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A Formação e Atuação
Profissional do Historiador
no Brasil Hoje

Há algum tempo as discussões sobre a formação do Histo­


riador têm caminhado no sentido da afirmação da indis-
sociabilidade entre ensino e pesquisa. Muitos currículos
[no Brasil] já incorporam tal princípio em sua lógica
estruturante [...] A formação do Historiador, nos cursos
de graduação, deve manter o duplo viés da preparação
para a pesquisa e o ensino, principalmente porque não há
pesquisador, por melhor que seja, que possa abrir mão da
necessidade de transmitir os resultados de uma pesquisa
e nessa transmissão, quer por via escrita ou através da
fala, são imprescindíveis as qualidades de organização do
raciocínio expositivo, da síntese e do didatismo não sim­
plista-inerentes ao ofício do magistério.
Marcelo Badaró Matos540

sw MATTOS, Marcelo Badaró. Pesquisa e ensino. In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.).
História: pensar e fazer. Opus cit., 1998. p. 110-111.
3.1. Uma breve apresentação da trajetória
do ensino da história no Brasil

O critério para avaliar o desenvolvimento do conhecimento histó­


rico em uma determinada sociedade não deve ser o da quantidade de
informação factual adquirida, mas os avanços na qualidade da refle­
xão histórica, o que está certamente ligado a como se dá a formação
do profissional de história. Por isso, é importante apresentar, mesmo
resumidamente, o histórico da disciplina no Brasil, pois este percurso
é esclarecedor para que se entenda um pouco a formação dos próprios
historiadores. Este tema é geralmente desconhecido pelo estudante e
tem muitos desdobramentos que não poderão ser examinados aqui, mas
pretendemos mostrar ao leitor que a formação do historiador no Brasil
também tem uma história não linear e que precisa ser conhecida, para
dar a necessária perspectiva a uma avaliação de onde nos encontramos
atualmente.
Embora esta seção aborde a história do ensino da história no
Brasil, não trataremos aqui das várias questões atuais ligadas k forma­
ção e às práticas didático-pedagógicas do licenciado em história, que
têm sido objeto de inúmeras publicações e comunicações em eventos,
assunto sempre controvertido, entre outras razões, porque, em geral,
aquela última é responsabilidade das Faculdades de Educação, e não
dos Departamentos de História. Uma bibliografia básica sobre essas
questões será indicada adiante.
Como se sabe, durante o período colonial, a Igreja Católica teve
papel de destaque na educação formal, não somente no Brasil como nas
demais colónias ibéricas. Durante esse período, os conteúdos históricos
eram tratados inseridos nos estudos clássicos, de tal forma que somente
após a independência política é que a história passaria a constituir
uma disciplina específica e diferenciada dentro do sistema de ensino
brasileiro.
A construção da nação - de uma história, de uma memória e de
“tradições” nacionais - seria uma das preocupações centrais da nova
matéria, que iria aos poucos se consolidar. Entretanto, baseada no modelo
europeu de nação, essa construção identitária que coube ao ensino da
história buscou reforçar o elemento europeu na formação do país, desva­
lorizando ou mesmo negando a participação africana e indígena.

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, .Um marco geralmente aceito para a instauração dos estudos
histoncos no Brasil foi a fundação, em 1838, do Instituto Histórico e
Geogra ico Brasileiro, que colocou como principal missão elaborar a
história nacional, e para isso dedicou-se ao estudo do passado. A partir
de então, também nas Províncias foram sendo criados Institutos locais.
No ano anterior de 1837, fora fundado no Rio de Janeiro o Colégio de
Pedro II, a escola secundária modelo até 1930.
Os sócios do IHGB eram também os professores do Colégio,
de modo que não se fazia distinção entre a História produzida
na academia e a História ensinada no Colégio. As duas institui­
ções se comprometeram com a constituição da História Nacio­
nal. Criadas num momento de afirmação do estado nacional
brasileiro, os objetivos das duas instituições eram coinciden­
tes: formar a consciência nacional e, nos moldes da História
que então se fazia na Europa, recuperar a génese da nação
brasileira.541
Com a proclamação da República, em 1889, esse esforço de cons­
trução da nacionalidade por meio do ensino de história foi ampliado
e cresceu o número de escolas secundárias onde estes conhecimentos
eram transmitidos. Entretanto, continuava a predominar um modelo
fortemente eurocêntrico, baseado em uma “história universal”, dentro
da qual se inseriam alguns temas da história do Brasil estudados a partir
de uma concepção “positivista” do conhecimento histórico.
Nessa rápida exposição, interessa muito, pelos efeitos que pro­
duziu sobre a disciplina, a década de 30, iniciada com a revolução que
colocou Getúlio Vargas no poder.
Neste período, ampliou-se de forma significativa o debate sobre a
reforma dos estudos históricos, em especial sobre a inclusão da história
do Brasil de forma autónoma nos currículos escolares. Isto deveu-se à
chamada Reforma Francisco Campos, em 1931, que implantou a seda­
ção e os primeiros programas nacionais obrigatórios que incluíam, além
dos conteúdos, orientação aos professores sobre o trabalho pedagógico
com os alunos. Começava então uma diferenciação, ao menos legal, entre
os contornos de uma disciplina escolar e a pesquisa dos historiadores,

541 ABUD Kátia Maria. Debates pelo ensino da História. In: ARIAS NETO, José Miguel
(Org.). Dez anos de pesquisas em ensino de História. VI Encontro Nacional de Pesquisa­
dores em Ensino de História. Londrina: Atrito Art, 2005. p. 50.

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que na prática não se verificou, pois a história ensinada era uma reprodu­
ção resumida e simplificada do que os pesquisadores produziam.542
Esta reforma também propiciou que nos anos seguintes fossem
criados os primeiros Cursos de História, integrando um projeto de uni­
versidade pública, dentro da qual estavam as Faculdades de Filosofia,
Ciências e Letras, que por sua vez abrigaram os primeiros cursos de
História e Geografia,543 na Universidade de São Paulo, (USP), em 1934,
e na do Distrito Federal (UDF, em 1935, que é hoje a Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ).544
O curso da USP serviu como modelo aos que foram criados mais
tarde em outros estados e tinha inicialmente cinco matérias: Geografia
Física e Humana, História da Civilização, História da Civilização Ame­
ricana, História da Civilização Brasileira; Etnologia Brasileira e Língua
Tupi Guarani. Em 1946, a duração do curso passou para quatro anos,
diplomando os alunos em dois níveis: bacharelado e licenciatura (que
correspondia ao 4o ano do curso).
Além de professores brasileiros, a implantação do curso da USP
contou com a colaboração de professores universitários contratados da
França que selecionaram as primeiras turmas, ministraram disciplinas,
orientaram trabalhos, enfim, prepararam os novos docentes. Como é
fácil concluir, esse grupo deixou marcas na organização das disciplinas
e nos conteúdos, merecendo um destaque especial a presença de Fer-
nand Braudel. Principal mente através dele, estabeleceu-se um vínculo
forte entre o que se produzia na universidade e as diretrizes da Escola
dos Annales, marcando assim a linha metodológica da historiogra­
fia acadêmica da época, principalmente em São Paulo545. Também é

542 Idem, ibidem, p. 50-51.


543 O curso só foi desmembrado em dois, de História e de Geografia, em 1955, por decreto
federal.
544 Sobre a educação superior no Brasil, ver também: SOARES, Maria Susana Arrosa (Org.).
A educação superior no Brasil. Brasília: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior/CAPES, 2002.
545 Sobre a influência dos Annales na USP, ver, por exemplo, o artigo de d’ALESSIO, Márcia
Mansur. Os Annales no Brasil: algumas reflexões. Anos 90. Porto Alegre: PPG em História
da UFRGS, v. 2, p. 127-142, maio de 1994. Mas há também os que consideram que o Bra­
sil é que ofereceu a Braudel uma grande lição de história. É o caso do artigo de Sérgio
Miceli: Sobre História, Braudel e os vaga-lumes. A Escola dos Annales e o Brasil (ou vice-
versa). In: FREITAS, Marcos César de. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva.
São Paulo: Contexto, 1998. p. 263.

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preciso lembrar que muitos dos primeiros professores dos cursos funda­
dos a partir de então não eram historiadores, mas advogados, filósofos,
clérigos.
Desde 1930, durante o governo provisório e após a instauração do
Estado Novo (1937-1945), Getulio Vargas repetiu inúmeras vezes que o
maioi problema do Brasil era a educação. No sentido que nos interessa,
ou seja, do ensino da história, o elemento-chave será a questão da uni­
dade nacional. Como observa Maria Helena Capelato:
Na década de 30 houve o debate entre os defensores de uma
visão universalista da história, posta em prática a partir da
introdução da “História da Civilização” na grade curricular.
Contra a perspectiva universalista, manifestaram-se os defen­
sores da singularidade nacional, que também defendiam a
idéia de que o porvir encontrava-se no passado e baseava-se na
tradição.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi um expoente
dessa reação [...], pedindo o restabelecimento da cadeira de
História do Brasil expediu ofícialmente um documento diri­
gido a Gustavo Capanema [Ministro da Educação de 1937 a
1945 responsável por vários projetos de reorganização do
ensino]. A defesa do ensino da História Pátria atrelava-se a
uma concepção nacionalista que enfatizava a necessidade de
formação da consciência nacional.546
Foi principalmente durante o Estado Novo que o estudo de
história teria cada vez mais o objetivo de inculcar nos alunos “princí­
pios patrióticos”. Marcelo Badaró destaca que:
O modelo francês do século XIX, o peso de um passado colo­
nial que se queria ocultar e o esforço de construir uma iden­
tidade nacional através de um resgate/invenção de tradições
e figuras dignas de sentimento patriótico, que se explicitava
mais diretamente no discurso nacionalista-autoritário, são
alguns dos determinantes do tipo de História que se ensinava
aos estudantes: factual, exclusivamente política e centrada
nos feitos e traços da personalidade dos “vultos da nacionali-

546 CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena. Propaganda política no varguismo e no


peronismo. São Paulo: FAPESP/Papirus, 1998. p. 220.

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dade”, os heróis pátrios. Por mais que os professores da época
recusassem admiti-lo, apelando para a idéia de que o racio­
cínio dos alunos seria despertado pela curiosidade diante da
narrativa dos acontecimentos, tratava-se de uma disciplina
que privilegiava a memorização e que fazia sentido apenas aos
olhos da classe dominante e de seus filhos, preparados para
dirigir um país enxergando no ontem as lições de seus heróis
antepassados.547
Em 1938 foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático, que
estabeleceu normas proibindo a veiculação da ideia da superioridade
do homem de uma região do país em relação às demais, a exaltação dos
“heróis” e o uso abusivo de expressões regionais, o estímulo à luta de
classes ou conflitos étnicos, acentuando o caráter pacífico do brasileiro.
Enfim, o ensino da história deveria promover a unidade nacional.
A questão da soberania nacional, da expansão territorial e
política, o papel dos jesuítas na formação moral, as lutas dos
nativos contra os exploradores estrangeiros, os heróis impes­
soais e pessoais, todos estes elementos constituíam ingredien­
tes importantes na formação da identidade nacional e por isso
ganhavam destaque nos livros de História do Brasil, onde a
história nacional foi recontada e adaptada aos propósitos dos
novos tempos. 548
As discussões sobre a educação, que tinham sido muito ricas no
período pós 30, tomaram-se fracas. Mesmo assim é preciso assinalar
que, em 1942, foi criada a União Nacional de Estudantes (UNE) e o
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Também o ministro
Gustavo Capanema reformou alguns ramos do ensino, quando, entre
outras providências, foram regulamentados o ensino secundário e o
industrial, além de criado o SENAI.
Com o fim do Estado Novo, a constituição de 1946 determinou
como competência da União legislar sobre diretrizes e bases da educa­
ção nacional. Também nesse sentido, em 1953 foi criado o Ministério
da Educação e Cultura, que passou a administrar a educação no Brasil.

547 MATTOS, Marcelo Badaró (Org.). Ensinando. In: História: pensar e fazer. Opus cit., 1998.
p. 115.
548 CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena... Opus cit., p. 230.

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O fato marcante desse período, em todo caso, foram as inúme­
ras discussões que antecederam a promulgação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), o que só ocorreu em 1961. Um
dos enfrentamentos mais importantes verificou-se entre, de um lado,
os donos de estabelecimentos particulares de ensino e a Igreja Católica
e, de outro, os que defendiam o monopólio estatal para a oferta da edu­
cação no Brasil, que perderam o embate. No que se refere à educação
fundamental, ampliou-se o debate sobre a adoção dos “estudos sociais”,
matéria que combinava elementos de história, geografia e ciências
sociais, a partir de um modelo norte-americano. De qualquer moao.
houve muitas iniciativas de democratizar a educação, como o início da
aplicação, no Rio Grande do Norte, em 1961, do método de ensino do
pedagogo pernambucano Paulo Freire, que era usado para alfabetizar
adultos em muito pouco tempo.
Mas em 1964 o golpe militar viria a derrubar as iniciativas pro­
gressistas na educação brasileira, com o pretexto de que eram “sub­
versivas”. A reforma da educação fundamental nos anos seguintes,
que ampliou a influência do modelo norte-americano em substituição
ao francês, foi um acontecimento decisivo para a história do ensino da
história no Brasil.
As primeiras medidas governamentais nesse sentido foram oriun­
das do Conselho Federal de Educação, depois da assessoria da USAID
(United States Agency for International Development), e datam de
1964. Um acordo entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos
concedeu uma enorme responsabilidade na reorganização da edu­
cação superior brasileira a técnicos educacionais norte-americanos.
Neste acordo, dizendo brevemente, tratava-se de implantar a ideologia
de desenvolvimento americano à universidade brasileira. Apesar dos
combates mantidos contra este que foi conhecido como Projeto MEC-
USAED, em 1966 foi aprovada a licenciatura em Estudos Sociais. Este
curso, indefinido quanto a seu campo de conhecimento, justapondo
noções de História, Geografia, Educação Moral, Constituições Brasilei-
ras, Geopolítica, Ecologia, entre outros, tinha a clara intenção política
de “esvaziar” certos campos do conhecimento social — como a história
—, considerados perigosos por seu potencial crítico. Seu objetivo era
formar “transmissores” de um conhecimento social descaracterizado
como reflexão científica, sem nenhuma possibilidade de preparar o

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profissional no sentido da análise histórica, criando, dessa forma, um
meio eficaz de direção ideológica da juventude.
O período ditatorial ficou marcado tanto por uma forte censura
àquilo que era entendido como “subversivo” no ensino e na pesquisa
(inclusive professores e estudantes) e pela adoção “[...] de uma política
educacional que procurava esvaziar os conflitos no ambiente escolar
e na formação do cidadão.”549 Com isso, os próprios conflitos sociais
que são objeto do estudo do historiador foram “banidos” dos conteúdos
pesquisados e ensinados.
Da Reforma Educativa, decorreu também a estruturação dos cur­
sos superiores em Departamentos e a criação das chamadas “licenciatu­
ras curtas”, cursos de graduação de rápida duração que proliferaram nas
universidades e faculdades privadas e aumentaram sua participação na
formação de professores. Até então predominavam no ensino superior
as instituições públicas e gratuitas, mas multiplicaram-se nesse período
estabelecimentos privados de ensino superior/“empresas”, muitos dos
quais comercializavam um ensino de baixa qualidade, inclusive no que
se refere à história. Esta modalidade também contribuiu para separar
ensino e pesquisa, já que as licenciaturas curtas não se destinavam à
investigação, ao mesmo tempo em que aumentavam os cursos de pós-
graduação e a pesquisa nas maiores universidades. Na área de história,
foi criada a licenciatura curta de Estudos Sociais.
Em muitos departamentos, professores e alunos resistiram a este
tipo de curso, considerado empobrecedor para a formação do histo­
riador e afinado com as intenções dos governos militares de eliminar o
pensamento crítico, que é uma das características das ciências humanas
e sociais.
A política educacional da ditadura, incluída aí a massificação da
educação básica, privilegiava também, no ensino nesse nível, a ideia de
“integração e harmonia social”. Na mesma linha da criação da licencia­
tura curta em Estudos Sociais, no ensino fundamental e médio, a disci­
plina de História, cedeu espaço à criação das aulas de OSPB (Organi­
zação Social e Política Brasileira) e EMC (Educação Moral e Cívica),
além da implantação de EPB (Estudos de Problemas Brasileiros) para
todos os graus de ensino. Essas disciplinas, que só foram extintas em
1995, reforçavam o cunho patriotista do sistema de ensino.

549 MATTOS, Marcelo Badaró. Ensinando... Opus cit., p. 115.

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Esta situação tomou-se ainda mais grave em 1980, quando cir­
culou no Conselho Federal de Educação um projeto que simplesmente
extinguia as licenciaturas de História e de Geografia do ensino supe­
rior, ficando estas reduzidas à condição de “habilitações” no interior da
licenciatura em Estudos Sociais.
Mas foi também desde a década de 1970 que os profissionais de
história, com a participação da sua entidade, a ANPUH (Associação
Nacional de História)550 realizaram uma forte pressão contra os Estudos
Sociais e as licenciaturas curtas. Juntamente com a Associação de Geó­
grafos, procuraram ocupar espaço na imprensa, em congressos da área,
junto aos parlamentares e todos os meios a seu alcance para denunciar
as intenções implícitas e os absurdos explícitos que o projeto continha.
Este esforço nacional impediu que o projeto fosse transformado em lei.
No contexto de redemocratização do país na década de 1980, o
retomo da história como disciplina autónoma nas salas de aula foi mar­
cado pelos debates de propostas alternativas de ensino, em que era fre­
quente a influência do marxismo.
Em julho de 1982, existiam no Brasil 126 cursos de Licenciatura
em História, com um oferecimento total de 3320 matrículas e 26 cursos
de Bacharelado, com um total de 515 matrículas oferecidas. Desses 152
cursos, 69 eram particulares.551
Entre 1981-1986, por iniciativa do Ministério da Educação e Cul­
tura (MEC), foi feito um diagnóstico dos cursos de história de todo o
país, mas, como observa Joana Neves,
Desse trabalho resultou uma publicação da qual a maioria
dos interessados, isto é: professores e estudantes de história
não chegou a tomar conhecimento. Vale dizer que, por meio
do diagnóstico feito, foi possível identificar todas as questões
que, até hoje, estão na pauta das discussões da formação dos
professores de história, notadamente aquelas que apontam
as dicotomias que impregnam a problemática da formação
profissional. Relembrando as fundamentais: licenciatura-

550 A sigla ANPUH conserva o nome original da associação, dos Professores Universitários de
História, mas atualmente congrega profissionais de História de todos os níveis.
551 CATÁLOGO das Instituições de Ensino Superior. SESu/ MEC. Brasília: SESu, 1983. p.
400-402.
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s
bacharelado, ensino-pesquisa, transmissão-produção de
conhecimento, professor-pesquisador.552
De qualquer forma, esses foram anos de muitas discussões nos
Departamentos e associações de historiadores, com maior ou menor
sucesso na implementação de suas propostas.
Algumas delas foram criticadas porque, embora significassem
uma mudança teórica e de conteúdo, por vezes continuavam a privile­
giar o acúmulo de informações e a se basear em uma periodização evo­
lutiva da história - agora não mais as “idades”, mas os “modos de pro­
dução”. O que chama atenção, por outro lado, é que parte das críticas
recebidas por aquelas propostas mais inovadoras, que se propunham a
superar a divisão entre a universidade como produtora de conhecimento
e o ensino básico como receptor-transmissor desse conhecimento,
foram oriundas da própria universidade, revelando uma concepção ape­
gada à hierarquização dos saberes.
Antecedendo à promulgação da Constituição de 1988, a situação
da própria universidade brasileira foi debatida, colocando em campos
opostos aqueles grupos que se identificavam com os interesses da edu­
cação pública, procurando assegurar que as verbas públicas fossem des­
tinadas exclusivamente a estas instituições e os grupos ligados ao setor
privado, procurando diminuir a influência do Estado nos negócios edu­
cacionais e ter acesso às verbas públicas.
Promulgada a Constituição, seu texto, entre outras decisões
importantes para a Universidade, reafirmou a indissolubilidade do
ensino, pesquisa e extensão em nível universitário e garantiu a autono­
mia dessas instituições. Logo a seguir começou a tramitar a nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que deveria promover
mudanças profundas na educação brasileira e que só foi aprovada em
1996. Essa lei, entre outras medidas, introduziu um processo regular e
sistemático de avaliação do ensino superior (Exame Nacional de Cur-
sos/ENC) e dos próprios estabelecimentos de ensino, públicos ou pri­
vados (situação das bibliotecas, laboratórios, prédios, qualificação dos
professores etc.), condicionando sua habilitação para funcionamento ao
resultado dessa avaliação.

552 NEVES, Joana. A graduação em história - etapa do ensino de história voltada para a forma­
ção do professor-pesquisador. In: ARI AS NETO, José Miguel (Org.). Dez anos de pesqui­
sas... Opus cit., p. 76,

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Nesse meio tempo, as questões curriculares - de história, inclu­
sive -, foram mtensamente discutidas. O Ministério de Educação e Cul­
tura e o Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceram então os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental e médio
e as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação.
No que se refere aos Cursos de História, em 2001, foram instau­
radas as Diretrizes Curriculares para orientar a formulação dos projetos
pedagógicos desses cursos. No mesmo ano e em consonância com essas
Diretrizes, o ministro da educação nomeou uma comissão de historia­
dores para definir as capacidades, habilidades e conteúdos que deve­
riam constituir o perfil do graduando em história e que seriam objeto
de avaliação pelo ENC (chamado também de “Provão”), exame que foi
realizado pela primeira vez em 2002 para os cursos de História. Foram
então examinados cerca de 339 cursos e 13.400 estudantes. Os melho­
res resultados foram obtidos pelas universidades públicas.
O formando deveria ter desenvolvido o seguinte perfil de compe­
tências e habilidades durante o curso de História, independentemente
da modalidade escolhida (Licenciatura ou Bacharelado).553

Perfil
o Profissional com habilitação que lhe permita atuar nos vários
campos em que se faça necessário seu conhecimento. Isto
significa que o historiador deve estar preparado para as ativi­
dades profissionais de pesquisa, ensino e outras modalidades
de atuação que envolvam as informações e instrumentos de tra­
balho concernentes ao conhecimento histórico, com domínio
amplo desse campo de conhecimento e das práticas essenciais
de sua produção e difusão.
o Profissional consciente da responsabilidade social de seu tra­
balho. Isto significa que ele deve assumir a responsabilidade de
produzir de um tipo de conhecimento com profundas implica­
ções sociais, já que trata da consciência do passado comunitá­
rio que todo o grupo humano necessita para sua identificação,
orientação, sobrevivência no presente e proposição de futuro.

553 Estas competências e habilidades sofreram algumas alterações, que em todo caso não
mudaram seu espírito, quando o ENC foi substituído em 2004 pelo Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes/ENADE.

341
w

Por isso, a história, a par da legitimidade do conhecimento que


gera, é matéria prima ideológico - política para legitimação/
contestação de diferentes projetos sobre a sociedade. Assim,
um aspecto decisivo no ofício do historiador consiste em estar
ele atento para que os usos do discurso histórico apontem para
o fortalecimento da prática da cidadania.

Competências e habilidades
a. Capacidade de problematizar os processos históricos obser­
vados. Isso significa que o historiador saiba interrogar, com
os instrumentos teórico-metodológicos e técnicos próprios
do conhecimento histórico, as aparências com que os fatos se
oferecem ao observador, ultrapassando a apropriação do senso
comum, a leitura meramente empírica dos dados.
b. Capacidade de interpretar, por meio de fontes e linguagens
diversas, a experiência histórica. Isso significa entender que as
fontes históricas são múltiplas e se apresentam por meio de
diferentes suportes e linguagens: escrita, iconográfica, oral,
gestual, monumental etc., que o historiador deve conhecer e
saber interpretar.
c. Capacidade de produzir análises e interpretações utilizando-
se dos conceitos, das categorias e do vocabulário pertinentes
ao discurso historiográfico.
d. Capacidade de produzir, criticar e transmitir conhecimento.
Isto significa uma concepção de formação profissional em que
pesquisa, ensino e outras modalidades de atuação sejam enten­
didos como unidade indissolúvel e dialogai.
e. Conhecimento do processo de construção da historiografia.
Isto significa que o historiador deve estar capacitado a enten­
der a história do próprio conhecimento histórico, suas trans­
formações ao longo do tempo, os diferentes estatutos que
experimentou, as tendências e escolas que orientaram e vêm
orientando sua produção e os “corpus” historiográficos mais
representativos.
f. Capacidade de distinguir a história, enquanto disciplina, da
história vivida. Isto significa a clara percepção das diferenças
entre a experiência histórica vivenciada e seu conhecimento,
342
que e uma construção; significa, portanto, perceber também
a inter-relação entre o sujeito que produz o conhecimento e
o objeto que é conhecido e as questões que essa inter-relação
coloca, como a objetividade/subjetividade do conhecimento, a
presença do historiador no processo cognitivo, a veracidade, o
relativismo etc.
g. Capacidade de reconhecer e valorizar as diferenças pre­
sentes nas práticas sociais. Isto significa que o profissional de
história deve estar orientado por valores e atitudes que lhe per­
mitam reconhecer a pluralidade das experiências históricas das
sociedades humanas, sem remetê-las a um modelo único de
sociabilidade.
h. Capacidade de perceber a historicidade em todas as mani­
festações sociais e culturais. Isso significa que o profissional
de história atribui estatuto histórico não apenas a um certo tipo
de fatos - por exemplo os grandes acontecimentos políticos-
mas considera que todas as práticas sociais integram o pro­
cesso histórico.
i. Capacidade de entender a especificidade e as característi-
cas do conhecimento histórico no conjunto das demais disci­
plinas com as quais se relaciona. Isto significa que, apesar das
numerosas formas de sua produção e de limites assumidos, o
conhecimento histórico tem como horizonte o princípio racio­
nal-explicativo e o comprometimento com a supremacia da
evidência, com a representação de um passado com existência
real que constitui seu referente, o qual pretende analisar, com­
preender e explicar.
j. Capacidade de selecionar, organizar e sistematizar bibliogra­
fia básica para um determinado tema de história.
k. Demonstrar conhecimento dos conteúdos fundamentais que
expressam a diversidade das experiências históricas por meio
de suas múltiplas manifestações.
1. Demonstrar competência de leitura critica. Isto significa a
capacidade de entender o sentido de um texto, reproduzir seus
principais conteúdos e argumentos, problematizá-los e estabe
lecer relações com outros conteúdos e questões.

343
m. Capacidade de propor e justificar um problema de inves­
tigação, estabelecer suas delimitações (cronológica, espa­
cial, temática, etc.), definir as fontes da pesquisa, as referên­
cias analíticas, os procedimentos técnicos, realizar a análise
do material pesquisado, justificar suas conclusões e expor os
resultados de acordo com os requisitos do trabalho acadêmico.
n. Capacidade de perceber a temporalidade do histórico para
além da simples sucessão cronológica, suas continuidades,
rupturas e ritmos diferentes.
o. Capacidade de perceber a diversidade das relações históri­
cas e as inúmeras mediações que as articulam.
p. Capacidade de perceber as relações/tensões entre as ações
dos sujeitos e as determinações que as constrangem no pro­
cesso histórico.
q. Capacidade de perceber a unidade do social ultrapassando
as várias divisões disciplinares (História, Antropologia, Socio­
logia, Economia, Ciência Política etc.), temáticas (História
política, História social, História económica, História cultural
etc.), geopolíticas (História do Brasil, História da América,
História da Europa, História do Extremo Oriente etc.), cro­
nológicas (Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade
Contemporânea, Tempo Presente etc.) ou espaciais (global,
nacional e regional) do processo histórico.
r. Capacidade de perceber a hierarquia de importância dos di­
ferentes elementos integrantes de um contexto histórico. Isto
significa ultrapassar a simples descrição de fatos tais como se
oferecem à observação do historiador.
s. Capacidade de incorporar sua experiência de vida como ele­
mento para o conhecimento histórico.
t. Capacidade de estabelecer diálogo com outras disciplinas. Isto
significa que o historiador, desde que possua a necessária com­
petência para realizar a atividade interdisciplinar, deve conside­
rar a contribuição que seu trabalho pode receber de disciplinas
como a Antropologia, Ciência Política, Economia, Epistemolo-
gia, Literatura, Psicologia, Sociologia etc.

344
Processos de avaliação são muito importantes, sobretudo quando
se observa a proliferação de Cursos de História cujo padrão acadêmico
é de muito baixa qualidade. No entanto, esta primeira avaliação esteve
cercada de muitas críticas, inclusive por parte da própria comissão de
historiadores indicados para estabelecer o perfil desejável do egresso
e as demais diretrizes do ENC. Suas orientações não foram seguidas
quando da elaboração da prova, tarefa que, aliás, não lhes coube, esta-
belecendo-se um distanciamento muito grande entre os princípios esta-
belecidos pela comissão e sua materialização numa prova.
De qualquer forma, este trabalho foi valioso por ter estabelecido
um conjunto de habilidades, capacidades e conteúdos que expressam
um perfil de historiador amplo, consistente e atento às características
da disciplina. Em uma conjuntura na qual o conhecimento histórico
enfrenta tantas indefinições, ele pode servir como referência para os
cursos refletirem sobre o tipo de profissional que estão formando.
A partir da publicação das Diretrizes Curriculares, os cursos de
história vêm realizando modificações em seus currículos, nem sempre
sem profundos debates e resistências, principalmente no que se refere
ao espaço concedido, na licenciatura, às disciplinas pedagógicas, geral­
mente ministradas pelas Faculdades de Educação em detrimento das
disciplinas de história. Isto poderia produzir, por exemplo, uma inde­
sejável separação entre ensino e pesquisa. Todos os documentos do
MEC parecem convergir no sentido de recomendar a formação integral
do historiador, o que implicaria evitar uma separação indevida entre a
Licenciatura e o Bacharelado. Mas, na prática, isso não se verificou, .
pois, “[...] por exemplo, foi fixada também a obrigatoriedade curricu­
lar do cumprimento da praticamente inviável realização de 800 horas
divididas entre prática de ensino e estágio supervisionado.”554
Por isso, o processo das reformas estabelecidas pelas Diretrizes
Curriculares foi e continua sendo marcado por permanentes divergên­
cias entre os profissionais da área e as equipes técnicas do MEC.555
Nesses embates, novamente a ANPUH tem estado mobilizada pela
superação das dicotomias entre ensino e pesquisa, contra as propostas

554 neves Joana A graduação em história-etapa do ensino de história voltada para a forma­
ção do professor-pesquisador. In: ARIAS NETO, José Miguel (Org.). Dez anos de pesqui­
sas... Opus cit., p. 78.
555 Idem, ibidem, p. 77.

345
s
oficiais que pretendem mantê-las. 0 profissional de história, nunca é
demais repetir, só poderá ser um produtor e crítico do conhecimento
produzido se estiver envolvido na atividade da pesquisa. De outro modo,
será apenas um “repassador” de conteúdos.
Atualmente, o ensino da história em nível superior é ministrado
por diferentes tipos de instituições: autarquias, fundações, faculdades
isoladas, escolas privadas, confessionais ou não. É importante observar
que os cursos de maior tradição estão ligados às universidades públicas;
a maior parte dos cursos, no entanto, não se vincula a universidades
públicas ou privadas, e sim a faculdades isoladas.
No primeiro semestre de 2008, existiam, no Brasil, segundo os
dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(INEP), cerca de 663 cursos e habilitações em História.

3.2. A formação acadêmica do historiador

a) Os cursos de graduação e os alunos iniciantes

Como observa Simon Schwartzman, deve-se lembrar que as


ciências sociais mais tradicionais, a história e geografia, foram as que
mais se expandiram na academia a partir dos anos 40, para atender ao
magistério de nível médio, dentro da tradição francesa que orientava o
ensino no Brasil; também o sistema departamental implantado em 1968
baseou-se no argumento de que ninguém é melhor do que o especialista
para ensinar sua disciplina, procurando transformar um ensino em que,
por exemplo, advogados ministravam história para estudantes de histó­
ria.556 Também não se pode perder de vista que a carreira de historiador,
diferente de outras carreiras em ciências sociais, tem uma longa tradi­
ção acadêmica e disciplinar própria.
Por isso, pela importância dos cursos de graduação para o desen­
volvimento do conhecimento histórico, neste capítulo, queremos fazer
algumas observações sobre o tipo de trabalho desenvolvido nesses cur­
sos. Mais do que os possíveis méritos e defeitos da estrutura curricular,
tema muito amplo para desenvolver aqui, talvez seja útil destacar para

556 SCHWARTZMAN, Simon. As ciências sociais nos anos 90. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo. v. 16, p. 55-57, jul. 1991.

346
o aluno iniciante algumas habilidades e atitudes que são importantes
para que ele se integre com sucesso às atividades das diversas disci-
plinas do curso.
Sem que nessa enumeração haja alguma ordem de importância,
uma delas - talvez a preliminar - é que o estudante necessita conhecer,
suficientemente, para que possa se movimentar nela, a estrutura da uni­
versidade e do departamento ao qual seu curso de história pertence. Às
vezes, nós, os professores, esquecemos que se tratam de estudantes que
ingressam em um sistema sobre cuja estrutura e cujo funcionamento
não têm a menor informação. Nas universidades públicas, coisas tão
simples como o fato de que o Departamento tem um chefe e há reuni­
ões periódicas em que os representantes discentes participam, que há
vários setores na universidade para o atendimento dos estudantes e que
existem oportunidades de obter bolsas de iniciação científica e várias
outras (inclusive o intercâmbio no exterior), que há equipamentos, em
maior ou menor quantidade, disponíveis para seu trabalho, que existem
bibliotecas cujos procedimentos de consulta precisa conhecer, tudo isso
faz uma enorme diferença na integração do estudante nesta nova etapa
de sua formação, agora profissional, mas nem sempre o iniciante tem
conhecimento dessa estrutura e dos recursos acadêmicos que podem
auxiliá-lo.
Outra observação também é importante para um aluno iniciante,
cuja trajetória no ensino médio esteve, em geral, muito demarcada pelo
que o professor ensinava na sala de aula: ao contrário do ensino médio,
no curso superior, por muito bem sucedido que seja o professor na tarefa
de selecionar e articular os conteúdos programáticos básicos para intro­
duzir o aluno nas reflexões concernentes à disciplina que ministra, os
desdobramentos inevitáveis que estes conteúdos possuem ultrapassam
em muito a carga horária de uma disciplina curricular. Por isso, o estu­
dante deve assumir que necessita ir além do que é desenvolvido pelo pro­
fessor em aula e este deve contribuir para que o aluno aprenda a se movi­
mentar de forma autónoma nesses conteúdos, não ficando confinado aos
limites do programa ou à dependencia de um docente. E nesse sentido
coloca-se a importância central da leitura e da informação bibliográfica
Com respeito à bibliografia em língua portuguesa, ela é abun-
dante e em geral de muito boa qualidade, mas o estudante precisa ter o
hábito da leitura sistemática e analítica e, para isso, precisa saber ler ,
recomendação que pode parecer supérflua, já que se supõe que quem

347
passou por um vestibular tem o pleno domínio desta habilidade. Mas
até mesmo o hábito da leitura se perdeu bastante nos níveis do ensino
fundamental e médio e muitos estudantes têm dificuldades para enfren­
tar leituras de textos de poucas páginas, quanto mais de livros e dar
conta dos “clássicos” das diferentes disciplinas.
A bibliografia é a principal referência e ferramenta para a dis­
cussão dos conteúdos do programa de qualquer disciplina. Além do
pressuposto de que sua leitura é indispensável (se o estudante não se
conformar em ser um mero repetidor de conteúdos), para que seja tra­
balhada de forma mais produtiva, é importante que o professor faça
comentários prévios sobre as características do texto ou do conjunto
de textos, o que pretende com eles, que interesse podem ter para o tema
em estudo, informações sobre o autor e o contexto da produção da obra
e também esclarecer como os resultados da leitura serão trabalhados
em aula. Estas providências aparentemente simples podem fazer toda
a diferença para um estudante com pouco hábito de leitura e com inex­
periência em relação ao tipo de problemática que a leitura acadêmica
costuma provocar.
O estudante também necessita dominar, - no mínimo, a compreen­
são - de textos em idiomas estrangeiros, especialmente espanhol (pelo
fato de que muitas obras importantes não estão traduzidas para o portu­
guês e são publicadas naquele idioma), mas também francês e inglês, ao
menos para poder acompanhar, por exemplo, aquilo que é publicado em
revistas especializadas estrangeiras de circulação internacional.
Embora as aulas expositivas sejam predominantes, é um avanço
quando, por exemplo, as exposições mais formais do professor são
reservadas para apresentações e conclusões de unidades ou outros
momentos em que o conteúdo exige um tratamento mais abrangente
e o estudante é estimulado a participar ativamente da aula. É preciso
que este entenda que só se aprende, - no sentido de fazer seu - através
da elaboração pessoal, que apenas acontece expondo seu pensamento,
ouvindo perguntas sobre seu próprio enunciado, corrigindo rumos,
incorporando novas ideias. Ou seja, escutar, anotar, estudar continuam
sendo imprescindíveis, mas não são suficientes para a formação de um
profissional competente em história.
Outro aprendizado que o estudante deve realizar é o de formular
problemas como ponto de partida para uma análise histórica, bem como

348
reconhecer os pioblemas que estão envolvidos em uma determinada
analise. Sobretudo tratando-se da apropriação de conteúdos díspares,
como ele vai encontrar no contato com uma bibliografia ampla e hetero­
génea, e fundamental a direção que as questões formuladas/detectadas
proporcionam à leitura.
Também é importante que o aluno aprenda a refletir sobre seus
próprios enunciados, às vezes inconsistentes até mesmo no plano da
lógica, a avaliar a propriedade de suas intervenções em relação ao que
está sendo trabalhado e discutido em aula; a perceber quando, mais que
incorporando, está utilizando de forma acntica conceitos ou discursos
teóricos de grande circulação, cujo significado nem sempre tem claro,
mas que supostamente dariam uma atualidade ao seu trabalho.
É indispensável que o estudante tome consciência de sua con-
dição de iniciante em um campo de conhecimento amplo e complexo
e que, portanto, tem um percurso longo diante de si se quiser ser um
profissional qualificado, observação que visa a desencorajar uma certa
arrogância intelectual bastante disseminada atualmente e que bloqueia
novos aprendizados e a atitude crítica e autocrítica que o trabalho do
historiador exige.
Embora essas observações destinem-se principalmente aos estu­
dantes “calouros”, elas valem também aos que, em qualquer etapa do
curso, estão atentos e interessados em atingir um patamar sempre mais
elevado em sua formação profissional. Por outro lado, a responsabili­
dade do professor é intransferível nesse processo de introduzir o estu­
dante na vida acadêmica e nas características e exigências de uma disci­
plina. Não se pode esperar que o estudante “descubra” por acerto e erro
estas e outras peculiaridades da formação acadêmica. Sua tarefa pode
ao menos ser facilitada com uma presença amistosa e cooperativa do
professor.
Estamos convencidas de que, assim como a produção historio-
gráfica é um processo que vai se construindo no diálogo crítico do pre­
sente com o passado, também esse diálogo entre professor e estudante é
indispensável à formação do futuro profissional de história, no sentido
em que Eric Hobsbawm percebeu e resumiu assim: a importância de
que uma geração possa se apoiar nos ombros da anterior.

557 HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 15.

349
Nesse contexto, é importante observar a diferença positiva que
faz, na formação acadêmica, a cooperação entre os estudantes, a for­
mação de grupos de estudo, a sua vinculação às pesquisas que seus
professores desenvolvem através de atividades de iniciação científica,
monitoria etc. Pensamos também que será muito favorável a atuação do
professor no sentido de desestimular as várias manifestações de atitu­
des competitivas entre os alunos, que os privem de um salutar compa­
nheirismo e intercâmbio intelectual na vida acadêmica.
Não trataremos aqui das questões do ensino fundamental e médio,
embora muitas delas decorram da formação acadêmica do profissional,
como a própria distância existente entre a universidade e a educação
básica. Da mesma forma, são temas recorrentes o livro didático, a rela­
ção entre o que é ensinado e as experiências de vida dos alunos, o tra­
balho de pesquisa e produção do conhecimento nesses níveis, além de
todas as dificuldades enfrentadas pelos educadores no Brasil, como bai­
xos salários, excesso de carga horária de trabalho. Incluir esses temas
significaria uma longa análise de questões que, de qualquer forma,
referem-se mais ao trabalho docente do que propriamente à “introdução
ao estudo da história”, que é o objetivo deste livro. Há uma abundante
bibliografia sobre o ensino da história no nível fundamental e médio e
indicamos, apenas como exemplo, algumas dessas obras ao leitor que
deseje aprofundar o tema. 558

558 Além de outros trabalhos citados nesta seção e na bibliografia, ver: BITTENCOURT, Circe
Maria Fernandes. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história
profana. Revista Brasileira de História, v. 13. n. 25/26. São Paulo: UNIJUÍ, 1992/1993, p.
193-221; FERNANDES, José Ricardo Oria. Educação patrimonial e cidadania: uma pro­
posta alternativa para o ensino de história. Revista Brasileira de História. São Paulo, n. 13.
v. 25/26, p. 265-276, 1992/1993; FRANCO, Aléxia Pádua. O ensino de história e a forma­
ção do cidadão: experiências múltiplas e contraditórias. História & Perspectivas. n. 18/19.
Uberlândia: EDUFU, 1998. p. 161-179; MACEDO, José Rivair. História e livro didático: o
ponto de vista de um autor. In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. (Org.). Ques­
tões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000. p. 289-
301; MATTOS, Paulo André P. de. O ensino de história: concepções e metodologia. História
em Revista, n. 2. Pelotas: Universitária, 1996. p. 189-200; REIS, Carlos Eduardo dos. Entre
o ensino e a pesquisa: novos problemas na formação e na prática do profissional de história.
História & Perspectivas. n. 18/19. Uberlândia: EDUFU, 1998. p. 181-194; STEPHANOU,
Maria. Currículos de história: instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar. Revista
Brasileira de História, v. 18. n. 36. São Paulo: UNIJUÍ, 1998. p. 15-38; WASSERMAN,
Claudia. O livro didático: aspectos teórico-metodológicos relevantes na sua produção. In:
GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Questões de teoria e metodologia da história.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000. p. 249-256.

350
b) Os cursos de pós-graduação como local por excelência
da produção historiográfica acadêmica

Ao analisar o perfil da produção historiográfica das últimas déca­


das no Brasifi não podemos deixar de mencionar o papel dos cursos de
Pós-Graduação, especificamente mestrado e doutorado, neste processo.
Mas é preciso um esclarecimento inicial sobre o uso desse termo, “pós-
graduação , pois ele é genérico e via de regra o estudante tem dúvidas
sobre o que é, afinal, um curso de pós-graduação.
A rigor, qualquer curso realizado após a graduação pode ser clas­
sificado como pós-graduação.” Assim, esta denominação engloba cur-
sos de especialização, extensão ou aperfeiçoamento, que podem ser
cursos de pós-graduação lato sensu, isto é, no sentido amplo; os cur-
sos de mestrado e doutorado, que têm por finalidade primeira formar
profissionais pesquisadores qualificados para elevar o padrão de quali­
dade das instituições de pesquisa e ensino, constituem a pós-graduação
stricto sensu, quer dizer, no sentido estrito.
A pós-graduação em história, no sentido estrito, foi criada no
Brasil no final dos anos 60 e inicialmente eram poucas as universi­
dades que tinham esses cursos, os quais seguiam o modelo francês e
visavam o título de doutor. Não existia o mestrado, e o doutorado em
geral era obtido depois da defesa de uma tese, um trabalho de pesquisa
original, desenvolvido sob a supervisão de um orientador. Só a partir
de 1965, durante a ditadura, o governo federal oficializou a pós-gra­
duação, mas de modo autoritário, sem uma análise crítica do modelo
até então vigente. Ela seguiu o modelo norte-americano, estabelecendo
dois ciclos sucessivos, mestrado e doutorado.
Não é nosso objetivo examinar a história, às vezes muito difícil,
da pós-graduação e por isso remetemos o leitor a algumas indicações
bibliográficas.559

559 Para uma análise mais detalhada da pós-graduação no Brasil, seu desenvolvimento, suas
características e problemas que enfrenta, ver: BEIGUELMAN, Bernardo. Reflexões _ sobre
a pós-graduação brasileira. In: PALATN1K. Marcos et al. (Orgs.). A P^-graduaçao no Bra­
sil. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1998. p. 33-48. Na mesma cole­
tânea, ver também: CAVALHEIRO. Esper; NEVES, Margarida de Souza. Entre a memona
e o projeto: o momento atual da pós-graduação no Brasil. 1997, p. - •

351
f

Atualmente, apesar de muitos problemas e controvérsias, o Bra­


sil dispõe de um sistema nacional de pós-graduação sólido, de grande
qualidade e reconhecimento internacional que não tem similar na Amé­
rica Latina: “[...] embora a pós-graduação constitua um setor restrito
e esteja muito desigualmente distribuída entre as instituições de ensino
superior, ela representa o que há nelas de melhor e constitui a base
necessária para seu próprio aperfeiçoamento.”560
No caso da pós-graduação em história, atualmente existem cerca
de 61 cursos de mestrado em história e 32 doutorados. Estes Progra­
mas de Pós-Graduação são reconhecidos pela Coordenação de Aperfei­
çoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES - (http://www.capes.
br), um organismo do Ministério da Educação, que é responsável pela
avaliação periódica dos cursos, dependendo dela inclusive sua licença
de funcionamento. Também em função dessa avaliação, os Programas
recebem bolsas para os estudantes e verbas para suas despesas. A prin­
cipal agência que oferece esses recursos (bolsas de estudo, verbas para
o desenvolvimento de projetos, para participação em eventos científi­
cos, compra de equipamentos, publicação de revistas etc.), é o Conse­
lho Nacional de Pesquisa - CNPq - (http://www.cnpq.br), órgão vincu­
lado ao Ministério de Ciência e Tecnologia.
Os cursos de pós-graduação no sentido estrito possuem um corpo
docente em geral qualificado, uma vez que seus professores devem
ser doutores, com produção acadêmica adequada aos padrões de cada
área de conhecimento. Os currículos desses cursos procuram discutir
em profundidade questões teóricas fundamentais para o conhecimento
histórico e campos temáticos muitas vezes inovadores para a histo­
riografia. Eles têm proporcionado o desenvolvimento de várias linhas
de pesquisa dos docentes561 às quais, em alguma medida, vinculam-se
(ou deveriam se vincular) as pesquisas dos estudantes, concretizadas
em teses ou dissertações, que, publicadas ou não, constituem porção
importante da produção historiográfica brasileira. Assim, a reflexão
historiográfica mais sistemática, voltada à formação de pesquisadores,
encontra-se sem dúvida nos cursos de pós-graduação, mesmo com as
deficiências que possam ter.

560 CALDAS, Iberê. Propostas para a pós-graduação. In: PALATNIK, Marcos et al. (Orgs.). A
pós-graduação no Brasil. Opus cit., p. 91.
561 As linhas de pesquisa são os eixos problemáticos preferenciais ao redor dos quais os cursos
costumam desenvolver suas atividades de ensino e pesquisa.

352
Apesar da existência, nesses programas, de linhas de pesquisa que
congregam um conjunto de investigações dentro de um campo temático
e, embora mais escassamente, teórico, esta produção - e a historiografia
brasileira como um todo - não configura alguma coisa como “escolas”.
Também se observa que, mesmo incluindo nos programas das disci­
plinas a bibliografia nacional e internacional de ponta, parte dos traba­
lhos de dissertação ou tese incorpora pouco ou superficialmente essas
reflexões e segue ainda caminhos tradicionais, descritivos.
Ainda assim, a produção realizada nos cursos de mestrado e dou­
torado constitui o oxigénio” da historiografia brasileira. Muitos desses
trabalhos são publicados, mas a maioria permanece inédita, de modo
que, apesar das dificuldades em acessá-los (já que muitas vezes só são
encontrados nas bibliotecas das instituições em que foram defendidos),
o pesquisador deve estar atento ao que vem sendo produzido, sob pena
de ficar defasado do “estado da arte” do seu campo de interesses. Hoje
em dia este acesso está mais facilitado, porque, para os anos recentes,
a CAPES criou um “banco de teses” on-line,562 onde esses trabalhos
podem ser consultados e, além disso, os próprios programas de pós-
graduação costumam divulgar, em suas publicações ou em seus sites, os
títulos das teses e dissertações defendidas, várias vezes com os resumos
e/ou textos integrais das mesmas.

3.3. A formação profissional dos historiadores


não se limita à sala de aula

a) As atividades extraclasse

Atualmente as atividades extra-classe possuem uma função


insubstituível, principalmente no curso de graduação, pelo conjunto
diversificado de experiências que proporcionam. Entre estas, destacam-
se as atividades de investigação que colocam o estudante em contato
com as fontes, arquivos e centros de documentação e pesquisa e ofe­
recem uma vivência concreta das possibilidades e dificuldades que
encontram nessas atividades.

562 Disponível em: http://www.capes.gov.br/servicos/bancoteses.html.

353
Também é uma experiência fundamental, pela orientação direta
que os estudantes recebem dos professores, a participação como bolsis­
tas ou auxiliares em pesquisas que estes profissionais mais experientes
desenvolvem. Para esta atividade, os estudantes muitas vezes são apoia­
dos com as chamadas “bolsas de iniciação cientifica” (IC), através das
quais recebem uma pequena quantia mensal para realizar tal trabalho.
A monitoria é outra experiência extra-classe que o aluno pode realizar,
nesse caso auxiliando um professor principalmente em suas aulas.
Como já observamos, é igualmente muito proveitosa a formação
de grupos de estudo, onde os próprios estudantes se responsabilizam
por seu aprendizado em conjunto, discutindo leituras, elaborando textos
etc. Durante o curso, os alunos também devem se preocupar em apre­
sentar trabalhos em encontros de história e congressos, ou ao menos
assisti-los, assim como a conferências e defesas de dissertações e teses.
A frequência a exposições, bibliotecas, centros de documentação e até
mesmo a visita às livrarias ajudam o aluno a manter-se atualizado sobre
aquilo que está sendo publicado. As principais universidades promo­
vem anualmente um “Salão de Iniciação Científica” ou atividade simi­
lar, onde os alunos envolvidos com pesquisa têm oportunidade de apre­
sentar seus trabalhos para o público e para uma comissão avaliadora de
professores, o que constitui uma excelente experiência para a forma­
ção profissional, já que em muitos casos esta é a primeira oportunidade
de expor em público o resultado de seu trabalho, ouvir comentários e
enfrentar as inibições que são comuns aos iniciantes.
Ligado a esta questão da formação profissional e das atividades
extraclasse, é importante lembrar ao estudante que, desde os semestres
iniciais de seu curso, deve preocupar-se em elaborar seu currículo, ou
seja, a apresentação resumida de sua formação e experiência profis­
sional, suas participações em cursos e eventos, publicação de seus tra­
balhos, entre outros, tudo isso apoiado por documentação comproba-
tória, que ele deve se acostumar a conservar e organizar. Este currículo
precisa ser permanentemente atualizado, pois é um requisito indispen­
sável para concorrer a bolsas, participar de concursos e seleções para
mestrado ou doutorado. Especialmente tratando-se de professores,
pesquisadores e estudantes ligados às instituições de ensino superior,
há um padrão de currículo on-line elaborado pelo CNPq desde 1999,
que é exigido na vida acadêmica, chamado Currículo Lattes, em home­
nagem ao cientista brasileiro César Lattes. Desde então, o Currículo

354
Lattes vem mjmcntand0 sua abrangência, sendo utilizado pelas princi­
pais universidades, por institutos, centros de pesquisa e por fundações
de amparo a pesquisa dos estados como instrumento para a avaliação
de pesquisadores, professores e alunos. O CNPq informa que em 2012
estavam registrados cerca de 450.000 currículos de mestres e doutores
das diferentes áreas de conhecimento, o que deixa bem claro sua impor­
tância para que se conheça quem faz pesquisa no Brasil, já que qualq uer
pessoa pode consultar esses currículos no site do CNPq.

b) As associações profissionais dos historiadores


e os congressos e simpósios

No Brasil, os profissionais de história contam com muitas opor­


tunidades para discutir seus trabalhos em congressos e encontros de di­
ferentes âmbitos, internacionais, nacionais, estaduais e locais, que reú­
nem especialistas em distintas temáticas, mas aqui serão mencionados
apenas aqueles que são promovidos pela já referida ANPUH (Associa­
ção Nacional de História).
A ANPUH é, sem sombra de dúvidas, a mais importante asso­
ciação nacional dos profissionais de história. Fundada em 1961 e com
sede em São Paulo (www.anpuh.org) possui atualmente núcleos regio­
nais em todos os estados. Tem sido a grande articuladora dos historia­
dores brasileiros ao longo de décadas, apesar de todas as dificuldades
que enfrenta uma associação como essa em um país com as dimensões
e diversidades do Brasil.
A Associação realiza a cada dois anos simpósios nacionais que
congregam milhares de profissionais, professores, estudantes e pesqui­
sadores, eventos esses que são precedidos pelos simpósios estaduais que
as seções regionais da ANPUH promovem. Esta iniciativa da ANPUH
não tem similar - no mínimo - em nenhum país da América Latina,
seja pelo seu âmbito, seja por seus resultados. Nesses simpósios, é apre­
sentado não só o “estado da arte” da pesquisa histórica como são dis­
cutidas questões sobre a profissão de historiador, o ensino da história
em seus diferentes níveis, os projetos governamentais que concernem
a currículos, novos cursos e mesmo, como já foi apontado, servem de
mobilizadores de iniciativas em defesa dos historiadores e no caso do
período ditatorial, da própria ordem democrática. Os simpósios produ­
zem publicações, sendo seus Anais ou Livro de Resumos um material
indispensável para que se tenha uma ideia aproximada de quais são
355
os temas, questões e abordagens do conhecimento histórico que estão
na ordem do dia para os historiadores brasileiros. A ANPUH também
publica semestral mente a prestigiada Revista Brasileira de História
e outros veículos em versão digital. Além dos simpósios, a ANPUH
abriga numerosos GTs (Grupos de Trabalho), com seções regionais,
que agregam pesquisadores de determinados temas, os quais se reúnem
periodicamente e têm participação ativa na organização dos simpósios.
A ANPUH nacional, bem como várias das regionais, possuem sites e
publicam boletins eletrónicos.563
Ainda é iniciativa da ANPUH a realização do Fórum de Gradu­
ação e do Fórum da Pós-Graduação, reuniões periódicas respectiva-
mente entre os chefes de departamentos de história e entre os coordena­
dores dos programas de pós-graduação, com a finalidade de discutirem
as questões referentes a estes dois âmbitos da formação acadêmica do
historiador.
Em 2012, uma das lutas da ANPUH-Brasil por muitos anos, a
regulamentação da profissão de historiador, teve uma vitória impor­
tante: o PLS 368/2009, de autoria do Senador Paulo Paim, encami­
nhando esta matéria, foi aprovado no Senado. Agora, o projeto tramita
na Câmara dos Deputados com o número PL 4699/2012.
Outra importante entidade que congrega historiadores é a Asso-
ciação Brasileira de História Oral (ABHO). Criada em 1994, durante
o II Encontro Nacional de História Oral, realizado no Rio de Janeiro, a
Associação congrega estudiosos e pesquisadores das áreas de história,
ciências sociais, antropologia, educação e demais disciplinas das ciên­
cias humanas de todas as regiões do país. Seus sócios têm em comum
o uso da história oral em suas pesquisas, isto é, a realização de entre­
vistas gravadas com pessoas que viveram ou testemunharam aconteci­
mentos, conjunturas, instituições, modos de vida, ou outros aspectos
da história contemporânea. Essa associação realiza também encontros
nacionais a cada dois anos e publica um Boletim Eletrónico, além da
revista História Oral.564

Informações sobre o núcleo do Rio Grande do Sul podem ser encontradas em sua página;
www.anpuh-rs.org.br.
564 Disponível em: http://www.historiaoral.org.br. Acesso em: 25 abr. 2013.

356
3.4. Mercado de trabalho: ensino e pesquisa; o trabalho
em museus, arquivos e gerência de património;
a participação em comissões e assessorias

No Brasil, em poucas décadas, houve um aumento extraordinário


no número de historiadores. Atual mente, podemos estimar que há mais
de seiscentos cursos de graduação em história, quando em 2002 havia
aproximadamente quatrocentos e quarenta. É fácil imaginar a quantidade
de alunos formados em cada ano. Mas não houve, apesar do aumento da
rede de ensino tanto superior como médio, uma correspondente amplia­
ção de vagas docentes nos cursos de história das universidades públicas
e a remuneração no ensino médio, que costuma absorver muitos desses
formados, é, em geral, desestimulante das melhores vocações.
Isto produz efeitos como a procura por cursos de pós-graduação,
postergando, com a ajuda de uma bolsa de estudo que pode ser obtida
nesses cursos, o difícil ingresso no mercado de trabalho. Também
incide na necessidade de abrir outros espaços fora do magistério e de
estabelecer nichos de especialidades onde esses profissionais possam
ser reconhecidos. Uma evidência desta especialização é a multiplicação
das sociedades e revistas especializadas, grupos de trabalho, simpósios
temáticos. Cabe também refletir se esse processo de especialização não
será inevitável e necessário, se quisermos realmente aperfeiçoar nosso
conhecimento do passado, em vez de repetir e remanejar sempre as
mesmas matérias, as mesmas narrações.
No Brasil, há alguns anos, quando se falava no trabalho do histo­
riador, a primeira imagem que vinha à mente era a do professor de
história. Ensinar continua sendo uma tarefa central e o fato de que a
história nunca tenha estado ausente dos currículos escolares (apesar das
restrições que já sofreu, como vimos) dá a dimensão de importância do
trabalho do professor. No entanto, antes se fazia uma distinção muito
marcada entre o trabalho do historiador, aquele que fazia a pesquisa,
que produzia o conhecimento, e o do professor de história, que era visto
mais como o que transmitia, mas não produzia o conhecimento.
Hoje em dia, não se concebe mais esta divisão entre ensino e pes-
quisa: é inadmissível imaginar que alguém que não esteja familiarizado
com os procedimentos da pesquisa e produção do conhecimento possa
ser um bom professor, pois lhe faltaria no mínimo a perspectiva critica

357
V

sobre aquele conhecimento que está transmitindo. Por isso também a


própria formação acadêmica do professor envolve um cada vez mais
amplo treinamento para a pesquisa, mesmo para os que pretendem se
dedicar apenas ao ensino.
Mas a atividade de pesquisa, embora indispensável na formação
do historiador, também sempre foi uma atividade difícil de ser realizada,
pois exige tempo e dedicação à busca das fontes, a percorrer arquivos e
bibliotecas e, depois, para analisar e escrever os resultados da pesquisa
e, quando for o caso, procurar meios de publicá-los.
Via de regra, o pesquisador iniciante faz pesquisa com seus pró­
prios recursos, o que certamente é um fator que dificulta - às vezes de
forma decisiva - a realização desta prática para um grande número de
profissionais de história.
Felizmente, o próprio reconhecimento da importância da pesquisa
para o trabalho do historiador fez com que atualmente as agências ofi­
ciais de apoio à pesquisa como as federais já citadas CNPq, CAPES e a
Financiadora de Estudos e Projetos (FENEP) e as estaduais como a Fun­
dação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Fun­
dação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ),
Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
(FAPERGS), entre outras, ofereçam diversas modalidades de bolsas e
auxílios para projetos de pesquisa, mediante avaliação de seus méritos
por consultores da própria área de história. Este apoio tem sido funda­
mental para o avanço da pesquisa e, em consequência, para a qualidade
da produção historiográfica brasileira.
Mas o desenvolvimento da atividade da pesquisa tem tido tam­
bém o efeito de ampliar o campo de atividade profissional do histo­
riador, que vem sendo requisitado para trabalhar em arquivos, museus,
centros de documentação e bibliotecas, instituições que estão reconhe­
cendo sempre mais a necessidade de contar com historiadores entre seu
pessoal especializado, para orientar os pesquisadores que são desde
especialistas que têm um grande domínio de seu campo de trabalho,
até estudantes do ensino médio ou o público não especializado, que não
têm nenhuma experiência e precisam ser ajudados.
Outro campo que vem demandando a atuação profissional do
historiador é o do património histórico-cultural, o que se deve especial­
mente ao desenvolvimento da consciência preservacionista no Brasil.

358
Alguns cursos de gnrduaçào em histón, já vêm integrando este conhe
cimento a formaçao académica do futuro historiador.
É importante também destacar que nas últimas décadas os pro­
fissionais de historia vêm desempenhando cada vez mais numerosas
e importantes funções em instâncias decisórias governamentais sobre
currículos dos cursos de história, livros didáticos para o ensino funda­
mental e medio, avaliação dos cursos etc. Estas atividades, embora via
de regra ocorram como consultorias temporárias aos órgãos oficiais,
são muito importantes, pois envolvem decisões que vão influir na pró­
pria formação do historiador e no ensino da história nos níveis funda­
mental, médio e superior. Nada mais apropriado que para isso sejam
consultados profissionais de história que possuem, por sua formação, o
conhecimento teórico e a experiência prática do ofício.
Para concluir esta seção, há uma outra ordem de observações
que ainda deve ser feita referente à profissionalização do historiador e
que é a delimitação às vezes imprecisa entre o espaço do leigo e o do
historiador, do amador e do profissional na produção do conhecimento
histórico.
Um exemplo neste sentido é o daqueles autores que, em falta de
melhor designação, podemos chamar de “historiadores autodidatas”.
Uma significativa parcela da produção do conhecimento histórico, - e
estamos pensando especialmente nas histórias municipais -, ainda é
obra de pesquisadores locais que assumem a tarefa de historiadores.
Todos nós conhecemos muitos exemplos e mesmo utilizamos essas pes­
quisas em nossos trabalhos. É sem dúvida uma produção valiosa que
merece todo respeito, mas que frequentemente desconhece as discus­
sões, os requisitos e as possibilidades atuais da disciplina.
Outra face desta questão - e mais grave - é que quase qualquer
pessoa se sente autorizada para discutir e fazer todo tipo de afirmações
sobre história, mas tende a respeitar disciplinas como a química, geo­
logia ou matemática — as “ciências duras” -, como domínios de espe­
cialistas. Talvez uma razão disso esteja no fato de que o histórico, como
qualidade da vida social, é propriedade de todo ser humano, é um com-
ponente inevitável da sua identidade, mas certamente tal intimidade
espontânea” torna imprecisa a fronteira entre o amador e o profissional,
entre o historiador e aqueles que, sem ser historiadores, pretendem
escrever sobre história, como é o caso dos “jornalistas-historiadores .

359
Esta diluição de limites também é alimentada pela lógica impla­
cável do mercado dos best sellers, cujo critério de publicação se define
nem sempre pela procedência da obra, mas pelo impacto que possa pro­
duzir no público consumidor. Um livro como o Código da Vinci, para
o leitor comum, é um livro de história. Quem estabelece este critério é
o próprio leitor. Olhando de outro ângulo, isso significa também que a
história como disciplina se desvanece e se toma mais um gênero lite­
rário, no caso, de suspense e misticismo. O caminho não é o mesmo
daquele que pode decorrer do giro linguístico, embora seus efeitos
sejam similares.
O trânsito entre o trabalho do profissional e do amador escapa
completamente ao controle do historiador. Por isso, seguindo a opi­
nião que Simon Schwarzman tem para o conjunto das ciências sociais,
pode-se supor que, sem a forte âncora do sistema universitário e da pro­
fissionalização graduada e pós-graduada que ele imprime, o conheci­
mento histórico se perderia nas demandas e oscilações da moda; mas
também sem reconhecimento e prestígio fora do sistema educacional,
ele correria o risco de se esgotar na esterilidade da rotina pedagógica
cotidiana.565

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Petersen, Bárbara Hartung Lovato. - Porto Alegre : Edição do autor, 2013.
450 p.; 23 cm.

ISBN 978-85-915447-0-7

1. História - Teoria e métodos. I. Título. II. Lovato, Bárbara Hartung.

CDD 907
Catalogação na publicação: JúliaAngst Coelho -CRB 10/1712

Acompanhamento Editorial: Oberti do Amaral Ruschel


Capa: Michele Bandeira
Foto da capa: Sílvia Petersen
Editoração Eletrónica: Agatha Marques de Souza
Revisão: Felipe Raskiri Cardon

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