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Salvador, 2008.
Arizângela Oliveira Figueiredo
Salvador, 2008.
iii
Contém referências.
CDD: B869
iv
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________
Professora Drª Márcia Rios da Silva (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/PPGEL
______________________________________________________________
Professora Drª Evelina Carvalho de Sá Hoisel
Universidade Federal da Bahia – UFBA/PPGLL
______________________________________________________________
Professor Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira.
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/PPGEL
______________________________________________________________
Professora Dr. Roberto H. Seidel
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/PPG (Suplente)
______________________________________________________________
Professor Dr. Luciano Rodrigues Lima
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/ PPGEL (Suplente)
v
AGRADECIMENTOS
À professora Drª Edil Silva Costa, por ter pacientemente me orientado no estágio
supervisionado e pelos livros emprestados.
Aos meus sempre amigos Nai e Geraldo, pessoas que admiro e que participam,
ainda hoje, de momentos importantes e necessários de minha vida.
vii
RESUMO
Este trabalho toma como objeto de estudo o livro A Verdadeira Estória de Jesus, de
Waldemar José Solha. Nessa dissertação, busca-se inferir quais respostas podem
ser obtidas quanto aos modos apropriativos validados por Solha que remetem a um
imaginário povoado por heróis, super-heróis e superstars. Essa necessidade de
resposta recoloca uma série de questões que cercam particularmente os anos 1970
no Brasil e, de forma mais ampla, o final do século XX. Principalmente em relação à
problemática que gira em torno do artístico e as novas formações textuais (história
em quadrinhos, cinema, televisão), que ganham força com a ascensão da sociedade
dos mass media. Retomam-se nesse estudo, para tanto, leituras produzidas naquele
momento por estudiosos como Evelina Hoisel, Flora Sussekind, Heloísa Buarque de
Hollanda, dentre outros, mas procurando responder à problemática dentro do quadro
sociocultural globalizado, esboçado por autores como Renato Ortiz e Frederic
Jameson. Deste estudo, compreende-se a ascensão de uma nova sensibilidade ou
textualidade, a qual AVEJ permite reconhecer.
ABSTRACT
This dissertation has as object of study the book A Verdadeira Estória de Jesus, by
Waldemar José Solha. This dissertation, the purpose is infer which answers can be
obtained in relation to its appropriative chooses that refer to an imaginary inhabited
for hero, super-hero and superstars. This purpose allows bringing out a lot of
questions that surround specifically the years 1970 in Brazil and also the end of the
twentieth (20th) century. Particularly in relation to the problematic that reaches the
dialogue between the artistic and the new texts (comic strip, cinema, television) that
acquire vigor with the rising of mass media society. In this study, some readings
produced at that moment are included (Evelina Hoisel, Flora Süssekind, Heloísa
Buarque de Hollanda etc.). But the problematic is answered taking into consideration
the sociocultural and global situation sketched by authors such as Renato Ortiz and
Frederic Jameson. By study, it is understood the rising of a new textual sensibility
that AVEJ allows to recognize.
Key-words: Brazilian literature, mass culture; textual appropriation; myth; hero; new
textual sensitivity.
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................10
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................98
REFERÊNCIAS........................................................................................................103
10
INTRODUÇÃO
No Brasil do final dos anos 1970, quando a crítica literária começava a esboçar as
reavaliações quanto à repercussão dos últimos acontecimentos para a literatura
brasileira, surge uma produção singularmente vinculada àquele momento histórico:
11
A Verdadeira Estória de Jesus1, de Waldemar José Solha. Esse livro faz parte de
certo conjunto de produções que buscaram expressar de maneira hiperbólica,
tomando aqui uma expressão de Evelina Hoisel, as apreensões daquele momento
não apenas em termos políticos, mas em relação ao quadro multinacional do
capitalismo tardio.
Através de uma escrita vanguardista, AVEJ surge com uma estética fragmentada e
apropriativa, no sentido mais literal que essas duas palavras denotam, pois que
AVEJ literalmente é construída a partir de recortes de outros textos. As apropriações
efetuadas por Solha alcançam tanto o âmbito do discurso histórico, religioso,
literário, como também perpassam o contexto da cultura de massa (história em
quadrinhos, cinema e televisão). AVEJ inscreve em suas páginas um imaginário que
permite pensar a literatura para além do âmbito estético, reinscrevendo-a num
contexto cultural mais amplo.
Desse modo, o objetivo desta dissertação é inferir quais respostas podem ser
obtidas em relação aos modos apropriativos utilizados por W. J. Solha em AVEJ,
sobretudo no que diz respeito ao quadro temático do livro que remete a um
imaginário povoado por heróis, super-heróis e superstars. Propondo a
dessacralização da figura de Jesus Cristo, AVEJ apresenta uma legião de heróis
que descrevem as apreensões de um verdadeiro happening contracultural.
dos anos 1970 dentro da ótica cultural. Por isso, recorreu-se aos campos de
conhecimento que se ocupam da cultura (sociologia, antropologia, estudos culturais
etc.) por entender a literatura dentro desse quadro mais amplo. Até porque, a
literatura não diz respeito apenas a uma questão estética: é necessário levar em
conta como ela vai sendo redesenhada na intersecção de determinado contexto.
que a informação visual rendia tanto quanto a verbal. Foi na relação com essas
linguagens que Solha passou a embaralhar a sua própria identidade.
Assim, muito do que é AVEJ aparece relacionado à forma como Solha lida com suas
referências. Por meio desse jogo, publicou as seguintes produções4: Israel Rêmora
(1975), Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia (1984), A Canga (1986), A
Batalha de Oliveiros (1989), Shake-up (1995) e mais recentemente Trigal com
Corvos (2004) e História Universal da Angústia (2005). Em todos esses livros,
aparece a insistência em escrever sempre visando a presença de outros textos e
linguagens. A identidade dessas produções vai sendo desenhada, em virtude da
multiplicidade de referências, na heterogeneidade.
Desse modo, pode-se acrescentar que é sempre difícil definir uma produção escrita
por Solha, em virtude do entrecruzar das linguagens. Encontra-se esboçado em
seus livros uma maneira de contar que aproxima os mais diversos modos de
expressão: cordel, contos de fadas, poemas, discurso histórico, pintura, cinema. O
fato de Solha ser um artista multicultural, sem dúvida, influenciou a maneira a partir
da qual construiu suas produções, uma vez que já realizou trabalhos no cinema
como ator e produtor (O Salário da Morte, A canga, Fogo Morto etc), no teatro como
roteirista e diretor (Papa Rabo, A Verdadeira Estória de Jesus5, dentre outras.) e
também nas artes plásticas (A ceia, Homenagem a Shakespeare etc.).
4
Na referência, ao final deste trabalho, encontra-se listada a bibliografia deste autor.
5
Posteriormente, em 1980, AVEJ fora levada para o teatro.
6
Cf.: SOLHA, W. J. Reciclagem: um depoimento sobre intertextualidade. Paraíba, Jornal da Paraíba,
22 mai. 2005.
7
O jogo intertextual da escrita de Solha valeu-lhe a alcunha de autor pós-moderno. Cf.: AZEVEDO,
Carlos. Escrita pós-moderna de Solha. Paraíba, Correio, 18 out. 1995; BRITO, Osvaldo Lopes de.
Dois grandes romancistas: Paulo Rangel e W. J. Solha. O Diário, São Paulo, Ribeirão Preto, 13 nov.
1980; CLAUDIO, Feldman. Literatura Hoje. A gazeta do Grande ABC. São Paulo, Santo André, 03
out. 1980; NOGUEIRA, Carla. Dois heróis na mesma pessoa. Jornal da Semana Inteira, 1979;
GERALDINHO, Vieira. Superman, Gardel ou Cristo. Jornal de Brasília.
16
marcas do que se passou e que vão se atualizando. Mas essa retomada da tradição
em AVEJ ocorre de forma diversa, já que se dá pelo viés da fragmentação. Desse
modo, AVEJ retoma a tradição, mas também a questiona.
Como foi mencionado, Solha publica esse livro em 1979, período no Brasil da
ditadura militar e também data que se confunde com o pensamento apocalíptico do
final do milênio. Logo nos anos iniciais do regime ditatorial, Solha escreve uma peça
de teatro intitulada O Vermelho e o Branco (1968) que havia sido censurada por
tratar da morte do estudante Edson Luís, morto no Rio de Janeiro. Mas AVEJ seguia
outra forma de escrita contextual.
Talvez se possa falar, nesse caso, de uma escrita mais direcionada à alegoria. A
alegoria pode ser definida como um modo de escrita que possibilita falar de algo
diferente, convertendo-se como chave do saber oculto. Basta notar que toda escrita
alegórica indica que há um elemento implícito a ser observado, isso porque a
exposição do pensamento muitas vezes aparece sob a forma figurada. Na maioria
das vezes, a chave para a leitura desse tipo de produção está na forma como a
história e a cultura permitem responder a esses modos de construção8.
Quando Solha escreve AVEJ, já era forte a presença de um fim quanto ao regime
ditatorial. Elio Gaspari diz que a passagem dos anos 1970 para os anos 1980 é o
momento em que se pode falar de uma cultura em trânsito9. O autor acrescenta que
se atribuiu a esse momento o título de lenta, gradativa e segura distensão, como se
fosse por vontade própria do governo ditatorial tais mudanças10, mas, apenas a
metáfora do camaleão conseguiria explicar a questão da mudança, que passava
longe de uma vontade de distensão. Tal qual o camaleão, a cultura em trânsito
desses anos foi uma cultura camaleonicamente transformada pela democratização.
8
Cf.: HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo, Atual,
1986.
9
Cf.: GASPARI, Elio (et al). Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano
Editora, 2000.
10
Os anos do ciclo militar conheceram avanços e recuos, “sucederam-se períodos de maior ou menor
racionalidade no trato das questões políticas”. Pelo menos três fases deste processo são bastante
distintas: “De 1964 a 1967 o presidente Castello Branco procurou exercer uma ditadura temporária.
(...) de 1968 a 1974 o país esteve sob um regime escancaradamente ditatorial. De 1974 a 1979,
debaixo da mesma ditadura, dela começou a sair”. Antes mesmo de assumir a Presidência, em 1974,
o presidente Ernesto Geisel, já falava em restabelecer a ordem e em seu projeto de uma “lenta,
gradativa e segura distensão”. Cf.: Gaspari, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo, Companhia
das Letras, 2003, p. 23.
17
Como notamos anteriormente, Solha foi um artista que sempre visou a possibilidade
de experimentação. Sua escrita naquele momento não surgia da vontade política da
denúncia, ou seja, Solha não foi um militante de esquerda, um anarquista, ou coisa
parecida, fato que marcaria a relação efetiva entre vanguarda, política e arte
engajada. Ainda que o teor político se encontre presente, Solha valeu-se em AVEJ
da vontade curiosa da experiência.
11
Cf. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 8 ed. 1992.
12
Sobre a utilização do termo experimento, Haroldo de Campos é bastante contundente quanto a
validade do uso. Numa entrevista a E. M. de Melo e Castro, que compõe a segunda parte desse
mesmo livro, intitulada Aspectos da Poesia de Vanguarda no Brasil e em Portugal, Haroldo de
Campos afirma que os argumentos contra o termo experimento são tanto quanto falaciosos, pois é,
segundo o autor, através do experimento que se pode fazer alguma coisa realmente viva. Para ele,
“ter medo da palavra ‘experimento’, por sua eventual conotação de ‘provisoriedade’, é ter medo
precisamente do caráter contingente da existência humana”. Cf.: CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos
Gêneros na Literatura Latino-Americana. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 55.
18
Solha não foi um autor tão conhecido em termos de crítica naquele período, ainda
que tenha recebido o prêmio Fernando Chinaglia, um dos principais prêmios
literários do período com o romance Israel Rêmora. Mas, em termos ontológicos,
AVEJ talvez nos permita elucidar certos aspectos que produções e autores mais
conhecidos deixariam por explicar. Afinal de contas, um autor que joga tão
intensamente com os pares erudito/popular, arte/não-arte, literatura/cultura de
massa, e faz desses pares o escopo de sua escrita, permite alguns
questionamentos.
13
Cf.: CIRNE, Moacy. Quadrinhos e literatura: um olhar marcado pela poesia. In. Quadrinhos,
sedução e paixão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
19
aparece como tendo sido pensado pelo autor. A capa do livro expõe
significativamente tais apreensões:
Ao ler AVEJ, a sensação que se tem é a de que não é um livro que se conte como
quem narra uma história. A narrativa não delineia um enredo com personagens e
núcleo central, algo do tipo “era uma vez...”, ou “vivendo numa pequena cidade do
interior...”. Explicando de outra forma, a narrativa não conta a história, por exemplo,
de uma família e seus conflitos pessoais ou a história de uma guerra, tal qual uma
realidade apreendida em primeiro plano. AVEJ parece apreender outra forma de
relação com a realidade. Platão, em A República14, encontraria em AVEJ um
14
Cf.: PLATÃO. A República. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004.
20
exemplo muito literal do que chama de phantasma, algo como uma cópia da cópia
(eidolon), que por sua vez já seria uma cópia do que está no mundo ideal (eidos).
A narrativa funciona sempre como um esboço de outro olhar (um olhar secundário),
como se tudo se passasse em outro momento. Basta dizer que o fio condutor é um
diálogo que acontece no palco de um teatro grego e ao mesmo tempo moderno.
Nesse palco, os evangelistas Lucas, Mateus, Marcos e João15 confabulam sobre a
possibilidade de criar um novo Salvador para abrandar o sofrimento do povo. Nesse
teatro, o efeito de significação explode em imagens, pois se troca de papéis e
máscaras com extrema facilidade e veracidade.
− Não foi por acaso que marquei o nosso primeiro encontro para um teatro –
observou, parando lá em cima e se voltando um pouco – vejam como isto
aqui é aberto para o espaço exterior, como um radar. E é ali, naquele
pequeno palco, que antenas potentes, que são os artistas, expõem todos os
dados que os aparelhos mais sofisticados não conseguem assimilar e,
através da Arte, nos colocam em sintonia com o Mundo. Ali, todos os
15
Frank Kermode, no Guia literário da Bíblia, escreve que o termo evangelho, derivado do grego
evangelion que significa “as boas novas”, inicialmente era usado em proclamações imperiais. Quando
Marcos (considerado por Kermode como o primeiro evangelho) escreve seu evangelho, este começa
adquirir feições sagradas, passando a ser assumindo enquanto gênero textual. Daí a expressão
“evangelho segundo Marcos, Mateus, Lucas e João”. Embora cada um desses evangelhos, explica
Kermode, estejam relacionados entre si, diferem notavelmente. Segundo ele, o evangelho de Mateus
apresenta uma escrita mais minuciosa e severa quanto aos ensinamentos de Jesus Cristo, por isso é
mais longo. Marcos imprime na sua escrita as características de um texto narrativo, seguindo assim
os percalços da tradição oral. Lucas impõe a articulação lúcida dos processos históricos, mostrando a
consciência de que a história não começa e acaba com seu evangelho. João é aquele se vale do
Verbo com certo vigor poético, preocupa-se em pontuar o vir-a-ser. Como aparece explicitado em
AVEJ, o nome dos quatro personagens remete aos nomes expressos nos evangelhos da bíblia
sagrada. Como se pretende efetuar a criação do herói tendo as escrituras como gênio motor, nada
mais propício que fossem esses os nomes dados a cada personagem. Desse modo, as falas dos
evangelistas também foram mais ou menos impressas a partir das características de cada evangelho.
Cf.: ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP,
1997, p. 404-499.
16
Cf.: DELEUZE, Gilles. O verdadeiro movimento: o teatro e a representação. In. Diferença e
repetição. Trad. Luis Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
21
Daí o teatro ser um lugar onde se pode falar numa verdadeira estória, já que os
limites entre verdade e mentira acabam por se esgarçar. Essa forma de entender o
teatro é oportuna a AVEJ, pois, em meio ao onírico, os quatro evangelistas
aparecem ao lado de super-heróis dos quadrinhos como Batman, Príncipe
Submarino, Mandrake e supestars como Tyrone Power, Carlos Gardel e Gary
Cooper. A partir da figuração dessas imagens, podemos falar de AVEJ como uma
obra que atenua, sobretudo, a troca de papéis.
Brincadeira talvez seja uma palavra que represente bem as pretensões estéticas
deste livro. Johan Huizinga, em Homo Ludens17, observa que, como parte das
características formais de um jogo, toda criança investe sob o universo da
brincadeira um grande esforço que exige toda a sua imaginação e seriedade, finge
ser um príncipe, um herói, um super-herói, uma bruxa malvada. A criança fica
literalmente transportada para esse universo, superando a si mesma a tal ponto, que
quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem, contudo, perder
inteiramente o sentido da “realidade habitual”. Mais do que uma “realidade falsa”,
sua representação é uma realização do vivido.
Nessa brincadeira particular de AVEJ, outro aspecto salta aos nossos olhos, AVEJ é
um livro que atenua a presença de outros textos, literários ou não, como partes
constituintes de sua narrativa. O universo esboçado em sua capa literalmente
aparece inserido em sua estrutura. Por isso podemos falar de AVEJ como
fragmentos de outras histórias: o apocalipse bíblico, a história de Krishna, Buda, o
quadrinho do Superman, de Siegfried e A Senhora dos Espectros, a narrativa da
Branca de Neve e d’A Bela Adormecida. Enfim, entendendo linguagens como formas
diversas de expressão, esse livro comunica aquilo que quer através de vários e
diferentes textos. Não se trata apenas do confronto entre o signo verbal e outros
signos semiológicos, mas de uma maneira de informar que nos reporta efetivamente
a outros contornos expressivos.
17
Cf.: JOHAN, Huizinga. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro.
São Paulo: Perspectiva, Editora da USP, 1971, p. 16.
22
Ora, as linguagens são marcadas por certas maneiras de articular a mensagem que
delineiam determinados campos de significação. Esses campos de significações que
permitem dizer o que é uma história em quadrinhos, o que é um filme, o que é um
conto de fadas: a maneira de contar, os personagens, a forma narrativa etc. É dessa
maneira que o livro vai sendo constituído, no jogo com os fragmentos de histórias,
no qual circulam um vasto repertório de mitos do discurso histórico, religioso e da
cultura de massa. Desse emaranhado de linguagens, entre fragmentos e diluições,
surge a pergunta de base: como entender esses modos de construção literária que
remetem a um imaginário povoado por heróis, super-heróis e superstars?
Cornelius Castoriades informa algo importante que ajuda a pensar essa pergunta,
em A instituição imaginária da sociedade18. Ele acrescenta que o termo imaginário
não se refere a algo sem concretude, sem teor de significação real, como
normalmente se pensa. Para ele, quando lidamos com o imaginário de algo
(estende-se aí o conceito para além do domínio mental) ou alguém, estamos
tratando de significações que dizem respeito à própria constituição da sociedade.
Isso não quer dizer que o imaginário seja palpável, mas também não se pode
afirmar que seja irreal. Tão real apresenta-se o universo de significação do
imaginário que se torna impossível e mesmo inconcebível falar de história fora dos
seus limites. “Essencialmente indeterminado”, o imaginário, enquanto “criação
incessante”, permite pensar no fazer histórico enquanto tal, como algo que aponta
para uma ação. Além do mais, é essa ação que constitui o que esse estudioso
chama de universo de significação19. Universo este que, no caso de AVEJ, não é
anterior ou posterior ao livro, mas, senão, a própria constituição histórica da qual ele
faz parte.
1.2. O planetarismo
21
Ibidem, p. XX.
22
Cf. SANT’ANNA, Affonso Romano de. A história pop de Jesus. Correio das Artes, João Pessoa, 25
out. 1980.
23
Cf. PAULA, José Agrippino de. PanAmérica. Rio de Janeiro: Tridente, 1967.
24
Cf. DRUMMOND, Roberto. O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado. São Paulo: Ática,
1978. O corte efetuado por Sant’Anna diz respeito muito ao gênero romance, mas também, desse
mesmo autor, pode-se citar o livro de contos, de 1975, A morte de D. J. em Paris, no qual figura a
imagem de super-heróis dos quadrinhos tal qual Batman, em Os sete palmos do paraíso, e supestars,
a exemplo de Tyrone Power, em Um pouco pra lá do Aconcágua. Cf.: DRUMMOND, Roberto. A Morte
de D. J. em Paris. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
24
25
O conceito de carnavalização é trabalhado por Mikhail Bakhtin na tese sobre o escritor francês
François Rabelais intitulado A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, na qual aponta
para a relação deste escritor com a questão do popular, especificamente o carnaval. Segundo
Bakhtin, Rabelais em suas produções teria enfatizado gêneros literários ligados ao carnaval, tal qual
a paródia e o realismo grotesco. Cf.: BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento:
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
25
Daí Bakhtin ter retomado o riso da sátira menipéia26 – referência ao filósofo Menipo
de Gádara –, pois tal riso aparece como libertado das limitações históricas,
expandindo a invenção a outros campos, no jogo entre fusão e transformação. Para
Sant’anna, portanto, AVEJ seria entendida pelo viés desse movimento irreverente
que destrona normas estratificadas e reverencia o jogo lúdico do artístico.
Apropriando-se de discursos, fazendo bricolagem de textos, Solha incorpora
elementos do contexto sociocultural que, agrupados por meio da colagem, acabam
por questionar muitos paradigmas.
Assim, vista conjuntamente às outras duas produções, PA e EHC, pode-se ter uma
idéia mais acurada dos contornos ficcionais de AVEJ, permitindo evidenciar certa
tendência dentro da recente (entre o final dos anos 1960 e o final de 1970) literatura
brasileira. Tendência cujo imaginário propõe questionar tanto o conceito de realidade
e literatura como também a própria forma de pensar a sociedade brasileira. Por esse
viés, torna-se interessante verificar alguns exemplos de como se cruzam o universo
de significação que delineia o imaginário desses livros27:
26
Bakhtin utiliza a sátira menipéia para descrever as estratégias polifônicas artísticas de Dostoievski.
Cf.: BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Forense
Universitária, 2002.
27
O universo de significação que cerca essas produções é tão tênue que não apenas personagens,
mas algumas cenas acabam se desdobrando em repetição. Exemplo disso, tem-se a cena
emblemática do Cristo-Pato Donald em Nações Unidas, de Agrippino de Paula, que se assemelha
muito à cena descrita por Solha no capítulo do Sermão da Montanha. Lê-se em Nações Unidas:
“Desce o Cristo-Pato Donald, de túnica branca, do alto, com uma corda. Barbicha e cabelos caídos
nos ombros. Perplexidade e êxtase geral, alguns choram, outros rezam, outros dizem: Aleluia!
Aleluia!
Cristo-Pato Donald (fala como Pato Donald mantendo o gesto evangelista de braços abertos):
− Vede que ninguém vos engane. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: EU SOU O CRISTO;
e seduzirão a muitos.” (NU, p. 28-29). Apud HOISEL, Evelina. Supercaos: os estilhaços da cultura em
PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1980.
26
.... lembro-me que fazia muito calor em Luanda, lembro-me que comecei a
rezar a Oração da CIA, lembro-me que pensei no jornalista Billy Batson
gritando Shazam e se transformando no Capitão Marvel (...) (EHC, p. 44)
..........................................................................................................................
Rock Hudson disse numa voz grave que eles estavam contratados como
copeiros de Di Maggio e de todos os artistas de Hollywood: Marylin, Cary
Grant, Gary Cooper, Errol Flynn e todos os outros (...). (PA, 225)
Assim, os mitos e ícones dos mass media não são apenas citados, mas
incorporados à narrativa. É como se o imaginário apropriado por essas produções
enfatizasse outra maneira de pensar a literatura. Forma esta que ressalta no seu
universo de significação o questionamento do artístico e do literário a partir da
ascensão da cultura. Sobretudo por tal ascensão possibilitar apontar respostas a
perguntas simples como: quem são esses heróis? O que eles suscitam?
28
Cf.: CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Trad. Carmem Carvalho e Arthur Mourão. Lisboa,
Portugal: Edições 70, 1987, p. 68.
27
Marshall McLuhan29, já nos anos de 1960, chegou perto desta denominação ao falar
em “aldeia global”. Segundo McLuhan, enquanto a imprensa nos destribalizou, os
media possibilitaram a nossa retribalização, pondo todos os nossos sentidos em
jogo, creditando assim a expansão da comunicação mais rápida entre as pessoas.
No Brasil, o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, segundo Renato Ortiz, em A
moderna tradição brasileira31, é o momento em que se define a consolidação da
chamada sociedade dos mass media. Se entre os anos 1940 e 1950 constatam-se
“momentos de incipiência” da sociedade de consumo, é nas décadas posteriores
que se verifica a implantação de um mercado de bens culturais. É claro que já no
século XIX se conheciam formas como os jornais diários, as revistas ilustradas e as
29
Cf.: MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio
Pignatari. Cultrix. São Paulo, 1964
30
O texto não aparece numerado.
31
Cf.: ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
editora brasiliense, 1988.
28
Para se ter uma idéia dessa reestruturação, no período de incipiência não se tinha
uma dimensão precisa do que Ortiz chama de “racionalização”. Esse período foi
caracterizado por uma série de improvisações, amadorismos e experimentações. Os
problemas com a tecnologia disponível, contratação de pessoal qualificado,
divulgação e impressão eram constantes. Além de faltar nos meios implantados
(rádio, televisão, jornal etc.) o traço característico de uma indústria de cultura: o seu
caráter integrador.
O livro, por exemplo, não tinha o seu mercado ampliado, em virtude não apenas do
alto índice de analfabetismo, mas devido a restrições quanto à importação de papel
para a impressão, por isso custava mais barato importar o próprio objeto livro32. O
rádio, com seus improvisos e amadorismos, para se ter uma noção, avaliava sua
audiência através da “vibração” do público ou do “calor do auditório”, ou seja, era
dimensionada a partir de critérios empíricos e não através das hoje conhecidas
pesquisas de mercado33. Já a televisão, apesar da presença de uma figura
empreendedora como Chateaubriand, fundador da TV Tupi, como um “capitão da
indústria”34, não tinha a real dimensão de seu alcance. Até porque, apenas uma
pequena parcela da população possuía televisão, pois as dificuldades de importação
do aparelho e conseqüente custo inviabilizavam a massificação do produto35.
32
Ibidem. p. 46.
33
Ibidem, p. 63.
34
Tomando por empréstimo a teoria de Fernando Henrique Cardoso sobre o empresário industrial
numa sociedade subdesenvolvida, Ortiz afirma que Chateaubriand se aproxima muito da figura do
“capitão de indústria”, aquele empresário pioneiro que ‘tira dinheiro de pedra’, mas que atua mais na
base do empirismo, utilizando procedimento tipicamente aventureiro. Ibidem., p. 57.
35
Ibidem. p. 64.
29
pela tensão da censura, nesse momento, a sociedade brasileira passa por uma
reestruturação a fim de consolidar no Brasil o “capitalismo tardio”.
Segundo Ortiz, de fato não se pode desprezar que o ato censor atravancava a
emergência de um pensamento ou obra artística que fosse contrário à sua política
autoritária. Mas, deve-se lembrar também que a censura atingia, segundo este
estudioso, apenas a especificidade da obra, não a generalidade de sua produção.
Isso porque, a censura não se definia pelo veto de todo e qualquer produto cultural,
mas funcionava, em suma, como uma repressão seletiva. Basta lembrarmos que foi
justamente o Estado autoritário o promotor do desenvolvimento capitalista na sua
forma mais avançada.
36
Cf.: FREITAS FILHO, Armando (et al). Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa Empresas
gráficas, 1979-1980.
30
Para tanto, o que caracteriza a situação cultural neste período são o volume e a
dimensão do mercado de bens culturais. Os vários setores que configuram os meios
de comunicação crescem vertiginosamente (rádio, cinema, televisão, revistas,
história em quadrinhos, propagandas). A produção de papel off-set aumenta de
forma significativa, permitindo menores custos na impressão de livros. As
publicações de histórias em quadrinhos crescem cada vez mais com os direitos
adquiridos por empresas como a Victor Civita, da editora Abril.
Assim, toda a sociedade sofre uma reestruturação, uma vez que as linguagens que
no período de incipiência eram apenas conhecidas passam a fazer parte e a
constituir a própria sociedade. O fato é que a implantação de uma indústria cultural
acabou por modificar o padrão de relacionamento com a cultura, uma vez que
passava a ser entendida através das relações de mercado. A modernização, que na
história da colonização configurara os projetos de construção nacional, tornava-se
um fato.
37
Em contraposição à figura do “capitão da indústria”, seguindo as referências de Fernando Henrique
Cardoso, tem-se o maneger, indivíduo preocupado com a reorganização técnica e administrativa dos
empreendedores e com o aumento de sua eficácia. Ibidem, p. 57.
31
Lendo o contexto dos anos 1970, tem-se uma noção da quantidade de questões que
o constituiu. Pode-se dizer, portanto, que esse foi um período de profundas
transformações. Ortiz afirma que as transformações foram tantas que modificara a
própria forma de entender a identidade nacional, isso porque, quando o assunto diz
respeito à modernização de um país com uma história particular de colonização, as
questões tornam-se bem complicadas. Quer dizer, a complicação elucida-se logo se
tivermos em mente que o tema da modernização apareceu, durante muito tempo,
ligado ao sentido de progresso desenhado pelos projetos de construção nacional. A
importância dessa questão reside no fato da vontade de ser moderno passar a
constituir uma verdadeira tradição38 entre nós.
38
Nesse livro, Ortiz joga com o conceito de tradição: se a tradição é aquilo que carregamos conosco
e diz como devemos ser, uma vez que também se impõe como identidade, a vontade de ser novo,
portanto, também se configura uma tradição entre nós. Ibidem, p. 206.
39
Cf.: PIGNATARI, Décio. Nova poesia concreta. Disponível em: http://www.poesiaconcreta.com.br
Acesso em 10 set. 2007.
32
manifesto Olho por olho a olho nu40, propunha que a poesia deveria ser pensada em
três dimensões: gráfico-espacial, acústico-oral e conteudística.
Ainda que o sentido das palavras manifesto e nova apontem para a idéia de projeto,
mencionado por Ortiz, na poesia concreta já aparece a insistência em se destacar o
diálogo com os mass media. Tributário dessa poesia, o poema-processo41, do final
dos anos 1960 e início dos anos 1970, exacerbava as transformações ocorridas com
a modernização. Aliás, nos poemas de Moacy Cirne e Álvaro de Sá linguagens
como das histórias em quadrinhos passavam a constituir o próprio poema,
oferecendo mesmo a dúvida: seria poema? Ou história em quadrinhos?
Reconhecer AVEJ como sintoma do período de emergência de que nos fala Ortiz
não é algo tão complicado. Além do mais, AVEJ é daquele tipo de produção que
adquire significações outras a partir das imprecações do contexto. Basta
retomarmos seus modos de construção: o livro é visto como objeto trabalhado em
toda a sua estrutura, diagramação, lay-out; o discurso deixa de ser apenas verbal
para alcançar outros discursos semiológicos; os personagens apenas conseguem se
comunicar através de outras imagens (heróis, super-heróis, superstars.); a narrativa
não possui um tempo definido, é atemporal e a-histórica.
40
Cf.: CAMPOS, Haroldo de. Olho por olho a olho nu. Disponível em:
http://www.poesiaconcreta.com.br Acesso em 10 set. 2007.
41
Cf.: FRANCHETTI, Paulo. Poesia de vanguarda no Brasil. Disponível em:
http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_des05.htm Acesso em: 20 out. 2006.
33
vontade de resposta? Agora sim podemos dizer que responder a essas perguntas
não era algo tão fácil. Mas AVEJ é uma das produções que se arriscara a dramatizar
esse momento no próprio momento. Através principalmente de uma declarada
propensão para uma forma que se ligava à indeterminação de limites e imprecisão
de contornos.
AVEJ não apenas tentou conter a informação estética, mas, sobretudo, pretendeu
comunicá-la sob um grau de tensão cuja única regra era saber romper as regras.
Daí percebermos certas características que explodem de suas páginas. Solha cria
um texto que atenua a sensação de estranhamento provocada pela não-ordem do
momento, ao mesmo tempo em que busca desconstruir um dos maiores mitos da
história: o salvador. Para isso, o autor evoca a presença de outros tantos mitos da
própria história e da indústria cultural. O resultado é um jogo de dessacralização a
partir do qual se questiona tanto a história como também a literatura.
Daí entendermos porque AVEJ vale-se dos diferentes modos de expressão para
comunicar sua mensagem: história em quadrinhos, cinema, televisão, discurso
histórico, religioso. Santiago constata que a anarquia formal não deveria ser
entendida como algo negativo no que diz respeito à avaliação da literatura em prosa
daquele momento. Ao contrário, permitia verificar a vivacidade do gênero em prosa,
42
Cf.: SANTIAGO, Silviano. Prosa literária atual no Brasil. In. Nas Malhas das letras. Rio de Janeiro:
Rocco, 2002.
34
Segundo Hoisel, o ritual da festa foi um recurso que buscou interpretar a situação
excepcional por que passava a sociedade brasileira daquela época. Aliás, o termo
ritual da festa, idéia desta autora, foi elaborado a partir do termo carnavalização, de
Bakhtin, já aqui referenciado para descrever AVEJ. Como gesto que se apropria do
jogo lúdico do riso carnavalesco, esse recurso permitia investir sobre a realidade
política e social brasileira um olhar que conseguisse expressar a situação
estilhaçada da cultura. A festa permitia efetuar uma “tipologia da cultura brasileira”
43
Ibidem, p. 34.
44
HOISEL, op. cit. 1980.
45
Para Ortiz retomar a questão do que se produziu nesse período em termos culturais esbarra no
silêncio temático atenuado pelo fato da discussão nacional derivar da luta contra o autoritarismo da
ditadura militar. Discussão esta marcada por dois tipos de cerceamento: a censura e a
desnacionalização. Assim, a questão da realidade socioeconômica, que tem nos anos 1970 sua
reestruturação no panorama cultural, não aparecia como o forte das discussões: “nesse sentido, eu
afirmaria que a presença do Estado autoritário ‘desviou’ em boa parte a análise dos críticos da cultura
do que se passava estruturalmente na sociedade brasileira”. Desse modo, é importante para Ortiz
não esquecer que muitas mudanças estruturais que aconteciam em termos de emergência da
indústria cultural foram lidas através do aparato repressor.
Entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, surgiram os primeiros escritos sobre o que
havia sido produzido em termos culturais. Naquele momento, falar desse período significava lhe
conferir uma identidade. E essa identidade aparecia ancorada na certeza de ter sido iniciada pelo AI-
5, anunciado em 13 de dezembro de 1968, e encerrado com a chamada abertura, ou retorno dos
exilados, em 1979. Essa era a identidade dos chamados anos de chumbo. ORTIZ, op. cit. p. 16.
45
Flora Süssekind expõe, em Literatura e vida literária , que a censura naquele momento funcionava
como uma espécie de pista de mão única. Através dela passou-se a explicar grande parte dos
procedimentos e modos de construção da produção literária: seja de forma direta, com as biografias e
os depoimentos; seja de forma indireta, através das parábolas, alegorias ou realismo mágico. É como
se a censura aparecesse como a principal produtora da cultura naquele momento. Cf.: SUSSEKIND,
Flora. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
35
Então, para esta autora, o ritual da festa, através da sua função dessacralizadora,
buscava questionar a noção de cultura nacional a partir das novas formas de
relações impostas pela indústria cultural no âmbito multinacional. O corpo
representava o signo semiológico capaz de “codificar múltiplas mensagens e
deflagrar múltiplas percepções”48. Santiago, no texto citado anteriormente,
acrescenta que, “como tema instigante dos últimos anos, o corpo é o lugar da
descoberta do ser”. Corpo este que aparecia dominado muito mais pela força
dionisíaca do que pela força apolínea, pois esse corpo surgia como energia “não-
racional” e “não-reprimida” de onde saía o grito da sociedade49.
46
HOISEL, op. cit. p.33.
47
Evelina Hoisel se refere, nesse caso, às diversas performances realizadas, por exemplo, por Lígia
Clark e Hélio Oiticica nas artes plásticas. Como espécie de manifesto, o corpo é tomado como
”veiculo de experiências artísticas”: o toque corporal, os gestos e os sentidos são vitais para
comunicar a mensagem. Ibidem, p. 35.
48
Ibidem. p. 34-36.
49
SANTIAGO, op. cit. 1984, p. 32.
36
Tânia Pellegrini destaca, em Gavetas vazias: ficção e política nos anos 1970, um
aspecto interessante na estética do período que confirma o mapeamento realizado
por Hoisel. Segundo esta autora, os modos de construção do romance acabaram
por indicar “uma quase identidade entre a obra e a realidade referencial”,
ressaltando “uma tênue fronteira entre o mundo real e o ficcional”. É como se
apenas através do caos, da fragmentação, da fusão de gêneros, a literatura
conseguisse apresentar (ou representar?) uma imagem da totalidade do mundo
referencial completamente caótico e estilhaçado50, utilizando aí suas palavras.
Enfim, se existia uma lógica para as apropriações estéticas de produções como
AVEJ, estava na sua relação com o contexto.
Portanto, AVEJ pode ser considerada como uma produção que se apropria do ritual
da festa de que fala Hoisel. Mas devemos não esquecer que uma festa sempre
indica uma situação particular: outros convidados e outras máscaras. É claro que um
aspecto apresenta-se como bem característico desse ritual, Hoisel delimita
acuradamente que toda a festa tende para um ato dessacralizador como ato de
violência em relação aos valores consagrados51, e dessa característica demanda a
sua atitude crítica e política.
Talvez aqui tenhamos uma idéia mais clara do planetário de que fala Sant’anna. É
difícil pensar uma produção que tateia apreensões de uma realidade que, sendo
emergencial, não tinha a possibilidade da clareza da distância. Aquele era o
momento e não se sabia disso. Como afirma Ortiz, a modernização chega nesse
lado dos trópicos como se fôssemos naturalmente modernos.
O fato é que AVEJ se desenrola numa atmosfera que antecipa outra ordem social. E
a tentativa de dramatização enseja aquilo que a desordem e o caos, sem as antigas
crenças, permitem endossar. Aliás, o caos e o apocalipse nem sempre remetem a
uma atitude incoerente sobre aquilo que se pretende expressar, mas esboçam uma
atitude crítica diante de uma realidade que apenas pode ser expressa através de
seus contornos.
50
Cf.: PELLEGRINI, Tânia. Gavetas Vazias: ficção e política nos anos 70. São Paulo: EDUFSCAR:
São Paulo: Mercado de Letras, 1996.
51
HOISEL, op. cit. p. 38.
37
Quando Solha escreve AVEJ, nos anos 1970, a temática do mito, principalmente o
tema do herói52, adquiria significação em virtude mesmo dos novos valores e
apreensões ocasionados pela sociedade dos mass media. Por vezes, pode soar
meio desconexo que esse tema fosse retomado tanto tempo depois, mas o mito
surgia como questionamento para muitos problemas que se esboçavam no contexto
de uma sociedade que parecia procurar alguma resposta para o que acontecia.
52
Marc Augé, em Enciclopédia Einaudi, expõe que os heróis “fundam a história dos homens,
chamados em suma a simbolizar e a ordenar esta história, a situar seu fragmento no espaço tempo, a
dar-lhe significado e, por assim dizer, necessidade”. Cf.: AUGÉ, Marc. Heróis. In. Enciclopédia
Einaudi – volume 30. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 128. Ver. CEIA, Carlos (org). e-dicionário
de termos literários. Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/edti Acesso: 13 nov. 2007.
53
Cf.: ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p.
11. Sobre o mito também foi consultado VERNANT, Jean-Pierre. Razões do mito. In. Mito e
Sociedade na Grécia antiga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
38
temática. Afinal de contas, na fábrica de cultura dos mass media passou-se também
a produzir heróis de vários tipos e para os mais diferentes grupos sociais.
Nesse mesmo livro, no texto intitulado O mito reencontrado, Vattimo explica que
esse caos generalizado e multifacetado trouxe consigo um reencontro com o
54
Cf.: VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Trad. Carlos Aboim de Brito. Lisboa: Edições
70,1989.
55
Ibidem, p. 13.
56
Ibidem, p. 11.
39
discurso mítico. Isso significa que os novos valores impressos pelos mass media
produziam um contato outro com esse saber57, falava-se em novos heróis, em
figuras mágicas denominadas superstars, em super-heróis com poderes
extraordinários. Até mesmo a atitude apocalíptica, como afirma Vattimo, passava a
constituir o mundo científico-tecnológico como parte dos conflitos do momento.
A questão do mito como discurso fabricado pelos media surgia nos anos 1970 como
algo muito presente. Tão presente que o estudo delineado por Roland Barthes, em
Mitologias, passou a ser muito requisitado, afinal de contas, o mito deixava de ser
um discurso próprio apenas às chamadas sociedades primitivas. Como sistema de
comunicação, este passava a ser assumido por Barthes como um sistema
semiológico despolitizado, portanto, como uma fala definida pela sua intenção
histórica. Ideológico, deformado, o mito enquanto sistema não escondia nada e nada
ostentava, diz o autor58.
57
Não vamos discutir aqui as implicações da retomada do discurso mítico na sociedade dos mass
media, tal qual pretende fazer Vattimo nesse texto. Mas concordamos que, ao efetuar o debate sobre
o problema do pensamento metafísico para filosofia da história e suas conseqüências para o discurso
mítico, este autor acabou por descrever habilmente de que forma esse discurso aparecia delineado
na chamada sociedade tardo-moderna. No entanto, o que nos interessou neste texto foi, sobretudo,
as ligações com os media e o mapeamento efetuado quanto ao discurso mítico.
58
Cf.: BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: DIFEL,
1985, p. 150.
59
Guerra fria foi a designação atribuída ao conflito político-ideológico (socialismo-capitalismo) entre
os Estados Unidos e a União Soviética ocorrido no final do século XX. Recebeu o nome de guerra fria
porque não houve o uso de armamentos ou coisa parecida, o confronto era político-ideológico. O
sintoma de uma cultura da bomba surgia por tratar-se de duas potências com grande arsenal
atômico. Na sua análise sobre PanAmérica e Nações Unidas, Evelina Hoisel verifica o caráter
escatológico presente naquele período, tomando por base o estudo de Jeff Nutall, a autora verifica
que inúmeras produções apareciam engendradas sob o signo de determinada situação apocalíptica,
passando assim a ser delineada a “cultura da bomba”. HOISEL, op. cit., p. 116.
60
Segundo Carlos Alberto Messeder Pereira, em O que é contracultura, após a revolução de 68, que
ocorre quase por todo o mundo, e tinha a força estudantil jovem como principal protagonista, aos
poucos os meios de comunicação de massa começaram a divulgar o termo contracultura.
Inicialmente, surgia relacionado aos sinais mais evidentes, ou seja, à forma de se portar de
40
No Manifesto Hippie, Luís Carlos Maciel afirma o seguinte: “o futuro já começou. Não
se pode julgá-lo com as leis do passado. A nova cultura é o começo da nova
civilização. E a nova sensibilidade é o começo da nova cultura. (...) Você curtiu
essa? Há muito ainda a curtir”61. Cultura, portanto, que pretendia justamente
capturar o momento em toda a sua intensidade. A nova sensibilidade apresentava-
se na figura daquele que buscava sentir de modo imediato o alcance e o significado
das alterações que se processavam.
Pensar, para tanto, numa imagem que representasse a figura do super trazia muitas
implicações. Tim Rice, um dos criadores do musical Jesus Cristo Superstar62,
observa que uma dessas implicações aparecia relacionada ao fato de a imagem do
super surgir como que representada por diversas figuras que explodiam do contexto
cultural. O hippie, por exemplo, representava um Cristo meio despojado, de cabelos
compridos, roupas longas, sandálias e cheio de paz e amor no coração. Mas
também trazia consigo a proposta de quebra de muitos paradigmas, seja contra o
pensamento judaico-cristão, seja contra o sistema dominante, o establishment. No
determinados indivíduos: cabelos compridos, roupas coloridas etc., logo depois, passou a significar
um conjunto de manifestações imbuídas de maneiras de pensar o mundo extremamente
transgressor. Essas maneiras colocavam em xeque os valores da cultura ocidental. A palavra
underground então designava um lugar sociocultural que apontava para o movimento de se portar
fora dos espaços ditos centrais, cuja palavra de ordem era drop-out. PEREIRA, op. cit. p. 08.
61
MACIEL, Luis Carlos apud COELHO, Cláudio Novaes Pinto. A contracultura: o Outro lado da
Modernização autoritária. In. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2000. Cf.:
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70: Lembranças e Curiosidades de uma década muito doida.
Rio de Janeiro, Ediouro, 2006, p.118.
62
Cf.: JESUS CRISTO SUPERSTAR. Direção: Norman Jewison. Produzido por Norman Jewison e
Robert Stigwood. Intérpretes: Ted Neely, Carl Anderson... Roteiro: Melvyn Bragg e Norman Jewison.
Música: Andrew Lloyd Webber. Letras: Tim Rice. Universal Pictures, 1973. 1DVD (107 min.). Baseado
na Ópera Rock Jesus Cristo Superstar.
41
Também conhecido como Messias, Filho de Deus, Rei dos Reis, o salvador
etc. Conhecido chefe de um movimento de libertação clandestino.
Procurado pelos seguintes delitos: prática abusiva da medicina, fabricação
de vinho e distribuição de alimentos sem licença; perturbação da atividade
comercial no templo: cumplicidade com conhecidos criminosos anarquistas,
subversivos, prostitutas e gente da rua: diz que tem autoridade de
transformar os homens em filho de Deus. Aspecto: clássico tipo Hippy, com
cabelos longos, barba, roupas compridas, sandálias. Deve agir em classes
baixas, tem poucos amigos ricos, com freqüência se refugia no deserto.
Tome cuidado: esse homem é extremamente perigoso. As suas idéias,
insidiosamente provocadoras, são particularmente perniciosas para os
jovens. Ele modifica os homens e diz que está lhes dando a liberdade.
63
Atenção: ele ainda continua solto!
Atrelado a essa imagem, acrescenta Rice, surge o superstar, que nesse período
ganha força e circula com muita freqüência. O superstar é uma figura provocadora,
uma construção do discurso produzido pelos media. Dizer de suas características é
lembrar de um herói às vezes rebelde, às vezes subversivo, porém também
intocável. Marcado pela distância imposta pelos media, o astro é conhecido por sua
presença em sonho.
Rice afirma que certas palavras quando entram na moda têm muita força durante
semanas, talvez meses, mas a palavra superstar persistia e parecia vir para ficar.
Rice mapeia bem o sentimento expresso na figura do superstar. Este surge como
uma figura especialmente mágica. Tão mágica que John Lennon deixa transparecer
em sua fala a cisão provocada “Somos mais populares que Jesus Cristo”64.
Como produto fabricado, o astro acredita-se super porque os media em toda a sua
estrutura produz tal crença. Cantado, assistido, o astro adentra as casas das
pessoas, a vida das pessoas. A sua figura pode ser sentida através da presença
intransponível do som do rádio, da tela da televisão e do cinema. Sua presença
surgia como parte constituinte da estrutura da sociedade.
se confunde com o palco e a tela. O que ele faz é levar a arte para o palco da vida e
a vida para a realidade do palco. Em suma, o superastro é a pura representação66,
surge como uma colagem carnavalescamente construída e apropriada numa
polissemia de significados: “É deus, é artista, é pessoa: é superior, é diferente, é
semelhante. Tudo ao mesmo tempo”67.
A força da imagem do herói produzida pelos media naqueles anos lembra uma
história em quadrinhos, de 1979, intitulada Super-homem versus Muhammad Ali68.
Nesse quadrinho, conta-se a história da maior luta de todos os tempos, a fim de
salvar o planeta Terra, Super-homem vê-se obrigado a lutar contra o grande
campeão Muhammad Ali, considerado o maior dos boxeadores. O motivo da luta foi
o desafio proposto pelo extraterrestre do Planeta Scrubb, que pretendia organizar a
luta entre o grande campeão desse Planeta contra o maior lutador da Terra. Mas
qual seria o maior lutador do Planeta Terra? Outra luta decidiria essa questão.
Na platéia, grandes estrelas como Pelé, Andy Warhol, Frank Sinatra, Christopher
Reeve e super-heróis como Batman, Kid Flash e outros assistem às lutas. Sem os
poderes, Super-homem perde para Ali. E na grande luta final, Ali dá uma surra no
lutador do Planeta Scrubb. Super-homem também não fica para trás e, já com seus
poderes, ajuda o famoso boxeador a salvar o Planeta Terra. No final, depois de tudo
terminado, Ali encerra as seqüências com a seguinte frase “Super-homem... nós
somos os maiores”69.
Assim, esse é o imaginário mítico que constituía a sociedade dos anos 1970. Não
por acaso, o conjunto das apreensões socioculturais que cerca essa sociedade está
relacionada à figura do super. Talvez a visão do macro que essa imagem suscitava,
e ainda suscita, tenha caído bem mesmo à sociedade planetária dos media. Além
disso, podemos aqui validar uma expressão cunhada por Evelina Hoisel no já citado
Supercaos: o hiperbólico. A opção pelo macro, segundo Hoisel, seria a forma de
fazer com que as coisas aparecessem em suas dimensões reais, ressaltando a
66
Ibidem, p. 147.
67
Ibidem, p. 150.
68
Cf.: ADAMS, Neal; DICK, Giordano; AUSTIN, Terry. Super-homem versus Muhammad Ali. Baseado
numa história original de Denny O’Neil. Rio de Janeiro: EBAL, 1979. (Almanaque de Superman)
69
Ibidem, p. 74.
43
O mito não foi, portanto, uma temática cuja prioridade reserve-se à AVEJ. Sob
muitos aspectos, a questão do mito explodia como forma de exacerbar e maximizar
a dimensão dos fatos que ali ocorriam. Seja do ponto de vista religioso, místico ou
ficcional, a figura do super relaciona-se a todos esses aspectos. Thomas Carlyle, em
O herói71, diz que o homem prodigioso, de feitos memoráveis, surge como algo
necessário para a sociedade, talvez Carlyle tenha razão. E um de seus papéis seria
estabilizador. Por esse aspecto, efetuar uma leitura do herói é, principalmente, tentar
ler a sociedade que o formou. E como parte desse universo, AVEJ contribui a seu
modo para essa leitura.
70
HOISEL, op. cit. p. 55.
71
Cf.: CARLYLE, Thomas. O herói. São Paulo, Melhoramentos, 1963.
44
Joseph Campbell explica melhor essas relações. Segundo este autor, em O Herói de
mil faces72, as semelhanças quanto à biografia do herói é algo tão constante que se
pode falar até em fases de transformações quanto à vida deste. Essas fases de
transformações dizem respeito ao nascimento, infância, aventuras, amor, partida ou
morte. O ciclo de vida do herói torna-se a forma por meio da qual se pode dizer que
o destino do mundo foi cumprido.
Campbell acrescenta que os heróis apresentam em seu conjunto uma história tão
semelhante que, em certos casos, apenas variam os aspectos da tradição cultural
local. Tamanha a importância desse herói que não são considerados meros seres
humanos, mas senão heróis dotados de poderes extraordinários. Campbell afirma
que “toda a vida do herói é apresentada como uma sucessão de prodígios, da qual a
grande aventura central é o ponto culminante”73.
AVEJ, p. 17.
Sob muitos pontos de vista, Lucas observa que o sentido da vida de algumas das
principais civilizações foi construído visando os feitos de um Ser justamente
considerado prodigioso. Em certa medida, essa crença que dava sentido à vida
dessas civilizações, pois o pensamento mítico aparece na forma de um eterno
retorno infinito: a história de Krishna, Buda, Mitra, Hércules etc. Cruzando essas
histórias, como no fragmento acima que conta o nascimento de Buda e Zoroastro,
72
Cf.: CAMPBELL, Joseph. Transformações do herói. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara
Sobral. 15 ed. São Paulo: Cultrix/pensamento, 2000.
73
Ibidem, p. 310-312.
45
Lucas acreditava que o Cristo que pretendiam fazer funcionar – essas são suas
palavras – não se diferenciava muito dos outros heróis. Muito pelo contrário, esse
herói também seria assumido como uma experiência mágico-religiosa, cuja figura
apresentar-se-ia como justificativa e fundamento da atividade humana. É o que se
pode chamar de um modelo exemplar, quando o mito, segundo Eliade, ajuda o
homem a eliminar as dúvidas quanto ao resultado de um empreendimento porque
garante a este que o que pretende fazer já fora feito: “Por que hesitar ante uma
expedição marítima, quando o herói mítico já a efetuou num Tempo fabuloso?”75. No
trecho abaixo os intuitos de construção da figura do Salvador surgem com clareza:
74
ELIADE, op. cit. p. 13.
75
ELIADE, op. cit. p. 125.
46
AVEJ, p. 16.
Acrescenta Lucas:
− E foi justamente para dar ao Homem esse Sol, meus amigos, que lhe
desapareceu no mundo inteiro desde a implantação do imperialismo
romano... que eu lhes chamei! (AVEJ, p. 13.)
Eliade informa algo importante sobre a função do mito do apocalipse. Segundo ele,
no caso do pensamento judaico-cristão, a crença na salvação pelo herói aparece
47
AVEJ, p. 24.
76
ELIADE, op. cit. p. 62.
77
Marilena Chauí explica que o mito, tal qual entendido a partir das sociedades primitivas, narra a
origem das coisas por meio de lutas e alianças entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o
destino dos homens. Portanto, a cosmogonia apresenta-se como “narrativa sobre o nascimento e a
organização do mundo a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas”. Segundo Chauí, a palavra
cosmos vem do vocábulo grego Kosmos, que significa ordem e organização do mundo; gonia que
significa gênese, nascimento, quer dizer “gênese, nascimento a partir da concepção sexual e do
parto”. Cf.: CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13 ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.
48
natural e mágico-religioso, pois surge a partir dos poderes divinos do todo poderoso.
Daí sua fúria:
Mateus representa aquela figura que acredita no poder do herói, mas que nega
qualquer possibilidade de elaboração. Ele crê no pensamento segundo o qual a
existência do mundo é a conseqüência de um ato divino de criação, e suas
estruturas, seus ritmos, são produtos desse criador. Daí ele dizer expressões do tipo
“por que o diabo de uma virgem não pára logo de menstruar e não nasce de uma
vez por todas um pirralho de carne e osso, com diarréias, sarampos e cataporas e
não nos salva – e gritou – deste inferno” (AVEJ, p. 12).
Essa realidade era de ordem histórica, pois os mitos foram criados a partir da
imaginação dos gestos dos reis primitivos, acredita ele. Martin Cezar Feijó, em O
que é herói78, confirma que para aquele estudioso “o mito teria nascido da história
real e o herói era o que restou de algum indivíduo destacado”. Não se pode
esquecer ainda que para Evêmero os mitos deveriam ser retomados como
decifração da memória presente no próprio discurso histórico. Daí Lucas lembrar-se
de fatos como: “o Próprio Heródoto avisa, antes de começar a narrativa de Ciro, que
a registrava apenas como lenda corrente entre os persas... para endeusar seu rei.
Em seguida é que apresenta os fatos, com lucidez” (AVEJ, p. 71).
78
Cf.: FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. São Paulo: Brasiliense, [1990], p. 17.
50
Esse jogo surge com mais força quando, entre uma seqüência e outra, somos
expostos a histórias que parecem ter por objetivo não deixar nada por explicar. Ás
vezes, essas seqüências podem ser tomadas como memórias de algum dos
personagens, outras vezes elas simplesmente surgem, como se o que lêssemos
fosse a memória de um ser onisciente, aquele conhecedor de tudo. Seria uma forma
de dizer ao leitor “lembra daquela história, aquela que conta que....”. Assim, nem
sempre os fragmentos de narrativas são ligados pelos discursos direto/indireto,
como na narrativa da Branca de Neve, que surge para confirmar a cena simbólica da
fuga do herói (ou da heroína):
AVEJ, p. 15.
79
CHAUI, op. cit. p. 138.
80
Cf.; AUERBACH, Erich. A Cicatriz de Ulisses. In. Mimesis: A representação da realidade na
literatura Ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
51
seu avô Autólico”81. Enfim, eis a tensão, não se pode negar a veracidade das
marcas.
81
Não se pode esquecer também que a Odisséia é um épico que conta a história de um herói e
talvez, aspecto que é cogitado também por Auerbach, o recurso à memória seja uma apropriação
constante às epopéias. Ibidem, p. 02.
82
Ibidem, p. 02.
83
ELIADE, op. cit. p. 104-111.
52
AVEJ, p. 25.
A narrativa em quadrinhos mostra que o cientista Jor-el descobrira que seu Planeta
estava prestes a ser destruído por um cometa. Mas apesar de ser um cientista
respeitado, o conselho não acreditou em suas palavras, uma vez que o
supercomputador predissera que o fim estava ainda muito distante. Na iminência da
destruição, o cientista resolveu construir uma arca do espaço para salvar seu único
filho Kar-el. Em virtude da urgência do acontecimento, a arca foi logo construída.
Jor-el decidiu, então, que o destino do garoto seria um Planeta habitado chamado
Terra, lugar onde seu filho teria uma “vida nova”. E assim foi feito, o menino foi
enviado a este Planeta. Na seqüência, a nave cai numa zona rural chamada
53
AVEJ, p. 26.
84
Muitas outras relações poderiam ser estabelecidas quanto ao discurso mítico em Superman: El, por
exemplo, é nome hebreu para Deus e os nomes de seus pais adotivos começam com as iniciais M e
J, Jonathan e Martha Kent, que lembram José e Maria. Cf.: MOYA, Álvaro de. História da história em
quadrinhos. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
85
Cf.: CARVALHO JUNIOR. Dario de Barros. A morte do Herói: Introdução ao estudo de
sobrevivência de modelos míticos nas histórias em quadrinhos. Dissertação (Faculdade de
Educação). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 2002.
54
Outro grande herói apresentado em AVEJ é Siegfried86, sua história aparece repleta
de deuses, semi-deuses, anões, valquírias e magos, e do cruzamento desses mitos
e lendas, nasceu sua saga. E como todo herói épico, sua aventura é marcada por
toda sorte de obstáculos, mas a bravura, principal símbolo deste herói, vai
eliminando cada um deles. Em suma, Siegfried faz o tipo herói épico cuja aventura
constrói o mundo e as noções deste mundo. Em AVEJ, narra-se mais uma das
aventuras desse herói.
AVEJ, p. 36.
coberta por uma armadura de prata. Quando Siegfried chega perto, percebe a figura
de uma linda mulher, era Brunhilda, a bela Valquíria que foi adormecida por desafiar
o poder de Votan. E como num passe de mágicas, a bela desperta do profundo sono
e resolve desposar o jovem mancebo.
AVEJ, p. 36.
Logo após a narrativa que conta a aventura do destemido Siegfried, surge a história
do corajoso príncipe dos contos de fadas. Sabe-se que é um conto de fadas porque
a linguagem também assim deixa transparecer. Conta-se nesse trecho a aventura
de um Príncipe curioso e desbravador que, percebendo um castelo ao longe, resolve
ir até lá. A história se passa da seguinte forma:
AVEJ, p. 38.
para expressar a mensagem. Fica explícito nesses fragmentos que Solha pretende
marcar a apreciação da narrativa, sobretudo, evidenciando a semelhança na própria
diferença dos contornos expressivos88.
AVEJ, p. 42.
88
Eliade observara, de acordo com Jan Vries, que a saga se situa num mundo governado por Deuses
e o destino (Siegfried morre no final), já o conto de fadas é descompromissado com os valores de tal
discurso. ELIADE, op. cit. p. 171.
89
A história mostra as aventuras de um grupo chamado Cinco por infinitus. Infinitus era um
extraterrestre que havia selecionado quatro humanos com características distintas para se juntarem a
ele em aventuras no espaço sideral. Infinitus chamou antares, um professor de astronomia; Alfa, uma
psiquiatra; Taurus, um guarda-costas profissional; e Argo, um dublê. As histórias misturavam
aventura e fantasia, produzida pela arte psicodélica de Esteban Maroto.
57
AVEJ, p. 43.
Ainda que aturdido com a revelação, Taurus resolve trocar de lugar com o morto,
afinal de contas, ele parece procurar alguma resposta naquele lugar misterioso.
Então, retira as roupas deste, veste-as, e coloca-se no lugar em que antes vira a sua
face espelhada. Nessa seqüência, uma frase parece querer orientar a leitura: “Como
se o Cristo, vivo, se pusesse no lugar de Adão, defunto”. (AVEJ, p. 45).
AVEJ, p. 44-45.
Planeta das Plêiades. Mas a crença no seu retorno pelo processo de hibernação fez
com que ela lhes aplicasse o raio paralisador. Estando o rei vivo, a rainha aciona os
controles para reverter o processo. E assim:
AVEJ. p. 49.
Retomemos então algumas premissas: Moisés que foi posto num cesto; Rômulo e
Remo que foram postos em outro cesto; Superman que foi posto numa pequena
arca do espaço; Siegfried que é destemido e corajoso; o Príncipe também detentor
de tais qualidades; Taurus que não fica para trás; Siegfried que salva Brunhilda; o
Príncipe que salva a Princesa; Taurus que salva a Senhora dos Espectros; Brunhilda
que desperta do sono; a Princesa que desperta de outro sono; a Senhora dos
Espectros que dorme acordada; o Príncipe que faz renascer um mundo; Taurus que
faz renascer outro mundo... E assim AVEJ vai sendo construída, uma história que
lembra outra história, uma cena que lembra outra cena, um herói que lembra outro
herói.
É inútil multiplicar os exemplos sobre os heróis que são esboçados em AVEJ. O que
pretendemos mostrar mesmo foi essa insistência em narrar essa grande
história/estória da figura do herói. Como se quisesse captar a própria essência do
herói, a origem. O texto persiste mostrando as relações, comparando, instigando e,
consequentemente, dilatando o próprio pensamento mítico. Roland Barthes mostra
59
Por mais paradoxal que isso possa parecer, o discurso de AVEJ não propõe negar o
valor do discurso mítico através do imperativo ideológico, como questionava
Barthes. Mas ao expandir sua análise a outros contextos criativos, assumindo-o
enquanto valor, confere a este uma significação mesmo ficcional. Não entendendo
ficcional como mentira, ou aquilo que aponta para algo menor, mas como uma
criação suscitada por um imaginário cultural. O herói, sob muitos aspectos, é uma
figura cultural.
Essa relação aparece, sobretudo, quando Lucas diz que não existe lugar mais
propício à criação do herói do que o teatro. Ou seja, o Cristo seria construído
visando os critérios da arte: “Platão dizia que os poetas são os intermediários entre
os deuses e os homens fragmentados, nostálgicos da unidade perdida com o divino”
(AVEJ, p. 31). Assim, AVEJ se propõe a jogar com os tênues limites de muitas
dicotomias como arte/não-arte, ficção/não-ficção, verdade/mentira, história/não-
história etc.
Se bem que Freud afirma nesse texto que definir um Grande Homem, e
consequentemente sua eficácia, é sempre algo muito complicado. Talvez ele tivesse
mesmo razão, afinal, inúmeros são os motivos que nos levam a considerar um
homem como tal: a beleza, a força, a inteligência, a bravura, o gênio criador etc. Não
seria demasiado dizer, para Freud, que obter uma resposta satisfatória quanto a
este ponto passa pelo ambíguo e pelo arbitrário.
90
BARTHES, op. cit. 141.
91
Cf.: FREUD, Sigmund. O grande Homem. In. Edição eletrônica brasileira das obras completas de
Freud. Direção de Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996, CD-ROM.
60
Mas Freud admite que dessa figura pode-se apreender o seguinte: a eficácia do
herói está relacionada à idéia que ele representa: “Essa idéia pode acentuar alguma
antiga imagem de desejo das massas, ou apontar um novo objeto de desejo para
elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas”92. Trata-
se para Freud de um desejo insistente pela figura do Pai, pois precisaríamos sempre
de uma figura para reconhecer nela os seguintes sentimentos: admiração,
autoridade, temeridade etc.
De certo, como constatado por Freud, não ficaríamos surpresos em descobrir que
nunca é muito fácil oferecer uma resposta esclarecedora à figura do herói. Talvez
AVEJ apresente em seu corpo textual, durante todo o tempo, essa dúvida, e saiba
mesmo disso, afinal de contas, desde a sua capa, o livro se propunha a uma única
coisa, apresentar o imaginário que cerca a figura do herói-salvador, sobretudo, como
parte de uma verdadeira estória. Até porque, se não fosse assim, não daria conta de
construir justamente a figura de seu herói.
São tantos os heróis em AVEJ que é difícil captá-los de forma precisa, pois o modo
de narração deste livro pressupõe uma forma de articular cenas e sensações que
beiram o onírico. Por esse aspecto mesmo, é difícil analisar AVEJ como um todo,
pois cada cena não surge enquanto um encadeamento. As cenas vão acontecendo
ou simplesmente surgem. Disto talvez demande em grande parte a sensação de
estranhamento presente em sua narrativa.
Em outras palavras, no caso desse livro, não dá para abarcá-lo enquanto uma
narrativa totalizada. O assunto que constitui o diálogo sobre o mito é apenas parte
de suas apreensões. Concomitante ao diálogo dos evangelistas, acontecem cenas
que são estruturadas em torno da ação mesmo, não mais nos defrontamos com os
diálogos filosóficos, mas vemos as coisas acontecerem. E é nesse espaço que o(s)
herói(s) vai (ão) sendo apresentado (s).
92
Ibidem.
61
Já havíamos mencionado que AVEJ tem como palco o teatro, ao que nos parece,
grego, quer dizer, moderno também, porque AVEJ representa a representação de
um teatro grego. Basta lembrarmos da fala de Lucas quando diz que não foi por
acaso que havia marcado o encontro deles para um teatro, pois que nesse lugar
“todos os termos colhidos são reproduzidos em prosa, gesto, verso: mitificados,
simplificados, sintetizados” (AVEJ, p. 32). E não foi por acaso mesmo, o teatro grego
tem algo de significativo para a imagem do herói.
Junito de Souza Brandão93 informa que o teatro grego surge ainda na Grécia Antiga,
quando nasceram os heróis e não se pensava muito sobre eles, ou seja, quando o
mito se confundia com a realidade e com a própria origem do mundo. Nesse espaço,
onde era realizado o culto ou rito ao Deus Dionísio, passou-se também a encenar
narrativas que contavam a história do herói, suas aventuras, seus feitos, sua morte
etc., esse ritual tinha uma carga de valor imensa.
Foi, portanto, nesse lugar que o herói começou a assumir existência histórica,
porque nele se esboça um verdadeiro culto a esse Ser prodigioso. Mas lembremos
também que nesse mesmo espaço o mito que antes era cultuado passou também,
em virtude do recurso à representação, a ser encenado. E essa encenação trouxe
consigo muitas implicações, afinal de contas, o teatro deixava aos poucos de apenas
se dedicar ao culto dos deuses.
Naquela época, ir ao teatro era algo muito importante para toda a população, haja
vista o fato de ser construído ao ar livre. Tendo como base o rito, seu modo de
construção também representava a dimensão de seu alcance. Por esses termos,
podemos entender quando Lucas diz que esse é um lugar aberto para o “espaço
exterior” (AVEJ, p. 32). Além do mais, o teatro grego tinha uma coisa interessante,
que era o fato de sua estrutura não pressupor uma cúpula fechada, pelo contrário,
sua arquitetura se confundia e funcionava como extensão da própria cidade.
Como esse era um espaço sagrado, como todo ritual, compunha gestos
determinados, palavras determinadas e apenas pessoas determinadas possuíam o
poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade. Aliás,
durante certo tempo, apenas os homens representavam os papéis, usando
93
Cf.; BRANDÃO, Junito de Souza. O teatro grego. Rio de Janeiro: Ed. TAB, 1980.
62
máscaras para identificar a imagem daquele (a) que se estava encenando. Talvez
por isso, falamos sempre em quatro personagens homens. Quer dizer, quanto ao
que podemos chamar de direito à representação, essa relação com o teatro não
aparece explicitado, mas deixa margem para a questão.
Por outro lado, ainda que o teatro grego aos poucos vá perdendo sua função
ritualística, ao menos tal qual esboçada naquele período, ele guardou sempre uma
coisa importante e que parece ser muito cara à AVEJ, os liames entre o real e o não-
real, como afirmamos no capítulo anterior. Além disso, não é por acaso que o nome
do livro é a verdadeira estória. Em suma, o fato de AVEJ alcançar o espaço do
discurso cênico é uma forma de pedir licença para se encenar o ritual94 do discurso
sobre o herói.
Antes de descrevermos o(s) herói(s) de AVEJ, dentro dos limites que chamamos
aqui de diluição, é necessário retomarmos a fala de Feijó, que traz algo importante
sobre o herói ao remontar ao estudo de Hegel. Ele afirma que Hegel ao questionar o
herói teria chegado à conclusão de que esse “indivíduo histórico universal” foi aquele
que compreendeu as condições de seu tempo e procurou-as encarnar na sua
liderança aquilo que sua época determinasse. O herói então estaria relacionado
assim estritamente a um contexto cultural a partir do qual ele jamais poderia ser
desvinculado, pois apenas adquire existência a partir dele. Feijó acrescenta que a
cisão provocada por Hegel foi grande porque permitiu atenuar outra forma de
entender o discurso sobre essa figura95.
Em outras palavras, para Hegel não era bem o herói que constituía o mundo, mas o
mundo sociocultural que produzia a figura deste, tanto em referência aos seus
limites, quanto às suas possibilidades. Talvez as linhas entre esses espaços sejam
tão estreitas que acabam mesmo se confundindo e se diluindo numa só, até porque,
as relações entre causa e efeito são sempre muito complicadas. Quanto à AVEJ,
esse aspecto ajuda a desvelar pontos importantes quanto ao imaginário que cerca a
94
Não podemos, ainda, esquecer que Evelina Hoisel já havia feito referência ao ritual da festa como
recurso estético por meio do qual permitiria representar as apreensões de uma cultura
dramaticamente hiperbólica e estilhaçada. Além do mais, a palavra estilhaço recorda algo que a partir
de um gesto de violência, que pode ser proposital ou não, perdera sua antiga unidade. Quando o
assunto é AVEJ, a unidade, ao menos como convencionalmente conhecemos, aparece como um
conceito meio perdido mesmo. Sobre esse aspecto, suas páginas são grande exemplo disso.
HOISEL, op. cit. 32-47.
95
FEIJÓ, op. cit. 35-36.
63
imagem do herói. Nesse caso, podemos falar não apenas de um, mas de vários
heróis, porque sempre que em AVEJ alguma ação de bravura, ou coisa parecida, é
requerida, deparamo-nos com a apropriação de um imaginário muito particular.
Basta recordarmos que AVEJ joga muito com a questão do tempo. Em vários
desses jogos atemporais, nos damos às vezes conta de que o imperialismo romano
é também o imperialismo americano (p. 70); que existem vietcongues comandados
por Ho-Chi-Min (p. 64); que em Jerusalém existe TV e se assiste novelas (p. 75);
que Flash Gordon pode aparecer a qualquer momento (p. 59); que o Capitão Marvel
pode estar em algum lugar gritando Shazam! (p. 28); que Tyrone Power é um Deus,
e Clark Gable outro não menos que ele; e ainda que tudo está completamente
negligenciado pelo poder da ditadura96:
AVEJ, p. 34.
Fica claro assim que existe um imaginário que vai além do imaginário romano, pois
as cenas vão sendo cruzadas como um jogo que procura atenuar também outro
espaço sociocultural. Em parte, esse imaginário aparece relacionado à realidade que
se esboçava nos anos 1970, que vivia a contradição de lidar com o imperialismo
econômico dos Estados Unidos, além de ter de aprender a conviver com as novas
transformações que explodiam no contexto cultural.
97
HOISEL, op. cit. 116.
65
Na seqüência, não mais João aparece brincando/lutando como sendo ele mesmo
um herói, mas passa a assumir então a feição de outro super-herói: O Capitão
Marvel Júnior:
98
Cf.: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a educação. Trad. Marcos
Vinícius Mazzari. São Paulo: Duas cidades, Ed. 34, 2002.
66
A cena acima lembra uma afirmação de Feijó ao discorrer sobre o herói. Ele coloca
que todo herói demanda em certa medida um fascínio por identidade. Talvez mesmo
por isso, como afirma Feijó, “a questão do herói atravessa os tempos numa
sobrevivência surpreendente”99. Em AVEJ, os personagens, conhecidos das
histórias em quadrinhos e dos desenhos animados, precipitam e orientam a
evolução da cena, a magia do duplo, as aventuras extraordinárias, certamente,
heróis assimilados, mas também heróis identitários. Tais personagens são figuras
que combinam cada vez mais intimamente, e de forma variada, o excepcional e o
habitual, o ideal e o quotidiano, passando a oferecer-se à identificação de pontos de
apoio mais e mais realistas.
Esses pontos de contato com o imaginário sociocultural dos media que permite à
AVEJ a explosão e exposição de imagens que delineiam os diversos heróis. Até
mesmo quando esses heróis assumem uma posição histórica ou religiosa
determinada, as referências ao mundo dos mass media são suscitadas. O herói
histórico ou religioso é convidado a remontar a outro papel, ou talvez eles já estejam
ali a encená-lo. Em AVEJ, é difícil demarcar o que é fato histórico, ficção ou discurso
bíblico e encenação, todos esses elementos são montados como um grande
espetáculo.
99
FEIJÓ, op. cit. p. 10.
67
Depois, como se fosse o próprio Cecil B. de Mille sobre uma grua (como um
deus ex-machina) e com um megafone junto à boca, Jeová disse: “Moisés:
Levanta o teu cajado e estende a tua mão sobre o mar e fende-o, para que
os filhos de Israel (povo que é meu filho dileto) passem pelo meio do mar
em seco. E eu serei glorificado em Faraó e em todo o seu exército, nos
seus carros e nos seus cavaleiros, e os egípcios saberão que sou o
Senhor”. (AVEJ, p. 83)
levou, interpretado por Clark Gable, ou ainda Gary Cooper, em Sangue da terra.
Através dessa descrição, a relação logo se confirma:
Morin em seu estudo sobre as Estrelas, de cinema, diz algo que ajuda a entender a
apropriação dessas figuras cinematográficas. Ele afirma que, ao seu modo, a
história das estrelas remonta à história dos deuses, afinal de contas, as estrelas
sofreram um processo semelhante de divinização, cujo corpo e substância foram
magnificadas em deuses e deusas. Dai demanda a afirmação do autor: “como
determinados deuses do panteão da Antigüidade se metamorfoseavam em deuses-
heróis da salvação, as estrelas-deusas humanizam-se, tornam-se novos mediadores
entre o mundo maravilhoso dos sonhos e a vida quotidiana”103.
Segundo Morin, a divinização da estrela ocorre no limite entre a tela e a terra, não se
trata apenas de um ator ou atriz. A estrela é uma figura que na reciprocidade entre
103
Edgar Morin fora um dos poucos estudiosos a efetuar uma leitura da estrela cinematográfica, já
nos anos 1950 (trabalho publicado no Brasil nos anos 1970), sem se preocupar em desmascarar a
ideologia da cultura de massa. Sua intenção, naquele momento, era ler através da antropologia e da
sociologia a “eflorescência histórica da economia capitalista” a partir do fenômeno da Estrela. Para
isto, ele não via problema algum em relacionar arcaísmo e modernidade. Morin, entendia o herói
como aquele que atua “a meio caminho entre os deuses e os mortais”, que “ambicionam tanto a
condição de deuses quanto aspiram a libertar os mortais de sua miséria infinita”. Ele diz que “na
vanguarda da humanidade, o herói é o mortal em processo de divinização”. A Estrela, portanto,
também era um herói, sobretudo, mítico. Ibidem, p.20-26.
69
Morin acrescenta que a estrela apenas se torna possível a partir do rito presente no
seu quotidiano. O processo de divinização significa a adesão de uma vida de
projeções. Projeção que emerge na relação entre o espelho dos sonhos e a
realidade tangível. Portanto, sua divinização deriva dos pontos de contato entre o
ser estrela e os mortais (público, fãs etc.) e disso equivale não a eliminação do culto,
mas seu incentivo. E a partir daí, toda uma rede de canais conduz a homenagem.
Dessa imagem soube aproveitar AVEJ para a criação de seu(s) herói(s), não apenas
por esse(s) herói(s) guardar(em) feições divinizadoras, mas por sua figura
representar as apreensões da nova sociedade que se delineava. Afinal de contas,
do que vimos até aqui, o herói é principalmente uma figura cultural, e como tal, essa
imagem aparece marcada pelo jogo entre o religioso e o profano, o divino e o
humano, a tela e a terra, pois o Salvador que pretendiam fazer funcionar deveria ser
facilmente assimilado pelas pessoas.
Desse modo, para que esse objetivo fosse atingido, era necessário que a imagem
do salvador fosse adequada às apreensões culturais de sua sociedade. E como toda
criação de um herói obedece a um ritual que cerca sua biografia, como mencionado
pelos evangelistas e confirmado por Joseph Campbell, não seria diferente com este.
A primeira cena delineada descreve a concepção do Salvador, que não é muito
diferente das outras histórias descritas anteriormente (Buda, Krishna etc.). Para
tanto, delineia-se a apropriação por um Deus do corpo de uma Virgem. Eis a cena
que se desenrola:
104
Ibidem, p. 25.
70
Se bem que a Virgem não faz aí o tipo mulher vamp, aquela que conservava em sua
estrutura o apelo destruidor e bestial da sexualidade. A Virgem, tal qual descrita
71
nesta cena, incorpora apenas parte do sex-appel da vamp. Sua figura representa a
síntese entre o bom e o mau: a mulher de aparência pura, mas que insinua atitudes
ousadas: a good-bad-girl105. Entre uma e outra, acrescenta Morin, exprime-se da
forma mais imediata “a força e a ternura, a inocência ou a experiência, a virilidade ou
a bondade, e sobretudo algo de sobre-humano, uma harmonia divina, aquilo a que
se chama beleza”106. Então se lê que “a bela e o belo se atraíram mutuamente”
(p.58).
105
Ibidem, p. 15-16.
106
Ibidem, p. 92.
72
Em todo caso, essa passagem pode ser entendida como a fase do nascimento do
herói, momento em que o herói não pode mais ser capaz de ver Flash Gordon e seu
companheiro Dr. Zarcov confabulando sobre a possibilidade e as estratégias para
salvar Jerusalém. Ora, Flash Gordon foi um famoso personagem das histórias em
quadrinhos que tinha suas aventuras delineadas no Planeta Mongo. Nessa cena, o
herói recém-nascido sugere que iria participar de mais uma das aventuras desse
grande herói (Deus?) contra a prepotência e o autoritarismo do poderoso Imperador
Ming108.
107
ELIADE, op. cit. p.108-109.
108
FEIJÓ, op. cit. p. 88.
109
BAHIANA, op. cit. p. 251.
73
Depois dessa aparição, o Cristo (moreno de olhos verdes, ou louro de olhos azuis)
surge na cena apoteótica do Sermão da Montanha, no capítulo 29, intitulado
sugestivamente de “E ESTE É O TEXTO (NÃO APROVEITADO) ACERCA DOS
MOMENTOS QUE PRECEDERAM O REVOLUCIONÁRIO SERMÃO DA
MONTANHA” (AVEJ, p. 105). E como reflexo de uma figura concebida numa cena
profanadora, O Cristo é apresentado tendo suas aptidões humanas ressaltadas:
110
SANTIAGO, op. cit. 148.
111
Ibidem, p. 155.
112
Ibidem, p. 161.
75
É como um grande rito, tal qual uma estrela, o herói aparece ali, no momento maior
de eficácia mágica, entre a tela e o templo. O espetáculo capta o seu esplendor e
sua glória através do apogeu da festividade. É aí, segundo Morin, que o mito
começa, no coração da realidade, lugar onde a aparência, a beleza e a eternidade
fazem reinar o mito. Morin acrescenta então que as estrelas, divinizadas, não são
apenas simples objeto de admiração, ”são também motivo de culto. Constitui-se ao
seu redor um embrião de religião... E, no meio das multidões cinematográficas,
destaca-se a tribo dos fiéis portadores de relíquias, consagrados à devoção, os
fanáticos ou fãs”113.
Esse mesmo aparato é construído para contar a última façanha do herói, intitulada
“A FANTÁSTICA MORTE DE JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR, QUE CONOSCO
AINDA VIVE E REINA”. A morte (ou partida) aparece na biografia do herói como
momento derradeiro e necessário. Em busca do absoluto, ele acaba por encontrar a
morte, mas isso não significa que ele foi destruído pelas forças hostis do mundo,
113
MORIN, op. cit. p. 50.
76
Segundo Campbell, na morte do herói é resumido todo o sentido de sua vida, motivo
pelo qual é desnecessário dizer que “o herói não seria herói se a morte lhe
suscitasse algum terror: a primeira condição do heroísmo é a reconciliação com o
túmulo”115. A passagem descrita a seguir narra a morte de Cristo através da
crucificação, apresentado por meio de uma visão apocalíptica e visceral de final dos
tempos. Lê-se:
A morte surge com a intenção de afirmar nessa última façanha do herói a sua
natureza dupla: humana e divina. O fim derradeiro apresenta-se como a forma
completa e mais profunda de sua humanidade – ele luta heroicamente contra o
mundo, mas a morte irá abatê-lo. Se esse é o fim do herói? A resposta é não. A
114
Ibidem., p. 112-120.
115
CAMPBELL, op. cit. p. 339.
77
morte faz reviver o herói em sua natureza sobre-humana, divinizado agora de fato a
partir da ascensão à imortalidade. O herói vive, pois, utilizando as palavras de Morin,
“somente após o sacrifício, no qual expia sua condição humana, é que Jesus se
torna Deus”116.
Talvez essa seja a principal ligação desse texto com a tradição: a vontade
desenfreada de narrar as diversas histórias. Contraditoriamente, através dessa
mesma apropriação pelo narrar, AVEJ fragmenta-se e fragmenta a figura do herói. O
herói é múltiplo, feito de pedaços de outros heróis: super-heróis, superstars, anti-
heróis, guerreiros, príncipes, monstros etc. Por isso é difícil determinar e qualificar
precisamente o(s) herói(s) de AVEJ: religioso, massivo, corajoso, alienado,
ideológico, mitológico, humano, extravagante, carnal... Em suma, AVEJ é um texto
estranho, e seu herói também.
116
MORIN, op. cit. p. 117.
78
José Gil.
Sob muitos aspectos, AVEJ joga com o conceito de obra de arte e, por conseguinte,
com o valor cultual presente nesse mesmo conceito. Para uma narrativa que
pretende encenar o ritual de criação da figura do herói como se estivesse no teatro
grego, soa meio contraditório, por isso mesmo transgressor, que a narrativa
apresente-se perpassada por história em quadrinhos e pelo universo
cinematográfico. Mais ainda, soa estranho que essas linguagens viessem a assumir
autoridade de ler, expressar e explicar o discurso sobre o mito do herói.
Uma coisa é certa, AVEJ procura atenuar, de forma muito explícita, o efeito de
estranhamento no limiar do discurso transgressor. Transgressão que joga com a
dialética arte/não-arte, erudito/popular, hermético/não-hermético, autor/leitor, enfim,
que pressupõe em primeiro plano o debate sobre esses pares de oposições
convencionais que têm orientado, principalmente nos anos 1970, o questionamento
sobre o conceito de arte, sua função e seus territórios. Afinal, AVEJ se propõe a
realizar o culto do herói inserindo linguagens até então consideradas menores.
Fica claro também que AVEJ é uma narrativa profanadora, elaborada a partir do
questionamento do discurso religioso e também literário. Religioso, porque se arrisca
a efetuar uma bricolagem de uma figura singular para a história da humanidade
como o Cristo. Literário, porque admite a presença de outras linguagens através do
recurso à reprodução, à cópia e mesmo à fragmentariedade.
79
Décio Torres Cruz destacou, em O pop: literatura, mídia e outras artes117, dentre
outras produções, AVEJ como um discurso profanador e desconstrutor que
problematiza o confronto entre arte e não-arte. Para esse autor, essa foi a forma de
AVEJ desvelar o mundo através de um jogo de intensa interpretação a partir do qual
o estético é apenas parte dessa leitura. O questionamento do discurso artístico-
religioso aponta assim para um aspecto que permeia o centro do debate cultural
naqueles anos: o culto à aura artístico-religiosa. Desse modo, características que
cercam a aura, a exemplo da “contemplação”, são constantemente referenciadas
nesse livro:
AVEJ, p. 35.
117
Cf.: CRUZ, Décio Torres. O pop: Literatura mídia e outras artes. Salvador: Quarteto, 2003, p. 199.
118
Cf.: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Trad.
COUTINHO, Carlos Nelson. In. LIMA, Luiz Costa. (org.) Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
119
Em momento algum Benjamin utiliza o termo mass media, ele prefere falar em novos meios de
comunicação.
80
muito fácil definir o que era uma obra de arte quando se tinha todo um caminho a ser
percorrido na busca pelo chamado hic et nunc, em outras palavras, sua unicidade.
Reconhecer a unicidade era, no final das contas, também dizer que determinada
obra era autêntica e esse aspecto era assumido como algo importante. Entretanto, a
arte passou a ocupar um lugar tão demarcado, que apenas os privilegiados
possuíam o poder, quase que misterioso, de presentificar e reconhecer a aura da
obra. Misterioso porque esta aparece como tributária dos cultos mágico-religiosos e
da percepção espiritual-transcendental que emanava dos objetos feitos para isso, tal
qual mencionamos sobre os princípios que delineavam o teatro grego. Na verdade,
essa percepção permitiu, no Renascimento, o reconhecimento da unicidade a partir
da presença empírica do artista. O gênio criador do artista naquele momento
passava a orientar o conceito de arte pura.
Daí Benjamin afirmar que “na época da reprodutibilidade técnica, o que é atingido na
obra de arte é sua aura”122, pois toda a função da arte é subvertida ao ponto de
questionar a sua “existência parasitária”. Ao invés do individual, o coletivo, ao invés
do cultual, o cultural, ao invés do erudito, o massificado. E não é apenas isso, “as
120
Ibidem, p. 224.
121
Ibidem, p. 225.
122
Ibidem, p. 226.
81
Exemplo desse discurso é a fala de Antonio Cândido num texto de 1973, intitulado
Literatura e Subdesenvolvimento. Nesse texto, ele profere um discurso nacionalista
centrado muito mais nos valores conservadores da arte e da literatura. Ele coloca
que, na relação com o outro, no caso do Brasil, dois momentos podem ser
destacados: o primeiro diz respeito à noção de “país novo”, fase do que chama de
“consciência amena de atraso”, o segundo, relaciona-se ao momento vivido, cuja
“noção de país subdesenvolvido” é o foco, fase denominada por ele de “consciência
catastrófica de atraso”127.
123
Outros aspectos expostos nesse texto como, por exemplo, o seu teor manifesto contra o fascismo
escapa ao nosso interesse imediato aqui nesse trabalho, assim procuramos apreender apenas os
liames que dizem respeito ao anúncio das mudanças de perspectivas com relação ao conceito e
função da arte. Ibidem, p. 244.
124
Cf.: ADORNO, Theodor W. & Max Horkheimer. Indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas. In. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio
de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
125
Ibidem, p. 131.
126
Ibidem, p. 134.
127
Essa distinção ajudaria a compreender, nas palavras de Candido, aspectos fundamentais da
criação literária, definidas a partir do combate, no primeiro caso, à “consciência amena de atraso” e,
no segundo, à “consciência catastrófica de atraso”. Neste último, imersa numa etapa folclórica de
comunicação oral, a grande massa, quando alfabetizada, seria absorvida pela indústria cultural:
história em quadrinhos, fotonovelas, programas televisivos etc. Essa catequização às avessas, como
Candido chama, se daria através da imposição de valores duvidosos dirigidos a públicos inermes que
seriam bem diversos dos que o homem culto busca na arte e na literatura. Devemos lembrar que o
discurso de Candido aparece como datado: contexto da implantação do programa MOBRAL
(Movimento Brasileiro de Alfabetização), estabelecido pela lei nº 5379, de 15 de dezembro de 1967.
Cf.: CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Disponível em:
http://www.pacc.ufrj.br/literaria/litsub.html. Acesso em: 20 jan. 2007. Para aprofundar esse debate,
82
Candido tem razão ao referir que a relação com o outro no Brasil sempre se deu por
meio da noção de atraso cultural. No entanto, as saídas apontadas talvez não
ajudassem tanto, uma vez que reservava à arte e à literatura a tarefa de resistir à
invasão milionária e alienante dos meios de comunicação de massa. Essa forma de
pensar os mass media acarretou às linguagens como telenovelas, fotonovelas e
história em quadrinhos, uma diferenciação marcada pela alienação e pela falta de
valor estético intelectual, pois passaram a ser entendidas como linguagens menores,
se comparadas à arte e à literatura.
130
“não permite pensar nem refletir sobre o que está acorrendo” . Afinal, pergunta
Jofré, “como pode haver realização humana numa atividade tão mínima como ler
história em quadrinhos?”. Uma coisa, portanto, parece certa para esses autores “os
quadrinhos são uma arma” 131.
AVEJ, p. 46.
130
Ibidem, p. 97.
131
Ibidem, p. 92-93.
132
Aliás, o quadrinho Cinco por Infinitus chega a ser referenciada pelos autores chilenos. Ibidem, p.
139-140.
133
Cf.: GARCÍA CANCLINI. Nestor. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Op. cit. 2006,
84
Para esse autor, os quadrinhos são o que se pode chamar de um lugar fronteiriço,
uma vez que, nesse espaço, dialogam o culto, o popular e o massificado. Ele
acrescenta que se nos quadrinhos interagem personagens representativos de partes
mais estáveis do mundo, com figuras literárias e do meio massivo, esta linguagem
não faz mais do que reproduzir o real. Talvez as afirmações de García Canclini
possam confirmar bem mais as apropriações de Solha.
Quer dizer, não fora dito ainda aqui, mas existe a possibilidade dessas apropriações
serem de um autor personagem. De certo que AVEJ poderia, nesse caso, ser
interpretada como um caderno de anotações de leituras de um autor, logo permearia
as apreensões de uma escrita autobiográfica135. Mas uma coisa é certa, o assunto
quanto a esse eu-autor tem relação também com a questão da aura, pois esse
personagem vive no limiar entre o culto ao gênio artístico e a apropriação da cópia e
da reprodução.
Na verdade, esse eu-autor aparece poucas vezes, mas está lá. É difícil perceber sua
presença porque as cenas nesse livro, como já destacado, são como transposições
de imagens e acontecimentos. E como esse eu-autor não habita o espaço do teatro
grego, torna-se ainda mais difícil identificá-lo. Mas é ele quem estabelece a relação
entre o conjunto de textos ali expressos. É ele quem torna possível o impossível
desse diálogo, pois que surge como aquele que cria (?), elabora (?) e cola (?) os
fragmentos que compõem o teatro planetário.
134
Ibidem, p. 341.
135
Para a verificação das transposições de cenas em que esse eu (autor?) aparece pode-se verificar
os capítulos 08 (páginas 51-55), capítulo 22 (páginas 90-92), capítulo 30 (páginas 113-114), capítulo
37 (páginas 133-137).
85
E, de fato, eu sentia que não era o gênio motor que produzia tudo aquilo.
Sentia que tinha entrado numa espécie de... memória do mundo (grifo
nosso), numa espécie de... imaginação exterior... e independente de mim
mesmo. Eu estava num daqueles que Jung chamava de Grandes Sonhos. E
tive outros. Num deles eu me vi numa rua de Nova York. Na versão original
deste livro (grifo nosso) juntei esse sonho ao que Lucas tivera, da
passagem da muralha. Em vez de Nova York botei Jerusalém como já
desaparecida no desastre de 70. Lucas andava na calçada, normalmente,
através de um tráfego intenso de mulheres, até que chegou a uma
constatação que o fez esquecer de tudo o mais, embora não percebesse,
no Lucas que via caminhar na rua, nenhuma demonstração de espanto:
“Mas eu estou sonhando!”... Perplexo, acordei entendendo que tivera uma
Revelação. Lucas, entretanto, não acordou. (AVEJ, p. 52)
O autor vive a certeza de saber que não é ele quem cria porque tudo já fora criado:
todas as informações, todas as certezas e todas as incertezas. Se esse autor é
Solha? O próprio texto procura instigar essa pergunta – como se pudéssemos obter
uma resposta clara. O fato é que é difícil afirmar aquilo que não aparece expresso.
Michel Foucault afirma, em O que é um autor?, que “não é possível fazer do nome
próprio do autor uma referência pura e simples”136. O nome do autor representa,
136
Cf.: FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Trad. Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro.
Vega, Passagens, [1992], p. 42.
86
sobretudo, uma função no corpo do discurso, servindo para caracterizar certo modo
de ser desse discurso137.
AVEJ, p. 25.
AVEJ brinca com a figura aurática do autor. Constrói uma escrita que deixa
vestígios, tais quais marcas de anotações de leituras, grifos que permitem
reconhecer os rastros de uma escrita. Dessa forma que AVEJ aceita que as
seguintes perguntas intervenham: quem cria os vestígios? Quem escreve? Quem
cola?138 Esse “eu” que se inscreve nesse discurso fragmentado descreve um
movimento duplo na sua própria inscrição: ainda que sua presença seja autoral, ela
apaga-se do discurso como autor e aparece como leitor. Mas, ao mesmo tempo,
reenvia o interesse pelo nome instaurado139, pois as cenas que se superpõem aos
acontecimentos e fragmentos de AVEJ não deixam afirmar a ausência de sua figura,
afinal, existem riscos, rasuras e grifos140 que não permitem tal esquecimento.
137
O discurso para Foucault é tomado como uma instância de poder: “o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder que
queremos nos apoderar”. Cf.: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collègge
de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Edições Loyola, 2001.
138
Ibidem, p. 78.
139
Seria essa a tão propalada morte do autor? Ora, o autor não deixa de existir, afirma Foucault, “o
autor deve apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos”. Esse é o jogo
da função autor. Ibidem, p. 80-81.
140
Tem-se que para Jacques Derrida, em Glossário de Derrida, a rasura aparece como elemento
regulador da polissemia. A rasura pretende estabelecer “uma lógica da suplementariedade na própria
sintaxe em que se inscreve”. Cf.: SANTIAGO, Silviano (sup.) Glossário de Derrida. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1976, p. 74.
87
Esse é o sentido ritual da escritura desse livro, cruza gêneros fazendo conviver o
erudito com o popular, o culto com o massificado, o autor com o leitor, enfim,
experimenta deslocar esses lugares. Em meio a tantos poderes oblíquos, constata
García Canclini, responder ao que é arte não diz de uma questão apenas estética. É
necessário levar em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção
do jogo cultural, pois são nesses lugares que se pode ter uma noção das relações
estabelecidas entre os cruzamentos e seus possíveis (não mais impossíveis)
diálogos.
141
Cf.: COMPAGNON, Antoine. O trabalho de citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996, p. 11-30.
142
Cf.: SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In. Uma literatura nos
trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Para o aprofundamento
do conceito de entre-lugar, logo de suplementariedade, foi-nos importante consultar a fonte de
referência de Silviano no texto de Jacques Derrida. Cf.: DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o
jogo no discurso das ciências humanas. In. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques
Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2005.
143
Ibidem, p. 21.
144
Ibidem, p. 26.
88
García Canclini afirma que apenas dessa forma se pode dar conta do estudo sobre
os processos de hibridação. Afinal de contas, “como analisar as manifestações que
não cabem no culto e no popular, que brotam de seus cruzamentos ou em suas
145
margens?” . Resta-nos então assumir a tais manifestações enquanto poderes
oblíquos, lugares que tornam possível precisar as articulações entre a cultura e o
poder.
É na trama dessa obliqüidade, afirma esse autor, que se encena a perda do autor e
do roteiro. Espaço no qual se torna difícil, senão impossível, falar de unidade (ou,
como prefere Benjamin, unicidade). Em virtude da descrença nos grandes relatos
que permitiam a reorganização e a hierarquização dos períodos e dos estilos, o
roteiro desfaz-se enquanto história para assumir a “co-presença tumultuada de todos
146
os estilos” . Desse modo, ao autor não resta mais do que experimentar a
descontinuidade do mundo e dos sujeitos147.
Já foi dito aqui que AVEJ é uma produção estranha, e cada vez mais se confirma
essa assertiva. Ela vive no limiar mesmo do entre-lugar: cultua a aura e o gênio
artístico, mas copia e reproduz; encena o culto ao herói em pleno teatro grego, mas
profana o corpo desse herói construindo-o a partir de outros supers. AVEJ é um ser
de fragmentos, um corpo em/de pedaços, pois habita o culto e o popular, o erudito e
o massificado. Em suma, brinca com as fronteiras que foram impostas a esses
145
Cf.: GARCÍA CANCLINI. Nestor. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Op. cit. 2006, p. 283.
146
Ibidem, p. 329.
147
Para esse autor, então, no jogo das descoleções surgem os chamados gêneros impuros, lugares
que desde seu nascimento abandonaram o conceito de unidade e assumiram a intersecção entre o
visual e o literário, entre o culto e o popular. Fazendo parte desses gêneros estariam inseridas as
histórias em quadrinhos. Tal qual evidenciado por Solha, García Canclini reconhece a potencialidade
da visualidade dos quadrinhos: “Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar outras
ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de
quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo
que pode ser condensado em imagens estáticas”. Ibidem, p. 339.
148
Ibidem, p. 305.
89
Essa textualidade, acredita Jameson, pôde ser confirmada de forma muito visível –
sem incorrer no perigo de estar sendo catastrófico –, observando as transformações
ocorridas na arte, na arquitetura, na história, nos processos revolucionários e,
principalmente, na própria forma de pensar a subjetividade. E, de uma forma ou de
outra, todas essas transformações levaram-no a crer que estavam relacionadas à
149
Cf.: JAMESON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In. A lógica cultural do capitalismo
tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 2000.
150
Para um estudo mais aprofundado sobre as opiniões de Frederic Jameson sobre a crise quanto
aos prognósticos sobre o futuro e o surgimento de uma nova dominante cultural quanto capitalismo
tardio, tendo nos anos 1960 como momento chave, foi consultado o texto Periodizando os anos 60.
Nesse texto, ele faz um esboço histórico desse momento, tentando traçar, em termos de
periodização, as transformações em relação à história da filosofia, as práticas políticas
revolucionárias do período e como tudo isso aparece relacionado ao que se produziu em termos
culturais a partir da emergência de uma nova fase de ciclo econômico. Cf.: JAMESON, Frederic.
Periodizando os anos 60. In. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Pós-modernismo e política. Rio
de Janeiro: Rocco, 1990.
151
Ibidem, p. 28.
90
nova fase do capitalismo (tardio) que se processava agora em âmbito global, é claro,
sempre com restrições quanto à relação dominador/dominado.
Isso não quer dizer, afirma Jameson, que toda a produção cultural na lógica do
capitalismo tardio, também chamado por ele de período pós-moderno, apareça
caracterizado como tal. Mas parece existir, segundo este autor, “um campo de forças
em que vários tipos bem diferentes de impulso cultural têm que encontrar seu
caminho”152. Para tal discussão, Jameson destacou algumas características que
constituem o pós-moderno: uma nova falta de profundidade que encontra lugar na
cultura da imagem e do simulacro, e uma nova temporalidade que aponta para uma
estrutura esquizofrênica153.
152
Ibidem, p. 31.
153
Jameson destaca ainda mais duas características, no entanto, nos parece que estes já constituem
o cerne de todo o discurso de Jameson, a saber: “a profunda relação constitutiva de tudo isso com a
nova tecnologia” e “a missão da arte política no novo e desconcertante espaço mundial”. Ibidem, p.
32.
154
Ibidem, p. 35.
155
Esse termo fora utilizado por Guelfi para referir-se às construções narrativas de Roberto
Drummond, considerando deste autor as produções do chamado Ciclo da coca-cola. Cf.: GUELFI,
Maria Lúcia Fernandes. O tempo do clichê e a estética do olhar na ficção contemporânea. Revista
Ipotese, Juiz de Fora. Disponível em: http://www.revistaipotesi.ufjf.br/volumes/8/cap011.pdf Acesso:
12 set. 2006.
91
Em AVEJ, as figuras humanas são evocadas de modo indireto mesmo, ou seja, por
meio de simulacros de imagens que as identificam: heróis, super-heróis e
superstars. Guelfi chama a esse modo de relação com as linguagens de
teatralidade, percebida como deslocamento e diluição da auto-identidade da obra.
Assim, a autora define teatralidade como “contaminação de condições exteriores, de
fora da obra, pela qual se substitui a idéia de obra em si pela idéia de obra-como-
processo”156.
Dessa relação talvez derive a impossibilidade de definir de forma precisa AVEJ: trata
de história, mas não é um romance histórico, não diz de uma relação com o
documental; trata de super-herói, mas não é uma história em quadrinhos, apesar de
conter uma porção delas; trata de religião, mas não é um livro catequista; trata de
guerra, mas não conta a história dessa guerra; trata de superstar, mas não é um
filme de Hollywood; enfim, trata de muita coisa, mas parece não admitir nenhuma
definição.
156
GUELFI, op. cit. 124.
157
Ibidem, p. 120.
92
Disto deriva então o que Jameson chamou de estética esquizofrênica. Uma estética
que se apresenta como “um eterno presente aos olhos”158, congelada na imagem
em que a realidade se transformou. A estética esquizofrênica caracteriza-se por não
ter a experiência da continuidade temporal. “Com a ruptura da cadeia de
significação, o esquizofrênico se reduz à experiência dos puros significantes
materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não relacionados
no tempo”159, explica Jameson.
158
Ibidem, p. 38.
159
Ibidem, p. 52.
93
AVEJ, p. 38.
No entanto, essa falta de profundidade foi tomada também por Jameson como
acrítica. Ele diz que se o sujeito não consegue apreender o complexo temporal, “fica
difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra
coisa que não ‘um amontoado de fragmentos’ e em uma prática da heterogeneidade
a esmo do fragmentário, do aleatório”160. Pergunta-se então: Poder-se-ia constatar
alguma criticidade nas apropriações e na textualidade de AVEJ? De certo que todo o
presente trabalho já é uma resposta afirmativa a essa pergunta161.
Na epígrafe citada no início deste capítulo, José Gil, escritor português, no texto
Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro, afirma que é “nos períodos
transitórios, de intensa mudança ‘cultural’, que surgem as mais variadas
160
Ibidem, p. 52.
161
Tânia Pellegrini, no texto Ficção brasileira contemporânea, opta, referindo-se à fala de Jameson,
por assumir a ficção contemporânea como uma assimilação sem resistência. Cf.: PELLEGRINI,
Tânia. Ficção brasileira contemporânea: assimilação ou resistência. Revista Novos Rumos, ano 16,
n° 35, 2001.
94
aberrações”162. Nesse texto, José Gil procura demonstrar como os monstros, seja de
qualquer ordem, constituem justamente momentos de exacerbação de conflitos. De
certo, segundo ele, que o fim do século XX não escapa a tais monstruosidades,
afinal, é nesse instante que os monstros parecem mais espreitar o dia-a-dia da
sociedade.
AVEJ é uma dessas aberrações de que nos fala este autor. Aberrante porque AVEJ
procura questionar a estabilidade da identidade, ameaçada desse modo, como
afirma Gil, de indefinição. A identidade textual, a identidade do herói, a identidade
literária, a identidade do autor, enfim, AVEJ alcança o espaço da heterogeneidade.
Aliás, Jeffrey Jerome Cohen escreve, em A cultura dos monstros: sete teses165, que
para entender a cultura por meio dos monstros que ela gera é necessário ter em
conta que o monstro é: 1. um corpo cultural que nasce nas encruzilhadas e habita os
deslocamentos; 2. O monstro sempre escapa porque é um ser de fronteiras,
portanto, não propício ao fechamento, ele é suplementar; 3. O monstro resiste a
qualquer classificação, pois é a própria crise das categorias; 4. o monstro representa
a diferença instaurada; 5. O monstro cruza fronteiras que não podem, nem devem,
162
Cf.: GIL, José. Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In. SILVA, Tomaz Tadeu
(org). Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p. 172.
163
Ibidem, p. 170.
164
Ibidem, p. 170.
165
Cf.: COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In. SILVA, Tomaz Tadeu. (org).
Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p.25-55.
95
Respondendo a essa pergunta, temos que se torna cada vez mais difícil definir o riso
da festa de AVEJ como algo acrítico, pois seu valor demanda justamente da mistura
de discursos que encerra o jogo da suposta acriticidade. Nesse sentido, se existe
algo importante no ritual da festa de AVEJ, é a incorporação das linguagens de que
se apropria. Talvez essa forma de apropriação aponte para uma diversa maneira de
pensar o diálogo com o outro. Vejamos a especificidade de AVEJ no que diz respeito
aos acontecimentos que marcam o final dos anos 1970.
166
Donna J. Haraway levantou algumas questões quanto à metáfora dos monstros, no seu O
166
Manifesto ciborgue . Ela começa dizendo que seu texto é um mito político, pleno de ironia, pois para
esta autora, a ironia tem haver com contradições, com a vontade de manter “juntas, coisas
incompatíveis, porque todas são necessárias e verdadeiras”. A ironia é o humor sério, diz ela.
Haraway afirma ainda que uma narrativa ciborgue constitui toda uma estratégia retórica e política,
permitindo pôr em jogo os territórios da produção, da reprodução e da imaginação ontológica. Uma
narrativa ciboguiana abre a possibilidade de se tecer questionamentos sobre as identidades. Cf.:
HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século
XX. In. SILVA, Tomaz Tadeu. (org). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
167
Cf.: SANTIAGO, Silviano. Democratização no Brasil. In. Cosmopolitismo do pobre: crítica literária e
crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
168
Ibidem, p. 134.
96
Com certeza, não se trata de um mero modismo, mas de uma exigência que
a realidade contemporânea vem nos colocando: enfrentar o caos, repensá-
lo, reposicionar-se diante dele – mesmo que muitas vezes a insistente
evocação dessa palavra vise, pelo contrário, evitar tal enfrentamento e
conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanças se
169
Ibidem, p. 148.
170
Ítalo Moriconi Jr., no texto O pós-utópico, diz que esse momento identifica-se, ao contrário, como
um contexto de crise e esgotamento do sonho utópico dos projetos nacionais. Atingir o cerne do
pensamento sobre o presente significava aderir ao agora e não pressupor um núcleo essencial, nem
uma totalidade da realidade que conteria o segredo das múltiplas determinações que se esboçava. A
crença da linearidade da História, com sua expectativa otimista de avanço global, apresentava-se
como ultrapassada, o global era um fato. E esse fato também presumia, sobretudo, a afirmação da
contaminação inevitável. Cf.: MORICONI Jr. Ítalo. O pós-utópico: crítica do futuro e da razão
imanente. Revista, TB, Rio de Janeiro, jan. – mar., 1986.
171
Cf.: ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: subjetividades em tempos de globalização.
http://www.caosmose.net/suelyrolnik Acesso: 08 de nov. 2007.
97
172
Cf.: ROLNIK, Suely. Novas figuras do caos: mutações da subjetividade contemporânea. Disponível
em: http://www.caosmose.net/suelyrolnik Acesso: 08 nov. 2007.
173
Cf.: DORFLES, Gillo. O elogio da desarmonia. Trad. Maria Ivone Cordeiro. Portugal: Edições 70,
Livraria Martins Fontes, 1988.
174
ROLNIK, op. cit. p. 08.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura de AVEJ permitiu retomar e repensar, de certa forma, o que foram os anos
1970 no que diz respeito ao debate entre literatura e sociedade dos mass media.
Ressaltemos que isso sob o ponto de vista de um livro meio que esquecido do
turbilhão cultural que aí eclode. Apesar de que, essa contradição de estar inserido
em determinado espaço sociocultural, e ao mesmo tempo não destacado em relação
a este, permitiu inquirir também sobre o que deve ou não ser lembrado por nossa
memória literária. Aliás, podemos e/ou devemos lembrar de autores e produções
que ainda não foram lembrados? Talvez essa seja de fato uma pergunta implícita
em todo este trabalho.
Lembrança foi uma palavra que ajudou, sem dúvida, a repensar esse período. Isso
porque, nela parece residir a certeza de que todos os acontecimentos e fatos
existiram, e existiram mesmo. No entanto, a lembrança diz respeito ao passado, e
quando ela é contada, sabemos que a memória se atualiza sempre a partir de um
ponto de vista presente. Para quem não viveu esse período então, restou-nos a
tarefa de relê-lo através da memória daqueles que lá estiveram. Ouvimos a fala de
Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, Flora Sussekind e
especialmente Evelina Hoisel com seu recurso ao ritual da festa. Ou ainda pudemos
ler AVEJ, numa perspectiva mais ampla, através da leitura efetuada por Edgar Morin
em As estrelas. Todos, de alguma maneira, textos escritos no calor da hora.
175
Letra no original: So you feel it’s the end of the story/ Find it all pretty satisfactory/ Well I tell you my
friend/ This might seem like the end/ But the continuation/ Is yours for the making/
Yes you’re a hero.
99
Recorrer a essa memória não foi difícil, pois as transformações que se processaram
naqueles anos no âmbito cultural provocaram logo várias investigações. Afinal, não
foram poucas as mudanças. Mas é importante não esquecermos que grande parte
dessas transformações foi atribuída não tanto à emergência da indústria cultural,
mas ao quadro histórico-político instaurado com o golpe de 64: a ditadura militar. E
de forma mais específica, às mudanças provocadas com a implantação do regime
censor. Entanto, não se pôde negligenciar a constituição de uma sociedade dos
mass media, já que esta passava muito visivelmente a delinear a própria sociedade.
Nesse caso, em sua maioria, as leituras sobre o período, de uma forma ou de outra,
acabaram esbarrando na temática da indústria cultural.
176
Cf.: MATOS, Olgaria C. F. Paris 1968: as barricadas do desejo. 3 ed. São Paulo: Brasiliense,
1989.
177
Cf. HOISEL, Evelina. Supercaos atual. Disponível em: http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-08-
12mat_49419.htm. Correio Brasiliense, Brasília, Domingo, 12 agos. 2001. Acesso: 20 de out. 2006.
178
Cf.: LEMINSKI, Paulo. Catatau (prosa experimental). Curitiba, Ed. do Autor, 1975.
100
Fala-se em fim de ciclo porque, como pudemos constatar, nos anos 1970 a
sociedade dos mass media não se encontra ‘naturalizada’ como hoje. Assim, a
construção do que chamamos aqui de nova textualidade assustava, e muito. Textos
fragmentados, narrativas esquizofrênicas, a ascensão do olhar quanto ao enunciado,
flashes de imagens, enfim, eram livros estranhos. E não era apenas a sensação de
estranhamento que mexia com o conservadorismo da tradição literária, também a
temática dos valores impressos pelos media revelavam muitos questionamentos.
179
Cf.: PELLEGRINI Tânia. A literatura e o leitor em tempos de mídia e de mercado. Disponível em:
http://www.unicamp.br/iel/memoria/ensaios/pellegrini.html Acesso: 20 jan. 2007.
101
Aliás, várias vezes nesse texto utilizamos a metáfora da fronteira para designar esse
livro. Ora, as fronteiras são os lugares de simbiose entre práticas político-culturais,
mas não podemos esquecer de que em toda fronteira há arames farpados, cercas
elétricas e soldados policiando e guardando os limites. Contudo, uma coisa parece
certa, sempre existe um lugar que proporcione a passagem de um lado a outro.
Existem certas astúcias dos migrantes que possibilitam os contatos, como diz García
Canclini. Nesse ponto, talvez possamos definir Solha como um escritor astucioso.
Como já mencionado várias vezes aqui neste trabalho: AVEJ vive o limiar entre culto
e o popular, o erudito e o massificado. De certa forma, essa contradição talvez
venha confirmar ainda mais o porquê de alguns críticos considerarem Solha um
escritor pós-moderno. Afinal, o que é o pós-moderno senão um ser que vive o
momento pós-, sabendo que não pode, e talvez mesmo não consiga, se
180
Cf.: FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Frágeis Fronteiras entre arte e cultura de massa.
http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum Acesso: 25 set. 2006.
181
Cf.: ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 07.
102
182
Cf.: HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu Silva, Guaracira
Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
103
REFERÊNCIAS
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O Diário, São Paulo, Ribeirão Preto, 13 nov. 1980.
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