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INTRODUÇÃO
1 Josefa Jandira Neto Ferreira Dias é doutoranda em História Comparada pelo Programa de Pós-
Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: jandiranetodias@terra.com.br.
2 Ondemar Ferreira Dias Junior é professor titular de História da América aposentado do Curso de
História do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Diretor presidente do
Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB). Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. E-mail: ondemarfdias@terra.com.br.
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ESTUDOS MARICAENSES: O MUNICÍPIO DE MARICÁ EM DEBATE
Mapa 1 – Divisão do Litoral Fluminense, referenciado em três segmentos: Sul, Central e Norte,
com vista a facilitar a localização dos sítios arqueológicos em seus contextos. Original: Google
Earth 2020.
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O Litoral Central que interessa mais de perto para este texto se estende
entre a Baía da Guanabara e Macaé, até a Ilha de Santana. As montanhas da
Serra do Mar se afastam do litoral, substituídas parcialmente pelas elevações
costeiras, e, ainda que existam praias de mar aberto no litoral sul, aqui elas
predominam. Os cordões arenosos litorâneos aprisionaram uma série de la-
gunas que se estendem beirando a costa. As dunas se sucedem entre elas e as
praias oceânicas, mas podem ser encontradas falésias nas áreas internas das
lagoas (como em Maricá), atestando a antiga linha da costa e a ação das marés.
O Litoral Norte se estende de Macaé à foz do Rio Itabapoana, limite com
o Estado do Espírito Santo. É conformado, sobretudo, por uma sucessão de
cordões litorâneos, formando extensas planícies arenosas, destacando-se a
imensa Lagoa Feia e a foz do Rio Paraíba.
Primeiro Setor
5 A sigla AP, usada para situar cronologicamente as datações arqueológicas, significa “Antes
do Presente”.
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Mapa 2 – Localização de sítios do Primeiro Setor – Niterói a Maricá. Original: Google Earth 2020.
Segundo setor
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Terceiro Setor
Situado entre Saquarema e Cabo Frio até o Rio Una, os sítios continuam
sendo abundantes (ver Mapa 4).
Sua distribuição pelos municípios é a seguinte: 19 sítios no Município de
Araruama; 16 sítios no de São Pedro da Aldeia; 10 no de Iguaba Grande, 33 em
Arraial do Cabo e, somente em Cabo Frio, estão registrados 80 sítios arqueo-
lógicos, dos quais 30 são sambaquis. Como podemos avaliar, este setor é de
grande relevância ocupacional para o Estado, já que nele estão concentrados
158 sítios daqueles pesquisados no litoral fluminense.
6 A Tradição Una agrupa sítios dos mais antigos povos ceramistas do país, sendo que o primeiro
grupo de sítios que a identificaram está situado na bacia do Rio Una, em Cabo Frio. Foram
identificados em 1964 e posteriormente outros conjuntos da mesma tradição foram reconhecidos
em outros locais do Estado, e hoje se espalham por todo o território da Região Sudeste, Sul e Norte.
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9 Entre os defensores da tese que generaliza o conceito de sambaqui para todo e qualquer sítio costeiro
pré-ceramista, destacamos a contribuição da pesquisadora Dra. Maria Cristina Tenório (2010).
10 Maria Dulce Gaspar e Sheila Mendonça são especialistas em estudos dos sambaquis (2012).
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11 Sambaqui de Camboinhas – Lina Kneip (1981). O sambaqui da Ilha de Santana em Macaé pode ser
o último testemunho das comunidades sambaquieiras no Estado, segundo pesquisas de Tania Lima
(1999-2000).
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nhecidos os sambaquis mais antigos do país, e Saquarema, onde eles são nu-
merosos, não foi registrado, até o momento, nenhum exemplar desse tipo de
sítio ou de cultura, por razões desconhecidas.
12 Este estudo constituiu a tese da arqueóloga Dra. Lilia Cheuiche (1992). Neste e em outros diversos
trabalhos publicaram-se e discutiram-se as evidências preservadas nos aparelhos dentários dos
esqueletos exumados nos sítios da tradição itaipu, as quais comprovavam o alto consumo de
carboidratos, somente explicado pela domesticação de vegetais, como o aipim.
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farizes e mãos de pilão, além de objetos cortantes para uso, como facas ou
canivetes de quartzo, além de um instrumento exclusivo da tradição. Tra-
ta-se de facas e raspadores elaborados em valvas de conchas duras, como as
das espécies Macrocalista maculata, Lucina pectinata e outras menos usadas.
Pontas, sovelas, furadores de osso de aves, de peixes ou de animais terrestres
são também comuns e indicam variedade e complexidade do aparato técnico
de produção. Soma-se a tudo isso a existência de adornos diversos, de osso,
concha, garras e dentes de felinos, de primatas e de tubarões.
Os sítios da tradição itaipu se dividem em duas fases (ou manifestações
culturais): uma delas denominada Fase Lagunar e a outra, Fase Praiana.
A Fase (ou conjunto) Lagunar está unificada pelos dois sítios localiza-
dos nos “pântanos” da Malhada em Cabo Frio e do Corondó, em São Pedro
d’Aldeia, sítios riquíssimos em restos ocupacionais – sendo o primeiro um
dos poucos do país em que foram encontradas estruturas assentadas em
paliçadas. Outros sítios existiram na região dos Campos Novos de São Pe-
dro d’Aldeia (não sabemos hoje se ainda existem) e no Morro da Cabeça, em
Arraial do Cabo. Outro, muito extenso, jaz (ainda sem pesquisas) na Praia
do Peró, ocupando um longo trecho ao longo da elevação que penetra pelo
Oceano. Também foi registrado um sítio da tradição na “Prainha”, de Arraial
do Cabo, que foi destruído na década de 1970.
A Fase (ou conjunto) Praiana está bem representada pela duna de
Itaipu, em Niterói, e pela duna da Boa Vista, em Cabo Frio (ainda preser-
vadas). Outros sítios da mesma Tradição, de menores dimensões, distri-
buem-se da cidade de Cabo Frio (hoje destruídos) à Restinga da Lagoa de
Araruama, às praias e areais em direção ao Rio das Ostras. Entretanto, a
maior concentração de sítios dessa tradição cultural se encontra, justa-
mente, em Maricá.
Por este constituir o padrão de sítio arqueológico que predomina entre
aqueles registrados na região, vamos nos deter ao estudo e conhecimento
deles. Sem dúvida podemos inferir que sua frequência e constância ao longo
desse ponto do litoral resultaram do constante uso da área em suas ativida-
des de subsistência.
De maneira geral, esses sítios podem ser caracterizados por locais em
que se encontram milhares de lascas de quartzo juncando as areias e bri-
lhando ao sol nas praias, denunciando de longe seus antigos locais de acam-
pamento. Ainda que a areia local seja composta basicamente de grãos de
quartzo predominantemente fino, a jazida de quartzo hialino ou levemen-
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te leitoso, explorada para a produção do artesanato por essa gente, até hoje
ainda não foi localizada pela arqueologia.
No caso de Maricá, os sítios se alongam entre a linha do oceano e as du-
nas de dimensões reduzidas que demarcam a praia e se estendem pela res-
tinga até as margens da Lagoa de Maricá, algo mais para o interior.
Num trecho específico, foram descobertos e pesquisados oito sítios su-
cessivos – todos localizados ao longo da estrada que liga a Barra de Maricá
a Itaipuaçu, tendo como limite em direção poente um canal seco transversal
ao mar e um antigo prédio da aeronáutica.
Neste ponto se encontra o entroncamento da estrada que vem de Barra
de Maricá e se bifurca – um ramal segue para Itaipuaçu e outro para o inte-
rior, contornando a lagoa. Destes, sete são sítios superficiais caracterizados
por manchas escuras na areia da praia, com fragmentos de quartzo lascados
e situados entre as dunas cortadas pela estrada (na época da descoberta em
1987 era de barro vermelho) e a linha de arrebentação, ou na beira da mes-
ma estrada, do lado interior. Um único deles permitiu prospecção extensiva,
adiante resumida, e foi registrado como Sítio da Jandira, RJ-JC-79.13
13 A sigla RJ-JC- n. se refere a sítios arqueológicos do Rio de Janeiro (RJ), em uma área territorial
especificada, no caso entre o rio Japuíba e a Costa (JC), seguida do número que indica ordem de
descobrimento e pesquisa do sítio referenciado. Este sistema foi estabelecido na década de 1960
pelos integrantes do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas(PRONAPA) do CNPq e
Smithsonian Institution, e ainda permanece em uso pelo Instituto de Arqueologia Brasileira.
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Mapa 5 – Localização dos Sítios da Fase Itaipu praiana em Maricá. Google Earth 2020.
Figura 1 – O meio ambiente dos sítios praianos em Maricá/Sítio Barra de Maricá IV e Sítio da Jandira.
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Ponta Negra: uma jazida de seixos rolados que abastecia populações pré-
históricas do litoral
Estas ocupações mais antigas são compostas por dois sítios caracte-
rizados como Sítios Líticos. Um deles o RJ-JC-27 fica em Ponta Negra, na
barra do canal da Lagoa de Maricá, em Jaconé. Outro sítio do mesmo tipo
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foi registrado como Sítio Jaconé, pelo arqueólogo Alfredo Mendonça pelo
INEPAC.14 Mas há a possibilidade de se tratar do mesmo sítio. Para o mesmo
ou para ambos, não há uma datação estabelecida, uma vez que, na verdade,
se trata de uma jazida de seixos rolados de rochas duras, como diabásio e
o gneis. Como fonte de matéria-prima pode ter sido aproveitada desde os
períodos mais antigos até as ultimas ocupações indígenas da região (ver
Figura 2).
Figura 2 – Fotos de 1965. A praia de Maricá em Jaconé e a barra da Lagoa, com a “mina” de seixos
líticos em Ponta Negra. Na foto, um dos autores. Acervo IAB.
14 Alfredo Mendonça de Souza, na década de 1980, organizou para o INEPAC um sistema de registro,
cujos dados constam do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do IPHAN.
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15 O mapa de Van de Claye é datado de 1579 e focaliza a Baía de Guanabara e, em especial, o território
que se estende em direção Leste até Cabo Frio. Este mapa se destaca pelo fato de representar algumas
aldeias indígenas Tupi no território, sobretudo no entorno de uma grande Lagoa que representa,
quase com certeza, a Lagoa de Araruama (Czajowiky, 2000).
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Constam, no entanto, dos registros pelo menos seis sítios históricos cadas-
trados no CNSA, para os quais infelizmente faltam dados.
Todavia, serão vinculados ao texto pelo menos outros três deles em
que perduram marcas de contato, expressas na cerâmica, entre povoadores
europeus e indígenas.
Um deles é o local de um possível acampamento indígena reocupado por
morador histórico; nos outros dois, registra-se também a presença africana.
O Sítio do Seu Bento, já citado, é o primeiro deles, e os dados são muito
exíguos; mas, para os outros dois, pesquisados pelo IAB, possuímos al-
gum detalhamento.
Um deles, denominado Sítio do Lucca, foi descoberto em 1975 (ver Fi-
gura 3). Seu registro nos informa ser o local conhecido à época como bal-
neário Bambuí, no Bairro de Cordeirinho. Estava situado entre dunas das
proximidades da Lagoa de Maricá, ao lado de um restaurante, a cerca de
dois metros de altitude em relação à praia, em área típica de restinga. Sob a
sigla RJ-JC-71, nele foram coletadas também lascas de quartzo, indicando a
presença de um antigo e destruído sítio Itaipu praiano, dois fragmentos de
lâmina de machado de pedra e, sobre tudo isso, cacos de cerâmica de con-
fecção neobrasileira. Essa cerâmica se caracteriza pela técnica de manufa-
tura indígena acordelada, de produção caseira, sem uso do torno de oleiro,
com queima redutora, que dá coloração enegrecida às peças, com formas
simples e decoração plástica (sobretudo pontos, marcas de unha, escovado,
linhas incisas etc.).
Geralmente a decoração é completada com duas, quatro ou até seis asas,
em forma de roletes aplicados ao longo do corpo do vasilhame, nas proxi-
midades das bordas, que por sua vez podem ser decoradas com depressões,
marcas de pontas de dedos e unhas.
Distante cerca de um quilômetro em direção leste do sítio anterior, re-
gistramos o Sítio Cordeirinho, também no Bairro Cordeirinho, que recebeu a
sigla RJ-JC-72. Estava localizado entre a praia e uma área então ressecada da
margem direita da Lagoa de Maricá.
Sítio também de superfície em área de restinga, com vegetação ca-
racterística (“aroeiras” e “pitangueiras”), estava cortado por uma es-
tradinha vicinal. Foi ocupado anteriormente por populações da tradição
itaipu da Fase Praiana, tinha lascas de quartzo em grande quantidade,
variados artefatos de seixo, ossos de peixe e raros fragmentos de ossos
humanos. Entre todos os sítios dessa fase localizados em Maricá, este é o
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Figura 3 – Vista geral do sítio do Lucca e do Sítio Cordeirinho, em 1975. Acervo IAB.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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liferação de colônias de moluscos não tenham sido tão favoráveis ali quanto
nas duas regiões vizinhas. Também é possível que os sambaquis tenham
sido destruídos ou que, por falta de oportunidade, ainda não tenham sido
encontrados pelos pesquisadores.
Também nos causa surpresa o fato de que em nenhum outro trecho do
litoral central (apesar da constância do mesmo tipo de praias oceânicas) haja
tamanha e maciça presença de sítios da tradição itaipu praiana como aqui.
Deve-se considerar ainda que todas essas regiões já foram exaustivamente
pesquisadas. Sem dúvida, a “aglomeração” de lascadores de quartzo indica
que essa gente ocupou a área sistematicamente e ao longo de muito tempo.
Uma vez que se aceita como muito provável que os povos sambaquieiros ba-
seassem sua dieta também na pesca, o ambiente local sem dúvida os favore-
cia, tanto pela existência de uma lagoa piscosa, quanto por toda a potencia-
lidade do “mar oceano” à sua frente.
Ademais, ainda que passe despercebida a associação de povoadores his-
tóricos reocupando seus sítios, não é ilógico nem improvável supor que essa
antiga população constitua os mais antigos “caiçaras” do litoral fluminense.
Esta continua sendo uma questão a se solucionar, que só passível de ser
respondida pela realização de pesquisas de campo incentivadas por quem
de direito e interesse. Tornar-se-ia realmente significativo, para uma mais
completa reconstituição do passado fluminense, definir as causas da prati-
camente inexistência da presença dos tupis nessas terras. Eles não a teriam
ocupado? Por que razões? Teriam seus sítios sido destruídos em proporção
maior do que nas terras vizinhas, ou simplesmente faltam pesquisas? Se as-
sim for, ficam tais questões aqui recomendadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TENÓRIO, M. C. Sambaquis e movimentos migratórios. Revista de Ar-
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