossas experiências, além de
proporcionar certa abertura ao uso de linguagens outras, que podem ressoar como um chamado
distante nos ouvidos familiarizados.
Como desdobramento e aprofundamento das propostas de autoteorização e de escrita
autoetnográfica, seguindo a ideia de Stryker de que os Estudos Trans* devem inaugurar um
novo quadro epistemológico munido de novas ferramentas e linguagens, neste trabalho a
contação de histórias, a inserção de pequenas intervenções artísticas entre os capítulos e a
autorrepresentação serão instituídas como gênero alternativo à escrita acadêmica, visando a
produção de um conhecimento voltado à comunidade dissidente.
Acerca da importância política da contação de histórias para os Estudos Trans*, cabe
citar o trabalho de Sandy Stone que, analisando o quadro teórico e biomédico ao qual a
transexualidade foi historicamente submetida e lançando um olhar crítico à “passabilidade”, em
seu artigo The Empire Strikes Back: a Posttranssexual Manifesto (1992) enfatiza a dificuldade
e a importância de estabelecermos contradiscursos e múltiplas narrativas internas centradas nas
experiências trans*: “Dadas as circunstâncias nas quais os discursos minoritários se
estabelecem materialmente, um contradiscurso é crítico. Mas é difícil gerar um contradiscurso
quando somos programadas/os para desaparecer” (STONE, 1992, p.295). A autora enfatiza a
necessidade de pluralizarmos as histórias que se conta sobre transição, a fim de complexificar
as narrativas assentadas no discurso acadêmico, biomédico e psicológico. Com essa proposta,
69

Stone pretende desafiar especialmente as “narrativas plausíveis” sobre transexualidade, como,


por exemplo, a noção de “corpo errado”.
Levando em consideração as asserções de Stone, que ressoam na minha experiência
transmasculina, pretendo radicalizar a proposta de contação de histórias desenvolvendo, no
corpo da tese, interferências criativas nas quais narro minhas experiências monstrificantes: ao
final de cada capítulo serão adicionadas ilustrações e intervenções artísticas infundidas das
teorias previamente articuladas. Ademais, para o último capítulo e como exercício de
conclusão, proponho a criação de um trabalho ilustrado em histórias em quadrinhos, que poderá
dissociar-se da tese para circular como zine no interior das comunidades dissidentes.
Essa iniciativa se justifica com a premissa descolonial de promover pesquisas que
circulem também fora do universo hermético da universidade e de suas bibliotecas com
linguagens mais abrangentes que aquela comumente adotada para a escrita acadêmica. É
também visando interromper a relação extrativista que a academia e a educação formal
estabeleceram historicamente com a população travesti/trans* que proponho a elaboração de
um capítulo-zine, capaz de facilitar a introdução do conteúdo da pesquisa em circuitos
marginalizados das instituições formais de conhecimento e, ao mesmo tempo, estabelecer uma
relação de reciprocidade com a comunidade.
70

3 A ALTERIDADE MONSTRIFICADA

Com o intuito de tecer uma genealogia da autorrepresentação monstruosa


travesti/trans*, neste capítulo introduzo o debate da monstrificação da transexualidade no
âmbito dos saberes feministas com a análise do texto Boundary Violation and the Frankenstein
Phenomenon, de Mary Daly (1978). Utilizando a teratologia contemporânea, identifico os
elementos que compõem o monstro transexual no contexto norte-americano e investigo sua
operação enquanto dispositivo feminista radical. Na sequência, analiso o artigo My Words to
Victor Frankenstein above the Village of Chamounix, no qual Susan Stryker (1994) corporifica
a criatura de Frankenstein para responder às teorias de Daly. Esmiuçando o processo de
apropriação da interpelação injuriosa e identificando a eloquência como um dos elementos de
afinidade entre Stryker e a criatura de Frankenstein, postulo a pergunta: poderia o monstro falar
sem cair em uma armadilha ontológica? Ou seja, como corporificar a monstruosidade sem
reiterá-la enquanto identidade? A partir dessa provocação estabeleço uma base comparativa
entre as monstruosidades norte-americanas (inseridas na tradição dos Estudos Trans*) e aquelas
que emergem no contexto sudaca, focalizando especialmente as diferentes relações que as
últimas estabelecem com a linguagem e com a noção de apropriação da interpelação negativa.

3.1 FRANKENSTEIN E A TRANSEXUALIDADE FEMININA: UMA TRILHA NA


GENEALOGIA DA MONSTRIFICAÇÃO DISSIDENTE

Cessar a existência transexual. Esse era um dos objetivos declarados da feminista


lésbica radical Mary Daly, possivelmente a primeira autora a relacionar monstruosidade à
transexualidade no contexto de produção dos saberes feministas. Com enfoque particular na
transfeminilidade, as teorias de Daly dialogaram com as de Sheila Jeffreys (1997) e orientaram
o trabalho de Janice Raymond (1979), adensando o polêmico legado teórico feminista radical
que, dentre outras coisas, estabeleceu uma crítica incisiva à transexualidade.
Estima-se que as pautas feministas radicais norte-americanas venham se atualizando
em território nacional na medida em que as reivindicações travesti/trans* vão ganhando
protagonismo na economia visual e nos campos de produção dos conhecimentos feministas.
Nos últimos anos observa-se a proliferação de alguns dos embates inaugurados pelo feminismo
radical na década de 1970 e, dentre eles, os questionamentos do status de mulheridade das
71

pessoas transfemininas, sobretudo visando à regulação do pertencimento desses corpos a


espaços feministas separatistas.
Pode-se dizer que os debates que dividem o feminismo radical lésbico e as vertentes
transfeministas emergiram no Brasil tanto através das novas plataformas, redes e mídias sociais
e, ainda, nos espaços autônomos; quanto nos ambientes autorizados de produção de saberes, a
exemplo da nota editorial do até então último volume da revista digital Labrys, que conta com
um corpo editorial de teóricas renomadas, como Margareth Rago e Tânia Navarro Swain (autora
da nota editorial), entre outras:

Com efeito, a proposição que indica a construção social e imaginária não só do gênero,
mas também do sexo em última instância criou uma vaga de penetração de homens
no movimento feminista não como parceiros para eliminar a violência e a
discriminação contra as mulheres, mas para reivindicar um pertencimento ao
feminino, mesmo com aparelho genital masculino, símbolo maior da importância a
ele conferida. (SWAIN, 2018)

Importa ressaltar que a mesma revista publicou, em 2003, o artigo Transexuais, corpos
e próteses (2003) no qual, em suas análises sobre transexualidade, Berenice Bento aplica as
teorias de Judith Butler e desafia a naturalização da categoria “sexo”, referindo-se a ela como a
“primeira cirurgia” pela qual todos passamos no campo social. É interessante analisar o sinuoso
percurso editorial da Labrys levando em conta a emergência dos transativismos: apesar de ter
incorporado publicações alinhadas às teorias advindas dos Estudos Trans* (como a de Berenice
Bento), com a polarização exacerbada entre estudos feministas lésbicos e os estudos
travesti/trans* (especialmente no momento em que travestis e pessoas trans* acessam
paulatinamente as esferas autorizadas de produção de conhecimento), a comissão editorial
efetua uma verdadeira guinada reacionária. Ou seja, analogamente ao ocorrido no contexto
norte-americano, o backlash feminista radical desponta no Brasil quando as subjetividades
travesti/trans* começam a atuar como agentes – e não mais objetos – no campo dos saberes
feministas e a disputar novos territórios de pertencimento e de produção de conhecimento. Nos
Estados Unidos, algumas vertentes de teorias feministas radicais se proliferaram
progressivamente investindo na expulsão de pessoas trans* dos espaços construídos
exclusivamente por e para lésbicas e mulheres cisgênero17 e, analogamente, no Brasil
contemporâneo observa-se que, embora embebidas em suas particularidades, arquiteturas
semelhantes são ensaiadas dentro e fora da academia.

17
Os casos de Beth Elliott e de Sandy Stone são emblemáticos, pois representam as primeiras
imposições de exclusão das mulheres trans* dos projetos, ambientes e grupos lésbico-feministas.
72

Dada a evidente pertinência desta discussão no atual cenário de disputa teórica, julgo
oportuno inaugurar este capítulo analisando as primeiras iniciativas de monstrificação da
transexualidade no âmbito da produção de saberes feministas. Para tanto, como já disse,
analisarei um dos mais relevantes registros dessa temática: a relação entre transexualidade
feminina e a criatura de Frankenstein, elaborada por Mary Daly em Gyn/ecology: The
Metaethics of Radical Feminism (1978), assim como a subsequente resposta elaborada pela
teórica trans* Susan Stryker em seu artigo My words to Victor Frankenstein above the Village
of Chamounix: Performing Transgender Rage (1994). Esse roteiro introduzirá questões chave
para as subsequentes análises das autorrepresentações monstruosas sudacas travesti/trans*, uma
vez que proporcionará uma base para a comparação entre a história científica e cultural
implicada na construção da subjetividade trans* norte-americana e suas trajetórias,
entretextualizações e hibridizações em contextos latino-americanos.

3.2 CONTEXTUALIZANDO O SURGIMENTO DO MONSTRO TRANSEXUAL NO


CAMPO DOS SABERES FEMINISTAS RADICAIS

A monstrificação da transexualidade elaborada por Daly foi publicada em 1978 como


resposta à intensificação e evolução de um processo iniciado nos anos 1930, através do qual os
corpos trans* começaram a ser projetados na cultura norte-americana e, gradualmente,
conquistaram protagonismo nas esferas políticas e nos espaços feministas. Em seu livro How
Sex Changed, Joanne Meyerowitz (2002) aponta que notícias sobre cirurgias de “troca de sexo”
e “inversões” ou “metamorfoses sexuais” circulavam na mídia norte-americana no mínimo a
partir da década de 1930. Embora se tratasse de publicações esporádicas e sensacionalistas –
que muitas vezes narravam histórias de pessoas que haviam sido descobertas “vivendo no sexo
oposto” – essas matérias esboçaram no imaginário social uma nova forma de pensar e falar
sobre “sexo”18 e impactaram principalmente as pessoas que desejavam passar por processos
semelhantes. Como efeito, essas pessoas (que hoje podem ser chamadas de travestis ou trans*,
mas que na época receberiam os títulos “homossexuais”, “travestidos”, “invertidos sexuais”
e/ou “pseudo-hermafroditas”) começaram a criar repertórios e vocabulários para articular esse
desejo, além de poderem vislumbrar o pertencimento a um grupo em formação.

18
Na metade do século, as terminologias “sexo biológico”, “gênero” e “sexualidade” emergiram
separando e diferenciando-se da palavra “sexo” que, anteriormente, abrigava todos esses significados.
73

A disseminação da figura transexual no imaginário popular foi propulsionada e


intensificada nos Estados Unidos durante a ascensão econômica que sucedeu a Segunda Guerra
Mundial através da publicação da história de vida de Christine Jorgensen, uma transexual norte-
americana que, após passar por cirurgia na Europa, publicizou seu processo de transição. Apesar
de não ser pioneira (diversas intervenções somáticas desse tipo já haviam sido executadas
quando Jorgensen optou pelo procedimento19), sua “mudança de sexo” apresentou ao público
os atualizados recursos tecnocientíficos e consolidou a ideia de que talvez o sexo não fosse tão
evidente e imutável quanto se pensava. Em formatos distintos, incluindo o autobiográfico, a
experiência vivenciada por Jorgensen foi publicada nos principais jornais e revistas norte-
americanos em 1953, de forma a projetar sua imagem na cultura visual e lançar, com ela, a
categoria “transexualismo” indexada a um berço científico proeminente naquele contexto:
“com o despontar da era atômica, revistas frequentemente expressavam admiração pelo poder
da ciência e as magias da tecnologia” (MEYEROWITZ, 2002, p.41).
É interessante notar que apesar das cirurgias e do conceito de “mudança de sexo”
precederem a experiência de Jorgensen, segundo Meyerowitz, o termo “transexual” foi cunhado
pelo endocrinologista Harry Benjamin e pelo psicólogo David O. Cauldwell quando Jorgensen
apareceu por primeira vez na mídia. De certa forma, o boom midiático que fez de Jorgensen
uma celebridade foi também agente de explicitação do emaranhamento dos saberes científicos
na cultura popular e responsável pela consequente popularização de tal sorte de saberes,
evidenciando ainda a deliberada contaminação desses dois campos. Pode-se dizer que o
“fenômeno transexual” surgiu mesclando os canais midiáticos e científicos (ambos enxertados
com as autobiografias de transexuais), indicando que, apesar da autoridade profissional médica
e da soberania da ciência, esses dois campos (cultura e ciência) se moldam reciprocamente.
Naquele período, ao mesmo tempo em que cada vez mais filmes, notícias e publicações
abordavam o tema da transexualidade constantemente indexando-o à ciência, o então
incontestável discurso médico se adensava com a publicação dos livros de Harry Benjamin –
que, segundo Sandy Stone20, passaram a ser lidos não só por médicos, mas também pelas
travestis, drag queens, cross dressers e pessoas trans*.

19
A cirurgia de Jorgensen ocorreu na Dinamarca sucedendo as operações de Dora Richter e Lili Elbe,
que, orientadas pelas práticas desenvolvidas por Magnus Hirschfeld, ocorreram sucessivamente em 1922-1931 e
em 1930 na Alemanha.
20
Stone explica que “levou um tempo surpreendentemente longo – muitos anos – para os/as
pesquisadores/as perceberem que o motivo pelo qual o perfil comportamental dos/das candidatos/as combinava
tão bem com o de Benjamin era porque os/as candidatos/as também tinham lido o livro de Benjamin, que passava
74

Assim sendo, um dos efeitos da explosão midiática que propulsionou o “fenômeno


transexual” foi o fortalecimento da contracultura trans*, conforme sugerido por Meyerowitz:

Na vida cotidiana, especialmente nas cidades, elxs [as pessoas dissidentes]


gravitavam em direção uns aos outros, se ensinavam diferentes costumes e línguas de
subculturas particulares, e desenvolviam sua própria vernácula, que delineou
gradações de variação de gênero mais precisas do que as linguagens usadas por
médicos. (MEYEROWITZ, 2002, p.7)

Ou seja, o deslanchar do “transexualismo” na economia simbólica e nas esferas social,


visual e cultural norte-americanas fomentou o desenvolvimento de uma rica contracultura
travesti/trans*, proporcionando os meios para adentrar o que Susan Stryker chama de “anos da
liberação transgênero”. A “liberação transgênero” foi um processo concomitante a uma série
de outras revoluções contraculturais (como a libertação sexual, os movimentos antiguerra, o
movimento hippie, a segunda onda feminista e os movimentos pelos direitos gays e pela
despatologização da homosexualidade, dentre outros), que se iniciou na década de 1960 e foi
marcado tanto pela proliferação de programas clínicos para estudo e tratamento de transexuais,
como pelas revoltas sociais e de resistência trans*, a exemplo dos protestos originados no
Cooper’s Donuts, em Los Angeles (1959), na Compton’s Cafeteria, em São Francisco (1966)
e da revolta de Stonewall, em Nova York (1969).
Nesse processo de disputa política, de demanda por direitos e de maior acesso aos
recursos médicos, as subjetividades trans* passaram a se alastrar também pelos territórios
feministas, desencadeando resistências e um intenso backlash advindo especialmente do
feminismo radical lésbico. Segundo Stryker, impactadas negativamente pela presença de
mulheres transexuais nos movimentos feministas e nos espaços exclusivos de mulheres, e
especialmente repugnadas pela ideia de uma lesbianidade transfeminina, feministas radicais
culturais21, como Mary Daly, rapidamente delegaram às mulheres trans* o status de inimigas
das lutas das mulheres (cisgênero).
Em meio à ênfase contemporânea no legado transfóbico que o feminismo radical norte-
americano deixou, é preciso recordar que, originalmente, esse movimento foi articulado
sobretudo como contestação de um “feminismo mainstream”, que, segundo Stryker, se assentou

de mão em mão dentro da comunidade transexual, e elas/es estavam mais que contentes de providenciar o
comportamento que levaria à aprovação da cirurgia” (STONE, 1992, p.9)
21
Ver Linda Alcoff (1988). Alcoff define o “feminismo cultural” como uma vertente investida na
redefinição daquilo que “mulher” significaria, ou seja, uma das características dessa ideologia seria a insistência
na categoria e a tentativa de positivação da mesma através da proposta de substituição da definição original
(patriarcal) por uma reformulação orientada por mulheres.
75

com a segunda-onda feminista nos EUA do pós-guerra e “rapidamente passou a ser percebido
por agentes culturais e políticos de esquerda como sendo branco, de classe média, heterossexual
[...]” (STRYKER, 2008, p.97). Rebatendo a homofobia (em especial as perseguições à
lesbianidade, que ainda era patologizada) no interior de movimentos feministas, ativistas
feministas culturais, como Robin Morgan e Rita Mae Brown, asseguraram a “significativa
recontextualização de algumas subculturas sexuais lésbicas, um desenvolvimento que não foi
necessariamente benéfico a todas as envolvidas” (STRYKER, 2008, p.99).
O feminismo radical transformou os movimentos feministas do período com seu
pioneiro combate à homofobia, propiciando a criação e disseminação de culturas lésbicas no
interior desses espaços, bem como alargando rachaduras que possibilitaram outros
questionamentos acerca de quem seria o “sujeito do feminismo”. A faceta menos proveitosa
desse processo (à qual Stryker se refere na citação acima) é um desdobramento do objetivo
lésbico radical de “destronar o gênero”: um dos efeitos estéticos e ideológicos dessa abordagem
foi a promoção do estilo andrógeno como alternativa mais próxima de um gênero-neutro e a
consequente depreciação das “excessivas” masculinidades (sapatão/dyke) e feminilidades
(sapatilha/femme) lésbicas, que passaram então a serem consideradas retrógradas e
heterocentradas. Posteriormente derivaram-se dessas ideias algumas das críticas às
transmasculinidades e transfeminilidades: por exemplo, segundo esse pensamento, os corpos
trans* reificariam os estereótipos de gênero, uma vez que reproduziriam de forma estereotipada
os arquétipos representativos da masculinidade (agressividade, autoridade, superioridade etc.)
e da feminilidade (docilidade, ingenuidade, fragilidade, submissão etc.). Assim sendo,
“emulando a norma da mulheridade” ou “construindo uma fantasia conservadora sobre o que
as mulheres deveriam ser” (JEFFREYS, 1997, p.59), os corpos transfemininos estariam
espessando os imaginários que o feminismo radical lésbico visava combater em sua busca pela
oclusão do gênero. Já a transmasculinidade, mais invisível talvez porque menos reivindicativa
desses espaços, era percebida como a confirmação de estereótipos lesbofóbicos: as pessoas
transmasculinas seriam produto da “internalização da misoginia” e, segundo Sheila Jeffreys,
seu desejo pela masculinidade subsidiaria “o espetáculo de lésbicas como aberrações que na
verdade querem ser homens” (JEFFREYS, 1997, p.68).
76

Esse raciocínio está enredado na ideia de que as pessoas transfemininas seriam homens
que deliberadamente reiteram os “papéis sexuais” 22 e as estéticas associadas à feminilidade,
contribuindo para a preservação das assimetrias de gênero. Complementarmente, uma das
principais críticas à transexualidade feminina diz respeito à suposta invasão masculina do
universo feminino (a metáfora do “cavalo de Tróia” e um vocabulário que alude ao estupro
foram recorrentemente utilizados por feministas radicais para ilustrar essa ideia): esses “homens
disfarçados de mulheres” estariam se infiltrando no universo feminino para assegurar a
dominação masculina e a subordinação feminina, neutralizando, assim, as reivindicações
feministas e as lutas das mulheres (cisgênero) contra os gêneros e as hierarquias deles derivadas.
Sustentando o argumento de que as mulheres transexuais pertenciam ao sexo
masculino originalmente, as teóricas feministas radicais exaltavam o “dimorfismo sexual”
enquanto critério determinante ou “destino” do gênero. Algumas autoras, como Janice
Raymond, enfatizaram a importância do “sexo biológico” na construção da identidade e
defenderam que ele seria uma condição anterior ao gênero – tendo-se que o segundo estaria de
certa forma subordinado ao primeiro. Nesse sentido, “mulher” seria a junção do componente
biológico (muitas vezes referido como “sexo cromossômico”) e da subsequente experiência do
papel social a ele atribuído. Embora muitas vertentes do feminismo radical contemporâneo
entendam “gênero” como construção cultural edificada a partir da designação de um sexo
também culturalmente atribuído, há, principalmente nos textos fundadores dessa linha (como
os escritos de Mary Daly), uma ênfase essencialista no “sexo biológico” e, com ela, a tentativa
de positivar a “mulheridade”. A crença na anterioridade do sexo em relação à cultura e à
linguagem também era muitas vezes acompanhada de vínculos essencialistas entre mulher e
natureza, a exemplo da ideia de “sagrado feminino” articulada em retóricas fundacionais do
ecofeminismo (a exemplo de Woman and Nature, lançado em 1978 por Susan Griffin, e The
Death of Nature, lançado em 1989 por Carolyn Merchant).
De forma geral pode-se dizer que, ao se depararem com o “fenômeno transexual” e
com as possibilidades de “mudança de sexo” que se popularizavam e passavam a tomar corpo
inclusive no interior dos espaços feministas e lesbo-separatistas, as teóricas lésbicas feministas
radicais viram ameaçadas as bases fundamentais de suas argumentações: se os órgãos genitais
seriam o ponto de partida para a definição do gênero e da identidade sexuada, sua mutabilidade

22
Apesar de não estar vinculado ao feminismo radical, esse termo, cunhado por Talcott Parsons no
contexto da sociologia funcionalista norte-americana e disseminado também por Margaret Mead, foi comumente
empregado no contexto.
77

perturbaria as bases da categoria “mulher”, desestabilizando, com ela, as teorias e movimentos


que até então se organizavam em torno dessa identidade. Como desdobramento desse embate e
de subsequentes negociações e confrontos com as teorias queer, os argumentos feministas
radicais passaram por sutis reformulações, dentre elas a solidificação da noção de que tanto
sexo como gênero seriam ficções culturalmente orientadas a serem combatidas. Entretanto,
mais que uma reforma ideológica, o que houve foi uma atualização do vocabulário 23 feminista
radical: os elementos essencialistas (como o “sagrado feminino”) se atenuaram e deram espaço
à chamada “materialidade política do sexo”24, que se manteve como referente complementar à
“socialização de gênero” no que diz respeito à definição da identidade sexuada (ainda concebida
como fixa e coerente). Essa nova formulação é esclarecida na escrita de Jeffreys:

“Mulher” é o resultado da experiência de viver como mulher baixo a supremacia


masculina. Isso inclui a experiência de viver em e como um corpo feminino e a forma
através da qual as reais ou potenciais atividades desse corpo, menstruação, gravidez,
são construídas na sociedade da supremacia masculina. (JEFFREYS, 1997, p.66)

Conforme sugerido na citação, ao reiterar a unidade definidora da “experiência das


mulheres” (o passe de entrada para a categoria) Jeffreys formula a relevância do sexo biológico
(“o corpo feminino”) enfatizando sua significação dentro da cultura: a gravidez e a menstruação
não são referenciadas enquanto manifestações naturais, senão como expectativas opressoras
dentro de uma ordem de valores culturalmente atribuída. Ao significar o corpo e a identidade
“mulher” enquanto produto do desejo e do controle dos homens, sua análise culmina na ideia
de que “mulher” só poderia ser uma manifestação patriarcal. Essa “não-existência” radical foi
desenvolvida principalmente no trabalho de Catherine MacKinnon que, delimitando a
“experiência da mulher” à expressão do desejo dos homens, engendrou uma lógica teleológica
e ontológica responsável pelo apagamento e o policiamento das diferenças. Analisando essa
unidade totalizante reforçada por MacKinnon em A cyborg Manifesto: science, technology, and
social-feminism in the late twentieth century, Donna Haraway (2003) coloca que MacKinnon
“desenvolve uma teoria da consciência que reforça o que pode contar como experiência das
‘mulheres’” (HARAWAY, 2003, p.18) e, assim, “desenvolve uma doutrina da experiência
ainda mais autoritária” (HARAWAY, 2003, p.18).

23
Esse aspecto é ressaltado no livro Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism,
de Sheila Jeffreys.
24
A noção de “materialidade política do sexo” é elaborada por Christine Delphy e Diana Leonard em A
materialist Feminism is Possible (1980).
78

Essa “experiência das mulheres”, que mais tarde passou a ser chamada de
“socialização de gênero”, reduziu-se a simplificações aplanadoras: se edificou sob a ilusão
colonialista de que existe uma unidade (ou ao menos um “mínimo denominador comum”)
universal na experiência de opressão vivenciada por mulheres no campo social. Um dos efeitos
dessa manobra foi a criação de novos obstáculos à legitimação das mulheridades travesti/trans*,
já que, em vez de indexar-se ao sexo de forma essencialista, a “mulheridade” passou a emergir
associada a determinadas funções sócio-biológicas e à adjacente experiência de gênero que, por
sua vez, só poderia ser alcançada por meio de processos de socialização regulados pelas
premissas feministas radicais e centradas no “corpo feminino”.
O reforço e a delimitação autoritária dessa unidade totalizante “mulher” (enquanto
espelhamento do desejo patriarcal), além de policiar e apagar as diferenças, aparentemente
comunica a incapacidade ou a resistência da parte de algumas teóricas do feminismo radical
lésbico em conceber “gênero” enquanto processo e produto de sua própria representação. É
desconsiderada, assim, a potencial reciprocidade existente no percurso de moldar e ser
moldada/o pela norma e a constante negociação e recontextualização implícita na formulação
da subjetividade. Algumas feministas radicais, como Jeffreys, justificaram sua oposição às
teorias queer e pós-estruturalistas afirmando a necessidade de que seja assumida uma postura
“mais extrema”, capaz de promover a total abolição dos gêneros e, ao mesmo tempo, reconhecer
a necessidade de abordar seus efeitos, já que “gênero” seria uma “materialidade com
consequências políticas” (JEFFREYS, 1997, p.65). De forma geral, pode-se dizer que Jeffreys
rejeita as proposições queer pois as entende enquanto investimento, manutenção ou atualização
do sistema que pretende exterminar. Nesse sentido, observa-se que o discurso feminista radical,
apesar de otimista e incisivo, contempla um espaço fora da cultura e da linguagem, ecoando
muitas vezes em antíteses utópicas como: “não haverá mais gênero quando as mulheres forem
livres” (JEFFREYS, 1997, p.64), da qual entende-se: “não haverá mais gênero quando as
mulheres deixarem de ser mulheres”).
Nesse breve panorama, dialoguei a proliferação da figura transexual no imaginário
norte-americano e as formulações dos pensamentos feministas radicais. Esse exercício
proporcionou uma base contextual e teórica para adentrarmos a análise do texto Boundary
Violation and the Frankenstein Phenomenon, em que Mary Daly relaciona transexualidade
feminina à obra de Frankenstein. Contudo, antes disso convém fazer uma breve introdução para
situar Frankenstein na teratologia contemporânea.
79

3.3 MONSTRUOSIDADES REINCIDENTES

“Like a letter on the page, the monster signifies something other than itself.” (Jeffrey
J. Cohen, “Monster Theory”, 1996)

Segundo J. Jack Halberstam, por ser uma figura que abriga em si uma variedade de
monstruosidades específicas, a criatura em Frankenstein se enquadra na categoria de “monstro
totalizante” (totalizing monster), criada por Franco Moretti (2005). Essa característica está
vinculada à habilidade que determinados monstros (como vampiros ou lobisomens) têm de se
atualizar em diferentes contextos, ou seja, sua capacidade de ressurgir na contemporaneidade
encetando novas possibilidades interpretativas. É justamente a variedade de leituras e releituras
de Frankenstein o que faz de seu personagem um monstro contemporâneo e “totalizante”: uma
criatura que retorna, em diferentes períodos e lugares, simbolizando uma miríade de ameaças.
A constante atualização da criatura indica que ela desafia à própria definição, e essa mesma
impossibilidade de fixá-la em uma única leitura (sua hibridização constante) previne o seu
abate.
Um sintoma que sugere a característica totalizante de Frankenstein seria, por exemplo,
o fato de que a obra já foi lida enquanto representação do gênero feminino, do proletariado, da
sociedade industrial, da revolução francesa, do desejo homoerótico, da transexualidade
feminina, entre outros. No mesmo sentido, observa-se certa permissividade nas tentativas de
localização de sexo, gênero e orientação sexual no monstro em questão: se, por um lado, a
criatura trazida à vida pelo Dr. Frankenstein manifesta indícios de desejo heterossexual ao
solicitar a criação de uma companheira feminina feita à sua imagem, por outro lado, é pouco
substancial inferir um sexo (dimorfismo sexual) e adjacentes identidade de gênero e orientação
sexual à criatura, visto que tal monstro, composto de pedaços de diferentes corpos, escapa ao
humano.
Nota-se que a “verdade” acerca do sexo, do gênero e da orientação sexual desse
monstro humanoide se esvai e se dilui em contingentes possibilidades interpretativas – que
variam de acordo com os interesses daquelas/es que o evocam. Nem mesmo a autoenunciação
é suficiente para localizar com precisão essas categorias, conforme explicitado por Halberstam,
que aponta para a instabilidade no gênero da personagem:

Depois de ler Paradise Lost, por exemplo, ele [o monstro] se sente impulsionado a
perguntar se ele seria um outro Adão “aparentemente não unido por nenhum outro
80

laço a qualquer outro ser existente”. Mas, ele conclui, “eu considero Satã como um
emblema mais adequado à minha condição”. Críticas feministas também observaram
uma relevante semelhança entre o monstro e Eva. Note, entretanto, que nada se ganha
fixando o monstro a alguma dessas identidades. [...] O monstro é sempre todas essas
figuras. Em sua própria composição, ele não pode nunca ser uma coisa, nunca
representar somente uma ansiedade singular. (HALBERSTAM,1995, p.36)

O que a criatura simboliza – assim como os elementos que lhe conferem


sexo/gênero/orientação sexual – é contingente às leituras, ou seja, são laços sempre “por fazer”
através das articulações retóricas implicadas nas análises. É preciso, portanto, abandonar os
modelos analíticos que procuram verdades substanciais ou equívocos nas interpretações dessa
monstruosidade, substituindo-os por proposições que, se desprendendo do binômio
verdadeiro/falso, priorizam enxergar como e por que essas monstruosidades voltam a emergir:

[...] o monstro pode carregar a marca daquela interpretação não porque aquela
interpretação o descreve de forma mais útil. Os monstros seduzem as/os leitoras/es e
consumidoras/es porque representam na própria forma o jogo de leitura e escrita,
reescrita e contação [telling], contação e interpretação. [...] cada medo, cada fonte
literária, cada desejo, cada evento histórico, cada estrutura social da qual o texto se
alimenta, se torna combustível para a manufatura de significados.
(HALBERSTAM,1995, p.34)

Halberstam entende que nenhuma releitura do monstro é falsa ou incorreta, ao mesmo


tempo em que não estão descoladas do objeto a partir do qual se desdobram. As diferentes
interpretações são, então, escolhas que privilegiam algumas categorias em detrimento de outras,
comunicando, assim, as prioridades e anseios de um tempo e de um/a interlocutor/a, ou seja,
um olhar subjetivo, orientado por determinados contexto e ideologia.
Complementarmente, ao identificar padrões de emersão e desvanecimento de
monstruosidades em diferentes épocas, Jeffrey Jerome Cohen defende que cada cultura teria
seu monstro (o corpo monstruoso seria “pura cultura”) e que “devem ser analisados no interior
da intrincada matriz de relações (sociais, culturais e litero-históricas) que os geram.” (COHEN,
2000, p. 28). Ele observa que uma miríade de monstros surge e desaparece ao longo dos anos
em diferentes localidades e períodos para simbolizar as ansiedades específicas de cada época,
corporificando muitas vezes as ameaças que as dissidências representam aos regimes sexuais,
raciais e funcionais.
Partindo da premissa de que é possível identificar determinados aspectos de uma
cultura através da análise dos monstros que ela produz, antecipa-se que a observação das
monstruosidades associadas às identidades travesti/trans* (em tropos patologizantes ou em
autorrepresentações subversivas) pode apontar para aspectos estruturantes dessas categorias em
81

diferentes culturas e contextos. Se as monstruosidades (res)surgem representando ansiedades


específicas e localizadas, a análise comparativa de diferentes monstruosidades travesti/trans*
pode oferecer uma base para discernirmos, por exemplo, entre as retóricas trans* euro-norte-
cêntricas (seus investimentos na construção dessa categoria) e os discursos estruturantes das
corporalidades travesti/trans* sudacas.
Essas premissas orientarão as análises subsequentes que, através das indagações “Por
que Frankenstein? Por que então?”, propõem a observação de como a monstruosidade em
Frankenstein opera enquanto metáfora da transexualidade a serviço de uma retórica feminista
radical.

3.4 POR QUE FRANKENSTEIN? INTRODUZINDO ARTIFICIALIDADE E CIÊNCIA NO


DEBATE SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SEXUADA.

Enquanto outras monstruosidades representam a justaposição de “feminino” e


“masculino” (a exemplo da mulher barbada e da figura de gênero ambíguo nos freak shows), a
criatura de Frankenstein exprime a corporificação integrada do binômio natureza/cultura. Na
obra, a incisão interventiva no domínio da natureza se dá através do saber científico, conforme
explicado por Felippe Ciacco:

O monstro de Victor Frankenstein não é uma aberração da natureza nos mesmos


termos que o hermafrodita, o homem com pé de galinha ou os gêmeos siameses, que
atormentam o imaginário ocidental da Idade Clássica. Ainda que todos os personagens
anteriores atestem, em sua origem, uma violação das leis da natureza e das leis divinas
(Foucault mostra como o discurso da época liga a aparição do monstro frequentemente
à zoofilia), a origem do monstro de que tratamos implica uma violação da natureza de
uma ordem totalmente distinta. [...] o saber e a ciência, encarnados em Victor
Frankenstein, estão na origem da monstruosidade. (CIACCO, 2016, p.167)

Um elemento particularmente reincidente nas análises de Frankenstein seria a


transgressão da natureza via artifícios da cultura (ciência, tecnologia, aparato médico etc.).
Segundo Ciacco, a disjunção entre natureza e humano (ou natureza e sociedade) em
Frankenstein é produto do ato de criação do monstro e importa frisar que esse mesmo ato
mobiliza a percepção do caráter de construção inerente a toda identidade, conforme
argumentarei mais adiante.
É através de um processo necrofílico de “criar vida de forma artificial” que a ciência
emerge associada à monstruosidade na obra, e é também nesse sentido que a monstruosidade
82

se vincula à transexualidade na escrita de Daly: os questionamentos levantados em


Frankenstein acerca da criação de novas vidas a partir de tecnologias que reciclam corpos
mortos se emaranham nas indagações acerca da autenticidade de um corpo que renasce (se
desloca de sua “história original”) através de intervenções cirúrgicas, transitando de um sexo
para outro, de uma identidade para outra.
A escolha de Daly por um monstro humanóide criado em laboratório aponta
principalmente para um suposto berço científico da transexualidade, enfatizando a necessidade
de entendermos o contexto de criação da categoria “transexual” em sua estreita conexão com o
campo dos saberes médico-científicos, bem como as elaborações feministas radicais que se
remontam nesse período.

3.5 O BERÇO CIENTÍFICO DA TRANSEXUALIDADE: RELAÇÕES ENTRE


“TRANSEXUALISMO” E A CRIATURA DE FRANKENSTEIN

No texto de Daly a metáfora do monstro de Frankenstein surge aplicada à figura


transexual denotando que sem o aparato tecnomédico a “criatura” não existiria: no pensamento
feminista radical “o/a transexual aparece como efeito passivo da medicina, um tipo de produto
tecnológico sem consciência: sujeito transexual somente porque sujeito à tecnologia médica”.
(PROSSER, 1998, p.7). Nessa perspectiva os/as transexuais seriam “os [monstros de]
Frankenstein dos experimentos da tecnologia moderna com a diferença sexual” (PROSSER,
1998, p.9) e a ciência seria uma versão deturpada de “mãe” – servindo-se de artifícios
tecnológicos para gerar corpos aberrantes.
Essa vertente ideológica que condiciona a existência (histórica, cultural, material e
simbólica) do sujeito transexual às tecnologias e à patologização oriundas do domínio médico
recebeu o título de “teoria construcionista da transexualidade” e, segundo Jay Prosser, foi
formulada principalmente pela feminista radical Janice Raymond (cujo livro The Transsexual
Empire: the making of the she-male é dedicado a Mary Daly) e pela acadêmica feminista
Bernice L. Hausman, que também se posiciona contrária às cirurgias de redesignação de gênero
e acata muitas das teorias de Raymond, com exceção à ideia de que as mulheres transexuais
seriam uma ameaça às mulheres cisgênero.
Assim como Raymond, Hausman atribui a criação da categoria transexual aos
interesses médicos: para ela a ciência estaria manipulando o corpo sexuado visando maior
dominação e controle social. Na conclusão de seu livro Changing Sex: Transsexualism,
83

Technology, and the Idea of Gender, Hausman coloca que “demandando a intervenção
tecnológica para ‘mudar de sexo’, transexuais demonstram que seu relacionamento com a
tecnologia é de dependência” (HAUSMAN, 1995, p. 110), pois “transexuais precisam procurar
e obter tratamento médico para serem reconhecidos como transexuais. Toda a sua posição de
sujeito depende de uma relação necessária com a instituição médica e seus discursos”
(HAUSMAN, 1995, p. 148). Também nesse sentido, Hausman alega erroneamente que,
diferentemente dos homossexuais, que conseguiram se libertar da medicina, as/os transexuais
pedem por mais regulações médicas.
Pode-se dizer que Hausman reduz a experiência transexual ao controle e às
intervenções médicas e, nesse exercício, descreve os sujeitos transexuais como tolos
(verdadeiros marionetes da medicina e dos regimes hegemônicos de sexo/gênero), além de
representá-los como seres manipulativos e enganosos (dupes of gender)25. Ademais, a autora
acaba também deslegitimando o desejo e a agência dos sujeitos transexuais ao inscrever os laços
da transexualidade com a medicina numa estrutura que remonta à soberania da ciência na
construção da categoria e à total submissão dos/as transexuais aos termos por ela instituídos.
Em sua resposta a Hausman, Prosser aponta que a teoria construtivista da
transexualidade tolhe a autonomia transexual ao excluir e invisibilizar sua contribuição para a
construção de sua identidade. O autor identifica que alguns dos efeitos dessa vertente ideológica
são a dessubjetivação e a deslegitimação da autoenunciação trans*: os/as transexuais não são
vistos como sujeitos que constroem, o poder enunciativo (lembrando que o diagnóstico de
“transexualismo” se dá através de sessões de terapia, as quais são de natureza puramente
discursiva) que corresponde a esse sujeito é atribuído exclusivamente ao legado médico, de
forma a invalidar “não só a capacidade do sujeito de iniciar e efetuar sua própria transição
somática, mas também de informar e redefinir a narrativa médica da transexualidade”
(PROSSER, 1998, p.8). Como resposta, o autor afirma que a quem se instituiu nomear
“transexuais” compreende uma subjetividade ativa, que existiu como sujeito discursivo antes

25
Cabe mencionar que a representação que Hausman faz das pessoas transexuais (“marionetes da
medicina”) é indicativa de sua própria posição subjetiva e de seu distanciamento das comunidades transexuais. Em
contraponto, Sandy Stone relata alguns dos artifícios utilizados por pessoas trans* para navegar estrategicamente
o sistema médico, dentre eles, a leitura dos livros de Harry Benjamin e o aprendizado da narrativa que acarretaria
o diagnóstico de “transexual verdadeiro”. No contexto brasileiro, Rodrigo Borba analisa como diferentes sujeitos
travesti/trans* aprendem o vocabulário médico nas sessões de terapia do processo transexualizador oferecido pelo
SUS e utilizam-se do artifício da mentira para conseguirem os recursos somáticos que desejam. Numa nota mais
pessoal, me lembro de ir às reuniões de grupo do Centro de Referência LGBT de Campinas aos domingos
(obrigatórias para o processo transexualizador do SUS) e do contraste entre o conteúdo do que contávamos na
reunião mediada pela psicóloga e pelas/os estagiárias/os e o teor das conversas que tínhamos no bar, logo após a
reunião.
84

da patologia, das cirurgias e da terapia hormonal, ou seja, que essa categoria implica a trajetória
histórica de sujeitos desejantes, que forjaram recursos diversos (inclusive tecnologias
científicas e não-científicas) para a sua corporificação (embodiment). Retrucando os
argumentos feministas radicais (que, vale dizer, geraram um marco teórico ainda
recorrentemente utilizado nas pesquisas acadêmicas sobre transexualidade), Prosser oferece a
perspectiva de que não foi a ciência que criou o sujeito transexual, foram as pessoas transexuais
quem transformam profundamente o saber científico e suas tecnologias.
Alinhando-se às teorias de Hausman, Janice Raymond (1994) reforça a ideia de que a
instituição médica inventou o sujeito transexual. Mas sua retórica tem nuances mais investidas
contra o “regime patriarcal” e é construída com argumentos e vocabulários enraizados nas
ideias feministas radicais: por exemplo, um dos artifícios utilizados para invalidar a identidade
transexual é a substituição do termo “mulher transexual” ou MTF (male to female / de-homem-
para-mulher) por male-to-constructed-female (de-homem-para-mulher-construída), sugerindo
que há algo (mais) artificial na construção da identidade transexual, uma espécie de falsificação
do real. Raymond argumenta que o “transexualismo” não teria sido meramente acolhido pela
ciência, senão construído por ela afim de regular os corpos e divergir a atenção do real problema
social: a divisão dos sexos e gêneros. Para a autora, o “transexualismo” reafirmaria os gêneros 26,
e seria mais uma ferramenta de “controle patriarcal”, cujo objetivo seria o de reinstaurar a
norma contestada pelos movimentos de libertação da mulher.
No segundo capítulo do polêmico The Transsexual Empire: the making of the she-
male (cuja tradução literal seria “O Império Transexual: a feitura do traveco”) Raymond indaga:
“Os transexuais nascem ou são feitos – ou ambos?”. Para responder à pergunta, a autora analisa
as pesquisas e experimentos científicos de John Money e refuta a proposição do sexologista de
que o ‘transexualismo’ seria produto tanto de componentes biológicos como de contextos
socioculturais (environmental). Colocando que “Money tão somente negou a ideia de que seria
um ou outro, mas não provou que realmente são ambos [aspectos biológicos e sociais que
formam o ‘transexualismo’]” (RAYMOND, 1994, p.49), a autora questiona as análises
“biologicistas” de Money, assim como as teorias psicanalíticas misóginas de Robert Stoller e
reinsere o debate nature-nurture (natureza-socialização) para provar que as “perturbações” que

26
Em seu livro, a autora também entrevista algumas mulheres transexuais a fim de oferecer dados para
fundamentar uma de suas principais críticas à transfeminilidade: a ideia de que essa identidade foi deliberadamente
criada pela ciência para reafirmar estereótipos de gênero e interferir nas lutas feministas de libertação da mulher.
85

levaram à construção do “transexualismo” teriam na verdade uma origem exclusivamente


sócio-política e que a condição seria, portanto, passível de reorientação ou desconstrução.
Raymond reivindica a extinção do “transexualismo” e do tratamento oferecido às
pessoas transexuais, uma vez que, segundo ela, essa se trataria de uma invenção científica
fundamentada em premissas enganosas: “é biologicamente impossível mudar o sexo
cromossômico, e, portanto, o transexual não é realmente transexuado” (RAYMOND, 1994,
p.125). Em contrapartida, advogando especialmente contra as intervenções somáticas
transexualizadoras (com ênfase nas cirurgias), a autora oferece métodos que considera mais
efetivos e éticos para solucionar, senão obliterar, o “problema transexual”. Após argumentar
que não há indícios de aspectos biológicos que provoquem o “transexualismo”, Raymond
postula a questão: “se [...] transexualismo tem origens sociopolíticas, pode ser entendido e
tratado pelo modelo médico?”. A autora propõe então a substituição das cirurgias e do
tratamento hormonal por uma correção terapêutica que não seja orientada pelo discurso médico
e que conserve a integridade do “corpo nativo”:

Se fosse um tipo diferente de terapia, onde o modus operandi fosse a


“conscientização”, o/a transexual pode não achar tão necessário recorrer à cirurgia de
conversão de sexo. [...] Até que os problemas que a psiquiatria delegou como sendo
seus sejam estendidos a uma crítica geral da sociedade patriarcal, o transexualismo
não será entendido como uma manipulação médica da ação e do significado social e
individual. (RAYMOND, 1994, p.124).

Prosser identifica nas teorias de Raymond a criação de um construtivismo


depreciativo, cuja função seria desvalorizar e discriminar a transexualidade rotulando-a como
“não-natural” ou então “ainda-menos-natural” que a categoria “mulheres”. Na visão do autor,
esse uso da palavra “construção” reitera a falsa premissa de que as/os transexuais fomos
“construídas/os de uma forma mais literal que as pessoas cisgênero” (PROSSER, 1998, p.9).
Pode-se dizer que, esboçando a noção de biopoder, Raymond utiliza a figura transexual
como alegoria da conquista e da dominação dos processos vitais pela ciência. Entretanto,
conforme apontado por Prosser (1998), essa perspectiva construtivista parece ser aplicada
exclusivamente à transexualidade, deixando de fora análises acerca das contribuições da
biologia para a criação e regulação das categorias “homem/masculino” e “mulher/feminino”.
De fato, a transexualidade não foi nunca considerada um “objeto natural” e, justamente por
referenciar a polaridade natural/artificial, uma das perturbações que carrega diz respeito à
grande divisão natureza/cultura. A esse respeito, vale atentar para o fato de que historicamente
86

atribuiu-se à biologia o poder soberano de qualificar o que seria construído como “natural” e
opor a esse critério o seu outro (o “antinatural”).
Em La Invención Del Sujeto Transexual, referenciando os trabalhos de Fausto-Sterling
(2000), Meyerowitz (2002) e Laquer (1990), entre outros, Francisco Vázquez García (2018)
historiciza os contextos e dispositivos históricos que culminaram na criação da transexualidade
enquanto patologia associada ao domínio científico europeu. Nesse exercício o autor conecta
as raízes desse fenômeno ao momento em que “masculinidade” e “feminilidade” passaram a
ser entendidas como naturalmente derivadas das leis da biologia, deixando de estarem
estritamente circunscritas a outras instituições sociais (como a igreja, a família e as autoridades
civis). Segundo García, a criação da biologia teria sido o primeiro gesto de domínio do
científico sob a identidade sexuada, uma vez que proporcionou as condições para que se
instaurasse uma instituição médica responsável pela regulação dos processos vitais, ou seja,
uma entidade institucional encarregada do manejo da vida via saber científico e a serviço de
um governo: o biopoder. Nas palavras de García:

Entre o período iluminista e o das revoluções, deu-se, como nos ensinam os


historiadores da ciência (Jacob, 1970; Canguilhem, 1980), a constituição da biologia,
isso é da vida, como um âmbito específico de saber. [...] A vida se afronta desde agora
como um espaço dessacralizado, um processo livre a si mesmo, regido por suas
próprias normas imanentes. [...] Emerge assim o que desde Foucault se denomina
“biopolítica”, a aparição de um biopoder que conduz os seres humanos na sua
condição de população, isso é, de acontecimentos biológicos coletivos (natalidade,
habitat, mortalidade, reprodução etc.) (Esposito, 2006, pp. 41-72) (GARCIA, 2018,
p.20)

Segundo o autor, o triunfo desse modelo biologicista, teve como efeito (i) o reforço e
o aprofundamento da normalização da masculinidade e da feminilidade, pautadas pelo sexo
reprodutivo e por práticas heterossexuais; e (ii) a reformulação e o manejo de seres
intermediários do antigo regime sexual, como hermafroditas (intersexo) e viragos e,
eventualmente, invertidos, homossexuais, pseudo-hermafroditas, hermafroditas-psicológicos e,
finalmente, transexuais.
Baixo o domínio do biopoder, tanto a noção de “sexo masculino” e “sexo feminino”,
como a posterior invenção do “transexualismo” foram tecidas por tratados médicos, pesquisas
laboratoriais, exames psicológicos e endocrinológicos e intervenções cirúrgicas. Entretanto, o
estudo dos sexos feminino e masculino se estabeleceu como observação de processos do corpo
e instituiu uma normalidade rígida, em oposição à qual outras possibilidades e realidades
emergiriam na condição de monstruosidade e anomalia.
87

Vale também destacar que, assim como aconteceu com a sexualidade a partir dos
XVIII e XIX, a transexualidade, a partir das primeiras décadas do século XX, também surgiu
entrelaçada (porém não necessariamente “capturada”) em relações e práticas de poder, em
especial do âmbito médico e psiquiátrico, o que permite entender que sua inscrição (como
patologia) dentro de um marco institucional orientado pela matriz heterossexual foi o que lhe
conferiu inteligibilidade no limitado escopo de possibilidades então existente.
Conforme brevemente pincelado, a agência, a experiência e a contribuição das pessoas
transexuais são raramente reconhecidas na história da criação da categoria, uma vez que essa
identidade foi expelida do domínio natural, construída como “corpo doente” através dos saberes
médicos e reformulada no discurso feminista radical como “objeto artificial” (dessubjetivado).
Se, de um lado, o feminismo radical oferece um transexualismo-Frankenstein, que só passa a
existir quando é inventado pela ciência, de outro lado surgem perspectivas que enxergam a
transexualidade enquanto “conceito interativo” capaz de intervir na realidade que a designa,
indicando que talvez as/os transexuais estiveram por muito tempo presas/os em um corpo
teórico errado.

3.6 AS INCISÕES DE FRANKENSTEIN NA IDENTIDADE

De forma alternada e, por vezes, simultânea, a obra literária Frankenstein oferece uma
sucessão de retornos e expulsões dos domínios da natureza e da cultura, desafiando, assim, a
separação desses domínios e incitando o questionamento: “até onde podemos levar o artifício
sem prejudicar a nossa identidade humana ‘natural’?”. Essa perturbação gerada pela
impossibilidade de se equilibrar “natureza” e “cultura” na equação que produz o “humano”, é
descrita por José Gil como um conflito de cerne identitário inaugurado pelo monstro:

Assim, dividido entre ‘tudo (na natureza) é humano’ (visto que o homem não é senão
natureza e código genético) e ‘tudo (no homem) é artificial’, o homem ocidental
contemporâneo já não sabe distinguir com nitidez o contorno da sua identidade no
meio dos diferentes pontos de referência que, tradicionalmente, lhe devolviam uma
imagem estável de si próprio. (GIL, 2000, p.170)

Complementarmente, Halberstam (1995) aponta que o deslocamento do terror para o


corpo, inaugurado por Frankenstein e pelo gênero gótico, também faz com que a ameaça recaia
fortemente sobre a identidade. Em sua opinião, a substituição da paisagem do medo pela pele e
88

pela carne tem como efeito a transformação da relação que até então se tinha com a
monstruosidade:

Frankenstein não só dá forma à dialética da monstruosidade em si [...], como também


demanda que pensemos o gênero gótico como um todo em termos de quem ao em vez
de o que é o objeto de terror. Focando no corpo enquanto lócus do medo, o romance
de Shelley sugere que são as pessoas (ou, ao menos corpos) que aterrorizam as
pessoas, não fantasmas ou deuses, demônios ou monges, castelos expostos ao vento
ou monastérios labirínticos. (HALBERSTAM, 1995, p.28)

A aproximação entre monstruosidade e corpo evidencia que o terror aflorado pelo


monstro é interior à constituição do sujeito. O horror passa então a frequentar o plano corpóreo
humano (em oposição ao divino ou ao espiritual), fazendo despertar a pergunta: “se o monstro
de Frankenstein é um ‘quem’ em vez de um ‘o quê’, então quem/o que sou eu?”. Esse dilema
aflige principalmente a noção tradicional de “identidade”, em especial a rigidez, coerência e
inflexibilidade que o termo – criado no século XIX como categoria policial (RAGO, 2016) –
carrega. Pode-se dizer que a monstruosidade evidencia o caráter essencialista inerente à
concepção de identidade e, ao expor os artifícios de sua construção, a fragiliza, indicando
possibilidades mais flexíveis, temporárias e nômades para formular a subjetividade.
Questionando o limite do humano e inaugurando o corpo como a paisagem do horror,
essa recorrente perturbação monstruosa coloca em cheque os pilares que sustentam as verdades
identitárias e pode, portanto, ser articulada para indagar ou reafirmar as certezas que se tem
sobre o que constitui, por exemplo, o sexo e o gênero, que são pilares fundamentais da
pessoidade.

3.7 SEXO E GÊNERO NA ESCOLHA PELO MONSTRO DE FRANKENSTEIN

Outras perguntas que despontam orientando a análise da escolha de Daly pelo monstro
em Frankenstein são: o que essa criatura, símbolo dos avanços tecnológicos, pode vir a
representar em termos de sexo, gênero e orientação sexual? E como são expressos e articulados
esses elementos no pensamento feminista radical? A esse propósito demonstrarei que o monstro
de Frankenstein é solicitado na escrita de Daly como metáfora depreciativa: o caráter
“artificial” do processo de sua criação é articulado para deslegitimar a transexualidade, gerando
uma polarização entre o chamado “sexo biológico” e o resultado dos processos cirúrgicos
transexualizadores. A intenção de Daly seria revitalizar as fronteiras entre natureza e cultura,
89

real e artificial (vida de origem biológica/vida originada na tecnologia), vivo e morto (a vida
impossível ou a morte em vida) e, por fim, a divisão última do humano e do inumano.
É importante frisar que, na escrita de Daly, as subjetividades sexuadas e seus processos
constitutivos não são evocados a partir da localização ou da fixação de determinada identidade
à criatura de Frankenstein, mas, sim, através da reiteração da distinção entre natureza e cultura,
bem como da separação entre real e artificial. Ou seja, apesar das características atribuídas ao
monstro de Frankenstein via economia visual (a dimensão de seu corpo, sua robustez,
racialização e masculinidade) e dos vestígios identitários na sua designação e auto-enunciação
na obra literária, a autora não ensaia uma comparação direta entre o “sexo biológico” ou a
orientação sexual do monstro e os marcadores que norteariam sua concepção de
transfeminilidade. Em vez disso, para formular a expulsão da transexualidade feminina do
domínio da mulheridade, Daly atenta ao ato de criação da criatura e articula a ideia de
“maternidade tecnológica”, apontando para o “berço científico” da transexualidade,
anteriormente mencionado. É nesse sentido que a escolha pelo monstro de Frankenstein se
sustenta em sua proposta: esboçando a (im)possibilidade de edificação científica de uma outra
ideia do corpo humano.

3.8 ADENTRANDO AS ENTRANHAS DO MONSTRO TRANSEXUAL

Em seu livro Gyn/ecology: The Metaethics of Radical Feminism (1978) no breve


tópico Boundary Violation and the Frankenstein Phenomenon (a violação de fronteiras e o
fenômeno Frankenstein), Daly se refere às tecnologias somáticas associadas às cirurgias de
redesignação de sexo como saberes oriundos das “ciências mortuárias”. Abordando os
processos e efeitos dessas tecnologias que intitula de “falocêntricas”, a autora toma como
referência o livro Frankenstein (1818) da inglesa Mary Shelley (1797–1851), a fim de criar
uma analogia entre os dois personagens principais (o Dr. Victor Frankenstein e sua criatura) e
a transexualidade feminina.
Durante esse exercício, Daly analisa o ímpeto de criação que levou Victor a dar vida
ao monstro e descreve esse ato como sendo a expressão de um “instinto maternal necrófilo”:
teoricamente frustrado pela impossibilidade de maternidade (uma espécie de “inveja do útero”
acionada pela “inescapável esterilidade masculina” do protagonista), o cientista, enquanto “pai
tecnológico”, teria forjado também uma versão “mãe-macho” (male-mother) de si. Essa
“abominável maternidade masculina”, fruto da engenhosidade de Victor, seria uma prática
90

desvirtuada e criada para satisfazer as ambições narcisistas27 e autoindulgentes explicitadas nos


momentos que antecedem a criação do monstro: “Uma nova espécie me abençoaria como sendo
seu criador e fonte; muitas felizes e excelentes naturezas deveriam a mim a sua existência.
Nenhum pai poderia reivindicar a gratidão de sua criança tão completamente como eu merecerei
a das minhas” (SHELLEY, 1831, p.63 apud DALY, 1978, p.50).
Na metáfora criada por Daly, as ambições cientificas do Dr. Frankenstein se
traduziriam nos interesses do “patriarcado” (protagonizado aqui por cientistas, psicólogos e
cirurgiões) em regular e manter o sistema binário sexo/gênero. Já no exemplo de “maternidade
masculina”, a obsolescência das mulheres na prática de reprodução humana serve como
alegoria para representar uma ameaça maior: a expulsão das mulheres da categoria que as abriga
e a subsequente neutralização das reivindicações feministas. Ou seja, a autora atribui a
“maternidade masculina monstruosa” (capacidade de criar vida excluindo mulheres e ato
singular de dar à luz a criaturas impossíveis) à figura do Dr. Frankenstein e aos profissionais
médicos do “império transexual” esboçando uma analogia entre as tecnologias somáticas
associadas à transexualidade feminina e aos conhecimentos científicos que deram vida à
criatura. O produto final dessa maternidade abominável (o monstro transexual) teria como
efeito último a invasão masculina das fronteiras da “mulheridade” (womanliness). Assim sendo,
o “fenômeno transexual” é reelaborado enquanto produto da referida “maternidade masculina
monstruosa” visando alertar acerca da ameaça de “total eliminação das mulheres” de sua
própria categoria ontológica:

Transexualismo é um exemplo da paternidade cirúrgica masculina que invade de


substitutos o mundo feminino. A engenharia genética dos mães-macho [malemother]
é uma tentativa de “criar” sem mulheres. A manufatura de úteros artificiais, de
ciborgues que serão parte carne e parte robô, de clones, todos projetados por homens,
são manifestações da violação falocrática de fronteiras. (DALY, 1978, p.50. Grifos
Meus)

Enquanto na figura do Dr. Frankenstein a autora projeta essa “aberrante maternidade


masculina” (corporificada nos saberes científicos, nos profissionais implicados na criação do
monstro e na própria figura transexual), a criatura a quem o cientista dá vida remete ao corpo
transexual (pós-operação) e é descrita por Daly como sendo um ser que não pode saber sua real
condição, alguém que se sente só pois “aparentemente não é unida/o por nenhum vínculo a

27
Cabe pontuar que “narcisismo” era um dos sintomas de diagnóstico do “transexual verdadeiro” de
acordo com as teorias desenvolvidas por David Oliver Cauldwell.
91

qualquer outro ser existente” (SHELLEY, 1831, p.65 apud DALY, 1978, p.51). Ressoando nas
teorias de Hausman e de Raymond, a solidão estrutural, a falta de consciência e o
despertencimento crônico são associados tanto ao monstro de Frankenstein como à figura
transfeminina em virtude de suas filiações aberrantes. A autora exalta a impossibilidade de
hereditariedade, frisando que tanto a identificação do “corpo originário” como a reprodução de
sua “espécie” ou “raça” seriam inviáveis. Esse elemento alienante expele a criatura (e a
transexualidade análoga a ela) do domínio da inteligibilidade e lhe confere abjeção, visto que,
segundo Julia Kristeva, dentre outras coisas, “a abjeção se constrói sobre o não reconhecimento
de seus próximos: nada lhe é familiar, nem mesmo uma sombra de recordação” (KRISTEVA,
1980, p.5).
Esse profundo despertencimento faz da criatura (o monstro em Frankenstein e a
mulher transexual) um “não-ser”, cuja monstruosidade se adensa com a incorporação de outras
abjeções: a impossibilidade da vida via tecnologia (a artificialidade de sua criação que a
empurra para fora do domínio da natureza, ao mesmo tempo em que a aliena da cultura
humana), o inusitado aspecto físico (que a marginaliza da vida social) e o fato de que corporifica
a vida em morte, pois traz “de volta à (uma outra) vida” partes de corpos que já faleceram, ou,
no caso da figura transexual, partes de um corpo dissociadas do ser “original” (referenciado, no
vocabulário feminista radical, como “corpo nativo”28).
Visto que a monstruosidade está fora da economia do ser, no pensamento de Daly a
criatura não seria mais que um mero artifício tecnológico, fruto da imaginação necrófila de seu
pai, mas que dele não chega a se separar completamente: existe, afinal, na crítica literária, a
contundente teoria de que há uma continuidade entre criatura e criador, ou seja, a ideia de que
o monstro de Frankenstein é o duplo do cientista, seu Outro, ou aquele que abriga o que o seu
“pai tecnológico” não aceitaria sobre si mesmo.
Nesse raciocínio, “Frankenstein” 29 representa ao mesmo tempo criatura e criador,
confirmando a comum e talvez deliberada confusão sobre quem seria o sujeito ao qual o nome
se refere. Estima-se que, na escrita substancialmente hermética (em relação ao feminismo
radical separatista) de Daly, essa perspectiva (que divide o sujeito em “antes” e “depois” e

28
Complementarmente, cabe ressaltar a reincidência de componentes necrófilos na vernácula trans*,
como a adoção do termo “nome morto”, as “despedidas” na frente do espelho que precedem as cirurgias, as
retóricas de familiares que afirmam ter “perdido uma filha e ganhado um filho”, entre outros exemplos que serão
explorados nos próximos capítulos.
29
Na obra literária, a criação do Dr. Frankenstein é interpelada pelos termos “criatura”, “monstro”,
“demônio”, “aborto”, “inimigo” e “coisa”.
92

confunde também os limites entre paciente e médico) faça referência a Christen Jorgensen, uma
vez que ela adotou seu nome em homenagem ao cirurgião que a operou, sugerindo uma espécie
de linearidade/parentalidade (kinship) alcançada através da cirurgia:

Jorgensen escolheu o nome Christine. Ela se lembrou mais tarde, “Eu sempre gostei
[desse nome] ... Sempre disse para mim mesma que seria Christine. Então, depois de
conhecer o Dr. Hamburguer, cujo nome era Christian – o masculino de Christine – me
decidi definitivamente.” (MEYEROWITZ, 2002, p.60)

É também nesse plano de continuidade criador/criatura que Daly insere


transexualidade na forma de monstruosidade: enquanto corpo-Outro, capaz de reunir tanto o ser
pré-transição e a “maternidade masculina” como também seu produto – o aberrante (não)ser,
fruto de intervenções somáticas. Ou seja, assim como em Frankenstein, o cientista é capaz de,
num gesto narcisista, criar uma versão monstruosa de si (seu duplo que solidifica sua identidade
por oposição) quando corporifica a mulher transexual; o sujeito em transição (munida/o de
profissionais médicos e de aparatos tecnológicos) daria à luz uma vida impossível que, ao
mesmo tempo em que remete indicialmente ao seu eu-anterior, articula sua negação ou morte.
Pode-se dizer, portanto, que, unindo dois termos antagônicos, Daly inscreve a
transexualidade como elemento profano da relação dialética homem/mulher: a autora alega que
o “fenômeno Frankenstein” ressurge do corpo transexual de forma onipresente na cultura
contemporânea para violar as fronteiras que separam as categorias “homem” e “mulher”. Essa
é a ameaça à qual alerta, o perigo que seu texto ao mesmo tempo constrói e aniquila, conforme
argumentarei adiante.

3.9 OS MONSTROS E A AMEAÇA DA VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS

A violação de fronteiras para a qual Daly alerta seria, na teoria contemporânea, o que
define a função do monstro teratológico: segundo José Gil (2000), “monstro” pode vir a
representar a impossibilidade dialética, já que uma das características que o define é a
sobreposição de dois termos opostos (elementos de um binômio, na esteira da divisão
mestre/escravo de Hegel) em um único ser.
Essa ambiguidade constitutiva possibilita ao monstro emergir como “terceiro termo”
operante no interior das duas categorias de uma relação dialética e é também o que lhe concede
potência subversiva/destrutiva: transitando fugitiva e desautorizadamente pelas fronteiras, o
monstro excede – e por isso desestrutura – o equilíbrio arquitetônico do binômio. Nas palavras
93

de Cohen, “em sua função como Outro dialético ou suplemento que funciona como terceiro
termo, o monstro é a incorporação do Fora, do Além – de todos aqueles loci que são
retoricamente colocados como distantes e distintos, mas que se originam no Dentro” (COHEN,
1996, p.7).
O perímetro da monstruosidade, ao mesmo tempo interno (porque fronteiriço às
categorias binárias) e externo à relação dialética (pois se opõe a essa estrutura), forma o
chamado interstício: trata-se, aqui, do limite que, aparentemente, separa duas categorias
ontológicas opostas (homem/mulher, branco/negro, natureza/cultura etc.), mas que também não
deixa de ser um ponto marginal de contato entre elas. Nesse sentido, o interstício pode ser uma
área que se alastra contaminando as categorias (explicitando sua porosidade), como também
pode se reduzir ao tênue limite que faz a manutenção das fronteiras (demonstrando a solidez
das categorias em questão). Ambas são possibilidades contingentes que dependem das
distâncias entre os polos que compõem uma relação dialética: a aproximação extrema dos
termos do binômio (sobreposição das categorias) gera monstros capazes de confundir seus
limites, ao passo que sua separação adormece a latente ameaça monstruosa.
Para ilustrar essas teorias, tomando como exemplo a relação dialética
feminino/masculino (e esboçando a divisão interna sexo/gênero), disponho abaixo uma
ficcionalização30 simplificada de como e onde surgiriam os monstros de acordo com a lógica
explicada. Esse exercício permite visualizar possíveis configurações e efeitos do interstício:
interessa enfatizar tanto sua atuação na manutenção como também a serviço da desestabilização
de sistemas reguladores de categorias ontológicas e das identidades a elas associadas.

30
Cabe ainda uma ressalva: a título de ilustração, a imagem apresenta um modelo aplanador e simplista,
em que são empregadas categorias ontológicas puras (que se autodefinem em si mesmas, em vez de serem
contingentemente delineadas em relações de interseccionalidade com outras). Ademais, interessa pontuar também
que as simbologias elegidas são frutos de escolhas imperfeitas, afinal, não há intenção de definir o local preciso e
o funcionamento adequado das identidades às quais se alude, senão vislumbrar algumas possibilidades. Apesar de
correr o risco de elaborar uma construção cartesiana de pensamento, acredito que o modelo ilustrado possa ser útil,
pois acrescenta um componente visual à discussão.
94

Figura 22 – Gráfico de categorias sólidas e categorias porosas

Fonte: Elaborada pelo Autor (2020)

O primeiro modelo, baseado no pensamento feminista radical, apresenta a separação


absoluta dos domínios “mulher” e “homem” e a definição sólida dos termos enquanto
construções elaboradas pelo “regime patriarcal”. Nesse exemplo, o núcleo (“sexo biológico” ou
“sexo cromossômico”) é o elemento que se impõe em relação à periferia (representativa do
gênero que, por oposição, se estabelece como elemento culturalmente determinado). A imagem
expressa, portanto, a ainda recorrente ideia de que o “sexo”, enquanto componente “natural”,
seja a substância biológica ou a “verdade” que subsidia o gênero ou que ele reflete. A esse
modelo pode ser associado o tradicional esquema patologizante amparado por dispositivos
biomédicos, uma vez que sua estrutura suprime elementos que não se enquadram em nenhuma
das duas categorias apresentadas. A intersexualidade, por exemplo, inexiste nesse quadro
teórico: a sua integração às categorias predominantes (via intervenções cirúrgicas) ou negação
e expulsão para “um falso fora” (um efeito da “repressão originária” descrita por Kristeva) lhe
95

inviabilizam, de forma que essa poderia tomar corpo somente enquanto monstruosidade, na
imagem que sucede.
O segundo esquema apresenta os loci de onde despontam as monstruosidades de
acordo com a teratologia contemporânea e o faz explicitando sua interioridade em relação às
categorias ontológicas: na imagem, ao menos uma fração delas é designada ao cultivo de
monstros. O modelo permite também visualizar a ideia previamente articulada de que as
categorias binárias (interconstituintes e autoexcludentes) se pressupõem moldadas não só pela
oposição dicotômica constituinte da relação dialética, mas também pela suposta expulsão de
termos incompatíveis (abjetos), que são lançados para o exterior do sistema. Pode-se dizer que
tais estruturas se afirmam expelindo as ambiguidades (incongruências) em direção a um falso
fora, com a intenção de mascarar a interioridade da repressão que cria o abjeto, o qual, por sua
vez, volta a emergir, com forma monstruosa, no interstício.
Nesse modelo, que faz reverberar alguns apontamentos da teoria queer, observam-se
também possíveis efeitos da aproximação e da contaminação dos binômios: a opacidade dos
termos (simbolizando a dessolidificação e maleabilidade, por exemplo, da identidade
“mulher”), a redução dos núcleos (representativa da dissolução das “verdades biológicas”: aqui
é apresentado o questionamento de “sexo” enquanto dado natural, ou seja, sugere-se que o “sexo
biológico” poderia ser uma construção culturalmente orientada) e o surgimento do terceiro
termo, que pode vir a representar qualquer perturbação dos elementos da cadeia (sexo >gênero
>desejo >prática sexual) que dá coerência à matriz de inteligibilidade. Assim sendo, a área lilás
pode abarcar transgressões (desvios do regime cis-heterosexual) que desestabilizam os pilares
sustentadores de sexo e gênero, sinalizando a ameaça à categoria “mulher” alertada por Daly.
Em seu exercício de monstrificação, Daly emprega alguns dos elementos da teratologia
contemporânea explicados acima, em especial a capacidade do monstro de reunir em um único
termo dois polos opostos – a característica que confere à criatura a condição de aberração.
Entretanto, a estrutura desse monstro transexual, criado a serviço do feminismo lésbico radical,
inviabiliza a produção de efeitos desestabilizadores nas categorias ontológica, conforme
explicarei adiante.

3.10 O MONSTRO DESTITUÍDO DE POTÊNCIA


96

Como mencionado anteriormente, a metáfora do monstro é aplicada à transexualidade


partindo da premissa de que o corpo transfeminino reuniria em si o sujeito pré-transição
(criador/eu/macho) e o ser pós-transição (criatura/outro/”pseudofêmea”), indicando o
surgimento de um terceiro termo que, na teratologia contemporânea, não seria nem sujeito (eu)
nem objeto (outro), mas aquilo que foi expelido (abjeto) e que é reinserido no sistema dialético
na condição de monstro. Nessa lógica, a transexualidade monstruosa carregaria em si
simultaneamente o “eu-mesma/o” (“corpo nativo” ou “homem”) e “o/a outro/a”
(“pseudofêmea”), fazendo reverberar a definição de monstruosidade elaborada por Gil: “o
monstro não é senão a ‘desfiguração’ última do Mesmo no Outro. É o Mesmo transformado em
quase-Outro, estrangeiro a si próprio” (GIL, 2000, p.174). Entretanto, em seu exercício de
monstrificação da transexualidade, Daly nega a possibilidade de contágio e trânsito entre as
categorias “homem” e “mulher”:

No transexualismo, machos colocam em si corpos de “fêmeas” (que são, na verdade,


pseudofêmeas). Na realidade, eles são separados de suas mães originais através do
ritual da terapia. [...] Esses “pacientes” renascem dos machos. [...] Os super-mães
machos que dão à luz incluem psiquiatras, cirurgiões, terapeutas hormonais, e outros
profissionais cooperantes. Em seu esforço para dar à luz, os cirurgiões e terapeutas
hormonais do reinado transexual podem ser chamados de produtores de pessoas
femininas. Eles não podem produzir mulheres (DALY, 1978, p. 48-49).

É importante atentar à terminologia adotada por Daly, uma vez que o vocabulário
empregado denuncia seu investimento na relação dialética que Frankenstein exalta: a separação
entre natureza e cultura e, análoga a ela, a divisão entre o chamado “sexo biológico” e as
intervenções somáticas transexualizadoras. Ao adotar os termos “macho” (male) e “fêmea”
(female) a autora enaltece a “natureza biológica do sexo” e invalida a possibilidade de trânsito
via procedimentos cirúrgicos, reiterando a ideia de que existe uma identidade sexuada que
essencialmente orienta a (real) experiência de gênero. Cabe também ressaltar que, nessa citação,
a menção às “mães originais” surge como crítica ao trabalho de Robert Stoller (1975), que em
seu livro A experiência transexual, associa o “transexualismo” a perturbações ou interrupções
na passagem pelo complexo de Édipo e culpabiliza as “mães dominantes” (mais que os “pais
ausentes”) pelos comportamentos de gênero “inadequados” expressos por crianças que se
tornarão transexuais, em especial, garotos afeminados.
É pertinente frisar que a autora não nega à mulher transexual feminilidade, mas, sim,
o status de mulheridade. Esse fracasso na tentativa de alcançar a mulheridade, ou seja, a
condição de “pseudofêmea” ou “quase-outro” da qual o monstro transexual não consegue
escapar, ressoa na metáfora de Frankenstein, traduzindo-se como inviabilidade da produção
97

artificial (via recursos culturais/tecnológicos) de atributos “naturais”. Assim sendo, análoga à


mulheridade transfeminina, a humanidade da criatura gerada pelo Dr. Victor surge frustrada no
ato da criação:

O ideal prometeico de conquista da natureza fracassa no mesmo instante em que o


criador assiste, perplexo, aos “olhos amarelos e opacos da criatura se abrirem”.
Frankenstein abandona o cômodo-laboratório, “incapaz de suportar o aspecto do ser
que criara”, para retornar mais tarde, e então contemplar, “à luz amarelada e fraca da
lua, que penetrava no quarto através da veneziana da janela, aquele infeliz – monstro
miserável que [...] criara”. (CIACCO, 2016, p.171)

Ao adotar o termo “pseudofêmea”, a autora não só reafirma que a insígnia de


pertencimento à categoria “mulher” seria o componente “natural” (sexo) e não o “cultural”
(gênero), como também insinua que há algo de duvidoso, mentiroso ou falso (porque
culturalmente alcançável ou forjado) na feminilidade transexual e reforça um dos estigmas mais
consistentes da experiência travesti/trans*: a sua associação com a fraude, com a falta de caráter
e com a incredibilidade (SERANO, 2007). Ressaltando esses elementos que marginalizariam a
transexualidade feminina em relação à mulheridade, a autora incentiva as feministas radicais a
desmascararem as “pseudofêmeas” e a verem através da “fachada feminina” para enxergar o
“verdadeiro sexo”, a essência que se esconde no âmago da criatura:

Nossa esperança reside em nosso poder de ver o que essas próteses e cosméticos
realmente são. Os rostos, membros e respostas artificiais condicionados são matéria
morta modelada para parecer imitações realísticas de mulheres, rotuladas de “A Coisa
Real”. É essencial que estejamos cientes dos métodos alternantes dos ginecologistas
macabros, esses filhos de Frankenstein, cuja especialidade é “a ciência da mulheridade
[womankind]”. (DALY, 1978, p.51)

Para concluir, enunciando-se como bruxa (um monstro tipicamente feminino), Daly
reforça a ameaça simbolizada pela transexualidade e expressa sua própria responsabilidade de
neutralizá-la e de inviabilizar os fluxos entre as categorias “homem” e “mulher”. Visando
defender as fronteiras da mulheridade, Daly propõe: “essa [a maternidade masculina científica]
é uma violação/invasão real que requer que nós, Bruxas, nos tornemos impenetráveis às
violações dos invasores e exorcizemos os efeitos de sua presença” (DALY, 1978, p.51). A
autora alega proteger o corpo e o espírito das mulheres (no texto indexados aos elementos
naturais “terra”, “fogo”, “ar” e “água”) e forja, então, uma separação absoluta entre “homens”
e “mulheres” para destituir qualquer possibilidade de trânsito entre essas categorias ontológicas:

Nosso entendimento é muitas vezes turvado, entretanto, pela propensão patriarcal à


ereção de fronteiras artificiais (a especialidade de Apollo) e a subsequente violação
98

delas, como sendo território “inimigo”. [...] Esse tipo de “violação” pertence à arena
dos jogos de meninos e essencialmente não tem nada a ver com as prioridades das
mulheres. [...] Nossa sobrevivência sã requer que enxerguemos através dos
enlouquecedores limites artificiais feitos-pelos-machos, assim como requer que
zombemos da “violação” masculina dessas falsas divisões fronteiriças. (DALY, 1978,
p.51)

Aplicando uma lógica paradoxal, nesse trecho Daly identifica a construção dos limites
entre os sexos e os gêneros como sendo “falsas divisões fronteiriças” representativas dos
interesses “patriarcais”. Ainda assim, de certa forma, a autora rende-se a esse sistema simbólico
e reconhece o “sexo biológico” enquanto critério de pertencimento, passando então a defendê-
lo para erguer as fronteiras da “mulheridade”. O principal efeito dessa manobra seria o
isolamento da transexualidade feminina na categoria “macho”, da qual, segundo a autora, esses
corpos derivam e ao mesmo tempo deixam de pertencer (implícito na referência à morte no
termo “ciências mortuárias”), conforme ilustrado no esquema disposto abaixo.

Figura 23 – Esquema Feminista Radical

Fonte: Elaborado pelo Autor (2020)

Analisando a manobra discursiva de Daly, nota-se que, diferentemente da teratologia


contemporânea, a condição de “quase-outro” (implicada na “desfiguração” ou “deformação”
da figura masculina) que confere incompletude subjetiva e posterior monstruosidade à criatura
transexual não representa uma transgressão das fronteiras que separam “macho” e “fêmea” e
sequer cria um interstício entre elas. Para Daly, a transexualidade, apesar de feminina, estaria
desprovida de “mulheridade” (a “coisa real”) e ficaria, portanto, achincalhada no domínio dos
“machos”, ao mesmo tempo em que corporificaria um desvirtuamento dessa ontologia, ou seja,
a criatura é impossibilitada de alcançar a condição de sujeito: por ser “um invólucro
99

autossufocante (Self-suffocating), um delírio da imaginação bizarra de seu pai, ela esconde a


profundidade do Eu” (DALY, 1978, p.51).
Assim sendo, se a transexualidade feminina, na condição de “pseudofêmea”, seria um
tipo de deformação patológica da masculinidade, o corpo trans* seria ao mesmo tempo a
insígnia de despertencimento da categoria originária e o seu resíduo, uma vez que o transitar
autêntico lhe foi negado. Dessa forma, no pensamento de Daly, o interstício em que a
monstruosidade transfeminina surge não estaria nos limites entre “homem” e “mulher”, senão
na fronteira que separa o humano do inumano. Representativa da disjunção entre sexo e gênero,
a transfeminilidade termina expulsa da humanidade e desde aí cumpre também uma função: “o
monstro é uma figura da qual o eu fortemente depende como parte integral de seu ser e não
como um referente opositor” (NIRTA, 2017, p.135). Em outras palavras, o monstro não seria
um outro absoluto, mas um espelho para a humanidade.
Pode-se dizer que a criatura descrita por Daly passa a ser um “homem aberrante” e se
converte num terceiro termo que, por manter distâncias estruturais seguras em relação à
“mulheridade”, é incapaz de desestabilizá-la e opera somente enquanto fração de seu “exterior
constitutivo”. Em outras palavras, se o abjeto seria “aquilo que perturba uma identidade, um
sistema, uma ordem” (KRISTEVA, 1980, p.4), Daly atribui ao corpo transfeminino a condição
de abjeto em relação à “macheza” (maleness), mantendo-o aprisionado dentro desse “outro” em
oposição ao qual a “mulheridade” se assegura. A pseudofêmea seria então um abjeto em relação
ao objeto que estabiliza a mulheridade, visto que, conforme apontado por Kristeva:

O abjeto não é o meu correlato que, oferecendo-me um apoio sobre qualquer um outro
ou qualquer coisa outra, permite-me ser, mais ou menos, destacada ou autônoma. Do
objeto, o abjeto tem somente uma qualidade – aquela de se opor ao eu (je). Mas se o
objeto, fazendo oposição, me equilibra na trama frágil de um desejo de sentido que,
de fato, me homologa indefinidamente, infinitamente a ele, o abjeto, pelo contrário,
objeto baixo, é radicalmente um excluído e me lança lá onde o sentido desmorona.
(KRISTEVA, 1980, p.1)

Ao inscrever a transexualidade nessa estrutura, Daly manipula a potência do monstro:


seu poder desestabilizador volta-se contra a categoria originária (“macho”) e também contra a
própria criatura. A autora obtém esse efeito discursivo capturando o monstro na interpelação
excessiva, no delineamento de seu contorno, na atribuição de forma e na nomeação. Pode-se
dizer que, no começo de seu texto, Daly apresenta a criatura transexual como alteridade
potencialmente ameaçadora e, para combater esse risco, vai, ao longo da escrita, nomeando e
totalizando-a, teorizando e abatendo-a. Afinal, o monstro, quando descrito e domesticado, não
100

só é passível de ridicularização como também possui uma função estabilizadora da relação


dialética:

Esse monstro precisa ser afastado, posto à distância e voltar a ser introduzido no
discurso de todos os dias: far-se-á dele uma curiosidade (de feira) e ele tornar-se-á
paradoxalmente num factor libertador da angústia. Reordenará do exterior as relações
entre os homens sem os fazer sofrer um constrangimento comum: sem os obrigar a
acorrentar-se a um monstro rígido e permitindo-lhes reconhecer-se como humanos,
iguais, singulares e diferentes uns dos outros. Os homens precisam de monstros para
se tornar humanos. (GIL, 2006, p.82, Grifos meus)

Enquanto Frankenstein é o palco de luta entre “uma raça de demônios” e “a espécie


humana”, a criatura introduzida por Daly como metáfora transexual opera como bode expiatório
do feminismo radical: converte-se num inimigo inteligível que reforça as alianças de um grupo.
Uma vez abatidos os questionamentos que o monstro frequentemente carrega, cria-se um rival
necessário que, desde fora, assegura as categorias identitárias. Afinal, “quem se atrever a lutar
contra o monstro automaticamente vira o representante da espécie, da sociedade toda. O
monstro, profundamente desconhecido, serve para reconstruir a universalidade, a coesão social
que, por conta própria, já não carregaria convicção” (MORETTI, 1982, p.68).
Dissecando o monstro transexual de Daly, sugeri que essa criatura (exilada da
masculinidade, porém essencialmente macho) opera como dispositivo do pensamento feminista
radical com o propósito de interromper o fluxo entre as categorias e neutralizar as perturbações
à “mulheridade”. Cabe então analisar a forma como Susan Stryker corporifica essa
monstruosidade no artigo My Words to Victor Frankenstein above the Village of Chamounix,
em que responde ao texto de Daly.

3.11 MONSTRUOSIDADES AUTO-DECLARADAS: SUSAN STRYKER


CORPORIFICANDO A CRIATURA TRANSEXUAL

Em seu artigo My words to Victor Frankenstein above the Village of Chamounix,


originalmente concebido em 1993 como texto de apoio para uma ação performática, Susan
Stryker enuncia-se transexual e monstruosa para responder à monstrificação da transexualidade
elaborada por Daly. Apropriando-se das interpelações injuriosas “monstro” e “antinatural”, a
autora descreve as qualidades subversivas do que ela chama de “fúria transexual” (transsexual
rage) para elaborar uma resposta que reúne diferentes estilos e compõe uma “estética
transgênero”: o texto incorpora elementos teóricos, poéticos e autobiográficos (anotações
101

extraídas de um diário pessoal) em uma escrita intimista e, ao mesmo tempo, acadêmica e


politicamente engajada.
Parafraseando Daly, no início do texto, Stryker afirma que o corpo transexual é um
corpo antinatural, produto da ciência médica. A partir dessa colocação ela estabelece o primeiro
grau de afinidade com a criatura de Frankenstein, assumindo para si essa localização de quem
duela contra a natureza e dirige suas palavras àqueles/as que a conferem a condição de monstro.
Com esse gesto apropriativo, Stryker almeja: (i) a restituição da potência subversiva do
monstro; (ii) a desarticulação da noção de que o sujeito transexual seria um mero produto de
discursos institucionais reiterativos das normas de gênero; e (iii) a inauguração de um novo
jogo de linguagem, capaz de dar voz ao monstro.

3.12 REINSERINDO O MEDO E MOBILIZANDO A POTÊNCIA DO MONSTRO

Ao assumir para si a monstruosidade de Frankenstein, Stryker atribui a Mary Daly e a


Janice Raymond a condição de seu outro/duplo: recai sobre elas o papel do cientista da obra
literária. Para justificar essa manobra, a autora argumenta que, assim como o Dr. Victor, essas
autoras desejam extinguir a criatura que produzem em suas teorias. Dessa maneira, pode-se
dizer que Stryker inverte a lógica da monstrificação originalmente apresentada: se para Daly o
Dr. Victor aparecia indexado ao “patriarcado” e encarnado nas figuras dos cirurgiões, dos
médicos e do/a próprio/a paciente pré-transição, aqui Stryker explicita o papel das autoras na
construção discursiva/simbólica da figura transexual e lança a pergunta: “poderia sugerir que
Daly, Raymond e outras desse tipo constroem o/a transexual como seu próprio golem
particular?” (STRYKER, 1994, p.238).
A lógica empregada sugere que a dedicação exacerbada na construção e descrição do
monstro expressa ansiedade ou até mesmo fobia, conforme relacionado por Kristeva:

O fóbico não tem outro objeto além do abjeto. [...] Assim, com o medo colocado entre
parênteses, o discurso só se torna sustentável com a condição de se confrontar sem
cessar com esse outro lugar, peso repelente e repelido, fundo de memória inacessível
e íntimo: o abjeto. (KRISTEVA, 1980, p.6)

Se aplicarmos as teorias de Kristeva à equação proposta por Stryker, pode-se dizer que
a monstrificação da transexualidade refletiria uma tentativa de purificação de si do sujeito
motivada pela fobia: uma vez transformado em depositório dos medos e ansiedades, o abjeto é
expulso a um falso exterior e retorna ao jogo dialético e ao simbólico na condição de monstro.
102

Essa fobia seria, portanto, uma reação à força desestabilizadora do monstro e à vulnerabilidade
diante de seu poder de contágio:

Para Kristeva a prova da força do monstro reside em sua capacidade de desestabilizar


as regras e, ao mesmo tempo, estabilizar essa ordem ao falhar em reconhecer as
fronteiras entre “eu” e “outro”. Curiosamente, o que faz um monstro não é tanto sua
diferença física, estado insalubre ou a ameaça que representa, mas o potencial de
contaminar, ou seja, a possibilidade de que sua alteridade atravesse fronteiras físicas
e conduza “o nosso senso de abertura e vulnerabilidade, que o discurso ocidental
insiste em encobrir”. (NIRTA, 2017, p.139)

Stryker realça a ideia de que esse medo (força motriz da abjetificação) é provocado
pela proximidade ou interioridade do abjeto em relação ao sujeito, ou seja, que o abjeto (a
criatura transexual) representa aquilo que o sujeito (as criadoras/ teóricas feministas radicais
em questão) não aceitaria sobre si mesmo: nesse caso, a instabilidade e mutabilidade do sexo e
do gênero, a subsequente transformação da noção de “natureza” e a consequente revisão do que
se considera “humano”. Esse investimento obsessivo das teóricas feministas radicais na
monstrificação da transexualidade apontaria, então, para uma fissura interior (no âmago da
identidade “mulher”), ressoando na ideia de Cohen, de que “esse corpo incoerente,
desnaturalizado e sempre sob risco de desagregação, pode muito bem ser o nosso próprio corpo”
(COHEN, 2000, p.35)
A autora destrincha a operação desses processos de abjetificação e de subsequente
monstrualização para reiterar a ameaça que a criatura representa, atribuindo-lhe poder e
potencializando, assim, sua capacidade subversiva (da qual o medo ou fobia é sintoma). Pode-
se dizer que essa manobra realça a ideia de que “os monstros, felizmente, existem não para nos
mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser” (GIL, 2000, p.168) afinal, “o que vemos
espelhado no monstro são os vazamentos e fluxos, as vulnerabilidades no nosso próprio ser
corporificado [embodied]”. (SHILDRICK, 2002, p.4, apud NIRTA, 2017, p.136).

3.13 CHACOALHANDO O BERÇO CIENTÍFICO

Outra particularidade dessa estratégia auto-enunciativa monstruosa é a possibilidade


de recusa de submissão à/ao criador/a: “em vez de abençoar seu criador, o monstro o amaldiçoa.
[...] Frankenstein não pode controlar a mente e os sentimentos do monstro que faz. Ele excede
e refuta seus propósitos” (STRYKER, 1994, p.242).
Com essa colocação, Stryker adentra o debate do “berço científico da transexualidade”
inaugurado por Daly e estabelece um ponto de encontro com as teorias feministas radicais para
103

depois reformulá-las através de uma perspectiva trans*. Pode-se dizer que Stryker legitima
algumas das principais críticas feministas radicais à concepção institucional (biomédica) da
transexualidade ao colocar que “as políticas culturais do discurso científico estão alinhadas com
uma tentativa profundamente conservadora de estabilizar a identidade de gênero a serviço de
uma ordem heterossexual naturalizada” (STRYKER, 1994, p.242). Mas em vez de advogar pela
extinção da transexualidade, a autora enxerga nas/os transexuais “paisagens viáveis de
subjetividade” e usa a figura do monstro em Frankenstein para opor-se ao diagnóstico de
“transexual verdadeiro” e ao projeto de estado direcionado às dissidências: “na medida em que
nos levantamos das mesas de cirurgias de nosso renascimento, nós transexuais somos algo mais,
e algo diferente das criaturas que nossos criadores queriam que fôssemos” (STRYKER, 1994,
p.242).
A autora se espelha na criatura de Frankenstein anunciando que, como ele, também
encontrou os diários de seus criadores (referência às teorias de Benjamin, Cauldwell e de
feministas radicais como Daly e Raymond) e conheceu a história de seu corpo através de uma
perspectiva patologizante. Consequentemente, assim como o monstro, Stryker é mobilizada
pela fúria contra o sistema que a confere a condição de anomalia e uma posição instável nos
domínios da identidade.

3.14 A “FÚRIA TRANSGÊNERO”: PRODUTO DA ININTELIGIBILIDADE E


PROCESSO DA AUTO-MONSTRIFICAÇÃO

A ambiguidade de seu corpo, a constante negociação de sua identidade enquanto


sapatão e mulher transexual e o confronto com a interpelação injuriosa são alguns dos elementos
que Stryker depura ao formular a noção de “fúria transgênero”. Através de uma lente poética
autobiográfica, a autora reconta como experienciou os interstícios e as margens da identidade
ao longo de sua vida:

No corpo em que nasci, fui invisível enquanto a pessoa que considerava ser; fui
invisível como dissidente [queer] quando a forma do meu corpo me fazia parecer
hétero. Agora, como sapatão eu sou invisível entre as mulheres; como transexual, sou
invisível entre as sapatões. Como companheira de alguém que recentemente se tornou
mãe, sou frequentemente invisível enquanto transexual, mulher e lésbica. [...] O preço
alto de qualquer autorrepresentação visível e inteligível que eu alcancei faz com que
a experiência contínua de invisibilidade seja enlouquecedoramente difícil de suportar.
(STRYKER, 1994, p.246)
104

Ainda nesse exercício, Stryker se detém especialmente no tema da maternidade, que é


reiteradamente evocado no texto de Daly ao qual responde. Para adentrar essa temática, a autora
reconta como a experiência de acompanhar sua companheira no processo de parto impactou sua
identidade enquanto mulher transexual:

Eu cheguei o mais perto possível de dar à luz hoje – literalmente. Meu corpo não
consegue fazer isso; eu não consigo nem sangrar sem uma ferida e, ainda assim, me
reivindico mulher. Como? Por que sempre me senti assim? Eu sou uma maldita
aberração. Jamais poderei ser uma mulher como outras mulheres, mas eu não poderia
nunca ser um homem. Talvez realmente não haja lugar pra mim em toda a criação.
Estou tão cansada desse movimento incessante. Eu realmente duelo contra a natureza.
Eu sou alienada do “ser”. Eu sou uma deformidade automutilada, uma pervertida, uma
mutante, presa em carne monstruosa. (STRYKER, 1994, p.246-247)

Nessa passagem a autora identifica em sua mulheridade limites pautados pela


impossibilidade reprodutiva e emprega a linguagem de Daly, bem como a figura do monstro
por ela arquitetada, para situar sua história pessoal no drama do abandono familiar. Aqui, o
desejo de vingança e de redenção pessoal se intercruzam antecipando a “fúria transexual”: a
invisibilidade, a impossibilidade e a ininteligibilidade que relata a alienam da identidade e da
esfera social de tal forma que a autora se vê impulsionada a habitar posições múltiplas e
embreantes, e passa a identificar-se com a inconstância (“movimento incessante”) característica
da monstruosidade.
Na sequência, o texto autobiográfico toma forma de um poema que descreve uma
espécie de parto de si, através do qual a autora catalisa e transmuta as angústias descritas acima.
O processo e produto desse parto é a “fúria transgênero”, que tem um efeito automonstrificante:
“ao parir a minha fúria, minha fúria me pariu” (STRYKER, 1994, p.248). Importa ressaltar que,
respondendo à ideia de “maternidade científica”, Stryker formula uma nova iteração de
maternidade e de mulheridade: propondo uma autogestação e a concepção de si mesma, a autora
inaugura um novo olhar à sua própria monstruosidade. A fúria, propulsora dessa autodeclaração
monstruosa, se converte no elemento através do qual a potência subversiva e criativa do
monstro se manifesta.
Pode-se dizer que ao reivindicar-se monstruosa, Stryker mobiliza desejos destrutivos
e ao mesmo tempo constitutivos ou utópicos. Especialmente no que diz respeito ao drama do
abandono familiar, a autora vislumbra a construção de um lugar-outro para si, ou seja, enxerga
a viabilidade de uma forma dissidente de parentesco (queer kinship) e forja seu pertencimento
em arquiteturas familiares desviantes. Nesse sentido, a monstruosidade de Stryker se assemelha
à do monstro em Frankenstein que, desprovido de amor paterno (uma vez que não foi concebido
105

dentro de uma dinâmica familiar pautada pela reprodução heterossexual), aprende a noção de
“família” exclusivamente como sinônimo de afeto. Observando a família De Lacey, a criatura
em Frankenstein também imagina nas relações familiares um lugar para si desassociado dos
laços de sangue e das convenções formais que regulam “família” perante o estado e a igreja.
No mesmo sentido, para Harlan Weaver, o desejo por uma companheira manifestado
pelo monstro de Frankenstein não é pautado pela heterossexualidade, uma vez que a criatura
busca um laço afetivo que consiste “num intercambio de simpatias, não de sêmen” (WEAVER,
2013, p.293). De acordo com Weaver, “o monstro deseja outro monstro que vai adentrar os
laços afetivos do vínculo familiar [kinship], umx que vai trocar com elx o cuidado que, para x
monstrx, é um vínculo familiar”. Revisitando sua publicação, Stryker faz ecoar uma intenção
semelhante de investimento em arquiteturas dissidentes de parentescos e laços familiares:

Eu queria ajudar a definir “queer” como sendo uma família à qual transexuais
pertencessem. A visão “queer” que animava a minha vida, e a vida de tantas/os
outras/os no breve momento histórico do início dos anos 1990, abrigava a estonteante
possibilidade de uma reconfiguração compensatória e utópica de comunidade. Parecia
um salto anti-édipo e extasiante rumo a um espaço pós-moderno de possibilidade, no
qual os recipientes fundadores do desejo pudessem ser rompidos para liberar um poder
erótico cru, que poderia ser direcionado a uma agenda social radical. (STRYKER,
2004, p.213)

Há, portanto, nessa monstruosidade, um otimismo que não é articulado como elevação
nem superação da condição de monstro, mas como construção de um “fora” habitável. Em igual
proporção, o texto enfatiza o poder destrutivo ou desestabilizador do monstro furioso: no
exercício de análise do seu fracasso em performar as normas de gênero, a autora associa-se ao
sombrio e tece uma narrativa autodestrutiva que culmina numa alternativa poética e criativa,
pautada pela apropriação da interpelação injuriosa. Em vez de recusar os elementos
depreciativos e alienantes, a autora abraça a negatividade, o vazio, a impossibilidade e a falta
que seu corpo representa. Nas palavras de Halberstam: “criando uma conexão com a criação de
Frankenstein, Stryker reivindica a escuridão e o não-natural, faz as pazes com a fissura e
aceita/incorpora o monstruoso” (HALBERSTAM, 2018).
Forçada para fora dos registros de inteligibilidade, a criatura acolhe a desidentificação
com posições compulsórias de subjetivação e, assumindo-a, passa a aceitar a impossibilidade
da identidade que representa. Essa guinada, que inaugura um novo jogo linguístico, coloca em
risco as macroestruturas edificadoras da identidade, bem como os pilares da noção de
“humano”. Pode-se dizer que Stryker teoriza a “fúria transgênero” enxergando além de sua
história pessoal: identifica nas corporalidades e subjetividades desviantes a constante da fúria e
106

da revolta e convida-nos a mobilizar essa força em uma ação política efetiva capaz de
transformar o conceito de “natureza”.

3.15 TRANSFORMAR A NATUREZA, DESESTRUTURAR O HUMANO

A criatura que Stryker corporifica atua como portenta ideológica: partindo da ideia de
que o monstro vem para advertir, a mensagem ou revelação que a autora anuncia alerta acerca
da construção da divisão entre natureza e cultura e chama atenção para a ideia de que a cultura
estaria imbricada na concepção da noção de “natureza”, apontando, assim, para a formulação
do contínuo “natureza-cultura”. Sua proposta seria desmantelar as relações dialéticas que
condicionam sua monstruosidade e, para tanto, tem como alvo o emprego compulsivo das
conjunções aditivas e subordinativas “e” e “ou” para representar fenômenos como partes
separadas: natureza ou cultura, feminino e masculino etc.
Nesse processo de automonstrificação, a autora emula o encontro entre o monstro de
Frankenstein e seu criador e volta-se mais uma vez aos sujeitos que a abjetificaram para
devolve-lhes o questionamento de sua natureza:

A natureza com a qual você me ensombra [bedevil] é uma mentira. Não confie que
ela vai te proteger do que eu represento [...] Você é tão construído quanto eu; o mesmo
útero anárquico nos pariu. Eu te incito a investigar sua natureza, da mesma forma
como fui compelida a confrontar a minha. (STRYKER,1994, p.240)

Ao anunciar-se como aquela que “alcança a similitude de um corpo natural somente


através de um processo antinatural” (STRYKER, 1994, p.240), Stryker referencia as
intervenções somáticas (terapia hormonal e cirurgia) para reconhecer a fragilidade de sua
posição diante do domínio da natureza e afirma que “a corporificação transexual, assim como
a corporificação do monstro, coloca seu sujeito em uma relação inassimilável, antagônica e
dissidente/estranha [queer] com a Natureza na qual elx deve, entretanto, existir” (STRYKER,
1994, p.243). A lógica empregada tem como premissa a ideia de que não se pode negar a
natureza, pois, segundo Donna Haraway, trata-se de algo que não podemos não desejar. Torna-
se então necessário rearticular esse conceito ou hibridizá-lo para que passe a figurar uma
ameaça àqueles que tiram proveito da ilusão de um pertencimento integral à identidade humana.
Para tanto, Stryker explicita que a pessoidade é uma ficção alcançada através da exclusão,
dominação e abjetificação de outras/os.
107

Assim sendo, esse monstro autodeclarado não pretende humanizar-se. Não lhe
interessa pleitear um lugar para si na categoria “humano”, estendendo-a ou higienizando-se. Ao
expor sua natureza imperfeita, o monstro reivindica um pertencimento enviesado e intersticial
à categoria “humano”, objetivando a quebra de seus paradigmas e a transformação do termo.
Longe de arquitetar uma salvação individual, essa reivindicação se assemelha a uma estratégia
de sabotagem: a inclusão justamente daquilo que o “humano” expulsou para se formular como
tal possibilitaria a implosão de sua própria estrutura, a formulação de novos significados para a
categoria e o vislumbrar de um futuro pós-humano.
Agenciando sua fúria, Stryker dá à luz sua própria monstruosidade, habilitando-se a
manejar os termos de sua representação, a desenhar seus contornos e a contar, com suas próprias
palavras, a sua história. Pode-se dizer que, como a criatura de Frankenstein, enquanto “monstra
de si mesma” é Stryker quem formula seu próprio problema ontológico e pergunta: “quem sou
eu?”, resvalando na noção de humano e nas bases que estruturam a pessoidade. A pergunta que
emerge então é: estaria esse questionamento ontológico comprometido com o encontro de uma
“identidade monstruosa”? Como poderia o “eu” ser formulado por uma monstruosidade que
não só não deve ser superada, mas que é também condicionante da possibilidade de articulação
de uma fala subalterna?

3.16 MONSTRO DE SI MESMX: O STATUS ARTICULATÓRIO EM QUESTÃO

“É precisamente no domínio do simbólico, no domínio da linguagem, é claro, que


monstruosidade e humanidade emergem como inseparáveis”. (HALBERSTAM, 1995, p.44)

O texto de Stryker se estrutura sob a premissa de que o monstro é capaz de alcançar as


ferramentas de sua representação, visando responder à concepção de monstruosidade que lhe
foi historicamente atribuída. Esse gesto inusitado que presume “dar voz ao subalterno” incita
algumas indagações: poderia um monstro falar, garantir a escuta e, ao mesmo tempo,
permanecer monstruoso? Que formato um investimento monstruoso na linguagem poderia
assumir? Como se daria a elaboração de um sujeito (porque enunciante) monstruoso (porque
assume a abjeção de sua trajetória)? Em outras palavras, seria possível que o monstro
permanecesse como exterior constitutivo do discurso (o indizível ou o insignificável) mesmo
quando se enuncia?
108

Segundo Peter Brooks (autor também referenciado por Stryker), os monstros não são
mais que corpos que existem para serem olhados, corpos aos quais se aponta o dedo: “Não se
pode fazer nada com um monstro, a não ser olhar para ele” (BROOKS, 1993, p.220). De acordo
com essa prerrogativa (de perspectiva antropocêntrica), é impossível que o monstro fale, ou
melhor, que se possa interpretar o que a criatura tenta comunicar com seus rugidos e grunhidos.
Para Brooks, a monstruosidade seria a exclusão total do significado e do sentido: “o
monstro não poderia jamais aceder ao simbólico, ele está para sempre preso no imaginário
devido à sua aparência medonha” (HALBERSTAM, 1995, p.44). Ou seja, a monstruosidade se
dá predominantemente num campo visual que se sobrepõe ao domínio discursivo. Apesar de
excluí-lo da possibilidade de articular significado, o autor reconhece que o monstro em questão
reserva uma complexa e íntima relação com a linguagem, uma vez que é por ela constituído, ao
mesmo tempo em que a afronta:

em Frankenstein, a linguagem é marcada pelo corpo, pelo processo de corporificação.


Não temos uma marca no corpo, senão uma marca do corpo: a capacidade da
linguagem de criar um corpo, um que depois questiona a linguagem que usamos para
classificar e controlar corpos. (BROOKS, 1993 p.220)

O monstro de Frankenstein é lançado em direção ao simbólico por meio de uma


linguagem que não domina e, uma vez gerado, não pode ser dela eliminado. De outra
perspectiva, servindo-se da linguagem, o humano demarca uma monstruosidade da qual depois
não consegue mais se desvencilhar. Trata-se de uma criatura que está sempre de antemão
(always already) inscrita na/como linguagem, mas que desafia a sua própria constituição dentro
dela, afinal, conforme explicado por Caterina Nirta, a monstruosidade se forma precisamente
quando não temos categorias disponíveis para decodificar e constituir um corpo, ou seja, é
representativa do vazio e da impossibilidade de atribuição de significado. A autora
complementa seu argumento citando Derrida:

O monstro é aquilo que aparece pela primeira vez e, consequentemente, não é


reconhecível. Um monstro é uma espécie para a qual ainda não temos um nome, [...]
elx se mostra em algo que ainda não foi mostrado e que, portanto, parece uma
alucinação, elx é subitamente percebido, elx assusta precisamente porque nenhum tipo
de antecipação nos preparou para identificar sua figura. Não se consegue dizer que
coisas desse tipo acontecem aqui ou ali. (NIRTA, 2017, p.147)

Nirta sugere que, como consequência dessa impossibilidade, “nós preenchemos esse
déficit investindo em sua monstruosidade” (NIRTA, 2017, p.146) e atenta para o fato de que
esse “investimento”, por si só, pode carregar camadas de domesticação:
109

assim que alguém percebe que um monstro é um monstro, começa a domesticá-lo,


começa [...] a comparar ele às normas, a analisá-lo e dominar o que poderia haver de
aterrorizador nessa figura de monstro. E o movimento de se acostumar, mas também
de legitimar e, consequentemente, normalizar, já começou. (NIRTA, 2017, p.146)

Enquanto efeito e dimensão desse investimento na monstruosidade, a materialização


sugerida por Nirta pode tomar forma de normalização, uma vez que é também coextensiva aos
investimentos nas relações de poder. Diante desse impasse, Stryker antecipa os riscos de
materialização e de normalização inerentes à sua proposta de dar voz à/ao subalterna/o, o que,
de certa forma, implica um investimento na monstruosidade:

[...] pode trazer demasiado do que seria melhor permanecer selvagem à atenção das
forças normatizantes, produzir formas de inteligibilidade de gênero que encerram
alternativas e restringem a liberdade, consolidar identidades em formas rígidas e
hierarquizadas, policiar discursos através da institucionalização, e privilegiar
determinados enunciadores em detrimento de outros. (STRYKER, 2015, p.228)

Essa materialização assombrada pela normativização está também condicionada à


transformação do monstro em sujeito ou identidade, ou seja, apresenta à criatura o risco de
captura na “armadilha ontológica” que está sempre à espreita da linguagem. Esse processo
sinaliza, para Stryker e para outras monstruosidades autodeclaradas, a ameaça de
assujeitamento excessivo e de completude subjetiva, ou seja, o risco de autocolonização através
da formulação de uma monstruosidade limiar à identidade, totalizável por suas próprias
especificidades.
Esses limites ou desafios que impedem que o monstro acesse a linguagem que o
classifica como tal sinalizam, portanto, as características fundacionais da alteridade que o
monstro representa. Pode-se dizer que, assim como a subalternidade formulada por Spivak, a
monstruosidade seria incapaz de aceder integralmente à linguagem: à medida que o monstro se
enuncia, sua condição subalterna ou abjeta se atenua e a criatura começa a se assujeitar e a se
domesticar.
Ainda assim, tanto em Frankenstein como no texto de Stryker, vemos “um não-sujeito
que reivindica o direito de ser um sujeito viável dominando a ars oratoria através da qual uma
subjetividade verbalmente performada [enacted] foi negada ao seu corpo” (NIRTA, 2017,
p.149). Também em ambos se observa que o status monstruoso se pretende inabalado, mesmo
após a conquista do ato enunciativo: a criatura em Frankenstein garante sua condição
monstruosa devido à sua aparência física e à história que seu corpo carrega e em My words to
110

Victor Frankenstein above the Village of Chamounix, Stryker assegura sua monstruosidade
empregando um novo jogo linguístico.
A autora situa a monstruosidade no interstício/brecha formado pela justaposição das
práticas discursivas (que conferem materialidade e subjetivação) e do colapso das categorias (a
impossibilidade de classificação que o monstro representa). Dessa forma, Stryker vislumbra um
ato enunciativo instável que reúne ao mesmo tempo o dentro e o fora da materialidade e dos
processos de assujeitamento, ou seja, uma forma alternativa de acesso à linguagem.
Reconhecendo que tornar-se monstro implica um processo de desassujeitamento, mas
que para adentrar a linguagem enquanto enunciador é preciso tornar-se sujeito, Stryker elabora
uma autoenunciação monstruosa que pretende expressar justamente essa “liminaridade
ontológica” que representa. Para tanto, inaugura “um novo jogo linguístico”, que não assume
um formato classificatório, senão de denúncia dos processos através dos quais a linguagem
viabiliza a criação de determinados corpos. Para permanecer arisca à linguagem, Stryker
adentra-a através da “fúria transgênero” que “está localizada às margens da subjetividade e no
limite do significado” (STRYKER, 1994, p.253).
Sua autoenunciação não reivindica “ser um monstro”, senão ocupar o termo de forma
fugidia e articular a monstruosidade como um local de filiações improváveis que, assim como
o termo “queer”, não deveria descrever plenamente aquelas/es que pode vir a representar.
Apesar de reconhecer que é impossível prever como a reformulação do termo “monstro” vai se
estabelecer, a intenção de Stryker é de ocupá-lo provisoriamente, não para expressar a
descoberta de uma verdadeira identidade, mas para reinventar a recusa do que é e expressar sua
desidentificação com os sistemas identitários.
Pode-se dizer que ao se enunciar sem se descrever, Stryker transita de uma posição
onde a linguagem preestabelecida não funciona (a ininteligibilidade que descreve em seu diário)
ao uso estratégico desse recurso. Ou seja, em vez de criar uma estrutura linguística inteiramente
nova, a autora se serve da linguagem disponível, domina-a e se introduz nela enquanto sujeito
de fala para citar e explicitar o sistema que faz dela um monstro. É através da apropriação
estratégica de uma interpelação injuriosa que a autora forja não só a possibilidade de subversão
do termo “monstro”, mas da formulação de uma subjetividade incompleta, falha e obtusa.

3.17 UMA DAS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS MONSTRUOSAS: APROPRIAÇÃO


DA INTERPELAÇÃO INJURIOSA
111

O sujeito unificado em sua biografia, lócus de direitos e de reivindicações políticas,


agente de sua própria vida (por meio de atos autônomos de escolha) está geralmente ancorado
na identidade. Entretanto, essa formulação de sujeito está em descompasso com o “eu”
proferido pelo monstro que Stryker corporifica. Apesar do agenciamento implícito na
possibilidade de, através da automonstrificação, tomar as rédeas de sua representação e fazer
reivindicações, é importante ressaltar que a monstruosidade clamada por Stryker propõe uma
estrutura diferente de sujeito, principalmente porque é articulada enquanto resposta apropriativa
de uma injúria, conforme comentado pela autora:

Assim como as palavras “sapatão”, “viado, “queer”, “vadia”, e “puta” foram


reivindicadas, respectivamente, por lésbicas e homens gays, por minorias sexuais anti-
assimilacionistas, por mulheres em busca de prazeres sexuais e por trabalhadoras/es
da indústria do sexo, palavras como “criatura”, “monstro”, e “antinatural” precisam
ser reivindicadas pelas/os transgêneros. (STRYKER, 1994, p.240)

Revisitando seu artigo, Stryker explica que esse gesto apropriativo, tipicamente
associado ao momento e ao contexto histórico de produção do texto (a estratégia queer por
excelência), implica um investimento linguístico então inovador:

A única opção além de dizer reativamente “não somos não” a toda asserção negativa
sobre nós, era mudar a conversa, inaugurar um novo jogo de linguagem. Minha
estratégia para tentar isso foi alinhar o meu lugar de fala a tudo com o que “eles” “nos”
abjetificavam. (STRYKER, 2015, p.227)

Esse “novo jogo de linguagem”, capaz de conferir ao monstro um “lugar de fala” –


também descrito por Stryker como tentativa de “fazer o subalterno falar” (STRYKER, 2015,
p.227) – engendra um processo específico de assujeitamento: para alcançar um status
articulatório e situar-se na linguagem (ou “na conversa” mencionada acima) é preciso primeiro
tornar-se. Se, conforme explicado por Butler, o “eu” só alcança a condição de “ser” através do
chamado, da nomeação, da interpelação, então a condição discursiva para o reconhecimento
social (no sentido althusseriano) estaria atrelada à evocação via interpelação e à subsequente
resposta a esse chamado. Ou seja, o processo de assujeitamento se dá quando alguém se vira
para responder ao chamado: virar-se ao ouvir a interpelação é tornar-se.
Butler realça o caráter disciplinar desse chamado, “que não é somente uma
subordinação, mas também uma forma de assegurar e manter, de colocar um sujeito no lugar,
uma subjetivação” (BUTLER, 1997, p.90). Entretanto, ela adverte que a resposta à interpelação
não condiciona o sujeito fixando-o em uma única posição, mas também oferece ocasiões para
outras produções, especialmente através da sua apropriação:
112

até mesmo as interpelações mais injuriosas podem ser locais de reocupação e


ressignificação radical. [...] ao ser chamada por um nome injurioso, eu acesso a
condição de ser social e porque eu tenho um certo apego inevitável à minha existência,
porque um certo narcisismo toma qualquer termo que confere existência, eu sou
levada a acolher os termos que me injuriam porque eles me constituem socialmente.
(BUTLER, 1997, p.104)

De acordo com Butler, esse chamado (que fabrica o sujeito) é, acima de tudo, um
chamado para a lei, portanto, a resposta implica necessariamente cumplicidade e desejo pela
lei. Entretanto, o que Butler (analisando a ressignificação do termo queer) e Stryker (investindo
na autodeclaração monstruosa) ressaltam é que a apropriação da interpelação injuriosa pode
mobilizar um componente de desobediência e figurar um tipo de resistência que emerge através
de uma “interpelação falha”, a qual, por sua vez, tem como efeito a “dessubjetivação crítica”, a
criação de um sujeito incompleto, desassujeitado: forma-se, assim, o híbrido impossível
representado pelo sujeito-monstro.
Butler explica que o potencial componente de resistência da apropriação da
interpelação injuriosa se dá justamente pela possibilidade de ocupar de forma enviesada o termo
interpelado e, através desse ato, ressignificá-lo. Essa premissa pressupõe que o chamado carrega
um significado original (a ele é atribuída, por exemplo, a intenção de machucar), mas, ao mesmo
tempo, disponibiliza novos usos para esse mesmo signo – dentre eles, a reversão do seu
significado original e a inclusão de quaisquer outros que o excedam. Ou seja, essa mesma lei
que constitui o sujeito também oferece a ele as condições para a sua desconstituição ou
ressignificação através da apropriação da interpelação negativa.
Assim sendo, incidindo no mesmo local de constituição (a linguagem), a
ressignificação permite transmutar o termo naquilo que opõe ou excede seu sentido original. É
importante mencionar que tal ressignificação toma efeito através da repetição ou iteração (no
sentido deleuziano de “repetição com diferença”): os sentidos originalmente depositados no
termo em questão não são apagados, senão ecoam como história ou bagagem (que chamarei de
acúmulos) que permanecem indexadas à nova iteração ou à reterritorialização da interpelação
injuriosa e do sujeito por ela agenciado. Em outras palavras, enquanto termo apropriado,
“monstro” ao mesmo tempo cita e repete contra a sua própria origem: a mesma
“homossexualidade” vai primeiro ser empregada a serviço da normalização da
heterossexualidade e depois a serviço de sua própria despatologização. Ou seja, o primeiro
sentido está sempre contido dentro do segundo, de forma que não há dissociação, senão uma
continuação em que o sentido excede os objetivos normalizadores originalmente enredados no
termo (podendo, entretanto, gerar novas normalizações).
113

É respondendo a um chamado que Stryker se situa como sujeito discursivo numa


cadeia de relações de poder preestabelecida (a linguagem) e faz ressoar o acúmulo e a força
histórica que precedem e condicionam a sua apropriação do termo “monstro”. A criatura que
Stryker corporifica seria então a apropriação e rearticulação de um compilado de
monstruosidades que lhe foram atribuídas anteriormente, não somente por Daly, mas em
diversas outras ocasiões históricas em que o ato de “escapar do gênero” foi nomeado
monstruosidade. Essa interpelação acumula e faz ecoar significados anteriores conectando-os
como se formulassem uma unidade que atravessa o tempo transformando-se.
Analisando a questão da ontologia na apropriação da interpelação injuriosa, em sua
dissertação Jota Mombaça desvela algumas prerrogativas que essa estratégia engendra:

Parece-me, nesse sentido, que o pensamento de Butler, ao recusar uma explicação que
confirme os efeitos totalizadores da injúria (e da interpelação), tende a uma
formulação da possibilidade de agência calcada na constituição de um sujeito crítico
que, mesmo em face de sua eventual dessubjetivação – isto é, da impossibilidade de
ser um ser auto-idêntico como o sujeito moderno parece querer ser –, sabe ainda
articular uma certa ontologia, um certo modo de existência que o posiciona no mundo
das palavras e das entidades como um ser dotado de inteligibilidade própria. Essa
inversão crítica da injúria, portanto, desvia da cena de interpelação sem, contudo, ser
capaz de desviar-se da cena de sujeição: o sujeito se faz, contra a totalização da lei
que interpela (e da interpelação injuriosa), e é – para citar Butler – “um tipo de ser do
e para o futuro”. (MOMBAÇA, 2017. Grifos Meus)

Mombaça sugere que ainda que esteja calcada no uso enviesado da linguagem, essa
“estratégia queer por excelência” aponta para um sujeito crítico, que se mantém não-totalizável,
mas não deixa de articular uma ontologia própria (um ser e um fazer-se), uma resposta, ainda
que borrosa, à pergunta: “quem sou eu?”. A estratégia de Stryker dispõe então um sujeito que,
apesar de ininteligível no sistema operante, é dotado de inteligibilidade própria, ou seja, um ser
que, em seu contínuo tornar-se, sabe se localizar, especialmente porque “posiciona-se no mundo
das palavras e das entidades”. Sua estratégia discursiva faz reverberar em sua enunciação um
acúmulo histórico que, situando-a em alinhamentos de tempo e espaço, lhe confere o sentido
da continuação (e por isso aponta ao futuro).
Tendo em vista as colocações de Mombaça, argumentarei em seguida que esse “saber”
(centrado no domínio da linguagem e na administração da bagagem histórica que venho
nomeando “acúmulo” e “contínuo”) é uma característica que também marca a escolha de Styker
pela criatura de Frankenstein: esse monstro europeu humanoide, dotado das cordas vocais
necessárias para proferir suas reivindicações e questionar eloquentemente os termos
tradicionalmente atribuídos à sua monstruosidade.
114

3.18 ESCUTANDO NAS ENTRELINHAS: RAZÃO, ACÚMULO, ERUDIÇÃO,


ELOQUÊNCIA E OUTROS RASTROS OCULTOS

A fúria que mobiliza a monstruosidade de Stryker é canalizada em vetores discursivos


implicados no colapso de categorias. Forjando uma relação investigativa da linguagem, com
sua articulação poética, teórica, autobiográfica e acadêmica, Stryker pretende expor o jogo que
transforma carne em palavra e palavra em carne. A autora alega que, ao abrigar a negatividade
que de qualquer forma seu corpo representa, acaba assumindo uma condição intersticial de
irrepresentabilidade; lançando-se, portanto, para “além dos registros positivos da luz, do nome
e da razão” (STRYKER, 2015, p.228). Entretanto, argumento que é empregando a razão (a
racionalidade e a classificação mental) e dominando as ferramentas discursivas estabelecidas
na tradição europeia que, ambos, o monstro de Frankenstein e Stryker incorporando-o,
comunicam e demandam suas reivindicações.
Amparada na “fúria transgênero”, a proposta de Stryker mobiliza evidentes dimensões
afetivas: trata-se de um texto expressivamente emotivo e que, também por isso, incita empatia
na/o leitor/a. Os potentes elementos sentimentais que impulsionam a escrita de Stryker se
assemelham àqueles que mobilizam as ações da criatura de Frankenstein: “no romance, o
monstro age com a demanda de suas emoções, não de sua lógica” (WEAVER, 2013, p.297).
Entretanto, é preciso observar que há também em seu texto um forte apelo à razão (a
necessidade de “parar para teorizar”), fator que se evidencia quando a autora celebra a
capacidade de arguição e a eloquência que comparte com a criatura de Frankenstein. Stryker
afirma que o monstro que corporifica não é a personagem da versão cinematográfica de
Frankenstein e se desidentifica da leitura de Vitor Russo, que interpreta o filme como referência
ao armário: “Mas esse não é o monstro que comunica, de forma tão potente, acerca da minha
própria situação como um ser transexual abertamente assumido. Em vez disso, eu emulo o
monstro literário de Mary Shelley, que é perspicaz, ágil, forte e eloquente” (STRYKER, 1995,
p.243. Grifos meus).
Nessa passagem, além de se representar como sujeito crítico dotado de auto-
inteligibilidade (transexual abertamente assumida), ao nomear algumas características que
motivaram sua identificação com a criatura, a autora ressalta capacidades relacionadas à razão
e valorizadas nos canais formais de produção de conhecimento, como “perspicácia” e
“eloquência”. Aqui a autora referencia a inteligência e a habilidade argumentativa das quais o
115

monstro de Frankenstein dispõe: secreta e atentamente observando a cultura e as convenções


sociais (especialmente a família De Lacey), a criatura aprende primeiro a falar e depois a ler de
maneira autodidata. Ao longo de sua jornada, encontra livros e descobre as cartas no bolso do
casaco do cientista e, ao ler esse material, passa a dominar os conhecimentos e ferramentas
discursivas que lhe conferem abjeção. Ou seja, ao mesmo tempo em que guarda esses materiais
literários como se fossem seus tesouros pessoais, é através da leitura que a criatura aprende as
convenções da sociedade europeia e compreende sua expulsão desse ensejo.
Importa aqui exaltar mais um ponto de convergência entre as monstruosidades em
questão: assim como Stryker busca conhecimento através da educação formal e segue a carreira
acadêmica de historiadora (analisa e publica livros sobre os fluxos de conhecimento científico
a respeito da transexualidade nos Estados Unidos e na Europa, dentre outros temas
relacionados), a criatura de Frankenstein também encontra, lê e guarda livros que representam
legados do pensamento europeu31. Independente da relação que esses monstros venham a
estabelecer com os conhecimentos – que, ao mesmo tempo, os atraem e repelem, situam e
expulsam –, vale a pena destacar que a inteligência, a eloquência, a razão e a dominação e
emprego impecável das práticas discursivas e dos componentes históricos nelas embutidos
localizam suas estratégias monstruosas numa cosmo-visão orientada pela tradição e perspectiva
eurocêntrica. Suas estratégias presumem que, para resistir à epistemologia e à ideologia em
questão, é necessário ocupá-las, adotar seus termos e valer-se deles, ainda que de forma
provisória e apropriativa. Trata-se, portanto, de uma resistência que não pressupõe a recusa
radical. Complementarmente, pode-se dizer que a resistência ou as reivindicações que esses
monstros agenciam dependem necessariamente da demonstração do domínio dos
conhecimentos canônicos que, assim como a estratégia de apropriação da interpelação injuriosa,
faz ressoar acúmulo e tradição num contínuo histórico que aponta não só para o futuro, mas
para um futuro reivindicável.

3.19 REIVINDICAÇÕES E ESCUTA: PROMESSAS DOS MONSTROS DO FUTURO

Mais que simplesmente alfabetizar-se, pode-se dizer que a criatura de Frankenstein se


intelectualiza e consegue argumentar com erudição e de forma extremamente convincente,

31
Paradise Lost, de Milton, de temática bíblica, Lives of the noble Greeks and Romans, de Plutarch
reconta biografias de homens gregos famosos e importantes na tradição europeia e The Sorrows of Young Werther,
em que Goethe descreve as conturbadas relações românticas heterossexuais.
116

conforme apontado por Brooks: “Encerrando sua narrativa a Walton, Frankenstein adverte e
aconselha o seu interlocutor a não escutar a voz do Monstro: ‘Ele é eloquente e persuasivo, e
certa vez suas palavras tiveram até poder sob o meu coração; mas não confie nele... não o ouça’”
(SHELLEY, 1983, p.198-199 apud BROOKS, 1993, p.214. Grifos Meus). O que preocupa
Victor é que o horror gerado pela aparência da criatura (uma das principais insígnias de sua
monstruosidade) seja encoberto pela sua habilidade argumentativa, conferindo-lhe a chance de
convencer seu eleitorado e alcançar suas reivindicações. Afinal, conforme apontado por
Halberstam, o doutor conhece os poderes de persuasão das palavras de sua criatura:
“Recordamos que Frankenstein concorda em fazer uma companheira para o monstro porque ele
foi, de certa forma, tocado pelas súplicas de seu monstro por tolerância” (HALBERSTAM,
1995, p.44).
Com a conquista da arguição eloquente, a capacidade de fala do monstro deixa de ser
uma mera habilidade para tornar-se uma poderosa ferramenta de persuasão, desde que sua
aparência não lhe negue a oportunidade de ser escutado. Ou seja, a partir do momento em que
a criatura domina a linguagem faz-se preciso evitá-la não pelo horror de sua aparência, mas
pelo poder de suas palavras e das transformações que sua capacidade argumentativa pode
acarretar. Pode-se dizer que esse monstro cria um agenciamento de enunciação em que o saber
e a razão aparecem intimamente ligados a um poder tão incontrolável quanto perigoso e, ao
mesmo tempo, não deixam de aparecer como entidades problematizáveis.
O apelo de Victor a Walton sugere também que uma camada da monstruosidade de
Frankenstein (a feiura) poderia ser superada pela capacidade de se comunicar de forma
convincente, como se o componente visual fosse atenuado pela ferramenta discursiva: “O
monstro consegue sua resistência dominando a linguagem para reivindicar sua posição
enquanto sujeito de fala e para praticar verbalmente a mesma subjetividade que lhe foi negada
no domínio especular” (STRYKER, 1994, p.241). É também nesse sentido que Halberstam
destaca que há “no contexto do romance, uma agora familiar oposição entre linguagem e visão,
em que o visual registra horror enquanto a linguagem confere humanidade” (HALBERSTAM,
1995, p.44).
A esse respeito, Styker identifica um ponto de divergência (senão de inversão) entre
sua monstruosidade e a da criatura de Frankenstein. A autora considera que o horror que o
monstro causa no campo visual não corresponde àquele incitado por pessoas trans*, visto que
as últimas possuem corpos humanos que citam efetiva e compulsoriamente as normas de gênero
no âmbito especular:
117

Diferente do monstro, nós frequentemente citamos as normas da cultura visual de


corporificação de gênero com sucesso. Essa citação se torna resistência subversiva
quando, com um uso provisório da linguagem, nós verbalmente declaramos a
antinaturalidade da nossa reivindicação à posição de sujeito que de qualquer forma
ocupamos. (STRYKER, 1994, p.241)

Seus argumentos se estruturam sob a premissa de que ver um corpo humano acarreta
automaticamente a atribuição de gênero, uma vez que a visão é culturalmente gendrada. Ou
seja, Stryker infere que a norma que rege a economia visual solicita às engrenagens do olhar o
exame de demarcações de sexo e gênero em figuras humanas. Essa ideia é também endossada
por David Getsy, que, em seu livro Abstract Bodies, especula acerca da projeção compulsória
de sexo e gênero em esculturas abstratas comumente percebidas como humanoides:

Imagens da forma humana geralmente incitam o desejo de categorizá-la de acordo


com seu sexo e, em troca, alinhá-la com pressuposições acerca de como o gênero se
relaciona com aquele sexo. Para que seja possível ver um corpo (ou a imagem de um
corpo) como humano, sua relação com o gênero deve ser estabelecida. O gênero
“figura uma precondição para a produção e manutenção de uma humanidade legível”,
segundo Judith Butler. (GETSY, 2015, p.15)

Ao sinalizar a forma como os corpos transfemininos são normalmente percebidos no


campo social, Stryker resvala, entretanto, na questão da “passabilidade” da mulher transexual
e termina delineando uma corporalidade que, quando de fato entra em curso, corresponde
particularmente ao imaginário e à cultura visual de países desenvolvidos, ou seja, figura um
corpo trans* que possui acesso privilegiado às intervenções somáticas transexualizadoras – uma
experiência marcada também por estruturas de classe e raça. Ademais, pode-se dizer que
Stryker oferece uma análise da monstruosidade pautada majoritariamente pelo pertencimento
nas categorias “sexo” e “gênero” e, por isso, argumenta de maneira pouco intersecional: ao
afirmar que “ter um gênero é a tatuagem tribal que faz a pessoidade de alguém reconhecível”
(STRYKER, 1994, p.250), a autora perde a oportunidade de analisar outros elementos como,
por exemplo, raça e deficiência em suas associações históricas à monstruosidade. A feiura e o
excesso de visibilidade da pobreza, da ignorância, da deformidade (por exemplo, resultante da
aplicação do silicone industrial em travestis e mulheres trans*), da doença e da “incivilidade”
adicionariam camadas de horror embebidas em uma selvageria “terceiro-mundista” que a
monstruosidade de Stryker não antecipa e que a criatura de Frankenstein não seria capaz de
captar e representar, da mesma forma que “a mulher transexual” é uma categoria que algumas
transfeminilidades sudacas, como a “travesti”, excedem. Voltarei a esse ponto no próximo
capítulo.
118

Outro fator pertinente que emerge na oposição traçada por Stryker entre sua
monstruosidade e a da criatura de Frankenstein diz respeito à interferência do plano visual na
possibilidade de escuta e de empatia, especialmente considerando que lendo Frankenstein não
é possível visualizar o monstro, somente imaginá-lo. Discordando de Stryker, Harlem Weaver
indica que em Frankenstein “não é só que o/a leitor/a pode sentir empatia pelo monstro, mas
que, tocada/o por sua eloquência, em parte devido ao fato de que o livro existe como romance,
ela/ele/elx é ativamente encorajada/o/x a fazê-lo” (WEAVER, 2013, p.301. Grifos Meus). Aqui
o autor sugere que a empatia se dá com mais facilidade na obra literária, uma vez que aí a/o
leitor/a não é reiteradamente defrontada/o com a imagem visual do monstro (seja através de
descrições de sua aparência ou do emprego de ilustrações).
Sugiro que, nesse sentido, não haveria oposição, antes ressonância, entre a
monstruosidade da criatura e a de Styker: em seu texto a autora descreve suas experiências,
intimidades e sentimentos, mas não oferece ao seu leitorado os elementos para uma composição
visual monstruosa de seu corpo, pelo contrário, pode-se dizer que, escondendo-se na escrita
prodigiosa, na ortografia impecável e no prestigioso formato de seu texto (artigo publicado),
mais que empatia, a autora alcança a validação dentro de um sistema tradicional de produção
de conhecimento, processo que facilita a viabilidade de sua transexualidade.
Para Stryker, mesmo sendo humanoide, a criatura de Frankenstein falha no plano
visual (se torna ali ininteligível) e tem sucesso integral no campo discursivo, ao passo que a
monstruosidade e a resistência trans* não se dariam no campo visual, senão na relação que
estabelecem com a linguagem, uma vez que se encontram impossibilitadas de adentrar
integralmente a estrutura linguística que foi produzida tendo como norma a cisgeneridade. A
esse respeito, contrariando a autora, Weaver aponta que, no domínio da linguagem, Stryker
alcança “entendimentos” e, diferentemente da criatura de Frankenstein, conquista
reivindicações:

Colocando que a monstruosidade transexual “não pode jamais reivindicar uma forma
de resistência tão segura” como o monstro de Frankenstein, Stryker contrasta o
discurso do monstro com o de uma pessoa trans. Enquanto o monstro fala de uma
maneira muito poderosa, “a inabilidade da linguagem de representar o movimento do
sujeito transgênero através do tempo entre posições de gênero estáveis em uma
estrutura linguística” faz com que as pessoas trans sejam incapazes de agir de forma
semelhante (2006:247); elxs não podem administrar a linguagem para fazer as orações
persuasivas que servem tão bem ao monstro. Entretanto, diferente das mulheres em
Frankenstein, pessoas trans não são contidas, pois a irrepresentabilidade dos sujeitos
trans pode forçar a própria linguagem a mudar – testemunhe a proliferação de
pronomes de gênero neutro em muitas comunidades LGBTQ – uma questão diferente
do silêncio. Questionando a estabilidade do gênero na linguagem, as pessoas trans
alteram a forma como a linguagem funciona. (WEAVER, 2013, p.291)
119

Tendo em vista as asserções de Weaver, assim como o monstro em Frankenstein é


capaz de suscitar empatia em seus interlocutores (através da arguição) e nos leitores (em parte
devido à sua ausência no campo visual), é empregando a eloquência e a razão para partir de um
lugar “sem linguagem” rumo à conquista da linguagem dominante que a autora ao mesmo
tempo “nos incita a sentir com ela” (WEAVER, 2013, p.302) e garante a escuta, convence e
alcança os seus objetivos de inferir uma mudança efetiva no mundo e na linguagem: “a raiva
que atira Stryker para dentro de sua carne não só dá voz a sentimentos que ela antes não
conseguia expressar, mas também engendra entendimentos” (WEAVER, 2013, p.299).
A seguir analisarei com mais profundidade esse movimento que parte da “mudez”
estática do “lugar sem linguagem” do monstro e tem como destino a linguagem eloquente e
reivindicativa. Através desse exercício pretendo sinalizar padrões de divergência entre essas
reivindicações monstruosas orientadas para o futuro e as escritas monstruosas que habitam a
ferida, diferenciando, respectivamente, as relações com a linguagem que engendram as
monstruosidades frankensteinianas e as criaturas que surgem em autorrepresentações
travesti/trans* em zines sudacas.

3.20 PALESTRA OU FALATÓRIO?

No texto de Stryker a razão aparece embebida no ato de se apoderar das palavras para
dar sentido às suas emoções, se fazer escutar e estabelecer suas reivindicações. Conforme
indicado no fragmento abaixo, no poema em que narra o parto monstruoso de si, a autora
sinaliza que não havia possibilidade de gerar som no interior da monstruosidade crua que
experimenta com a fúria transgênero:

Rage No sound
constitutes me in my primal form. Exists
It throws my head back in this place without language
pulls my lips back over my teeth my rage is a silente raving

opens my throat
and rears me up to howl:
: and no sound
dilutes Fúria
the pure quality of my rage. me constitui em minha forma primária.
Ela joga minha cabeça para trás
16

puxa meus lábios para trás sobre meus dentes Nenhum som
Existe
abre minha garganta nesse lugar sem linguagem
e me empina para uivar: minha fúria é um falatório silencioso
: e nenhum som
dilui
a qualidade pura da minha fúria.

Nessa passagem, o substantivo raving (na última linha do trecho traduzido) significa
“fala incoerente, irracional ou selvagem” (to speak in tongues), podendo indicar “o falar de uma
mulher louca”. Ao procurar uma tradução aproximada, descartei os termos “balbucio” ou
“murmúrio”, uma vez que aludem à loucura de forma menos direta, e optei pela palavra
“falatório” referenciando a forma como Stela do Patrocínio 32 nomeia sua própria expressão
enunciativa enquanto mulher negra sequestrada pelo estado em uma instituição psiquiátrica.
Acredito que essa tradução também enfatiza a complementaridade contrastante entre
o vazio do silêncio e o excesso que a palavra “falatório” evoca: fala contínua, incessante,
excessiva e, por isso, esvaziada de sentido e de racionalidade. Esse marcador é importante pois
é exatamente a justaposição de loucura (monstruosidade crua) e razão (característica atribuída
exclusivamente ao humano) que se destaca na minha leitura dessa passagem e no exercício que
pretenderei adiante ao distinguir as estratégias autoenunciativas de monstruosidades
frankensteinianas daquelas que emergem em autorrepresentações monstruosas sudacas.
Em seu poema Stryker descreve sua trajetória rumo à linguagem reivindicativa
dispondo a fúria como impulsionadora, o falatório silencioso como local de partida e a
apropriação de um status articulatório como destino. Interpretando seu poema, vemos que o
sofrimento da autora não leva o “eu” à resignação; ao contrário, conduz à consciência de sua
situação e à mobilização: a insanidade incoerente é filtrada pela linguagem e se dilui em
racionalidade para desafiar e demonstrar a insuficiência da experiência trans* diante do
humano. Não é à toa que seu poema desemboca (não tão organicamente) na seção do artigo
intitulada “teoria”, dispondo uma cisão que separa a parte poética da parte acadêmica que dá o
tom final ao texto. Importa ressaltar que, orientada pela razão, a linguagem se faz audível num
processo que implica formatos e leitoras/es específicos.
Pode-se dizer que a racionalidade empregada no texto de Stryker tem em sua raiz a
loucura, uma vez que é alcançada nesse estado intersticial de monstruosidade furiosa.

32
É importante frisar que Stela do Patrocínio não era uma autora: seu falatório foi gravado, transcrito,
editado, rearranjado e publicado por Viviane Mosé no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2002).
Ademais, não é possível ter acesso às gravações que originaram a publicação, visto que esses estão retidos como
propriedade de Viviane Mosé.
121

Entretanto, seu uso não deixa de delinear uma trajetória de superação, justamente por ser a
ferramenta que permite ao monstro se projetar no futuro que reivindica, em vez de meramente
se expressar e se comunicar entre os seus (para isso um urro bastaria). Atento a esse fato,
Weaver interpreta o trecho do poema disposto acima como sendo o ponto de partida de uma
trajetória rumo ao simbólico, inferindo que a única maneira de acesso seria através da maestria
da linguagem dominante:

O “falatório silencioso” que Stryker descreve se torna alto e público nesse momento.
Ela desfaz a mudez de sentimentos que vêm de ‘um lugar sem língua’ (252) ao fala-
los e publicá-los. Seu parto expulsa pela sua boca e pela sua caneta aquilo que, antes
desse momento, ela não conseguia falar. (WEAVER, 2013, p.298. Grifos Meus.).

Para o autor, a escrita, a fala e, em especial, a publicação marcam a trajetória de


conquista de um lugar de fala capaz de promover reivindicações para o futuro. Centrando-me
nas estratégias articulatórias sudacas, ofereço outra perspectiva: sob as ideias de Spivak,
proponho abdicar da conquista da linguagem dominante (que teoricamente separaria esse “lugar
sem língua” ou “falatório silente” do acesso e subsequente agenciamento no simbólico) e da
possibilidade de publicação oficial como principais vias de promoção de audibilidade. Em seu
lugar, ofereço uma análise crítica da “mudez” para desvelar que sua formulação como limite
absoluto ou condição irreparável da monstruosidade é uma contingência relacionada à
inaudibilidade condicionada pelo eleitorado. Ou seja, sugiro mudar o foco da “impossibilidade
de fala” para tratar da incapacidade de escuta e, nesse processo, atento para o fato de que as
expressões monstruosas inscritas fora da razão, da linguagem institucional (de gramática e
vocabulário específicos), de seus suportes (por exemplo, em zines) e fóruns podem conter
linguagens próprias e propósitos inusitados. Minha hipótese é a de que seria possível se
transformar para tentar escutar, no “falatório silente”, os grunhidos que inauguram linguagens-
outras, ou seja, olhar de relance as monstruosidades que recusam “a estratégia queer por
excelência” e, resistindo à adequação e à inteligibilidade, fazem reverberar linguagens
dissonantes em ouvidos-outros, com formatos-outros.
E se, em vez de estado de mudez, esse “lugar sem língua” fosse percebido como
violência epistêmica: uma condenação de inaudibilidade imposta por aquelas/es que não são
capazes de escutar as linguagens íntimas que comunicam hermeticamente entre monstros? Será
que em vez de excluído da linguagem, esse “falatório silencioso” típico da monstruosidade crua
e iletrada não estaria simplesmente fora do radar dos ouvidos dominantes, pois, em vez de
reivindicar um futuro para si, ecoa um chamado que parte de dentro e para dentro da ferida
122

colonial (e, justamente por resistir à colonialidade, não estabelece uma relação estável com a
linguagem dominante)?
Se pudéssemos escutar o que e para quem as criaturas comunicam em seu estado cru
de monstruosidade, quais estratégias discursivas notaríamos? Ressoaria nessa linguagem o
acúmulo por trás da citação ou o vazio de uma história marcada por epistemicídios e
genocídios? Que formatos monstruosos emergiriam se a relação com a palavra estivesse num
marco que rejeita a razão e se edifica no “não-saber” (o não-saber como local não só de partida
como de permanência)? E se em vez de superarmos a mudez, hibridizássemos os balbucios e
grunhidos monstruosos com as pronúncias humanas? Seria esse balbucio monstruoso uma
reivindicação de mudança social (um corpo para o futuro) ou a expressão crua da ferida que
habita uma temporalidade dissidente? E se em vez da “fúria transgênero” mobilizadora da
mulher transexual norte-americana, o sentimento que motivasse a expressão monstruosa fosse,
por exemplo, o ressentimento estancado de uma travesti sudaca?
Para atender a essas provocações, proponho inaugurar a análise das monstruosidades
sudacas com a escrita horrorista que a travesti chilena Cláudia Rodríguez oferece em seus zines
Dramas Pobres, Contodomisida, Enferma del Alma e Manifiesto Horrorista e no livreto
autônomo Cuerpos para Odiar.
123

4 MONSTROS DO CU DO MUNDO: RETRUCANDO A COLONIALIDADE DO


GÊNERO

Neste capítulo – e nos subsequentes – analiso o emprego da monstruosidade como


tropo autorrepresentativo em zines e outros projetos autônomos feitos por travestis e/ou pessoas
trans* na América Latina. Focalizando os zines Contodomisida, Dramas Pobres, Enferma del
Alma e Manifiesto Horrorista, assim como o livreto Cuerpos para Odiar da autora e prostituta
travesti chilena Cláudia Rodríguez, analiso o emprego de figuras como o Homem Elefante,
King Kong e a Minotaura, entre outras, fomentando reflexões sobre monstruosidade e
linguagem, violência estrutural, raça, sexo, gênero e sexualidade. Complementarmente,
relaciono a escrita de Rodríguez a outras monstruosidades empregadas no livreto Poemário
Transpirado de Susy Shock, nos zines Ofensivo Trans, Estiercol: historietas de mierda,
Quimer(d)a e Sapatoons, entre outros projetos autorais. Tecendo conexões entre diferentes
autorrepresentações travesti/trans* argumento que esses zines compõem um corpo monstruoso
sudaca que difere daquele autoproclamado por Susan Stryker (conforme elaborei no capítulo
anterior) na medida em que rechaça a racionalidade, expressa desconforto com a linguagem, se
esvazia de intenção reivindicativa e de orientações para o futuro e se alinha ao não/humano para
agenciar vinganças micropolíticas ressentidas da colonialidade do gênero.

4.1 “NO SÉ HABLAR PERO NO SOY MUDA”: A LÍNGUA BIFURCADA E OUTRAS


(TRAVA)LÍNGUAS DE CLÁUDIA RODRÍGUEZ

“Não trabalho com a inteligência / Nem com o pensamento / Mas também não uso a
ignorância.” (PATROCÍNIO, 2001, p. 62)

Com o objetivo de introduzir os monstros sudacas focalizando as relações que forjam


com a linguagem, convém inaugurar este capítulo com a análise de passagens em que a poetisa
travesti chilena Cláudia Rodríguez comenta sobre sua relação com a escrita através da figura
do Homem Elefante: “Todo lo que no puedo gritar como el grito que da el hombre elefante, yo
lo sublimo y lo escribo tiernamente” (RODRÍGUEZ, 2015, p.81)33.

33
Tradução: “Tudo o que não posso gritar como o grito que dá o homem elefante, eu sublimo e escrevo
ternamente”.
124

Nessa breve passagem Rodríguez referencia o filme de David Lynch O Homem


elefante (1980)34, inspirado na biografia de Joseph Merrick, que nasceu com deformidades e
tumores faciais que, por sua vez, além de impactarem a sua aparência física, dificultavam sua
fala. Evocando o grito do homem elefante, à primeira vista esse trecho parece citar uma
sonoridade bestial, ou seja, um urro ou rugido de animal. Na película, entretanto, o único
momento em que se ouve o som de elefantes é em uma cena surrealista, quase onírica, que
aparece intercalada à narrativa do filme e fora do enredo principal: nela vê-se a fotografia de
uma mulher justaposta a imagens nebulosas de elefantes em movimento, enquanto ouve-se
rugidos de animais misturados com ruídos industriais. Apesar de ser a única que contenha
sonoridades animalescas, essa não é a cena referenciada por Rodríguez: ao contrário do que o
texto aparenta sugestionar, o grito do homem elefante não é a expressão de sua bestialidade, da
mesma forma que a escrita da autora tampouco se estabelece enquanto superação da
animalidade. O grito do homem elefante é, na verdade, a ferramenta que o humaniza, é o que
lhe confere segurança numa situação de violência iminente, ou seja, é o que faz dele um corpo
viável no campo social. Consequentemente, por oposição, a escrita de Rodríguez seria a
expressão de sua monstruosidade: um ato enunciativo que denuncia animalidade inescapável.
Na famosa cena do grito do homem elefante mencionada por Rodríguez, Merrick se
encontra sozinho numa estação de trem, tentando voltar ao hospital de Londres após ter sido
sequestrado e forçado a trabalhar novamente em condições escravas no circo. Ao descer do
trem com roupas largas e um saco de pano na cabeça, o personagem caminha ansiosamente
rumo à saída, mas, devido à sua forma de caminhar e à curiosidade instigada pelo mistério de
seu rosto ocultado, acaba sendo perseguido por jovens que zombam de sua aparência. O
personagem passa a caminhar cada vez mais rápido, numa cena de tensão galopante, e, ao descer
as escadas, se vê rodeado por uma multidão que descobre seu rosto e revela sua deformação.
Continuando sua tentativa de escapar, Merrick desce mais um lance de escadas e termina no
banheiro masculino encurralado pela enorme multidão que o persegue a gritos. Cercado, o
Homem Elefante volta-se às pessoas que o ameaçam e emite um rugido alto que soa como a
palavra “não”, calando seus malfeitores. Silenciados, os homens escutam atentamente ao grito
(de pronúncia quase indecifrável) que procede: “Eu não sou um elefante!”, seguido da repetição
clara: “Eu não sou um animal. Eu sou um ser humano”. Na sequência, a polícia vem à sua
salvação e o leva ao seu destino: o hospital que se tornou seu lar justamente porque

34
LYNCH, David et al. The Elephant Man. Widescreen version. Hollywood, Calif: Paramount Pictures,
2007.
125

anteriormente fora capaz de provar sua inteligência, arguição e erudição (demonstrando ter
memorizado os textos da bíblia) e, com isso, pôde conquistar a empatia do Dr. Frederick Treves,
o médico cirurgião do Hospital de Londres, que enxergou nele sinais de humanidade.
Essa cena figura um momento decisivo de “virada subjetiva”. Com seu grito o Homem
Elefante é finalmente capaz de agenciar sua representação no simbólico e de assegurar sua
humanidade. Em seu livro, Peter Graham e Fritz Oehlschlaeger analisam as diferentes edições
literárias (autobiográficas e adaptações teatrais) e a versão cinematográfica de O Homem
Elefante e identificam que, em comparação com os manuscritos autobiográficos, a cena do grito
é exclusividade da produção de Lynch. Os autores interpretam-na como rito de passagem da
objetificação (alteridade) ao agenciamento de subjetivação:

A reordenação dos eventos [na narrativa talhada por Lynch em relação à versão
autobiográfica] faz o retorno à exposição mais horrível e dá tempo para Merrick
desenvolver força pessoal para resistir às indignidades e brutalidades de seu status
como Homem Elefante. Sua chegada a Londres na estação Liverpool é muito diferente
daquela da reminiscência. Aqui ele não é um “emaranhado disforme” conectado à
humanidade somente através do cartão pessoal de Treves. Em vez disso, ele é capaz
de assegurar sua identidade a uma multidão que o persegue e que o encurrala nos
urinóis da estação: “Eu não sou um elefante! Eu não sou um animal! Eu sou um ser
humano!”. Por mais que esteja fraco e amedrontado, o Merrick do filme não espera,
como um objeto, para ser reivindicado por Treves; com o apoio de policiais, ele
caminha de volta ao hospital, reentrando em seu lar com sua própria agência.
(GRAHAM; OEHLSCHLAEGER, 1992, p. 135)

Complementar a essa análise, uma característica destacada em diversas produções


sobre o homem elefante é o uso da inteligência, da razão e do conhecimento dos valores da alta
sociedade como ferramentas de humanização para sua sobrevivência. Em um artigo de
periódico publicado no The Arizona Daily Star, o diretor de teatro Michael Maggio, responsável
pela peça teatral que leva o mesmo título da produção cinematográfica, descreve o personagem
de Merrick indiretamente relacionando “normalidade” ao aprendizado e à inteligência: “Ele é
um homem que recebeu um cruel empurrão do destino. Ele não é um intelecto, mas ele é
inteligente – ele tem grande capacidade para o aprendizado, como uma esponja, e ele tem um
grande desejo pela normalidade” (TULLY, 1982. Grifos Meus).
O uso de habilidades intelectuais e a apropriação dos saberes hegemônicos delineiam
recorrentes trajetórias monstruosas rumo ao simbólico e à autorrepresentação. É pertinente
ressaltar que muitas delas se originam num “lugar sem linguagem” associado à monstruosidade
bruta: alguns exemplos são o “falatório silencioso” descrito por Susan Stryker em seu poema,
bem como o primeiro murmúrio, imperceptível ou inaudível, que o monstro de Frankenstein
126

esboça ao Dr. Victor35 e a cena do grito do Homem Elefante, em especial sua tentativa de
escapar silenciosamente e o primeiro urro, quase indecifrável, que a sucede. Matizados pela
progressão de audibilidade, os percursos enunciativos desses três monstros desembocam na
pronúncia articulada e num subsequente agenciamento subjetivo tangencial à humanização, ou
seja, seus esforços para dominar a estrutura linguística e o vocabulário institucional são
gratificados e lhes garantem inteligibilidade e a oportunidade de reivindicar.
Enquanto o Homem Elefante, a criatura em Frankenstein e o monstro transexual
corporificado por Stryker transitam do “falatório silencioso”, da mudez e do ruído ininteligível
à reivindicação alta e clara (clamando respectivamente por humanidade, por uma companheira
e por uma monstruosidade agenciável), ao “sublimar e escrever ternamente” um grito
animalizador, Rodríguez cria uma alternativa à estratégia de apropriação da linguagem. Aqui a
busca por superação e a própria noção de reivindicação são substituídas pela expressão (o
processo e produto) da monstruosidade, que Rodríguez elabora com crueza gramatical e
estilística, conforme argumentarei adiante.
Assim sendo, ao referenciar o Homem Elefante, o grito que a autora assume que não
consegue dar é aquele que seria capaz de humanizá-la: o ato enunciativo que forjaria uma ponte
de empatia entre ela e uma multidão furiosa que a persegue em local público ou em um
confronto com a polícia. Seus textos seriam, portanto, a explicitação de uma expressão grotesca,
ou seja, o urro inaudível ou inassimilável na linguagem que, convertido em palavra de ortografia
também monstruosa, articula a impossibilidade e a recusa de superação de sua condição
não/humana. Para Rodríguez, não há opção nem risco de transmutação através do emprego da
palavra: tal como o pus, sua escrita é produto e expressão da ferida que habita e na qual
permanece elaborando sua monstruosidade. Para sustentar esse argumento, cabe analisar sua
trajetória pela linguagem, pontuando três etapas descritas pela autora na publicação
autobiográfica Cuerpos para Odiar (2014), sendo elas: aquela que antecede sua alfabetização,
as experiências escolares e a escrita de zines de poesia travesti na vida adulta.

4.2 LÍNGUA-MONSTRO: RECURSOS ENUNCIATIVOS DE CLÁUDIA RODRÍGUEZ

35
Me refiro aqui à passagem: “Suas mandíbulas se abriram, e ele resmungou alguns sons inarticulados,
enquanto um sorriso enrugava suas bochechas. Pode ser que ele tenha falado, mas eu não ouvi; uma mão estava
esticada, aparentemente tentando deter-me, mas eu escapei, e me apressei escada abaixo” (SHELLEY, 1992, p.56
- 57).
127

Tendo como projeto o desenvolvimento de uma escrita travesti capaz de expressar seus
processos de monstrificação, em vez de apropriar-se de uma linguagem clara, articulada e
totalmente inteligível, Rodríguez cria em seu trabalho recursos enunciativos combinando
linguagens que adquiriu em diferentes períodos da sua vida: a autora descreve seus primeiros
processos articulatórios como um “balbucio da manada” durante a infância, relembra a
monstrificação de seu corpo e de sua voz contando suas experiências escolares (através das
quais descobre seu despertencimento ao mundo das palavras) e, finalmente, combina o balbucio
animalizado de sua infância à patologização da subjetividade travesti e ao seu desconforto com
a educação formal para criar recursos enunciativos como a (h)ortografia e o errorismo, através
dos quais expressa as articulações monstruosas marcadas pelas suas experiências de gênero, de
classe e de raça.

4.2.1 Balbucio e animalização: a linguagem-outra ou “lugar sem linguagem”?

Oferecendo uma versão alternativa ao “lugar sem linguagem”, Rodríguez descreve o


balbucio como a primeira ferramenta enunciativa durante a infância e exalta nesse recurso o
isolamento, a pobreza e o seu alinhamento com animalidades, conforme disposto na passagem:
“Despertamos en una rancha sin nombre, muda como nubes tendidas al sol, dadas a las
zarzamoras, moscas y lagartijas colorinas. El balbuceo era nuestro lenguaje, balbuceo y
adivinamiento36” (RODRÍGUEZ, 2014, p.22. Grifos Meus)
Nesse trecho de Cuerpos para Odiar, Rodríguez envereda a linguagem de suas
primeiras memórias na pobreza da sua infância, enfatizando seu pertencimento ao desconhecido
(o barraco “sem nome”, deslocado da cartografia urbana), esboçando seu alinhamento com os
animais que a rodeavam e apresentando a comunicação imprecisa, própria das manadas
interespécie que integrou durante o período que antecedeu sua alfabetização.
As passagens sobre a sua infância são fortemente marcadas por identificações com
animais e trocas interespécie. A autora menciona em diversos trechos as conversas que tinha
com cavalos e vacas, suas brincadeiras observando e torturando insetos e, ao mesmo tempo,
borra as bordas de sua identidade quando escolhe diferentes animais para se autorrepresentar:
“esa mañana despertamos y éramos crías de hormigas chasconas, malas para comer y poco

36
Tradução: “Despertamos em um barraco sem nome, mudo como nuvens estendidas ao sol, dadas às
amoreiras, moscas e lagartixas coloridas. O balbucio era nossa linguagem, balbucio e adivinhação”.
128

acariciadas por ella [la maere]37” (RODRÍGUEZ, 2014, p.11). Dessa proximidade e
identificação com o selvagem e com o animalesco derivam o balbucio e a adivinhação enquanto
processos articulatórios imprecisos e irracionais que, apesar de antecederem sua escolarização,
não deixam de operar como linguagem.
A ideia de selvagem, indexada aqui à autorrepresentação animalizada, pode ser
compreendida como “o espaço que o colonialismo constrói, marca e repudia, assim como um
espaço de vibratibilidade que desenha todas as tentativas de demarcar sujeito separado de objeto
e um espaço de normatividade que decididamente controla e desarma o dissidente e o
monstruoso” (HALBERSTAM, 2014, p.141). Por outro lado, pensando a selvageria alinhada à
monstruosidade indomesticável, ou seja, como aquilo que excede o significado, abre-se uma
brecha epistêmica criativa na identificação com o animalizado, em especial considerando a
potencial desestabilização das estruturas que regulam a identidade e os processos articulatórios
comumente associados à racionalidade que a sustentam. Dessa forma, adivinhação e balbucio
emergem enquanto linguagens animalizadas e outrificadas que não pretendem ser entendidas,
tão somente representam essa fenda epistêmica, um despertencimento dissidente do mundo das
palavras.
Pode-se dizer que, opondo-se aos saberes confiáveis (históricos, geográficos etc.) e à
lógica racional, o balbucio animalizado abre caminho a formas alternativas de conhecer e
atribuir significado ao mundo que Rodríguez habitava: “El mundo consistió en tocar las cosas
con la boca, emitíamos raspeos con la lengua y los dientes para que supieran que estábamos
ahí38” (RODRÍGUEZ, 2014, p.22). Nesse fragmento a autora descreve formas-outras de
experienciar o mundo (“tocar com a boca”) e as ferramentas de comunicação que excedem e
dispensam a linguagem humana: em vez de utilizar palavras, a autora conta que emitia ruídos
que aparentemente não comunicam mais que sua presença que, por sua vez, exalta sua
resiliência. Essa passagem ecoa nos escritos da teórica Eva Hayward (2015), que também se
alinha a outras espécies (como aranhas, éguas e estrelas do mar) para dar sentido à sua
experiência enquanto mulher transexual.
Em seu artigo Spider City Sex, Hayward apresenta a transexualidade como
agenciamento [assemblage] que se constitui nas relações tecidas com termos sociais,

37
Tradução: “essa manhã acordamos e éramos filhotes de formigas despenteadas, ruins para comer e
pouco acariciadas por ela [a mãe]”.
38
Tradução: “O mundo consistiu em tocar as coisas com a boca, emitíamos rabiscos ásperos com a
língua e os dentes para que soubessem que estávamos ali”.
129

econômicos e políticos, assim como com registros espaciais, afetivos e de espécies. A autora
apresenta o corpo como campo poroso multiespécie quando, por exemplo, chama atenção para
o fato de que a hormonização transfeminina está necessariamente enredada em ontologias-
outras: enfatizando que a transexualidade feminina se dá através da contaminação dos corpos e
vidas das éguas, cuja urina é utilizada para a produção industrial do hormônio feminino, a autora
coloca que a “experimentação e instrumentalização animal estão enredadas nas genealogias de
tornar-se transexual”, e conclui que “mudar o sexo é, portanto, também sempre sobre mudar na
carne os sentidos e as espécies.” (HAYWARD, 2010, p.228-229).
Em seu artigo, através de um jogo sensório que a relaciona figural e literalmente a
aranhas, a autora marca a singularidade da experiência transfeminina expandindo as potências
do corpo para além do humano. Quando se identifica com aranhas que “sentem com as suas
teias” as experiências de Hayward ressoam nas comunicações animalizadas de Rodríguez, que
balbucia e “toca o mundo com a boca”. Ambas apontam para uma vibratibilidade trans-humana
e selvagem (que escapa à regra colonial) quando gesticulam ordens táticas onde o tocar, através
da analogia, cria sentidos e perspectivas para corpos dissidentes. Enquanto Hayward estabelece
novas genealogias para representar sua experiência transexual fora dos cânones da humanidade,
Rodríguez assume em seu corpo capacidades não-humanas denotando a selvageria ou
incivilidade associadas às experiências de travestis sudacas, enfatizando o limite da existência,
a promessa de morte e o epistemicídio das subjetividades dissidentes terceiro-mundistas.
Essas ontologias-outras com as quais Rodríguez se alinha lhe permitem assumir
processos enunciativos não-humanos e voltados à sua comunidade híbrida dissidente. Ou seja,
seu balbucio não faz sentido dentro da estrutura social e linguística imperante cis-
heteronormativa, uma vez que não estabelece uma comunicação precisa e inteligível, senão
interna e voltada à sua manada. Assim sendo, essas capacidades interespécies representam, no
trabalho de Rodríguez, uma dissociação não só com o Humano, mas também com as instituições
a ele associadas, dentre elas os saberes hegemônicos, a linguagem institucionalizada, a
articulação e a racionalidade.
Representando a selvageria e a precariedade da posição social que ocupou durante sua
infância e, ao mesmo tempo, sugerindo potencialidades e saberes internos de uma subcultura,
o balbucio e a adivinhação aparecem então como efeito da condição de estar alheia ao mundo
das palavras e dos conhecimentos institucionais e, de certa forma, alheia também à civilização
– à nação e sua geografia, como quando referencia o “terreno baldio que implica ser travesti”
(RODRÍGUEZ, 2015, p.89) – e ao Humano. Essa alienação e o processo articulatório dela
130

derivado podem ser percebidos como fuga da ficção de progressão histórica e da tradição de
citação, própria da estratégia queer de apropriação da interpelação negativa: o acúmulo que a
erudição carrega é substituído pelo vazio e pela incapacidade/irrelevância de nomear: “a mi
hermana nunca la vi antes, ni siquiera sabía su nombre”39 (RODRÍGUEZ, 2014, p.22).
O balbucio incorpora também o silêncio e exacerba a perda da linhagem e da
ancestralidade, apontando para o genocídio tipicamente associado aos processos de
colonização, como sugerido nessa passagem em que a autora descreve sua mãe: “La mujer
caída entre el norte y el sur de um país imaginário, era como la última de las mujeres de su
abundancia”40 (RODRÍGUEZ, 2014, p.13). Aqui Rodríguez indica uma ruptura entre o
passado, o presente e a possibilidade de futuro e desafia a geopolítica da nação, posicionando-
se na fissura histórica (o entrelugar) em que seu corpo flutua híbrido e diluído numa manada
que balbucia: “Me afecta saber que provengo de generaciones de mujeres desparramadas en
el sur, que nadie sabe que existieron antes de llegar aquí41” (RODRÍGUEZ, 2014, p.60).
Nessas passagens a autora assume uma autorrepresentação (sua e de sua família) que
incorpora o vazio, o esquecimento, o silêncio e a falta para marcar o próprio lugar de
enunciação. A esse respeito, Giancarlo Cornejo (2010), que utiliza a autoetnografia em suas
escritas acadêmicas, comenta que: “Não explorar e problematizar o próprio lugar de enunciação
é estruturá-lo como um lugar vazio. Tal pretensão é inevitavelmente imperialista e
colonizadora. Para Gayatri Spivak ‘este lugar vazio do agente se enche com o sol histórico da
teoria: o sujeito europeu’ (1998:180)” (CORNEJO, 2010, p.180).
É interessante notar que a estratégia de Rodríguez organiza uma análise crítica de sua
posição enunciativa elaborando justamente esse lugar vazio como prerrogativa, de forma a
realçar os processos colonizadores de emudecimento, esquecimento e epistemicídio
mencionados por Cornejo e Spivak. Trata-se, portanto, de uma representação fugidia, que
reitera criticamente o seu apagamento e silenciamento, sem oferecer, entretanto, uma alternativa
em seu lugar.
Pode-se dizer que o tropo animalizado da manada que emite ruídos, balbucia e
adivinha, emerge em sua escrita representando um estado cru e anterior (porque associado ao
selvagem e ao “primitivo”) à linguagem e tem como efeito o desnortear do gênero (uma vez

39
Tradução: “antes nunca tinha visto minha irmã, nem mesmo sabia seu nome”.
40
Tradução: “a mulher caída entre o norte e o sul de um país imaginário, era como a última das mulheres
de sua abundância”.
41
Tradução: “Me afeta saber que provenho de gerações de mulheres esparramadas no sul, que ninguém
sabe que existiram antes de chegar aqui”.
131

que este se sustenta, dentre outros lugares, na linguagem e através dela). Ou seja, essa
representação animalizada articula também um desprendimento do gênero ou um apelo à sua
frouxidão. Por exemplo: quando a autora refere a si própria e às suas irmãs como sendo “filhotes
de formiga” e agrupa suas experiências baixo essa insígnia animal acaba também descartando
a diferenciação de gênero, uma vez que, no imaginário cultural ocidental, o gênero dos insetos
não é veementemente caracterizado nas representações disponíveis. Em outras palavras, esses
seres são classificados como ontologicamente distintos da espécie humana e, por isso, não é
contundente a diferenciação sexual e de gênero em suas representações. Essa ideia se evidencia
ainda mais na passagem: “Nunca imaginamos alguna diferencia en eso de ser perro o perra,
niño o niña. Todas en la manada, no éramos más que hermanas y hormigas. Siempre todas
fuimos niñas hasta que escuché que un viejo al pasar por el camino me dijo: -tu no eres niña
porque eres fea”42 (RODRÍGUEZ, 2014, p.39).
Conforme sugerido na passagem acima, a opção pela autorrepresentação ancorada em
figuras de animais logra, até certo ponto, a ofuscação do gênero, a ênfase na ambiguidade e
uma possibilidade de evasão da diferenciação sexual no imaginário visual. Utilizando essa
estratégia em sua escrita autorrepresentativa, Rodríguez recorrentemente evoca o não/humano
(indexado à selvageria) para articular uma representação borrada e imprecisa do gênero no
domínio visual, conforme disposto no trecho: “eramos feas, pero inconscientes del reflejo.
Eramos salvajes como el pasado, como los tiuques y la zarzamora, como el barro, como troncos
secos y como piedras43” (RODRÍGUEZ, 2014, p.37. Grifos Meus)
Essa ideia de “não ter reflexo de si”, apresentada em diversas passagens, sugere que,
diluída na manada, a diferenciação visual (por exemplo, do gênero) é turva, resultando na
frouxidão da identidade sexuada. Aparentemente não havia identidade individual separada da
manada - que por ser multiespécie, também despista as engrenagens visuais que projetam
gênero de forma compulsória. Aludindo à pobreza de sua infância, à alienação ou isolamento
da zona rural onde vivia e às relações estabelecidas com sua manada, em outras passagens
Rodríguez sugere um estado de animalização (abutre, formiga, cão) e evoca alteridades
ontológicas (amoras, barro, tronco) onde o gênero não se materializa com solidez:

42
Tradução: “Nunca imaginamos alguma diferença nisso de ser cachorro ou cachorra, menino ou
menina. Todas na manada, não éramos mais que irmãs e formigas. Sempre fomos todas meninas até que escutei
que um velho ao passar pelo caminho me disse: - você não é menina porque é feia”.
43
Tradução: “éramos feias, mas inconscientes do reflexo. Éramos selvagens como o passado, como os
abutres e a amora, como o barro, como troncos secos e como pedras”.
132

Éramos perversas como las hormigas y los perros, como las libélulas y como el barro,
oscuras. No teníamos reflejo de nosotras mismas. Mi hermana era mi hermana con
todas sus mechas tiesas. Por mucho tiempo yo fui la sombra de ella, hasta que me
dijeron que tenía que ir al colegio. Antes nunca me lo pregunté. En la manada todas
éramos igualmente chasconas, malas, tercas, desobedientes, chijeteras y llegadas del
sur, de lejos44. (RODRÍGUEZ, 2014, p.10)

Importa ressaltar que, nesse trecho, muitos dos adjetivos utilizados para descrever a
manada são predominantemente empregados para caracterizar os comportamentos de animais
indomesticados e emergem intimamente relacionados à selvageria, à ignorância e à indocilidade
(que, nessa passagem, se opõem à escolarização), exercendo um efeito particular na
representação do gênero. No mesmo sentido, o isolamento rural remapeia o imaginário
gendrado atribuindo-lhe particularidades próprias e a pobreza não só limita a aquisição de
adereços que reforçariam feminilidade ou masculinidade, como também recodifica a forma
como feminino e masculino operam no campo visual: quando a autora escreve “minha irmã era
minha irmã, com todos os seus trapos duros”, retira da estética da vestimenta a insígnia do
gênero e a desloca a uma nova ordem de significados.
Quando confere desimportância ou frouxidão ao gênero, a manada o desterritorializa
e o reinscreve em uma nova economia simbólica: por exemplo, o componente do sexo é
deslocado enquanto critério principal, que se transforma em sua intersecção com selvageria,
pobreza, racialização, fome e isolamento e redesenha, assim, os próprios contornos do gênero.
Nesse sentido, nota-se que um dos principais marcadores que se intersecionam dando forma à
feminilidade da manada é a pobreza, representada pela imagem reiterada de seus dentes tortos
e pela fome. Aqui a categoria “menina” aparece esvaziada ou totalmente reimaginada, de forma
a abarcar Rodríguez (que, então, seria “menino”). Aparentemente, a desimportância desse
marcador abre caminho a outros pontos de identificação que permitem, por sua vez, imaginar o
que mais a feminilidade poderia significar e abarcar. Pode-se dizer que a selvageria e a pobreza
se emaranham ofuscando a noção de gênero e, consequentemente, a pessoidade passa a operar
no plano de fundo, sobreposta a uma animalização onde nem mesmo o sexo (macho ou fêmea)
se pronuncia com solidez.
Na manada, todas, inclusive Rodríguez, eram igualmente irmãs porque eram
“igualmente despenteadas, más, indomáveis, desobedientes”. Nota-se que a caracterização de
feminilidade elaborada aqui contrasta e se opõe àquela tradicionalmente imposta às mulheres e

44
Tradução: “Éramos perversas como as formigas e os cachorros, como as libélulas e como o barro,
escuras. Não tínhamos reflexo de nós mesmas. Minha irmã era minha irmã com todos os seus trapos duros. Até
que me disseram que tinha que ir ao colégio. Antes nunca me questionei. Na manada éramos todas igualmente
despenteadas, más, indomáveis, desobedientes, alvoroçadas e vindas do sul, de longe”.
133

meninas dentro do regime ocidental cis-heteronormativo (como a docilidade, a perfeição, a


obediência etc.). Complementarmente, a autora conta que, crescendo em manada, ela era apenas
mais uma entre as meninas selvagens e que jamais questionou esse fato: “Descosidas,
manchadas, arrugadas, descalzas, paliduchas, rojizas, ojudas o achinadas, desnutridas, todas
éramos salvajes, niñas sobrevivientas del frio. ¿Cómo me iba imaginar que yo no era linda?”
(RODRÍGUEZ, 2014, p.14).45
Nessa passagem Rodríguez descreve corpos distintos que se aglomeravam nessa
feminilidade-outra que a manada, regida pela unidade “sobreviventas”, oferece. Essa
aglomeração aparenta ressoar na noção de coalizão, entretanto, não se trata de uma organização
pós-identitária que se organiza baixo um objetivo em comum para reivindicar direitos: a
manada se forma através de critérios urgentes e pautando experiências comuns, como a fome e
a pobreza. Os seres da manada experienciam a vulnerabilidade, a contingência, o fracasso, a
recusa, a falha, a decepção, o desespero e o arriscado, mas não compõem uma unidade, senão
forjam um alinhamento a partir da cumplicidade que desafia a unidade do símbolo (enquanto
categoria ou identidade), rejeitando e fracionando os significados que se coagularam e
solidificaram delimitando o corpo e a feminilidade: a manada é o palco para encontros de seres
outrificados e que assim permanecem, mesmo quando se tornam parte de uma nova entidade
em sua multiplicidade.
A manada, dentro da qual Rodríguez era tão menina como as outras, foi, entretanto,
interrompida pela interpelação injuriosa (o velho que lhe contou que não era menina porque era
feia) e pelos processos de educação e alfabetização (antes de ir à escola, nunca questionou que
não era menina), despossuindo-lhe de sua feminilidade e de sua beleza (“como ia imaginar que
eu não era linda?”). Avalia-se que não é tanto a puberdade, senão o ambiente institucional da
educação formal, a escolarização (o conteúdo ensinado) e as interações sociais ali engendradas
(o contato social) que “deformaram” sua imagem e sua concepção de si, desfazendo seu
pertencimento e sua manada e introduzindo-a ao gênero. Esse ponto indica mais uma etapa em
sua trajetória rumo à linguagem e proporciona elementos fundamentais para observarmos seu
projeto autorrepresentativo monstruoso.

45
Tradução: “Descosturadas, manchadas, enrugadas, descalças, pálidas, avermelhadas, olhudas ou de
olhos puxados, desnutridas, todas éramos selvagens, meninas sobreviventas do frio. Como ia imaginar que eu não
era linda?”.
134

4.2.2 “Viadinho me gritaram e eu fiquei torcida”: descobrir-se monstra

Nas recordações das experiências de alfabetização e socialização escolar de


Rodríguez, o registro vocal afeminado combinado com a performatividade também afeminada
emerge em discrepância com seu nome masculino e com a expectativa social de seu corpo. Essa
discordância confere despertencimentos e produz fendas em seu mundo, inaugurando uma outra
forma de se perceber, mediada por uma relação também diferente com a linguagem:

Aprender a leer y a escribir fue comenzar a llenarme de miedos. En la infancia, con


el reflejo de mi cuerpo obligado a doblarse al suelo, debí oír millones de veces las
risas de la gente por causa de mi nombre, mi voz y mis dientes chuecos. Yo hablaba
como un gato nacido en el campo, como una hormiga, como un zorzal con hambre
detrás de los ojos46. (RODRÍGUEZ, 2014, p.20. Grifos Meus)

Se anteriormente, na manada, não havia imagem própria ou reflexo de si (além daquele


diluído na feminilidade frouxa e interespécie da coletividade), na escola a autora passa a se
deparar pela primeira vez com uma imagem monstruosa de si refletida no chão, quando se
observa em situação de violência física e de ridicularização. Inaugura-se, então, uma nova
forma de perceber-se: sua voz feminina e seu corpo não traduziam mulheridade e beleza, senão
monstruosidade, conforme sugerido pelo emprego de tropos animalizantes (gato, formiga e
tordo) no trecho transcrito.
Nota-se que a vocalização feminilizada que emitia (antes “balbucio e adivinhação”)
aparece mais uma vez representada pelo não-humano (o filhote de gato, o pássaro e a formiga,
que sugerem pequenez, fragilidade e voz aguda). Entretanto, diferentemente das passagens
mencionadas anteriormente, a animalização emerge agora despotencializada e com conotação
pejorativa, operando como insígnia de sua inadequação e vulnerabilidade. Essa voz outrificada,
própria do corpo que performa uma feminilidade desautorizada, se associa à experiência
enviesada e obtusa de adentrar a linguagem e a alfabetização, ou seja, a inadequação de sua
performatividade de gênero introduz a autora a uma nova ordem interpelativa (injuriosa) e à
violência epistêmica/colonial intrínseca aos processos de educação formal, conforme
argumentarei adiante.
Rodríguez dá sentido à sua exclusão ou marginalização da educação formal
reconhecendo a linguagem (tanto interpelativa como institucional) como violência epistêmica

46
Tradução: “Aprender a ler e a escrever foi começar a me encher de medos. Na infância, com o reflexo
do meu corpo obrigado a dobrar-se ao chão, devo ter ouvido milhões de vezes as risadas das pessoas por causa do
meu nome, da minha voz e dos meus dentes tortos. Eu falava como um gato nascido no campo, como uma formiga,
como um tordo com fome atrás dos olhos”.
135

(o fim do seu mundo, o desfazer de sua manada e de seus processos articulatórios) decorrente
da invalidação da sua feminilidade e da pobreza que experiencia. A esse respeito, pode-se dizer
que sua literatura, embora circunscrita em suas experiências pessoais, ressoa em
macroestruturas, como, por exemplo, na recorrente expulsão de travestis/trans* da educação
formal (BENTO, 2011).
O ingresso na escola interrompe o processo articulatório desenvolvido na manada e
promove um novo encontro com linguagens (interpelativa e institucional) que instauram outros
olhares sobre seu corpo, abalando sua visão de mundo e principalmente seu gênero e a relação
com seu corpo. Acerca desse tema, a autora menciona que, na escola, nem seu nome
(masculino) nem seus trejeitos afeminados (estilização de gestos) corresponderam às
expectativas sociais e, como consequência, as palavras que essas/es utilizavam para interpelá-
la também não foram aquelas com as quais ela se identificava:

En el colegio aprendi a mirarme mala, por esta locura fea de querer ser niñita. Me
dieron dos cuadernos y un lápiz y dijieron que el pelo crece, así que sólo tenía que
dejar pasar el tiempo y volvería a ser la misma, pero ni mi nombre ni mi voz fueron
los esperados por nadie.47 (RODRÍGUEZ, 2014, p.19. Grifos Meus)

O nome a que se refere seria aquele atribuído no registro civil, que não corresponde à
sua aparência e voz afeminadas (de “gato nascido no campo, formiga e tordo com fome atrás
dos olhos”). Essa incoerência, que opera pela primeira vez no ambiente institucional, tem como
efeito a evocação de novos nomes – “Tereso! Colipato!”48 (RODRÍGUEZ, 2014, p.21) – que
dissolvem sua manada, desabam seu mundo e, ao mesmo tempo em que a “chamam para a
existência” (assujeitamento), também desfazem seu pertencimento e lançam-na para o não-
lugar sem linguagem habitado pelo monstro. Separada de sua manada, Rodríguez é projetada
para fora do tecido social e das relações dialéticas que ali operam provendo identidade, de forma
que a autora sente que não há retorno (“voltar a ser eu mesma quando os cabelos crescerem”),
já que no ambiente onde está inserida o seu corpo afeminado torna-se ininteligível:

Me gritaron Tereso y quedé tullía porque se rieron de mí y de mis dientes chuecos.


Maere, no quiero ir al colegio! Maricon me gritaron y quede torcía. El lenguaje calló
y lo destruyó todo a su paso, arrancándome de ser niña para dejarme escupía en este
mundo rajado en dos, y a mí despreciable. Yo no sabía, que no sabía leer ni escribir,

47
Tradução: “No colégio aprendi a ver-me má, por essa loucura feia de querer ser menininha. Me deram
dois cadernos e um lápis e disseram que o cabelo cresce, de forma que eu só tinha que deixar o tempo passar e
voltaria a ser eu mesma, mas nem meu nome nem minha voz foram os esperados por ninguém”.
48
Tradução: “Viado! Bichinha!”.
136

hasta que me gritaron Tereso y me habían dejado sin batalla, sin herencia y maldita49.
(RODRÍGUEZ, 2014, p.45. Grifos Meus)

Quando a autora escreve que deixou de ser menina e ficou “cuspida nesse mundo
partido em dois”, localiza-se no interstício onde surgem os monstros: o exílio das categorias é
análogo à expulsão do abjeto para fora da relação dialética, à qual depois retorna na condição
de terceiro-termo (monstra, “aleijada”, “torcida”, “desprezível”, “maldita”). Assim sendo,
pode-se dizer que, não estando disponível uma identidade que abarcasse sua feminilidade, na
escola a “afeminadofobia” a empurrou para fora do inteligível e do aceitável e lhe impôs a
condição de monstro (associada às identidades “viado” e “bicha”).
Deslocando-se do balbucio e da adivinhação, a autora passa a adentrar o mundo das
palavras e da linguagem através da interpelação injuriosa e da imposição de uma estrutura
linguística institucional que não a inclui. Pode-se dizer, portanto, que em vez de expandir seu
mundo, a linguagem aprendida na escola anuncia o desfazer de seu corpo, o que, nessa
passagem, a autora representa como um tipo de “aleijamento”. O fantasma da instituição médica
ressoa nesse e em outros trechos em que a autora associa sua feminilidade e sua forma de se
comunicar a um tipo de “aleijamento”, “loucura”, “torção” e “deformidade”. Essa metáfora faz
reverberar encontros entre a patologização de pessoas trans* e aquela experienciada por corpos-
mentes (CLARE, 2017) deficientes, em especial no que diz respeito à narrativa do “corpo
errado”, conforme relacionado por Nikki Sullivan em seu artigo The role of medicine in the
(trans)formation of “wrong” bodies. Essa indexação de seu gênero a uma deformidade
congênita, que se revela visualmente no corpo e é interpretada como doença a ser tratada ou
corrigida (via processo de transexualização ou aniquilamento), será explorada em sua relação
com a loucura no próximo tópico.
A recordação da interpelação injuriosa (“Bichinha, Viado”) ressoa também nos
trabalhos “Me gritaron Negra” , de Victoria Santa Cruz, e “Me gritaram monstra” , de Jota
Mombaça, assim como na experiência de Giancarlo Cornejo, um menino afeminado que nasceu
no Peru e, em seu artigo La guerra declarada contra el niño afeminado: una autoetnografía
“queer”, tenta “dar conta de si mesmo” elaborando a lembrança de ter sido interpelado pela
palavra maricón (viado) na escola: “Assim como as palavras criam e dão certezas, também

49
Tradução: “Me gritaram Bicha e fiquei aleijada porque riram de mim e dos meus dentes tortos. Mãe,
não quero ir ao colégio! Viadinho me gritaram e fiquei torcida. A linguagem calou e destruiu tudo em seu caminho,
arrancando-me de ser menina para me deixar cuspida nesse mundo partido em dois, e eu desprezível. Eu não sabia,
que não sabia ler nem escrever, até que me gritaram Viado e tinham me deixado sem batalha, sem herança e
maldita”.
137

desfazem e dissolvem (BUTLER, 2004). Essa cena no lar pode ser entendida como uma
experiência de ser desfeito por outros [...] Nesse caso a injúria marca um corpo muito antes de
que esse corpo tome consciência de dita marca. A injúria “viadinho” me interpelou antes de me
dar conta que eu era um” (CORNEJO, 2011, p.82).
De maneira semelhante, Rodríguez é interpelada por uma linguagem que não a
assujeita, senão a desfaz. Pode-se dizer que, não só as interpelações negativas dos/as colegas,
como também o conteúdo dos ensinamentos escolares e a própria alfabetização se apresentaram
como processos usados contra sua existência: “Había letras tan relegadas al exilio como yo al
miedo, pero lo más curioso es que las profesoras no se dieron cuenta, que a ellas el mundo no
las incluía”50 (RODRÍGUEZ, 2014, p.29). Na escola Rodríguez aprende que não sabe (“não
sabia, que não sabia ler nem escrever”), ou seja, os ensinamentos não comunicam mais que seu
despertencimento e o desabamento de seu mundo, conforme sugerido na passagem: “Maere, no
quiero ir al colégio. Todas las letras que aprendi hablaban del fin del mundo. Crecí con miedo
a caerme del mundo, a que en cualquier momento se acabara”51 (RODRÍGUEZ, 2014, p.58).
O desabamento de seu mundo, derivado do encontro com a escolarização que reforça
a norma, se efetiva quase como premonição diante da fragilidade de sua posição subjetiva:
“Santiago es más antiguo que todas nosotras. Nosotras nacimos y Santiago ya era Santiago.
Con mi madre habíamos nacido despojadas de un interior y un principio; así, como con la
imposibilidad de ser una historia para contar”52 (RODRÍGUEZ, 2015, p.47). Complementar
ao despertencimento ao mundo das palavras, essa impossibilidade de contar histórias (ou de ser
uma história a contar) pode ser percebida como mais outra forma de alinhamento à selvageria,
em especial considerando o gesto não como sintomático da ignorância, mas como recusa
absoluta de empregar epistemologias, linguagens e temporalidades colonialistas:

O selvagem não pode contar porque ele conceitua “o contar” como mais uma
ferramenta da regra colonial. O selvagem não pode falar sem produzir ambos a ordem
colonial que lhe dá sentido e a perturbação dessa mesma ordem através de excessos e
excentricidades temporais, espaciais e corporais. (HALBERSTAM, 2014, p.140)

50
Tradução: “Tinha letras tão relegadas ao exílio como eu ao medo, mas o mais curioso é que as
professoras não perceberam que o mundo não as incluía”.
51
Tradução: “mainha, não quero ir pro colégio. Todas as letras que aprendi falavam do fim do mundo.
Cresci com medo de cair do mundo, de que a qualquer momento se acabaria”.
52
Tradução: “Santiago é mais antiga que a gente♀. Nós♀ nascemos e Santiago já era Santiago. Com a
minha mãe tínhamos nascido despojadas de um interior e um princípio; assim, como com a impossibilidade de ser
uma história para contar”. (Foi incluído na tradução o signo ♀ porque em espanhol os pronomes “a gente” e “nós”
estão gendrados).
138

Esses trechos metalinguísticos, nos quais Rodríguez descreve seu desconforto com a
escrita, apontam para a forma como o silenciamento e a exclusão informaram a criação de suas
próprias linguagens, formatos e públicos em suas publicações, conforme argumentarei a seguir.

4.2.3 Enfrentando a linguagem cara a cara: a “elucubração plástica”, o zine, a


(h)ortografia e o errorismo como projetos enunciativos travesti

“Llegue tarde a la lectura, a esto de juntar las letras que sirven para delimitar estos
bordes. […] Creemos que somos libres y todo lo que nos rodea es prisión, incluso las letras
de las que nací huérfana.”
(RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data / sem paginação)

Uma das sensações mais recorrentes descritas pela autora é a de que não pode contar
histórias, pois a linguagem é sua inimiga e foi usada contra ela devido à sua feminilidade, à
inadequação de seu corpo e ao apagamento dos signos que falam sobre o seu mundo:

Desde niño el lenguaje y el saber demostraron su odio por mí. Cada palabra ponía
en cuestión mi capital y mi economía. Todas las palabras, por mi forma afeminada,
ponían en duda el sustento productivo, fuerza laboral y mi aporte al momento de la
devolución de tributos. Fue el lenguaje el dispositivo que me traducía el comienzo de
mi vida en una inversión riesgosa y perdida; material deshechable. Por lo que el
lenguaje se convirtió en otro enemigo al que no se le debía dar importancia. De que
nos puede servir hablar a las travestis si es imposible encontrarle el cariño? Para mi
el lenguaje ha sido siempre un atributo masculino, económico y de dominio. Hoy me
doy cuenta que lo puedo enfrentar cara a cara.53 (RODRÍGUEZ, 2015, p.13. Grifos
Meus)

Nessa passagem o exílio da linguagem institucional é apresentado como introdução


(senão destino) à prostituição (“o começo da minha vida em um investimento arriscado e
perdido”) e como indicativo de permanência na classe social de baixa renda, resultante de sua
marginalização das instituições formais de ensino e de trabalho. Conforme mencionado, essa
trajetória se relaciona com a experiência escolar, que ofereceu uma linguagem alienante e uma
perspectiva excludente oficializadas como conhecimento. Agora, ao escrever suas poesias

53
Tradução: “Desde que eu era menino a linguagem e o saber demonstraram seu ódio por mim. Cada
palavra colocava em questão meu capital e minha economia. Todas as palavras, por minha forma afeminada,
colocavam em dúvida o sustento produtivo, força laboral e minha contribuição no imposto de renda. Foi a
linguagem o dispositivo que traduzia o começo da minha vida em um investimento arriscado e perdido; material
descartável. Por isso que a linguagem se converteu em outro inimigo ao qual não se devia dar importância. De que
nos pode servir falar às travestis se é impossível ter carinho por elas? Pra mim a linguagem sempre foi um atributo
masculino, econômico e de domínio. Hoje me dou conta que posso enfrentá-la cara a cara”.
139

travesti em zines e livretos autônomos, a autora agencia uma espécie de vingança contra a
linguagem, o conhecimento e o epistemicídio da cultura dissidente, ou seja, “os enfrenta cara a
cara” com estratégias e recursos enunciativos que pervertem a escrita e a cultura hegemônica,
empregando outras gramáticas, formatos e vocabulários.
Ao analisar as passagens em que Rodríguez conta sobre sua infância e sua experiência
de escolarização, sugeri que a animalização é um recorrente artifício autorrepresentativo que
remete à incivilidade, à selvageria, à pobreza e à dissidência de gênero associadas a uma forma
enviesada de adentrar a linguagem. Transcorrendo essa trajetória e observando os tropos
animalizantes relacionados aos processos enunciativos de Rodríguez desde a infância até a vida
adulta, sugiro que a autorrepresentação animalizada aparece em seus zines apontando também
para processos irracionais tangenciais à loucura e à patologização, bem como à promessa de
morte e à ausência de passado e de futuro, que agenciam um ressentimento esvaziado de
propósito reivindicativo. Trata-se de, conforme argumentarei ao longo deste capítulo,
características singulares das monstruosidades travesti/trans* sudacas.
Pode-se dizer que a louca compartilha com o monstro e com a figura da travesti muitas
características: são consideradas excentricidades, aberrações e seres que estão fora de lugar,
cuja presença causa mal-estar e sensação de ameaça. Há, de certa forma, um interesse em torno
do tema da loucura, mas não do indivíduo, da mesma maneira que há um interesse em torno do
tema da “transexualidade” (como tópico teórico para pensar o gênero abstratamente e desafiar
sua naturalização), ao passo que travestis e pessoas trans* são muitas vezes marginalizadas/os
desse debate. Dessa forma, a transexualidade, assim como a loucura, é comumente vista e
discutida desde um exterior (biomédico, clínico, terapêutico, acadêmico etc.), ou seja, há
sempre uma interpretação da situação do louco e raramente uma autoteorização, justamente
devido à sua exclusão dos domínios da razão, ao seu apagamento do pensamento e do discurso.
Na escrita de Rodríguez o componente da loucura aparece intimamente associado à
patologização e à deficiência, tanto remetendo ao discurso médico sobre transexualidade como
também intimamente conectado à prostituição e à soropositividade. Visto que a transexualidade
é particularmente marcada por uma patologização histórica que persiste até os dias de hoje nos
modelos médicos, quando Rodríguez se representa como animal, deficiente, insuficiente e
anormal, entre outros, faz reverberar os discursos médicos sobre a loucura e outras doenças
140

mentais, conforme destacado em passagens dos zines Contodomisida54 (sem registro) e


Enferma del Alma (2011):

Se presume que mi trastorno es negarme a ser niño y querer ser hija de mi madre. La
psiquiatra dice que si no hubiera sido hija, seria un niño alegre y fuerte y las palabras
hubieran sido otras, y la forma de mirar, resistente. Se dice que la pequeñez intima
que conservo me debe excluir del mundo y determinar infeliz por cobarde y débil, por
llorona.55 (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação. Grifos Meus)

Ao referenciar um “transtorno” e afirmar que se ela fosse menino “as palavras teriam
sido outras”, nessa passagem, Rodríguez alude ao discurso médico (CID:F640) que
circunscreve a narrativa do “transexual verdadeiro”, recordando que o diagnóstico em questão
é baseado predominantemente na análise autobiográfica da/do paciente, ou seja, se dá em
conformidade com as narrativas contadas às/aos médicas/os e psicólogas/os para dar sentido às
suas vivências pautando o gênero. Diante desse contexto, a autora indica que as palavras que
escolhe para representar-se, dentro e fora do consultório médico, não são suficientes ou
satisfatórias, talvez porque não correspondam ao modelo de diagnóstico do “transexual
verdadeiro” que provém de um quadro epistemológico elaborado a partir das perspectivas cis-
heteronormativas.
As narrativas de si que a autora elabora em seus zines não oferecem uma “história
plausível” e tampouco apresentam um sujeito coerente nos moldes oficializados pelo
diagnóstico de transexualismo, senão incorporam as incertezas, a fluidez e as contingências das
experiências travesti sudacas e empregam formatos e linguagens igualmente difusos, fluídos e
voláteis. Nessa perspectiva, embora a referida “incapacidade de contar histórias” expresse uma
recusa à cosmo-visão cis-heteronormativa, a irracionalidade e a assincronia que orientam a
organização enunciativa da autora são patologizadas e passam a ser interpretadas como
transtorno:

Dicen que no sé contar historias porque desde la niñez poseo una salud que esquiva
la costumbre, que me hace desaparecer de las ideas tradicionales. Mi problema de
salud no es precisamente organico. La psiquiatra presume de un transtorno cerebral
en las palabras y en la forma de mirar porque tiendo a repetir pensamientos y frases
inconexas por causa de una necesidad interna. Mi problema de salud es atómico,
como una especie de dislexia, una desconexión de la comprensión del estar y del ver.
[…] un desajuste más allá de lo cerebral que impide que una especie de molécula me

54
O título cria o trocadilho “conto-da-minha-aids”.
55
Tradução: “Pressupõe-se que meu transtorno é me negar a ser menino e querer ser filha da minha
mãe. A psiquiatria diz que se eu não tivesse sido filha, seria um menino alegre e forte e as palavras teriam sido
outras, e a forma de olhar, resistente. Diz-se que a pequenez íntima que conservo deve me excluir do mundo e
determinar infeliz por covarde e fraca, por chorona”.
141

haga feliz como a todo el mundo, así que dicen que soy mala y que miento56.
(RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação. Grifos Meus)

Nessa perspectiva, o diagnóstico da “condição” (onde “transexualismo” e


soropositividade se misturam à deficiência e à loucura) de Rodríguez se dá através da
ininteligibilidade de suas narrativas de si, ou seja, do conteúdo e do formato incoerente e
supostamente incompreensível das histórias que conta. Na passagem acima, a autora associa
sua inadequação a uma inabilidade individualizada, destacando a inconformidade do formato e
do conteúdo das suas histórias (“que desaparecem das ideias tradicionais”) e sugerindo,
portanto, que seu problema de saúde não é orgânico (natural ou congênito), ou seja, é
culturalmente, senão medicamente, criado. A autora ironiza o diagnóstico da psiquiatria que,
com as lentes da ciência e da racionalidade, localiza a nível atômico, molecular e “cerebral” a
sua visão de mundo outrificada, responsável pela condenação de incompreensão e de
infelicidade.
A esse respeito, em sua avaliação do processo médico transexualizador, Sandy Stone
identifica que, na perspectiva médico-psicológica, “o maior propósito do/a transexual é apagar-
se, diluir-se na população ‘normal’ assim que possível” e que “parte desse processo é conhecido
como a construção de uma história plausível – aprender a mentir de forma eficaz sobre o próprio
passado” (STONE, 1993, p.11). Ao adentrar a lógica do ambiente médico institucional,
Rodríguez se depara com a necessidade de criar uma narrativa aceitável (correspondente às
expectativas médicas), que seria, entretanto, incapaz de abarcar sua autorrepresentação. Assim
sendo, pode-se dizer que as incoerências ou ininteligibilidades que levam ao diagnóstico de
Rodríguez aproximam-na do selvagem, especialmente levando em conta que “selvageria
introduz a burocracia à outra epistemologia turva que não pode ser sujeitada à regra da caneta
e que não se submete à clareza moral que procurar limpá-la de sua contradição”
(HALBERSTAM, 2014 p.144). Seu projeto enunciativo figura, então, um lugar fora do discurso
da norma, ou seja, possui um formato não catalogado e, portanto, desestabilizador.

56
Tradução: “Dizem que não sei contar histórias porque desde a infância possuo uma saúde que esquiva
o costume, que me faz desaparecer das ideias tradicionais. Meu problema de saúde não é precisamente orgânico.
A psiquiatra presume que seja um transtorno cerebral nas palavras e na forma de olhar porque tendo a repetir
pensamentos e frases desconexas por causa de uma necessidade interna. Meu problema de saúde é atômico, como
uma espécie de dislexia, uma desconexão da compreensão do estar e do ver. [...] um desajuste mais além do
cerebral que impede que uma espécie de molécula me faça feliz como todo mundo, assim que dizem que sou má
e que minto”.
142

Quando Rodríguez relaciona esse diagnóstico de dislexia à dificuldade de contar sua


história (articular a palavra para apresentar, através da linguagem dominante, uma versão
coerente de si) recusa-se também a alinhar-se à identidade fixa e coerente sustentada pelos
preceitos biomédicos reguladores da transexualidade (responsáveis pela validação do
diagnóstico e pelo acesso aos recursos institucionais). Manejando a palavra, Rodríguez não
pretende fixar-se nas categorias identitárias disponíveis, uma vez que desconfia de uma noção
essencialista de si: “Si la gente insistiera en mirarnos fijamente a nosotras, parecemos toscas,
despojadas de un principio y un interior”57 (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação).
Ao entender-se como “desprovida de um interior” a autora rejeita uma resolução
simples e essencialista para o problema ontológico “quem sou eu?” (que recorrentemente se
pretende resolver com a resposta: “sou uma mulher presa no corpo de um homem”), e expressa
um contínuo desencontro de si. Pode-se dizer que essa é uma das prerrogativas de sua
monstruosidade, que se manifesta enredada num esvaziamento identitário e, em muitas
passagens, realça também a insignificância do exercício: “Las calles y avenidas me hacen saber
el escaso tamaño de mi y las mañanas, las tardes, los dias y los años que me demoro a recoger
cartones y botellas y llegar tarde a mi casa, con esa sensación de nunca encontrarme58”
(RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação).
É possível que essa sensação de buscar e nunca encontrar-se revele a promessa
monstruosa de desestabilização das categorias e o desafio da razão e da verdade identitária:
“Desde un principio, una cree tener la razón de que lo sólido nunca podría ser relativo y nos
hacemos de una seguridad imposible, falsa, porque lo incierto sabe mostrarse a sí mismo,
fulminantemente, para caer sobre todas nosotras, en venganza59” (RODRÍGUEZ, 2011, sem
paginação. Grifos Meus).
Aqui a subjetividade travesti emerge como processo e produto do desmoronamento da
segurança e das certezas identitárias prometidas (a solidez e a verdade). Nesse sentido, a
representação de Rodríguez abarca as angústias e despertencimentos como efeitos desse desafio
à ontologia, mas também evidencia a potência de experimentação e de transformação dos
ditames identitários:

57
Tradução: “Se as pessoas insistissem em olhar fixamente para a gente, parecemos toscas, despidas de
um princípio e de um interior”.
58
Tradução: “As ruas e avenidas me fazem saber o escasso tamanho de mim e as manhãs, as tardes, os
dias e os anos que demoro a coletar papelões e garrafas e chegar tarde na minha casa, com essa sensação de nunca
me encontrar”
59
Tradução: “Desde um princípio, uma [travesti/mulher/pessoa] acredita ter a razão de que o sólido
nunca poderia ser relativo e nos fazemos de uma segurança impossível, falsa, porque o incerto sabe mostrar-se a
si mesmo, fulminantemente, para cair sobre nós♀, em vingança”.
143

Nosotras las travestis ni siquiera somos conscientes de las características de nuestra


potencia. Un día podemos llamarnos Lady Godiva, o Rapunsell, otro día ser Marta-
la-número-uno o la Quintrala y terminar la semana como Madame Butterfly o la
Momia. Cada uno de los nombres que momentáneamente llevemos, nos establece
como sujetas con un verbo, un sujeto y un predicado; hipótesis, ensayos y errores.60
(RODRÍGUEZ, 2015, p.58)

Nessa passagem a autora desafia os limites que separam “performance” de


“performatividade” e identifica na experimentação uma forma de ocupar momentaneamente
diferentes posições subjetivas processuais e incoerentes entre si, validando, assim, cada novo
investimento (Lady Godiva, Rapunzel etc.) enquanto elaboração de um “sujeito de um verbo”
errático. Esse exercício é considerado uma afronta aos critérios que sustentam pessoidade e
oferece, diante da lente médica do “processo transexualizador” institucional, elementos
comprobatórios da sua loucura.
Rodríguez relaciona seu desconforto com a palavra à sua subjetividade travesti,
reiterando que a linguagem institucional (da escola, da medicina, da lei etc.) não é capaz de
abarcar suas experiências, em especial, seu investimento subjetivo fluído e inconformado.
Utilizando a metáfora da cidade que se move, a autora aponta para essa forma nômade com a
qual experiencia o gênero e para a impossibilidade de descrevê-la com o vocabulário
disponível:

Mi problema de salud es precisamente la agobiante persecución de las palabras y los


ojos, y es que no me alcanzan las letras unidas para decir que la ciudad se mueve. Mi
caminar por la ciudad lo ve, nunca nada fue igual en las mismas calles. […]. Dicen
que no sé contar historias y desde que me diagnosticaron de incomprensible,
enmudecieron la ciudad que llevo dentro.61 (RODRÍGUEZ, 2015, p.47. Grifos Meus)

Aqui Rodríguez explicita como a patologização inviabiliza a autoenunciação, de forma


que os diagnósticos de louca, selvagem, soropostiva e travesti operam então como um tipo de
emudecimento: “Dicen que no sé contar historias, pero no hay nada que contar porque dicen
que estoy enferma y desde que me diagnosticaron me dejaron sin nada que decir.

60
Tradução: “Nós as travestis nem mesmo somos conscientes das características de nossa potência. Um
dia podemos nos chamar de Lady Godiva, ou Rapunzel, outro dia ser Marta-a-número-um ou a Quintrala e terminar
a semana como Madame Butterfly ou a Múmia. Cada um dos nomes que momentaneamente levemos, nos
estabelece como sujeitas de um verbo, um sujeito e um predicado; hipóteses, ensaios e erros”.
61
Tradução: “Meu problema de saúde é precisamente a angustiante perseguição das palavras e dos
olhos, e é que não consegui as letras unidas para dizer que a cidade se move. Meu caminhar pela cidade o vê,
nunca nada foi igual nas mesmas ruas. [...] Dizem que não sei contar histórias e desde que me diagnosticaram de
incompreensível, emudeceram a cidade que levo dentro”.
144

Enmudecieron la ciudad que llevo dentro”62 (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação). Nesse
sentido, o emudecimento não se efetua calando a interlocutora, senão, opera desacreditando sua
palavra, designando-lhe inaudibilidade e incentivando a não-escuta:

Según mi diagnostico, se recomienda que no se me ponga demasiada atención, que


no se me escuche por mi tendencia a la mala interpretación de la realidad y a repetir
descontextualizadamente frases que no juntan ni pegan. Esto se me podía agudizar si
se me contradice o se me corrige. Se sugiere que frente a mi mal, quienes me rodeen,
no se elaboren interrogantes complejas, ni se me confronte. El mejor remedio, dijo la
psiquiatra, es que se me deje cavilar plásticamente y en momentos de crisis, antes de
dormir, que llore como las mujeres.63 (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação. Grifos
Meus)

De acordo com a lente institucional, o processo enunciativo de Rodríguez seria


análogo ao “falatório” de Estela do Patrocínio, ou seja, uma “elucubração plástica” esvaziada
de significado e à qual não se deve prestar atenção: ruído audível, porém ininteligível. A
ininteligibilidade de seu discurso expressa o desinteresse de sua audiência institucional, que
seria incapaz de atribuir sentido à sua expressão e à linguagem através da qual comunica. Pode-
se dizer que, nesse campo de batalha, Rodríguez organiza uma estratégia pautada na linguagem-
outra, inaudível aos ouvidos cis-heteronormativos e às suas instituições:

E deixe que a selvageria fale não na língua da ordem e da explicação, mas com a bela
e contra-mitologizante gramática da loucura. Selvageria não é a falta de inscrição; é a
inscrição que procura não ler ou ser lida, senão deixar uma marca como evidência da
ausência, perda e morte. (HALBERSTAM, 2014, p.147)

Nesse sentido, a “elucubração plástica” se assemelha também ao “falatório silente”,


ou seja, à linguagem monstruosa inaudível citada por Stryker no início do poema analisado no
capítulo anterior. Entretanto, diferentemente de Stryker, que através da apropriação da injúria
“monstro” supera a condenação da ininteligibilidade, Rodríguez se serve dessa mesma
linguagem inarticulável, em estado cru, exilada da razão e do saber para “enfrentar a linguagem
cara a cara”, uma vez que sua proposta não é comunicar nos fóruns hegemônicos ou reivindicar
direitos. Importa salientar as diferentes formas através das quais o projeto discursivo aqui
analisado se distancia daquele forjado pela a criatura de Frankenstein evocada por Stryker:

62
Tradução: “Dizem que não sei contar histórias, mas não há nada para contar porque dizem que estou
doente e desde que me diagnosticaram me deixaram sem nada pra dizer. Emudeceram a cidade que levo dentro”.
63
Tradução: “Segundo meu diagnóstico, se recomenda que não ponham muita atenção em mim, que
não me escutem por causa da minha tendência à má interpretação da realidade e a repetir descontextualizadamente
frases que não se juntam nem colam. Isso poderia se agravar se me contradizem ou corrigem. É sugerido, diante
do meu mal, que quem me rodear não elabore perguntas complexas, nem me confronte. O melhor remédio, diz a
psiquiatra, é que me deixem elucubrar plasticamente e em momentos de crises, antes de dormir, que chore como
as mulheres”.
145

enquanto a condenação ou recomendação de que não se dê ouvidos ao monstro de Frankenstein


é uma resposta à ameaça imposta por sua extrema eloquência e arguição 64; na escrita de
Rodríguez, a deslegitimação de seu vocabulário, do conteúdo e do formato de sua “elucubração
plástica”, lhe conferem ininteligibilidade e efetivam a inaudibilidade, projetando-a para fora do
Humano e atribuindo-lhe uma ontologia-outra, selvagem e animalizada. Assim sendo, em vez
da articulação eloquente do monstro de Frankenstein, do domínio e maestria da linguagem e da
enunciação reivindicativa (que permite agenciamento) do Homem Elefante, as palavras de
Rodríguez reforçam ainda mais os contornos de sua monstruosidade e a marginalizam,
impulsionando a criação de linguagens separatistas, operantes em formatos micropolíticos e
voltados a uma audiência específica.
Num percurso contrário àquele traçado pelos monstros aqui referenciados (como a
criatura de Frankenstein e o Homem Elefante), Rodríguez não solicita um uso propriamente
apropriativo e reivindicativo da linguagem: a autora trava uma luta contra a linguagem,
conforme sugerido na asserção “No sabia que no sabía defenderme porque no sabia leer ni
escribir”65 (RODRÍGUEZ, 2014, p.57). A estratégia de apropriação da interpelação injuriosa e
a fúria transgênero mobilizada por Stryker são aqui substituídas por um projeto não
reivindicativo impulsionado pelo ressentimento e pela vingança: operar na linguagem, apesar
da linguagem, ou seja, enfrentá-la cara a cara tendo como premissa o fracasso. O ressentimento
travesti, que se desdobra em vinganças micropolíticas, é um dos principais afetos que informam
as estratégias articulatórias e contra-reivindicativas figuradas nas autorrepresentações
travesti/trans* selecionadas para esta pesquisa, conforme argumentarei mais adiante.
O confronto com a escrita é um dos principais temas (por que, como e para quem
escrever?) explorados por Rodríguez e se pode dizer que o próprio emprego da metalinguagem
é sintomático da insuficiência das palavras. A metalinguagem aponta para o esgotamento de
seu projeto com a linguagem, em que as palavras, dentro de suas reconhecidas limitações, já
expressaram o que podiam (já possuem o peso de um significado que não abriga a autora) e o
próprio enunciado só verbaliza esse vazio do despertencimento. Portanto, é através de uma
linguagem-limite (a “elucubração plástica”), com um discurso aparentemente desconexo e

64
É pertinente recordar que, conforme sugerido no capítulo anterior, em Frankenstein a personagem
Walton pede que não sejam escutadas as palavras da criatura devido à sua capacidade de convencer, gerar empatia
e, portanto, validar suas reivindicações: “Ele é eloquente e persuasivo, e certa vez suas palavras tiveram até poder
sob o meu coração; mas não confie nele... não o ouça.” (SHELLEY, 1983, p.198-199 apud BROOKS, 1993,
p.214).
65
Tradução: “não sabia que não sabia me defender porque não sabia ler nem escrever”.
146

incoerente, de escrita também desviada, que Rodríguez comunica acerca da experiência travesti
em seus zines.
Essa autorrepresentação animalizada e monstruosa, que transcorre atravessando a
impossibilidade de diálogo e de escuta, transborda em formato desautorizado, patologizado e
não-reivindicativo: em publicação autônoma, informal e não-mediada pelas instituições
literárias, como os livretos e zines independentes. Em seus zines, o balbucio animalizado
reprimido na escola reemerge monstruoso misturando-se ao “elucubrar plástico” que se situa
nas fronteiras entre loucura e razão: a linguagem literária se hibridiza às prerrogativas travesti
e a loucura surge em si mesma como linguagem.
Tendo em vista esses apontamentos, analisarei adiante como as características da
escrita monstruosa se manifestam não só nas palavras empregadas e na ortografia que
Rodríguez dispõe, como também no conteúdo do texto, no formato e na composição da edição
gráfica, no suporte de suas publicações (o zine e o livreto) e no público que pressupõe: suas
“amigas travestis que morreram de AIDS sem ter escrito uma única carta de amor”
(RODRÍGUEZ, 2007, sem paginação). As análises desses elementos oferecerão bases para
observarmos outros monstros que a autora elege em sua autorrepresentação.

4.3 O CORPO MONSTRUOSO DO ZINE

“A escrita de zines é em si uma tecnologia oposicional utilizada por sujeitos do


terceiro-espaço.” (LICONA, 2005, p.35)

A “elucubração plástica” de Rodríguez se materializa e circula em publicações


autônomas precárias que têm como prerrogativa o fracasso e como público as suas amigas
travestis. Algumas características do zine são referenciadas de antemão no (anti)editorial que
acompanha a maioria de suas publicações: na contracapa, entre o título e as informações de
contato da autora (que incluem seu celular, e-mail e conta de Facebook), Rodríguez informa:
“É uma produção precária, de autogestão, que desobedece às onipresentes indústrias culturais.
Produção que se pode chamar depreciativamente de LIVRETO [em Corpos para Odiar] /
FANZINE [nas demais edições], uma produção do fracasso, sem editorial”.
147

Figura 24 – Editorial de Cuerpos para Odiar

Fonte: Rodríguez (2014)

Já na primeira seção da publicação, Rodríguez comenta acerca da precariedade do


produto de sua escrita. Pode-se dizer que esse aceno ao fracasso é característico dos zines que
não têm pretensão artística e que dificilmente chegam às feiras gráficas organizadas por
instituições artísticas, ou seja, aqueles que circulam em bibliotecas de okupas, em banquinhas
de shows punk e em eventos autônomos, a exemplo do zine Quimer(d)a, elaborado por um
coletivo dissidente anônimo (do qual faço parte), cujas edições também incluem prefácios
pessimistas:
148

Figura 25 – Zine Quimer(d)a – Quadrinhos dissidentes antiespecistas

Fonte: Arruda e Castanho (2016)

Identifica-se que Rodríguez, em seu prefácio, ao mesmo tempo antecipa a decepção


(baixando a expectativa do público) e manifesta um estado de hipervigilância investigativa
(uma perturbação constante em seus textos), que expressa seu incômodo com a palavra escrita:
em conflito, Rodríguez questiona incessantemente em suas publicações a prática da escrita (Por
que escrever? Para quê? Para quem? Como?). Diante desses dilemas seus zines representam a
materialização de um questionamento metalinguístico que não obtém respostas, dado que uma
das prerrogativas de seu trabalho é abrigar o desconforto da palavra escrita e, em vez de superá-
lo, produzir algo capaz de expressá-lo.
A esse respeito, pode-se dizer que, em benefício da autora, o peso e a fatalidade da
palavra escrita são desregulados pelo formato do zine, que nunca chega a ter uma versão final
definitiva: enquanto produção copyleft e, portanto, editável, o zine é também um corpo trans*
no sentido de que está mais propenso à mutabilidade radical em comparação com as obras
149

literárias registradas com ISBN e publicadas oficialmente através de editoras. Também vale
dizer que o zine é uma literatura sem gênero, ou seja, pode abarcar uma miríade de formatos,
estéticas e conteúdos: alguns zines são traduções piratas de textos acadêmicos, outros são
compilados de cartas, diários, imagens, relatos, quadrinhos etc.
Complementarmente, o zine carrega uma tendência inerente à transformação: os
grampos que mantêm sua estrutura enferrujam e se soltam, fazendo com que as folhas se
percam, as páginas escapam à sequência original por equívoco ou descuido, quando exposto, o
material dificilmente resiste às intempéries (rasga, molha e se decompõe facilmente), as
máquinas de xerox cortam trechos ou páginas inteiras por casualidade. É impossível e descabido
afirmar a originalidade de uma matriz de zine: assim como o gênero performado, cada volume
pode facilmente se converter em uma nova cópia sem original.
A precariedade do formato é acompanhada de um arquivamento também informal,
muitas vezes involuntário, conforme conta Stephen Duncombe: “Espalhados pelo apartamento,
empilhados precariamente em mesas de centro, enterrados embaixo de caixas de pizza,
esquecidos entre as almofadas do sofá, lá estavam esses pequenos panfletos desajeitados e feitos
à mão” (DUNCOMBE, 2008, p.1). Essa passagem faz recordar que foi também por acidente
que me deparei por primeira vez com os zines de Rodríguez: ao incluir meus zines na biblioteca
de uma ocupação lésbica separatista no Chile, encontrei uma cópia em xerox do livreto Cuerpos
para Odiar. A diagramação desse exemplar tinha sido alterada e algumas passagens foram
cortadas pela máquina, dificultando a leitura, conforme mostra a imagem abaixo:
150

Figura 26 - Página fotocopiada de Cuerpos para Odiar.

Fonte: Rodríguez (2013) – Acervo do autor.

O corpo deformado do zine (pela leitura, circulação, reprodução ou armazenamento)


não reivindica para si um futuro: escapa ao arquivo tradicional (institucional), pois sua
existência é coextensiva à sua utilidade dentro de uma comunidade, ou seja, o zine só continua
sendo xerocado e posto em circulação enquanto fizer sentido e, de maneira relacionada, vale
dizer que sua propensão à mutação é o que lhe permite sobrevida, uma vez que possibilita sua
atualização, edição e hibridização através da inclusão de novos conceitos e vocabulários.
Esses pedaços de papel xerocado (invariavelmente transformados a cada nova tiragem)
estão, como o monstro e como as travestis, na ilegalidade e no interstício entre o que existe e o
que não existe, sempre a ponto de desaparecerem e de serem apagados da história. Nesse
sentido, os zines se assemelham aos registros e histórias orais que ecoam até se dissolverem ou
se desdobrarem em novas culturas dissidentes e raramente se organizam no formato linear,
teleológico e coerente dos modelos tradicionais de arquivo. Nesse sentido, os zines, enquanto
registros históricos e peças de arquivos contraculturais dissidentes, engendram uma
temporalidade-outra, capaz de reconhecer e abrigar a própria propensão à morte, à falta, ao
esquecimento, à inconstância e ao efêmero. A esse respeito, investigando a economia simbólica
151

e a historicidade de arquivos dissidentes (queer archives) que resistem aos modelos históricos
convencionais (tempo linear, origem e telos, causa e efeito), Joseph Allen Boone coloca que:

Para historiadores/as da vida gay e lésbica ocidental, considerações sobre o arquivo


foram inevitavelmente moldadas pelas “próprias problemáticas de re-criar [uma]
história definida por lacunas, elisões, omissões.” Isso é, o efeito dominante da
“epistemologia do armário” na cultura ocidental tem sido aquele que faz as histórias
dissidentes invisíveis, desaparecidas dos registros oficiais ou dominantes, ou, se
arquivadas, difíceis de localizar pois seus documentos se encaixam na categoria de
miscelânea (Quimby and Williams 2000: 166). De fato, como indicado por Charles
E. Morris (2006:146), práticas estabelecidas de arquivamento dependeram de métodos
de “categorização e nomenclatura indéxica” que excluem citações gays e “serve para
esquivar de solicitações dissidentes”. Por conta dessa parcialidade institucional, os
mais valiosos repositórios da história dissidente ocidental são comumente localizados
em coleções “não-oficiais” ou privadas criadas por gays e lésbicas motivadas/os pelo
desejo de lutar contra sua invisibilidade através da memória daqueles traços da vida
gay e lésbica que passaram por suas mãos ou que falam sobre suas próprias histórias.
(BOONE, 2017, p.54)

Complementarmente, em seu livro An archive of feeling, Ann Cvetkovich relaciona


experiências traumáticas relacionadas às políticas de aniquilação da dissidência às supressões
da cultura e da história LGBT em arquivos e registros oficiais:

Em seu arquivamento não-ortodoxo, o trauma se assemelha às culturas gay e lésbica,


que tiveram que lutar para preservar suas histórias. Diante da negligência
institucional, junto com histórias apagadas e invisíveis, arquivos gays e lésbicos têm
sido formados através de esforços comunitários/populares, da mesma forma como os
movimentos culturais e políticos demandaram atenção de outras histórias suprimidas
e traumáticas, desde a do Holocausto, à do ativismo de trabalho e direito civil, até a
da escravidão e do genocídio. Forjado em torno da sexualidade e da intimidade, e de
formas de privacidade e invisibilidade que são ambas escolhidas e aplicadas, culturas
gays e lésbicas geralmente deixam traços efêmeros e incomuns. Na ausência de
documentação institucional ou em oposição a histórias oficiais, a memória se torna
um valioso recurso histórico, e coleções de objetos efêmeros e pessoais se firmam ao
lado de documentos da cultura dominante para oferecer modos alternativos de
conhecimento. (CVETKOVICH, 2003, p.8)

Essa predisposição ao efêmero e à mutabilidade, própria do formato precário do zine,


impede que a escrita se condense absolutamente, beneficiando autorias que, como Rodríguez,
duelam contra o peso das palavras. Complementarmente, nota-se que o método de escrita e
organização da autora se adapta ao formato do zine, pois adere (senão acolhe) ao intercambio
da paginação: mesmo se as sequências das folhas forem alteradas, é possível rearticular a escrita
conferindo-lhe novo sentido, visto que Rodríguez dispõe em seus zines trechos breves e frases
soltas, fragmentos que, em sua maioria, ocupam no máximo uma página, dispostos na vertical
e na horizontal e de ordenação pouco relevante ou totalmente irrelevante.
152

O corpo do texto é reorganizável como o corpo do monstro e os corpos de


travesti/trans* que passam por transformações somáticas. Dessa forma, a escrita de Rodríguez,
que é fragmentada, “incoerente” e sem ordem ou progressão precisas (por exemplo, o livreto
Cuerpos para Odiar esboça uma cronologia desafiadora, que oscila saltando inesperadamente
na linha do tempo), é ideal para o suporte que abarca essa plasticidade, ou seja, o zine agencia
e dá boas vindas a esse corpo textual incoerente, que navega as temporalidades de forma
errática.
Conforme mencionado no tópico anterior, a desconexão entre os trechos da escrita de
Rodríguez parece emular a fragmentação da vida travesti/trans*. O descontínuo e a falta de
rigor biográfico afirmam a maneira despretensiosa como ela dá contornos à sua figura e narra
suas experiências, destoando, por exemplo, do “sujeito coerente” das narrativas autobiográficas
oficiais (e mediadas por instituições literárias e editoras) analisadas por Jay Prosser em Second
Skins:

A autobiografia traz alívio à separação da vida transexual [...]. Eu era mulher, eu


escrevo como homem. Como unir as duas partes? Como criar um sujeito coerente?
Precisamente através da narrativa. No processo de recontar, a continuidade narrativa,
a trajetória da autobiografia (traçar a história de um único eu), promete, assim como
a própria transição transexual, a união das duas partes em uma “vida” única e
conectada. (PROSSER, 1998, p.102)

Pode-se dizer que o trabalho de Rodríguez tem caráter autobiográfico, mas não se
adequa ao gênero da biografia. Por exemplo, em suas poesias travesti, a autora mistura seu
corpo e suas histórias às de suas amigas. Com esse gesto que aglomera e justapõe experiências
marginalizadas, Rodríguez borra a autoria e dilui seu corpo numa multidão, impossibilitando
atribuir contornos precisos à subjetividade travesti. Assim, a opção pela escrita que incorpora
diversas experiências pode ser interpretada como tentativa de despistar os vetores identitários
que tentam condensar e simplificar o que a categoria “trans*” poderia significar. Essa estratégia
é recorrentemente usada em outros projetos autônomos: em seus livretos, Susy Shock também
conta histórias de suas amigas, compilando relatos dissonantes e, de forma semelhante, os zines
colaborativos Sapatoons e Quimer(d)a incorporam histórias de diferentes pessoas que
compartilham uma rede afetiva: sendo “feitos por e para a comunidade”, esses zines aportam
representações múltiplas e reúnem experiências dissonantes e antagônicas baixo uma mesma
insígnia.
Se, de acordo com Prosser (1998), a autobiografia é por excelência o gênero literário
trans* e também o local onde se pretende articular um “sujeito coerente”, vemos nos zines
153

autobiográficos um movimento divergente, que desestabiliza as categorias identitárias


principalmente através do emprego de tropos monstruosos e animalizados. É pertinente pontuar
também que a autobiografia oficial é muitas vezes mediada por instituições (depende de apoio
financeiro, tem trechos censurados pela editora, requer uma linguagem ampla etc.) que
negociam o conteúdo, uma vez que visam a um público massivo, o que demanda certo
abrandamento. Como consequência, muitas autobiografias são editadas e reformuladas
(aplicando gramáticas e vocabulários que não correspondem necessariamente às subculturas
representadas) para atingirem uma audiência maior. Diferentemente do zine autobiográfico,
muitas publicações oficiais autobiográficas trans* são orientadas a “explicar” a própria
experiência dissidente, o que implica traduzi-la para um quadro de inteligibilidade pautado pela
cisgeneridade66.
É também pertinente pontuar que as publicações autônomas (como os zines) são os
suportes mais eficientes contra a censura: a vantagem considerável que oferecem em relação às
mídias sociais e aos blogs (cujo conteúdo é constantemente monitorado, denunciado e editado
pelo público e por corporações) faz dos projetos literários autogeridos um meio privilegiado de
autorrepresentação para os corpos excluídos do domínio simbólico. Nesse sentido também o
zine oferece um local de cultivo de culturas e linguagens dissidentes, praticamente ininteligíveis
fora das comunidades interpeladas, afinal, conforme afirmado por Adela Licona: “[zines eram]
as vozes variadas do mundo subterrâneo expressando sua identidade através das fendas do
capitalismo e nas sombras dos mass media. Zines estão falando para e pela cultura
underground” (LICONA, 2012, p.2). Nessa esteira, faz-se pertinente sinalizar algumas
considerações sobre o público e a escrita intracomunitária, especialmente focalizando a
intenção da autora de acessar a população travesti/trans*, em sua maioria marginalizada da
alfabetização e letramento.

4.4 PRAZAMIGAS: LÍNGUAS E FERIDAS INTRACOMUNITÁRIAS

66
Um exemplo emblemático de como o vínculo institucional transforma o conteúdo e orienta o/a leitor/a
é disposto em Queda para o Alto de Anderson Herzer, cuja experiência análoga à transmasculinidade (termo então
indisponível e não utilizado na autorrepresentação do autor) é antecipada e explicada por uma psicóloga e pelo
organizador do livro no prólogo, de forma a violar e deslegitimar de antemão o quadro autorrepresentativo ofertado
pelo autor ao longo de seu exercício autobiográfico.
154

Ainda que Rodríguez questione a validade de escrever para a comunidade trans* e


travesti – “de que nos pode servir falar às travestis se é impossível ter carinho por elas?”
(RODRÍGUEZ, 2015, p.13) –, lê-se na dedicatória de seu zine mais popular Dramas Pobres:
“A todas minhas amigas travestis, que morreram de AIDS sem ter escrito uma única carta de
amor” (RODRÍGUEZ, 2015, p17). Essa passagem apresenta o público pretendido e, além de
orientar acerca do tipo da linguagem que será empregada, denota que a motivação da autora
seria alimentar sua comunidade. Pode-se dizer que muitos zines têm como força motriz a
prerrogativa de mobilizar uma cultura e uma rede afetiva dissidente: por exemplo, o zine
Sapatoons surgiu da necessidade de criar comunidades e de difundir saberes e experiências
marginalizadas a partir da materialização e da circulação da cultura imaterial produzida por um
grupo afetivo expandido.
Além de contar suas histórias pessoais, Rodríguez também mistura em seus zines suas
vivências com as de suas amigas e compõe uma espécie de arquivo (de memórias, cartas,
saberes etc.), em que as narrativas, os acontecimentos e as histórias de uma comunidade são
inaugurados na forma de literatura. Essa mistura do corpo pessoal (autobiográfico) com outros
corpos travesti (ou seja, a proposta de expansão do sujeito do texto) mobiliza uma corporalidade
autoral coletiva capaz de rebater a solidão estrutural e a alienação que enfrentam. Visto que se
trata de uma população em sua maioria expulsa dos ambientes formais de ensino e da
alfabetização, essa estratégia sugere também que a autora reconhece a possibilidade de escrever
como um privilégio e, por isso, também como uma dívida com sua comunidade:

Por mis amigas travestis que sufren más, porque son menos escuchadas que yo, que
no hablo sino que grito con todo mi sida que es el silencio y los silenciadores los que
nos matan, que no se muere ni de sida, ni de pobre, ni de FEA, por eso no voy a
guardar silencio, porque se muere de callar, es por eso que no voy a ser obediente y
voy a volver infinitamente a la conquista de la voz para nombrar todo lo que en
nuestras vidas aun no tiene nombre, aunque digan que no es conveniente nombrar el
horror en nosotras, porque han sido tantos siglos, que en nuestros casos tanto silencio
forzado, el tamaño de la venganza tiene un olor corrosivo en nuestros nombres,
guacha sin tierra, quiltra sin sangre, guaren sin história, que hoy no tenemos deudas
con nadie, la única deuda que tenemos por pagar es entre nosotras travestis, antes de
morir derrotadas, solo entre nosotras mismas67. (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem
data).

67
Tradução: “Por minhas amigas travestis que sofrem mais, porque são menos escutadas que eu, que
não falo, senão grito com toda a minha AIDS que é o silêncio e os silenciadores quem nos matam, que não se
morre de AIDS, nem de pobre, nem de FEIA, por isso não vou guardar silêncio, porque se morre de calar, é por
isso que não vou ser obediente e vou me voltar infinitamente à conquista da voz para nomear tudo o que nas nossas
vidas ainda não tem nome, ainda que digam que não é conveniente nomear o horror em nós mesmas, porque foram
tantos séculos, que em nossos casos tanto silêncio forçado, o tamanho da vingança tem um cheiro corrosivo em
nossos nomes, criatura sem terra, bicho híbrido sem sangue, ratazana sem história, que hoje não temos dívidas
com ninguém, a única dívida que temos que pagar é entre nós travestis, antes de morrer derrotadas, só entre nós
mesmas”.
155

Pensando nos desafios implicados em proposições como as de Rodríguez e de


Sapatoons, que almejam um público marginalizado e majoritariamente expulso da escolaridade
formal, é interessante refletir sobre a crítica de Trinh Min-ha reforçada no trabalho de Adela
Licona:

Trinh observa como para aquelas/es que se intitulam autores “no contexto de uma
comunidade em que a maior parte ‘não só não consegue ler como também pensa que
ler é uma perda de tempo’ (gossett), ser a/o “escrivã/o da vizinhança” é sem dúvida
uma das formas mais gratificantes e despretensiosas de dedicar-se aos seus”.
(LICONA, 2005, p.36)

Apesar da intenção de quebrar o silenciamento histórico de travestis, Rodríguez se


mostra consciente do fato de que algumas de suas amigas travestis não se beneficiam ou se
engajam com seu trabalho e até mesmo debocham de sua escrita, invalidando suas produções.
A autora reconhece que, em muitos sentidos, seus zines a afastam da sua comunidade
justamente devido ao privilégio que detém por saber ler e escrever. Diante desse conflito, a
estratégia utilizada é a incorporação dessa crítica em sua escrita:

La Delirio me grita en la calle: eeeeella la poeta... qué pretenciosa soi, cuando deci
que escribi Poesia. Nada de lo que me lees rima ¡Maraca! Escribir es otra cosa, no
es lo que deci que haci. La escritura primero que nada ¡weona! Es de cosas bellas,
no porquerías. La escritura no pueden ser las mismas conversaciones de todos los
días, ni mis problemas. Si el este me pega, eso, no puede ser literatura. […] maraca!
Las cortadas que tengo no deberían ser ni una palabra que recordar, sino lo
contrario, pura vergüenza y fracaso. La poesía, como deci vo, no e ni amarga, ni
venenosa68. (RODRÍGUEZ, 2011, sem paginação)

A autora incorpora esse diálogo em sua publicação postulando justamente o referido


dilema e as contradições que encontra ao adentrar a literatura. Pode-se dizer que o fracasso que
sua amiga Delírio identifica ao criticar sua poesia é incorporado como elemento principal do
projeto autoral de Rodríguez: sua escrita pode ser enquadrada junto a outras proposições
literárias que, conforme sinalizado por Valeria Flores (também em zine), “não buscam nem
revelam verdades, senão experimentam uma política da língua como um gesto de di/inter/ferir
algumas linguagens mais ortodoxas” (FLORES, 2014, p.12). Nesse sentido, se faz pertinente

68
Tradução: “A Delírio grita na rua: eeeeeeela a poeta… que pretenciosa é, quando diz que escreve
Poesia. Nada do que você lê pra mim rima. Vadia! Escrever é outra coisa, não é o que você diz que faz. A escritura
mais que nada, miga, é de coisas belas, não imundices. A escritura não podem ser as mesmas conversas de todos
os dias, nem meus problemas. Se aquele lá me bate, isso, não pode ser literatura [...] Vadia! Os cortes que tenho
não deveriam ser nem uma palavra pra recordar, ao contrário, pura vergonha e fracasso. A poesia, como você diz,
não é nem amarga, nem venenosa”.
156

analisar as características singulares que a escrita de Rodríguez agencia para representar seus
conflitos com a linguagem e com a escrita. Para tanto, no próximo tópico analisarei alguns
recursos linguísticos inaugurados pela autora, em especial a (h)ortografia e o errorismo, que
permitem um retorno ressentido e resistente à linguagem.

4.5 (H)ORTOGRAFIA COMO ESTILO E GÊNERO DE UMA ESCRITA TRAVESTI

Na passagem em que referencia o Homem Elefante, Rodríguez evoca o monstro


europeu que se humaniza ao se apossar da linguagem, mas o faz somente para expressar sua
recusa desse ato e para afirmar um uso alternativo da palavra. Sua fala e sua escrita não são
capazes de humanizar e salvá-la, seu grito “ternamente sublimado em palavras” ao mesmo
tempo em que a inaugura no simbólico, se introduz enquanto despertencimento e ainda como
morte nesse domínio, conforme argumentarei mais adiante. O ato de escrever situa Rodríguez
num entrelugar: quebra seu silenciamento, mas também a mantém à margem da tradutibilidade;
explicita a hipervisibilidade do corpo travesti, mas adiciona uma camada borrosa a essa
imagem; ou seja, nomeia a dissidência com uma pronúncia trêmula e imprecisa. Essa ideia se
explicita principalmente quando a autora afirma: “No sé hablar pero no soy muda69”
(RODRÍGUEZ, 2014, p.15), indicando a opacidade (em oposição à clareza) dos processos
enunciativos típicos das monstruosidades com as quais se alinha. Ao mesmo tempo, quando
Rodríguez afirma que não sabe falar, mas não é muda, sugere possuir linguagem própria, talvez
inaudível ou ininteligível aos ouvidos institucionais.
Talvez a forma como o Homem Elefante adentra a linguagem e as particularidades da
escrita horrorista de Rodríguez tenham um ponto em comum: as marcas do corpo dissidente no
registro vocal (no caso do Homem Elefante) e no componente ortográfico (no caso da travesti),
que podem ser interpretadas como sinalizadores de uma subjetividade monstrificada e
marginalizada, bem como excluída do registro literário. Ou seja, a linguagem articulada
(in)adequadamente (porque condicionada e moldada pela alteridade) expressa um
agenciamento intersticial e desautorizado do simbólico, em especial no que diz respeito aos
cânones literários. Da mesma forma que os tumores faciais de Merrick dificultam a
compreensão de sua fala e geram um impacto visual que o empurra às margens das instituições
(educação, família, saúde, amor, trabalho etc.), a escrita e o corpo de Rodríguez são também ao
mesmo tempo produtos e processos (causa e efeito) de sua expulsão dos canais hegemônicos

69
Tradução: “não sei falar mas não sou muda”.
157

de acesso ao simbólico. A esse respeito, comentando como se deu a escrita de seus zines, a
autora coloca que começou “primero por enfrentar los recuerdos, luego traducirlos en palavras
y por ultimo escribirlos como fuera, ortografia y mala redaccion70” (RODRÍGUEZ, 2015,
p.13).
Em vez de demonstrar resignação, a autora explicita, em tom hipervigilante, as
deformidades de sua gramática e de seu vocabulário subalternizados. Rodríguez ressalta esses
signos de equívoco (má redação e falta de ortografia) empregando uma “(h)ortografia”, ou seja,
o processo literário que, ao mesmo tempo em que exalta as complexas camadas de sua exclusão,
representa o silenciamento estrutural (emudecimento/inaudibilidade) no campo articulatório,
explicita sua hipervisibilidade no domínio especular e forja uma inserção obtusa na linguagem:

Dicen que no se escribir. No sé de ortografia. No todas las palabras tienen letras


mudas. Pensaba que la ortografia se escribia com h, pero no, estaba completamente
revuelta. La letra h es muda como tonta. Se me tupen los acentos y las comas, pero
sobre todo desordeno el camino de las palabras. Mi mamá me dice que soy tonto.
Generalmente tuerzo la dureza de las cosas. No sabia que no saber escribir era tan
malo71. (RODRÍGUEZ, 2014, p.24.)

Identificando-se com as letras mudas, a autora ressalta o equívoco, a presença


inaudível e a ausência quase constante (“não é todas as palavras que têm letras mudas”) que
compartilha com a letra “h” e, dessa forma, narra o processo de dar-se conta de que esteve, sem
saber (“não sabia que não saber escrever era tão ruim”), trancada do lado de fora da literatura
rumo à qual agora se desloca erraticamente com sua “hortografia”.
Ao evocar as letras mudas forjando uma analogia às escritas travestis, a autora recorre
a um signo inaudível que simboliza o silenciamento estrutural (implicando o vazio da
enunciação e a impossibilidade da escuta) dos/as subalternizadas/os: na analogia, Rodríguez
sugere que, embora emudecidas ou inaudíveis, as travestis estão imbricadas na construção das
palavras (como a letra “h” nas palavras “hoy”, “haber”, “hembra” etc.), mas não são percebidas
como parte integral da composição do mundo das palavras e das coisas, em parte devido ao
roubo de seu status enunciativo e à invalidação de seus saberes. Sua escrita opera, então,
opondo-se à ortografia e aos saberes hegemônicos e explicita como a linguagem foi estabelecida

70
Tradução: “primeiro enfrentando as recordações, depois as traduzindo em palavras e por último as
escrevendo como seja, sem ortografia e [com] má redação”.
71
Tradução: “Dizem que não sei escrever. Não sei de ortografia. Não é todas as palavras que têm letras
mudas. Pensava que ortografia se escrevia com h, mas não, estava completamente alterada. A letra h é muda como
é tonta. Os acentos e as vírgulas se aglomeram, mas, sobretudo, desordeno o caminho das palavras. Minha mãe
me diz que sou tonto. Geralmente torço a dureza das coisas. Não sabia que não saber escrever era tão ruim”.
158

privilegiando-se algumas experiências e negando-se outras, hierarquizando-se conhecimentos


e estabelecendo-se ignorâncias através de uma arquitetura colonial.
O projeto de Rodríguez implica, portanto, uma escrita obtusa, capaz de evidenciar
como a linguagem está implicada em processos de exclusão, uma vez que gera e ao mesmo
tempo suprime aquilo que não deve ser dito, o que não tem nome e o que não deve existir. Essa
ideia ecoa quando a autora afirma que “hay cosas que se viven y no se ha permitido que sean
escritas, para asegurar que el mundo sea por sobre todo su mundo. Mi tema es escribir de la
forma y de las cosas que según el mundo nacieron maltrechas 72” (RODRÍGUEZ, 2015, p.15).
Analisando criativamente essa passagem, sugiro que o componente “aleijado” é
empregado para confrontar a normalidade que se naturalizou excluindo a autora dos canais
hegemônicos de produção de conhecimento, dentre eles, a literatura. Complementarmente,
além da referência à letra “h”, Rodríguez evoca em sua (h)ortografia outros signos aberrantes
ou “deformados”, que dificultaram um emprego mais intuitivo da gramática e oferecem mais
locais de identificação: “Había letras mudas, dobles y raras” (RODRÍGUEZ, 2014, p.43). Ao
mesmo tempo em que se vê traída pela ortografia, Rodríguez se reconhece nas letras deformes,
“deficientes” e ocultas, ou seja, naquelas que não correspondem à pronúncia (da mesma forma
que seu gênero não corresponde ao pronome masculino que a interpela constantemente: “mi
mamá me dice que soy tonto”) e cujo emprego é enganoso: “todavía, que dicen que se escribe
con v corta, porque hay letras mudas, largas y cortas.” (RODRÍGUEZ, 2014, p.32) Assim
sendo, enveredando-se no (fa)logocentrismo, delatando a contingência das regras gramaticais
(“que dizem que se escreve [assim]”) e desconfiando das verdades que a ortografia e a
linguagem autorizada prometem, a autora se detém especialmente nas letras deformadas,
silenciadas ou exiladas para comentar acerca de sua própria exclusão da linguagem.
Pode-se dizer que a deformidade enfatizada é expressa tanto no conteúdo (as
experiências travesti) quanto na forma e no suporte (o formato do zine, a disposição
fragmentada do texto, o vocabulário e a ortografia) que compõem e abarcam seus textos. A esse
respeito, o emprego de uma gramática incorreta (“aleijada”) pode ser percebido tanto como
indicativo de ignorância (signo do “não-saber”, conforme argumentarei adiante), como também
enquanto intervenção crítica: quando, por exemplo, Rodríguez escreve “holiwood” (em vez de
“Hollywood”) e referencia a atriz “Pamela Anderssen” (Pamela Anderson) esboça resistência

72
Tradução: “existe coisas que se vive e que não foi permitido que sejam escritas, para assegurar que o
mundo seja sobretudo seu mundo. Minha ideia é escrever da forma e das coisas que, segundo o mundo nasceram
aleijadas”.
159

ao imperialismo cultural e desterritorializa propositadamente esses signos a uma nova ordem


simbólica. Outra particularidade de sua (h)ortografia é a incorporação da pronúncia oral na
escrita, como, por exemplo, quando escreve “maere” em vez de “madre” e “peluo” no lugar de
“peludo”. Esse artifício do coloquialismo aproxima a escrita da oralidade, que é o veículo
principal de difusão e circulação de saberes, histórias e dialetos da cultura travesti, sendo
atualmente a fonte principal para a composição de arquivos das experiências dissidentes.
A intencionalidade dessas escolhas gramaticais é teorizada no zine Manifiesto
Horrorista, em que Rodríguez coloca que o “‘errorismo’ es uma posición filosófica
equivocada, ritual de la negación, una organización desorganizada: la falla como perfección,
el error como acierto”73 (RODRÍGUEZ, Manifiesto Horrorista, sem data e sem paginação).
Essa colocação sugere que o não-saber implicado na proposta errorista não é contingencial e se
trata, antes, de um método de denúncia da invalidação dos saberes subjugados e de uma
estratégia inusitada, conforme argumentarei mais adiante.

4.6 “ERRORISMO” E O “NÃO-SABER”: FERRAMENTAS PARA INTER/FERIR N/A


LINGUAGEM

“A mis amigas les da miedo el fin del mundo pero yo me rio como una loca cuando
me rio. A veces me ahogo de tanto pensar en serio y me enfermo de pulmonía de no saber
escribir como la gente” (RODRÍGUEZ, 2014, p.32)

“Attempting to know everything is a colonial epistemology in which. I refuse to be


complicit” (ROSE, 2019, p.241)

73
Tradução: “‘errorismo’ é uma posição filosófica equivocada, ritual da negação, uma organização
desorganizada: a falha como perfeição, o erro como acerto”.
160

Figura 27 – Página do zine Dramas Pobres

Fonte: Rodríguez (2007)

Servindo-se de seus saberes descartados e considerados ignorantes, em seus zines


Rodríguez emprega estratégias erráticas capazes de desvelar os sistemas que subalternizam
conhecimentos e corpos. O “errorismo”, componente integral da (h)ortografia que orienta sua
escrita, ecoa em sua monstruosidade e tem como premissa o “não-saber” e a alienação que
oferecem entradas enviesadas na linguagem, resultando em sua deformação.
Inclinando-se em direção a uma micropolítica separatista, a referida ênfase na
alienação (como efeito do não-saber) desponta recorrentemente em diferentes projetos
monstruosos autorrepresentativos sudacas, nos quais o desconhecimento e a recusa dos saberes
hegemônicos são premissas declaradas. Por exemplo, combinando humor e ironia, no zine de
quadrinhos Quimer(d)a a transmasculinidade é corporificada por uma personagem híbrida
(humano-animal): o lobisomem-trans*, cuja selvageria simboliza ao mesmo tempo filiação a
subculturas dissidentes e total desconhecimento dos saberes hegemônicos. Vislumbrando um
câmbio radical de paradigmas, algumas das histórias em quadrinhos em que essa figura aparece
articulam o “não-saber” como premissa separatista e propõem a descentralização da norma para
lançar um olhar de estranhamento aos rituais e à cultura cis-heteronormal:
161

Figura 28 – Trecho zine Quimer(d)a


162
163
164
165
166

Fonte: Arruda (2016)

Nessa história em quadrinhos a personagem aparece em uma consulta ginecológica e,


a cada interação que presume ou reforça a norma cis-hetero-reprodutiva, oferece respostas
inusitadas que desorientam as perspectivas hegemônicas. Nessa representação animalizada da
167

subjetividade transmasculina, a leitura equivocada e a sugestão de alienação total do que a


norma prevê articulam o estranhamento como componente humorístico. É pertinente observar
que, quando interpelada através de uma perspectiva alheia à sua cultura e à sua subjetividade,
em vez de reagir de forma responsiva, a criatura assume muitas vezes uma postura introspectiva
e suas reflexões apresentam à/ao leitor/a uma visão de mundo que incorpora o “destino trágico”
(acata, por exemplo, o diagnóstico médico inferido) e, ao mesmo tempo, desorienta os sistemas
identitários hegemônicos. Operando com uma postura separatista, a figura induz uma
automonstrificação ao reivindicar o próprio despertencimento nas estruturas sociais. Dessa
forma, ao mesmo tempo em que expõe a norma, o lobisomem-trans* a ridiculariza e aponta
para novos imaginários nem sempre propositivos ou otimistas.
O lobisomem-trans*, assim como outras monstruosidades travesti/trans*, se impõe no
domínio social contrariando as expectativas que lhe conferem inexistência ou as visões de
mundo que o aniquilam. A insistência numa presença (“aqui estou”) monstrificada e a recusa
em explicar e/ou negociar a própria identidade reforçam essa postura separatista, que celebra a
própria alienação. É interessante pontuar também que a monstruosidade da personagem
lobisomem-trans* não opera enquanto identidade: sua transformação em monstro é contingente
e eclode principalmente quando a transmasculinidade se faz ininteligível em interações sociais
(no olhar da médica e das demais personagens que o interpelam como criança, como lésbica ou
como sujeito protomaternal).
Assim sendo, não há, por parte da personagem, investimento em salvar-se da condição
de monstro (traduzindo seus saberes e sua identidade num quadro inteligível a seus/suas
interlocutores/as), visto que não há desejo nem possibilidade de ser assimilada na cultura
hegemônica. Pode-se dizer que a presença inusitada e inassimilável do lobisomem-trans* tem
sua premissa calcada no “não-saber” (desconhecimento absoluto da cultura cis-hetero-
reprodutiva e recusa em operar dentro de seus parâmetros) e na sugestão de uma dimensão
paralela dissidente que agencia saberes internos invisíveis ou imprevisíveis – que não poderiam,
portanto, ser catalogados como “saberes”.
Em seus zines Rodríguez também exalta um repertório de saberes marginais reunidos
e agenciados secretamente: “Una sabe que los que te miran de reojo, arrastran uma sombra
que sabes leer. Sabes leer las sombras y oler a los gárgolas”74 (RODRÍGUEZ, 2014, p.93). E,
ao mesmo tempo, em diversas passagens, referencia o “não-saber” enquanto

74
Tradução: “uma [travesti] sabe que os que te olham de canto de olho, arrastam uma sombra que você
sabe ler. Você sabe ler as sombras e cheirar os gárgolas”.
168

debilidade/vulnerabilidade, em especial referindo-se à linguagem como arma usada contra a


sua comunidade: “Aunque ni siquiera lo entendamos, ni lo imaginemos, el no saber leer ni
escribir nos construye como cuerpos para ser odiadas”75 (RODRÍGUEZ, 2014, p.69).
Nesse trecho a autora menciona a incapacidade de revidar a ataques epistemológicos
que sequer podia reconhecer. Embora essa passagem assuma um “teor negativo”, na coleção de
seus escritos há uma certa ambivalência no que diz respeito às potências e aos efeitos do “não-
saber”: se, por um lado, o contato com a linguagem, com o conhecimento e com a civilidade
ensinam sobre seu despertencimento (Rodríguez vai à escola para aprender que era feia, que
não era menina e que não sabia); a alienação absoluta (nem sequer entender ou imaginar que
não se sabe) pode apontar para prazeres e potenciais inusitados. Ou seja, vislumbra-se também
um componente oportuno na premissa do não-saber:

Todo el mundo dijo que nadie me podría querer, pero como una sorda, como una
travesti estúpida incapaz de leer el mundo, me hice la linda. Y aquí estoy, hambrienta.
Aprendí a copiar el maquillaje de la burguesía para ocultar mi hambre y mi necesidad
de amor.76 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data / sem paginação. Grifos Meus)

Nesse trecho, espelhando-se mais uma vez na deficiência, Rodríguez apresenta o não-
saber como ferramenta de resiliência: a ignorância (“fiz a egípcia”) se transforma em resistência
às expectativas da hegemonia, configurando assim um emprego artificioso do não-saber que
permite desorientar momentaneamente a rota que invariavelmente a capturará no seu destino
trágico, ou seja, a promessa de tornar-se um “corpo para ser odiada”. A proposta do “errorismo”
pautado pela declaração do não-saber não previne, portanto, que a autora reconheça ou sofra os
efeitos desse sistema de opressões (afinal, está faminta), mas oferece um fator surpreendente
de resistência: “E aqui estou, faminta.”. Esse elemento possibilita seu atravessamento rumo ao
simbólico e aos outros domínios que lhe foram negados, conforme argumentarei ao longo deste
capítulo.

4.7 (H)ORTOGRAFIA, HIPERVISIBILIDADE E ININTELIGIBILIDADE: O MONSTRO


NO REGIME ESPECULAR

75
Tradução: “ainda que sequer entendamos, nem imaginemos, não saber ler nem escrever nos constrói
como corpos para ser odiadas”.
76
Tradução: “Todo mundo disse que ninguém poderia me amar, mas como uma surda, como uma
travesti estúpida incapaz de ler o mundo, fiz a egípcia. E aqui estou, faminta. Aprendi a copiar a maquiagem da
burguesia para ocultar minha fome e minha necessidade de amor”.
169

“¿Qué era ser analfabeta? ¿Era lo mismo que ser fea?” (RODRÍGUEZ, 2014, p.16)

Imaginando outras analogias embebidas na noção de (h)ortografia, cabe relacionar e


diferenciar o componente visual (a visibilidade) do elemento articulatório (audibilidade e
mudez) no tocante ao emprego da letra “h” como signo que representa ao mesmo tempo a marca
da escrita travesti e seu silenciamento. Conforme argumentado no capítulo anterior, o exílio da
linguagem mencionado por Rodríguez seria, segundo Peter Brooks e Jack Halberstam, uma das
principais características da monstruosidade crua (com a qual não se pode fazer nada, a não ser
apontar com o dedo): “o monstro não poderia jamais aceder ao simbólico, ele está para sempre
preso no imaginário devido à sua aparência medonha” (HALBERSTAM, 1995, p.44). Esse
componente visual aberrante representado pela inclusão da letra “h” em (h)ortografia exige uma
leitura responsiva e não compassiva, justamente devido à perturbação que sua não
correspondência às regras gramaticais gera na/o leitor/a. Tendo em vista que a ansiedade que a
letra “h” em (h)ortografia evoca (enquanto registro de desobediência) é efeito do seu impacto
no domínio especular, pode-se argumentar que a marca desse “equívoco” monstrifica o signo
linguístico, tornando-o hipervisível, como são os corpos de travestis. Assim sendo, aqui a letra
“h” e a subjetividade outrificada que representa aparecem simultaneamente como equívoco
aberrante hipervisível e como expressão de silenciamento/inaudibilidade: assim como o
monstro, a palavra “hortografia” tem um forte impacto visual (para aquelas/es familiarizadas/os
com a escrita convencional), mas quando pronunciada, a deformação ou diferença permanece
muda ou inaudível (silenciada).
Para exemplificar como essa ideia se relaciona com a experiência da autora, é
pertinente destacar um trecho do livreto Cuerpos para Odiar disposto na figura abaixo.
170

Figura 29 – Trecho de Cuerpos para odiar

Fonte: Rodríguez (2014, p.65)

Nessa passagem se lê, no topo da página, a frase: “as primeiras palavras de um


monstro: ‘me incomoda ter genitais impostos’”. Logo abaixo está disposto um recorte da
publicação de 1997 do jornal La Nación que leva o título “Me incomoda ter genitais impostos”,
e cuja manchete informa: “Rodríguez, travesti, participou do seminário ‘Homossexualidade no
Chile’”. Justaposto ao corpo da reportagem (ilegível, recortada de sua versão original e
infelizmente indisponível nos arquivos virtuais do jornal), está disposta uma caricatura de
Rodríguez: seu retrato aparece grande, em primeiro plano e acariciando a cabeça de um homem
barbado, que está situado abaixo em menor escala e sinaliza (com os beiços) paixão ou interesse
sexual (representado por um coração que flutua entre as duas figuras). A autora insere também
uma legenda ao recorte do jornal, na qual contextualiza o evento e descreve a sua experiência
no seminário Homosexualidade em Chile, Nuevos Enfoques, que ocorreu na Universidad de
Santiago de Chile: “Essa foi a primeira vez que falei em público e ainda que tenha me esforçado
para ser inteligível, a atenção se concentrou na imagem de um homem vestido de mulher na
universidade”.
171

Aqui Rodríguez retoma com veemência o tema da escuta impossível e do fracasso na


tentativa de dominar a vernácula institucional para fazer ressoar seus saberes. Outra passagem
que expressa significativamente essa temática aparece na introdução à versão mais recente e
mais “oficial” de Dramas Pobres (publicação que se originou como zine e em 2016 foi
publicada no formato de livro): “Nosotras estamos adiestradas a la propia negación; por
ejemplo, en el âmbito acadêmico, para las ciências sociales, se dice que solo unos pocos
iluminados son los que generan conocimiento, por lo que para las travestis sería imposible
siquiera hacer reflexiones criticas sobre su percepción del mundo”77 (RODRÍGUEZ, 2015,
p.13).
Nessas passagens, a autora destaca o fracasso na tentativa de adequar seu vocabulário
ao do fórum universitário (“fazer-se inteligível”) e de ser levada a sério, uma vez que a
caricatura, assim como sua presença no espaço universitário, a aprisiona novamente no regime
especular e no estereótipo. Importa mencionar que, na experiência travesti – assim como na
experiência feminina de uma forma geral –, esse aprisionamento no campo visual é, em parte,
efeito da hipersexualização do corpo. Pode-se dizer que sua palavra não é capaz de superar o
que seu corpo representa e, diferentemente do monstro em Frankenstein e do Homem Elefante
(que se apoderando da linguagem da alta sociedade articulam pontes entre monstruosidade e
humanidade), a monstrualização travesti se dá quando o corpo-outro interfere no campo visual
inviabilizando a escuta. Portanto, outro componente que dá forma à monstruosidade de
Rodríguez não diz respeito propriamente à falta de vocabulário, nem mesmo ao emprego de
uma linguagem alternativa e separatista (como o Pajubá), mas, sim, se estabelece através do
bloqueio do registro articulatório por conta de perturbações ou “irregularidades” geradas no
domínio especular.
Como resposta, a autora recusa a articulação racional e reivindicativa e, desafiando as
regras ortográficas, rouba a enunciação através de uma escrita-monstra, limítrofe à razão e de
estética errante. Nesse exercício, Rodríguez elege para sua autorrepresentação monstruosidades
capazes de expressar a selvageria do seu dialeto ininteligível, a diferença ontológica que orienta
sua inaudibilidade e seu despertencimento nas categorias identitárias, conforme demonstrarei a
seguir.

77
Tradução: “Nós estamos adestradas à própria negação; por exemplo, no âmbito acadêmico, para as
ciências sociais, dizem que só uns poucos iluminados são os que geram conhecimento, motivo pelo qual para as
travestis seria impossível sequer fazer reflexões críticas sobre sua percepção do mundo”.
172

Neste extenso percorrido identifiquei camadas de monstruosidade imbuídas na forma


como Rodríguez acessa o simbólico, em especial a linguagem, diferenciando seus processos
enunciativos daqueles expressos pelo monstro em Frankenstein e pelo Homem Elefante. Cabe
então analisar como a (h)ortografia, o não-saber, a inaudibilidade, a hipervisibilidade no
domínio especular, o investimento contra-reivindicativo, a selvageria e a premissa de
aniquilação se condensam nos monstros que a autora seleciona para sua autorrepresentação, em
especial a figura de King Kong.

4.8. PROMESSAS E HORRORES DE UMA KING KONG TRAVESTI

Na análise da trajetória enunciativa de Rodríguez ressaltei a “hortografia”, o


“errorismo”, o “balbucio”, a hipervisibilidade no plano especular (vinculada à inaudibilidade
no domínio articulatório) e um vazio reivindicativo. Argumentei também que esses elementos
que recusam a linguagem dominante agenciam processos enunciativos monstruosos sudacas
particularmente distintos daqueles articulados pela criatura de Frankenstein e pelo Homem
Elefante, especialmente no que diz respeito ao emprego da razão. Cabe então aprofundar o
mapeamento da teratologia travesti/trans* sudaca e analisar como essas características se
condensam e se expressam nos monstros selecionados por Rodríguez e por outras travestis e
pessoas trans* em seus projetos autônomos autorrepresentativos. Para tanto, atenta-se
especialmente para as particularidades da escolha de King Kong como metáfora de
autorrepresentação travesti no breve trecho do zine Dramas Pobres:

Sé que cuando vea una película voy a llorar. Holliwood destruyó la ilusión de mi
infancia. Siempre los malos de las películas morían o quedaban tullidos, ninguno se
salvaba de su cruel destino. Cuando vi morir a King Kong supe que era a mí a quien
la industria estaba matando. No se puede ser tan grande, tan fea y vivir en el centro
de la ciudad.78 (RODRÍGUEZ, 2015, p.70)

Assim como a criatura em Frankenstein, King Kong pode ser considerado um monstro
totalizante, ou seja, que sempre retorna em diferentes contextos carregando significados
específicos, que representam as ansiedades e medos de determinado período e cultura.
Entretanto, diferentemente do monstro em Frankenstein (que evoca a ciência, a tecnologia e o
“artificial” desafiando a noção de “natureza”), o primata mobiliza um agenciamento subjetivo

78
Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.
Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando
eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia
e viver no centro da cidade”.
173

especificamente vinculado ao selvagem e ao incivilizado, estabelecendo-se recorrentemente


como vetor de identificação de populações dissidentes, racializadas e diaspóricas. A esse
respeito, Cynthia Erb comenta que “é definitivamente o potencial de King Kong de gerar vários
tipos de trabalhos sobre liberação e de protestos que ajudou a garantir seu lugar como ‘mito das
massas’ na cultura [norte-] americana e internacional” (ERB, 2009, p.257). Na extensa análise
que propõe acerca da receptividade de King Kong e destacando que o filme rendeu muitas
leituras investidas em gênero, raça, sexualidade, etnia e cidadania, a autora relaciona o status
de “ícone atemporal” do monstro ao fato de que ele interpela espectadoras/es dissidentes e
marginalizadas/os:

O filme incentiva identificação com King Kong como sendo uma figura animal
misteriosa, cujo domínio é violado por um cineasta de exploração arrogante, macho e
branco. Atacado e provocado repetidamente por esse cineasta, o macaco gigante
eventualmente se volta contra ele e se vinga. Minha hipótese é que o clamor de King
Kong pela identificação com a posição de um marginal atormentado tem sido
historicamente respondido por espectadoras/es que estão fora do “mainstream”,
incluindo artistas e audiências internacionais, gays, negras e feministas. (ERB, 2009,
p.2)

Pode-se dizer que a versão travesti de King Kong proposta por Rodríguez confirma
essa hipótese: em vez de identificar-se com a personagem feminina do filme (que, nas películas
de Hollywood, é geralmente uma mulher branca, de beleza hegemônica, não-deficiente, loira e
indefesa) ou com o herói no enredo romântico, a autora elege King Kong para sua
autorrepresentação, esboçando um comentário crítico ao binarismo de gênero e situando-se nos
interstícios formados por humano/não-humano, feminino/masculino, selvagem/civilizado,
branquitude/racialização etc.
Ao escolher uma figura que oscila entre vilão e anti-herói para sua autorrepresentação,
Rodríguez engendra uma desidentificação com King Kong. Conforme teorizado por José
Muñoz, a desidentificação se manifesta na experiência dissidente (queer) em virtude da
exclusão desse grupo da representação mainstream. O autor coloca que “dissidentes de
sexo/gênero/sexualidade [queers] nem sempre são ‘propriamente’ interpelados/as pelos
mandatos heterossexistas da esfera pública dominante” (MUÑOZ, 1999, p.), ou seja, esses
sujeitos “fracassaram em se girar ao chamado interpelativo da heteronormatividade ‘Ei, você
aí!’” (MUÑOZ, 1999, p.20). Em outras palavras, raramente nos encontrarmos diretamente
interpeladas/os ou representadas/os nos canais hegemônicos de produção de imagens (filmes,
174

televisão, revistas etc.), uma vez que priorizam as subjetividades cis-heteronormativas, que são
processo e produto de suas próprias representações reiteradas79.
Teorizando a “desidentificação”, Muñoz argumenta que, ao sermos excluídas/os do
chamado interpelativo mainstream, tendemos a criar maneiras enviesadas de identificação que
implicam a transformação e a adaptação dessas representações às nossas experiências e
subculturas. Nas palavras de Halberstam, esses “sujeitos queer estão sempre envolvidos em um
processo de reciclagem e de reelaboração dos significados codificados” (HALBERSTAM,
2014, p.143).
Analisando a recorrência com a qual a desidentificação se dá nos circuitos
contraculturais e underground, Muñoz sugere que a via desidentificatória opera ao mesmo
tempo dentro e fora da esfera pública dominante: “Desidentificação é o terceiro modo de lidar
com a ideologia dominante, um que não opta por assimilar dentro da estrutura estabelecida nem
se opõe a ela estritamente; em vez disso, a desidentificação é uma estratégia que funciona na e
contra a ideologia dominante” (MUÑOZ, 1999, p.11).
Nesse sentido, ao alinhar-se ao monstro em King Kong, Rodríguez se volta à cultura
dominante (em vez de recusá-la totalmente) e se serve de uma figura icônica para resistir à sua
exclusão do imaginário mainstream. Ou seja, acessando essa representação a contrapelo da
ideologia da indústria cultural, a autora agencia uma espécie de negociação com a cultura
dominante: sua identidade desviante acede ao repertório imagético (domínio que lhe foi negado)
através de uma identificação enviesada, que permite uma ficcionalização de si pautada na
afirmação de diferenças (de raça, de sexo, de gênero, de sexualidade, de cidadania, de
temporalidade etc.).
Ao se desidentificar com King Kong Rodríguez trabalha dentro da cultura dominante,
mas também contra ela, uma vez que seu alinhamento com a criatura (ou com vilões, de uma
forma geral) não era esperado ou desejado pelas instituições culturais: “desidentificar-se é ler a
si mesma/o e à sua narrativa de vida num momento, objeto ou sujeito que não é culturalmente
codificado para ‘conectar’ com o sujeito desidentificante” (MUÑOZ, 1999, p. 12). King Kong,
o animal selvagem cujo destino trágico é premeditado antes mesmo do filme começar, não é

79
Em seu trabalho, ao enfatizar que “o sistema sexo/gênero é tanto um construto sociocultural quanto
um aparato semiótico, um sistema de representação que designa significados (identidade, valor, prestígio,
localização no parentesco, status na hierarquia social etc.) aos indivíduos de uma sociedade” (DE LAURETIS,
1987, p. 5. Grifos Meus), de Lauretis identifica o cinema como sendo uma tecnologia social – faz menção ao
aparato cinematográfico, o analisa como “um processo semiótico em que o sujeito se vê continuamente envolto,
representado e inscrito na ideologia” (1987, p. 12) – e explicita que se trata simultaneamente de uma tecnologia
de gênero. Resumidamente pode-se dizer que a noção de “tecnologia de gênero” sintetiza a ideia de que gênero é
ao mesmo tempo o produto e o processo de sua própria representação.
175

uma figura criada para gerar identificação ou para representar as noções de pessoidade, de
futuro da nação e da cultura cis-hetero-reprodutiva. Ou seja, o monstro não é idealizado como
modelo para a subjetividade do humano. Pelo contrário, King Kong é muitas vezes lido como
narrativa de reiteração da soberania branca cis-heteronormativa e como representação que pune
a alteridade e regula as identidades dominantes.
Em alguns sentidos, espelhar-se em King Kong pode ser considerado um gesto análogo
a “desejar contra os próprios interesses”, uma vez que implica o desejo por uma existência em
conflito com os interesses do estado-nação, acionando, assim, certos riscos. Levando em
consideração essa ideia, pode-se dizer que as escolhas autorrepresentativas de Rodríguez, assim
como outras proposições dispostas em zines e projetos contraculturais dissidentes sudacas, não
estão sempre investidas em transformações sociais nem são articuladas de forma propositiva e
otimista: em vez disso, apontam para limites nos discursos endossados por muitas organizações
LGBTTQI, cujo trabalho se baseia em agendas políticas neoliberais que recorrentemente
clamam por visibilidade, direitos e humanidade.
Em vez de propor reivindicações assimilacionistas, através da desidentificação a
autora responde à sua exclusão e ao silenciamento com uma postura crítica e de objeção às
estruturas dominantes, acenando à contracultura tipicamente associada aos projetos autônomos
dissidentes. Uma proposta semelhante é disposta na capa do zine Quimer(d)a II, que, em vez
de celebrar a nova política de retificação de sexo e de nome para pessoas trans* no Brasil,
identifica possíveis armadilhas que chocam com os interesses de alguns grupos de pessoas
trans*.
176

Figura 30 – Capa zine Quimer(d)a #2

Fonte: Arruda (2018)

É interessante notar que, em vez de propor uma alternativa, a ilustração em questão é


investida em negatividade e esvaziada de otimismo e de teor reivindicativo. Tanto a King Kong
de Rodríguez como a figura que ilustra a capa do zine Quimer(d)a manejam
autorrepresentações contra propositivas que, em vez de oferecerem soluções, expõem
criticamente as estruturas sociais contextuais e os riscos de assimilação nas mesmas. Para tanto,
muitos projetos dissidentes apropriam-se das interpelações injuriosas (monstro, quimera,
merda, aberração etc.) e, tomando para si esses mesmos termos que os opressores e/ou
colonizadores cunharam, as reorientam para além do “positivo” ou do “negativo”. Essa é uma
das características fundamentais da escolha por autorrepresentações monstruosas e
animalizadas ou híbridas que operam através da desidentificação.
No exercício analítico aqui proposto argumentarei que, ao mesmo tempo em que a
desidentificação de Rodríguez com a criatura é respaldada por espectadoras/es dissidentes e
racializadas/os (conforme apontado por Erb), sua proposta, ao alinhar-se à monstruosidade,
diverge de muitas análises do filme calcadas em binarismos, já que, através da
177

autorrepresentação monstruosa, a autora pretende expressar sua experiência travesti sudaca para
além das polaridades “representação positiva versus representação negativa” ou “representação
real versus representação falsa”, esquivando-se da necessidade de produzir imagens e narrativas
romantizadas ou necessariamente “empoderadoras”. A desidentificação se ativa quando a
autora encontra na criatura um veículo de expressão das particularidades da dissidência que
incorpora, incluindo as camadas complexas e conflitantes da experiência marginal.
Também nesse sentido é importante salientar que a desidentificação é uma
reordenação de signos, que cita e ao mesmo tempo transforma os discursos sedimentados em
determinado objeto/sujeito/figura. Conforme explicado por Muñoz:

desidentificação, enquanto modo de entender os movimentos e circulações da força


identificatória, sempre exalta aquele objeto perdido da identificação; ela estabelece
novas possibilidades enquanto ao mesmo tempo ecoa o lócus cultural materialmente
perceptivo de qualquer identificação. (MUÑOZ, 1999, p.30)

Se a versão travesti da criatura cita e ao mesmo tempo recodifica um vasto repertório


discursivo que a antecede, faz-se necessário analisá-la em relação às leituras e interpretações
anteriores. Dessa forma se pode objetivar uma análise comparativa da figura de King Kong,
capaz de mapear os principais vetores de identificação sedimentados no imaginário cultural, em
especial no tocante à raça, colonialismo, cidadania, linguagem, patologização, violência
estrutural, sexo, gênero e sexualidade. Para tanto, é preciso observar as vias identificatórias
tradicionalmente evocadas em leituras contemporâneas do filme e atentar para as
transformações que esse processo de reciclagem propõe, entendendo a desidentificação de
Rodríguez com King Kong enquanto estratégia que expõe a exclusão e, ao mesmo tempo, a
reelabora para recrutar as identidades subalternizadas e outras posicionalidades que foram tidas
como “impensáveis” na cultura dominante.
Atentando às transformações que o processo de desidentificação promove e à recepção
histórica de King Kong enquanto ícone da marginalidade, proponho uma análise pautada pela
teratologia travesti/trans* sudaca (o ato de observar criticamente os monstros) visando
identificar como determinadas características dessa figura podem ser apropriadas e
recodificadas para representar a experiência travesti sudaca. Afinal, como uma King Kong
travesti refaz e reescreve o script dominante em King Kong? De que forma inaugura outros
olhares que se distanciam das análises já solidificadas na prática acadêmica? Com base nessas
perguntas, comparando diferentes interpretações e críticas de King Kong, nos próximos tópicos
analisarei a forma como a versão travesti aborda a linguagem, o gênero, a colonialidade, a
178

racialização, a patologização, a temporalidade e a violência estrutural, bem como os efeitos


desestabilizadores que essa figura agencia em sua nova concepção. Para tanto, primeiramente
convém recordar a trama de King Kong.

4.9 RELEMBRANDO KING KONG

A personagem de King Kong se tornou rapidamente um ícone do cinema: desde o


lançamento do primeiro filme, em 1933, diversas versões, paródias, sequências e livros se
multiplicaram inspirados na criatura, percebida tanto como monstro selvagem e destrutivo
quanto como anti-herói trágico. Levando em conta a data de publicação do zine de Rodríguez,
deduz-se que a película à qual a autora se refere seria provavelmente a versão de 2005,
extensamente difundida no cinema e na televisão.
O filme em questão representa a grande depressão norte-americana de 1933 e a
narrativa tem ênfase em três personagens humanos, além da criatura: o cineasta endividando
Carl Denham, que contrata a atriz desempregada Ann Darrow (única personagem feminina da
película) para atuar num filme escrito pelo roteirista Jack Driscoll, com quem mais tarde
formará par romântico. Em meio a uma crise financeira em seu estúdio de gravação, o cineasta
Carl foge da polícia e dos acionistas que cancelaram seu mais recente projeto e ardilosamente
convence Ann, Jack e uma pequena equipe cinematográfica a unir-se a uma tripulação de
marinheiros e embarcar às pressas em um navio rumo a Singapura. O destino pleiteado seria,
entretanto, a misteriosa Ilha da Caveira (Skull Island), disposta num mapa precário carregado
por Carl. Durante uma manobra para retornar a Nova York, o navio se desvia da rota, perde-se
e termina atracado na ilha que, por sua vez, é habitada por uma população nativa representada
como estereotipicamente primitiva, subdesenvolvida e racializada.
Em um confronto com a população do local, boa parte dos tripulantes e da equipe de
Carl morre. Posteriormente, Ann é capturada pelos nativos, que a amarram a uma estrutura de
madeira e a oferecem como sacrifício a Kong, um primata de 7,6 metros de altura aparentemente
cultuado pelos habitantes da ilha. Os gritos de Ann são sobrepostos pelo urro da criatura, cuja
audibilidade antecede sua presença visual na representação. Ao dar-se conta de seu
desaparecimento, Jack (que está apaixonado por Ann) convence a tripulação a retornar à ilha
em busca da atriz, enquanto Kong a arrasta pela floresta. Ao ver o primata de relance, Carl
vislumbra sua captura e passa a documentar o resgate. Kong leva Ann à sua morada e estabelece
com ela uma relação de amizade pautada pela curiosidade e por um vínculo de solidariedade.
179

Ann, inicialmente aterrorizada pela criatura e pelos esqueletos humanos ali dispostos, começa
a criar empatia pelo primata ao identificar nele demonstrações de senciência: a atriz tenta
comunicar-se com Kong entretendo-o com danças e malabarismos e negociando os seus limites
com o monstro.
Simultaneamente, numa batalha selvagem que inclui dinossauros e insetos gigantes,
alguns membros da tripulação e da equipe cinematográfica de Carl sobrevivem e avançam em
sua missão: Jack encontra a morada de Kong e resgata Ann (que se junta relutantemente aos
seus companheiros) enquanto Carl traça um plano para capturar o primata que os persegue no
caminho de volta ao navio em busca de Ann. Sob os protestos da atriz, a equipe seda e sequestra
a criatura, que é levada de navio para Nova York. Na cidade, Carl cria uma peça da Broadway
intitulada “Kong, a oitava maravilha do mundo”, que tem como atração principal o primata
acorrentado. Entorpecido e desorientado pelos flashes fotográficos, Kong confunde a atriz
(também loira) da peça com Ann e, ao perceber a diferença, durante um surto de fúria se
desvencilha das amarras, destrói o teatro e escapa para vingar-se de seu rival Jack e buscar Ann.
A criatura e sua amiga se encontram e dividem um breve momento de afeto: deslizam
pelo lago congelado, se divertem, riem e brincam numa cena afetuosa, até que o exército os
ataca com mísseis. Kong foge com Ann em suas mãos e escala o Empire State Building, mas
não resiste aos tiros da força aérea e, numa cena dramática, troca olhares profundos com Ann
enquanto seu corpo desliza caindo das torres. Ann é devolvida a Jack, a população geral e o
exército se aglomeram ao redor do cadáver de Kong e, na cena final, Carl aparece observando
o corpo da criatura e anuncia: “It wasn’t the airplanes. It was Beauty killed the Beast” (tradução:
“Não foram os aviões. Foi a Bela/beleza matou a Fera”).
Essa narrativa carregada de códigos de gênero, de discursos sobre raça e colonialismo,
de premissas capitalistas e representações (in)humanas é apropriada por Rodríguez, que se
desidentificando com King Kong, oferece comentários críticos sobre a colonialidade do gênero,
o travesticídio e a impossibilidade de comunicação entre ontologias-outras, conforme sugiro
adiante.

4.10 LINGUAGEM E KING KONG: INCLINAÇÕES À VIRADA (IN)HUMANA

“O monstro não é só fisicamente ameaçador, mas também cognitivamente


ameaçador: sua existência ameaça barreiras culturais” (RONY, 1996, p. 161)
180

“¿Como me iba a imaginar que no entendía?” (RODRÍGUEZ, 2014, p.40)

Ao desidentificar-se com King Kong, Rodríguez alude, entre outras coisas, à noção
iluminista de que a linguagem, associada à razão, configura um limite de separação entre o
deshumanizado (animal não-humano) e o humano. No filme, o primata nunca aprende a falar,
sequer utiliza a linguagem de sinais, tampouco reivindica que sua comunicação seja escutada
com atenção, como se fosse discurso. Os sons que emite são representados como ruídos e nem
sempre percebidos enquanto comunicação, como demonstrado na análise de Natasha Giardina
que, em seu artigo Queer eye for the Ape Guy?, interpreta King Kong como representação de
uma “masculinidade primitiva”: “A evidência primária da alegria de Kong são suas
demonstrações descontroladas de golpes no peito, acompanhadas de mais urros. É improvável
que esse rugir tenha significado linguístico” (GIARDINA, 2005, p.189).
Sua vocalização não articulada – que, de uma perspectiva antropocêntrica, não possui
significado linguístico – não conseguiria clamar por mudanças sociais ou reivindicar demandas
políticas. Se não há linguagem para reivindicar, de que mais pode servir a vocalização? Por
não estar formalizada como discurso, sua expressão se resume a puro barulho, que não passa
de uma perturbação aos ouvidos alheios. O ruído é, entretanto, uma qualidade marcante e
significativa do filme, conforme apontado por Fatimah Rony: “o que impulsiona o King Kong
adiante não é a dublagem ou os entretítulos do filme de pesquisa científica ou do filme de
etnografia lírica, mas som de um outro tipo – os gritos da heroína loira, o rugir de Kong, o gorila
gigante” (RONY, 1996, p.160). O barulho é inevitavelmente audível (em diversas cenas as
personagens humanas escutam a criatura se aproximando antes de vê-la) e engendra efeitos
reais (como a intimidação), entretanto, pode-se dizer que a comunicação humana não é
propriamente um investimento de King Kong. Essa criatura incide antes no confronto e explicita
a quebra da comunicação, ou seja, esse lugar inegociável, onde não há palavras ou onde as
palavras são tão outras que se tornam intraduzíveis. No interstício entre humano e
desumanizado e nas margens do discurso, os urros de King Kong se misturam com outras
linguagens não/humanas também muitas vezes inoperantes fora de seus ambientes originários,
como, por exemplo, o Pajubá das travestis brasileiras e a (h)ortografia dos zines de Rodríguez.
Na metáfora elaborada pela autora, a barreira que a King Kong travesti encontra para
aceder à linguagem inteligível é apresentada em sua intersecção com deficiência, raça e espécie,
evocando diferentes camadas de colonialidade enveredadas na formulação da ideia de
pessoidade. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao evocar o primata, Rodríguez faz ecoar a
181

perspectiva evolucionista darwinista enraizada no imaginário cultural, a qual descreve os


macacos como sendo uma espécie de “elo perdido”, ou seja, criaturas menos desenvolvidas,
que ocupam uma posição intersticial entre o humano e o animal na escala hierárquica da
evolução.
Ao mesmo tempo em que possui traços humanoides e compartilha importantes cargas
genéticas com o Homo sapiens, argumentou-se historicamente que primatas como os
chimpanzés são isentos de pessoidade devido a critérios aleatoriamente atribuídos pela
taxonomia cientificista como, por exemplo, a incapacidade de andar sob duas pernas
(bipedismo) e, especialmente, a impossibilidade de fala, historicamente associada, desde uma
perspectiva antropocêntrica capacitista, à inaptidão ao pensamento racional. A esse respeito,
relacionando racialização, deficiência e animalização, em seu livro Beasts of Burden a teórica
e ativista pelos direitos das pessoas deficientes e pelos direitos animais Sunaura Taylor coloca
que:

Aristóteles argumentou há mais de dois mil anos atrás que a linguagem separava os
humanos dos animais. Essa crença facilitou um caminho na tradição ocidental para
que a linguagem fosse tratada filosófica e cientificamente como sendo ao mesmo
tempo uma característica exclusivamente humana e também central do que significa
ser humano. Aristóteles também afirmou que escutar era necessário para a fala, o que
ele também acreditava ser central para o pensamento, permitindo que sugerisse que
pessoas surdas estivessem desprovidas do pensar e da inteligência – um legado que
muitas vezes associou as pessoas surdas aos animais ou ao menos-que-humano.
(TAYLOR, 2017, p.49)

Seguindo a linha de raciocínio capacitista, racista e antropocêntrica explicada por


Taylor, pode-se dizer que King Kong se destaca enquanto representação que reitera a ideia de
que a linguagem seria uma das principais barreiras que separam a esfera do humano da dos
animais, especialmente levando-se em consideração que essa figura diverge de outras famosas
representações de primatas. É pertinente notar que, diferentemente de outros macacos
“holiwoodianos”, King Kong nunca aprende a pronunciar as palavras para superar sua condição
animal e aceder ao status de sujeito, pelo contrário, o monstro carrega uma diferença ontológica
inegociável, que é também condicionante de seu assassinato, conforme argumentarei adiante.
Essa ideia se evidencia se analisarmos, por exemplo, os primatas do filme Planeta dos
Macacos: a origem (2011), cuja narrativa reitera a hierarquia evolucionista racista, capacitista
e especista/antropocêntrica referida por Taylor e condenada por Myra Hird: “a taxonomia
hierárquica invoca o pior tipo de antropomorfismo” (HIRD, 2008, p.238). No filme, os
chimpanzés sequestrados e cativos em laboratório são alvos de experimentos científicos que
182

alteram suas funções cerebrais, resultando na alteração progressiva da capacidade de raciocínio


lógico, a qual, inexplicavelmente, confere bipedismo e a possibilidade de fala. Ou seja, as
transformações supostamente intelectualizantes culminam no apagamento de diferenças
anatômicas, forjando um evolucionismo fundamental e esteticamente antropocêntrico, uma vez
que se sabe que esses componentes físicos (capacidade de fala e bipedismo) não estão
relacionados diretamente à inteligência ou às funções cerebrais, mas, sim, indicam outras
cosmo-visões. Esse tipo de representação reitera o excepcionalismo humano que sustenta a
perspectiva evolucionista antropocêntrica e reifica uma visão de mundo em que o humano opera
num estado de soberania, controle e superioridade em relação às demais espécies e aos
desumanizados.
No mesmo sentido, King Kong destoa também do personagem Pedro Vermelho, que,
conforme descrito por Franz Kafka em Um relatório para a academia, atravessa a galopes o
“processo evolutivo”: o primata adquire algumas características humanoides, dentre elas a
capacidade de fala eloquente, com as quais agencia sua própria liberdade de forma estratégica
ao perceber que ao se comportar como um homem humano conseguiria ser libertado da jaula 80.
Ao contrário dessas representações, a vulnerabilidade de King Kong se acentua
progressivamente, visto que a criatura se mantém sempre à margem da comunicação e do
humano, desprendendo-se de elementos como a escuta, a fala e a escrita – que seriam
propulsores de identificação e de negociação entre o humano e o não-humano.
Embora mais gestual do que oral, a comunicação de King Kong se difere também da
linguagem de sinais empregada pela famosa chimpanzé Booee, cuja história de maus-tratos pela
indústria científica é narrada pelo primatologista Roger Fouts em Next of Kin: My conversations
with Chimpanzee (2004). Fouts conta que Booee foi capaz de navegar estrategicamente a
linguagem de sinais para agenciar suas reivindicações, criar empatia (demonstrando intelecto e
a capacidade de perdoar – ou ausência de ressentimento) e assegurar a melhoria de sua condição
cativa. Diferentemente de Booee, que aprende a linguagem de sinais institucional e a utiliza de
forma estratégica, a comunicação de King Kong se estabelece majoritariamente através de
expressões faciais, urros e gestos e se dá quase que exclusivamente com Ann – que além de ser
a única personagem feminina do filme é também a única figura ocidental que cria laços de
empatia e identificação com a criatura. Importa salientar que a comunicação estabelecida entre

80
Importa realçar que as histórias do racismo e da xenofobia comprovam que, se Pedro Vermelho fosse
real, não atingiria o status de humano e a equidade de direitos sem travar diversas batalhas legais e discursivas
devido às suas diferenças ontológicas (a sua aparência, forma de mover-se, seus valores, culturas, local de origem,
espécie etc.).
183

King Kong e a atriz é irracional, precária e instintiva, ou seja, depende da adivinhação e da


intuição, se dá através do erro e não por uma via estruturada e lógica, fazendo recordar o
balbucio da manada interespécie que Rodríguez descreve nas recordações de sua infância.
Acerca da relação entre linguagem e pessoidade, Taylor também explica que
inicialmente “a hierarquia de Aristóteles propôs um tipo de espectro de características
crescentemente complexas: no topo estavam os humanos mais vivazes, móveis e racionais,
seguidos dos animais menos inteligentes, embora sensíveis” (TAYLOR, 2017, p.88). Segundo
Taylor, ao relacionar o humano a determinadas características que nem todas/os possuímos,
Aristóteles evocou a categoria instaurando um modelo de evolução progressista e hierárquico,
dentro do qual alguns seres são considerados mais evoluídos que outros. De acordo com a
autora, posteriormente esses critérios aleatórios impostos pela ciência e endossados por outras
instituições com premissas e interesses colonizadores e escravocratas foram estendidos desde
sua função original (separar humanos de animais) para gerar um complexo espectro de
classificação e diferenciação dentro da espécie humana, objetivando definir algumas pessoas
como menos humanas (rebaixando-as à classe dos animais) e, consequentemente, justificar sua
dominação e escravização:

Em sua busca para demonstrar que a teoria evolucionista era tão importante para o
desenvolvimento da espécie humana quanto para outros animais, Darwin se voltou a
estereótipos racistas e capacitistas de “selvagens” e “idiotas”, sugerindo que esses
grupos eram de fato fósseis vivos, exemplos de estágios intermediários da evolução
humana. (TAYLOR, 2017, p.88)

Pode-se dizer que é nesse interstício entre o civilizado e o selvagem, o humano e o


desumanizado, o racional e o emocional, que Rodríguez tece algumas de suas alianças e
identificações com o monstro de King Kong; evocando os componentes de raça, gênero, classe
e deficiência (historicamente indexados à desumanização) como atributos que informam sua
relação com a linguagem. Por exemplo, no trecho em questão, Rodríguez volta a referenciar a
deficiência (“aleijamento”) como característica basal (destino e condição) das figuras com as
quais se alinha, fazendo ecoar os momentos em que se identifica com as letras mudas e
disformes de sua (h)ortografia. Conforme previamente argumentado, não se trata de uma
metáfora capacitista da linguagem: essa escolha é reflexo da experiência da autora que,
conforme descrito em seus zines Enferma del Alma e Contodomisida, foi constantemente
patologizada por ser soropositiva e transexual, bem como pela sua forma de se comunicar (o
“elucubrar plasticamente”, diagnosticado como sintoma de dislexia e tangencial à loucura).
184

A recorrência com a qual Rodríguez descreve sua linguagem como expressão de uma
deficiência ecoa na lógica explicada por Taylor: a autora sugere que a animalidade que
compartilha com King Kong está enredada em sua travestilidade e é produto e processo de uma
linguagem ininteligível nos ambientes sociais institucionais. Nesse sentido, tendo em vista a
história da noção de pessoidade explicada por Taylor (2017), aqui o vínculo com o animalizado
fortalece um despertencimento e um desprendimento da linguagem e da razão e favorece outras
vias comunicativas e diferentes possibilidades de agenciamento, pautadas no irracional e na
recusa radical do conhecimento formal, como, por exemplo, estratégias decoloniais
separatistas.
Desprovida de cordas vocais humanas, de anatomia inegociavelmente diferente e
desinteressada da cultura que a sequestrou, a King Kong travesti resiste à linguagem e aos
saberes institucionalizados como se resistisse à colonização e ao epistemicídio: posiciona-se
num estado de alienação ontológica e de recusa radical ao conhecimento dominante, afinal,
como conta Rodríguez: “nem sabia que não sabia ler e escrever”. Assim sendo, ao eleger King
Kong como monstro de sua autorrepresentação, a autora insiste na quebra da comunicação
imposta por uma linguagem-outra e, exaltando seu confronto com as palavras, faz ecoar uma
virada (in)humana.
Através do alinhamento com outros seres desumanizados e com criaturas
não/humanas, a autora explicita potências criativas desviantes do status de pessoidade
sustentado pela lente antropocêntrica. Nessa perspectiva, representar-se como pertencente a
uma outra espécie retém um significado duplo, pois cita esse emprego exordial da classificação
racional e taxonômica que atribui soberania ao Humano, ao mesmo tempo em que alude a uma
alteridade estrutural, conforme teorizado por Haraway: “espécie contém seu próprio oposto na
forma mais promissora – ou especial. Espécie significa diferença radical e ao mesmo tempo
tipo lógico e classificatório” (HARAWAY, 2016, p.14).
Somente por meio de uma virada (in)humana, ou seja, da proposta de descentramento
radical do humano, poderíamos nos aproximar da visão de mundo de monstros como King
Kong e é através dessa metáfora de alteridade extrema (uma verdadeira barreira ontológica)
que Rodríguez se autorrepresenta: seus escritos nos impelem a abandonar a pergunta “por que
ela não escreve como nós? Por que não usa nosso vocabulário e traduz suas experiências de
forma inteligível para nossos ouvidos? Porque não usa analogias e perspectivas cis para
explicar-nos suas vivências?”; e, em vez disso, convida o público a questionar suas próprias
185

limitações e as barreiras estruturais que isolam as dissidências: “por que nós não conseguimos
entender? Por que nós não nos comunicamos assim? Por que não conhecemos os seus zines?”.
A autorrepresentação através da figura de King Kong expressa uma diferença
ontológica que abarca a intraduzibilidade e a imprecisão, bem como uma premissa de fracasso
e morte: como resultado da imposição dessas barreiras culturais e de suas inegociabilidades, a
criatura é incapaz de agenciar a própria salvação, ou seja, ao mesmo tempo em que resiste à
linguagem colonizadora, o primata é massacrado pela norma por ela sustentada devido à sua
incapacidade de defender-se – “No sabia que no sabía defenderme porque no sabia leer ni
escribir” (RODRÍGUEZ, 2014, p.57). Enquanto Booee, Pedro Vermelho e os primatas de
Planeta dos Macacos se antropomorfizam e agenciam suas reivindicações e resistências
apropriando-se estrategicamente da linguagem para melhorar suas condições, King Kong
permanece ontologicamente dissidente e em risco. Dessa forma, vislumbrando outras vias
comunicativas e diferentes possibilidades de agenciamento pautadas no irracional e na recusa
radical do conhecimento formal, a autora forja uma estratégia separatista decolonial, que opera
com a premissa irracional do “não-saber” e com afetos ressentidos e vingativos, sem articular
a própria salvação ou prosperidade.
186

5 MONSTROS ANIQUILÁVEIS, ESTRATÉGIAS E AFETOS MICROPOLÍTICOS

5.1 A PROMESSA DE MORTE: MAPEANDO TRAVESTICÍDIO ATRAVÉS DE KING


KONG

“Soy de esas locas Estuardas, que entre tantos amores y orgasmos no puede decir que
vive, si cada cierto tiempo, no se pone en riesgo de muerte” (RODRÍGUEZ, 2015, p.54.)

“To speak of black social life is to speak of this radical capacity to live – to live deeply
righteous lives even in the midst of all that brings death close or, as Lucille Clifton puts it, to
celebrate “everyday / something has tried to kill me / and has failed” (WILLIAMSON, 2016,
p.9)

Justamente por configurar uma ameaça às barreiras culturais que sustentam a ideia de
pessoidade, o destino de King Kong, como nos conta Rodríguez, já é conhecido antes mesmo
do filme começar. Entretanto, curiosamente, a previsibilidade da morte da criatura não
neutraliza sua potência, de acordo com Rony “o resultado é conhecido – o monstro será
destruído, e os brancos heroicos vão triunfar – mas sempre há uma tensão, um elemento de
incerteza, a possibilidade de que a corrida vá para qualquer dos lados” (RONY, 1996, p.170).
Analisar uma proposta autorrepresentativa centrada na promessa de morte implica
reorientar paradigmas tradicionalmente investidos na resolução do conflito, para que seja
possível imaginar existências que habitam estados permanentes de tensão (como aqueles
mencionados por Rony) e preservam uma relação de inegociabilidade ontológica com seu
entorno. Vislumbrando potências inusitadas no investimento e na permanência no conflito,
nesta seção argumentarei que, em sua (des)identificação com King Kong, sobretudo através de
uma premissa de morte ancorada em marcadores de raça, classe, sexualidade e gênero,
Rodríguez articula temporalidades, perspectivas e agenciamentos dissidentes e mobiliza afetos
carregados de vetores descoloniais. Para tanto, primeiramente é pertinente analisar a propensão
da criatura à aniquilação traçando paralelos entre o assassinato de King Kong no filme e o
travesticídio, focalizando especialmente a política estatal de criminalização e de extermínio das
dissidências.
Analisando a trama do filme, paralelos frágeis relacionam o fato de que King Kong foi
sequestrado e escravizado pela indústria de entretenimento ao tráfico humano e às condições
187

normalmente enfrentadas por travestis como Rodríguez, cuja principal (senão única)
possibilidade de renda advém do trabalho sexual81 . Numa metáfora literal, é possível relacionar
a captura forçada da criatura na indústria do entretenimento à suscetibilidade de travestis e
pessoas transfemininas ao tráfico humano pela via do mercado sexual. Entretanto, talvez seja
mais proveitoso relacionar a matabilidade de Kong ao travesticídio ressaltando um tipo
específico de fascínio e de desejo particularmente reservado às monstruosidades. A esse
respeito, analisando a criminalização que a ciência sexual impôs aos corpos desviantes, Jorge
Leite Júnior (2012) coloca que:

Historicizando o conceito de monstro, percebemos que não é apenas terror que a figura
monstruosa provoca, é também fascínio, encanto, dúvida, fonte de curiosidade e
desejo: “o monstro é transgressivo, demasiadamente sexual, perversamente erótico,
um fora-da-lei”. Nesse sentido, talvez o monstro tenha em demasia algo que o abjeto
tenha de menos: o fascínio pela quebra das normas conhecidas, o encanto pela
transgressão, a sedução pelo quase desconhecido, a curiosidade pela inteligibilidade.
[...] Mas nossa cultura criou uma forma específica de tratar com as pessoas que se
encaixam na categoria de monstros: ao encará-las como o equivalente ao Mal e ao
caos, a única ação ou reação socialmente inteligível é a destruição ou o anulamento
(literais ou simbólicos) dessas pessoas. O monstro não é apenas uma domesticação do
abjeto, mas sua organização como uma categoria específica que legitima tanto a
atração quanto a destruição ou punição do sujeito sobre o qual recai essa mesma
atração. (LEITE, 2012, p.562-563. Grifos Meus)

Dessa forma, pode-se dizer que a figura da King Kong travesti inspira um desejo letal:
a faceta monstruosa das prostitutas travestis e de King Kong (oriunda da inviabilização de sua
integração no tecido social e de sua ininteligibilidade nas categorias identitárias) incita um
fascínio especificamente direcionado aos corpos desumanizados e legalmente matáveis. Nesse
cenário, a hipervisibilidade tipicamente associada ao monstro e à transfeminilidade (efeito da
alteridade que excede o registro visual) atua complementarmente como instrumento da
violência instituída contra o monstro: pode-se dizer que a hipervisibilidade é uma condição ao
mesmo tempo necessária (para instigar o fascínio e o desejo dos clientes no trabalho sexual da
rua) e vulnerabilizante (facilitadora do controle social), afinal, conforme relatado por
Rodríguez, é justamente a dimensão do seu impacto no campo visual que a transforma em corpo
para ser odiado: “não se pode ser tão grande, tão feia, e viver no centro da cidade”.
Considerando também que King Kong se torna uma ameaça destrutiva e aciona o
exército quando se liberta e destrói a cidade “em busca de sua loira” (como muitas/os críticas/os

81
Entende-se a prostituição como exploração capitalista análoga a qualquer outra atividade remunerada,
entretanto, ressalta-se que a condenação moral e a criminalização da prática em questão tornam precárias e
marginalizam as vidas de muitas travestis, impactando principalmente as pessoas pobres e racializadas
188

colocam), é possível conectar a matabilidade da criatura à sua busca por uma feminilidade
proibida, fazendo ecoar a frase emblemática proferida pelo cineasta no final do filme: “Não
foram os aviões, foi a Bela/Beleza [que] matou a Fera”. Nesse sentido, a trágica e letal
atração/identificação com a feminilidade se aplicaria tanto à figura de King Kong quanto à
releitura que Rodríguez faz do filme: “a tragédia de King Kong é que Kong está eternamente
condenado: essa besta não pode viver sem a beleza, mas também não pode sobreviver a ela”
(GIARDINA, 2005, p.190-191). Desenvolverei essa ideia profundamente mais adiante, de
momento, basta sugerir que no assassinato da criatura está implicado o desejo por uma
feminilidade que lhe foi negada e que essa é também a particularidade que diferencia o
travesticídio e o transfeminicídio de outros feminicídios.
Complementarmente, pode-se argumentar que o exército que ataca King Kong (devido
à sua ontologia outrificada, ao seu desejo pela feminilidade e à ameaça que representa às
estruturas urbanas, sociais e identitárias) é análogo aos esquadrões policias que historicamente
perseguiram e assassinaram travestis na América Latina, especialmente durante o período da
ditadura vivido por Rodríguez. Esses paralelos entre a matabilidade de King Kong e de travestis
apontam para a possibilidade de articular o assassinato para além de uma ocorrência isolada e
individual (uma história pessoal trágica), senão como projeto de uma política estrutural do
regime cis-heterocapitalista. Afinal, nesse caso a morte é, na verdade, um genocídio
condicionado pela marginalização e pelo despertencimento/expulsão de instituições sociais e
de categorias identitárias. Ademais, vale atentar que em ambos os casos é o arsenal bélico do
estado (o exército e a polícia) que leva a cabo a execução do monstro (traduzida na experiência
de Rodríguez como violência estrutural estatal).
A esse respeito, em seu artigo Antitrans State Terrorism: Trans and travesti women,
human rights and recent history in Chile, Hillary Hinter e Juan Carlos Garrido (2019) utilizam-
se da história oral difundida por travestis chilenas (dentre as quais Rodríguez está incluída junto
a Lohana Berkins e outras ativistas da OTD) para traçar o panorama de violência que foi
excluído da história e dos registros oficiais da ditadura. Hinter e Garrido comentam que, além
das violências estruturais e simbólicas cotidianas enfrentadas (violência física, psicológica,
social, sexual e econômica), um tipo específico de opressão foi aplicado contra as travestis e
mulheres trans* durante a ditadura chilena (1973-1990): um terrorismo estatal antitrans baseado
no transfeminicídio e no travesticídio.
Segundo os autores, diferente de outros estudos que mapeiam crimes de ditadura, esse
trabalho se alia à:
189

pesquisa sobre assassinatos de mulheres trans e travestis executados por esquadrões


de morte que se propunham a eliminar grupos de homossexuais, lésbicas e
travestis/trans* durante a ditadura, como o Esquadrão Hortela no Brasil (Mott 1996)
e o Comando Cóndor e Comando Mortalidad na Argentina (Figari 2010). (HINTER;
GARRIDO, 2019, p.196)

Hinter e Garrido utilizam a história oral, ou seja, o testemunho de travestis e de


mulheres trans* que sobreviveram a essas violências, para mapear e historicizar aspectos
excluídos dos registros oficiais. Em sua pesquisa se sobressalta o estudo crítico da lei de “ofensa
aos bons costumes” e como se deu sua aplicação:

O artigo 373 do Código Criminal Chileno condena ofensas à decência, moralidade, e


bons costumes, um vestígio das ideias religiosas do século dezenove que pretendiam
desencorajar a promoção da decadência moral na sociedade ocidental (Hopman 2000).
O conteúdo vago da lei deixou a livre interpretação para as autoridades e, como
resultado, permitiu um constante assédio de grupos trans e travestis e justificou várias
ações policiais em bares e clubes gays, assim como em zonas de trabalho sexual.
(HINTER; GARRIDO, 2019, p.198)

Hinter e Garrido contam que essa lei, efetiva durante o regime ditatorial e também no
democrático, se aplicava contra as trabalhadoras sexuais, em especial as travestis e mulheres
trans*, que enfrentavam violências multifacetadas, como agressões na rua, abuso sexual,
homicídio, criminalização e assédio policial e social.
Dentre os exemplos de histórias orais de terrorismo estatal antitrans, o artigo menciona
o livreto Cuerpos para Odiar e reproduz passagens em que Rodríguez reconta as ações policiais
nos bordéis e os sucessivos encarceramentos, agressões e desaparecimentos de travesti:

Esa noche como ninguna otra, nos encontramos de frente con el gobierno militar, con
el toque de queda y el trauma de nuestra juventud. Esa noche terminamos
acurrucadas traicioneramente como basura em uma callejuela cualquiera,
acobardadas entre las hormigas por los estruendos de las balas, queriendo olvidar
los gritos de las prostitutas a quienes habíamos dejado desamparadas82.
(RODRÍGUEZ, 2014, p.68)

Complementarmente, é pertinente citar um trecho publicado no livreto Dramas


Pobres, em que a autora menciona a violência epistêmica incorporada nos crimes de ditadura
contra travestis:

Absolutamente por haber nacido aquí, cuando hablo y cuando escribo relato la
historia de ese territorio. De manera implícita, infratextual o incluso desde la

82
Tradução: “Essa noite, como nenhuma outra, nos encontramos de frente com o governo militar, com
o toque de recolher e o trauma de nossa juventude. Essa noite terminamos traiçoeiramente como lixo em uma ruela
qualquer, acovardadas entre as formigas pelos estrondos das balas, querendo esquecer os gritos das prostitutas que
havíamos deixado desamparadas”.
190

negación, describo a las abuelas de mis abuelas y su subordinación. Hablo de ser


migrante, de la misma forma en que hablo de haber nacido en un mundo con
cordillera y de la misma forma del espacio baldío que implica ser travesti, en las
narraciones de quienes han nacido aquí y no nos nombran. Así mismo, con la poca
importancia que tienen las biografías, aunque no lo crean, cuando hablo de ser
analfabeta, también estoy hablando del miedo que ha significado tener una voz
después del once de septiembre, porque también nacimos aquí83. (RODRÍGUEZ,
2015, p.89)

Nessa passagem Rodríguez referencia o golpe de estado de 11 de setembro de 1973


liderado pelas forças armadas chilenas, em um comentário que adiciona a violência epistêmica
(a dificuldade de produzir projetos autobiográficos devido ao “medo que tem significado ter
uma voz depois do onze de setembro”) à violência física previamente mencionada. A autora
frisa o fato de “ter nascido aqui”, aludindo ao seu despertencimento no projeto de nação fundado
a partir de sua exclusão e à revelia da sua nacionalidade. Ademais, ao referenciar “as avós de
minhas avós e sua subordinação” a autora relaciona a história de migração (enredando classe e
raça na sua filiação) e também a transcestralidade (referenciando a história colonial da
imposição de gênero) a uma política nacional de extermínio pautada no genocídio das
populações nativas, nas políticas xenofóbicas, no feminicídio e no transfeminicídio.
Examinando a emblemática asserção da personagem Carl na cena final de King Kong
(“Não foram os aviões, foi a Bela/Beleza matou a Fera”), pode-se dizer que a King Kong
travesti aponta justamente para a falsa separação entre o regime da moralidade que reforça as
normas de gênero (a “beleza”) e a violência do aparato policial nacional (os “aviões”), ou seja,
expõe uma necropolítica de controle social amparada pela ciência sexual que integra a
criminalização e/ou patologização do regime biopolítico. A esse respeito, Leite (2012) explica
como os binômios saúde/doença e lei/crime se estabelecem, através da ciência sexual,
capturando e punindo os corpos e sexualidades desviantes:

Dessa forma, percebemos como a inteligibilidade desenvolvida por nossa ciência


sexual foi forjada em cima dos binômios saúde/doença, lei/crime, muitas vezes se
constituindo no campo mesmo de intersecção entre esses extremos. Não foi por acaso
que, em grande parte do Ocidente, desde o século XIX, as lutas sociais e políticas pela
descriminalização de algumas sexualidades vistas como desviantes, embora vitoriosas
juridicamente, redundaram na patologização (direta ou indireta) dessas mesmas
sexualidades. (LEITE, 2012, p.566)

83
Tradução: “Absolutamente por ter nascido aqui, quando falo e quando escrevo relato a história desse
território. De maneira implícita, infratextual ou inclusive a partir da negação, descrevo as avós de minhas avós e
sua subordinação. Falo de ser migrante, da mesma forma que falo de ter nascido em um mundo com cordilheira e
da mesma forma do espaço baldio que implica ser travesti, nas narrações de quem nasceu aqui e não nos nomeia.
Assim, com a pouca importância que têm as biografias, embora não acreditem, quando falo de ser analfabeta,
também estou falando do medo que tem significado ter uma voz depois do onze de setembro, porque também
nascemos aqui”.
191

Considerando a promessa de morte como central na desidentificação de Rodríguez


com King Kong, cabe indagar: que potencial criativo uma autorrepresentação que antecipa e
acolhe sua própria aniquilação pode oferecer? Qual quadro teórico poderia abarcar uma
proposição como essa, que, não pretendendo ser salva, desafia os modelos analíticos
acadêmicos tradicionais?
Argumenta-se que nesse movimento, onde a previsibilidade do próprio fracasso não
desmobiliza, abre-se uma brecha desestabilizadora investida no conflito e na vida curta
(apontando para uma noção de temporalidade dissidente). Aqui, apesar dos limites impostos, a
ação é impulsionada para além da expectativa racional que normalmente estabeleceria barreiras
à imaginação. Para analisar essa potência anti-reivindicativa e pessimista, intrínseca à escrita
de Rodríguez e também recorrente em diversos projetos autorrepresentativos travesti/trans*,
convém empregar um quadro teórico capaz de abarcar a negatividade da promessa de morte.

5.2 QUADROS TEÓRICOS PARA AQUILO QUE NÃO SE PRETENDE SALVAR

Conforme previamente argumentado, a morte aparece atrelada ao vazio da linguagem,


que se assenta à potência negativa do irracional, do erro e da subcultura dos corpos que podem
ser legalmente matados, feitos para serem odiados. Assim, espelhada na figura de King Kong,
a autorrepresentação de Rodríguez expressa uma sobrevivência precária que não apela
necessariamente à própria salvação. Essa posição reflete uma espécie de resiliência fracassada,
porque sem futuro e contra-reivindicativa, tipicamente associada a um desejo que opera contra
seus próprios interesses.
Para analisar a potência e os efeitos da desidentificação com King Kong via premissa
de morte, além de incorporar a noção de “morte social”, cabe servir-se da ferramenta teórica
desenvolvida por Cameron Awkward-Rich em seu artigo Trans, Feminism: Or, Reading like a
Depressed Transsexual, no qual o autor substitui a tradicional perspectiva acadêmica de
superação das adversidades e de busca por respostas (uma espécie de salvacionismo
compulsório), por um quadro teórico implicado numa visão de mundo “depressiva”, que seria
capaz de incorporar o mal-estar na lente epistemológica:

O que significaria engajar-se nos estudos minoritários sem ser impulsionada/o pelo
desejo de reabilitar os sujeitos/objetos do nosso conhecimento? Que tipos de teorias
produziríamos se notássemos a dor e, em vez de automaticamente procurarmos sua
origem para aliviá-la, ou de a explorarmos buscando recursos para nossos prazeres
192

perversos ou resistentes, nós tomássemos [a dor] como um fato de ser/ter um corpo


que não seja necessariamente carregado de peso moral? (AWKWARD-RICH, 2017,
p.824)

Em seu artigo, Awkward-Rich cria uma ferramenta de análise pautada pela doença
mental (depressão), para “ler com, e não contra, formas de sentir e hábitos de pensamento
depressivos” (AWKWARD-RICH, 2017, p.836). Essa ferramenta, teorizada a partir da
vivência negra transmasculina do autor, permite abarcar a impossibilidade de integração do
sujeito transmasculino no (trans)feminismo. Seu método propõe que “ler como um/a transexual
deprimida/o seria, então, ler desde uma posição compromissada com a ideia de que as vidas
trans são ‘vividas, portanto, vivíveis’, e também com a consideração de que sentir-se mal é fato
mundano (Scheman 1996, 132)” (AWKWARD-RICH, 2017, p.826). Sua proposta incorpora o
genocídio e a constante promessa de aniquilação à viabilidade das vidas trans*, ressoando na
inesperada desidentificação de Rodríguez com King Kong.
A aniquilação que Awkward-Rich teoriza diz respeito tanto à negação ou
impossibilidade ontológica com a qual se deparam as pessoas trans* (o autor emprega a figura
do fantasma para representar a inadequação e as “angústias de ininteligibilidade” tipicamente
associadas às experiências trans*), como também ao risco de morte:

Aniquilação, segundo Salamon, parece significar ter a identidade negada ou


substituída por outra, que é exterior. Entretanto, ao mesmo tempo em que meu uso
incorpora esse significado, também inclui os sentimentos ruins e potenciais
consequências de vida-ou-morte que ser o objeto dessa negação envolve.
(AWKWARD-RICH, 2017, p.822)

Ou seja, ao incorporar o mal-estar como efeito da promessa de aniquilação, o autor


defende que ler como um transexual deprimido “faz com que a possibilidade de aniquilação
seja menos ameaçadora” (AWKWARD-RICH, 2017, p.832). Eliminando esse peso moral da
dor, torna-se então possível abandonar o esforço de superação e cicatrização, e observar e
aprender com as produções que “habitam a dor”, que incorporam a doença, o sofrimento e a
angústia a um tipo de saber que “não é confiável”, ou seja, aquele que rejeita a racionalidade
da construção do conhecimento legitimado. É nesse sentido que a premissa de morte
compartilhada por Rodríguez e King Kong esquiva-se do niilismo e resvala num estado de
alienação propositivo, embora contra-reivindicativo: a recusa e o não-saber, ou seja, o
desconhecimento dos saberes hegemônicos, a partir do qual vislumbra-se outras formas de
existir.
193

Segundo Cameron “o/a transexual deprimido/a pode lidar com a situação e determinar
que o problema não é tanto que (algumas) feministas gostariam que ele desaparecesse. Mas,
que o problema é que ele está aqui, e agora nós todos temos que descobrir como viver com esse
fato” (AWKWARD-RICH, 2017, p.832). É nessa chave teórica que a monstruosidade de
Rodríguez opera através da figura de King Kong: enfatiza a presença inexorável (um mero
“estar aqui”) como permanência no conflito, ou seja, experiencia um corpo de alta capacidade
destrutiva e de grande propensão ao aniquilamento, que “estando aqui” contra todas as
expectativas, produz a fenda ou ferida que habita. Enfatizando as potências contra-
reivindicativas pautadas na recusa, na negatividade e nesse inusitado “aqui estou”, cabe analisar
algumas estratégias negativas monstruosas sudacas acentuando tanto seus efeitos
micropolíticos como sua capacidade de explicitar as violências estruturais.

5.3 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E AS POTENCIALIDADES DE


AUTORREPRESENTAÇÕES MONSTRUOSAS: “ESTAR AQUI” E PERMANÊNCIAS
NA FERIDA

A matabilidade inferida no trecho em que Rodríguez se desidentifica de King Kong


ecoa também no quadrinho Seu corpo é Mágico, originalmente publicado no zine Sapatoons #2
(2014), que também propõe uma permanência inusitada, capaz de incorporar a matabilidade e
as violências estruturais como instrutivas dos modos de vida dissidentes, ou seja, enquanto
peças constitutivas da subjetividade:
194

Figura 31 – Trecho de Sapatoons #2


195
196
197

Fonte: Arruda e Lopes (2014)


198

Apresentando reiteradas violências e agressões, essa proposição explicita a


abjetificação (expulsão do campo social e do simbólico) e a reinserção do corpo desviante na
condição de monstro, indicando sua função de estabilização das categorias identitárias (como
bode expiatório e ameaça neutralizada): por exemplo, no décimo-quarto quadro as
possibilidades destrutivas do monstro são brevemente pinceladas e rapidamente sucumbem ao
investimento institucional de aniquilação da dissidência. Entretanto, pode-se dizer que é
formulada no quadrinho uma existência subjetiva que permanece através e apesar da progressão
de microagressões que culminam na violação e na morte: no último quadro, onde o elemento
humorístico reside, a morte física da personagem é representada como resiliência. Entendendo
o dildo como pedaço “imatável” do corpo transmasculino, na perspectiva de ressignificação ou
de subversão das relações biopolíticas estabelecidas (PRECIADO, 2004) e considerando que a
prótese é tão integralmente constitutiva do corpo quanto qualquer outra parte “orgânica”, pode-
se dizer que esse quadrinho reflete não só uma inusitada existência/permanência apesar
da/frente à premissa de morte, mas também aponta para uma sobrevida que supera e desafia a
morte física e simbólica.
Não se pode dizer que se trata de um projeto otimista, reivindicativo ou propositivo,
senão que essa representação, assim como a figura da King Kong travesti, ao mesmo tempo
expõe as violências estruturais às quais os corpos travesti/trans* estão submetidos (humilhação,
violação, ridicularização etc.) e pauta uma existência inusitada que incorpora a premissa de
morte em sua temporalidade dissidente.
Analisando o quadrinho em justaposição com a passagem do zine Manifiesto
Horrorista y Otros Escritos (2015) em que Rodríguez coloca que “Escribo porque no he sido
la única, por todas las travestis que no alcanzaron a saber que estaban vivas”84 (RODRÍGUEZ,
2015, sem paginação), em sua dissertação de mestrado Jota Mombaça identifica que ambas
proposições, publicadas em zines e fora dos espaços legítimos de produção de conhecimento,
expõem os processos estruturantes de organização social da violência, e conclui que “fazer parte
do mundo, desde corporalidades marcadas pela dissidência sexual e de gênero, é ser levada ao
limite, à borda extrema da morte como expectativa de vida” (MOMBAÇA, 2017, p.34). Nesse
sentido, a autora prossegue descrevendo como as experiências representadas nos zines
Sapatoons #2 e Manifiesto Horrorista y Otros Escritos compõem a noção de “morte social”:

84
Tradução: “Escrevo porque não fui a única, por todas as travestis que não conseguiram saber que
estavam vivas”.
199

Ambas as imagens tensionam o espaço da vida social (as zonas do ser, num paralelo
à noção fanoniana) com a presença dessa morte social trans que o atravessa e circunda,
e dão a ver – a partir de evocações do ódio e da violência socialmente destinadas a
interditar a possibilidade mesma de emergência e articulação dessas vidas – o modo
como o que estrutura o mundo e a possibilidade de ser no marco da supremacia cis é
a reprodução da interpelação negativa que projeta as corporalidades trans e
desobedientes de gênero em espaços de inexistência que são zonas de não-ser e são
também o que aqui vem sendo chamado morte social. (MOMBAÇA, 2017, p.40)

Identificando o mundo como projeto de extermínio trans* e/ou negro, a autora articula
a noção de “morte social” enquanto componente estruturante da vivência e do lugar social
compartilhado pela dissidência de gênero e pela negritude, especialmente considerando a
inviabilidade ontológica e a desumanização. A partir dessa conexão, através do quadro teórico
do afropessimismo 85 e na esteira de Jared Sexton (2016), a autora pontua algumas das
características particulares dos investimentos autorrepresentativos pautados pela premissa de
morte e inaugura em sua análise uma abordagem que:

não nega a vida da morte social, ou seja: que insiste na aposta tão impopular quanto
improvável de que a morte em vida é tanto uma forma de morte quanto de vida, que
o inexistente habita, enfim, uma certa posição, e paradoxalmente existe em sua
inexistência. [...] Uma morte viva é tanto uma morte quanto uma vida. Nada no afro-
pessimismo sugere que não haja uma vida (social) negra, somente que a vida negra
não é uma vida social no universo formado pelos códigos do estado e da sociedade
civil, do cidadão e do sujeito, da nação e cultura, da pessoa e do lugar, da história e
da herança, de todas as coisas que a sociedade colonial tem em comum com o
colonizado, de tudo que o capital tem em comum com o trabalho – o sistema mundial
moderno. A vida negra não é vivida no mesmo mundo em que o mundo vive, mas
vivida underground, no espaço exterior. (MOMBAÇA, 2017, p.41. Grifos Meus)

A partir das provocações de Mombaça e do quadro teórico oferecido por Awkward-


Rich, imagina-se algumas estratégias dessas subjetividades que “existem em sua inexistência”
e impõem sua presença inusitada. Ou seja, existências que ao mesmo tempo em que expõem a
violência estrutural (que simultaneamente confere e elimina seus contornos), apontam para
saberes e potências particularmente dissidentes. Afinal, como esses projetos contra-
reivindicativos pautados em monstruosidades aniquiláveis desafiam os sistemas hegemônicos?

85
O afropessimismo situa histórica e politicamente a subjetividade negra em sua coextensão com a
escravidão em seu contínuo pós-abolição. Essa vertente teórica se distingue das ideias humanistas, na medida em
que concebe a história da negritude como inseparável da discriminação política e do isolamento social, de forma
a demonstrar sua exclusão das categorias constitutivas do “sujeito político” (que retém e se constitui através dos
direitos humanos).
200

5.3.1 Substituindo a “agenda política” pela agência micropolítica: “E aqui estou!”,


ressentimento e vingança agenciadas por meras existências contra-reivindicativas

“Diferentemente das esperanças do monstro de Frankenstein, o ciborgue não espera


que seu pai vá salvá-lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação
de um parceiro heterossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e
um cosmo acabados” (HARAWAY, 2004, p.39)

Resumidamente, pode-se dizer que nos escritos de Rodríguez não é a superação (da
ignorância, da vulnerabilidade, da deshumanização, da promessa de morte) que marca seu
acesso ao simbólico e o agenciamento de seus desejos, senão um estado de permanência na
ferida (“e aqui estou”) que excede as expectativas sem oferecer uma alternativa assimilacionista
ou “positiva”. Estar e existir efemeramente, a contrapelo das forças sociais e alheia à cultura
que se sustenta a partir de sua negação, é o vetor de potência destrutiva da King Kong travesti
que não reivindica um futuro para si, antes opera em uma temporalidade dissidente, produzida
ao mesmo tempo com e apesar da promessa de morte. Quais afetos podem emergir de uma
proposta anti-assimilacionista, contra-propostiva, não-reivindicativa e, ao mesmo tempo,
carregada de potência negativa?
Argumenta-se que a força-motriz de projetos autorrepresentativos como o de
Rodríguez não é propriamente a “fúria transgênero” tal qual teorizada por Susan Styker
(abordada no capítulo 3), senão o ressentimento e a vingança, que induzem ao despretensioso
agenciamento micropolítico e operam espontaneamente no cotidiano. Se a reivindicação formal
de uma transformação estrutural não abarca efetivamente todas as contradições, possibilidades
e desejos dos corpos dissidentes sudacas, outras estratégias e afetos despontam especificamente
vinculados às potências travestis, como a recusa, a negatividade e uma fúria particularmente
enredada no ressentimento: “Ustedes no creen que se pueda ser una travesti teñida, tonta, pero
furiosa, una teñida resentida”86 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data) Aqui, o adjetivo
“tonta” se opõe à articulação, inteligência e perspicácia que Stryker reafirma em sua
identificação com a criatura em Frankenstein. O ressentimento travesti que emana da “travesti
tingida, tonta e furiosa” pode ser associado, então, à figura de King Kong que, nos momentos

86
Tradução: “Vocês não acreditam que se possa ser uma travesti tingida, tonta, mas furiosa, uma tingida
ressentida”.
201

que antecedem sua inevitável derrota, se vinga de seus malfeitores e destrói seu entorno sem a
pretensa de triunfar.
Em Viva el Ressentimiento! Mark Fisher (2014) propõe a revisão da ideia de que o
ressentimento seria um sentimento miserável e contrapropositivo, que faz com que a pessoa se
volte contra si própria, colocando-se em posição desprezível ou de autopiedade. Citando Owen
Hatherley, Fisher coloca que “o ressentimento é a força que se recusa a deixar que as feridas se
curem, que recorda as velhas derrotas para um dia poder vingar-se” (FISHER, 2014, p.273).
Essa colocação faz ressoar a recorrência com a qual Rodríguez alude à vingança, além de ecoar
a insistência em localizar-se numa ferida que não pretende curar, mas, sim, através da qual
produz criativamente. Quando confrontado e autodeclarado, o ressentimento evadiria o risco de
afirmação reiterativa da própria posição inferior e subordinada, e a consequente autopiedade:
“A vontade de tornar-se mais (“não sou nada e deveria ser tudo”) se converte em uma defesa
do que um já é. ‘My defences/ become fences...’ [Minhas defesas / se convertem em
barreiras...]” (FISHER, 2014, p.275). Numa estrutura semelhante, é possível associar essa
teoria ao cultivo das raízes negras que delatam o “loiro tingido” de Rodríguez.
O autor argumenta que “o ressentimento é um afeto muito mais marxista que o ciúme
ou a inveja. A diferença entre ressentir a classe dominante e invejá-la, é que o ciúme implica
um desejo por tornar-se a classe dominante, enquanto o ressentimento sugere uma fúria contra
a sua posse de recursos e privilégios” (FISHER, 2014, p.274). Argumentando que o
ressentimento “não tem por que terminar em impotência”, Fisher identifica nesse afeto o
primeiro passo ao confronto de sentimentos de inferioridade, em especial no que tange à
consciência de classe. Fisher entende que ressentir é diferente de invejar, uma vez que não é o
mesmo que desejar o que o/a outro/a tem: trata-se de um sentimento de descontentamento que
inspira a vingança. Nesse sentido o ressentimento representa adequadamente a forma como
Rodríguez retrata a relação que estabelece tanto com a escrita como com o desejo de imitar a
feminilidade holliwoodiana: enreda nessas práticas a sabotagem das respectivas categorias
“literatura” e “mulher”, conforme argumentarei mais adiante.
O ressentimento é também o que mantém ativa a repulsa do próprio regozijo da classe
dominante, que se desdobraria em repulsa de si. Essa ideia se explicita com alguns movimentos
pendulares que oscilam entre o desejo pela feminilidade gringa loira, alternando com a
recorrente contestação dessa mesma categoria, a necessidade de marcar alteridade, de
desconfiar do próprio desejo e de se denunciar quando alcança com êxito o que almeja. O êxito,
202

nesse projeto, nunca é completamente desfrutado, uma vez que produz contradições que
engendram novas angústias e conflitos.
Em vez de contentar-se com o que lhe foi designado ou de sugerir a derrota da sua
assimilação, por exemplo, em seu projeto de feminilidade (apontando para a
transnormatividade) ou com a publicação oficial de Dramas Pobres pela editora Ediciones del
Interstício – que a autora descreve, no prólogo, como sendo uma “versão [de seu zine] porfiada
para a academia” (RODRÍGUEZ, 2015, p.15) –, Rodríguez ocupa certos domínios
hegemônicos para então deslegitimar a exclusividade e o privilégio implicados nesse “mérito”.
Sua ambição (seu desejo, por exemplo, por corporificar a loira de Holliwood) converge com
sua recusa pela assimilação. A proposta, então, seria a de desestruturar o sistema presente e não
o inverter num novo jogo de valores. Nesse sentido as palavras de Fisher ecoam na escrita de
Rodríguez: “Ressentimento versus desprezo e condescendência. Ressentimento e
descontentamento: o começo da resistência contra a positividade obrigatória do realismo
capitalista” (FISHER, 2014, p.277).
Um exemplo desse tipo de proposta micropolítica orientada pelo ressentimento que se
desdobra em vingança é articulada pelo simples transitar pelo mundo (“e aqui estou!”),
conforme sugerido no poema de Rodríguez:

En la calle un seductor poeta de la construcción me dijo: porque no me regala una


sonrisa? Y la boca se me abrió de par en par, mostrando mi ensalá de dientes chuecos,
como desponiendome a comerme el hombre, porque mi sonrisa es la de un monstruo.
Mi resistencia, mi arma, mi puñal, mi fusil es mostruosiarme; admitir que no soy otra
cosa que un fracasso para cualquier modelo, que no sé amar como dicen que hay que
amar, que el amor es privativo y no incomensurable. Soy un monstruo, señores, sobre
todo cuando me seducen y me hacen reír, porque tiendo a comérmelos 87.
(RODRÍGUEZ, 2015, p.83. Grifos Meus)

Aqui Rodríguez descreve uma experiência cotidiana e exalta os efeitos da


inconformidade ou inadequação de seu corpo no tecido social. Existir e se relacionar, se sujeitar
a encontros e às interpelações deles advindas é colocar em prática a própria monstruosidade:
nesse trecho seu sorriso (“salada de dentes tortos”), ou seja, sua resposta à interpelação que a
assujeita como “mulher passível do desejo heterossexual”, é uma retribuição enviesada ao

87
Tradução: “Na rua um sedutor poeta da construção me disse: porque não me dá um sorriso de
presente? E a minha boca se abriu de lado a lado, mostrando minha salada de dentes tortos, meio que me
predispondo a comer o homem, porque meu sorriso é o de um monstro. Minha resistência, minha arma, meu
punhal, meu fuzil é monstruorizar-me; admitir que não sou outra coisa senão um fracasso para qualquer modelo,
que não sei amar como dizem que se deve amar, que o amor é privativo e não incomensurável. Sou um monstro,
senhores, sobretudo quando me seduzem e me fazem rir, porque tendo a comê-los”.
203

chamado do pedreiro, já que o interpela de volta invertendo a ordem do desejo e a prática sexual
em jogo (implícita na ambiguidade da colocação “tendo a comê-los”).
Essa passagem sugere que a mera existência do corpo dissidente no simbólico
desregula a matriz de inteligibilidade (que atribui correspondência entre sexo–gênero–desejo–
prática sexual) e contamina os corpos que encontra. O ato de “monstrificar-se”, representado
em diversos projetos autorrepresentativos travesti/trans*, implica a incitação de um desejo que
escapa à norma e está ancorado no “desvio de gênero” da proponente. Seu sorriso/resposta a
monstrifica e transforma também seu interlocutor interferindo, assim, no funcionamento da
norma: a vingança e a maior ameaça do monstro é seu potencial de monstrificar de volta, ou
seja, de despertar e exaltar no outro a monstruosidade que leva dentro.
Esse episódio em que a autora responde a uma das mais cotidianas e recorrentes
interações sociais é narrado como um tipo de batalha: trata-se de uma prática de “resistência,
arma, punhal, fuzil” mobilizada desde o fracasso e sem teor reivindicativo. Nessa passagem a
vingança é o principal vetor de instigação a impulsionar a sensação generalizada e ambígua de
vitória frente ao fracasso inexorável que a travesti representa perante às categorias delineadas
e projetadas naquela interação. Entretanto, é importante frisar que essa vingança não pretende
abalar a macroestrutura política. Utilizando o espaço urbano como seu campo de batalha
pessoal, Rodríguez simula um gesto desautorizado que agencia o horror e o medo, a ameaça
que representa está embebida em saberes ocultos e, na melhor das hipóteses, suas vinganças
micropolíticas podem vir a nutrir a sua comunidade, oferecendo-lhes alternativas e ferramentas
para navegar espaços públicos.
De maneira semelhante, o lobisomem-trans* no zine Quimer(d)a #2 mobiliza saberes
dissidentes e pequenas “vinganças” que têm efeitos micropolíticos localizados contra a cis-
heteronorma. No trecho disposto abaixo, uma interação social cotidiana dentro de um ônibus
se converte em uma guerra simbólica:
204

Figura 32 – Trecho zine Quimer(d)a #1


205
206
207
208

Fonte: Arruda e Castanho (2017)


209

Nessa história em quadrinhos a personagem principal não “é” um monstro, senão que
se monstrifica quando sua masculinidade diverge daquela regulada pela cis-
heteronormatividade. Ou seja, a monstruosidade selvagem do lobisomem-trans* representa de
antemão um fracasso da masculinidade hegemônica indesejada da qual se vinga. Ao longo da
história, a ininteligibilidade da personagem explicita ao mesmo tempo a pretensa inexistência
da transmasculinidade e a inusitada resposta (e aqui estou!) que corporifica essa
impossibilidade. Em uma batalha simbólica de pequena relevância e que não chega a impactar
as macroestruturas identitárias, as masculinidades rivais utilizam as armas de suas respectivas
culturas: a força física, associada à soberania masculina hegemônica, se estabelece inicialmente
como vantagem, entretanto, com a inversão dos paradigmas da disputa, o investimento da
masculinidade cisgênero é desmobilizado diante da automonstrificação que, acolhendo a
própria alteridade e o fracasso como armas, localiza a fragilidade de seu oponente e ataca com
o “toque gay” representativo dos “saberes marginais”.
O ressentimento, a raiva e a vingança são os afetos que inspiram esse duelo não-
reivindicativo e, assim como o sorriso monstrificante e monstrificador de Rodríguez, a carícia
da alteridade se converte em ameaça de contaminação/monstrificação e garante a vitória. A
evocação do medo de contaminação, uma das principais forças ocultas da monstruosidade, e a
real possibilidade de contaminação é referenciada de forma ainda mais explícita e com o mesmo
caráter de guerra social cotidiana no poema em que Rodríguez se mune como vetor de
contaminação por HIV: “Me aferro a esos hombres que cuando me miran con odio me desean
para hacerme desangrar y no saben que aquí los espero para eso, para mesclar sin que ellos
lo sepan, mi sangre con la de ellos, porque soy travesti y todo lo que me hace un hombre yo lo
puedo hacer a ellos y mejor”88 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data / sem paginação).
Em outra passagem semelhante a esse trecho, os riscos e as vulnerabilidades de seu
corpo se convertem em arsenal inusitado: “llegaron a contarme que el SIDA te está devorando
lentamente mientras a mi me hará escribir poesía. Esa será mi venganza” 89 (RODRÍGUEZ,
Contodomisida, s/n). Produzindo a partir da ferida e incorporando o próprio fracasso num duelo
vingativo como arma contra os sistemas imperantes, essas proposições agenciam a
contaminação como prerrogativa monstruosa sudaca. Esses saberes ocultos não prometem mais

88
Tradução: “Me agarro a esses homens que quando me olham com ódio me desejam para fazer-me
sangrar e não sabem que aqui os espero para isso, para misturar sem que eles saibam, meu sangue com o deles,
porque sou travesti e tudo o que um homem faz contra mim eu posso fazer contra eles e melhor”.
89
Tradução: “chegaram a me contar que a AIDS está te devorando lentamente enquanto no meu caso
me fará escrever poesia. Essa será minha vingança”.
210

que pequenas vinganças cotidianas e individuais, mas representam a recusa à assimilação, à


resolução do conflito e à negociação. Pode-se dizer que o que “reivindicam” seria a utópica
desintegração completa dos sistemas identitários nos quais estão inseridas; ou seja, em vez de
direitos, leis e outras políticas de reconhecimento e inclusão dentro das estruturas preexistentes,
esses projetos utilizam a monstruosidade enquanto impossibilidade ontológica (escapar à
identidade) e como alternativa à assimilação.
Uma das proposições monstruosas contra-reivindicativas e anti-assimilacionistas mais
emblemáticas que operam nesse sentido é o poema Yo Monstruo Mio, publicado no livreto
autônomo Poemário Transpirado, da poetisa travesti argentina Susy Shock. Esvaziado de
reivindicação e não por isso menos potente, esse poema articula, por meio da figura do monstro,
uma recusa ontológica.
211

Figura 33 – Trecho de Poemário Transpirado

Fonte: SHOCK (2011, p. 12-14)


212

Nesse poema destaca-se um forte apelo à alienação, especialmente quando Shock se


autoproclama “equidistante de tudo” e se representa como “mariposa alheia à modernidade, à
pós-modernidade, à normalidade”. Ademais, a recusa e a negatividade são também elementos
fundamentais dessa proposição: em vez de se representar de forma consistente e inteligível, a
autora elenca tudo aquilo que não é e que não deseja quando se autodeclara monstruosa: “nem
homem nem mulher, nem XXI nem H2O”, “sem bíblias, sem tabelas, sem geografias sem nada”
e “não quero mais títulos para carregar, não quero mais cargos nem armários onde encaixar nem
213

o nome próprio que me prescreva Ciência nenhuma”. Nessas passagens Shock cita as
instituições (o vaticano, o jurídico, a ciência, a linguagem etc.) somente para reiterar seu
despertencimento e articula uma versão monstruosa de si que escapa ao principal dispositivo
de regulação sob as quais essas entidades se fundamentam: a identidade.
À primeira vista, o poema em questão soa propositivo, pois “reivindica”
reiteradamente, ou seja, emprega o vocabulário de grupos e organizações que atuam, através de
agenda política institucional, em prol da visibilidade e do reconhecimento dos direitos
LGBTTQI enquanto categoria excluída e desamparada pelo estado. Entretanto, a reivindicação
de Shock não é pela criminalização da transfobia ou pela despatologização das identidades
trans*, nem pela inclusão no matrimônio igualitário ou pela lei de identidade de gênero: a autora
se posiciona contra os pilares identitários de regulação e controle biopolítico incidindo
criticamente nos sistemas por eles amparados, como o carcerário, o militar, o científico, o
matrimonial, o político etc. Ou seja, a autora clama pela permanência num estado liminar que
conflita com a noção de pessoidade.
É pertinente salientar que Shock forja um emprego irônico da linguagem de que se
apropria, posto que aquilo que reivindica seria uma impossibilidade: a monstruosidade não é
capaz de operar nos termos legais que regulamentam a pessoidade e a cidadania, ou seja, não
poderia ser articulada enquanto identidade civil, já que desafia os principais critérios da
identificação. Quando reivindica ser um monstro, em vez de propor mudanças no sistema
imperante, a autora “reivindica” a sua própria exclusão e alienação, ou seja, não está de fato
requerendo, senão recusando a coerência, a estabilidade e a respeitabilidade como as únicas
formas de existência diante do estado. Com esse gesto, Shock antecipa a própria captura no
elástico tecido social do estado neoliberal e arquiteta uma via de fuga das políticas de
visibilidade e de reconhecimento através das quais as dissidências correm o risco de assimilação
e de neutralização, conforme argumentarei mais adiante.
Um dos efeitos desse poema é a explicitação da função da identidade enquanto aparato
biopolítico de regulação (ferramenta histórica de criminalização, patologização e controle
social) que serve ao estado. Aqui Shock evoca o debate sobre os riscos de assimilação da
dissidência nas políticas públicas que regulam a identidade e recusa as negociações que tendem
a docilizar corpos não-binários e domesticar sexualidades através da nomeação e do
reconhecimento social nos termos da hegemonia. Nesse sentido, pode-se dizer que a autora se
apropria de terminologias e brinca com elementos institucionais e jurídicos de identificação e
de controle social (como o número do RG) objetivando expor o funcionamento dessas
214

estruturas. Complementarmente, esse poema pode ser analisado junto ao projeto DNI: De
Natura Incerta, que integra o Museo Travesti del Peru de Giuseppe Campuzano, em que a
artista cria documentos de identificação que incorporam a travestilidade como identidade oficial
no registro civil.

Figura 34 – Trabalho artístico DNI (De Natura Incertus)

Fonte: Giuseppe Campuzano (2009)

O Museo Travesti del Peru é “um meio termo entre performance e pesquisa histórica”
(CAMPUZANO; LÓPEZ, 2013). Intersticial, promíscua e irreverente às disciplinas, a proposta
da artista representa a travestilidade ao mesmo tempo como impossibilidade identitária e como
existência que permanece em transformação desde o período pré-colonial: colecionando,
criando e expondo um arquivo que comprova a presença, a permanência e as tentativas de
aniquilação/captura de corpos análogos aos de travestis ao longo da história, a artista imagina
formas de aludir à travestilidade a situando em um contínuo histórico fracionado e, ao mesmo
tempo, cria representações que logram escapar o fardo de produzir aquilo que alegam
meramente representar.
Com estratégias representativas singulares e distintas daquelas que clamam por
visibilidade e reconhecimento, o Museo Travesti critica o modelo científico, a história e a
produção de conhecimento ocidental que apagaram as travestis dos registros oficiais.
Entretanto, Campuzano efetua essas críticas sem oferecer contornos nítidos à categoria à qual
alude: entendendo “identidade” enquanto instrumento colonizador de premissas genocidas, o
projeto em questão explicita a exclusão da dissidência e, ao mesmo tempo, recusa a assimilação
da travestilidade enquanto identidade reconhecível no âmbito institucional.
A provocação de Campuzano em DNI é um exemplo excepcional de estratégia contra-
reivindicativa: a crítica se sustenta através do estranhamento produzido pelo contraste entre o
215

nome, o fenótipo e os registros fotográficos, especialmente comparando diferentes versões do


documento de identidade, em que Campuzano apresenta autorretratos notadamente distintos e
sugere mais incoerências. Ademais, a expressão incomum e excessiva da figura fotografada
(fora dos padrões da fotografia 3x4) e a marcação “T” na sessão de identificação do sexo
(aludindo à identidade travesti) são outros elementos desestabilizadores. Ou seja, a proposta
sugere que a inclusão da categoria “travesti” nesse tipo de sistema de identificação implicaria
uma transformação profunda do modelo em vigor. Portanto, pode-se dizer que em vez de
reivindicar ligeiros alargamentos (como a inclusão da letra “t” junto à “f” e “m” na sessão de
identificação do sexo) para acolher corpos dissidentes, o projeto aponta para a desintegração
desse modelo, especialmente considerando que seu principal mecanismo de controle (a
coerência do retrato fotográfico) é interditado pela proposta.
A reivindicação da clandestinidade/monstruosidade travesti desponta nesses projetos
com uma potência decolonial, na medida em que insinua uma trajetória ou contínuo histórico
travesti, forjando um laço indicial com outros corpos dissidentes que foram negados e também
se negaram a integrar os ditames que regulam pessoidade diante do estado. A esse respeito, em
Giuseppe Campuzano’s Afterlife: Toward a Travesti Methodology for Critique, Care, and
Radical Resistance, Malú Machuca Rose descreve o atrito entre travestis e o sistema de
cadastro, regulação e controle biopolítico como uma das características historicamente mais
consistentes da subjetividade em questão:

Travesti é comumente uma trabalhadora sexual, seja pela necessidade de dinheiro,


validação, sobrevivência ou, mais provável, pela mistura dos três. Ela não tem um
RG, Documento de Identidade, possivelmente nunca teve um. Ela é indocumentada,
e grande parte das vezes ela migrou para longe da família na qual nasceu para poder
renascer entre as suas. Travesti é a recusa em ser trans, a recusa em ser mulher, a
recusa em ser inteligível. O mais importante: ela sempre esteve aqui. (ROSE, 2019,
p.243. Grifos Meus)

Transcestralidade, imaginada para além do parentesco ou da linhagem biológica,


temporal e geográfica (o conceito de “kin” seria talvez o mais aproximado), diz respeito a um
alinhamento entre corpos análogos a travestis em temporalidades e espacialidades dissidentes,
em um quadro temporal fracionado e não-progressivo. A contrapelo do tradicional ativismo
LGBTTQI, que percebe a dissidência em oposição ao Humano e como pleiteadora dos direitos
humanos, essa proposta localiza o corpo dissidente em sua própria história de desumanização.
Em vez de “recuperar” uma história travesti e enquadrá-la em narrativas e métodos canônicos
de arquivamento, registro e memória, essas proposições apontam criativa e imaginativamente
216

para figuras que atravessam espacialidades e temporalidades dissidentes enquanto vultos


nebulosos, sem contornos precisos. A necessidade de abordar “identidade” através da
reimaginação de agenciamentos formados por agentes históricos inusitados se dá como resposta
à exclusão da dissidência dos registros e arquivos oficiais, conforme articulado por Jorge Díaz
sobre o cenário chileno:

Em um país onde o patrimônio se entende sempre em um sentido conservador, em um


sentido de reconstrução de edifícios antigos, onde o patrimônio é constituído por
identidades idealizadas mas onde os sujeitos político-sexuais como as travestis
seguem sendo negados de memória e de um “resgate” patrimonial próprio. (DÍAZ,
2015)

Nessa lógica, “superar a monstruosidade” seria análogo a negar a própria trajetória e


reivindicar “humanidade” (com slogans como “somos todos iguais”, que apagam as diferenças
e criam uma unidade humana perante o estado) seria uma traição à própria história e cultura
dissidentes. A monstruosidade reivindicada por Shock e a travestilidade incitada por
Campuzano incorporam em suas recusas um passado habitado por diferentes corporalidades
subjugadas (não organizadas enquanto unidade ou identidade) e ecoam em estratégias de
resistência anteriores, pautadas na recusa e nas existências/permanências impensáveis. A esse
respeito, quando Rose coloca que a figura da travesti “sempre esteve aqui”, responde com
inusitada resiliência à promessa de aniquilação física e simbólica. A recusa, enquanto arma
transcestral, é eco de uma permanência ontologicamente inegociável, ou seja, referencia os
corpos que resistiram à imposição do gênero no encontro colonial e que se desdobram na
ilegalidade de sua condição contemporânea, rejeitando negociações com os sistemas
identitários pautados no colonialismo de gênero. Trata-se de um “estar aqui” estrategicamente
clandestino, ilegal e irrevindicável que, se re-des-compondo através de um registro que desafia
os cânones de “história” e de “arquivo”, evoca “travesti” sem arquitetar contornos fixos à
subjetividade.
Cabe reiterar que esse processo de resgate e de reformulação de uma memória
dissidente sudaca não visa impor verdades históricas que seriam mais autênticas que aquela
privilegiada pelas instituições de cultura e de ensino ou que as de qualquer outra vertente: nelas
se reconhece a multiplicidade, as contradições e as diferenças implicadas na manipulação do
artifício da memória coletiva. Ao mesmo tempo em que esses projetos autorrepresentativos
denunciam uma trajetória marcada por violências coloniais, se mantêm selvagens e alheios ao
maleável tecido social dos sistemas globais que absorvem, organizam e reordenam as narrativas
históricas para capturar e de “dar conta” do sujeito utilizando seus próprios termos.
217

A representação que recorre a contornos imprecisos, que nega explicações e


justificativas ao mesmo tempo em que explicita a construção de uma história edificada na
deshumanização da dissidência, também se faz também em outras autorrepresentações
monstruosas trans* como, por exemplo, os desenhos e textos dispostos no zine argentino
Ofensivo Trans. Nessa produção autoral argentina Cat-man e Fran F. escrevem: “No les vamos
a contar cosas de nuestra especie. Esto no es un zoológico. Tampoco es un circo. Pero pasen
y vean90” (CAR-MAN/ FRAN, Ofensivo Trans, 2013, s/n).

Figura 35 – Trecho de Ofensivo Trans

Fonte: Car-Man/ Fran (2013).

Na imagem acima, fazendo referência às instituições científicas (museus, laboratórios


etc.) e de entretenimento (circos, zoológicos etc.) criadas para domesticar, encarcerar, expor e
explicar os corpos anormais e, portanto, desumanizados 91 , xs autorxs (que se autoentitulam

90
Tradução: “Não vamos contar coisas da nossa espécie. Isso não é um zoológico. Tampouco é um
circo. Mas passem e vejam”.
91
Podemos recordar a icônica figura circense da “mulher barbada” e também a história de Sarah
"Saartjie" Baartman, proveniente do povo Khoisan (África do Sul), cujo corpo passou, vivo e morto, por diversas
instituições científicas (museus e laboratórios) e de entretenimento (zoológicos e circos).
218

“dois viados trans de Buenos Aires”) sugerem que as corporalidades trans* escapam à espécie
humana e se codificam em signos ininteligíveis à humanidade, marcando assim a existência de
uma cultura visual própria que serve aos propósitos internos da comunidade dissidente e não
manifesta o desejo de compartir da história oficial.
É pertinente evidenciar que nessa passagem o convite “passem e vejam” reivindica
certa opacidade e ininteligibilidade (a recusa em explicar-se, bem como a recusa de um quadro
visual identitário) e presume, ao mesmo tempo, invisibilidade (talvez aludindo à ideia de
“passabilidade”) e hipervisibilidade (dissidência como espetáculo e excesso no campo visual),
uma característica fundamentalmente monstruosa:

O monstro é, ao mesmo tempo, absolutamente transparente e totalmente opaco.


Quando o encaramos, nosso olhar fica paralisado e absorto em um fascínio sem fim.
Ao exibir a sua deformidade, a sua anormalidade – que normalmente se esconde – o
monstro oferece ao olhar a sua aberração para que todos a vejam. (PEIXOTO, 2010,
p.180)

Essa noção de hipervisibilidade que combina o inassimilável e o invisível é explicitada


na página seguinte do mesmo zine, no trecho intitulado Problemas de visão, em que as autorias
evidenciam a impossibilidade de uma leitura identitária orientada pela lente cis-heterossexual,
ou seja, uma que projeta identidade através do escrutínio do corpo no domínio especular. Aqui
Cat-man e Fran F. sugerem que os corpos trans* podem abarcar trajetórias conflitantes,
paradoxais e inassimiláveis em termos identitários. Evidenciando a sobreposição de
experiências lésbicas, cis-heterossexuais e gays na experiência transmasculina, as autorias
argumentam que o repertório disponível no domínio especular é insuficiente para organizar as
contradições e os excessos (desejos, estéticas, identidades, corporalidades, histórias etc.) que as
trajetórias trans* abarcam.
Conforme previamente mencionado, esses projetos ambiguamente irônicos também
incitam uma reflexão sobre os limites entre as reivindicações de direitos e as armadilhas de
assimilação e captura do Estado. A escolha pelo documento de identidade, referenciado por
Shock e central no trabalho de Campuzano, explicita os paradoxos das negociações entre o
estado e as políticas de visibilidade e de reconhecimento LGBTTQI geralmente articuladas por
ONGs e grupos ativistas. Argumenta-se que a construção e efetivação de políticas de inclusão
(como a adição do nome social e alteração de gênero), ao mesmo tempo em que visam aliviar
as opressões cotidianas contra grupos marginalizados, têm seus limites demarcados pelo estado
neoliberal.
219

O estado mantém “sexo” no documento de identidade e, com isso, o reforça e


naturaliza através de políticas que impactam significativamente a vida cotidiana de travestis e
pessoas trans*, cujos corpos muitas vezes contrastam ou conflitam com os documentos que os
monitoram. Pautando justamente as alterações nas documentações de identificação para abarcar
o nome social, Vanessa Marinho Pereira (2015) aponta para possíveis armadilhas por trás dessas
propostas que oferecem alívios individualistas:

O registro civil não corresponde ao corpo ali presente, não remete a nenhuma
identificação real da pessoa trans*, não serve no processo de produção daquela
subjetividade que não para constranger e marcar aquela humanidade como diferente.
A “Carteira de nome social para Travestis e Transexuais” criada pelo decreto n°
49.122, explicita visualmente essas marcas de monstruosidade, pois ao invés de
propor mudanças nas lógicas de identificação civil, instaura um documento de
segregação que mantém as normas vigentes. (PEREIRA, 2015, p. 70)

Também nesse sentido ressalta-se que reivindicar o direito à identidade nos termos
do estado significa ser conivente com uma noção de sujeito que privilegia a hegemonia e produz
novas outrificações, conforme explicado por Butler: “Com efeito, a lei produz e depois oculta
a noção de sujeito perante a lei, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa
básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei”
(BUTLER, 2003, p.19). Além disso, a visão reformista, que reivindica a inclusão da dissidência
nas estruturas hegemônicas por via da expansão da elegibilidade no sistema, encontra meios
para formalizar a existência dessas pessoas dentro do aparato burocrático e jurídico da
cidadania, mas deixa escapar a densidade do problema que a inexistência social impõe à
sociabilidade.
Investigando os paradoxos e considerando as tensões constitutivas entre a relação
estabelecida entre o estado e a dissidência, em seu artigo É possível um ESTADO* que abarque
a multidão queer? Breves considerações sobre a política sexual na biopolítica contemporânea
(2014), Fátima Lima vislumbra possibilidades e limites nessas propostas de negociação,
atentando para a necessidade de prever a captura da dissidência e objetivando preservar sua
potência desestabilizadora:

Mais do que afirmar que o Estado é aberto às políticas queer ou rarefeito a elas, é
interessante refletir, por dentro da noção de Estado, as tensões e alargamentos nos
quais as possibilidades queer são capturadas e/ou mantém a sua potência de máquina
de guerra, suas resistências e singularidades como expressões desestabilizadoras,
principalmente das performances de gênero. (LIMA, 2014, p.3)
220

Se, por um lado, uma proposta de recusa radical (separatismo) deixaria intacta a
soberania do sistema estatal, por outro lado, o alargamento das políticas identitárias vigentes
seria insuficiente, visto que engendraria uma armadilha assimilacionista que, fantasiada de
transgressão, mantém e atualiza estruturas que se regeneram sempre através da criação de novos
marcos hierárquicos e outrificantes. De que forma, então, o separatismo e seus projetos
micropolíticos sustentados pela recusa, pela negação e pela premissa de fracasso poderiam
impor ameaças às engrenagens da hegemonia?
Segundo Haraway, é preciso imaginar figurações feministas que ao mesmo tempo
penetram no imaginário hegemônico impactando os sistemas imperantes e resistem aos fardos
e capturas da representação:

Eu acredito que precisamos ter figuras feministas da humanidade. Elas não podem ser
homem ou mulher; elas não podem ser o humano como a narrativa histórica
apresentou o universal genérico. Figuras feministas não podem, finalmente, ter um
nome; elas não podem ser nativas. A humanidade feminista precisa, de alguma forma,
ao mesmo tempo resistir à representação, resistir à figuração literal e ainda assim
irromper em tropos novos poderosos, novas figuras de linguagem, novas guinadas de
possibilidade histórica. (HARAWAY, 2004, p.47)

O monstro, enquanto figura necessariamente clandestina que não goza do status pleno
de sujeito, se encaixa no apelo que Haraway faz por um tropo feminista capaz de resistir à
própria clausura na representação. Complementarmente, é importante ressaltar que a
monstruosidade não pode ser circunscrita e aprisionada em posicionamentos separatistas (que
teoricamente mantém inabaladas as estruturas soberanas), pelo contrário, o monstro, apesar de
ininteligível, é visível e habita o mesmo plano que o Humano. A função do abjeto para a
constituição epistêmica do sujeito (a partir de sua expulsão das operações dialéticas) se
desdobra no retorno do monstro a esse sistema, do qual se faz indispensável, seja objetivando
a manutenção das fronteiras da normalidade (regulação do espectro do Humano) ou trazendo
ameaças de desestabilização da categoria. Dessa forma, diferentemente do abjeto (figura do
separatismo pleno), a criatura monstruosa se insere forçosamente nas categorias de pensamento
socialmente inteligíveis, ou seja, não é mantida fora do domínio humano, mas em sua
limiaridade, mediando e criando pontes entre os termos das relações dialéticas que sustentam
pessoidade.
Ao mesmo tempo em que evoca o domínio dos seres abjetos (aqueles expulsos do
Humano e que compõem o exterior constitutivo ao domínio do sujeito), o monstro transita entre
mundos e categorias, impactando os sistemas vigentes: “Se o abjeto não é inteligível na
episteme social, o monstro, por outro lado, ingressou nesse território e tem certo
221

reconhecimento da sociedade. O monstro opera no limite, entre a categorização e a não


categorização” (PEREIRA, 2015, p.67). Exemplificando essa colocação, Jorge Leite identifica
a categoria “monstro” enquanto local e raiz das opressões enfrentadas pelas pessoas trans*,
indicando que, apesar de operar através da ininteligibilidade, trata-se de uma categoria que
trafega cotidianamente na episteme social:

O que causa a agressiva reação com que essas pessoas são tratadas não é o fato de elas
se apresentarem como “mulher de verdade”, “homem vestido de mulher” ou qualquer
coisa do tipo, mas o fato de já serem compreendidas dentro de uma categoria
(científica, religiosa ou jurídica) de desvio, de “monstruosidade” que legitima e
autoriza a violência contra elas. (LEITE, 2012, p.566)

Vislumbrar uma rearticulação da monstruosidade (que, de qualquer forma, a


dissidência já representa) sem lhe conferir uma identidade é o desafio de trabalhos
autorrepresentativos travesti/trans* aqui analisados. Essas monstruosidades reiteradas devem
escapar à sedutora armadilha identitária (“sou” um monstro) e evitar a designação de ontologias
monstruosas, mantendo-se sempre às margens das estruturas identitárias: o monstro sequer se
define para si mesmo (é estrangeiro a si próprio) e emerge, antes, como alteridade crítica
representativa das ameaças contingentes ao seu entorno. Assim sendo, quando Shock proclama
“eu, monstro meu” sinaliza uma série de paradoxos e incoerências poéticas para sabotar a
pessoidade com um disfarce de identidade.
Circulando pela episteme social, o monstro é capaz de antecipar e desarticular o
dispositivo de captura e assimilação neoliberal, visto que se assemelha ao “outro
inapropriável/inapropriado” teorizado por Trinh Min-ha (1987) e rearticulado por Haraway:

Mais bem, ser um “outro inapropriado/inapropriável” significa estar em uma relação


crítica desconstrutiva, em uma (racio)nalidade difrativa em vez de refletiva – como
meio de fazer uma conexão potente que supera a dominação. Ser
inapropriado/inapropriável é não se encaixar na taxonomia, ser deslocado dos mapas
disponíveis que especificam tipos de atores e tipos de narrativas, não ser originalmente
fixa/o pela diferença. (HARAWAY, 2004, p.69)

Aqui Haraway distingue a proposta de validar a “diferença” como identidade autêntica


e retentora de direitos (reverberante nos apelos institucionais à diversidade) daquela que
entende como diferença crítica que compromete o “eu” (e sua humanidade). Nessa perspectiva,
pode-se dizer que, questionando a crença na própria identidade, quando Shock utiliza o tropo
do monstro em sua autorrepresentação, rejeita uma reformulação do “trans*” e substitui
investimentos na própria identidade pela possibilidade de lançar um olhar crítico ao Humano.
222

A esse respeito, Leite explica que as identidades monstruosas transitaram


historicamente em um movimento pendular entre a criminalidade e a patologia, e entende a
segunda como uma forma mais branda de punição, que persuade à auto-outrificação visando
garantir recursos (como a terapia hormonal). Amparando os paradoxos desse debate, o autor
sugere substituir a perspectiva centrada na superação da monstruosidade por uma articulação
do monstro que promove a revisão do Humano:

[...] se essas pessoas estão categorizadas no campo dos monstros sexuais, e esses só
são inteligíveis ora como criminosos, ora como doentes, como torná-las inteligíveis
fora desses limites? Como escapar desse movimento pendular? Será que a inclusão
dessas pessoas na lógica da segurança médica da sociedade de controle, tornando-as,
por exemplo, “agentes de prevenção”, é capaz de fazê-las transitar da categoria de
monstros para a de humanos ou apenas reforça a estigmatização dessas através da
íntima relação simbólica, novamente, com a doença? Mas creio que, antes de tudo,
necessitamos não apenas retirar determinados seres da categoria de monstros e alocá-
los no campo dos “humanos”, necessitamos repensar os limites da própria categoria
“humano”. (LEITE, 2012, p.567)

A possibilidade de devolver um olhar questionador e crítico ao Humano se


fundamenta, no caso dos projetos autônomos travesti/trans*, na citação e no desvirtuamento de
um dos principais atributos sustentadores da noção de humanidade: a “natureza”. O monstro
animalizado surge em proposições travesti/trans* sudacas (como nos trabalhos de Shock e de
Rodríguez) enquanto apropriação subversiva da noção de natureza empregada, através da
ciência sexual, para regular (patologizar e criminalizar) a pessoidade e a civilidade:

Foi no âmbito do biopoder que os corpos, na dimensão anatofisiológica e na dimensão


social, passaram a constituir dispositivos complexos cujo controle e disciplinarização
dos corpos e sexualidades foram a força motriz. Foi com base no natural, no biológico,
na diferença sexual que o capitalismo, entre outras características, tornou-se cada vez
mais hegemônico. (LIMA, 2014, p.9)

Num gesto parecido ao da King Kong travesti e ao do lobisomem-trans, a


monstruosidade de Shock no poema Yo monstruo mio se afirma em animalidades híbridas,
obscuras e oscilantes: a autora toma emprestadas as figuras da borboleta, da vespa e da cadela
como locais de identificação em seu poema. Com esse gesto, Shock contamina a ideia de
natureza com as tecnologias de gênero comumente percebidas como “artificiais” ou “culturais”:
a monstruosidade de Shock é ao mesmo tempo silvestre e artesanal, menstruante e prostética,
amazona e portadora de registro civil, organismo biológico mutante, produto de uma cultura e
talhada através de desejos individuais (“carne de cada uma das minhas pinceladas”).
Oferecendo uma imagem animalizada da travestilidade, que é irredimível, cheia de contradições
223

e incompleta, a autora escapa à lógica que opõe natureza e cultura, empregando o contínuo
“naturezas-culturas” na formação da monstruosidade travesti.
De maneira semelhante, reorientando o discurso da ciência sexual que associa
“natureza” ao biológico e à diferenciação sexual, Rodríguez recupera a conexão entre natureza
e selvageria, incivilidade e o incapturável, para forjar uma travestilidade animalizada que
pretende escapar aos processos de domesticação, regulação e vigilância do estado. Essa
proposta se explicita, por exemplo, em sua desidentificação com King Kong, bem como na
ocasião em que protestou fantasiada de animal segurando um cartaz com os dizeres: “sou
travesti: um animal contra o neoliberalismo Marri Chiweu!” (a palavra mapuche Marichiweu,
aqui referenciada, significa “dez vezes venceremos”).

Figura 36 – Foto de Cuerpos para odiar

Fonte: Rodríguez (2014, p.95)

Nessa proposição a autora protesta contra o estado neoliberal equiparando


travestilidade à animalidade e referenciando outros grupos desumanizados, como os indígenas
Mapuche. Reverberando na proposta de Rose Machuca, a selvageria que Rodríguez indexa à
travestilidade confronta os sistemas judiciários, especialmente quando se autorrepresenta
enquanto corpo híbrido não/humano e inassimilável dentro dos critérios taxonômicos e
identitários. Complementarmente, em um vídeo postado na plataforma Youtube a autora reitera,
224

através da autodeclaração monstruosa, a sua recusa aos sistemas governamentais de controle


social e reforça a impossibilidade da existência do estado para as subjetividades travesti: “As
políticas públicas e a diversidade sexual nunca vão poder me constituir porque eu sou muito
mais monstruosa, sou perversa, eu gosto da pica, eu gosto do edi, e estou escrevendo de toda
essa imundice que dá vergonha saber, que é muito pobre saber, que é anti-higiênico saber”92
(RODRÍGUEZ, 2019).
Ao defender que “para las travestis reales, el estado no puede existir” (RODRÍGUEZ,
2007), Rodríguez engendra um posicionamento anti-estatal e antissocial que ecoa nos trabalhos
de outras travestis, como Hija de Perra, Malú Machuca Rose, Susy Shock, Nati Menstrual e é
também compartilhado por Indianara Siqueira, que expressa seu desejo de “destruir e não me
inserir [na sociedade]” (SIQUEIRA, 2016).
Até aqui a figura da King Kong travesti foi analisada em sua relação com a quebra da
comunicação (o vazio da linguagem reivindicativa), com a promessa de morte e com outros
projetos micropolíticos dissidentes que mobilizam uma recusa vingativa micropolítica. No
próximo capítulo, proponho discutir a figura da King Kong travesti em relação à colonialidade
do gênero. Para tanto convém observar mais de perto a forma como raça, sexo e gênero se
transformam na desidentificação proposta por Rodríguez na passagem:

Sé que cuando vea una película voy a llorar. Holliwood destruyó la ilusión de mi
infancia. Siempre los malos de las películas morían o quedaban tullidos, ninguno se
salvaba de su cruel destino. Cuando vi morir a King Kong supe que era a mí a quien
la industria estaba matando. No se puede ser tan grande, tan fea y vivir en el centro
de la ciudad93. (RODRÍGUEZ, 2015, p.70)

92
Do original: “Las políticas públicas y la diversidad sexual nunca me van a poder constituir a mi
porque yo soy mucho mas monstruosa, soy perversa, me gusta el pico, me gusta el poto, y estoy escribiendo de
toda esa mudre que da verguenza saber, que es muy pobre saber, que es antihigienico saber”.
93
Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.
Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando
eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia
e viver no centro da cidade”.
225

6 CLOSE DA KING KONG TRAVESTI: MONSTRO, GÊNERO E RAÇA

6.1 HIPERVISIVILIDADE, RACIALIZAÇÃO E COLONIALIDADE DE GÊNERO:


REARTICULANDO KING KONG NO DOMÍNIO ESPECULAR

“The discursive tie between the colonized, the enslaved, the non-citizen and the
animal – all reduced to a type, all others to rational man, and all essence to his bright
constitution – is at heart to racism and, lethally, flourishes in the entrails of humanism”
(HARAWAY, 2008, p. 14)

Operando em diversas camadas conceituais, a desidentificação de Rodríguez com


King Kong condensa as autoconsciências sudaca e travesti para formular um “saber-se
monstruoso”, uma posição de sujeito que possui raízes nos processos de desumanização
perpetrados no período colonial: esse (in)humano, que emerge carregado de consciência
mestiça na autorrepresentação trans* e travesti sudaca, está enredado na história da colonização
da América Latina, pois ressoa como resquício e transformação de um processo de
abjetificação, animalização e desumanização sofrido pelas populações escravizadas (nativas e
africanas) e subalternizadas. Nesse sentido, pode-se dizer que o texto da autora cita os
elementos coloniais e raciais comumente associados à película King Kong que, no processo de
desidentificação, ganham novas conotações.
Em diversas leituras do filme, a invasão de seu habitat seguida do sequestro da criatura
emula os processos coloniais de escravização e extermínio de populações nativas racializadas.
Mapeando diferentes interpretações críticas, Erb se atém à referência do filme enquanto
desdobramento do encontro colonial e coloca que “os contornos da história original de King
Kong são, portanto, potencialmente globais e multiculturais, e o valor do uso do filme provém
da dramatização do contato entre representantes do Primeiro e do Terceiro Mundo” (ERB,
2009, p.3). Complementarmente, recordando que a monstruosidade foi um artifício
historicamente empregado para a representação do “etnográfico”, Rony coloca que King Kong
é “literalmente um filme sobre a feitura de um filme etnográfico” (RONY, 1996, p.159). Ao
ressaltar que os criadores da versão original do filme (Cooper e Schoedsack) eram conhecidos
cineastas de películas etnográficas, a autora afirma que “a linhagem de King Kong deveria ser
óbvia: a filmagem, a captura, a exibição, a fotografia e finalmente o assassinato de Kong
226

descendem da exploração histórica de povos nativos como espécimes bizarros ‘etnográficos’


pela ciência, pelo cinema e pela cultura popular” (RONY, 1996, p.159).
No que diz respeito à “linhagem” da representação racializada apontada em King Kong
por Rony, é pertinente salientar que diversos artigos estabelecem que no imaginário cultural
King Kong é constantemente interpretada como uma figura masculina racializada. Na crítica
do filme, a raça se estabelece primariamente com a associação do monstro à figura do homem
negro e, de forma menos específica, através de uma associação generalizada da subalternização
de populações nativas e racializadas, conforme analisado por Thomas Cripps em Slow Fade to
Black Negro in American Film:

Penetrar o labirinto de barreiras à experiência negra nos trópicos era tão estranho, que
um filme de horror bizarro sobre um macaco gigante chegou a se estabelecer como
alegoria underground da experiência negra. King Kong poderia ser descartado como
um mero pesadelo racista, de fato, na Alemanha era King Kong und die Weisse Frau.
[...] No final, Kong se tornou uma figura mítica duradoura, parte “preto mau” e parte
vítima universal da exploração. (CRIPPS, 1977, p.278)

Levando em consideração essas interpretações que se sedimentaram orientando as


principais críticas do filme, pode-se dizer que a desidentificação de Rodríguez com King Kong
evoca essa figura racializada e “vítima universal da exploração” agregando ao debate racial
uma violência específica cometida contra corpos dissidentes nativos: identifica-se aqui uma
referência à colonialidade do gênero, ou seja, à imposição de normas ocidentais a comunidades
habitadas por corporalidades análogas às travestis (como, por exemplo, em populações nativas
dos Andes). Nesse sentido, pode-se dizer que o “sequestro” da criatura se traduz na metáfora
em questão como um tipo de deslocamento, mas opera com outras particularidades não
necessariamente diaspóricas: além dos raptos (a transferência do corpo a uma norma que
outrifica) durante a colonização da América Latina e, dentre as invasões epistêmicas
imperialistas, se destaca a imposição de uma norma de gênero, que desumanizava para justificar
punições (genocídios e torturas) aos corpos nativos análogos aos das travestis, conforme
referenciado nos trabalhos de Hija de Perra, de Jota Mombaça, no Museo Travesti del Peru de
Giuseppe Campuzano e em diversos zines dissidentes latino-americanos.
A esse respeito, analisando a dicotomia humano/não-humano, em seu artigo Rumo a
um Feminismo Decolonial, Lugones apresenta uma perspectiva descolonial que permite
entender gênero como um dispositivo do colonizador, bem como seu papel na deshumanização.
A autora explica que as categorias “homem” e “mulher” eram a distinção que “tornou-se a
marca do humano e a marca da civilização” (LUGONES, 2014, p.936) e enfatiza que, embora
227

no contexto da colonização não houvesse propriamente a diferenciação entre sexo e gênero,


paradoxalmente, o bestial não era gendrado: as/os colonizadas/os e escravizadas/os eram
submetidas/os a uma categorização com base em um “dimorfismo sexual” (macho/fêmea)
dissociado de gênero (pessoidade).
Relacionando “selvageria” aos processos de desumanização perpetrados no período
colonial, Lugones coloca que só os civilizados possuíam os status privilegiados “homem” ou
“mulher”, enquanto do outro lado da relação dialética (interconstitutiva e, ao mesmo tempo,
excludente) estavam os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as, que
“eram classificados/as como espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente
sexuais e selvagens” (LUGONES, 2014, p. 936). Essa formulação que, intermediada por
componentes raciais, isola sexo de gênero é o cerne da distinção que a autora faz entre
humano/não-humano e civilização/selvageria, e reverbera, com princípios semelhantes, na
desidentificação de Rodríguez com o primata gigante.
A partir de um quadro epistemológico que hierarquiza o humano em relação ao
animalizado pautando sexo e gênero, algumas críticas contemporâneas interpretam a ausência
de genitais de King Kong como uma camada adicional de selvageria, argumentando que a
impossibilidade de situar a figura com precisão nas categorias sexuais e de gênero conferem
ambiguidades historicamente associadas à monstruosidade, posto que civilidade/humanidade
se estabelecem através da inteligibilidade e da coerência na matriz que regula sexo, gênero,
desejo e prática sexual. Nesse sentido, em seu livro Teoria King Kong, Virginie Despentes
comenta a versão de 2005 do filme ressaltando a ambiguidade de gênero nas figuras
animalizadas representadas em Skull Island. Segundo Despentes, não só King Kong, mas todo
o ambiente de seu habitat é um comentário visualmente monstruoso e exagerado que comunica
sobre a ambiguidade e a intersticialidade do gênero no universo natural. Esboçando um
comentário que ecoa as ideias de Lugones, a autora descreve a Skull Island como sendo uma
ilha que

[...] está repleta de criaturas que não são macho nem fêmea: lagartas monstruosas com
tentáculos gosmentos e penetrantes, mas úmidas e rosas, como bocetas, larvas que
parecem pequenos caralhos que se abrem e se tornam vaginas dentadas para decapitar
a equipe. Outras se aproximam mais da iconografia de gênero, mas dentro do domínio
da sexualidade polimorfa: aranhas peludas, massas de brontossauros cinza e idênticos,
parecendo uma manada de espermatozoides estabanados. (DESPENTES, 2010,
p.106)
228

Despentes enxerga King Kong e seu habitat como uma espécie de caos natural que
antecede a divisão dos gêneros e, nesse sentido, vê o primata como uma figura híbrida isenta
de sexo e de gênero:

King Kong se torna uma metáfora da sexualidade antes da separação dos gêneros
politicamente impostos no final do século dezenove. King Kong está além de macho
e de fêmea. Está atado ao link entre homem e besta, adulto e criança, bom e mau,
primitivo e civilizado, negro e branco. É híbrido, antes da imposição do binário.
(DESPENTES, 2010, p.106)

Para a autora, King Kong representa a impossibilidade do racializado/animalizado de


operar satisfatoriamente no registro gendrado endossado pelos colonizadores brancos e reverte
a premissa cientificista da cultura ocidental que naturaliza a divisão binária dos sexos e dos
gêneros. Fazendo reverberar algumas das ideias de Lugones sobre a colonialidade do gênero, a
autora argumenta que a raça emerge como desdobramento de uma animalização que ofusca seu
gênero: “King Kong não tem nem pau, nem saco, nem tetas. A/o espectador/a nunca é capaz de
atribuir-lhe gênero. Não é nem macho nem fêmea. É meramente peludo e negro”
(DESPENTES, 2010, p.106).
No mesmo sentido, Erb coloca que “o componente híbrido monstruoso de King Kong
consegue absorver a maior parte das estruturas binárias características do pensamento ocidental
– leste/oeste, negro/branco, fêmea/macho, primitivo/moderno” (ERB, 2009, p.5). A esse
respeito, Paul Wells identifica uma ambivalência forte na criatura devido ao fato de que a figura
não possui genitais visíveis. Em seu livro The Animated Beastiary, no tópico King Kong’s
Penis, o autor – que, por sua vez, admite ter dificuldade em enxergar um componente de raça
na criatura – reconhece que Kong foi historicamente lido como macho violador da mulheridade
branca americana e como tropo colonial (nações de terceiro mundo sendo exploradas pelas de
primeiro mundo). Ademais, argumenta que, por se tratar de uma animação, essa figura desvirtua
qualquer imposição identitária, inaugurando uma nova ordem para se pensar sexo e gênero.
Wells nos convida a

[...] ver a animação como uma abordagem que inevitavelmente facilita uma diferença
representacional, e que interroga intrinsecamente as posições ortodoxas, ideologias
embutidas, e a certeza epistemológica em si. [...] Ademais, permitir um espaço para
que personagens ou fenômenos operem em termos e condições mais simbólicos e
metafóricos, convida a um maior grau de interpretações possivelmente bastante
carregadas de emoção ou de abstracionismo. [...] O bestiário animado corporifica a
abertura de um debate e não a fixação de conclusões. (WELLS, 2009, p.5)
229

Para o autor, por se tratar de uma animação e não de um animal real, King Kong estaria
mais predisposto a abarcar projeções ambíguas ou conflitantes no que diz respeito ao sexo, ao
gênero e à sexualidade. Nessa esteira, pode-se dizer que os trabalhos de Rodríguez, assim como
os projetos analisado nos capítulos anteriores, preferem a ficção à realidade, privilegiam a
imaginação à representação mimética e, assim, abrem brechas criativas que permitem imaginar
lugares e corpos outros.
Observa-se que a King Kong travesti de Rodríguez alude ao não/humano manejando
precisamente os mesmos termos explicados por Lugones: aqui o desumanizado é também
racializado, não correspondente aos padrões de gênero e representativo de selvageria. Há,
entretanto, uma diferença entre essas duas propostas. Se por um lado Lugones insiste na
importância de resistirmos à desumanização, nos zines selecionados para essa pesquisa as
pessoas trans* e travestis a reconhecem como constitutiva das histórias de seus corpos e
vislumbram em sua apropriação uma significativa estratégia de resistência calcada na
reivindicação da autonomia de sua representação e de sua história. Ou seja, em vez de reificar
esses mesmos termos que justificaram o genocídio, a exploração e o abuso de corpos
racializados e não gendrados, em seus projetos autônomos as pessoas trans* e travestis sudacas
reformulam as categorias não-humano e Humano enfatizando uma outra perspectiva, que é
inaugurada pela autorrepresentação imprecisa dos corpos dissidentes até então silenciados.
Conforme anteriormente mencionado, apropriando-se da interpelação injuriosa
“não/humano”, travestis e pessoas trans* tecem também um laço indexical com outros corpos
que foram forçosamente submetidos a essa categoria e, a partir desse vínculo, se projetam num
complexo e fragmentado campo histórico que lhes permite disputar a escrita e a legitimidade
das histórias de subjetividades subalternadas, racializadas e dissidentes da matriz heteronormal.
Esse exercício subverte completamente o emprego exordial da interpelação injuriosa, visto que,
segundo Lugones, a desumanização visava originalmente silenciar e deslegitimar culturas que
destoavam dos princípios e crenças dos colonizadores. Nesse sentido, Lugones explica que o
propósito da imposição de um sistema colonial de gênero era o de hierarquizar os corpos de
forma a privilegiar aqueles considerados plenamente humanos, que eram os civilizados
(europeus, brancos e burgueses). Ou seja, apesar da fachada da “missão civilizatória”, “tornar
os/as colonizados/as em seres humanos não era uma meta colonial” (LUGONES, 2014, p. 938),
tratava-se, senão, de uma justificativa para a “colonização da memória e, consequentemente,
das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual,
230

com a terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica” (LUGONES, 2014, p.938).
Assim sendo, apoiando-se no pretexto clássico e naturalizado de dominação do
humano sobre o não/humano (uma herança do pensamento colonial ainda latente e pouco
questionada na contemporaneidade) os “humanos e civilizados” garantiam a legalidade de
práticas de tortura, exploração e genocídio de seus outros constituintes, visando lucros materiais
através do trabalho escravo e da exploração direta, a imposição de sua cultura e a
implementação de suas “verdades”, dentre elas, o sistema que sustenta a matriz binária e
heteronormativa. Pode-se dizer que os mecanismos que privilegiam os saberes brancos e
eurocêntricos são interrompidos e expostos com a desidentificação de Rodríguez com King
Kong, uma vez que ela permite situar pessoas trans* e travestis na história latino-americana,
validar suas perspectivas e culturas e explicitar a violência cistêmica que naturalizou, por
exemplo, o travesticídio. Esse lócus fragmentado da memória subalterna se torna, assim, um
terreno fértil repleto de referenciais de autorreconhecimento cultural e histórico que nutrem as
produções dissidentes sudacas.
Relacionando raça à noção de colonialidade do gênero, argumentei que a King Kong
travesti investe na metáfora animalizada para citar as punições e o genocídio que
impossibilitaram a existência ou a inserção de corpos transfemininos na sociedade, resultando
na monstrualização (processo e efeito da hipervisibilidade e do estranhamento no domínio
visual) que, por sua vez, agencia um regime contemporâneo de aniquilamento desses sujeitos
inoperantes segundo as normas coloniais de inteligibilidade de gênero. Complementarmente,
pode-se dizer que a hipervisibilidade citada por Rodríguez (“Não se pode ser tão grande, tão
feia e viver no centro da cidade”) e os “problemas de visão” referenciados, por exemplo, no
zine Ofensivo Trans se dão através de um estranhamento tipicamente associado à forma como
são percebidas as corporalidades visivelmente trans* e/ou travestis (aquelas que não dispõem
de “passabilidade”), especialmente as que se encontram no espectro da transfeminilidade.
Para efetuar uma análise profunda de como essa criatura explicita esse efeito, cabe
observar a forma como a versão travesti de King Kong recicla e agencia os componentes de
sexo e gênero enredados em raça nas leituras do filme que a antecedem. Quais discursos se
edificaram em torno da identidade racializada e gendrada do primata e de que forma a versão
travesti do monstro transforma esses componentes? Para atentar a essas questões, é pertinente
primeiramente investigar como foram historicamente projetados gênero, sexo e sexualidade em
231

sua intersecção com raça na figura de King Kong, para, então, enredá-los criativamente à versão
travesti da criatura.

6.2 ACUENDOU A NECA? REMAPEANDO SEXO, RAÇA E GÊNERO EM KING KONG

Rhona Berenstein identifica que o gênero dos monstros foi historicamente indiferente
nas análises cinematográficas. Segundo a autora, por algum tempo a crítica dispensou
referências específicas ao gênero de King Kong e optou por descrições vagas e imprecisas, que
aludem à criatura como sendo algo diferente, nunca antes visto (BERENSTEIN, 2015, p.151).
Por outro lado, em seu artigo Monster as Woman, Karen Hollinger defende que o monstro foi
tradicionalmente percebido como inquestionavelmente masculino: “críticas/os foram lentas/os
em investigar conexões entre as representações dos monstros de horror e da imagem feminina
porque o monstro de horror foi tradicionalmente apresentado como masculino” (HOLLINGER,
2015, p.346). De acordo com Hollinger, a masculinidade da criatura não era contestada,
tampouco se afirmava uma neutralidade consistente a esse respeito, devido à tradição
cinematográfica de horror que inscrevia monstruosidade automaticamente como análoga à
masculinidade.
Berenstein menciona que, quando através da crítica feminista o gênero e a sexualidade
se estabeleceram como elementos a serem explorados nas análises de filmes de terror, teorias
pautadas na psicanálise começaram a eclodir interpretando a ausência de genitais do primata
como símbolo e, ao mesmo tempo, rejeição/medo da castração. Se, por um lado, o sexo da
criatura em King Kong é editado do registro visual (não há representações de vagina, seios,
testículos ou pênis), por outro, pode-se dizer que, substituindo uma análise puramente especular
por outra enredada na narrativa do filme, mais elementos (além dos genitais e de características
secundárias) despontam instruindo sobre sexo e gênero, especialmente levando em
consideração as engrenagens visuais orientadas pelo regime cis-heterossexual e a tradição da
economia simbólica que as sustenta.
Argumentou-se, por exemplo, que somos compelidas/os a projetar gênero masculino
na criatura devido à sua agressividade, à virilidade, à sua estatura, à quantidade de pelos que
tem no corpo e ao poder que retém. Nesse sentido, Giardina coloca que: “o Kong é um gorila,
mas ele é também uma coleção exagerada de significantes tradicionalmente masculinos: voz
grave, músculos enormes, altura de torre, pelo desgrenhado. Não há uma única parte dele que
seja macia, gentil ou delicada” (GIARDINA, 2005, p.188). Analisando as conexões feitas pela
232

autora, pode-se dizer que o público é induzido a interpretar o sexo e o gênero de King Kong
como masculino devido às engrenagens binaristas da cultura visual, as quais opõem a criatura
à feminilidade incontestável representada por Ann. Dessa forma, a masculinidade de Kong
passa a ser definida pela ausência da feminilidade excessivamente reiterada e codificada na
personagem com a qual contracena e que, em algumas instâncias, deseja. O contraste entre a
criatura e a donzela se traduzem no olhar ocidental opondo masculinidade à feminilidade em
diversos âmbitos comportamentais (estilização de gestos), estéticos e fisiológicos: a suavidade
das vestes de Ann versus a rugosidade da superfície tátil do primata, os gritos agudos versus
urros graves, a pele lisa versus camada de pelos, pequenez versus estatura colossal, os cabelos
loiros e a pele branca versus pele negra e pelos escuros. Todo significante passa a ser percebido
como alteridade uma vez instaurada a estrutura visual binária, que hierarquiza os termos
simultaneamente interdependentes (um só existe em relação ao seu oposto) e excludentes (as
categorias se definem através da exclusão de termos que compõem as categorias opositoras).
Aplicando essa lógica (que atribui gênero comparando a criatura à personagem
feminina) à figura da King Kong travesti, argumenta-se que a travestilidade se estabeleceria em
oposição à feminilidade cisgênero, mas em vez de operar como “outro”, organiza-se enquanto
uma alteridade indesejada no interior da categoria “mulher”: monstro. Argumenta-se que a King
Kong travesti emerge como intersticial e monstruosa porque hibridiza os termos “feminino” e
“masculino”, visto que ao mesmo tempo em que a travestilidade em questão deseja e performa
feminilidade, também arrasta essa masculinidade historicamente depositada na recepção de
King Kong. Em outras palavras, no caso da King Kong travesti, sua aproximação (desejo) e
simultâneo desvio da feminilidade, combinados à designação histórica de masculinidade à
criatura, são os fatores que lhe atribuem monstruosidade. Nessa perspectiva, a travestilidade da
criatura contrastaria com a mulheridade-cis da personagem feminina sem necessariamente se
opor a ela, dando novos contornos à narrativa.
Se na desidentificação de Rodríguez o componente que confere dissidência, alteridade,
hipervisibilidade e vulnerabilidade é a escala da mulheridade cisgênero, o inimigo do monstro
(o componente que o abjetifica) passa a ser justamente a norma que informa cisgeneridade
compulsória, de forma que a noção de feminilidade nela implicada entra em disputa. Como
propulsora desse embate de categorias, pode-se dizer que essa criatura desnaturaliza a norma
cis-heterossexual, expondo as premissas que a sustentam (como a colonialidade do gênero e o
epistemicídio travesti/trans*), bem como os artifícios através dos quais essa norma se instaura,
se atualiza e se mantém (como o repertório visual mainstream e o travesticídio). Nesse sentido,
233

pode-se dizer que a autora nos convida a olhar criticamente para a economia simbólica do
imaginário imperialista e a atentar à relação colonial que os códigos da feminilidade cisgênero
branca do repertório cinematográfico estabelecem com os corpos dissidentes sudacas
racializados. Esse debate será analisado mais adiante.
Quando Rodríguez conta que “não se pode ser tão grande, tão feia e viver no centro da
cidade” relaciona também a hipervisibilidade à propensão à morte, uma realidade que King
Kong e as travestis compartilham. Nesse fragmento, a autora sugere que o padrão hegemônico
de feminilidade, regulado por imaginários imperialistas institucionais (como o repertório visual
de Holliwood) e pautado na cisgeneridade, é desafiado e desestabilizado por corpos que
introduzem outras possibilidades de feminilidade, como os de travestis e pessoas
transfemininas. Ressaltando a negação e o excesso (“não se pode ser tão grande, tão feia [...]”)
de sua feminilidade, a autora exalta a norma que sustenta a feminilidade holiwoodiana branca
e cisgênero (a delicadeza, os gestos contidos, a pele lisa e sem pelos, as dimensões do corpo, a
estatura etc.) e comenta acerca da tentativa de reiteração da mesma via aniquilação de
representações que a ameaçam: “Quando eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a
indústria estava matando”. Fora de seu habitat, em um ambiente inóspito, o monstro sequestrado
não consegue se esconder e se torna um alvo fácil: a escala humana lhe oferece, por contraste,
dimensões gigantescas e, como efeito do exagero de suas proporções, a sua alteridade e o seu
despertencimento são amplificados.
Em outras palavras, o descumprimento da restrita norma estética e performativa
(estilização de gestos) da feminilidade cis torna hipervisíveis não só os corpos trans*, mas
também outras corporalidades desviantes do espectro feminino, como as feminilidades gordas,
deficientes, racializadas etc. A esse respeito, na publicação autônoma (sem editorial) La Cerda
Punk, a autora e ativista chilena Constanza Alvarez Castillo explicita, numa passagem dedicada
a Cláudia Rodríguez, como esse local monstruoso é compartilhado por diferentes feminilidades
desviantes:

Corpas para odiar, corpas estrangeiras a si mesmas, que aparentemente nada têm em
comum, corpas unidas pelo monstruoso, ali onde se recicla todo o lixo da
heterossexualidade. Nós, corpas doentes, aparentemente inúteis para qualquer
revolução. Nos encontramos na selva de cimento, nas ramas entre letras de contos
tristes sobre o que nunca pudemos ser, na vontade de tomar tudo e destruir, armando
pouco a pouco nossas corpas com todas estas migalhas, lambendo nossas feridas
deixando de ser minhas para converter-se em nossas... Algumas nascemos com vagina
e nos chamaram “naturalmente” mulheres, socializadas para calar, servir, parir,
aguentar, para ser belas, para ser de alguém, do patriarcado. Outras nasceram com
234

pênis, outras com algo que não pode ser nenhuma das anteriores, e nem sequer tiveram
nome para existir... Claudia... quem matarão primeiro, você ou eu? Te escrevo como
sua amiga, a cono, a lésbica feia e barriguda, essa que gosta de mostrar as pernas e a
pança. Por acaso não percebe que se notam os pneus e as estrias? E essa, a travesti por
acaso não percebe que se notam seus pelos? Por acaso não percebe que se nota o
homem? Por que não se cobrem? Por que não desaparecem? (CASTILLO, 2014,
p.101-102)

Em seu texto, Castillo aponta para locais de encontro das feminilidades dissidentes,
que não correspondem às imagens de mulheridade advindas da cultura imperialista ocidental,
em especial o imaginário de Holliwood. Conforme indicado pela autora, esses corpos são
vulnerabilizados pela hipervisibilidade no domínio público e se tornam alvo da interpelação
excessiva – que é, sobretudo, um artifício de regulação biopolítica.
Tendo em vista as colocações de Castillo, em especial a passagem: “E essa, a travesti
por acaso não percebe que se notam seus pelos? Por acaso não percebe que se nota o homem?”,
pode-se dizer que a estranheza ou desvio de feminilidade articulados por Rodríguez em sua
desidentificação com King Kong diz respeito não só à incoerência entre sexo e gênero (desvio
da matriz de inteligibilidade) num plano teórico, mas também a excessos de características
culturalmente associadas à masculinidade no campo especular.
Nesse sentido, é possível interpretar a estatura de King Kong travesti (“Não se pode
ser tão grande”) como símbolo de masculinidade e relacionar sua aparência física (“Não se pode
ser tão feia”) com a presença de traços excedentes de masculinidade na composição de sua
feminilidade desviante (outros fatores como, por exemplo, a quantidade de pelos no corpo, a
desubicação diaspórica, a racialização, o comportamento descomedido, a agressividade, a
gravidade de sua voz e a proporção de seus membros também são evocados de forma adjacente).
Dessa forma, se, como apontado por Castillo “se nota o homem”, a King Kong travesti se torna
um referente monstrificado do interstício que contamina masculinidade e feminilidade.
Nesse sentido, ao apropriar-se da figura de King Kong, Rodríguez ao mesmo tempo
transforma e faz ecoar a racialização e a masculinidade historicamente depositadas nas análises
e interpretações críticas dessa representação e no imaginário cultural dominante. Através dessa
desidentificação, a autora levanta as partículas que se sedimentaram solidificando a figura de
Kong no repertório visual ocidental como estereótipo racista do macho negro e as rearranja:
conforme argumentando, na desidentificação de Rodríguez com a criatura a racialização opera
abrangendo não só a negritude, mas a população nativa andina vitimada pela colonização das
Américas, ao passo que a masculinidade tipicamente associada ao primata passa a operar como
um rastro da transição de gênero, ou seja, como masculinidade-fantasma presente (seja como
235

identificação ou como projeção advinda de interações sociais) na trajetória de muitas


subjetividades travesti e transfemininas. Dessa forma, a atribuição de masculinidade à figura
original de King Kong aparece na metáfora como esfacelamento e esse resquício inaugura o
lugar intersticial (feminino e masculino) originário da monstruosidade.
A proposta de uma King Kong travesti infere uma masculinidade sempre à espreita da
feminilidade que corporifica. Como efeito, a vulnerabilidade advinda da hipervisibilidade
operacionaliza um regime de aniquilação ativado pela ameaça que a ambiguidade e a
intersticialidade representa: não é como “homem” que as travestis são assassinadas, assim como
não é como “primo do humano” que o primata do filme morre, senão como espelho de uma
alteridade demasiado próxima, ambígua e ameaçadora da norma imperante.
Se, como apontado por Giardina, “o primal sempre agarra o que quer sem pensar nos
outros” (GIARDINA, 2005, p.189-190), poderíamos interpretar King Kong travesti como uma
figura que agarra a personagem feminina permanecendo indiferente ao que esse gesto poderia
representar à cultura cis-heteronormativa. Entretanto, é importante frisar que, nesse exercício,
o desejo da criatura não se direciona necessariamente à mulher, senão à mulheridade que lhe
foi negada. Nessa lógica, o desejo que essa personagem agencia não tem conotações sexuais e
diverge da violação sexual historicamente associada à figura do primata em análises do filme,
senão que se direciona às normas que regulam a identidade de gênero. Para aprofundar esse
debate, convém identificar como se sedimentaram os discursos que conferem desejo e
sexualidade (pautando as projeções de gênero e de sexo previamente localizadas) à criatura,
para então observar como esses elementos se transformam com a figura da King Kong travesti.

6.3REINTERPRETANDO VIOLAÇÃO SEXUAL E HETEROSSEXUALIDADE


COMPULSÓRIA: UM OLHAR DISSIDENTE PARA O DESEJO DA CRIATURA

Argumentou-se que, devido à tradição imagética que satura o repertório cultural de


representações reiterativas da conexão entre masculinidade cis (levando em conta a exclusão
absoluta de transmasculinidades no imaginário mainstream) e características como alta estatura,
voz grave, pelificação, agressividade, poder etc., projeta-se gênero masculino à figura de King
Kong por meio de um olhar de pretensões cis-heteronormativas. Ademais, nesse processo, lhe
é também inferido sexo masculino. Cabe ressaltar que a mencionada engrenagem visual
compulsoriamente binária é fundamentada também em premissas hetero-reprodutivas.
236

Em muitas narrativas de horror a vulnerabilidade da figura feminina e o poder que a


figura monstruosa tem sobre ela inferem gênero por meio da introdução de um componente de
tensão sexual e da sugestão de violação. Por essa via, apesar da ausência de pênis e escroto, a
masculinidade heterossexual é projetada na figura de King Kong devido ao seu comportamento
predativo em relação à feminilidade: visto que Ann lhe foi oferecida pela tribo nativa como
sacrifício ou presente (engendrando uma relação de objetificação que cria uma hierarquia entre
as personagens) e considerando que o interesse da criatura na figura feminina mobiliza
automaticamente, na perspectiva cis-heterossexual (fortemente investida na cultura do estupro),
um imaginário de violação sexual. Uma evidência da recorrência dessa leitura é o fato de que
diversas/os autoras/es (como, por exemplo, Adam-Troy Castro e Natasha Giardina) referem-se
à personagem Ann como sendo “a noiva de King Kong”, embora a narrativa não cultive fortes
indícios de que uma relação desse tipo esteja em curso.
Além da cena em que Ann é oferecida a Kong pela tribo nativa de Skull Island, outros
quadros que respaldam a projeção de tensão sexual entre Kong e a feminilidade branca são
dispostos na versão original do filme (de 1933); poderia citar, por exemplo, uma cena
censurada, em que Kong remove partes das vestes de Ann enquanto essa está desmaiada em
suas mãos. Outro exemplo se dá em uma passagem em que, circulando pela cidade em busca
de Ann, o monstro olha dentro de um quarto em que uma figura feminina dorme (ativando uma
representação clássica do olhar voyeur), adentra o ambiente e a agarra: após examiná-la, Kong
percebe que não se trata de Ann e a atira do alto do prédio e em direção aos carros, descartando
sua vítima. Analisando um padrão nesse tipo de representação, em Dread of Differance: gender
and the horror film, Barry Keith Grant menciona que é a penetração do ambiente íntimo (o
quarto, a casa etc.) que engrossou o caldo de imagens que, em diversas películas de terror,
associam o monstro ao masculino violador:

Comumente, nessas cenas (mas não sempre – um ponto ao qual retornarei em breve),
o monstro é codificado como macho, a vítima, fêmea. Tipicamente, a vulnerabilidade
e sexualidade dela são acentuadas porque ela é uma donzela atraente “usando uma
camisola ou um vestido de noiva ou algum outro traje de cores leves”. (GRANT, 2015,
p.5)

É pertinente salientar que no caso de King Kong a raça (a negritude é projetada pela
lente racista que relaciona a complexão escura da criatura e sua “primitividade” à negritude) é
um elemento chave que instrui acerca da interpretação de sexualidade na cultura ocidental. É
imperativo observar que, através da lente cis-hetero-reprodutiva branca, King Kong
representaria uma masculinidade viril amparada por estereótipos que reiteram a sexualidade do
237

homem negro como sendo violadora e abusiva. A esse respeito, Erb intersseciona (concebe de
forma inseparável) raça, gênero e sexualidade na representação da criatura animalizada quando
menciona a “histórica representação ocidental da sexualidade masculina negra como bestial
devido à sua natureza excessiva e predatória, especialmente em relação a mulheres brancas”
(ERB, 2009, p.4).
Complementarmente, uma análise mais profunda de como esse estereótipo racista se
sustentou no imaginário cultural permite relacionar a figura do “homem negro violador”
mencionada por Erb à ansiedade e ao medo que a branquitude tem da miscigenação, uma vez
que é a violação da feminilidade branca, através de uma prática hetero-reprodutiva, que
mobiliza ansiedade em torno dessa representação: “a atração do monstro Kong por Ann é
transgressiva: King Kong, uma figura híbrida, uma besta parecida com o homem, ameaça o
tabu do sexo interracial” (ERB, 2009, p.165). Neste sentido, é mobilizado o medo da
“contaminação” (característica fundamental da monstruosidade), que se soma às demais
ameaças que a criatura representa.
Importa ressaltar que a interpretação de King Kong como representativa da figura do
homem negro violador serve ao propósito de sustentar o regime cis-heterossexual racista,
beneficiando uma representação da masculinidade branca triunfante. Nesse sentido, algumas
críticas identificam que a heterossexualidade compulsória é ao mesmo tempo naturalizada,
mantida e gerada por tramas de filme de horror tradicionais que regulam o regime identitário:

Ambos, Margaret Tarrat e Frank McConnell, por exemplo, explicam a narrativa


convencional de muitos desses filmes como sendo endosso da monogamia patriarcal
heterossexual, onde o monstro (desejo) precisa ser derrotado (negociado através do
superego) pelo herói macho pare que ele possa conquistar a mão (metonimicamente
falando) da filha atraente de um cientista (o pai). (GRANT, 2015, p.5)

Nessa perspectiva, o monstro passa a ser interpretado como o desejo selvagem primal
ou “impulso sexual incontrolável” (ameaça de estupro potencializada pela racialização da figura
do “homem negro selvagem”) a ser combatido pela noção de civilidade implicada na relação
cis-heterossexual branca consentida (rotulada de amor legítimo) entre a donzela e o herói que a
salva. Argumenta-se, entretanto, que para acessar essa interpretação combativa da
obsolescência do herói branco (representado tanto pelo par romântico de Ann como pelo arsenal
do exército que abate o animal) é preciso editar ou suprimir do enredo a afinidade, a amizade e
a empatia sustentadas entre a figura feminina e o primata.
238

De outra perspectiva, refutando a ideia de que King Kong represente necessariamente


a sexualidade animalizada (racializada) crua, algumas autoras identificam a necessidade de
derrota da criatura como resposta a uma ansiedade originada por fobias a outros tipos de
relacionamento e às sexualidades desviantes. Por exemplo, Linda Williams coloca que King
Kong, A Bela e a Fera e outros filmes semelhantes:

Não devem ser interpretados como uma erupção da sexualidade animal normalmente
reprimida do homem civilizado (o monstro como duplo para o espectador masculino
e os personagens do filme), mas como temerosos do poder e da potência de um outro
tipo de sexualidade (monstro como duplo da mulher). (WILLIAMS, 2015, p.22)

Essa leitura reconhece expressões de afeto dissidente entre a figura feminina e a


criatura e valida a empatia e a amizade forjada entre elas ao longo do filme (como quando
assistem juntas ao pôr-do-sol, brincam e tentam se comunicar na morada de Kong, deslizam no
gelo em Nova York ou em diversas cenas em que testemunham, com compaixão, o sofrimento
uma da outra). Segundo Williams “a estranha simpatia e afinidade que comumente se
desenvolve entre o monstro e a garota pode, portanto, ser menos uma expressão de desejo sexual
(como em King Kong e A Bela e a Fera) e mais um relâmpago de identificação solidária”
(WILLIAMS, 2015, p.23).
De acordo com essa análise, o compartilhamento de experiências marginalizantes
estabelece um vínculo entre feminilidade e monstruosidade, sinalizando uma via profícua para
se analisar outro aspecto da relação entre e a feminilidade holiwoodiana cisgênero e aquela
implicada na figura da King Kong travesti, bem como a projeção de feminilidade à criatura e
de selvageria à mulheridade (sua recorrente associação ao “domínio natural”). Considerando as
análises de Williams e pautando especialmente a vulnerabilidade que as personagens em
questão compartilham, propõe-se identificar como esse vínculo de empatia se estabelece na
proposta de Rodríguez tecendo uma complexa relação entre a King Kong travesti e a figura de
Ann, representativa da feminilidade cisgênero.

6.4 MULHERIDADE OBJETIFICADA / TRAVESTILIDADE ABJETIFICADA: ABISMOS


E PONTES ENTRE CIS E TRANSFEMINILIDADES EM KING KONG

“It is obvious that no mere beast provoked such a depth of response in Fay and
others, but rather the intimations of something other, within, something frightening,
incredible, even transcendent” (BERNARD 1976, p. 130 apud WELLS, 2009, p.5).
239

Conforme sugerido, uma análise dissidente da narrativa do filme permite identificar


momentos em que a relação entre a criatura e a personagem feminina escapa à ordem sexo-
afetiva cis-hetero-reprodutiva e configura um inusitado encontro pautado por identificações,
solidariedades e desejos de outras naturezas. É interessante notar que a relação entre criatura
animalizada e donzela sugere laços afetivos que, na leitura travesti de King Kong, projetam
feminilidade ao primata e, em reciprocidade, fazem ecoar a histórica associação entre o
feminino e o monstruoso selvagem (reiterando a associação entre mulher e natureza).
Importa salientar que esse vínculo apresenta uma inversão do script em que as
transfeminilidades são tradicionalmente inscritas em associação com o antinatural e o
“artificial” de forma depreciativa: nos próximos tópicos argumentarei que a feminilidade
compartilhada por Kong e por Ann desnaturalizam a categoria “mulher” ao expor a
performatividade do gênero e os artifícios cinematográficos (tecnologias de gênero) que a
sustentam. Complementarmente, comentarei acerca da historicização de corporalidades
análogas às travestis em culturas que antecedem ao encontro colonial, sugerindo que a proposta
de uma King Kong travesti tende a reinserir subjetividades e corporalidades correlatas às
transfeminilidades na história da América Latina, a fim de refutar sua associação com a
transexualidade (ou seja, sua concepção enquanto fenômeno tecnocientífico pós-moderno
gringo).
O primeiro ponto de identificação a ser traçado entre as duas personagens se baseia no
compartilhamento de vulnerabilidades especificamente relacionadas a uma ameaça em comum:
o homem branco. Pode-se dizer que “King Kong começa então como uma caça por um ‘rosto
bonito’ apropriado para a expedição – uma mulher branca – da mesma forma como mais tarde
se torna uma caça por Kong” (RONY, 1996, p.171). Ou seja, é importante lembrar que no filme,
primeiramente Ann é objetificada pelo cineasta, que a manipula ocultando seus reais interesses.
É pertinente ressaltar também que a personagem feminina é utilizada como isca para a captura
do primata, estando implicada, contra sua vontade, no sequestro do monstro. A ênfase nessa
particularidade do enredo aproxima Ann do monstro em alguns aspectos, conforme indicado
por Rony:

A representação de duas faces da Mulher Branca – como pilar da família branca,


superior às pessoas indígenas não-brancas, mas também como uma criatura
possivelmente selvagem, inferior ao homem branco é expressa nos paralelos
esboçados entre Ann e Kong como objetos de espetáculo, e pelo simultâneo medo e
desejo de Jack Driscoll por ela. (RONY, 1996, p.174)
240

Complementar à análise de Rony, Williams argumenta que as personagens femininas


dos filmes de terror muitas vezes se identificam e têm afinidade com o monstro. A autora coloca
que a donzela “reconhece o sentido em que essa aberração [do monstro] é similar à sua própria
diferença” e identifica que essas figuras compartilham um estado de objetificação, ou seja, uma
vulnerabilidade capaz de gerar uma ponte de identificação entre elas. Argumenta-se, assim, que
a empatia e o afeto entre as personagens são orientados por experiências subalternas similares.
Esse vínculo da experiência subalternizada pode ser interpretado como feminilização
do selvagem (projeção de feminilidade à criatura) e como representação da incivilidade
feminina (citado a aproximação histórica entre mulher e natureza). No caso da King Kong
travesti, essa vulnerabilidade (ancorada na objetificação) poderia apontar também para alguns
paralelos entre travesticídio e feminicídio: violências especificamente direcionadas contra a
feminilidade. Entretanto, é importante ressaltar que tal vulnerabilidade, compreendida como
afinidade entre mulher e monstro, infere um compartilhamento empírico limitado: no final do
filme, a mulheridade cisgênero representada por Ann é resgatada do vínculo que sustenta com
Kong e absorvida pelo contrato heterossexual (figurando a domesticação do selvagem
feminino), ao passo que a criatura é eliminada, a fim de garantir a ordem social.
Uma das cenas que melhor representam a particularidade da identificação mencionada
por Rony e por Williams é aquela em que King Kong e Ann finalmente se encontram em Nova
York, em meio ao rastro de destruição deixado pela criatura em busca de sua amiga. King Kong,
lesionado pelo abuso físico que sofreu de seus capturadores, com o rosto visivelmente
deformado, cansado e quase derrotado, se depara com Ann, que veste uma camisola branca
esvoaçante em pleno inverno e corre desesperada ao seu encontro. A expressão de Ann ao ver
Kong aparentemente reconhece a própria conivência (ou algum outro tipo de implicação
indireta) com os abusos sofridos pela criatura, tendo sido pivô de seu sequestro. As trocas de
olhares, a reciprocidade dos gestos e o consentimento nos toques expressam esse lugar comum
de identificação e afeto, nessa cena que antecede a perseguição e o assassinado de King Kong
– ou o travesticídio que Rodríguez articula em seu texto.
Enredando essa cena na leitura da King Kong travesti, pode-se dizer que ela representa
o cume do crime cometido pela criatura: por fim a conquista ou a conciliação com a
feminilidade que desejava. Pode-se dizer, portanto, que o assassinato que essa cena antecede é
justificado pela contaminação (violação da categoria “mulher” e miscigenação de gêneros e
culturas) que esse encontro representa e pelo rastro de destruição que a criatura deixa em sua
241

busca pela feminilidade que lhe foi negada. Ou seja, o momento em que King Kong merece
morrer é quando desestabiliza as categorias que sustentam a noção de pessoidade (vinculada à
humanidade) ao colocar em risco a feminilidade tal como a conhecemos: “Não foram os aviões,
foi a Bela que matou a fera”. Essa perspectiva exalta a forma como a mulheridade cis, amparada
pelo regime cis-heteronormativo e seus dispositivos de manutenção (o exército), está implicada
na abjeção, na monstrualização e no travesticídio.
É interessante notar que muitas vezes nos filmes de terror o monstro chega a substituir
a figura feminina como espetáculo e objeto. Nesse sentido, pode-se dizer que em King Kong o
monstro se localiza para além da objetificação experienciada pela feminilidade domesticável
de Ann: a criatura experiencia abjetificação, o que estabelece o principal elemento de
diferenciação entre as violências sofridas pela feminilidade cis (no caso, objetificação) e
aquelas experienciadas pelas transfeminilidades. A abjeção que a criatura experimenta
representa a impossibilidade de se sustentar como outro-do-homem, a incapacidade de ser
absorvida no tecido social e de operar na sociedade. Dessa forma, a alteridade que Ann e Kong
compartilham em relação à masculinidade cis-heteronormativa não apaga uma diferença
estrutural que as separa no interior da categoria “mulher”, exaltando que o que distingue suas
feminilidades é justamente sua viabilidade no projeto de nação.
A esse respeito, Despentes (2010) atenta para o fato de que, no final do filme, o desejo
de Ann pelo animalizado e pelo selvagem (dissidente) é neutralizado e domesticado (pelo seu
ingresso no contrato heterossexual), ao passo que King Kong é executado. Na tradução para a
metáfora: a travesti precisa ser aniquilada para que a mulheridade tradicional possa sobreviver.
Segundo a autora essa narrativa configura uma espécie de traição ou divergência no interior do
lugar subalternizado que as figuras ocupam: “O closeup em câmera lenta nos olhos da loira,
quando ela percebe que foi usada. Ela era somente isca para capturar o animal. A animalidade.
Sua escolha pela heterossexualidade e a vida na cidade são a decisão de trair seu aliado, seu
protetor” (DESPENTES, 2010, p.107).
A domesticação da mulheridade e sua reinserção na trama social converte o monstro
em bode expiatório, ou seja, em um elemento necessário para reinstaurar a soberania das
categorias identitárias. Entretanto, é importante pontuar que, no enredo da King Kong travesti,
o limite que separa transfeminilidade de cisfeminilidade no interior da categoria mulher
demarca também uma “natureza” (a feminilidade selvagem indomesticável) associada à
criatura, enquanto a civilidade ou a noção de cultura (muitas vezes relacionada ao “artificial”)
é constitutiva da fração reservada à feminilidade cis. Essa articulação de uma transfeminilidade
242

monstruosa, feroz e selvagem (que se associa à natureza indomável) inaugura uma mirada
particularmente dissonante daquelas comumente estruturadas em torno da transexualidade (as
quais aproximam o trans* do “artificial” e do “científico” através da perspectiva biomédica e,
em contrapartida, associam a mulheridade cis ao domínio natural). Para sustentar esse
argumento, proponho uma leitura críticas das passagens em que Rodríguez comenta sua relação
com as tecnologias de feminilidade.

6.5 ANIMALIDADES E MONSTRUOSIDADES TRAVESTI: MULHERIDADE


RECONFIGURADA

De acordo com Erb, “O status de King Kong, enquanto primata, ativa duradouras
pressuposições ocidentais sobre o processo de evolução. No mito de King Kong, o macaco vê
a mulher branca, e ao estender sua mão para alcançá-la, tenta alcançar a possibilidade de evoluir
e tornar-se humano” (ERB, 2009, p.4). Conforme argumentado, no enredo da King Kong
travesti a figura de Ann deixa de ser objeto de desejo sexual para se converter em representação
de uma beleza feminina branca impossível ou inalcançável. Assim sendo, aplicando a lógica
apresentada por Erb à figura da King Kong travesti e considerando a potência descolonial da
recusa que essa figura exalta, a “humanidade” ou a “pessoidade” referenciada na citação estaria
depositada na feminilidade autêntica (mais que “passável”), análoga à da mulheridade cis, ao
passo que o assassinato do monstro reiteraria a impossibilidade de efetivação desse desejo.
Adiante argumentarei que ao agarrar a feminilidade (e a “pessoidade” por ela simbolizada) com
suas mãos peludas, a criatura retém também o poder de a analisar de perto e de lhe lançar uma
mirada crítica sem negar, entretanto, o próprio desejo. Afinal, que tipo de afeto poderia originar-
se de uma relação tão ambígua, onde o desejo se converte em sabotagem, ameaça e punição?
Apresentando a complexidade de seu desejo pela feminilidade, em seus zines
Rodríguez desessencializa e desnaturaliza a categoria “mulher”, especialmente quando enfatiza
a natureza performática do gênero e explicita o papel de diferentes tecnologias na sua regulação
e produção: em diversas passagens a autora comenta criticamente acerca da economia simbólica
e dos imaginários de mulheridade produzidos pelo cinema e, nesse processo, narra também sua
própria relação com procedimentos estéticos, cirúrgicos e performáticos. Analisando passagens
em que Rodríguez referencia a feminilidade que deseja, “imita” e, por vezes, ressente – e
observando a forma como descreve as figuras de Holliwood nas quais se espelha –, neste tópico
ressaltarei a crítica que a autora faz às “tecnologias de beleza” e aos aparatos cinematográficos
243

que sustentam o simulacro de mulheridade. Argumentarei que a autora enreda sua trajetória
pela feminilidade em questões de raça, classe, trabalho, acesso e saúde, arquitetando uma
narrativa que desessencializa toda feminilidade (cis, travesti e trans*) com a explicitação do
caráter performativo que sustenta a noção cultural de mulheridade.
Pode-se dizer que, principalmente quando expressa o desejo de “imitar” a mulher
holliwoodiana, a autora incide criticamente na construção de uma feminilidade inalcançável,
enredando críticas de classe, raça e cidadania, bem como referências à colonialidade de gênero,
no prazer que sente ao corporificar feminilidades. Especialmente nas passagens em que
referencia celebridades norte-americanas como Madonna, Pamela Anderson e Marylin Monroe,
a autora enfatiza a natureza conflituosa e ambígua de seu desejo: reconhece nele uma dimensão
sudaca (por exemplo quando identifica subalternidade em seu anseio pela feminilidade
imperialista branca), mas também afirma os prazeres que encontra ao “imitá-las” e corporificá-
las.
Em diversas passagens a autora oferece um olhar crítico ao próprio desejo pela
feminilidade holiwoodiana pautando a classe como principal diferenciação entre mulheridade
cis e travesti/trans*: “Madonna querida: el imaginário proletário travesti latinoamericano
contradice tu soberbia juvenil... el hambre ignorante nos impide hacer la dieta proteica”94
(RODRÍGUEZ, 2015, p.44). Aqui a possibilidade de acesso às culturas e tecnologias que
produzem os significantes de feminilidade em questão é pautada pela classe e, mais
precisamente, pela fome. A autora menciona ironicamente a pobreza como elemento que
aparentemente criaria as condições de se obter uma silhueta magra, semelhante à de Madonna.
Entretanto, a magreza à qual se refere é insustentável, pois não advém da “dieta proteica”
(inalcançável devido à falta de recursos) e gera uma “fome ignorante” incontrolável e condições
precárias de saúde. Complementarmente, a autora volta a expressar a ambiguidade do desejo
de incorporar essa faceta da feminilidade justapondo o sofrimento que a fome traz e também a
sedutora possibilidade de alcançar determinados padrões estéticos: “El vestido de leopardo
apegado a la epidermis lucia mi estomago plano, um estomago a punto de quedar pegado al
espinazo. El vestido quedaba a medida en mi cuerpo pero ocultaba la muerte que se
experimenta cuando se sufre de hambre”95 (RODRÍGUEZ, 2014, p.90).

94
Tradução: “Madonna querida: o imaginário proletário travesti latino-americano contradiz sua soberba
juvenil... a fome ignorante nos impede de fazer a dieta proteica”.
95
Tradução: “O vestido de leopardo grudado na epiderme fazia luzir meu estômago plano, um estômago
a ponto de ficar colado na espinha. O vestido ficava na medida em meu corpo mas ocultava a morte que se
experimenta quando se sofre de fome”.
244

Diferenciando a magreza de Madonna (que pode desfrutar de uma dieta proteica)


daquela que experiencia através da “fome ignorante” e da pobreza, nessas citações, a autora
emprega o estereótipo cinematográfico holiwoodiano para marcar sua alteridade, sobrepondo
as complexas e antagônicas camadas que compõem seu desejo. Pode-se dizer que Rodríguez se
apropria dessas figuras icônicas de feminilidade gringa branca e as monstrifica em sua
autorrepresentação: “Soy la Marilyn travesti que se come a los hombres como un acto de
generosidad hacia mis amigas travestis, porque sé que no existe perdón con hambre”96
(RODRÍGUEZ, Contodomisida, s/n).
A classe também aparece como fator determinante de diferenciação entre a
feminilidade cis e a transfeminilidade sudaca quando a autora menciona o acesso ao que intitula
“tecnologias de beleza”:

Me gusta peinarme como la Pamela Anderssen. Me gusta imitar su maquillaje. A


veces cuando estoy llena de energía busco fotos de ella y fijo mi atención durante
horas en el delineado de sus cejas, ojos y labios. Ella tiene toda su cara delineada
con láser, por eso sus cejas son tan perfectas. Su rostro debe ser el resultado de las
últimas tecnologías de belleza porque esos rasgos de juventud nunca se van. Ella no
debe tener los problemas que tengo yo al despertar. Ella debe abrir los ojos,
cepillarse los dientes con un cepillo eléctrico, para salir al balcón y ser fotografiada
por reporteros privilegiados ante tanta fija divinidad.97 (RODRÍGUEZ, 2014, p.80.
Grifos Meus)

Ao associar a mulheridade (cis) a um padrão inalcançável, regido por “tecnologias de


beleza” inacessíveis, nessa passagem a autora implica classe na (im)possibilidade de alcançar
a feminilidade em questão: tanto os procedimentos cirúrgicos (as técnicas de feminilização
facial a laser) como a escova de dente elétrica são representados como tecnologias
financeiramente inviáveis ou indisponíveis, embora indispensáveis na sustentação do
imaginário de mulheridade.
Pode-se dizer que, quando afirma “imitar” a maquiagem da atriz e justapõe as
tecnologias das quais dispõe àquelas que compõem a imagem de Pamela Anderssen enquanto
simulacro de mulheridade, a autora desessencializa a categoria “mulher”, uma vez que substitui,
na comparação entre seu corpo travesti e o corpo cis da atriz, o componente biológico ou

96
Tradução: “Sou a Marylin travesti que come os homens como um ato de generosidade a minhas
amigas travestis, porque sei que não existe perdão com fome”.
97
Tradução: “Eu gosto de me pentear como a Pamela Anderssen. Eu gosto de imitar sua maquiagem.
Às vezes quando estou cheia de energia busco fotos dela e fixo minha atenção durante horas no delineado de suas
sobrancelhas, olhos e lábios. Ela tem toda a cara delineada com laser, por isso suas sobrancelhas são tão perfeitas.
Seu rosto deve ser o resultado das últimas tecnologias de beleza porque esses traços de juventude nunca se vão.
Ela não deve ter os problemas que tenho ao acordar. Ela deve abrir os olhos, escovar os dentes com uma escova
elétrica, sair para a sacada e ser fotografada por repórteres privilegiados diante de tanta divindade fixa”.
245

“natural” que designaria sexo (os órgãos genitais, a composição cromossômica, os sistemas
gonadais externos e internos, as características secundárias etc.) pelos procedimentos
tecnológicos comumente associados ao “artificial” e ao “cultural”. Dessa forma, a “verdade”
que sustenta o seu pertencimento ou despertencimento à categoria “mulher” é associada às
tecnologias de produção de imagem e aos procedimentos estéticos, cujo acesso está restringido
por fatores como classe, raça e cidadania.
É pertinente frisar que, ao comentar aspectos cotidianos da vida da atriz (quando
imagina essa figura se despertando, escovando os dentes e saindo à sacada), a autora começa a
personificar essa figura (retrata-a como “uma de nós”) e, na sequência, volta a representá-la
como imagem inalcançável, uma vez que substitui seu status “humano” pelo de “divindade”.
Combinando esses dois componentes antagônicos, a autora explicita a capacidade das
representações (em especial do imaginário de mulheridade) de reter significantes indexados a
um corpo individual (de uma pessoa que existe no mundo) e, simultaneamente, desprender-se
dele para tornar-se signo de uma unidade maior que, ao ser repetida e constantemente retificada
no campo visual, é capaz de regular as identidades.
Expondo a “artificialidade” implicada na construção do corpo de Anderssen, a autora
teoriza um diferencial em sua própria imitação dessa mulheridade (a maneira como escreve o
nome da atriz conferindo-lhe uma marca sudaca compreende, em si, a ideia de apropriação ou
repetição com diferença) e situa-a num processo mais extenso, ou seja, num contínuo de
imitações: Anderssen é também a imitação (representação reiterada) de uma feminilidade, uma
cópia de outra cópia sem original (conforme teorizado por Butler), forjada através de processos
tecnológicos e sustentada por dispositivos da indústria cinematográfica. Essa intenção se
explicita quando a autora atribui a “divindade fixa” de Anderssen aos procedimentos laser que
disfarçam sinais de envelhecimento, contaminando, assim, a noção de divindade (pura, natural,
imaculada etc.) com aspectos culturais (procedimentos tecnológicos, “artificialidade” e
ciência). Pode-se dizer que, com esse gesto, a autora sugere que as categorias “natureza”
(divino, inalterado, perfeito, biológico, cisgênero) e “cultura” (artificial, tecnológico, enganoso,
trans*) não são necessariamente excludentes, senão simbióticas, ou seja, estabelecem uma
relação interconstitutiva.
Além de citar as “tecnologias de beleza” às quais não tem acesso, a autora lança
também um olhar crítico e “desconfiado” aos artifícios de produção de imagem:

La vida y el cine quieren aplastarse una a la otra. Se puede ignorar lo que digo pero
cuando vi unas pruebas de cámara, inéditas, de la última película de ella, de esa que
246

no terminó porque la encontraron muerta […]. Si vieras esas pruebas de cámara en


Youtube, podrías conmoverte conmigo. ¿Sabes? En una escena, donde la estrella
debe interactuar con un perro que no obedece las indicaciones de su amo (instalado
detrás de las cámaras) ella inesperadamente se conecta como una niña desesperada
con la mascota, y la escena se pierde porque libera una monstruosa carcajada, un
sonido gutural estrepitoso que parece venir del raspeo del aire por los cartílagos,
rabiosa de deseos de que no hubiera en frente de ella una cámara, un director y uno
de esos hombres que redactan guiones, toda una estruendosa caída del glamur
cinematográfico. En el siglo de oro del cine, una mujer puede hacer escenas de
desnudos, pero no será nunca posible que una estrella se ría así, como un animal,
como una fiera adolorida. La industria del cine, debe mantener esos rollos de
películas muy ocultos, hasta mucho tiempo después de la muerte de ella, porque
representan otra cosa, una mucha humana miseria. […] Eso es finalmente lo que me
afecta, el entramado fastuoso que se cortó y pegó en nuestras vidas, y que provocó
que todas creíamos engañadas y falsas. ¿Te dai cuenta cómo la vida pende de un
hilo? ¡Cuídate! Al cine no le podí perder el miedo98. (RODRÍGUEZ, 2015, p.73-75.
Grifos Meus)

Nessa passagem que ilustra os efeitos do simulacro de mulheridade, Rodríguez


descreve seu fascínio por uma cena em que uma atriz consagrada da era de ouro de Holliwood
deixa escapar uma gargalhada bestial, que descaracteriza o modelo de feminilidade que as
câmeras pretendem perpetuar. Aqui a autora sugere a existência de uma animalidade contida
no interior da categoria “mulher”, que desponta debaixo da delicadeza e da domesticação
representadas no cinema como características marcadamente femininas. A monstruosidade da
gargalhada, que Rodríguez descreve enfaticamente, representa uma quebra espontânea no
decoro da mulheridade e eclode não como uma essência animal anterior ao gênero, mas como
possibilidade abafada (e, portanto, ininteligível dentro dos parâmetros disponíveis) que, por um
breve instante o evade. Essa animalidade que mancha a imagem de mulheridade fascina
Rodríguez: a autora enxerga nesse instante de descontrole o despontar de uma expressão de
gênero desviante, selvagem e, em alguns aspectos, opositora e ao mesmo tempo inerente à
categoria “mulher”.

98
Tradução: “A vida e o cinema querem esmagar uma à outra. Pode-se ignorar o que digo mas quando
vi umas provas de câmera, inéditas, do último filme dela, dessa que não terminou porque a encontraram morta [...].
Se você visse essas provas de câmera no Youtube, poderia se comover comigo. Sabe? Em uma cena, onde a estrela
deve interatuar com um cachorro que não obedece as indicações do seu mestre (instalado detrás das câmeras) ela
inesperadamente se conecta como uma menina desesperada com o mascote, e a cena se perde porque libera uma
monstruosa gargalhada, um som gutural estridente que parece vir do raspar do ar pelas cartilagens, raivosa de
desejo de que não houvesse em sua frente uma câmera, um diretor e um desses homens que redigem roteiros, toda
uma estrondosa queda de glamour cinematográfico. No século de ouro do cinema, uma mulher pode fazer cenas
de nus, mas não será nunca possível que uma estrela ria assim, como um animal, como uma fera dolorida. A
indústria do cinema, deve manter esses rolos de filme muito ocultos, até muito tempo depois da morte dela, porque
representam outra coisa, uma muito humana miséria. [...] É isso finalmente o que me afeta, a trama extravagante
que se cortou e colou em nossas vidas, e que provocou que todas acreditávamos enganadas e falsas. Cê percebe
como a vida pende de um fio? Cuidado! Do cinema não se pode perder o medo”.
247

Aqui mais uma vez a dicotomia natureza/cultura é central e, ao mesmo tempo,


desafiada num jogo que aparentemente inverte a lógica implicada: a ênfase na produção de
mulheridade via processos tecnológicos (como o repertório imagético cultural) contrasta com a
expressão animalizada e supostamente “natural” (a gargalhada espontânea e selvagem) daquilo
que não cabe nos gêneros. É importante pontuar que a gargalhada é representada como bestial
(Rodríguez a descreve como “animal”, “fera” e “desesperada”) devido à sua qualidade
espontânea e irracional e por estar sumariamente atrelada à expressão não mediada do corpo (o
“raspar do ar pelas cartilagens” que causa estranhamento), reiterando o dualismo cartesiano
corpo/mente espelhado no binômio natureza/cultura.
Nesse trecho a autora delata e desafia a tradição judaico-cristã que associa o natural ao
moralmente aceitável. A respeito dessa relação, Myra Hird comenta que “moralidade e natureza
desfrutam de um relacionamento interessante: natureza é comumente evocada em discussões
de moralidade no sentido de que comportamentos naturais são considerados moralmente
superiores” (HIRD, 2013, p.157). Quando o “natural” passa a representar comportamentos
moralmente ou socialmente inaceitáveis (como a espontânea gargalhada bestial), e a natureza
eclode associando-se não à moralidade humana, mas com o desvio selvagem (precisamente
através do deshumanizado e da dissidência), é gerada uma desestabilização dos domínios
“natureza” e “cultura”.
Pode-se dizer que a divisão natural/artificial é questionada com a delação de que
atributos tidos como “naturais” (como a expressão não-mediada do corpo e a nudez) são
culturalmente instruídos: “No século de ouro do cinema, uma mulher pode fazer cenas de nus,
mas não será nunca possível que uma estrela ria assim, como um animal, como uma fera
dolorida”. Nesse trecho, a referência irônica ao “nu” simboliza o corpo em estado “natural”
(como suposta morada crua do sexo e do gênero, teoricamente despida de atributos culturais e
abastada de “verdade biológica”), mas sua comparação com outras “manifestações naturais”
indesejadas e excluídas (como a gargalhada bestial) implanta um questionamento acerca da
construção da noção “natural”, que sabota sua qualidade fundamental: a ontologia ou “verdade”
do corpo, supostamente um objeto anterior, passivo, a-histórico e biologicamente dado.
Centrando-se na expressão daquilo que deveria ser excluído da representação para garantir a
estabilidade das categorias binárias naturalizadas, nesta passagem Rodríguez reconfigura as
estruturas do pensamento cartesiano e sugere contaminações de termos antagônicos, como as
combinações “natural-artificial” e “real-ficcional”.
248

De acordo com Rodríguez, o cinema produz imagens “enganosas e falsas” com seus
artifícios e edições (“copia e cola”) que têm efeitos reais nas vidas e corpos que pleiteiam
mulheridade. Identificando no “animalizado” uma categoria que abarca os corpos travesti e
trans*, pode-se dizer que, ao denunciar estéticas, comportamentos e representações que devem
ser excluídos (senão destruídos) da imagem de “mulher”, a autora referencia, junto com a
gargalhada animalizada, sua própria exclusão do imaginário mainstream e da cultura visual que
sustenta a noção de mulheridade. Nesse sentido, Rodríguez conclui sua colocação atentando
para o fato de que nunca se deve perder o medo do cinema e revela os efeitos dessa tecnologia
na regulação biopolítica e, em seu desdobramento mais detalhado, no regime político de
aniquilação das dissidências.
É interessante notar que em suas análises críticas da mulheridade holliwoodiana
Rodríguez não atenta primordialmente ao conteúdo (o discurso que a representação forja sobre
mulheridade, como, por exemplo, sua associação com a fragilidade e a delicadeza), senão ao
que a representação “faz” com os corpos que pleiteiam a feminilidade. Combinando seu
investimento pessoal e desejo por algumas características dessa mulheridade holliwoodiana ao
seu olhar desconfiado aos aparatos de representação que atuam como tecnologias de gênero, a
autora se esquiva dos desgastados debates sobre transnormatividade (que têm como alvo
principal a subjetividade transexual) e expõe o potencial da representação (mais precisamente,
das imagens de mulheres) de construir realidades/identidades, contestando a rigidez dos limites
que separam “ficção” de “realidade”. Ou seja, quando “mulher” é apresentada enquanto um
produto do repertório imagético, identifica-se a tentativa de explicitar – senão a própria noção
de representação e seus efeitos – características inerentes a ela, como sua capacidade de
produzir o que aparenta meramente evocar.
Ao referenciar a ideia de “mulher como imagem” (ARRUDA, 2013) apontando para
os efeitos reais do simulacro e para a sua própria exclusão (através de seu alinhamento com
aquilo que foi projetado para fora do repertório imagético humano), a autora atenta para a forma
como a noção de “real” é forjada no domínio especular. Essa ideia se evidencia quando
Rodríguez associa “mulher” às representações brancas, jovens e gringas e contrasta essa
categoria com “travesti” enquanto experiência sudaca e monstruosa: “A veces me parezco a la
Marilyn. Cuando tomo el cigarro y miro fijamente al pasado: me vuelto a levantar, a sentirme
travesti y minotaura”99 (RODRÍGUEZ, 2007, sem paginação).

99
Tradução: Às vezes pareço com a Marilyn. Quando pego o cigarro e olho fixamente pro passado:
volto a levantar, a me sentir travesti e minotaura”.
249

Representando Marilyn como um “estado” ou uma “aparência” (e não uma pessoa ou


um corpo), que pode ser acessado momentaneamente através da imitação de gestos estilizados
e comportamentos canalizados em determinadas estéticas, a autora sugere que a mulheridade
se forja performativamente e se projeta reiterada no domínio visual (enraizada no imaginário
cultural ocidental). Mimetizando as feminilidades holliwoodianas, a autora conta que é capaz
de corporificar (parecer) esse signo de expressão máxima de mulheridade para, depois, retornar
à realidade empírica de se sentir “travesti e minotaura”.
Aqui a opção pela figura da minotaura, um monstro originário da mitologia grega,
representado por um corpo humano (tradicionalmente masculino) com partes animais (cabeça
e rabo de touro) assemelha-se, em alguns aspectos, à figura de King Kong: a monstruosidade
permite reciclar e tensionar as categorias identitárias, na medida em que sua animalidade projeta
uma sombra no gênero. A subjetividade minotaura de Rodríguez oscila entre a humanidade
pautada pela representação de feminilidade (imitação corporificada da imagem de Marylin
Monroe) e a animalidade indexada à sua experiência travesti, ou seja, metade humana e metade
monstra.
Esta passagem que marca a experiência de “parecer a Marylin” faz recordar um poema
de Susy Shock em que o aspecto “real” da identidade é diluído em ambiguidades e o corpo
ganha vida e materialidade através da representação animalizada:

PARECE…/ Que es y no es, / O se hace o se cree ser, / Parece que ni fu ni fa, / Ni


blanco ni negro, / Ni eso ni lo otro, / Parece sólo parece. / Y sin embargo late, / Late,
late, late, late, late, late, late, late (SHOCK, 2011, p.75. Grifos Meus)100

É pertinente pontuar que o verbo “latir” em espanhol tem duplo significado: seu
emprego está primordialmente associado ao “batimento cardíaco” (“el corazón late”).
Entretanto, embora menos comum que o verbo “ladrar”, “latir” também pode ser utilizado para
referenciar o latido de um cachorro. Com essa ambiguidade o animalizado emerge para
representar um ser intersticial (que “parece ou se faz ou acredita ser” e que “parece só parece
[mas não é]”) exaltando vida, existência terrena e corpo material (o coração que bate/late como
um cão selvagem) e contrapondo, assim, a sensação de “farsa”, “mentira”, “volatilidade” e
“engano”, ou seja, a obscuridade e a falta de fixidez ontológica e taxonômica na descrição
sabotada que antecede o latir. Através desse artifício, a autora cria uma estratégia de visibilidade

100
Tradução: “PARECE… / Que é e não é, / Ou se faz ou acredita ser, / Parece que nem pá nem pum, /
Nem branco nem negro, / Nem isso nem o outro, / Parece só parece. / Entretanto late/bate, / Late/bate, late/bate,
late/bate, late/bate, late/bate, late/bate, late/bate, late/bate.
250

que permanece borrada e imprecisa. A qualidade selvagem desse ser animalizado que evade as
categorias identitárias se assemelha ao emprego que Rodríguez faz da figura da travesti
minotaura: ambas terminam seus poemas atribuindo existência física e empírica a um ser que é
também mitológico ou possuidor de uma alteridade ontológica inegociável – seja através da
presença repetida do batimento cardíaco na última linha do poema de Shock ou pelo “levantar-
se e sentir-se travesti e minotaura”, que sugere o momento em que Rodríguez se desperta de
um devaneio.
De certa forma, a mulheridade aparece na escrita de Rodríguez enquanto
imagem/representação (ou seja, atada ao domínio visual e descolada da vivência cotidiana), ao
passo que a travestilidade diz respeito à “experiência empírica” de uma feminilidade enredada
em marcadores de classe e raça e representada pelo animalizado. É pertinente ressaltar que,
atribuindo concretude, empirismo e experiência à vivência travesti e caracterizando a
mulheridade cis holliwoodiana como etérea, intangível ou impalpável, a autora inverte a lógica
comumente empregada para deslegitimar as feminilidades dissidentes associando-as ao
“artificial” ou ao “enganoso”. É também nesse sentido que a autora ironiza: “el me mintió pero
yo le dije la verdad: soy travesti”101 (RODRÍGUEZ, 2015, p.95) Aqui o questionamento do
“real” é deslocado e redirecionado à categoria “mulher”, sugerindo que, quando se espelha nas
celebridades de Holliwood, a autora deseja imitar a estética que eleva essas figuras à condição
de divindade (“sobrenatural” e “irreal”). Ou seja, não é propriamente a “verdade biológica” ou
a coerência entre sexo e gênero que Rodríguez pleiteia se espelhando na feminilidade em
questão, senão o domínio de outras dimensões representativas, em especial daquelas que
regulam mulheridade a associando ao “sobrenatural”:

Mi cuerpo es como un guitarrón. Recién teñida, ondulada y maquillada al estilo


Pamela, con tacos altos y vestida de colores claros, parezco una atriz de cine, una
aparición. Sí, desde lo más profundo de mi corazón, mi esperanza es parecer una
espécie de ángel, frágil. Hacer a que los hombres les dé la impresión de que una, es
una aparición de la noche; porque una, es una aparición sobrenatural, más que el
cine, más que la tele.102 (RODRÍGUEZ, 2015, p.23. Grifos Meus)

Expressando seu desejo por parecer “uma espécie de anjo frágil” a autora apela
novamente ao divino e ao sobrenatural enredando-os no “artificial” e no tecnológico: atinge

101
Tradução: “ele mentiu para mim, mas eu disse a verdade para ele: sou travesti”.
102
Tradução: “Meu corpo é como um violão. Recém-tingida, ondulada e maquiada ao estilo Pamela,
com saltos altos e vestida de cores claras, pareço uma atriz de cinema, uma aparição. Sim, desde as profundezas
do meu coração, minha esperança é parecer uma espécie de anjo, frágil. Fazer com que os homens tenham a
impressão de que uma [travesti/mulher] é uma aparição da noite; porque uma [travesti/mulher], é uma aparição
sobrenatural, mais que o cinema, mais que a televisão”.
251

esse efeito com saltos altos, maquiagem, empregando uma paleta de cores específica e imitando
Pamela Anderssen.
A autora sugere ainda que quando alcança a aparência de uma atriz de cinema se
transforma numa “aparição”, visto que as celebridades não circulam nos espaços que Rodríguez
frequenta, se localizam, senão, exclusivamente no repertório imagético gringo (nas revistas e
na televisão). Pode-se dizer que o mencionado aspecto sobrenatural singularmente intrínseco à
subjetividade travesti (aquilo que estaria além das ilusões do cinema e da televisão) está calcado
na inusitada materialização de um corpo, agora palpável, que vemos exclusivamente nas
revistas e nos programas de televisão, bem como na sua inscrição como “mito” no imaginário
cultural devido à exclusão de travestis da esfera social e dos veículos de representação
mainstream. Aqui o componente etéreo e impalpável da mulheridade cis (enquanto simulacro
e cópia sem original) se combina à presença inusitada das travestis agenciando uma insólita
“aparição” hipervisível e, ao mesmo tempo, implausível.
Outro elemento recorrentemente utilizado por Rodríguez para abordar sua alteridade e
expressar seu desejo conflituoso pela feminilidade holliwoodiana é a referência aos seus
cabelos tingidos de loiro. Pode-se dizer que em seus zines a branquitude (indexada às imagens
de celebridades norte-americanas) é criticamente exposta como componente fundamental da
beleza (quase como sinônimo de mulheridade cis) e que, nesse sentido, sua opção pelos cabelos
loiros evoca diferentes faces de um debate racial. Enquanto King Kong destrói a cidade atrás
de sua loira (no filme a criatura agarra pelo menos três outras mulheres loiras ao correr pelas
ruas de Nova York em sua busca por Ann), a versão travesti do monstro deixa um rastro de
destruição (uma simbolização da desestabilização da norma em virtude de seu desejo e
corporificação desviante da feminilidade) em sua busca por tornar-se loira (o duplo feminino
do monstro), acendendo um conflito racial que contrapõe a branquitude da feminilidade cis
gringa ao corpo travesti sudaca.
Rodríguez representa os cabelos tingidos de loiro como um artifício sedutor e acessível
de beleza, que a aproxima dos padrões de feminilidade justamente devido à sua associação com
a branquitude. Por conta disso, esse desejo é descrito com criticidade e muitas vezes retém
significantes de alteridade. Em Cuerpos para Odiar, a autora relata o ritual de tingir o cabelo
de loiro enredando esse ato a uma complexa relação de (des)pertencimento em diferentes
culturas ou linhagens de feminilidade, aparentemente antagônicas:
252

Mi color preferido es el tono onceuno de tintura de pelo. Cuando me la pongo y armo


el ritual del pelo, después del decoloramiento, echándome variedad de cremas de
masaje, que mesclo para disimular lo muerto de la cutícula capilar, como dicen en la
tele, y lo vuelvo a revivir lentamente con el secador, y cubro totalmente con aceite de
silicona capilar, y lo enrosco en un moño por horas, para que al soltarlo quede
voluminoso y ondulado como recuerdo que le quedaba a mi vieja cuando era joven.
Ella tenía el pelo oscuro y largo como la Sofía Loren, pero yo lo tengo rubio y largo
como la Pamela Anderssen. Me gusta peinarme como la Pamela Anderssen. Me gusta
imitar su maquillaje.103 (RODRÍGUEZ, 2014, p.67. Grifos Meus)

É interessante notar que, nessa passagem, a autora enfatiza a “artificialidade” do ato


(menciona uma série de processos e métodos aos quais o cabelo deve ser submetido) e exalta
também um aspecto artesanal (o ritual é feito em casa, a partir de saberes ensinados pela
televisão e também pela sua mãe e provavelmente por outras amigas travestis), apontando para
uma cultura compartilhada de “tecnologias de feminilidade”.
O prazer se sobressalta no ritual de tingir o cabelo, que é descrito como prática de
autocuidado relacionada a processos identitários associados à feminilidade. Além disso, visto
que a feminilidade que corporifica é compartilhada com sua mãe, o ritual representa também a
ativação de uma conexão ou pertencimento específico, que reforça esse vínculo familiar.
Quando conta que seus cabelos a fazem recordar os de sua mãe, a autora aparenta compensar o
fato de ter os cabelos tingidos de loiro (e não naturalmente escuros como os da mãe) com o
reforço do parentesco alcançado através da comparação de suas feminilidades respectivamente
à de Pamela Anderssen e à de Sofía Loren. Com essa metáfora, a autora forja entre ela e sua
mãe um alinhamento geracional análogo ao dessas celebridades, que apesar de não possuírem
laços biológicos, provêm da mesma linhagem de feminilidade glamourosa.
Adicionando mechas decoloniais à complexidade do que pode simbolizar a cor de seus
cabelos, a autora recorrentemente associa o loiro com a morte física da raiz (“a morte da cutícula
capilar”), coisa que, na minha interpretação, faz reverberar outros genocídios e epistemicídios.
Essa ideia se explicita na passagem disposta na página seguinte do mesmo zine, em que a autora
conta detalhadamente que a tinta de cabelo de tom onceuno (loiro acinzentado) danifica o seu
cabelo, mas representa ao mesmo tempo um desejo, um prazer, uma necessidade enredada no
trabalho sexual, uma limitação de classe e uma experiência de racialização:

103
Tradução: “Minha cor preferida é o tom onze-um de tinta de cabelo. Quando a coloco e armo o ritual
do cabelo, depois de descolorir, colocando variedades de cremes de massagem, que misturo para dissimular a
morte da cutícula capilar, como dizem na televisão, e começo a revivê-lo lentamente com o secador, e cubro
totalmente com óleo de silicone capilar, e o amarro em um coque por horas, para que ao soltá-lo fique volumoso
e ondulado como recordo que ficava o da minha mãe quando era jovem. Ela tinha o cabelo escuro e comprido
como a Sofía Loren, mas o meu é loiro e comprido como o da Pamela Anderssen. Eu gosto de me pentear como a
Pamela Anderssen. Eu gosto de imitar sua maquiagem”.
253

Tengo el pelo rubio, casi Blanco y largo, delgado y quemado. Muerto, como pelo de
choclo, como bien dirían las que me conocen de cerca. La mayoría de las veces pasan
más semanas de las recomendables para teñir las raíces. La mayoría de las veces, las
raíces de mi pelo crecido se notan tan negras que me delatan cuando camino por el
centro de Santiago. Los hombres, a las travestis, las prefieren rubias.104
(RODRÍGUEZ, 2014, p.67. Grifos Meus)

Quando conta que suas raízes negras a “delatam”, referencia mais uma vez a
“imitação” (racial, de gênero, de classe etc.) como qualidade moral e socialmente condenável e
volta a referenciar a pressuposição difundida de que “travesti” não seria uma identidade, senão
uma enganação ou uma mentira (artifício que esconde uma verdade biológica). Nessa
passagem, o “loiro tingido”, além de estar enveredado em um desejo pessoal, emerge como
posicionamento estratégico condicionado a uma estrutura social de
desejabilidade/respeitabilidade, visto que sua aceitabilidade está constantemente em risco em
ambientes públicos. Assim, pode-se dizer que a autora enreda diferentes elementos (como o
trabalho, a possibilidade de circulação, sua segurança e desejabilidade) na análise de seu desejo
pelos cabelos loiros, fazendo ressoar as palavras de Glória Anzaldúa: “Pero es dificil
differentiating between lo herdado, lo adquirido, lo impuesto”105 (ANZALDÚA, 2007, p.104).
Desfazendo-se de valorações ético-morais e pautando sua sobrevivência e felicidade, a autora
reconhece os múltiplos vetores que orientam seu desejo por ter cabelos loiros.
Quando Rodríguez cita o “cabelo de milho” (talvez a tradução mais adequada seria
“cabelo de palha”) para representar a morte da cutícula capilar resultante da descoloração, ela
escolhe um componente natural e orgânico (o milho), cujo capital simbólico está depositado
em representações de nações nativas, especialmente nos imaginários mexicanos e norte-
americanos: o milho, além de compor a base alimentar de indígenas mexicanos e de outras
comunidades nativas, é utilizado como símbolo de resistência e de autorrepresentação por
diferentes culturas.
Além disso, o milho é representativo do encontro colonial em sua figuração
emblemática, por exemplo, no repertório visual norte-americano do “dia de ação de graças”. O
emprego desse elemento nessa passagem faz ecoar um comentário de Anzaldúa sobre
racialização e colonização: “indígena como milho, como o milho, a mestiça é um produto do
cruzamento, projetado para preservação sob uma variedade de condições. [...] ela sobreviverá

104
Tradução: “Tenho o cabelo loiro, quase branco e comprido, magro e queimado. Morto, como cabelo
de milho, como bem diriam as que me conhecem de perto. Na maioria das vezes passam mais semanas que as
recomendáveis para tingir as raízes. Na maioria das vezes, as raízes do meu cabelo crescido se mostram tão negras
que me delatam quando caminho pelo centro de Santiago. Os homens, às travestis, as preferem loiras”.
105
Tradução: “Mas é difícil diferenciar entre o herdado, o adquirido, o imposto”.
254

às encruzilhadas” (ANZALDÚA, 2007, p.103). Essa característica ambígua, a capacidade de


abarcar diferentes facetas de elementos antagônicos em um único corpo (o loiro tingido, o
prazer e a necessidade de usar estrategicamente a estética dominante e, ao mesmo tempo, os
cabelos escuros que emergem delatando seu parentesco e sua insubordinação), é lucidamente
corporificada por Rodríguez, que forja para si um arsenal resiliente.
O desejo pelos cabelos loiros contém também uma faceta associada à sobrevivência,
em especial considerando o trabalho como condicionante de suas possibilidades estéticas. Ao
descrever a diferença no tratamento que recebe quando passa muito tempo sem tingir os cabelos
e suas raízes começam a despontar escuras, a autora enfatiza a compulsoriedade de
procedimentos (maquiagem, tintura, cirurgias etc.) que obliteram traços racializados como
prerrogativa do sucesso no trabalho sexual e de circulação nos domínios públicos:

Los matices de colores claros de mi maquillaje, de mis labios y de mis ojos, se rompen
abruptamente por la línea negra que atraviesa desde mi frente hasta la nuca y los
hombres dejan de mirarme con admiración y respeto, y comienzan directamente a
mirarme con un burlesco deseo de someterme […] Es cierto, he comprobado la
hipótesis de que la línea negra sobre el rubio onceuno de tinturas para el pelo color
europeo, me delata indiscutiblemente ante el agudo ojo del cliente chileno. Los
jóvenes al caminar despreocupados por el centro de Santiago, hacen gestos
desaprobando la seducción que ejerzo sobre ellos, porque la línea de mis raíces
significa más que la línea de mi insubordinación, más aun, la de sus deseos. También
son sus ganas de traspasar mis líneas, de juguetear con las líneas de mi cuerpo, en
secreto y sin asco.106 (RODRÍGUEZ, 2014, p.81. Grifos Meus)

Nessa passagem a autora conta que apesar de utilizar matizes claros na maquiagem e
nos lábios, acentuando os traços da branquitude, a cor escura do cabelo desponta denunciando
que o tom europeu não é natural, senão “loiro tingido”: trata-se de um artifício que, quando
descoberto, denuncia o “sudaca” e faz despencar sua desejabilidade no “olho agudo do cliente
chileno”, colocando-a em risco. É possível apontar que, nessa passagem, Rodríguez mistura em
seu desejo pelos cabelos loiros uma crítica à economia simbólica imperialista norte-americana
e europeia, explicitando como o imaginário cultural da mulheridade branca torna indesejáveis
os corpos latinos: sua insubordinação a esses padrões (deixar que a raiz dos cabelos cresça

106
Tradução: “Os tons de cores claras da minha maquiagem, de meus lábios e de meus olhos, se rompem
abruptamente pela linha negra que atravessa desde a minha testa até a nuca e os homens deixam de me olhar com
admiração e respeito, e começam diretamente a me olhar com um desejo burlesco de me submeter [...]. é verdade,
eu comprovei a hipótese de que a linha negra sobre o loiro onze-um de tinta para o cabelo cor europeia me delata
indiscutivelmente diante do olho agudo do cliente chileno. Os jovens ao caminhar despreocupados pelo centro de
Santiago, fazem gestos desaprovando a sedução que exerço sobre eles, porque a linha de minhas raízes significa
mais que a linha da minha insubordinação, mais ainda, a de seus desejos. Também são suas vontades de ultrapassar
minhas linhas, de brincar com as linhas do meu corpo, em segredo e sem nojo”.
255

negra) delimita suas possibilidades de atração (pautando o elemento da repulsa) e a


vulnerabiliza.
Pode-se dizer que a raiz negra simboliza também uma fronteira, a demarcação de um
limite que separa dois mundos inusitadamente contidos no mesmo corpo e que às vezes operam
simultaneamente. Nas palavras de Anzaldúa, essa fronteira “é onde ocorre a possibilidade de
unir tudo que está separado” (ANZALDÚA, 2007, p.101). A fronteira que Rodríguez descreve
complexifica o prazer e opõe escolha individual às demandas do trabalho sexual, alinha
sobrevivência à branquitude apesar da racialização latente de seu corpo e faz colidirem valores
e desejos com a necessidade de hibridizar diferentes culturas de feminilidade. Essa fronteira
demarca também um espaço intersticial onde nascem os monstros, ou seja, simboliza a
corporificação simultânea de vetores de forças antagônicas que desmancham as estruturas
dialéticas.
No limite entre suas raízes negras e o cabelo tingido de loiro europeu arma-se uma
fronteira semelhante à que Gloria Anzaldúa teoriza quando escreve sobre a consciência mestiça:
referenciando uma “consciência alienígena” (ou “consciência estrangeira” que poderia aplicar-
se aqui à experiência sudaca em seu encontro com a cultura imperialista), Anzaldúa narra sua
capacidade de percorrer diferentes culturas, de habitar múltiplos locais ao mesmo tempo e de
concentrar uma ambivalência de vozes em sua enunciação. A autora identifica nesse local
intersticial uma posição privilegiada (uma vez que oferece ferramentas para diferentes
estratégias) e também reconhece que “a personalidade dual ou múltipla da mestiça é
atormentada por uma inquietação psíquica” (ANZALDÚA, 2007, p.100). Dentre as
características que ressalta ao habitar a fronteira, Anzaldúa menciona:

Uma tolerância por contradições, uma tolerância por ambiguidade. Ela aprende a ser
indígena na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vista Anglo. Ela aprende
a fazer malabarismos com culturas. Ela tem um senso de personalidade plural, ela
opera em um modo pluralista – nada é forçado para fora, o bom e o mau e o feio, nada
é rejeitado, nada é abandonado. Ela não só sustenta contradições, ela transforma
ambivalência em outra coisa. (ANZALDÚA, 2007, p.101)

Em um movimento semelhante, Rodríguez narra a sua relação com a feminilidade


oscilando instavelmente entre posições contraditórias: expressa um desejo crítico por uma
feminilidade que não pode ser alcançada, mas tampouco pode ser totalmente descartada (pois
está enraizada em seu imaginário e regula seu desejo, sua identidade e sua sobrevivência). Ao
mesmo tempo em que se conecta com a feminilidade, reconhece que essa a desloca e
vulnerabiliza, propiciando uma animosidade ressentida que se alastra em direção às suas
256

limitações, mas contamina também os restritos caminhos para superá-las: por exemplo, a autora
ressente a branquitude que corporifica com prazer e glamour quando tinge seus cabelos de loiro,
assim como a mulheridade colonial que anseia. Manifestando desejos ambíguos, Rodríguez
desconfia de suas conquistas e olha criticamente para a forma como ocupa categorias: nas
ocasiões em que corporifica com sucesso a figura da loira, a autora é tomada pela necessidade
de reafirmar os efeitos de sua diferença em relação ao ideal de mulheridade cis-
heteronormativa: “mi rubio está lleno de um sida”107 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, sem data
/ sem paginação). Nesse sentido, pode-se dizer que a relação que estabelece com a mulheridade
não é de reflexo (tipicamente associada à imitação) senão de difração, conforme desenvolvido
por Haraway:

Difração não produz “o mesmo” fora de lugar, como o reflexo e a refração fazem.
Difração é um mapeamento da interferência, não replicação, reflexo ou reprodução.
Um padrão de difração não mapeia onde as diferenças aparecem, senão mapeia onde
os efeitos da diferença aparecem. (HARAWAY, 2004, p.70)

Colocando-se como terceiro elemento ou fronteira capaz de comportar todas as


ambiguidades que descreve, a autora agencia uma força criativa monstruosa para representar o
local onde diferentes culturas colidem às vezes de forma inegociável. Como forma de superar
os dualismos que desmistifica, Rodríguez comporta uma diferença que não é oposicional (não
pretende uma simples inversão dos termos da estrutura dialética) nem conciliadora. Melhor,
sobrepondo e contaminando termos antagônicos, Rodríguez investe no conflito enquanto
proposição criativa.
Conforme venho argumentando, essa crítica do ideal de mulheridade está enraizada
em diferentes facetas (raciais, coloniais etc.) e se direciona não só ao ideal de feminilidade,
como também particularmente às masculinidades cis-heteronormativas e aos relacionamentos
amorosos, como pode ser observado nas passagens em que a autora conta sobre relacionamentos
amorosos e sexuais: “Aprendi a hacerme la linda y a aferrarme a esos hombres, a los hijos de
esos hombres y a sus nietos, y a los nietos de sus nietos, que nunca imaginaron la existencia de
una travesti resentida como yo”108 (RODRÍGUEZ, Contodomisida, s/n). Cabe então analisar
essa dimensão nos textos de Rodríguez pautando as intervenções somáticas trans* em sua
intersecção com os relacionamentos sexo-afetivos e com a solidão estrutural, objetivando uma
nova iteração do não/humano.

107
Tradução: “meu loiro está cheio de uma AIDS”.
108
Tradução: “Aprendi a me fazer de linda e a me agarrar a esses homens, aos filhos desses homens e a
seus netos, e aos netos de seus netos, que nunca imaginaram a existência de uma travesti ressentida como eu”.
257

6.6 DA SOLIDÃO ESTRUTURAL AO TRANIMAL

Em King Kong, a personagem feminina encontra seu par romântico, consagrando a


tradição cinematográfica que promete um futuro cis-hetero-reprodutivo ao casal, enquanto a
criatura desfruta de efêmeros momentos de alegria ao lado de Ann e se vinga de seus
sequestradores nas cenas que antecedem seu assassinato. Pode-se articular uma analogia entre
a trama de King Kong e as experiências amorosas e sexuais narradas por Rodríguez, que
compartilha da animosidade negativa, ressentida e vingativa que essa figura emana,
especialmente quando relaciona sua desejabilidade às intervenções somáticas (como aplicações
de silicone, uso de tintura capilar, cirurgias e outros procedimentos estéticos), que supostamente
lhe aproximariam do ideal de mulheridade.
No movimento oscilante característico de sua escrita, os artifícios tecnológicos (em
especial as cirurgias) emergem como viabilizadores de um acesso privilegiado ao domínio
amoroso e às relações sexo-afetivas e, ao mesmo tempo, desorientam a faceta comumente
associada à “transnormatividade” (possibilidade de assimilação na estrutura hegemônica) que
essa premissa antecipa:

Soy llamativa. Así, con este nivel de producción los hombres se vuelven amables y
caballeros. “Contigo Lola, soy el hombre más feliz del mundo”. No es uno el que te
lo dice, son tantos que pierdes la cuenta, y de noche son más, sobre todo jóvenes que
de día no se atreven ni siquiera a desviar el ojo por ti, porque presienten que una
pudiera despertar algo incontrolable que llevan dentro, tan dentro que llega a ser
más monstruoso que la historia de mi cuerpo, más monstruoso que la entrada y salida
de silicona y agujas de mi piel. Más monstruosa que mi tolerancia al dolor.
109
(RODRÍGUEZ, 2015, p.23. Grifos Meus)

Na primeira porção dessa passagem, a autora atribui a intensificação de sua


desejabilidade e a cordialidade de seus possíveis parceiros/amantes ao seu “alto nível de
produção”, sugerindo que as intervenções somáticas feminilizantes viabilizam uma posição
privilegiada de acesso a algumas categorias recorrentemente negadas aos corpos dissidentes,
como o amor e os relacionamentos sexo-afetivos. A esse respeito, analisando as possibilidades

109
Tradução: “Sou chamativa. Assim com esse nível de produção os homens ficam amáveis e
cavalheiros. ‘Contigo Lola, sou o homem mais feliz do mundo’. Não é só um que te diz, são tantos que você perde
a conta, e de noite são mais, sobretudo os jovens que de dia não se atrevem nem sequer a desviar o olho por você,
porque pressentem que uma [travesti] poderia despertar algo incontrolável que levam dentro, tão dentro que chega
a ser mais monstruoso que a história do meu corpo, mais monstruoso que a entrada e saída de silicone e agulhas
da minha pele. Mais monstruosa que minha tolerância à dor”.
258

de ascensão social que os procedimentos somáticos associados à transexualidade proporcionam


e diferenciando as experiências transfemininas de distintas classes sociais nos Estados Unidos,
em seu livro The look of a Woman o antropólogo transmasculino Eric Plemons coloca que:

Pessoas com menor acesso às tecnologias de mudanças corporais – aqueles/as que não
puderam pagar eletrólises caras, que não puderam pagar médicas/os para prescrever e
acompanhar seu uso de hormônios, que não puderam pagar por cirurgias caras-
terminaram ocupando os corpos mais visivelmente gênero-divergentes e, por isso,
sofrendo os piores estigmas e punições sociais, enquanto as mulheres trans* ricas que
já estavam na posição de privilégio relativo puderam pagar para se livrarem dessas
exclusões e violências. (PLEMONS, 2017, p.95)

Pode-se dizer que o breve aceno de Rodríguez à faceta transnormativa das cirurgias
(que supostamente afirmaria positivamente a estrutura vigente e lhe renderia uma posição de
privilégio em relação à sua comunidade) é desconstruído na porção final de seu texto, quando,
em difração à mulheridade cis, caracteriza os frutos desse empreendimento (os efeitos de sua
“alta produção”) como relações arriscadas, por exemplo, mencionando a dimensão monstruosa
do desejo dos homens com quem se relaciona. Pode-se dizer que, nesse sentido, a autora
explicita as potencialidades antagônicas dos efeitos da almejada cirurgia: os mesmos
procedimentos que tornam seu corpo desejável e atraente para clientes e/ou pretendentes, são
também responsáveis pela sua vulnerabilidade e monstrualização, visto que, nas palavras de
Rodríguez, o desejo desses homens “chega a ser mais monstruoso que a história do meu corpo,
mais monstruoso que a entrada e saída de silicone e agulhas da minha pele. Mais monstruosa
que minha tolerância à dor”.
Nesse sentido, quando descreve os efeitos dos procedimentos somáticos como
potencialmente monstrificantes em vez de normalizantes, a autora desvirtua a premissa de que
essas intervenções (como as cirurgias comumente associadas à noção de passabilidade) retêm
um componente intrinsecamente normativo ou que refletem e projetam uma mulheridade cis
idêntica, porém deslocada. Ou seja, Rodríguez reconhece e alude ao desejo de adentrar as
estruturas que beneficiam privilegiadamente as subjetividades cis-heterosexuais, mas afirma
que a trajetória travesti está embebida em particularidades que demandam a reconfiguração do
paradigma amoroso e da própria estrutura do relacionamento:

Ellos dicen; Tú pelo es tan claro que me gustaría tenerlo en mi cuerpo, esparcido en
mi cuerpo. Contigo – y lo trágico es que una comienza a dudar – Una, rápidamente
comienza a encontrar la posibilidad de que todo pueda jugar a nuestro favor. Que la
vida comienza a tomar sentido. Que los pinchazos de silicona, los años de tintura
onceuno, los mismos años desenredando el pelo choclo, la añorada operación de
readecuación sexual, la primera impresión que te queda entre las piernas, las
curaciones, la cicatrices y los años de hormonas van a cumplir su objetivo y vas a
259

conocer a ese hombre que mereces, al príncipe de la tele, de esas malditas películas
que nunca se acaban, un príncipe que perdonará tu alcoholismo, tu consumo y tu
infección.110 (RODRÍGUEZ, 2014, p.89. Grifos Meus)

Nessa passagem Rodríguez apresenta o ato de tingir os cabelos de loiro, as injeções de


silicone, a hormonização e as cirurgias como passos rumo ao possível encontro com “esse
homem que você merece, o príncipe da televisão, desses malditos filmes que nunca acabam”.
O texto apresenta progressivamente uma variedade de intervenções somáticas (muitas das quais
também são experienciadas por mulheres cis) para descrever a trajetória de adequação ao
padrão cis-heteronormativo de mulheridade, que supostamente seria gratificada com o êxito no
amor e nas relações sexo-afetivas. Entretanto, a parte final do texto desvia do paradigma
amoroso hegemônico evocado e desemboca numa descrição que desafia o cânone dos finais
felizes holliwoodianos: ao adicionar o alcoolismo, o consumo e a infecção (soropositividade)
na equação, a autora contamina a categoria “amor” e reitera seu despertencimento nas tramas
amorosas cis-heterossexuais do cinema.
Essa passagem reverbera no poema Tetas de Susy Shock, em que a autora representa
a colocação da prótese de seios como a tentativa frustrada de assimilar-se aos padrões de
desejabilidade para encontrar pretendentes semelhantes aos dos filmes de Holliwood:

Cuando vi mis tetas / Enormes volcanes con pezones / Supe que la aureola de la
Hayworth / Por fin, era mía. / Que acá, en el Sur, / Nacía esta yegua de marfil y
purpurina. / En el Sur sólo conocen escarcha, / Me dije, / Así que mis tetas serían /
Un oasis a tanto arco iris sudaca marchito. / Y las vesti de noche, / Para el juego de
la avispa enamorada / Y pasaron uno, veinte, cuatrocientos, miles / De soldados
perforadores de carne / Y ninguno supo ser mi Glenn Ford.111 (SHOCK, 2011, p.26.
Grifos Meus)

Shock compara sua prótese aos seios da estrela Rita Hayworth, espelhando sua
feminilidade na da atriz e introduzindo-se de forma enviesada no roteiro do filme norte-
americano noir Gilda (1946), que se passa em Buenos Aires. Nessa película, Hayworth

110
Tradução: “Eles dizem: seu cabelo é tão claro que eu gostaria de tê-lo no meu corpo, espalhado no
meu corpo. Contigo – o trágico é que você começa a duvidar – você rapidamente começa a encontrar a
possibilidade de que tudo possa jogar a nosso favor. Que a vida começa a tomar sentido. Que as espetadas de
silicone, os anos de coloração onze-um, os mesmos anos desembaraçando o cabelo de milho, a esperada operação
de readequação sexual, a primeira impressão que fica entre as pernas, as ataduras, as cicatrizes e os anos de
hormônios vão cumprir seu objetivo e você vai conhecer esse homem que você merece, o príncipe da televisão,
desses malditos filmes que nunca acabam, um príncipe que perdoará seu alcoolismo, seu consumo e sua infecção”.
111
Tradução: “Quando vi minhas tetas / Enormes vulcões com mamilos / Soube que a aureola da
Hayworth / Por fim, era minha. / Que aqui, no Sul, / Nascia essa égua de marfim e purpurina / No Sul só conhecem
geada, / [eu] Me disse / De forma que minhas tetas seriam / Um Oasis a tanto arco-íris sudaca murcho / E as vesti
de noite, / Para o jogo da vespa apaixonada / E passaram um, vinte quatrocentos, mil / Soldados perfuradores de
carne / E nenhum soube ser meu Glenn Ford”.
260

interpreta uma femme fatale e adentra um relacionamento abusivo e ambíguo com o ator Glenn
Ford, que interpreta um apostador vigarista. No poema de Shock a personagem é apropriada e
rearticulada para representar a solidão estrutural experienciada por transfeminilidades sudacas:
“nenhum soube ser meu Glenn Ford”. Semelhantemente ao poema de Rodríguez, em vez de
“príncipes”, os homens que Shock encontra são “soldados perfuradores de carne”, que
simbolizam a violência policial, o transfeminicídio e outras opressões que travestis comumente
enfrentam nas interações sociais e em seus relacionamentos sexo-afetivos.
É interessante notar que, assim como na passagem em que Rodríguez alinha-se a King
Kong, no poema de Shock os gêneros (homem, mulher e o relacionamento entre eles) são
sustentados por referências a celebridades de Holliwood (como Rita Hayworth e Glenn Ford),
ao passo que a prótese de seio (local de designação de transfeminilidade no texto) e a
autorrepresentação da travestilidade são na maior parte articuladas através de símbolos
hibridizados do mundo natural, como vulcões, marfim, égua, oasis e vespa. Através desse
recurso a autora vincula o tornar-se outro/monstro/animal à mulheridade da experiência travesti,
marcando uma forma singularmente dissidente de corporificação da feminilidade. Tanto nesse
poema como também em diversas passagens dos zines de Rodríguez, a animalidade é evocada
para representar uma experiência que desvia do final feliz cis-heterossexual, oferecendo, em
seu lugar, parcerias inusitadas e alinhamentos com outras espécies que, se desdobrando para
além da metáfora, permitem imaginar a experiência e o próprio corpo trans* como processo e
produto de relações não/humanas capazes de expandir a concepção canônica de relacionamento,
amor e vínculo familiar.
Nessa esteira, cabe incorporar a essa análise o quadrinho do zine Estiercol: suplemento
diverso, da artista argentina Gabriela Binder (imagem disposta abaixo).
261

Figura 37 – Capa de Estiercol: Suplemento Diverso

Fonte: Binder (sem data de publicação)112.

Binder desenha uma personagem que recebe destinos diferentes de acordo com as
feminilidades que lhe são projetadas: quando a vidente a interpela como mulher cis, seu futuro
inclui amor, família, ascensão econômica e um cachorro, e ao contar que é trans, todas as
promessas desaparecem, menos a companhia animal. Da perspectiva que projeta cis-
heterossexualidade na personagem, o cachorro seria considerado mais um objeto (listado junto
ao carro e à casa) e simbolizaria a ascensão social prometida pelo contrato cis-heterossexual.
Entretanto, observando a recorrência com a qual o animalizado emerge associado ao
despertencimento de travestis/trans* em zines e projetos autônomos semelhantes aos de Binder,
pode-se dizer que, no destino transfeminino da personagem, o animal é transposto da condição
de objeto e estabelece um vínculo especial com a subjetividade trans*. Mais que um simples
consolo para a solidão reservada à personagem, o animal e a figura transfeminina compartilham
um laço de solidariedade interconstitutiva, que se forja através das diferentes desumanizações
que experienciam.
Levando em conta a bagagem não/humana que eclode em projetos
autorrepresentativos como os de Shock e Rodríguez, argumentarei que, focalizando a solidão

112
Tradução: “Você vai ter um marido fiel, 4 filhos, uma família linda, um lar muito feliz, um carro 4x4
e um cachorro.../ Sou trans! / Então fodeu!... O único garantido é o cachorro...”.
262

estrutural, o vínculo com o animalizado vai além do “companheirismo” e pode revelar


sobreposições que vulnerabilizam sistemas que, até então, aparentavam operar de forma
independente, afinal: “nós não apenas estamos em relacionamentos; nós somos [feitos] desses
relacionamentos” (HAYWARD, 2010, p.27).
Se, de acordo com Rodríguez, “es definitivamente la negación del amor lo que nos
une”113 (RODRÍGUEZ, 2015, p.43), a exclusão da esfera do amor romântico no quadrinho de
Binder e no poema de Shock não induz necessariamente à solidão, senão aponta para a
possibilidade de coalizões inusitadas e encontros/parcerias que, incorporando animalidades
híbridas, desafiam a separação humano/não-humano. A partir desse alinhamento com vulcões,
vespas, cachorros e monstros e forjando solidariedade entre diferentes seres também expulsos
do Humano, podem ser imaginadas forças que vislumbram um nível intenso de contaminação
das categorias ontológicas, como, por exemplo a potência “tranimal” teorizada por Eva
Hayward e Lindsay Kelley:

Tranimais também brinca com o prefixo “trans” enquanto pluralidade – assim como
em animais – para sugerir o constante trabalho de agentes que cruzam espécies. Trans
sugere o cruzamento energético e material que desestabiliza categorias bifurcadas.
Animais sugere organismos literais, não seres metafóricos ou puramente
representativos, que existem somente na intencionalidade antropocêntrica.
(HAYWARD; KELLEY, 2013, p.115-116)

A vibratilidade da agência não/humana na composição do corpo trans* simboliza


primariamente a conexão entre desumanizados e, a partir desse vínculo, se desdobra num laço
interespécie mais profundo: a potência tranimal. Substituindo a ênfase na exclusão do Humano
por uma perspectiva que reconhece a conexão entre cosmo-visões outrificadas, pode-se articular
uma forma particularmente dissidente de relacionar-se: por exemplo, o “tornar-se com”
(HARAWAY, 2008) é um quadro teórico proveitoso para vislumbrarmos o fenômeno que
excede o mero “encontro” entre duas entidades, sugerindo um intercâmbio de forças que
constituem ontologias, inclusive instruindo a própria feitura do corpo trans*: “Os parceiros não
precedem o encontro; espécies de todo tipo, vivas e não, são consequência em uma dança de
encontros que modela sujeitos e objetos” (HARAWAY, 2008, p.4).
Em muitos sentidos a filiação da dissidência com o animalizado desafia a separação
das categorias na estrutura dialética Humano/não-humano. Essa é a proposta da noção
“não/humano”, que incide criticamente contra a ideia de pessoidade e contra o excepcionalismo
humano, conforme explicado por Giffney e Hird:

113
Tradução: “é definitivamente a negação do amor o que nos une”.
263

Reconhecer o traço do não-humano em cada figuração do Humano também significa


ser consciente da exclusiva e excludente economia discursiva referente ao que
significa ser, viver, agir ou ocupar a categoria do Humano (Butler, 2004ª, 356). [...]
Outros prefixos configurativos – “in” e “sub” – também funcionam aqui, entretanto,
“não-” ilustra muito bem como as normas operam através, ao mesmo tempo em que
precisando, de uma relação fabricada em negociação, negação, resistência e rejeição.
Se o Humano é uma categoria móvel, suas mutações não estão sempre a serviço da
inclusividade (Fuss, 1996). (GIFFNEY; HIRD, 2008, p.2-3).

Argumenta-se que a animalidade nas proposições analisadas não é articulada somente


como forma de aludir ao que não se pretende representar ou ao irrepresentável, nem é
empregada exclusivamente como metáfora para referenciar uma posição social marginalizada,
excluída ou intersticial: o quadro teórico “não/humano” oferece uma perspectiva de análise que
potencialmente promoveria a reelaboração da separação, por exemplo, entre natureza/cultura e
real/artificial. As passagens que melhor exemplificam essa dinâmica são aquelas em que
Rodríguez narra as intervenções somáticas feminilizantes, sugerindo que o “rearranjo da carne”
e os contornos do seu corpo são resultados não necessariamente positivos de encontros de
unidades vivas que, quando em contato, se expandem para além do Humano. A seguir analisarei
os procedimentos cosméticos e cirúrgicos narrados pela autora como potenciais transposições
ao não/humano, detalhando a atuação de diferentes agentes (como bactérias e inclusive
substâncias inanimadas) centrais na feitura e no “senso de ser” desse corpo que transita entre
categorias ontológicas.

6.7 CIRURGIAS ALGO-MAIS-QUE-HUMANAS

“I didn’t transition because I wanted to become a woman, I did it because I wanted


to become more” (HAYWARD, 2018)

“We must find another relationship to nature besides reification and possession”
(HARAWAY, 2004, p.64)

Ao longo deste trabalho indicou-se que um número crescente de projetos


autorrepresentativos travesti/trans* propõe a incorporação de “natureza” ao universo
tradicionalmente associado ao “artificial”, visando desestabilizar essas categorias,
principalmente através do emprego de figuras monstruosas e/ou animalizadas. Uma das vias
264

forjadas nesse ímpeto é a representação de procedimentos tipicamente associados à


transexualidade (como cirurgias e outras intervenções somáticas) enquanto experiências
monstrificantes/animalizantes, em vez de normalizantes. Outra proposição semelhante é a
representação do corpo trans* enquanto processo e produto do tornar-se com o “inorgânico”:
por exemplo, a prótese de seio, até então percebida como matéria artificial, separada ou
meramente sobreposta ao corpo orgânico, passa a ter agência própria. A seguir analisarei
autorrepresentações que podem ser informadas pelas noções de tranimalidade e de não/humano,
objetivando enxergar mais de perto (e para além de tropos metafóricos ou poéticos) o
aparecimento e o desaparecimento das fronteiras entre o humano e o animal.
Que potências subversivas podem emergir com identificações que excedem a própria
espécie? Cruzar espécies, através e além do denominador comum “desumanizado”, permite
imaginar uma concepção expandida e não/humana de si, que reconhece a agência de múltiplos
vetores e organismos na composição do corpo (já não tão Humano) e desestabiliza, portanto,
os limites que separam natureza/cultura e real/artificial. Pode-se dizer que, imaginando a
animalidade travesti/trans* para além do uso metafórico ou poético, Rodríguez reconfigura a
relação entre travestilidade, monstruosidade e animalidade: ao descrever a atuação de agentes
não-humanos na feitura dos corpos travesti/trans* a autora oferece uma nova iteração tranimal
e não/humana de si. Para inaugurar esse debate, convém retornar à passagem em que Rodríguez
representa procedimentos somáticos tecnológicos (como as cirurgias) enquanto processos
doloridos que, em vez de aproximá-la do ideal de mulheridade, a monstrifica:

Soy llamativa. Así, con este nivel de producción los hombres se vuelven amables y
caballeros. “Contigo Lola, soy el hombre más feliz del mundo”. No es uno el que te
lo dice, son tantos que pierdes la cuenta, y de noche son más, sobre todo jóvenes que
de día no se atreven ni siquiera a desviar el ojo por ti, porque presienten que una
pudiera despertar algo incontrolable que llevan dentro, tan dentro que llega a ser
más monstruoso que la historia de mi cuerpo, más monstruoso que la entrada y salida
de silicona y agujas de mi piel. Más monstruosa que mi tolerancia al dolor.
114
(RODRÍGUEZ, 2015, p.23. Grifos Meus)

Conforme previamente argumentado, complexificando o debate sobre


transnormatividade, nesta e em outras passagens, em vez de inferir uma recusa radical da norma

114
Tradução: “Sou chamativa. Assim com esse nível de produção os homens ficam amáveis e
cavalheiros. ‘Contigo Lola, sou o homem mais feliz do mundo’. Não é só um que te diz, são tantos que você perde
a conta, e de noite são mais, sobretudo os jovens que de dia não se atrevem nem sequer a desviar o olho por você,
porque pressentem que uma [travesti] poderia despertar algo incontrolável que levam dentro, tão dentro que chega
a ser mais monstruoso que a história do meu corpo, mais monstruoso que a entrada e saída de silicone e agulhas
da minha pele. Mais monstruosa que minha tolerância à dor”.
265

ou um senso constante de desestabilização ou contradição da mesma, Rodríguez produz


autorrepresentações investidas em problemas: apresenta uma força (um desejo e/ou uma
expectativa) que encontra outra força conflitante e, assim, inaugura novos modos de pensar,
liberados de predicados invariáveis. Pode-se dizer que a autora afirma sua experiência enquanto
travesti recorrentemente evocando um movimento de negociação entre entidades antagônicas.
Por exemplo, abordando o tema da cirurgia, a autora não se reconhece como “outro não-
normativo” do Humano, senão assume o desejo de alcançar um ideal de feminilidade e o enreda
em relações que não podem ser antecipadas, onde o “tornar-se” (em parte processo e efeito da
cirurgia) não pode ser determinado como espelho da mulheridade/pessoidade/Humanidade e
deve, então, ser elaborado como difração, promovendo o desvirtuamento e, finalmente, a evasão
dessas categorias: monstruosidade e animalidade.
A monstruosidade travesti é representada por Rodríguez como uma faceta de um
processo de transição que supera a expectativa da regulação biomédica, especialmente a
passagem não ambígua de um gênero ao outro que a instituição promove. Nesse sentido, o
descontentamento, a insuficiência e os efeitos inesperados que a autora descreve como
característica fundamental de seu transicionar resvalam na descrição de Hayward sobre seu
próprio processo transexualizador, também embebido em fracassos e efeitos monstrificantes:

Eu não estou transicionando – o ato de trazer de um estado a outro – um tipo de


cruzamento de um limite? Não é tão simples como dizer que eu estou cruzando de
“homem” a “mulher” – eu estou cruzando a bio-materialidade do meu corpo com
bisturis e hormônios numa ponte de desejo. De fato, na medida em que meu corpo se
torna legivelmente “mulher” eu continuo ficando consciente do meu fracasso em
satisfazer minhas próprias normas autoperceptivas gendradas/sexuadas. Não importa
o quanto eu transponha, esperando completude, “mulher-idade” inteira, minhas
matérias continuam hibridas: uma esfinge, uma achech, uma monstra. (HAYWARD,
2010, p.28)

Hayward sinaliza o fracasso em atingir “mulher-idade inteira” (“whole ‘woman-


ness’”) e, ao reconhecer na hibridização das matérias de seu corpo o local de sua
monstruosidade, aponta para a contaminação dos limites que separam “feminilidade” de
“masculinidade” e, de forma análoga, “Humano” de “não-humano”. Cabe pontuar, entretanto,
que nos zines de Rodríguez a monstruosidade travesti emerge associada a procedimentos
precários e à dor deles derivada e, nesse sentido, se diferencia absolutamente daquela
estruturada por Hayward, Styker e Mary Daly. Por exemplo, o “mapa de cicatrizes” do seu
corpo visivelmente operado sinaliza que os recursos tecnológicos aos quais as travestis sudacas
têm acesso são completamente distintos daqueles analisados por Plemons e disponíveis às
266

mulheres transexuais gringas: não só os resultados, como também os tipos de procedimento, os


ambientes que os hospedam, a legalidade das práticas, as substâncias manipuladas e o trato com
os/as “profissionais de saúde” envolvidas/os são alguns dos elementos que diferenciam as
experiências monstrificantes de travesti sudacas daquelas comumente nomeadas “transexuais”.
Exemplificando essa ideia, além de reiterar que a cirurgia não garante a superação da solidão
estrutural anteriormente mencionada, o trecho disposto abaixo aponta também para a violência
médica e para os procedimentos precários aos quais muitas travestis e pessoas trans* sudacas
são submetidas:

El cirujano me agarró y zurció todo junto: el cartílago, los nervios, y la piel de mi


nariz. Ahora me río y me duele la cara toda. Tendré que aprender a reír como la
Monalisa, haciendo una mueca de felicidad. Antes besaba siempre las cicatrices de
mis amantes. Ahora no sé quien besará las mias.115 (RODRÍGUEZ, 2015, p.54. Grifos
Meus)

Nesta passagem Rodríguez projeta uma sombra de ambiguidade sobre a cirurgia


plástica (muitas vezes romantizada em relatos dessa natureza) que, por um lado, representa uma
conquista (senão a realização de um sonho) e, por outro, implica dor física que também se
imprime dando contornos à sua subjetividade: a autora enfatiza com ironia a impossibilidade
de celebrar o resultado da cirurgia e de desfrutar dos efeitos esperados, visto que o procedimento
lhe privou da capacidade física de sorrir. Após a cirurgia plástica, o símbolo máximo de
expressão de felicidade e alegria se vinculou à dor e à solidão: “agora não sei quem beijará as
minhas [cicatrizes]”.
Destaca-se também nesse relato a violência da prática médica, que emerge implicada
na “monstruosa tolerância à dor” necessária, segundo a autora, para tornar-se travesti. Esse
aspecto se evidencia ainda mais nas passagens em que narra suas visitas à Dolores (Dores), uma
figura clandestina, que oferece tratamentos estéticos e cirurgias às travestis de sua comunidade:

La Dolores, así la llamaban todas las travestis importantes y conocidas o que se


preciaran de serlo, que se habían hecho el cuerpo con ella. Después descubrías por
qué el nombre. Y es que el ritual de la entrada del espeso aceite en la carne, era tan
sufrible y grotesco como los rituales ejercidos por los salvajes sobre la carne viva.
Su mano en la piel y su voz dura en el proceso: tení buena base guacha, vai a quedar
con una regia teta, si erí travesti de verdad, tení que aguantar. Porque según su
lógica, dada la imposibilidad de usar anestesia por los riesgos que involucra, la
punción, es la marca del paso de lo que no se es, a la de un ser real. El dolor de la
entrada de la aguja en la piel, esa aguja gruesa usada para inyectar a los caballos, y
el sonido ciego que perfora la carne, todos esos detalles te hacen recordarla con

115
Tradução: “O cirurgião me agarrou e remendou tudo junto: a cartilagem, os nervos, e a pele do meu
nariz. Agora eu rio e minha cara toda dói. Terei que aprender a rir como a Monalisa, fazendo careta de felicidade.
Antes beijava sempre as cicatrizes de meus amantes. Agora não sei quem beijará as minhas”.
267

ardor y tortura, como si recordaras una violación. Con el tiempo, niegas qué pasó,
apartas los detalles que se enquistan y haces como que te olvidas, pero nunca logras
dejarlos atrás. Si eres una verdadera travesti, vuelves a la Dolores116. (RODRÍGUEZ,
2014, p.72. Grifos Meus)

Diferenciando-se consideravelmente do imaginário que circunscreve as cirurgias


transexualizadoras a ambientes institucionais (como clínicas médicas e hospitais), aqui o
procedimento de injeção de silicone se dá de forma ilegal, sem assepsia ou anestesia e com
materiais improvisados, desafiando os saberes, o controle e a estrutura biomédica reguladora
da transexualidade. Divergindo e descolando-se da disciplina médica e dos conhecimentos
científicos formais, a figura de Dolores aparece como retentora de saberes ocultos análogos à
bruxaria e, aplicando tecnologias-outras, lidera o ritual de passagem que viabiliza a emersão de
um ser singular: a monstra travesti.
Recordando a cena de King Kong em que Ann é oferecida ao primata gigante pela tribo
nativa de Skull Island em um ritual (que, assim como a passagem de Rodríguez, possui
insinuações simbólicas de violação sexual), a intervenção somática é retratada aqui como rito
“selvagem” de passagem “do que não se é” a um “ser real”. Nesse sentido, a monstrificação,
inaugurada com as injeções de silicone, contrasta com os procedimentos transexualizadores
referenciados por Stryker e Daly: se a monstrualização transexual espelhada na criatura de
Frankenstein diz respeito à “artificialidade” do corpo arquitetado pela ciência ocidental para
mimetizar a “verdadeira” mulheridade (que, nessa perspectiva, estabelece a cisgeneridade como
“o real”), num movimento oposto, o rito de passagem travesti representa o momento em que o
corpo se torna “real” (“travesti de verdade”) através de um procedimento que substitui a
centralidade do gênero pela dor implicada na aquisição de novos atributos femininos, que opera
também como insígnia de pertencimento em uma cultura dissidente.
O ritual em questão é descrito como intervenção somática que confere contornos à
figura da travesti focalizando a tolerância à dor como signo retentor da subjetividade trans*,
sudaca, racializada e de classe social baixa. Nesse sentido, as particularidades do “tornar-se

116
Tradução: “A Dolores, assim a chamavam todas as travestis importantes e conhecidas ou que se
vangloriavam de sê-lo, que tinham feito o corpo com ela. Depois você descobria o porquê do nome. E é que o
ritual de entrada do espesso óleo na carne, era tão sofrível e grotesco como os rituais exercidos pelos selvagens
sobre a carne viva. Sua mão na pele e sua voz dura no processo: cê tem base boa garota, vai ficar com uma teta
linda, se cê é travesti de verdade, tem que aguentar. Porque segundo sua lógica, dada a impossibilidade de usar
anestesia pelos riscos que envolve, a penetração, é a marca da passagem do que não se é, a de um ser real. A dor
da entrada da agulha na pele, essa agulha grossa usada para injetar os cavalos, e o som cego que perfura a carne,
todos esses detalhes te fazem recordá-la com ardor e tortura, como se recordasse uma violação. Com o tempo,
você nega o que aconteceu, afasta os detalhes que se alojam e finge que se esquece, mas nunca conseguirá deixá-
los pra trás. Se você é uma verdadeira travesti, voltará à Dolores”.
268

travesti” narrados por Rodríguez ressoam na descrição que Machuca Rose oferece ao
diferenciar travestilidade de mulheridade cis e de transexualidade:

Travesti não é mulher e não é trans. Travesti é classe e raça: significa que você não se
apresenta de forma feminina o tempo todo porque você não tem dinheiro pra isso.
Significa que o uso de tecnologias para transformar o corpo não vem da clínica de um
doutor, mas de gambiarras [resourcefulness] diante da precarização, o ato através do
qual a matriz de dominação torna precários nossos corpos e vidas. Más clarito?
Significa que você usa a criatividade, usa canetas em vez de delineador, consegue seus
hormônios e silicones das/os amigas/os underground, ou usa tinta em vez de
testosterona para transformar o seu corpo. (ROSE, 2019, p.243)

Na perspectiva de Machuca, tornar-se travesti pressupõe a inserção em uma cultura


específica, que organiza criativamente suas próprias intervenções somáticas de acordo com
recursos e conhecimentos informais/ilegais reunidos comunitariamente e transmitidos
geracionalmente, na maioria das vezes, através da oralidade. Pode-se dizer que os zines
possuem também um papel central na manutenção da subcultura em questão, uma vez que
permitem o registro e a circulação interna desses conhecimentos extraoficiais, especialmente
através de relatos empíricos e autobiográficos. Por exemplo, oferecendo alternativas autônomas
às terapias hormonais (muitas vezes inacessíveis às comunidades dissidentes), os zines Truques
para produzir testosterona natural e antiespecista (que circula em português e em espanhol) e
Transgender Herb Garden: an MtF guide to disconnecting one’s self from big pharma
(Tradução: “Jardim de ervas transgênero: um guia MtF para se desconectar da grande
farmácia”) evidenciam a função de difusão, manutenção e atualização dos saberes
travesti/trans*.
269

Figura 38 – Capa do zine Truques para produzir testosterona de forma natural e antiespecista

Fonte: Acervo do Autor (2020)

Figura 39 – Capa do zine The Transgender Herb Garden

Fonte: Acervo do Autor (2020)

Além de instruírem sobre procedimentos que muitas vezes contradizem as


recomendações médicas, esses e outros zines veiculam empregos alternativos das tecnologias e
intervenções somáticas disponíveis: recursos diversos como as tinturas caseiras feitas com
270

plantas nativas, dietas específicas que induzem maior produção de determinados hormônios e
dicas de acessórios e vestimentas (como as camisetas com bolsos anteriores, para dissuasão
visual do volume dos seios transmasculinos) são difundidos e se tornam propulsores de estéticas
e saberes internos. Além disso, zines como os de Rodríguez e Shock oferecem versões plurais
e antagônicas do que trans* pode significar, dos recursos criativos e das intervenções somáticas
disponíveis, especialmente quando oferecem narrativas que contradizem a versão biomédica
formalizada como conhecimento oficial. O quadrinho Transição da Depressão, publicado no
zine Quimer(d)a #2, também exemplifica este argumento, uma vez que celebra um efeito
monstruoso do uso desregulamentado e ilegal de substâncias farmacêuticas apropriadas pela
comunidade dissidente.
Figura 40 – Trecho do zine Quimer(d)a #2

Fonte: Arruda e Castanho (2017)


271

Por estar voltada à comunidade dissidente, esta história em quadrinhos isenta-se de


explicações excessivas acerca da identidade da personagem ou da atuação do medicamento ao
retratar o uso do minoxidil por pessoas transmasculinas: comercializada exclusivamente para a
calvície e indicada principalmente para homens cis, a substância, que estimula a vascularização
capilar, é amplamente utilizada pela comunidade transmasculina para auxiliar na pelificação
facial, embora tal prática seja repudiada e/ou desconhecida pela medicina formal e pouco
difundida na cultura mainstream. Destacando um emprego artesanal (aplicação caseira) e
autônomo dos procedimentos somáticos e introduzindo recursos improvisados, esse quadrinho
apresenta o tecnológico dissociado do quadro médico-científico. Como efeito, é validada a
cultura e os saberes que circulam nas margens das instituições que regulam a transexualidade,
especialmente considerando que o caráter experimental da prática retratada, bem como seu
efeito inusitado, produz monstruosidades autodeclaradas.
Tanto nesse quadrinho como nas passagens referenciadas dos zines de Rodríguez, as
intervenções somáticas dizem respeito a uma transformação externa do corpo (o “rearranjo de
carne”) que excede a norma visual, ou seja, essas autorrepresentações evocam o “contorno do
corpo” expondo como é regulado por formulações excludentes que designam o que é
“normativamente humano”, delineando, nesse processo, os limites externos do Humano.
Ademais, a essa dimensão é justaposta também uma transformação interior, expressa pela
monstrificação e articulada enquanto ritual de pertencimento a um grupo subalternizado. Assim
como nos zines de Rodríguez, nesse quadrinho a potencialidade monstrificante da intervenção
somática improvisada e clandestina, apesar de imprevisível, é bem-vinda: ao saudar os “corpos
mutantes”, no último quadro, a personagem acolhe os efeitos surpreendentes e incontroláveis
que as substâncias empregadas, aparentemente operando por vias próprias, podem produzir.
Aqui o corpo monstrificado ou mutante é celebrado como insígnia de pertencimento a
uma comunidade dissidente, mas também convida a pensar sua própria existência enquanto
aglomeração de multidões de espécies e ontologias-outras: por exemplo, na escrita de
Rodríguez a cirurgia se desdobra em diversos objetos, agentes e vetores que “fazem” o corpo
travesti (o silicone é um deles, mas a dor é um elemento primordial), assim como a substância
minoxidil é retratada como objeto-agente central no quadrinho Transição da Depressão. Ou
seja, o corpo humano trans* não aparece isolado num falso domínio “natural” ou em seu
excepcionalismo Humano, mas como um agenciamento [assemblage] ou rede temporal e
espacial de dependências de agentes intraconstituintes, fazendo reverberar a ideia de “tornar-se
com” teorizada por Haraway:
272

Eu amo o fato que o genoma humano pode ser encontrado somente em cerca de 10
por cento de todas as células que ocupam o espaço mundano que chamo de meu corpo;
os outros 90 por cento das células são preenchidos com genomas de bactérias, fungos,
protistas, e tais, alguns dois quais tocam numa sinfonia necessária ao meu estar viva
de um modo geral, e alguns dos quais estão de carona e não fazendo mal ao resto de
mim, de nós. Eu sou vastamente minoria em relação às minhas pequeninas
companhias; melhor dito, eu me torno um ser humano adulto na companhia dessas
pequenas parceiras de bagunça. Ser um é sempre tornar-se com muitos (HARAWAY,
2008, p.3)

No quadrinho a referência à canção “Deixa acontecer” do Grupo Revelação, cantada


pela personagem quando aplica o produto, justapõe a “artificialidade” da substância química à
categoria “natural” que a letra da música evoca. Mais que um gesto irônico, pode-se interpretar
essa passagem como uma inversão da lógica que invalida a identidade trans* através de sua
associação ao “artificial”. Além disso, essa história em quadrinhos oferece um novo quadro
teórico para dar sentido às intervenções somáticas associadas à transição: permitindo que a
substância “atue naturalmente”, a personagem abre mão do controle e da precisão dos resultados
e concede agência a uma entidade não-humana e teoricamente “inanimada”. Ou seja, ao propor
uma ontologia orientada ao “objeto”117, pode-se dizer que essa proposição potencialmente
descentraliza o Humano e sua agência/intenção/trabalho.
Assim como Rodríguez, a personagem possui algumas expectativas ao empregar as
intervenções somáticas, entretanto, diante de um resultado monstrificante que não poderia ser
antecipado, a personagem é introduzida num enredo em que não controla as transformações de
seu corpo e, abarcando a faceta mutante e sugerindo-a como local de pertencimento, a
personagem reconhece a atuação do não-humano na construção natural-cultural do corpo
trans*. Essa representação de automonstrificação trans* aponta para uma reformulação geral da
noção de “corpo”, que enfatiza sua complexa relação com “natureza” e “cultura”. Explicitando
que o corpo e a prerrogativa de existência são mediados por atuações não/humanas, o quadrinho
atenta para a inseparabilidade do humano e do não-humano, sugerindo que nunca fomos
realmente humanos.
A esse respeito e na esteira de Haraway, Hird propõe uma concepção da ontologia que
provém da aglomeração incalculável de agentes não-humanos e se diferencia, portanto, de
ideações anteriores, como do “sublime de Kant, do inumano e differend de Lyotard, do Hand-

117
Em oposição à visão de mundo antropocêntrica, a noção de ontologia orientada ao objeto (OOO)
oferece uma perspectiva que valida a ontologia de objetos para além da percepção/consciência tecida pelo
Humano. De acordo com essa vertente de pensamento, a ontologia dos objetos incorre de forma independente e
descentrada do Humano e, deixando de condicionar-se limitadamente às relações humanas, a ontologia dos objetos
sugere que toda a relação, incluindo aquelas que ocorrem entre não/humanos, formulam a existência do objeto.
273

Werk de Heidegger, do cachorro Bobby de Levinas e, finalmente, do gato de Derrida, cujas


epistemologias giram em torno da comparação entre humanos e (o) animal, levando à rejeição
definitiva do segundo” (HIRD, 2010, p.36). A proposta, portanto, não é comparativa nem
antropocêntrica, senão que reside no entendimento do corpo humano (cis ou trans*) e de outras
entidades enquanto encontros ou agenciamentos [assemblages], uma vez que as propriedades
emergentes que as definem são produzidas por partes interatuantes, portanto, contingentes à
ocorrência das interações requisitadas.
Essa distribuição de agência entre atores humanos e não-humanos na criação do corpo
monstruoso travesti/trans* se destaca no trabalho de Rodríguez, que reconcilia o “artificial” (a
substância química) e o “natural” (a noção tradicional de corpo) ao evidenciar que a
protuberância de seu seio é um encontro de ontologias, onde o tecnológico/inorgânico possui
vibratibilidade e atua junto com o seu organismo por vias inusitadas e incontroláveis:

Lo que había pasado, es que con el tiempo, la turgencia de las primeras tetas se
perdió. Al principio, el aceite espeso, recién ingresado a la piel, concentrado, se
acumuló hermosamente por la resistencia de la carne al extraño fluido, pero con el
paso del tiempo, ese efecto de oposición, ese bello abultamiento en los senos brillosos,
quedó claro, que fue por una reacción inflamatoria provocada por el producto
inorgánico enfrentando a mi sistema inmunológico, una irritación en los tejidos
invadidos y tirantes, que imperceptiblemente, día a día, el mismo organismo fue
controlando con naturalidad. Con tanta naturalidad que una noche, cuando me
encontré desnuda y excitada frente a un cliente, este me reclamó sin ninguna sutileza:
que chicas las tetitas. Desde ese momento me vi en la necesidad de volver a
conectarme con la Dolores.118 (RODRÍGUEZ, 2014, p.54. Grifos Meus)

Nessa passagem, Rodríguez descreve a intervenção somática como um encontro de


agentes: a protuberância dos seios não é atribuída à prótese em si enquanto matéria inorgânica
isolada e meramente sobreposta ao “corpo natural”, senão à reação bioquímica (especificamente
a turgescência que a autora associa à inflamação) que se dá com o encontro do tecido e da
substância: a resistência da carne, o processo infeccioso, a reação imunológica, a inflamação e
a irritação do tecido (“invadido e tenso”) são o efeito desejado, ou seja, todos esses processos
e agentes são os seus seios. Pode-se dizer, portanto, que a autora concilia “natureza” e “cultura”,
“orgânico” e “inorgânico”, “real” e “artificial” numa representação onde o corpo travesti é o

118
Tradução: “O que tinha acontecido, é que com o tempo, a turgescência das primeiras tetas se perdeu.
No princípio, o óleo espesso, recém-ingressado na pele, concentrado, se acumulou lindamente pela resistência da
carne ao estranho fluído, mas com o passar do tempo, esse efeito de oposição, essa bela protuberância nos seios
brilhosos, ficou claro, que foi por uma reação inflamatória provocada pelo produto inorgânico enfrentando o meu
sistema imunológico, uma irritação nos tecidos invadidos e tensos, que imperceptivelmente, dia a dia, o mesmo
organismo foi controlando com naturalidade. Com tanta naturalidade que uma noite, quando me vi pelada e
excitada diante de um cliente, esse reclamou pra mim sem nenhuma sutileza: que pequenas as tetinhas. Desde esse
momento vi a necessidade de voltar a me conectar com a Dolores”.
274

resultado da interação e da mistura de ontologias: o supostamente “natural”, de encontro com


um “corpo estranho”, produz uma subjetividade monstruosa que desestabiliza o binômio
natureza/cultura.
Esse desvio não/humano, elaborado em uma articulação poética, acena à ideia de que
a feitura do corpo implica a contaminação de ontologias que se organizam em entidades
comuns:

Descrever a virada não-humana como um câmbio de atenção, interesse ou


preocupação aos não-humanos mantém em mente a qualidade física e o movimento
envolvido na ideia de uma virada, a virada não-humana deve ser entendida como uma
virada corporificada em direção ao mundo não-humano, incluindo a não-humanidade
que está dentro de todas/os nós. (GRUSIN, 2015, p.20)

Nessa passagem em que Rodríguez analisa os efeitos da aplicação de silicone no seu


corpo, a ideia de sympoiesis (significando “fazer-com”) aparentemente substitui a noção de
autopoiesis (auto-organização ou autogestão) explicadas por Haraway, sugerindo que o corpo
e o Humano são frutos de encontros generativos em agenciamentos/assemblagens simbióticas.
Assim sendo, observando o corpo (tradicionalmente considerado entidade pura) como
composição de interações não/humanas, pode-se dizer que no relato de Rodríguez não só o
gênero (a transfeminilidade representada pelos seios), senão a noção geral de “corpo” (cis ou
trans*) são produtos dessa colisão dolorosa de naturezas-culturas.
Através dessa perspectiva não/humana, que focaliza ações orientadas pelo objeto, a
tecnologia emerge não mais como neutra, separada ou controlável (submetida à soberania da
ciência médica), mas na forma de substância antes inanimada e agora vibrante e munida de
agência própria (BENNETT, 2010). Essa tecnologia animada desafia o léxico tradicional, que
confere excepcionalismo ao Humano, e recusa a lente antropocêntrica para oferecer outras
visões de mundo (cosmo-visões), através das quais nem a tecnologia nem a transexualidade
seriam adventos e fenômenos exclusiva e autenticamente Humanos. Nesse sentido, ao
desmistificar a separação que hierarquiza Humano/não-humano através do critério de acesso,
criação e utilização de tecnologias, Hird coloca que: “Esse uso da tecnologia para distinguir
entre natureza e cultura obscurece a invenção muito real e energética da tecnologia por
organismos vivos não-humanos. [...] bem como a extensão à qual aquelas chamadas de
tecnologias humanas na realidade mimetizam tecnologias já inventadas por outras espécies”
(HIRD, 2008, p.242).
Através de um quadro teórico que confere novos ângulos de análise ao tecnológico
(questionando a grande divisão Natureza/Cultura e a autenticidade do Humano), Hird revisita
275

e desafia a ideia de que a transição de gênero e a transexualidade seriam fenômenos


exclusivamente humanos. A autora se serve das disciplinas Estudos de Gênero, Direitos
Animais e Biologia para repudiar a ênfase antropocêntrica empregada na noção de “trans*”, em
especial a distinção que associa cis ao natural (porque supostamente não intervindo) e trans* ao
artificial: “Trans não é transgressivo coisa nenhuma – é natural” (HIRD, 2016, p.242). Para a
autora, a ênfase na autenticidade (é ou não é mulher, é ou não é natural) ofusca outras
perspectivas através das quais o trans* pode ser articulado enquanto não/humano.
Destrinchando o argumento que associa transexualidade ao antinatural e ao artificial
(tecnológico), a autora demonstra o exercício moral implicado nesse uso da distinção
natureza/cultura e, nesse processo, valida recursos tecnológicos (inclusive transexualizadores)
empregados por outras formas de vida:

Argumentar que a transexualidade humana depende inteiramente da tecnologia é


circunscrever significativamente a definição de tecnologia à esfera humana. Num
nível básico, a vida em si é, e sempre foi tecnológica no senso real de que bactéria,
protoctistas e animais incorporam estruturas materiais externas em seus corpos
(Margulis and Sagan 1997). As bactérias também inventaram todas as formas maiores
de metabolismo, multicelularidade, nanotecnologia (o controle de moléculas de
maneiras que continuam escapar dos cientistas) e metalurgia. Posto que sociedades
ocidentais utilizam tecnologia rotineiramente em uma pletora de circunstâncias
variáveis, a regulação específica de tecnologia no caso de transexuais se torna mais
transparentemente um exercício moral, levantando mais uma vez a associação entre
moralidade e a distinção natureza/cultura. (HIRD, 2006, p.44)

A autora convida à reelaboração da relação de trans* com a tecnologia e, assim,


reconsidera a própria definição de tecnologia dando exemplos de outras espécies e reinos que
agenciam intervenções somáticas análogas à transexualidade. Hird promove uma quebra de
paradigmas de análise do trans* e cita diversos seres do “domínio natural”, visando explicitar
como o universo animal não-humano esbanja comportamentos “pervertidos”, é sexualmente
diverso e, portanto, mais resiliente que o Humano:

Assim, já que a maioria das plantas é intersexo, a maior parte dos fungos tem múltiplos
sexos, muitas espécies transexualizam, e bactérias desafiam completamente as noções
de diferença sexual, isso significa que a classificação humana de dois sexos faria
pouco sentido para a maioria dos organismos nesse planeta, e que a crítica da
transexualidade baseada na separação conceitual de natureza e cultura faria menos
sentido ainda. (HIRD, 2006, p.41)

Na porção final de seu argumento, a autora convida a uma inversão completa na lente
de análise do trans*, de forma a priorizar uma perspectiva não/humana: “é muito mais
interessante considerar como nós poderíamos entender trans na forma humana, digamos, desde
276

uma perspectiva bacteriana.” (HIRD, 2006, p.45). Ou seja, em vez de projetar categorias
humanas nos animais não-humanos (identificar abutres lésbicas, bonobos gays ou minhocas e
peixes trans), a autora promove o abandono de comparações antropocêntricas entre “nós” e
“elas/es” e postula uma inversão: como perspectivas descentradas do Humano informariam essa
categoria? O que a animalidade poderia ensinar ao Humano em termos de gênero, sexo e
sexualidade?
Pode-se dizer que em algumas de suas poesias Rodríguez experimenta justamente com
a proposta de Hird de vislumbrar o corpo travesti/trans* a partir de uma lente não/humana que
desafia o paradigma antropocêntrico. Além de evidenciar o trabalho de diferentes agentes e
espécies na constituição de um ser que deixa de ser individual e passa a ser visto como processo
de um encontro de entidades múltiplas (por exemplo, referenciando o seu seio como resultado
do encontro de diferentes agentes e centralizando a dor como vetor estruturante da
travestilidade), Rodríguez também nos compele a ir além das formas mais familiares de
hibridismo para entender o corpo através de espelhamentos em ontologias-outras:

Los colores no tienen género / Los colores no son ni femeninos ni masculinos / Ni las
flores son todas mujeres / Hay flores que no son ni flores, / Sino armas. / Hay flores
que son caníbales, / Pero no son todas. / Ni las flores son tan flores todas, / Ni son
tan mujeres. / Ni todas las mujeres, tan mujeres. / Tambiém habemos otras cosas.119
(RODRÍGUEZ, Contodomisida, s/n.)

A figura da flor emerge aqui como entidade híbrida para complicar o trans* e,
consequentemente, as categorias humanas (como “mulheridade”). A articulação da alteridade
que trans* e travesti podem representar opera na contracorrente dos processos de
individualização que conferem excepcionalismo Humano: ver-se e conhecer-se a partir do
não/humano, substituindo relações de oposição, aponta para a desconstrução da categoria
Humano e das identidades que a sustentam. Nessa passagem, o “natural” não é empregado na
tradição do espelho que reflete e articula moralmente o Humano, senão emerge numa relação
que se bagunça em uma ontologia difusa e inassimilável e, nesse processo, arrasta consigo o
Humano, que já não pode mais permanecer hermeticamente selado.
Ou seja, a confusão ontológica das flores permite à autora canalizar sua própria
alteridade por uma lente que, ao mesmo tempo em que projeta uma noção atualizada de
“natureza” em sua própria subjetividade, desarticula as engrenagens que sustentam a noção

119
Tradução: “As cores não têm gênero / As cores não são nem femininas nem masculinas / Nem as
flores são todas mulheres / Existem flores que não são nem flores, / Senão armas. / Existem flores que são canibais,
/ Mas não são todas. / Nem as flores são tão flores todas, / Nem são tão mulheres. / Nem todas as mulheres, tão
mulheres. / Também existimos outras coisas”.
277

tradicional de “natureza” que orienta o Humano. Proclamando sua própria existência enquanto
simultaneamente análoga e distinta da mulheridade cis, em sua autorrepresentação a autora
traça paralelos com uma entidade não-humana que retém, na tradição literária, uma associação
expressiva com a natureza e, ao mesmo tempo, é reiteradamente questionada no que diz respeito
à pureza de sua ontologia: a flor não é sempre mulher, às vezes sequer é flor, senão arma e
canibal. Dessa forma, ao explicitar a contingência dos critérios que designam identidade, a
autora sugere que estamos sempre em risco de tornar-nos “outra coisa”.
Nos entrelaçamentos que Rodríguez cria entre sujeito e objeto, Humano e não-
humano, destaca-se a recusa em nivelar e solucionar ambiguidades: a flor pode ser flor e não-
flor ao mesmo tempo, assim como a categoria “mulher” pode conter mulheres que de uma forma
ou de outra não são todas sempre tão mulheres. Ou seja, no poema o efeito da interferência do
natural no Humano é a reinvenção de flor, de gênero, de corpo e de suas funções num enredo
de identidades que se descalcificam.
Na asserção “também existimos outras coisas”, a autora apela ao domínio não/humano
e monstruoso da “coisa” para vislumbrar uma autorrepresentação multifacetada de si, instruída
por uma aglomeração de agentes ontologicamente distintos. Aqui a própria filiação ao
não/humano representa a qualidade embreante e híbrida das categorias ontológicas:
destrinchando e reorganizando a própria ideia de ontologia, a autora faz recordar que “não
existe ponto de partida ontológico, nem ordem nem desordem, fronteiras ou violações de
fronteiras” (HARAWAY, 2008, p.24) Mais bem, essa proposição faz ressoar a asserção de
Haraway de que “Natureza é um lugar comum e uma poderosa construção discursiva, efetivada
nas interações entre atores materiais-semióticos, humanos e não.” (HARAWAY, 2004, p.68).
Assim o descentramento do Humano, enquanto prerrogativa para a observação das
autorrepresentações monstruosas e animalizadas travesti/trans*, se desdobra na proposta de que
“nenhuma espécie nunca é Um; ser uma espécie é ser constitutivamente uma multidão, em
naturezas-culturas simbiogenéticas, sem ponto de parada.” (HARAWAY, 2008, p. 23).
278

7 CONCLUSÃO

Em vez de organizar uma conclusão que sintetiza e reordena o conhecimento que


mobilizei investigando monstruosidades em autorrepresentações travesti/trans*, utilizo alguns
conceitos chaves da Teratologia Trans* (como o não/humano, a noção de temporalidade
dissidente e a figuração monstruosa enquanto ferramental visual de evasão da inteligibilidade
do gênero), para desenvolver, como exercício conclusivo da tese, uma história em quadrinhos
autobiográfica que narra a ocasião em que visitei meu avô no seu leito de morte em outubro de
2015.
Trata-se de uma proposição autorrepresentativa monstruosa que adota o formato de
zine120 e privilegia a representação em oposição à “realidade” para imaginar contribuições ao
campo dos Estudos Trans* e para alimentar a comunidade travesti/trans*: “Aprendi a
alimentarme por generosidad, porque si yo sobrevivo, sobreviverán más y más travestis, locas
y monstruos” (RODRÍGUEZ, 2015).

120
Esse formato possibilita que o trabalho se desprenda desta pesquisa, do público institucional e de
seus fóruns, almejando a circulação em ambientes-outros. O exercício conclusivo que apresento nas próximas
páginas foi realizado durante o intercâmbio na University of Arizona com a orientação e supervisão da Profa. Dra.
Susan Stryker e foi recentemente contemplado pelo edital Itaú Rumos, que financiará o desenvolvimento e a
publicação de dois mil exemplares em português, espanhol e inglês. Dessa forma, indico o desdobramento futuro
dessa pesquisa apontando para a possibilidade de desenvolver uma publicação autoral.
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