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Tradução e Comunicação DO CONTO E SUA TRADUÇÃO:

Revista Brasileira de Tradutores


PERCALÇOS DO GÊNERO
Nº. 18, Ano 2009

Alzira Leite Vieira Allegro RESUMO


Centro Universitário Ibero-Americano
UNIBERO
O presente trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações sobre a
alzira@post.com
tradução do conto, gênero literário que, ao contrário do romance e da poesia,
não parece ter merecido, até o momento, um olhar mais demorado dos
estudiosos da tradução literária. Nesse sentido, um argumento inicial propõe
que a tradução do conto, mais do que a do romance, implicaria o
conhecimento do gênero, a familiaridade com seus mecanismos especiais de
construção - seus aspectos estilísticos, lexicais, semânticos, retóricos,
pragmáticos e outras marcas discursivas que interferem nos processos
interpretativos do leitor. Todos esses são fatores que se combinam para
produzir um tecido narrativo de natureza concisa, fazendo do conto um
território onde não há espaço nem tempo suficientes para uma operação
criadora que se desenvolve por acúmulo. Portanto, no conto, tudo conta. A
combinação de fatores diversos - lingüísticos e extralingüísticos - exige do
leitor/tradutor (ou tradutor/leitor) uma leitura criteriosa e um olhar atento
para todo e qualquer detalhe, pois qualquer deslize no processo tradutório
poderá comprometer o texto final. Ao lado de reflexões de alguns contistas e
teóricos consagrados, serão fornecidos alguns exemplos práticos dos
percalços com que o tradutor do conto pode se defrontar e do impacto das
suas escolhas tradutórias sobre o leitor.

Palavras-Chave: conto; tradução; discurso; leitor.

ABSTRACT

This article aims at giving some considerations on the translation of short


stories, a literary genre which, as opposed to novels and poetry, apparently,
has not received a deeper study from translation studies researchers. In that
sense, an initial argument proposes that the translation of short stories, more
than that of the novel, would imply familiarity with the genre and with its
special mechanisms of construction - its stylistic, lexical, semantic, rhetorical,
pragmatic aspects and other discursive marks which interfere in the reader's
interpretation processes. All these factors are combined to produce a concise
and tight narrative tissue, where there is neither space nor time to produce a
text which develops by accumulation. Therefore, in a short story, everything
is worth considering. The combination of various factors - linguistic and
extralinguistic - requires from the reader/translator (or translator/reader) a
careful reading and a careful examination of every single detail, as any
misstep in the translation process may jeopardize the final product and
interpretation. Along with some reflections offered by some respected
storytellers and short story theorists, practical examples of the pitfalls the
UNIBERO translator may fall into and of the their impact on the reader will be
Centro Universitário Ibero-Americano discussed.
Contato
rc.ipade@unianhanguera.edu.br Keywords: short story; translation; discourse; reader.
Artigo Original
Recebido em: 18/6/2009
Avaliado em: 14/8/2009
Publicação: 30 de setembro de 2009 159
160 Do conto e sua tradução: percalços do gênero

1. INTRODUÇÃO

Quem conta um conto... E quem traduz um conto?

Ponto por ponto, traduzir um conto é lidar com uma caleidoscópica e


camaleônica estrutura, em que desenhos, cores e nuances – às vezes aparentemente
insignificantes – se misturam para tornar o todo uma rica arquitetura de detalhes
preciosos.

Pretendo aqui registrar algumas considerações sobre a tradução desse gênero


literário, que não parece ter merecido até o momento um olhar mais demorado dos
estudiosos da tradução literária – olhar que, aparentemente, tem contemplado mais poesia
e romance.

Para início de conversa, proponho o seguinte argumento/provocação: a tradução


do conto, mais do que a tradução do romance, passaria pelo conhecimento do gênero,
pela familiaridade com seus mecanismos de construção – seus aspectos lexicais,
semânticos, estilísticos, retóricos, pragmáticos e outras marcas discursivas que interferem
nos processos interpretativos do leitor. Sem dúvida, trata-se de tarefa de alta
complexidade, um jogo de lucros e perdas, que envolve a conjunção de fatores diversos –
lingüísticos e extralingüísticos. Em outras palavras, proponho que a tradução do conto,
essa “perfeita mas de alguma forma frágil estrutura”, na opinião de Francine Prose (apud
BAILEY, 2000, p.5), implicaria, antes de mais nada, um leitor muito afinado com o gênero,
sensível às sutis entrelinhas do subtexto e intérprete arguto das possíveis ressonâncias
que lá repousam. Douglas Robinson (2002, p. 332) aconselha o tradutor a “sempre analisar
o tipo, o gênero, o registro, a função retórica [...] a sintaxe e a semântica do texto original
[...] o relacionamento sintático, semântico e pragmático entre a língua de origem [...] e a
língua de destino [...].”

É, pois, a partir da perspectiva de leitora e tradutora com interesse especial na


pesquisa e análise do conto, sobretudo de língua inglesa, que pretendo, a título de
exercício, discutir, com base na tradução de um conto, alguns aspectos que considero
relevantes no processo tradutório: adequação lexical, semântica, registro, tom, pontuação,
omissões e acréscimos. No decorrer de minhas observações, farei uso de alguns
pressupostos teóricos que embasam os estudos de tradução literária. Devo acrescentar que
não é, absolutamente, meu objetivo estabelecer qualquer crítica à tradução que utilizo
neste trabalho: trata-se do conto “Life of Ma Parker”/ ”Vida de Mãe Parker”, de
Katherine Mansfield (1888-1923), a grande contista de origem neozelandesa, que viveu
parte de sua curta vida na Inglaterra. Ele foi escolhido pelo fato de ter sido parte

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integrante de minha tese de doutorado na área de literaturas inglesa e brasileira. Pretendo


apenas, como leitora e pesquisadora do gênero, abrir um diálogo entre o texto-fonte e o
texto traduzido e ‘traduzir’ minha interpretação de certos aspectos que, no processo
tradutório, podem suscitar no leitor, como fizeram comigo, efeitos e interpretações
divergentes daqueles sugeridos no original. Pretendo especular em que medida seria
possível determinar alguns critérios para o sucesso da tradução de um conto; em que
medida o contexto, as escolhas feitas, o repertório lingüístico e cultural do tradutor pode
provocar leituras diferentes do mesmo original.

Antes, porém, de partir para a discussão propriamente dita, julgo conveniente


compartilhar com o leitor algumas reflexões sobre as especificidades do gênero conto,
ouvindo alguns de seus teóricos – e praticantes Acredito que elas devam interessar de
perto ao tradutor.

Por essa razão, acho válido começar pela oposição conto/romance. Na


introdução a Speaking of the Short Story, encontramos:
Practitioners from Poe to Allende, from Mansfield to Arias have made statements
similar to Faulkner’s that in any hierarchy of genres, poetry stands at the pinnacle
followed by the short story. Novels are easier, writers declare, because mistakes can be
hidden, but in a short story there is no place to hide the wrong word, the wrong tone,
the lack of a clarifying metaphor. (apud IFTEKHARUDDIN et al., 1997, p.xii)
[Praticantes do conto, de Poe a Allende, de Mansfield a Arias, têm feito afirmações
semelhantes às de Faulkner, no sentido de que em qualquer hierarquia de gêneros, a
poesia é colocada no ponto mais alto, seguida do conto. O romance é mais fácil, afirmam
os escritores, porque os erros podem ficar escondidos, mas em um conto não há onde
esconder a palavra errada, o tom errado, a falta de uma metáfora iluminada.] (tradução
nossa)

Repetindo: “no conto não há espaço para esconder a palavra errada, o tom
errado, a falta de uma metáfora iluminada” - eis aí um importante lembrete ao escritor de
contos – e, por extensão, ao tradutor. Nada no conto - palavra ou pontuação - é aleatório.
Seu autor é/está tão atento à linguagem que utiliza quanto o poeta. No conto, cada
palavra tem peso de ouro. Um conto é magnitude encerrada em uma miniatura, prestes a
explodir em significados nas mãos do leitor perspicaz e sensível.

Também Tom Bailey (2000, p. 74-75) chama-nos a atenção para a palavra exata no
conto:
The words we use in our writing must be the right words – the exact words. There is a
huge difference between the verbs “walked” and “skipped” or “jumped” and “lunged.”
One does not work interchangeably with the others.Only one can be correct given the
mood and specific objective of the particular action that needs to be conveyed. It’s the
writer’s job to make sure the word fits.
[…]
Short stories are no less attentive to language than poems – nothing in a short story is
random – but because the language of a poem is even further distilled it is easier to see
any word’s individual responsibility. (grifos do autor)
[As palavras que usamos em nossas histórias devem ser as palavras certas – as palavras
exatas. Há uma enorme diferença entre os verbos “caminhou”, “pulou” e “deu uma
estocada.” Um não substitui o outro. Somente um deles é o correto, dependendo do tom

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e do objetivo específico da ação particular que precisa ser descrita. É tarefa do escritor
ter certeza de que usa a palavra adequada.
Contos não são menos atentos à linguagem do que poemas – nada em um conto é aleatório
– mas pelo fato de a linguagem de um poema ser ainda mais destilada, é mais fácil
perceber lá a responsabilidade de cada palavra tomada individualmente] (tradução
nossa).

Não estaria aqui mais um lembrete para o tradutor de contos?

É, portanto, a palavra-continente, que carrega dentro de si o conteúdo, o tom, o


estilo, a entonação – que pede um resgate cuidadoso no processo tradutório; ele vai muito
além das frases e “seus conteúdos específicos”, conforme nos lembra Susan Bassnett
(2005, p.152), quando discute a tradução literária em prosa, mais especificamente, a
tradução do romance. Se o tradutor se atém apenas à frase, “o resultado envolverá uma
perda de dimensão” (BASSNETT, 2005, p.152) – novamente, nada mais adequado à
questão da tradução do conto...

Da palavra certa à pontuação certeira; pontuação, diga-se de passagem, também


é voz penetrante no ouvido do leitor. Isaac Babel tem um conto, “Guy de Maupassant”; lá,
o narrador diz sobre o escrever ficção: “no iron can pierce the heart with such force as a
period put just at the right place.” [“nenhum ferro pode perfurar o coração com tanta
força quanto um ponto inserido no lugar certo.”] (apud MAY 1994, p. 275, tradução nossa).
Novo lembrete ao tradutor: a pontuação faz toda a diferença. Ainda sobre pontuação
acrescenta o americano Raymond Carver, respeitado praticante – e teórico – do conto:
That’s all we have, finally, the words, and they had better be the right ones, with the
punctuation in the right places so that they can best say what they are meant to say. If
the words are heavy with the writer’s own unbridled emotions or if they are imprecise
and innacurate for some other reasons – if the words are in any way blurred – the
reader’s eyes will slide right over them and nothing will be achieved (apud MAY, 1994,
p. 275).
[No final das contas, tudo o que temos são as palavras – e é melhor que elas sejam as
palavras exatas, com a pontuação no lugar exato, para que possam melhor comunicar o
que pretendem. Se as palavras são pesadas, com as emoções descontroladas do autor, ou
se elas são imprecisas e inexatas por outras razões – se as palavras estão de alguma
forma anuviadas – os olhos do leitor passarão por elas e tudo se perderá.] (tradução
nossa)

E quanto ao tom? É possível resgatá-lo na tradução? Isabel Allende (apud


IFTEKHARUDDIN, 1997, p.5), outra conhecida contista e romancista, afirma em
entrevista:
I think that in a short story the most important thing is to get the tone right in the first
six lines. The tone determines the characters. In long fiction, it’s plot, it’s character, it’s
work, it’s discipline – a lot of stuff goes there. But in short stories, it’s tone, language,
suggestions – it’s inspiration.
[Acho que em um conto, o mais importante é conseguir o tom certo nas primeiras seis
linhas. O tom determina as personagens. Na ficção longa, é enredo, é personagem, é
trabalho, é disciplina – muita coisa entra lá. Mas no conto, é tom, linguagem, sugestões –
é inspiração.] (tradução nossa)

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Para o resgate do tom, há que ser, portanto, leitor criterioso, “inspirado”, sensível
às nuances do discurso. Ainda recorrendo a Isabel Allende, pensemos no papel do
tradutor como co-criador – sobretudo no gênero conto:
In a novel, you can have a lot of knots and bad stitches, and if you are lucky, the charm
of the tale will carry the book, and the reader will be trapped in the plot and in
everything that happens there: it’s like a party, an orgy. A short story is not; a short story
has very brief time, very condensed concentrated plot, if there is a plot. The subtleties
are important; the suggestion is important. Yo work with the reader’s imagination, and
your only tool is language, and there is no space or time for anything else. Everything
shows. This is how I compare these genres: the novel being a very elaborate tapestry that
has a lot of details, and you embroider it with threads of many colors without even
knowing what the finished design is. A short story is like an arrow; you have only one
shot, and you need the precision, the direction, the speed, the firm wrist of the archer to
get it right. So, you do it right from the very beginning or just abandon it. Get it right the
first time. How does one do it? I think that’s where inspiration comes in, the muse (apud
IFTEKHARUDDIN, 1997, p. 6).
[Em um romance, você pode ter uma série de nós e pontos mal feitos, e, com sorte, o
encanto da história garantirá a leitura e o leitor ficará preso na trama e em tudo o que
acontece lá: é como uma festa, uma orgia. Não ocorre o mesmo com o conto; um conto
tem um tempo muito curto, uma trama muito condensada, concentrada – se houver uma
trama. As sutilezas são importantes; a sugestão é importante. Você está trabalhando com
a imaginação do leitor e sua única ferramenta é a linguagem, e não há espaço nem tempo
para qualquer outra coisa. Tudo fica à mostra. Comparo esses gêneros da seguinte
forma: o romance é como uma tapeçaria muito elaborada, repleta de detalhes; você
borda-a com linhas de cores diferentes sem saber como ficará o desenho final. Um conto
é como uma flecha; você tem apenas uma seta; então, deve ter a precisão, o senso de
orientação, a velocidade, o pulso firme do arqueiro para atingir o alvo. Assim, você faz
tudo corretamente desde o início, ou abandona tudo. Faça a coisa certa na primeira
tentativa. Como consegui-lo? Acho que é nesse momento que entra a inspiração – a
musa.] (tradução nossa)

Quando questionada sobre as perdas ocorridas nas traduções de suas obras, a


autora comenta significativamente:
[...] I have no control over the official translations, let alone the ones that are not
authorized. In English, French and German, the translations I know are very good. Now,
every time that I read aloud in English my own stories, I feel very uncomfortable. I think
the translation is great; sometimes it sounds much better that in Spanish, but it’s another
story. I can only be myself in my own language. It’s like making love, you know; I
would feel ridiculous panting in English. I really need to express it in my own language.
(apud IFTEKHARUDDIN, 1997, p. 12-13).
[Não tenho qualquer controle sobre as traduções oficiais, muito menos aquelas que não
foram autorizadas. As traduções que conheço em inglês, francês e alemão são muito
boas. Acontece que toda vez que leio minhas histórias em inglês em voz alta, sinto-me
muito desconfortável. Acho a tradução ótima; às vezes ela parece muito melhor do que
em espanhol, mas é outra história. Só consigo ser eu mesma em minha própria língua. É
como fazer amor, sabe; eu me sentiria ridícula ofegando em inglês. Sinto que realmente
preciso me expressar em minha própria língua.] (tradução nossa)

De volta à diferença entre conto e romance e à importância dessa percepção no


processo tradutório: o romance opera por acúmulo de experiência; a personagem se
desenvolve com o desenrolar da narrativa e com o passar do tempo; o conto, por sua vez,
não tem tempo nem espaço para que isso ocorra; “o contista sabe que não pode proceder
cumulativamente, que não tem o tempo por aliado,” lembra-nos Julio Cortázar (1974, p.
152). A fugacidade de um momento é fisgada pelo olhar perspicaz do escritor; um conto é
o ‘click’ de uma câmera, um flash que atinge o leitor, convidando-o a extrair dessa luz-
tensão momentânea a história de uma vida - ou até mesmo uma vida sem história... O

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conto não dá respostas; ele gera perguntas, muitas delas perceptíveis somente no subtexto
(Chekhov que o diga!).

Moira Crone, outra contista e romancista americana, também compara romance e


conto: “Writing a novel is like having a long, lingering illness. Getting a short story right
[...] like having an acute illness, a kind of attack.” [“Escrever um romance é como ter uma
enfermidade crônica, de longa duração. Escrever um conto {...} como uma crise aguda,
uma espécie de ataque,”] (apud IFTEKHARUDDIN et al. 2000, p. 76-77, tradução nossa).
Essa noção pode nos ajudar a perceber com mais clareza, como cada palavra (ou a falta
dela), assim como cada sinal gráfico ou de pontuação, têm seu impacto magnificado no
conto.

Se Chekhov deixa tanto por dizer em seus contos, porque seu método implica “o
enorme mistério das coisas como elas são” (apud IFTEKHARUDDIN, 2000, p. 86, tradução
nossa), caberá certamente ao tradutor considerar o que está ‘out’ para não deixar o leitor
com um espaço vazio no ato de leitura. Se, conforme afirmam diferentes contistas,
escrever contos é difícil, poderíamos também dizer que traduzir contos é igualmente
difícil: o mundo recriado não deve ser nem menor nem maior do que o original; muito do
que está “out” precisa estar “in” no texto traduzido; afinal, para o leitor, a tradução é o
original.

Quanto à questão do estilo em ficção, recorramos mais uma vez a Raymond


Carver (apud BAILEY, 2000, p. 73) em seu ensaio “On Writing”:
It’s akin to style,what I’m talking about, but it isn’t style alone. It is the writer’s
particular and unmistakable signature on everything he writes. It is his world and no
other. This is one of the things that distinguishes one writer from another. Not talent.
There’s plenty of that around. But a writer who has some special way of looking at
things and who gives artistic expression to that way of looking: that writer may be
around for a time.
[Estou falando de algo aparentado com estilo, mas não é estilo somente. É a assinatura
individual e inconfundível do escritor em tudo o que ele escreve. É o seu mundo e
nenhum outro. Essa é uma das coisas que distinguem um escritor de outro. Não é
talento. Há talento em abundância por aí. Mas falo de um escritor que tem uma maneira
especial de olhar as coisas e dar expressão artística àquela maneira de olhar: esse escritor
pode estar por aí já há algum tempo.] (tradução nossa)

Ainda com Carver (apud MAY, 1994, p. 274-275):


At the risk of appearing foolish, a writer sometimes needs to be able to just stand and
gape at this or that thing – a sunset or an old shoe – in absolute and simple amazement.
[…] It is possible in a poem or a short story, to write about commonplace things and
objects, using commonplace but precise language, and to endow those things – a chair, a
window curtain, a fork, a stove, a woman’s earring – with immense, even startling
power.
[Correndo o risco de parecer tolo, um escritor, às vezes, precisa ser capaz de parar e
contemplar isso ou aquilo - um pôr-do-sol ou um sapato velho – com total e absoluta
estupefação. {...} Em um poema ou em um conto é possível escrever sobre coisas e
objetos comuns, usando linguagem comum, porém precisa, e dotar essas coisas – uma
cadeira, uma cortina, um garfo, um fogão, um brinco – de um poder imenso e
surpreendente] (tradução nossa)

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Aí residem muitas vezes a força de um conto e os perigos para o tradutor: o


lugar-comum, terreno fértil para o gênero; saber resgatá-lo, atribuir-lhe a devida
dimensão é tarefa do tradutor – nem mais, nem menos; debruçar-se sobre a palavra
aparentemente banal, perceber nela nuances de valor e resgatá-la com a possível inteireza
no processo de re/contextualização das vozes originais – tarefa do tradutor de contos.
Vale, nesse sentido, recorrer novamente a Francine Prose (apud BAILEY, 2000, p. 6) que,
em seu ensaio “What Makes a Short Story?” pondera:
In fact, the most important way to read – the way that teaches us most about what a
great writer does, and what we should be doing – is to take a story apart (line by line,
word by word) the way a mechanic takes apart an automobile engine, and to ask
ourselves how each word, each phrase, and each sentence contributes to the entirety
(grifo do autor).
[De fato, a maneira mais importante de se ler – a maneira que mais nos ensina sobre o
que um grande escritor faz, e sobre o que nós deveríamos estar fazendo – é tomar um
conto e desmontá-lo (linha por linha, palavra por palavra), da mesma maneira como um
mecânico desmonta o motor de um carro, e nos perguntarmos como cada palavra, cada
frase e cada sentença contribuem para o todo.] (tradução nossa)

É desnecessário dizer que, mesmo com essa preocupação em mente, o tradutor -


leitor competente, produtor de texto e co-criador - certamente registrará sua voz, seus
valores, sua experiência e suas circunstâncias, quando da reconstituição desse ‘motor do
carro’; é inevitável reconhecer que todo leitor (e tradutor) transporta seu repertório
pessoal para aquilo que lê e re/interpreta; nessa re/interpretação, entretanto, o
leitor/tradutor buscará não perder de vista a relação mútua que os dois textos – original e
tradução – estabelecem entre si.

2. A PRÁTICA DA TRADUÇÃO DO CONTO: UM OLHAR DE LEITOR

Antes de adentrarmos o conto objeto de análise, acredito ser válido considerar o que
Susan Bassnett (2005, p.102) afirma sobre a tradução do texto literário:
A incapacidade de muitos tradutores de entender que um texto literário é composto de
uma série complexa de sistemas existentes em uma relação dialética com outras séries
fora de seus limites tem freqüentemente levado à ênfase em aspectos particulares de um
texto em detrimento de outros.

Mantendo essa reflexão em mente, passemos ao parágrafo de abertura do conto


“Vida de Mãe Parker”:
When the literary gentleman, whose flat old Ma Parker cleaned every Tuesday, opened
the door to her that morning, he asked after her grandson. Ma Parker stood on the
doormat inside the dark little hall, and she streched out her hand to help her gentleman
shut the door before she replied, “We buried ‘im yesterday, sir,” she said quietly.
(MANSFIELD, 1981, p.301).
Ao receber a velha Mãe Parker, que vinha toda terça-feira fazer faxina em seu
apartamento, o homem de letras perguntou pelo neto dela. Mãe Parker, ainda pisando o
tapete da entrada, estendeu a mão para ajudá-lo a fechar a porta, antes de responder
baixinho: “Nós interramo ele ontem, doutor.” (MANSFIELD, 1993, p. 63)

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