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ANCESTRALIDADES:O POVO DE MARICÁ

Josefa Jandira Neto Ferreira Dias1 • Ondemar Ferreira Dias Jr2

INTRODUÇÃO

O Município de Maricá ocupa uma região privilegiada pela variedade


e diversidade de ambientes, situado entre as montanhas litorâneas e as
imensas praias oceânicas de “mar aberto”, potencialidade ampliada pela
lagoa que leva seu nome, de um lado bordejada por falésias e por outro pela
extensa restinga arenosa.
Assim como o restante do litoral fluminense, a paisagem atual resulta
de transformações ambientais dos últimos milhares de anos e desde então
constitui um atrativo poderoso para o povoamento humano, sobretudo ao se
considerar que o ser humano é o mais adaptável dos animais. E isto porque o
homem se adapta, sobretudo, pela cultura. Em outras palavras, a cultura se
constitui o processo de adaptação do homem.
A pesquisa arqueológica, alicerce deste trabalho, documenta justa-
mente esse mecanismo próprio da nossa espécie na sua variedade adap-
tativa, segundo os desafios do meio natural e da concorrência social – ou
seja, as influências das demais sociedades que compartilham o mesmo am-
biente ou suas vizinhanças. E todo esse processo se manifesta nos restos
materiais que constituem o objetivo de estudo da arqueologia.
Estes restos materiais, os artefatos, são preservados nos sítios arqueo-

1 Josefa Jandira Neto Ferreira Dias é doutoranda em História Comparada pelo Programa de Pós-
Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: jandiranetodias@terra.com.br.

2 Ondemar Ferreira Dias Junior é professor titular de História da América aposentado do Curso de
História do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Diretor presidente do
Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB). Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. E-mail: ondemarfdias@terra.com.br.

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ESTUDOS MARICAENSES: O MUNICÍPIO DE MARICÁ EM DEBATE

lógicos, e é por meio de sua pesquisa que é possível reconstituir a ocupação


humana da área em estudo.
Antes, no entanto, de analisarmos o potencial arqueológico de Maricá, e
partindo do geral para o especial, vamos abordar inicialmente, em seus as-
pectos amplos, a questão do espaço que constitui o litoral fluminense.

O LITORAL DO RIO DE JANEIRO: O POVOAMENTO NA PRÉ-HISTÓRIA

Para localização geográfica dos sítios arqueológicos do litoral flu-


minense e adaptação à divisão adotada pela maioria dos especialistas, os
pesquisadores do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) consideram para
este estudo a área dividia em três partes (Ver Mapa 1).
O Litoral Sul compreende a área entre os limites com o Estado de São
Paulo e a Baía de Guanabara. Trata-se de uma região em que o relevo da
Serra do Mar se aproxima da costa, formando baías e ilhas, sendo uma
delas de grandes proporções além da extensa restinga de Marambaia. In-
clui também uma área embrejada (o “apicum” de Guaratiba) e uma série
de pequenas lagoas, a maioria já desaparecida nas proximidades da cidade
do Rio de Janeiro.

Mapa 1 – Divisão do Litoral Fluminense, referenciado em três segmentos: Sul, Central e Norte,
com vista a facilitar a localização dos sítios arqueológicos em seus contextos. Original: Google
Earth 2020.

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O Litoral Central que interessa mais de perto para este texto se estende
entre a Baía da Guanabara e Macaé, até a Ilha de Santana. As montanhas da
Serra do Mar se afastam do litoral, substituídas parcialmente pelas elevações
costeiras, e, ainda que existam praias de mar aberto no litoral sul, aqui elas
predominam. Os cordões arenosos litorâneos aprisionaram uma série de la-
gunas que se estendem beirando a costa. As dunas se sucedem entre elas e as
praias oceânicas, mas podem ser encontradas falésias nas áreas internas das
lagoas (como em Maricá), atestando a antiga linha da costa e a ação das marés.
O Litoral Norte se estende de Macaé à foz do Rio Itabapoana, limite com
o Estado do Espírito Santo. É conformado, sobretudo, por uma sucessão de
cordões litorâneos, formando extensas planícies arenosas, destacando-se a
imensa Lagoa Feia e a foz do Rio Paraíba.

SÍTIOS PRINCIPAIS DO LITORAL CENTRAL

O município de Maricá está situado no litoral central, onde os sítios ar-


queológicos são numerosos. Para melhor sintetizá-los, abordaremos este
espaço dividindo-o, também, em quatro setores.

Primeiro Setor

O litoral compreendido entre Niterói (Camboinhas, Itaipu e Itaipuaçú ) e


Maricá (ver Mapa 2).
Estão registrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) dezoito sítios
em áreas do Município de Niterói e 26 sítios no Município de Maricá. Estes se
dividem em sítios pertencentes a povos tradicionais pré-históricos (Samba-
quianos, Itaipus e Tupis) e históricos (Neobrasileiros e Coloniais). Neste Setor,
predominam os Sambaquis3 e os Sítios em Duna4, em praias de mar aberto.
Os sítios mais antigos são os sambaquis, sendo que neste Setor se des-
taca o “Sambaqui de Camboinhas”, cuja datação por C-14 em 60.000 A.P.5 o
coloca ainda hoje como a datação mais recuada para o Estado do Rio de Ja-

3 O sambaqui é preferencialmente um tipo de assentamento relacionado aos primeiros povos que


ocuparam o território nacional; adiante, será descrito de forma mais completa.

4 O sítio em duna, também resultante de ocupações de grupos antigos e contemporâneos dos


sambaquis, caracteriza outro padrão de produção social econômico e também será, adiante,
mais bem-explicitado.

5 A sigla AP, usada para situar cronologicamente as datações arqueológicas, significa “Antes
do Presente”.

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neiro. Além deste, outros quatro sambaquis foram também registrados e a


duna de Itaipu, como o sítio símbolo da cultura dos Itaipu. Em Maricá ainda
não foram localizados sítios sambaquis, mas é aqui que os sítios da Tradição
Itaipu predominam. Oito deles serão detalhados adiante.

Mapa 2 – Localização de sítios do Primeiro Setor – Niterói a Maricá. Original: Google Earth 2020.

Além dos sítios das tradições sambaquieira e da tradição itaipu, neste


setor registra-se ainda a existência de um sítio cerâmico da tradição tupi
localizado, mas nunca escavado, na base do morro aonde se assentou a
antiga Igreja de São Sebastião de Itaipu. Há também evidências da exis-
tência de um segundo sítio tupi em Maricá (Sítio do Seu Bento), mas sem
localização conhecida.
Foram também encontrados sítios com cerâmica neobrasileira deposi-
tada sobre material da Tradição Itaipu localizados na face externa da Lagoa
de Maricá, na restinga que a separa do mar. Contam-se, ainda, outros dois
sítios, um com cerâmica sem filiação cultural identificada (Sítio Lagoa do
Padre) e outro (São Vicente) também não especificado.

Segundo setor

Entre Ponta Negra (Jaconé) e Saquarema, da região dos beachrocks em


diante, os sítios arqueológicos são abundantes e somam 32 registros no CNSA.
Nos nossos arquivos institucionais, no entanto, só possuímos a locali-
zação topográfica de alguns poucos sítios, uma vez que nas fichas do CNSA
não constam os mapas que a possibilitariam. Frente ao baixo índice de geor-
referenciamento, reduzimos as indicações nominadas apenas àqueles do
nosso conhecimento (ver Mapa 3).

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Desse total de 32 sítios, dezesseis estão filiados a povos de cultura


sambaquieira.

Mapa 3 – Localização de sítios no segundo setor. Original: Google Earth 2020.

Cinco deles, além de outros artefatos, possuem também cerâmica de


tradição tupi-guarani. São eles o Sítio Mendonça, o Sítio Barroso, o Sítio Bra-
vo, o Sítio Campo e o Sítio Mombaça II.
Sem maiores identificações, temos o Sítio Lego, apontado como lito-ce-
râmico e mais dois com reocupação indefinida. O Sítio Ponta dos Anjos é um
sambaqui sobre o qual foi encontrada a cerâmica de povos da Tradição Una6;
os Sítios Mombaça I e Ilha dos Macacos não possuem identificação da filiação
cultural nem mais especificações.

Terceiro Setor

Situado entre Saquarema e Cabo Frio até o Rio Una, os sítios continuam
sendo abundantes (ver Mapa 4).
Sua distribuição pelos municípios é a seguinte: 19 sítios no Município de
Araruama; 16 sítios no de São Pedro da Aldeia; 10 no de Iguaba Grande, 33 em
Arraial do Cabo e, somente em Cabo Frio, estão registrados 80 sítios arqueo-
lógicos, dos quais 30 são sambaquis. Como podemos avaliar, este setor é de
grande relevância ocupacional para o Estado, já que nele estão concentrados
158 sítios daqueles pesquisados no litoral fluminense.

6 A Tradição Una agrupa sítios dos mais antigos povos ceramistas do país, sendo que o primeiro
grupo de sítios que a identificaram está situado na bacia do Rio Una, em Cabo Frio. Foram
identificados em 1964 e posteriormente outros conjuntos da mesma tradição foram reconhecidos
em outros locais do Estado, e hoje se espalham por todo o território da Região Sudeste, Sul e Norte.

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Os numerosos sambaquis se localizam nas proximidades do litoral, em es-


pecial nas margens do canal de Itajuru, que liga a Lagoa de Araruama ao mar.
Um deles foi localizado na Ilha de Cabo Frio e alguns outros na região do Peró.
Tem-se a destacar que as escavações desenvolvidas pela arqueóloga
Dra. Lina Kneip, do Museu Nacional, no sambaqui do Moa e no sambaqui da
Beirada, tiveram grande relevância para a cultura local.
O sambaqui da Beirada em Saquarema, por exemplo, se constituiu como
o primeiro Museu de Sítio arqueológico pré-histórico do Estado do Rio de
Janeiro. Anos depois, essa ação socioeducativa foi acompanhada pela im-
plantação do Museu de Sítio Sambaqui da Tarioba, em Rio das Ostras, em
resultados de escavações feitas pelos autores.
Destacam-se neste setor os dois principais sítios da tradição itaipu da
fase cultural lagunar: o Sítio Corondó, localizado em São Pedro d’Aldeia, e o
Sítio da Malhada, em Cabo Frio, bem como o primeiro da fase praieira a ser
registrado ainda na década de 1960: o Sítio Duna da Boa Vista, na Praia do
Forte, em Cabo Frio.

Mapa 4 – Localização de sítios no terceiro setor. Original: Google Earth 2020.

Quarto Setor – Entre Cabo Frio e Macaé

Neste trecho sucedem-se os Municípios de Búzios, Rio das Ostras e Ma-


caé. No primeiro se encontram cadastrados 13 sítios, no segundo 17 e em Ma-
caé, outros 22. Os sítios identificados como sambaquis são 15, os da tradição
Itaipu são três e sítios com cerâmica tupi-guarani outros seis. Os demais são
sítios históricos ou de contatos interétnicos.

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Não acrescentamos mapa relativo à localização dos sítios neste setor


pela distância destes em relação à área focal desse estudo.
Em síntese, temos no litoral do Estado do Rio de Janeiro 305 sítios ar-
queológicos cadastrados no CNSA, dos quais 112 deles (36.72%) foram pes-
quisados pelos autores ou por pesquisadores da instituição que representam.
Com base nesses estudos e em publicações disponibilizadas por outras equi-
pes capacitadas, torna-se possível delinear com alguma precisão a ocupação
humana da área onde se inserem o município e a cidade de Maricá.

ANCESTRALIDADES – O POVOAMENTO DE MARICÁ

História Pré-colonial de Maricá7

Horizonte mais antigo – Povos Sambaquianos – 6.000 AP a 1.600 DC

Constituído pelos sítios identificados como “sambaquis”. Este termo em


sua concepção terminológica significa um tipo de local ondem nas camadas
superpostas de ocupação (estratigrafia), predominam os restos conchíferos
ou malacológicos8. Muitos autores modernos ampliaram o significado para
designar uma tradição cultural específica; outros englobam como tal qual-
quer sítio arqueológico situado no litoral. Neste caso, seu limite identifica-
tório se limitaria pela inexistência da cerâmica no seu contexto material.9
Como os pesquisadores que mais se dedicaram ao tema hoje o definiram
segundo uma série de traços demarcatórios, adotamos esse critério como
forma de marcar os limites científicos da terminologia a ser adotada, pois
sem a qual não se faz ciência.10
O sambaqui seria, então, o resultado de uma construção intencional de
gerações de pessoas organizadas em bandos dependentes da natureza, que
baseavam sua dieta em produtos marinhos, sobretudo moluscos e gastrópo-
des – dieta complementada pela pesca, pela caça e pela coleta de vegetais. No

7 Pré-colonial é um termo relativamente recente utilizado em substituição ao termo “Pré-História”,


tanto por ser tecnicamente mais adequado à nossa realidade, como por também incluir no conceito
o período ou a fase “da conquista” ou a sua quase sinonímia “Proto-História”.

8 Termo técnico utilizado na arqueologia para tratar restos de carapaças de moluscos de


qualquer natureza.

9 Entre os defensores da tese que generaliza o conceito de sambaqui para todo e qualquer sítio costeiro
pré-ceramista, destacamos a contribuição da pesquisadora Dra. Maria Cristina Tenório (2010).

10 Maria Dulce Gaspar e Sheila Mendonça são especialistas em estudos dos sambaquis (2012).

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litoral fluminense, tais montículos variam de tamanho, embora raramen-


te ultrapassem cinco metros acima do nível do entorno, e se distendem por
poucas dezenas de metros.
Contudo, entre esses mesmos especialistas ocorrem divergências. Ha-
bitavam os sambaquianos o sítio assim construído, ou o produziam com o
fim específico de ali enterrarem seus mortos?
Nesse caso, a soma de material ali exumado pelos arqueólogos não
espelharia a vida cotidiana, mas resultaria das oferendas cerimoniais
depositadas como acompanhamento fúnebre. Um detalhe a resolver diz
respeito à seguinte questão: se assim for, que local habitariam enquanto
construíam tais monumentos cerimoniais, uma vez que tais sítios não fo-
ram até hoje encontrados?
Nesse tipo de sociedade, dois outros elementos de importância chamam
a atenção. O primeiro é a longa duração de seu padrão de vida, que permane-
ceu pouco alterado desde cerca de 6.000 anos passados, como atesta o sam-
baqui de Camboinhas, em Niterói, e a localização de outro no século XVII da
nossa era, na Ilha de Santana, em Macaé.11
O segundo se refere à baixa densidade demográfica de tais grupos, uma
vez que, apesar do número avultado de sítios, são relativamente raros os se-
pultamentos. Constituem exceções alguns sambaquis no Sul do país, onde
ficam os maiores sítios da categoria, por possuírem numerosos esqueletos.
No nosso litoral, sítios de tipo com mais de dez enterramentos são raros e,
segundo cálculos recentes, a soma de todos eles aqui localizados não chega-
ria a 400 corpos exumados.
A cultural material sambaquieira foi, de maneira geral, pouco alte-
rada em toda a sua duração, o que se reflete numa padronização ampla
dos artefatos, tradição também confirmada nos padrões repetidos de se-
pultamentos em decúbito dorsal (o rosto voltado para cima). Acontecem
algumas variações na orientação dos corpos e no posicionamento de bra-
ços e pernas, mas são exceções. Tal continuidade tradicional é tão pre-
ponderante que mesmo os mais modernos arqueólogos têm dificuldade
em definir etapas ou fases culturais, como acontece com outros tipos de
sociedades pré-históricas.
Em Maricá, apesar de seu litoral estar situado entre Itaipu, onde são co-

11 Sambaqui de Camboinhas – Lina Kneip (1981). O sambaqui da Ilha de Santana em Macaé pode ser
o último testemunho das comunidades sambaquieiras no Estado, segundo pesquisas de Tania Lima
(1999-2000).

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nhecidos os sambaquis mais antigos do país, e Saquarema, onde eles são nu-
merosos, não foi registrado, até o momento, nenhum exemplar desse tipo de
sítio ou de cultura, por razões desconhecidas.

Horizonte intermediário – Povos Itaipus – 4.200 AC a 700 DC

Os grupos humanos que construíram os sítios desta tradição cul-


tural foram contemporâneos dos sambaquianos, e é possível até mes-
mo que tenham se constituído como uma sua variedade de adaptação
“desviante” (grupo dissidente) que seguiu um direcionamento cultural
diferenciado. Seus sítios apontam que também praticavam alguma co-
leta de molusco, mas não de forma tão acentuada quanto os sambaquia-
nos, pesca de mar aberto e caça. Produziram artefatos em concha e osso
e uma tecnologia lítica (em pedra) bem mais aprimorada e apropriada
para essas atividades.
Distanciaram-se dos sambaquieiros quando, ao produzirem alimentos
vegetais baseados na domesticação de plantas, como o aipim, rico em car-
boidratos, tornaram-se os primeiros horticultores do Estado do Rio de Ja-
neiro – prática que deixou marcas indeléveis no aparelho dentário dos seus
consumidores. O alto grau de desgastes, de cáries, de granulomas e outros
problemas nas arcadas dentárias constituem as características que os dis-
tinguem de outras populações da época, pela sua constância excessiva e não
usual de ocorrências.12
Diferenciaram-se, ainda, pelo considerável aumento populacional, es-
pelhado pelo avultado número de sepultamentos registrados nos seus maio-
res sítios. Em unicamente dois deles foram recolhidos e estudados mais de
600 esqueletos – e, como marca cultural, com uma variedade (ainda inigua-
lável em termos arqueológicos) de posições diferenciadas dos corpos nas co-
vas. Em tais sítios, tal variedade levou os autores à suposição da existência
de clãs, ou seja, unidades complexas que reúnem grupos familiares extensos
e compartilham a produção com unidades semelhantes nos mesmos sítios,
mas com rituais diferenciados de tratamento de seus mortos.
A produção de artefatos de pedra espelha, sobretudo, as técnicas de pro-
dução alimentícia baseada no consumo de vegetais, como moedores, almo-

12 Este estudo constituiu a tese da arqueóloga Dra. Lilia Cheuiche (1992). Neste e em outros diversos
trabalhos publicaram-se e discutiram-se as evidências preservadas nos aparelhos dentários dos
esqueletos exumados nos sítios da tradição itaipu, as quais comprovavam o alto consumo de
carboidratos, somente explicado pela domesticação de vegetais, como o aipim.

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farizes e mãos de pilão, além de objetos cortantes para uso, como facas ou
canivetes de quartzo, além de um instrumento exclusivo da tradição. Tra-
ta-se de facas e raspadores elaborados em valvas de conchas duras, como as
das espécies Macrocalista maculata, Lucina pectinata e outras menos usadas.
Pontas, sovelas, furadores de osso de aves, de peixes ou de animais terrestres
são também comuns e indicam variedade e complexidade do aparato técnico
de produção. Soma-se a tudo isso a existência de adornos diversos, de osso,
concha, garras e dentes de felinos, de primatas e de tubarões.
Os sítios da tradição itaipu se dividem em duas fases (ou manifestações
culturais): uma delas denominada Fase Lagunar e a outra, Fase Praiana.
A Fase (ou conjunto) Lagunar está unificada pelos dois sítios localiza-
dos nos “pântanos” da Malhada em Cabo Frio e do Corondó, em São Pedro
d’Aldeia, sítios riquíssimos em restos ocupacionais – sendo o primeiro um
dos poucos do país em que foram encontradas estruturas assentadas em
paliçadas. Outros sítios existiram na região dos Campos Novos de São Pe-
dro d’Aldeia (não sabemos hoje se ainda existem) e no Morro da Cabeça, em
Arraial do Cabo. Outro, muito extenso, jaz (ainda sem pesquisas) na Praia
do Peró, ocupando um longo trecho ao longo da elevação que penetra pelo
Oceano. Também foi registrado um sítio da tradição na “Prainha”, de Arraial
do Cabo, que foi destruído na década de 1970.
A Fase (ou conjunto) Praiana está bem representada pela duna de
Itaipu, em Niterói, e pela duna da Boa Vista, em Cabo Frio (ainda preser-
vadas). Outros sítios da mesma Tradição, de menores dimensões, distri-
buem-se da cidade de Cabo Frio (hoje destruídos) à Restinga da Lagoa de
Araruama, às praias e areais em direção ao Rio das Ostras. Entretanto, a
maior concentração de sítios dessa tradição cultural se encontra, justa-
mente, em Maricá.
Por este constituir o padrão de sítio arqueológico que predomina entre
aqueles registrados na região, vamos nos deter ao estudo e conhecimento
deles. Sem dúvida podemos inferir que sua frequência e constância ao longo
desse ponto do litoral resultaram do constante uso da área em suas ativida-
des de subsistência.
De maneira geral, esses sítios podem ser caracterizados por locais em
que se encontram milhares de lascas de quartzo juncando as areias e bri-
lhando ao sol nas praias, denunciando de longe seus antigos locais de acam-
pamento. Ainda que a areia local seja composta basicamente de grãos de
quartzo predominantemente fino, a jazida de quartzo hialino ou levemen-

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te leitoso, explorada para a produção do artesanato por essa gente, até hoje
ainda não foi localizada pela arqueologia.
No caso de Maricá, os sítios se alongam entre a linha do oceano e as du-
nas de dimensões reduzidas que demarcam a praia e se estendem pela res-
tinga até as margens da Lagoa de Maricá, algo mais para o interior.
Num trecho específico, foram descobertos e pesquisados oito sítios su-
cessivos – todos localizados ao longo da estrada que liga a Barra de Maricá
a Itaipuaçu, tendo como limite em direção poente um canal seco transversal
ao mar e um antigo prédio da aeronáutica.
Neste ponto se encontra o entroncamento da estrada que vem de Barra
de Maricá e se bifurca – um ramal segue para Itaipuaçu e outro para o inte-
rior, contornando a lagoa. Destes, sete são sítios superficiais caracterizados
por manchas escuras na areia da praia, com fragmentos de quartzo lascados
e situados entre as dunas cortadas pela estrada (na época da descoberta em
1987 era de barro vermelho) e a linha de arrebentação, ou na beira da mes-
ma estrada, do lado interior. Um único deles permitiu prospecção extensiva,
adiante resumida, e foi registrado como Sítio da Jandira, RJ-JC-79.13

Caracterização das sete outras ocorrências (ver Mapa 5)

O Sítio Barra de Maricá I (RJ-JC-80) é o mais próximo do local onde a es-


trada que liga a praia da barra à cidade desemboca e onde, em direção poen-
te, segue a estrada que leva para Itaipuaçu. Na direção contrária, o caminho
segue para Cordeirinho, Ponta Negra, Jaconé. Ele dista pouco mais de 100
metros desta confluência e se caracterizou pela existência de uma mancha
de areia escura com 25 m2 em uma leve depressão entre as dunas suaves da
praia, a cerca de 30 metros da arrebentação. Material arqueológico com-
posto, sobretudo, por lascas e estilhas de quartzo, se encontram na Reserva
Técnica Cientifica do IAB em Belford Roxo (RJ).
O Sítio Barra de Maricá II (RJ-JC-81) dista do anterior cerca de 1.300 me-
tros em direção a Itaipuaçu, também notado por apresentar uma mancha de
areia escurecida, entre dunas com a altura média de três metros. Medindo 25
por 10 metros, forneceu lascas de quartzo, seixos rolados com marcas de uso
e alguns corantes vermelhos.

13 A sigla RJ-JC- n. se refere a sítios arqueológicos do Rio de Janeiro (RJ), em uma área territorial
especificada, no caso entre o rio Japuíba e a Costa (JC), seguida do número que indica ordem de
descobrimento e pesquisa do sítio referenciado. Este sistema foi estabelecido na década de 1960
pelos integrantes do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas(PRONAPA) do CNPq e
Smithsonian Institution, e ainda permanece em uso pelo Instituto de Arqueologia Brasileira.

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Segue-se em ordem o Sítio da Jandira, RJ-JC-79, o primeiro a ser des-


coberto e ao qual voltaremos adiante, distante cerca de 2.000 metros da-
quele entroncamento.
A seguir, distando 250 metros do anterior, foi também localizado o Sítio
Barra de Maricá III (RJ-JC-82), numa outra mancha de areia escura, na praia,
com 10 por 8 metros de poligonal, onde também foram coletadas inúmeras
lascas (artefatos) de quartzo.
O Sítio Barra de Maricá IV (RJ-JC-83) foi localizado a cerca de 3.600 me-
tros do primeiro entroncamento, em um local onde existia um marco de
concreto com uma cruz gravada, em área já impactada, no lado interior da
estrada em direção à Lagoa. Sobre o solo foram identificadas duas ocorrên-
cias de areia escura com intrusão de barro ocre, carvão, alguns cacos de ce-
râmica neobrasileira, blocos e seixos com marcas de uso e as sempre cons-
tantes lascas e estilhas de quartzo.
Aproximadamente a 400 metros do anterior, sempre em direção a Itaipua-
çu, foi registrado o sítio Barra de Maricá V (RJ-JC-84), também no lado interior
da estrada e a cerca de 100 metros da praia. Ocorrência pequena, com pouco
mais de cem metros quadrados, com mancha de areia escura misturada com
barro ocre. Nele foram coletadas as lascas de quartzo diagnósticas de Tradição.
Na mesma direção, e 600 metros distantes, foi observado o sítio Barra
de Maricá VI (RJ-JC-85), em mancha de composição semelhante, desta vez
cortada pela estrada, a cem metros da arrebentação e se alongando por cerca
de cem metros no lado interior do caminho. Na composição da mancha foi
detectado abundante carvão. Mais uma vez, o material coletado foi compos-
to, sobretudo, por lascas e estilhas de quartzo.
Finalmente, o sítio Barra de Maricá VII (RJ-JC-86) se localiza 400 metros
adiante, no entroncamento da estrada para Itaipuaçu, próximo a um prédio
da aeronáutica e sobre as dunas litorâneas. Parte da área apresenta material
oriundo da abertura de um canal, então seco, que vindo do interior desem-
boca na praia. O sítio se localiza sobre dunas mais altas do que as comuns na
área e se alonga por cerca de cinquenta metros de extensão por dez de lar-
gura. Ocupa uma área desbarrancada e tem como característica diferencial
o fato de se localizar nas proximidades de um taboal (Tipha dominguensis),
planta que indica a presença de terrenos alagados.
É importante destacar que os principais e mais complexos sítios
da Tradição Itaipu, da Fase Lagunar, preferencialmente se encontram
localizados em áreas semelhantes. Estudos mais recentes apontam a “taboa”

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como provável vegetal consumido por aquelas comunidades e também como


nicho de cavia porcellus (porquinho-da-índia), animal provavelmente do-
mesticado por esse grupo.

Mapa 5 – Localização dos Sítios da Fase Itaipu praiana em Maricá. Google Earth 2020.

Vistos os aspectos gerais do conjunto dos oito sítios, segue a descrição


das pesquisas efetivadas na prospecção feita no sítio da Jandira (RJ-JC-79).

Figura 1 – O meio ambiente dos sítios praianos em Maricá/Sítio Barra de Maricá IV e Sítio da Jandira.

A pesquisa no Sítio da Jandira (ver Figura 1) foi inserida no Programa


Litoral Fluminense que o IAB desenvolveu ao longo das três ultimas déca-
das do século passado. Foi praticada coleta de superfície em dois trechos no
limite sudeste do sítio, onde o material se encontrava concentrado, em área
desnudada por ação do vento.
A prospecção com retirada de níveis de areia se fez em um setor am-
plo em um recôncavo entre as dunas mais altas e uma pequena elevação

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próxima à arrebentação. Foi estabelecida uma linha com 48 metros no


sentido paralelo à estrada (direcionamento 290º-110º) e doze metros em
sentido transversal. Dividida a área em setores de 4 x 4 metros, foram
criados 36 setores de 16m 2. Estes foram identificados com números no
sentido longitudinal (de zero a 12) e alfabetados no sentido transversal,
de “A” a “C”. O desnível entre a parte mais alta das dunas (9 metros de
altitude) e a mais baixa foi de cerca de um metro, sendo que nesta área
foram estabelecidos os setores.
Ainda que todos os setores tenham sido pesquisados, só em dezoito de-
les foi coletado e identificado material de superfície e de mistura com solo no
nível de dez centímetros de espessura superficial. Foram abertos dois cortes
com material restrito da superfície até os 30 cm de profundidade (Setores C2
e C5) na área mais alta das dunas.
O material coletado foi composto pelas lascas, estilhas e blocos de
quartzo tradicionais, mais artefatos de seixo (batedores e alisadores), algum
ocre e carvão. Em dois setores (C3 e C4) foram encontrados ossos de um bo-
vídeo, alguns ainda articulados, provavelmente de animal roubado de algum
sítio local e inserido no sítio em época recente.
A inexistência de estratigrafia nos sítios praianos pode ser explicada
pela ação constante do vento, que retira sistematicamente os grãos de areia
da base dos artefatos, cujo peso os faz afundar no solo. Assim, peças de épo-
cas diferentes se acumulam num mesmo nível, de baixo, onde o solo, por
motivos naturais, permite a sua fixação. Somente nas grandes dunas o pro-
cesso de acúmulo ocorre por fatores naturais e se torna possível observar a
superposição de camadas ocupacionais.
A análise do material em laboratório revelou ter sido aquele ponto uma
oficina ou acampamento de lascamento com permanência algo mais demo-
rada do que aquela dos demais sítios da mesma praia. Este fato pode ser de-
duzido, sobretudo, pela existência de núcleos e blocos de quartzo (utilizados
como matéria prima), evidências de fogueiras e pela maior dimensão e es-
pessura da mancha de areia escura, resultante do acúmulo de húmus.

Ponta Negra: uma jazida de seixos rolados que abastecia populações pré-
históricas do litoral

Estas ocupações mais antigas são compostas por dois sítios caracte-
rizados como Sítios Líticos. Um deles o RJ-JC-27 fica em Ponta Negra, na
barra do canal da Lagoa de Maricá, em Jaconé. Outro sítio do mesmo tipo

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JOSEFA JANDIRA NETO FERREIRA DIAS • ONDEMAR FERREIRA DIAS JR

foi registrado como Sítio Jaconé, pelo arqueólogo Alfredo Mendonça pelo
INEPAC.14 Mas há a possibilidade de se tratar do mesmo sítio. Para o mesmo
ou para ambos, não há uma datação estabelecida, uma vez que, na verdade,
se trata de uma jazida de seixos rolados de rochas duras, como diabásio e
o gneis. Como fonte de matéria-prima pode ter sido aproveitada desde os
períodos mais antigos até as ultimas ocupações indígenas da região (ver
Figura 2).

Figura 2 – Fotos de 1965. A praia de Maricá em Jaconé e a barra da Lagoa, com a “mina” de seixos
líticos em Ponta Negra. Na foto, um dos autores. Acervo IAB.

Horizonte Recente – Povos Tupis – Século XII (?) a século XVII

No litoral do Estado do Rio (como um todo), muitas áreas eram ocupa-


das por sociedades de caçadores-coletores sambaquianos, que dividiam al-
guns trechos pontuais com grupos da tradição itaipu, menos generalizadas,
quando um novo grupo humano invadiu seu território. Levas de indígenas
vindos do Sul, organizados em um padrão social denominado de sociedade
tribal, se espalharam, fosse compartilhando o ambiente com os ocupantes
anteriores, fosse os expulsando, ou pela prática da antropofagia, processo
até então desconhecido dos povos autóctones.
Segundo o estado atual de conhecimento, os primitivos habitantes des-
conheciam a guerra, ou a conquista territorial, ainda que, pelo menos, em

14 Alfredo Mendonça de Souza, na década de 1980, organizou para o INEPAC um sistema de registro,
cujos dados constam do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do IPHAN.

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ESTUDOS MARICAENSES: O MUNICÍPIO DE MARICÁ EM DEBATE

um dos sítios da tradição itaipu lagunar se tenha registro arqueológico da


construção de uma paliçada defensiva e tenha surgido um tipo de ponta de
osso que pode indicar contatos bélicos.
Pelo que se conhece hoje, a sociedade tribal tupi tem sua origem na
Amazônia, de onde, em sucessivas vagas migratórias, atingiu a área do atual
Estado de Rondônia. Ali, muito provavelmente, desenvolveu a técnica de
produção horticultora (sobretudo baseada no consumo do milho) e uma ce-
râmica de formas especificas, ricamente decorada com pinturas e padrões
plásticos – cerâmica tão peculiar que demarca no espaço e no tempo sua
movimentação ao longo do território brasileiro.
Ainda segundo a mesma perspectiva, de Rondônia atingiram terras do
atual Estado de São Paulo, de onde se dividiram: um conjunto em direção ao
Sul, constituindo os grupos etnográficos guarani e outro em direção con-
trária, caracterizando o povo tupi. Foram povos desta segunda etnia que
invadiram em vagas sucessivas as terras fluminenses, pelo menos desde os
primeiros séculos da era corrente, e aqui permaneceram até a expansão da
colonização europeia nos séculos XVI e XVII.
Dois locais foram identificados como sítios tupis em Maricá. Um deles,
chamado Sítio do Seu Bento, tem registro no CNSA; o outro, denominado Sí-
tio Lagoa do Padre, foi registrado pelo INEPAC. Para ambos, no entanto, a
documentação se restringe ao registro, sem mais dados. Assim, confiantes
na capacidade dos pesquisadores que registraram tais ocorrências, incluí-
mos sua presença aqui.
Reforça esta confiança o fato de que nas regiões vizinhas são também
registrados sítios da mesma tradição, em Itaipu e Niterói, além do que são
eles comuns em Saquarema e, sobretudo, em Araruama, Iguaba, São Pedro
d’Aldeia e Cabo Frio. Ademais, cartas antigas registram sua presença na área,
como, por exemplo, o mapa de Van de Claye de 1579.15

NOTÍCIAS DE CONTATOS INTERÉTNICOS: OUTROS SÍTIOS

Está fora do escopo deste texto o estudo da ocupação arqueológica his-


tórica, ou colonial, da região onde hoje se localiza o Município de Maricá.

15 O mapa de Van de Claye é datado de 1579 e focaliza a Baía de Guanabara e, em especial, o território
que se estende em direção Leste até Cabo Frio. Este mapa se destaca pelo fato de representar algumas
aldeias indígenas Tupi no território, sobretudo no entorno de uma grande Lagoa que representa,
quase com certeza, a Lagoa de Araruama (Czajowiky, 2000).

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JOSEFA JANDIRA NETO FERREIRA DIAS • ONDEMAR FERREIRA DIAS JR

Constam, no entanto, dos registros pelo menos seis sítios históricos cadas-
trados no CNSA, para os quais infelizmente faltam dados.
Todavia, serão vinculados ao texto pelo menos outros três deles em
que perduram marcas de contato, expressas na cerâmica, entre povoadores
europeus e indígenas.
Um deles é o local de um possível acampamento indígena reocupado por
morador histórico; nos outros dois, registra-se também a presença africana.
O Sítio do Seu Bento, já citado, é o primeiro deles, e os dados são muito
exíguos; mas, para os outros dois, pesquisados pelo IAB, possuímos al-
gum detalhamento.
Um deles, denominado Sítio do Lucca, foi descoberto em 1975 (ver Fi-
gura 3). Seu registro nos informa ser o local conhecido à época como bal-
neário Bambuí, no Bairro de Cordeirinho. Estava situado entre dunas das
proximidades da Lagoa de Maricá, ao lado de um restaurante, a cerca de
dois metros de altitude em relação à praia, em área típica de restinga. Sob a
sigla RJ-JC-71, nele foram coletadas também lascas de quartzo, indicando a
presença de um antigo e destruído sítio Itaipu praiano, dois fragmentos de
lâmina de machado de pedra e, sobre tudo isso, cacos de cerâmica de con-
fecção neobrasileira. Essa cerâmica se caracteriza pela técnica de manufa-
tura indígena acordelada, de produção caseira, sem uso do torno de oleiro,
com queima redutora, que dá coloração enegrecida às peças, com formas
simples e decoração plástica (sobretudo pontos, marcas de unha, escovado,
linhas incisas etc.).
Geralmente a decoração é completada com duas, quatro ou até seis asas,
em forma de roletes aplicados ao longo do corpo do vasilhame, nas proxi-
midades das bordas, que por sua vez podem ser decoradas com depressões,
marcas de pontas de dedos e unhas.
Distante cerca de um quilômetro em direção leste do sítio anterior, re-
gistramos o Sítio Cordeirinho, também no Bairro Cordeirinho, que recebeu a
sigla RJ-JC-72. Estava localizado entre a praia e uma área então ressecada da
margem direita da Lagoa de Maricá.
Sítio também de superfície em área de restinga, com vegetação ca-
racterística (“aroeiras” e “pitangueiras”), estava cortado por uma es-
tradinha vicinal. Foi ocupado anteriormente por populações da tradição
itaipu da Fase Praiana, tinha lascas de quartzo em grande quantidade,
variados artefatos de seixo, ossos de peixe e raros fragmentos de ossos
humanos. Entre todos os sítios dessa fase localizados em Maricá, este é o

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ESTUDOS MARICAENSES: O MUNICÍPIO DE MARICÁ EM DEBATE

único em que foi registrada a ocorrência de restos ósseos humanos, ain-


da que dispersos. Associados a esse material foram também coletados
diversos fragmentos de cerâmica neobrasileira, que sugerem a ocorrên-
cia de contato interétnico.
Aos dois pode-se ainda somar o sítio Barra de Maricá IV, já abordado,
onde foram também evidenciados sinais de reocupação ou contato.

Figura 3 – Vista geral do sítio do Lucca e do Sítio Cordeirinho, em 1975. Acervo IAB.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise e da interpretação dos dados expostos, podemos,


com segurança, concluir algo sobre a importância do território hoje ocupado
pelo Município de Maricá.
Inicialmente, estabelecemos que suas terras foram palmilhadas, há
milhares de anos, por populações diversificadas, que se espalharam e ocu-
param o território fluminense – característica também compartilhada pelos
demais municípios fluminenses.
Povos com bagagem cultural variada, no entanto, não só passaram pelo
seu espaço como o elegeram para moradia, fixando-se e explorando a di-
versificada potencialidade do seu ambiente. Após esta análise, o que nos
surpreende? O fato de as mais antigas populações, conhecidas como sam-
baquieiras, ali não terem assentamento, sobretudo ao levar em consideração
que tanto a oeste (Niterói, ou mais especificadamente Itaipu) quanto em sen-
tido contrário (notadamente Saquarema), evidências de sua forte presença
e permanência terem sido reveladas por diversos sítios já pesquisados. Po-
dem-se formular duas hipóteses para explicar o fato: a primeira é que, ape-
sar da citada variedade ecológica, talvez no passado as condições para pro-

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JOSEFA JANDIRA NETO FERREIRA DIAS • ONDEMAR FERREIRA DIAS JR

liferação de colônias de moluscos não tenham sido tão favoráveis ali quanto
nas duas regiões vizinhas. Também é possível que os sambaquis tenham
sido destruídos ou que, por falta de oportunidade, ainda não tenham sido
encontrados pelos pesquisadores.
Também nos causa surpresa o fato de que em nenhum outro trecho do
litoral central (apesar da constância do mesmo tipo de praias oceânicas) haja
tamanha e maciça presença de sítios da tradição itaipu praiana como aqui.
Deve-se considerar ainda que todas essas regiões já foram exaustivamente
pesquisadas. Sem dúvida, a “aglomeração” de lascadores de quartzo indica
que essa gente ocupou a área sistematicamente e ao longo de muito tempo.
Uma vez que se aceita como muito provável que os povos sambaquieiros ba-
seassem sua dieta também na pesca, o ambiente local sem dúvida os favore-
cia, tanto pela existência de uma lagoa piscosa, quanto por toda a potencia-
lidade do “mar oceano” à sua frente.
Ademais, ainda que passe despercebida a associação de povoadores his-
tóricos reocupando seus sítios, não é ilógico nem improvável supor que essa
antiga população constitua os mais antigos “caiçaras” do litoral fluminense.
Esta continua sendo uma questão a se solucionar, que só passível de ser
respondida pela realização de pesquisas de campo incentivadas por quem
de direito e interesse. Tornar-se-ia realmente significativo, para uma mais
completa reconstituição do passado fluminense, definir as causas da prati-
camente inexistência da presença dos tupis nessas terras. Eles não a teriam
ocupado? Por que razões? Teriam seus sítios sido destruídos em proporção
maior do que nas terras vizinhas, ou simplesmente faltam pesquisas? Se as-
sim for, ficam tais questões aqui recomendadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ESTUDOS MARICAENSES: O MUNICÍPIO DE MARICÁ EM DEBATE

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