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A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA Dutce Martins LaMas INTRODUGAO l- A MUSICA DOS CANTADORES = 48 DO VALE (ROMANCE) = O VALENTE VILELA (ROMANCE) FOADA DO BEIRA D'AGUA CHEGADA DE LAMPLAO AO INFERNO (ROMANCE) 1. 1.2 13 14 DOCUMENTOS GRAVADOS POR CEGO ADERALDO <1 — DESAFIO (SEXTILHAS) 2 — DESAFIO (QUADRAO) 3 — DESAFIO (SIOURKOY 4 — DESAFIO (MARTELO AGALOPADO) pres CONSIDERAGOES GERAIS 3.1 — RITMO 3.2 — MELODIA 3.3 — IMPOSTACSO. 3.4 — INSTRUMENTAL CONCLUSAO BIBLIOGRAFIA INTRODUGAO © fendmeno postico-musical no pode ser desvinculado do comtexto sécio-cultural. A musica do Nordeste brasileiro, é dbvio, reflete 0 género de vida da reg‘do. Os que cultivam a cantoria repente ou a narrativa vivem, quase sem- pre, confinados em zonas rurais, por isso mais insulados ¢ menos sujeitos as mudancas do meio urbano ou industrializado. Ainda que alguns tc. nham contacto com os meios urbanos, onde as motivacé:s sio as mais diversificadas, eles fazem © propagam uma arte que tem ressonancia nos meios mais conservadores. A obra de arte, na forma precipua de concepcio ma is elevada, 6 uma mensagem, Na misica culta, de classe, verificamos que, na cangio, letra melodia se completam. No lied (a expressio mais clevada da cancio crudita), observamos que a linha melédica também participa do conteilo pottico, ou melhor, cria-se a melodia, procurando com os son; musicais expr'mir, ressaltar 0 pensamento poético, Suponhamos que a possia refi- Fase ao entardecer: a melodia procurara sugerir 0 ambiente tranqiiilo € contemplativo e, mesmo, conforme as exigéncias do texto, dara a impres sio de bimbalhar dos sinos. Ao passo que na cantotia a mdbica tem um papel secundirio, simple mente realca o ritmo poético, uma vez que 0 cantador tem como principal objetivo — nos desafios, mostrar sua capa cidade inventiva, sua presenga de espirito, sua hab'lidade de criagio poé- ay — nos romances, prender dos que o ouvem, narrando fatos ¢ feitos que impressionam a imaginacio. A miisica nas suas diferentes modalidades, nos diferentes géneros a que se destina, evolui sob condigdes diversas, cristaliza-se sob determ’- nados aspectos, capares de oferecer uma classificago, Ass'm ¢ que se dis- tingue, nas camadas iletradas, a misica chamada folclérica, onde se en- quadra a arte dos nossos menestréis. £ mus'ca que atende aos impulsos criativos do grupo. E musica func onal € sujeita a estética, se assim puder- mos dizer, de uma comuniclade, cujos meios de preservagio sio represen- tados principalmente pela transmissdo oral. Ao passo que a mtisica deno- minada comumente de popular é impressa, musica produzida em série, divulgada por meios mecinicos, como sejam o disco, 0 radio, a telev'sao. Destinada, principalmenie, ao consumo das massas, do grande publico dos meios industrializados, ¢ musica que renova sua esirutura a cada 230, LITERATURA POPULAR EM VERSO — FSTUDOS momento. Em face das miltiplas influénciay a que esti sujeita, nao ha tempo para que seus produtores ¢ consumidores cheguem a ter conscién- cia do seu processo de desenvolvimento € evolucgao. Ja na misica de cantoria, na musica folclorica, observa-se uma tra- digo, um conservantismo as velhas normas € até mesmo no instrumental acompanhante, Tudo contribui para sua seguranga contra a flutuacio ¢ as contingéncias da procura ¢ da oferta £ mais auténtico, € mais profundo o poder de comunicagio do arti ta iletrado que, expressando-se com simplicidade, natural’dade, sem art ficios, tem logo ressonancia no espirito do seu grupo. Hi, evidentemente, na arte dos viole:ros € repentistas uma perfeita identilicagio do artis com o sett auditorio, Ele € produto do prdprio me’o, cle usa expressoes, modismos perfeitamente assimilveis pelos que o ouvem. Sua popula dade — dadas a; naturais condigdes de vida comunitiria — che a con. fundir-se com solidariedade. © poder de comunicacgao dos poetas populares é tio expressivo que ainda hoje se I¢, no Jornal do Brasil de 19-12-71 (“Viole‘ros Nordestinos Serio Profetas do Desenvolvimento”), que repentistas ¢ violeiros serio aproveitados para, com a sua linguagem, despertar nas populagdes do interior a conscientizagio do desenvolvimento econdmico-social. Para isto estao recebendo tr mento no Centro de Comunicacao Social do Nor- deste — CECOSNE — no Recife A arte dos cantadores, como toda criagdo artesanal, € comunitari isto 6, obedece a padres accitos por todos, revestese de peculiaridades sentidas por todos, tanto pelos que a produzem como os que a apreciam ou consomem. Certamemte em virtude das condigdes de transmissio oral © expontaneidade, os grupos nao tém como desenvolver critérios de apre- ciacdo estética, de refinamento, conseqiientemente, mantém os mesmos padrdes de valores, estratificam os mesmo; clementos culturais. A misica dos cantares sertanejos no tem expresso prépria, no atinge a fase de sublimagio, de subjet'vidade da arte elaborada, Nao destinada aos grupos de elite, & gente intelectualizada ¢, portanto, prep: vada por educacio artistica, Para os nosso; rapsodes populares 0 impor- tante é a significagdo do texto rimado, quer seja no sentido narrative ov ho aspecto de improvisacao, feito com as mais variadas medidas pocticas, cabendo 4 linha melod:ca apenas ressaltar ou apoiar o ritmo da_palavra Nas cantigas de romances ¢ desalios sio comunissimas as referencias aos Dore Pares de Franca, ao Roldio, que sabemos ter sido o herdi de Roncesvales ¢ que, desde os fundainentos da nacionalidade francesa, ven superexcitando a imaginagao popular. Teve papel de relevo na criaga Uistica dos trovadores medievais, influenciou os escritores de romances de eavalaria, do século de Luis XIV € sobrevive na cantoria do nosso sertanejo. A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 237 Do ponto de vista musical é dada, também, como das mais velhas cangdes que se conhecem em lingua latina e de sentido profano, com notacio ainda neumitica, a lamentacio pela morte de Carlos Magno. Veja-se a reproducio do facsimile, citado por Fétis em Histoire Générale de la Musique, vol. IV, p. 474). Sabemos que o movimento dos trovadores, cuja repercussio alcancou toda a Europa, exercendo influéncias muito expressivas em todos os aspec- tos da cultura ocidental, surg'u na Franca. Teve duas ramificacoes: a0 Norte eram os trouvéres; Sul, os troubadours. Os primeiro; falavam a Lingua d’oil, de que se originou a lingua francesa; os ultimos falavam a lingua d’oc, que evoluiu para o provencal. A hegemonia literiiria exerci- da por eles foi extraordinaria, principalmente pelo lirismo que despertou. Os trovadores faziam a poesia, mas, também a semelhanca dos rapso- dos gregos, compunham a misica. Est, portanto, na criagio e d'vulgacio da cangio popular, dos séculos XI e XII, uma das mais significativas contribuigdes dos trovadores franceses. Julien Tiersot?, transcrevendo Deschamp, informa que, ainda no século XIV, um poeta fazia a diferenca entre misica artilic’al ¢ musica natural. Com a primeira indicava a que era praticada pelos que se dedi- cavam a composicio polifénica, ou seja, pelos que estudavam e escreviam musica a varias vozes, para os oficios d'vinos. Como musica natural, clas- sificava todas as formas de sentido profano e criadas de manera espon- tinea, numa tnica melodia. Isso significa, dois séculos depois, exata- mente, a musica desenvolvida pelos trovadores, usando uma s6 voz com acompanhamento instrumental, As cant’gas trovadorescas cram: de amor, amor cortés, amor campestre (pastorais), desafios, sitiras, louvagdes e, sobretudo, poesia narrativa, celebrando feitos herdicos ou descrevendo faganhas. Sido encontrados nas Bibliotecas da Europa manuscritos das obras Iricas, (assim chamadas por inicialmente serem acompanhadas da lira), dos trovadores entre os séculos XIII e XIV. Nio obstante, a maior parte nio possi grafada a musica, mas, tao somente, o texto poético, J. Beck em seu livro La Musique des Troubadours* reproduz manuscritos das cangées, mostrando inclusive algumas em que foi desenhada a pauta, porém a notacio musical nao aparece. & 0 que se pode apreciar no exem- plo por ele citado (V. cliché). A interpretagio desses textos manuscritos é tarefa muito penosa, reco- nhecendo-se que eram precarias as condicdes de notacao, na época. O rit- 1 Fens, F. J. Histoire Générale de la Musique. Paris, Didot Fréres, Fils et Cie., 1869. 2 Turrsor, Julien, Histoire de la Chanson Populaire en France. Paris, Plon, Nourrit et Cie., 1889. p. 430. 3 Beck, Jean, La Musique des Troubadours. Paris, Henri Laurens Ed., s.d. 238 LITERATURA POPULAR EM VERSO — FSTUDOS mo era discursive, tendo como prece'to a obediéncia {i métrica da poesia A notagao neumiitica, com s’gnos que nao cram [ixos, viriava no tempo © no espago, conforme as no:mas e principios dos copistas, \ interpretagio da miisica herdada do periodo medieval tem gerado muita discordancia, como se pode constatar nos estudos diqueles que se dedicaram ao assunto. Fétis critica Coussemaker quando este passou, para a nowsa escrita mus‘cal, um dos cantos atribuides ao Corcunda de Arras, em compasso ternirio. Fétis considera-o em biniirio ¢ quando defende seu ponto de vista, baseiase no ritmo da poe A diliculdade para notar em pauta a misica [eit existiu. Podemos lembrar Tiersot; quando da publicagio do s 1889, escreveu: pelo povo sempre livro, em La voluninense collection manuscrite provenant de Venguéte faite a la suite du décvel de 1852, qui prescrivait la recherche des chansons populaires des provinces de France et feur groupement en un recueil général (collection conservée @ la Bibl otheque nationale), nous a notamment fourni de copieux renseignements Mais les plus préciewe et les plus exacts sont ceux que nous avons Lirés de la tradition populair. elle-méme.4 Tem totla razio o grande estud'ox0 francés; usando-se embora a cscrita musical un forme, fixa, aceita por todos @ ensinada nas escolas, jamais consezuir-seai, notada no papel, uma reproducao liel da cangao popular. As camadas analfabetas em miisica, que a praticam espontinea ¢ oral- mente, sem qualquer principio normativo, sem qualquer obediéncia aos ensinamentos escolares, tém os seus modismos, as suas priiticis, ay suas pe culiaridades, podemos dizer, 0 seu patois, que somente a gravagio pods reproduzir verdadeiramente. Continuando-se a abordar a questio da origem das cantigas de nossos bardos, nao hd como deixar de ressaltar que, em Portugal, também as obi mais importantes, mais expressivas do ponto de vista pocticomusical, fo ram ou pertenceram ao periodo trovadoresco, 1, Dinis, (1261-1525), 0 VI Re! de Portugal, assim como seu avd, o célebre D. Afonso, versejavam a maneira dos trovadores franceses. O acervo dessas cancdes perdet-se q todo, quando do terremoto em Lisboa, no ano de 1755. E, ainda, na revo- lugio de 1834, em que foram destruidos conventos ¢ mosteiros. Permanecem, contudo, na meméria do povo, os arcaismos na linguagem musical. EF Rodney Gallop que informa, quando se ref:re ao aparecimento das escalas moda’s: © respective wo na miisica popular portugues no se deve atvibuir a qualquer influincia eclesiistica, Antes da introducao da “boa tempera”, que condurin a cristalizagio das esealas modernas maiores € menores, 05 modas eram de uso geral, 4 Twrsor, op. eit, p. VIL A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 239 no sna musica eclesidstica, sendo também na profana c sobrevivem hoje, sempre que @ cungio popular conservou 0 cariter arcaico como nas thas Britinicas, no Pais Basco e na Bretanha.s As escalas modais, essencialmente diaténicas, ainda hoje sio as empr gadas na auténtica musica de Igreja, isto é, no canto gregoriano. Foram jstematizadas nos séculos IV ¢ VI, respectivamente por Sao Ambrésio ¢ Sio Gregorio. Usaram-se até 0 século XII, quando nao se podia fazer a dis- tingio entre 0 canto religioso € 0 profano. Foram justamente os trovadores, com o sentido de laicizacio, enfati- zando cada vez mais os assuintos liricos, assuntos profanas ¢ se afustando do espirito da Igreja, que comegaram a empregar nas suas cangdes as novas escalas de dé, sol, ré, Id, etc. Essas escalas constituiram, a partir do Renascimento, as chamadas esc: Jas tonais (inaiores ¢ menores). Consagradas por Joao Sebastizio Bach, foram empregadas nos grandes periodos do desenvoly:mento da musica erudita, chamados clissico ¢ romintico € representam os alicerces para os estudos classicos da miisica Apesar das dif'culdades de interpretagio da miisica praticada pelos trovadores, no hi como negar a influéncia por eles exercida através de Portugal. Negi-la seria o mesmo que negar a parte poética, & qual a misic esti integrada. Embora a mtisica constitua a parte mais espec’alizada, portanto mais dificil de especificagio e menos abundante nos dados capa- zes de fornecerem elementos para uma melhor amostragem, clevemos reco- nhecer na estrutura melddica, servindo de fundo aos cantares dos nossos bardos, muitas sobrevivéncias do periodo medieval. ntares do Povo Portugués. Lisboa, Instituto Para Alta Cultura, Liv a4 HISTOIRE GENERALE quet (f) : plusieurs vers y sont aussi transposés. Les vers sont de » syllabes, avec une césure apres la cinquiéme. M. de Cousse- et a publié un fac-simile de cette pidce , d'aprés le manuscrit, avec un essai de traduction en notation moderne (2). Nous, reprodui- sons ici une partie de ce fac-simile. 1 NCleIT Prasseres k AE o ul Sous oR TY , y piglet “eee riary .. 2 lng ewfpeliepeetok Tene marin As “28 ae a A gine - T ‘nigengeor € “nmin rave ormie # Ss mbtdolen plan siz Hest & remarquer que, dans ce docume , les vers sont coupés en deux et qu'au lien de A solis ort Usque ad occidua (0 toes tt (2) Ousrage eitéy ph Lamentacie pela morte de Carlos: Magno, om at vos «at sa — x . sere ie ee toa cree # me me me Ahtwr Si toon See si sa mma Bg mer re = aed a) wee ete atomag wat ne a Bee Bones gf ter fev ad tga Aor a enya. Ones & aed sam Ber Pasay nm me claire lt O gis maaan Re te ie mt NE Ka eet snewef age arver af fo wate ge me tonen on dae A yar toe en pA sso epee? we ote a: € Dina Ag ce ts denon se a em Ham gro soe cr we toe paces rion pene PEASE Pa Plann el cc redgs. 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Depois o assunto mereceu referéncias de outros musicdlogos e até trabalho especifico, como seja, o livro de Batista Siqueira, Pentamodalismo Nordestino 7. Podemos lembrar, em registro dos mais antigos, ern Silvio Romero, Cantos Populares do Brasil (1. ed., 1883), as melodias dos romances O Bot Espacio em 1a menor, sem a sensivel e O Anténio Geraldo em dd, com a sensivel abaixada ®. Vejamos a melodia que serve de fundo ao romance do Zé do Vale, cantada por Ascenso Ferreira numa das suas conferéncias, no Rio de Ja- neiro, gravada por Luis Heitor e pertencente ao Centro de Pesquisas Fol- cléricas da Escola de Musica da UFRJ: — a 3 +. z é = Se SS Senmhor Presi- dente se di-nhei-ro va-le se-nhor Pre-si - den-te se va-le ae SSS — eS a ee =j a a a oe oe Jo-me lddez ‘conto solteoZedo Va-le to-me Kdez con-to sol-teg Zé do Va-le — Senhor Presidente, Se dinheiro vale, Tome 1A dez conto Solte o Zé do Vale. 6 Cf. Lamas, Dulce Martins. Nepomuceno. Sua Posicio Nacionalista na Musica Bra- sileira, Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janciro, ano 4, n. 8/10, p. 13-28, jan./dez. 1964. 7 S1QUEIRA, Jodo Batista. Pentamodalismo Nordestino Baseado em Dados Folcloricos. Rio de Janeiro, Casa Arthur Napoledo, 1956. 8 RoMERO, Silvio, Cantos Populares do Brazil. Lisboa, Nova Liv. Internacional, 1883. 242 LITERATURA POPULAR EM VERSO — ESTUDOS — Minha senhora, Eu nao solto, nao, Seu filho é malvado, De mi condicio. — Tenho uma mulata, De estimacio Pra seu Presidente Nao tem preco, nao, — Minha senhora, Eu nao solto nio Seu filho é malvado, De ma condigio. Com todas as caracteristicas da toada nordestina podemos considerd-la numa escala modal, isto é, no modo mixolidio. — O VAL. TE VILELA (ROM! Outra toada de romance que podemos exemplificar é O Valente Vilela, cantada pelo afamado repentista, Cego Sinfronio Pedro Martins; gravagaio de Luis Heitor pertencente ao C.P.F. da Escola de Musica. O cantador acompanha-se de rabeca: gebeca Canto 3 IN. 255 mn Se ee Ho-mé pes-tea-ten-gao— Eu a-go-ra vou con-ta Um ho-m@ muito va =f A-te o prope cuaverno Pe-di-u de 0 pe-ga- ~len-te Que mo-rava num lu-ga Homé peste atencio Eu agora vou conta Um homé muito valente Que morava num lugi Até 0 prope gunverno Pediu de o pega. A toada cantada por Sinfrénio tem toda a rusticidade do linguajar regional. A melodia, também com abaixamento da sensivel, como que assi- mila, integra todas as inflexdes da voz do cantador, O ritmo, absoluta- mente oratério, é como se fosse um recitativo ritmico livre, tornando a A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 243 notagio em pauta incapaz de dar uma imagem verdadeira de tal liber- dade, motivada pela necessidade expressiva ¢ emocional da palavra. O tim bre da vor roufenho, rascante, nasalado, parece, em certos momentos, fun- dirse, plasmarse ao som musical, translormando-se num iinico elemento. Hai passagens em que nio se distingue 0 som cantado do som falado. Nesta gravagio, que foi transcrita por Silva Novo com todas as peculi ridades do modo de falar, na parte do acompanhamento observase um ritmo isdcrono, a tempo, no compasso 2/4, que o cego mantém enquanto canta, Porém a métrica do verso nao obedece ao ritmo do acompanha- Mento; apenas nas terminagdes dos versos, nas cadéncias, é sentida a coin- cidéncia. Na toada verifica-se, ainda, uma constancia na musica nordestina, ja assinalada por Mario de Andrade: “Consiste tecnicamente num salto descendente de quarta, com © emprego do semitom diaténico intermedia- rio junto ao som mais agudo.” * Realmente é © que se nos apresenta no fim do quarto ¢ do sexto versos da estrofe. Os sons musicais nem sempre atingem a altura devida, havendo uma certa desafinagio, um certo portamento peculiar que, aos ouvidos sensiveis & afinagio ou cducados musicalmente, chega a causar impacto. Digno de registro é 0 fato do som da rabeca ser também roufenho, parecendo subordinar-se as caracteristicas da cantoria, as condi¢ées fisio- logicas do cantador. Luis Heitor, alias, em “Instrumentos de Musica do Cantador Nordes- tino”, diz que, examinando a rabeca do Sinfronio, verificou que ela dava as notas bemolizadas ®, Realmente € a impressio que se tem ouvindo a gtavacio, O som parece ficar entre sol ¢ i, ouvindo-se simultaneamente com o ré. Esti grafado como ki, pela tendéncia mais natural de afinagio em nossa educagio nacional. 1.3 — TOADA DO BEIRA D'AGUA Curioso nos parece outro documento gravado também pelo Cego Sin- frénio e cuja tanscri¢io devemos a Lia Rejane Barcelos. Sinfrénio infor- mou que esta toada era usada pelo Beira d’Agua, cantador famoso, cuja lembranga é ainda guardada no sertao. 9 Awprabe, Mirio de, O Samba Rural Paulista. Revista do Arquivo Municipal, S50 Paulo, ano 4, n. 41, p. 112, nov. 1937. 19 Azzvevo, Luis Heitor Correia de. Instrumentos de Musica do Cantador Nordestino. In: Bras. Escola Nacional de Musica. Centro de Pesquisas Folcléricas. Relasdo dos Discos Gravados no Estado do Ceard. Rio de Janeiro, 1953. p. 52-56. 244 LITERATURA POPULAR EM VERSO — ESTUDOS Vejamos a toada do Beira d’Agua: jo es Sentimos nela o ritmo regular, a tempo, mais décil a tonalidade de Ii maior, tudo indicando deverse ao fato de nao ser cantada, mas, sim, executada i rabeca, no havendo portanto sujeigéo da melodia ato texto poético, como vimos no romance do Valente Vilela. Ali o cantador uso de um ritmo musical inteiramente desvinculado do compasso da vabeca, subordinado, tio somente, A métrica e 4 acent Jo day palavras 1.4 — CHEGADA DE LAMPIAO AO INFERNO (ROMANCE) Outro romance gravado por Luis Heitor, no Ceara. & a Cheguda de Lampido ao Inferno, cantado por Antonio Augusto Ribe acompanhar por viola. A melodia Em fi com a sensivel abaixada. ° s¢ja, 0 intervalo de quarta com o s pasos 7, 16, 24 € 3% O ritmo nesta toada é mais a tempo. Quem sabe pelo fato do canta dor ter bem memorizadas as cstrofes? O cantador tinha 20 anos de idade ¢ informou a Luis Heitor que aprendera o romance lendo-o de um folheto. Quando ele canta, observase que muitas s, principalmente as finais, quase no sdo ouvidas, sobretudo depois de uma tonica a que o cantor deu énfase ou atingiu por portamente ©, que se far ta igualmente uma escala modal nda a constincia ja assinalada, ow om na parte superior, nos com- A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 245 As estrotfes sAo em setilhas, isto é, com sete linhas de versos, tendo as timas dispostas do seguinte modo: ABCBDDB. Nota-se na primeira estrofe, que parece ser improvisada, uma sextilha. Também a ultima, em setilha, parece improvisacdo, mas, desta vez, conservando as rimas das demais. Antonio Ri-beirovai— Procurdemsu-a me-moria A hora propriaé chegada paracu carté umaes-té-ria Embo-raquetango dé uma santa da Cartulica Um ca-bra de Lampedo porno-me Pi-laodei--ta - - - -do——- Quemorreu em u-ma rin -cheira um cer-totempopas- ~fa— incen-diou-seg mer-ca-doe morreu tan-to cdo quei-mado que faz pe-naa-ré con - fa Morreu a maedeCangi- nha o paideForrobodd Cemnetos dePara- fusoe ym cao chamado Oté tape e tot Pose ad Escapudiua bo cain -sossa e uma Moleca mo-faquase queimavagro O Anténio Ribeiro vai Procura em sua meméria, A hora propria é chegada Para eu canta uma estéria Embora que ela nao dé Uma santa da Catdlica. Um cabra de Lampeio Por nome P Deitado Que morreu numa trincheira Um certo tempo passado Agora pelo sertéo E anda correndo visio E fazendo mal-assombrado. 246 LITERATURA POPULAR EM VERSO — ESTUDOS Esse foi quem trouxe a noticia Que viu Lampeio chega O inferno nesse di Faltou pouco pra vira Incendiou-se © mercado. E morreu tanto cio queimado Que faz pena até conta. Morreu a mae de Canguinha, O pai de Forrobodé Cem netos de Parafuso E um cio chamado Coté Escapuliu a Boca Insossa E uma moleca moga Quase queimava 0 toté, Morreram cem negros velhos Que nao trabalhavam mais Um cio chamado Traz-ca Vira-volta e Capataz Tromba-suja ¢ Bigodeira Morreu o velho Goteira Cunhado de Satanas. Entao nos vamé trata Quando Lampeio batcu Um moleque ainda moco No portao apareceu — Quem ¢ vocé, cavalheiro? — Moleque, sou cangaceiro. Lampeio Ihe respondeu. — Moleque, cu nao sou vigia E nem sou seu parcciro — E vocé aqui nao entra Sem dizer quem é primeiro... — Moleque abre o portao iba que sou Lampeao E assombro 0 mundo inteiro. ntao disse o tal vigia que ai, cu vou li dentro, Eu vou falar com o chefe No gabinete do centro Eu sei que ele nao Ihe quer Mas conforme 0 que disser Eu levo o senhor pra dentro. Lampeiio disse — Va logo Quem conversa perde hora Va logo e€ volte ja E eu quero pouca demora Se nio me derem meu ingresso Eu viro tudo asavesso Toco fogo ¢ you m'embora. A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 247 Entao disse o tal vigia A Satanis no salio: iba vossa senhoria Ai chegou Lampeao Dizendo que quer entra Mas eu vim lhe pergunta Se dou o ingresso 0 nao. — Nao senhor, disse ao vigia Va dizer que vi embora S6 me chega gente ruim Fu ando muito caipora Eu ja estou com vontade De bota mais da metade Dos que tenho aqui pra fora. Lampeio ¢ um bandido Ladrio da honestidade $6 vem desmoraliza A minha propiedade E mesmo nao vou procura Sarna para me cocar Sem haver necessidade. Disse 0 vigia: Patrio A coisa vai arruind Eu sei que ele se dana Quando nio puder entra Satanas disse: — Isto é nada Convide ai a negrada E leve os que precisa. Leve cem duzias de negro Entre homens e mulhé Va na loja de ferragem Tire as arma que quisé F bom escrevé também ros que tem E 0 compadre Lucifé. Ai chegando 0 Cambota, Endireitando o boné Formigueira e Trupezupe E 0 crioulo Pelé Chegou Bagé ¢ Pecaia Rabisco e Cordio de Saia E foram chama o Mané. Ai veio uma diaba moca Com a colacha de meia ‘Tirou a vara de cerca Dizendo: — A coisa tai feia Hoje 0 negécio se dana E gritou: — Eta baiana Agora o tipo vadcia! 248 LITERATURA POPULAR EM VERSO — ESTUDOS La vai a tropa armada Em direcdo do terreiro Com faca, pistola ¢ facio Cravinote granadeiro Uma negra também vinha Com a trempe da cozinha E o pau de baté tempero, Quando Lampcao deu fé Da tropa negra armada Di: — 86 na Abissinia © tropa negra danada! O chefe do batalhio Gritou de armas na mio Toca-Ihe fogo, negrada! Nessa voz ouviu-se tiros Que 86 pipoca no caco Lampeio pulava tanto Que parecia um macaco Tinha um negro nesse meio Que durante o tirotcio Brigou tomando tabaco. Lampeio pode apanhia Uma cayeira de boi Sacou na testa do touro Ele sé fez dizé: — Oi! Ainda correu dez bragas Mas, cain mexendo as caleas Mas, cu nao sci por que foi. Lucifer com Sataniis Vieram olhd no terraco ‘Todos contra Lampeio De cacete faca e braco O comandante no grito Dizendo: — Briga bonito Negrada, chega-Ihe 0 aco. Lampeio pegou um chexo E rebolou-o num cio Mas 0 qué — Arrebentou A vidraca do ito Saiu um fogo azulado Incendiou 0 mereado E um armazém de algodio. Satanis com o incéndio ‘Tocou no buzio chamando Entio correu todos os homens Que se achavam brigando Lampeio pegou a olha E nao viu mais com quem brigt E também foi se retirando. A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 249 Houve grande prejuizo No inferno nesse dia Queimou-se todo dinheiro Que Satanas possuia Queimou-se © livro de pontos Queimou-se vinte mil contos Somente em mercadoria. Leitores you termina Tratando de Lampedo Embora, mesmo eu nio possa Mas, deu-se uma revolucio No inferno nao ficou No céu também nao chegou Portanto esta no sertio. Quem duvida desta estéria Pensa que nao foi assim Queré zomba do meu s¢rio E nfo acredité em mim Va compra papel moderno Escreva para o inferno E mande sabé de Caim. Ja terminei a estéria Do moleque cangaceciro Se acaso nao acharem boa Perdio, 6 nobre cavalheiro, Narrei o que foi passado E o seu amigo e criado Antonio Augusto Ribeiro, 11 11 Esta verso se aproxima bastante do folheto A Chegada de Lampido no Inferno, dada como de José Pacheco. 2 — DOCUMENTOS GRAVADOS POR CEGO ADERALDO 2.1 — DESAFIO (SEXTILHAS) Passaremos agora 4 apreciagio de documentos executados por aquele que poderiamos, a grosso modo, considerar o Caruso ou o Camées na arte do versejar cantando. Dizemos assim porque, quando se faz a comparagao com gravagoes fei por outros cantadores, verifica-se, realmente, uma grande diferenga artisticamente falando, tanto sob 0 aspecto poético como musical. ‘Trata-se de gravagées feitas nos estudios da Radio Ministério da Educagao, quando da vinda ao Rio de Janeiro, em 1949, do Cego Aderaldo, que se fazia acompanhar por Domingos Fonseca e 0 rabequista, seu filho de criagao, Mario Aderaldo. Veremos inicialmente 0 canto alternado em sextilkas, que, na ocasiao, © cego nos informou ser a métrica mais usada, substituindo as quadras, que cairam em desuso. O canto é alternado entre Aderaldo ¢ Domingos Fonseca. O ultimo também acompanha com a viola, enquanto a rabeca é tocada por Mario Aderaldo ®: 4-75 paneca (Cego Aderaido ) 0 do- - ce luzdos meuso ‘nos — ~~ Co-ra-cao ea— lembran Ju-do quantoeupro-curo eu ve-Jo perse ve-ran.ca byron es eS Meu pei-to vive can-sado —— poremnaasen-te mu-dan - ca — Domingos) Eu desde mui-to crvanga quepro-cu-rei me manter —— Vi- vendo da cantori- a pa- > - by SS ees oF eee eee ar, SSS <3 vestic comer Jdaue ser orando— po-e-ta lutei mas nao pu-de ser 12 Tivemos, nos documentos gravados pelo Cego Aderaldo, a colaboragio de Alexan- dre Denis para a ingrata tarefa de notacao. A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 251 Cego Aderaldo: © doce luz dos meus olhos Coragio e a lembranca Tudo quanto eu percuro Eu vejo perseveranga. Meu peito vive cansado, Porém nao sente mudan¢a. Domingos Fonseca: Eu desde muito crianga, Que procurei me manter Vivendo da cantoria Para vestir e comer; Ja que ser grande poeta Lutei, mas nao pude ser. Cego: Jesus a mim quis fazé Neste caso que se deu: Eu perdé a minha vista Meus olhos escureceu Mas estou cantando as virtudes Que a natureza me deu. Domingos: Jesus me favoreceu Com a pequena viola Me deu a inteligéncia Que ao verso desenrola Eu acho que Ele deu-me Um preciosa esmola, Cego: Deus a mim, me deu a bola Para levar a cantoria Tirou a luz dos meus olhos Eu nao vejo a luz do dia Porém eu levo a palavra Transcrita em poesia. Domingos: Jesus prometeu-ine um dia E cu fiquei disto ciente Eu havia de ser pobre De viver sempre doente Porém me deu por consolo A cantoria repente. LITERATURA POPULAR EM Vi RSO — FSTUDOS Cego: Eu nao vivo indiferente Aqui no Rio de Janeiro Vivo muito consolado Meu canto sao verdadciro Embora que nesta terra Nao tenho ganhado dinheiro. Domingos: Eu sei que 0 Rio de Janciro uma cidade interessante Mas eu sempre me recordo Do velho sertao distante ‘Tanto que da minha terra N&o esqueco um s6 instante. Cego: Levo a minha vida ay Na terra misteriosa Nesta cidade tao linda, De pessoas tio garbosa Lugar aonde se vive A terra cheia de rosa. nte Domingos: De fato é muito formosa Nao ha quem diga que nio Parece com um pedacinho do céu Estendido no chio Mas nao se acaba a vontade De cu voltar pra o meu sertio. Cego: Eu sinto no coracio Aqui uma grande alegria Porém eu nao vejo o mundo Perdi toda a simpatia Ah, se eu. pudesse ver A estitua de Caxia, Domingos: ‘Teve grande Aquele homem alias Em reveréncia ao seu nome ‘Todo mundo ainda faz O nome dele na histéria Nao se apaga nunca mais. nm co 90 A MUSIGA NA CANTORIA NORDESTINA A melodia esta na escala mixolidia, apresentando certa homogenei- dade na sua estrutura, ou melhor, o mesmo desenho repete-se para cada linha de verso, com pequenas difercngas, impostas pelos vocabulos, pela expressio emocional e énfase de interpretagdo, na palavra proferida. Nas terminagdes ou cadéncias, separando as estrofes, observa-se que Domingos Fonseca empresta um sentido mais dramatico, fazendo porta- mentos, fermatas, etc. Quando se ouve a gravacio, fica-se lembrando das palavras tao judi- ciosas de Mario de Andrade: Mas, © nordestino possui maneiras expressivas de entoar que nao sé graduam seccionadamente 0 semitom por meio de portamento arrastado da voz, como esta as vezes se apdia positivamente em emissGes cujas vibragdes nao atingem os graus da escala. So maneiras expressivas de entoar, originais, caracteristicas e dum encanto extraordinirio. 13 2.2 — DESAFIO (QUADRAO) Outro documento gravado pelo Cego Aderaldo, como quadrao, tem um ritmo mais compassado, Sentimos nele as rimas poéticas coincidirem com os tempos do compasso. Deve-se, naturalmente, uo fato do quadrao constituir-se de duas quadras, emprestando 4 melodia uma certa simetria, certa regularidade, O canto € iniciado por Domingos Fonseca, verificando-se, contudo, que a regularidade da quadratura ¢ rompida nas terminac6es das estrofes, onde o cantador faz um prolongamento, realga a terminagio, dando-lhe toda forcga expressiva ou emocional. A linha melédica, ainda em escala modal, logo no inicio apresenta um desenho dos mais constantes na musica nordestina, ou melhor, o desenho formado pelas notas mi, sol, si, ré, como se fosse um arpejo de sétima dominante. O acompanhamento instrumental é feito em 1a, ao passo que o canto esta numa escala de mi com o VII grau abaixado. Alids é uma peculiari- dade, na musica de cantoria nordestina, a afinagao dos instrumentos ser feita abaixo da do canto. 13 AnpRAvE, Mario de. Ensaio Sébre Misica Brasileira. Si0 Paulo, I. Chiarato, 1928. p. 24. 254 LITERATURA POPULAR EM VERSO — FSTUDOS Vejamos as primeiras estrofes do quadrao gravado pelo Cego Aderaldo: ~raldocuvorna frente Cantan- do con-ve-ni - ente = \butma- -du-zin-dog m - Bees = ~pente Que al - quem dé a-ten - cao Eu es - tou de pron-ti - dao jun pe (ti) cin 2S SSeS Commeucom-pa-nhei-ro — Fa-zen-do ver-so li - g - $0 versoemquacdrao —— BSS = ia a= , POS cd a Eu che ~ gueines- ~ se lu - ga-ri-— Mas a- (ad 1b.) oo — . = eS a st FE + -quinaoe meus la-ri— Ours terre outros ma-ri, — Qu-tro “os (Prt Gu €ou- tro ser- ho Vou fa = lar de pron-ti - dao Nao & . * ~ Oc, um cantar ben dis to Po-rém meu versog bo - ni-to emqua-dra-de quad qua-drao, Domingos Fonseca: Aderaldo cu you na frente Cantando conyeniente Vou traduzindo 0 repente, Que alguém dé atencio. Eu estou de prontidio Junto com meu companhciro Fazendo verso ligciro Eu oico verso em quadrao, A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 255 Cego Aderaldo: Eu cheguei nesse lugar (i) Mas aqui nao é meus lar (i) Outras terra e outros mar (i) Outro céu ¢€ outro sertao. Vou falar de prontidao Nao é um cantar bem dito Porém meu verso é bonito Em quadrado, quadro, quadrao. Domingos: Cheguei ao Rio de Janeiro Junto com meu companheiro, De fato ganhei dinheiro Mas ja estou em precisao. Porém nesta ocasiao D. Dulce nos convidou E nossa sorte melhorou, Cantando oitayo em quadrao. Cego: Vou preparar 0 quadrado E you arrumar © esquadro, Para ver se faco quadro, Preparar a quadra Ver as quadras como sio Depois do quadro bem feito Canto muito satisfeito © quadrado, quadro, quadrao. Domingos: Eu dou a bala ao meu pcito Quadrando do mesmo jeito, Para ficar satisfcito Quadro o dedo € quadro a mao. Quadro o café, quadro 0 pao Quadro 0 pio, quadro o café Quadro a igreja, quadro a fé E termino tudo cm quadrao. Cego: Pra fazé um oitavado, Pra ao depois fica quadrado Pra ficd sextivado Vou fazé a quadracio. 256 LITERATURA POPULAR EM VERSO — ESTUDOS Mostro os quadro como sio Tudo riscado ao compasso Tendo 1a um pé de aco Em quadrado, quadro, quadrao. Domingos: Quadro a forma, quadro o queijo Quadro a boca, quadro o beijo A vontade e 0 desejo O gozo € a satisfagao. Aqui tenho o coracao O coragao e a vida Quadro a praca e a ayenida E termino tudo em quadrao, Cege- © meu Deus, que cousa boa Nao levo a conversa a toa Minha palavra revoa, Pela forga de um pulmao. Nao me déi © coragio E nao é uma cousa louca Sai o meu verso da_ boca, Em quadrado, quadro, quadrao, Domingos: Eu nao quero me gabar Desejo apenas cantar, Agora é pra terminar, Que © mogo acenou a mao. 4 Eu olhei pra posicaio, Vou terminar meu repente Sim, senhor, ji estou cicnte Vou terminar meu quadrao, 2.3 — DESAFIO (MOURAO) Das métricas mais dificeis, na arte de versejar nordestina, é 0 cha- mado mourdo ou trocado. Consiste na feitura de estrofes assimétricas, in- tercaladas pelos dois cantadores. Vejamos 0 mourdo cantado pelo Cego Aderaldo e Domingos Fonseca. Observa-se certa monotonia na linha melédica que é rompida justamente 4A ultima estrofe de Domingos Fonseca faz referéncia ao sinal, feito pelo técnico de gravacio, para avisi-lo de que o disco estava terminando. Cego Aderaldo. A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 257 no fim do verso ou da estrofe, quando 0 cantador, pela variagao da nota de repouso, pelo salto melédico ou pela nota sustentada, empresta ao can- to uma nova dindmica expressiva. Nao se pode deixar de ressaltar que prin- cipalmente Domingos Fonseca tira efeitos, da palavra ligada a misica, muito esp€ciais. Somente a audigao da gravacdo pode reproduzir fielmente. Na linha melédica de Domingos nota-se certo colorido, 0 que nao ocorre na parte cantada do cego que, embora m variantes a cada entrada: diat6nica, vai fazendo -| de-rat- do Fer rei-ra_ vamos cantarum mou- - rao N30 ha du-vi-dameuamigo Qu'éa ee ae pepe =. rise yi — —— —_— mi-nha o-bri-ga - ¢ao a-cora —-ver-so.-fro-ca — - do prati - car rambemris- = 5 = FP Fr = = ca-do i-gual_ men-tea umqua -drao fry ley LY Ta-di- PS. Domingos Fonseca: Seu Aderaldo Ferreira Vamos cantar um Mourio, Cego Aderaldo: Nao ha dtivida, meu amigo, Que é a minha obrigacao. Domingos: Agora verso trocado Pra ficar também riscado Igualmente a um quadrao, Cego: Ta direito, tem toda raza E um trabalho bonito. 258 LITERATURA POPULAR EM VERSO — FSTUDOS Domingos: Eu estou fazendo isto Com © coracgio contrito. Cego: Olha vai de conjuntura, Para feichar, criatur: Quase que me precipito. Domingos: Meu verso parece escrito, Ja vem me desencanado, Cego: Parece 0 cego velho, Onde ele canta, é contado. Domingos: Eu pra cantar nao me vejo, O carro engata e quebra 0 eixo, Meu mourdo ti bem fincado. Cego: Reto, bonito ¢ pesado Foi meu trabalho direitinho, Domingos: Por Deus, que até agora Tem cantado com carinho. Cego: Aderaldo quando canta, Da um trino na garganta, Que parece um_ pass: Domingos: Quando avoa do ninho Para nao voltar jamais. Cego: Me parece que Ele chora E suspira, da um ai... A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 259 Domingos: Parece também que repousa, Porém ainda faz forca Que cantor novo nao faz... Cego: Eu me lembro de rapaz, Quando eu era criatura. Domingos: De fato devia ter Enorme mosculatura, Cego: Hoje quero, mas nio posso Doé-me a carne, arde os osso Falta até a dentadura Domingos: Chegou uma criatura Nos olhando da janela 15 Cego: Para ver nossa cantiga Que nés canta pra donzela. Domingos: Quem sera este cidadio, Que terminado este mourao Nés vamos cantar parcela. Cego: E uma cousa muito bela Que inté tio bem tangida Domingos: Fo que pode chamar-se A maravilha da vida, 15 Domingos Fonseca, demonstrando uma extraordindria vivacidade de criagio, que em nada abalou a marcacio dos tempos ritmicos, refere-se a um funciondrio da Radio Ministério da Educacfio que, chegando na ocasiao, espiou-os pela vidraca do estudio 260 LITERATURA POPULAR EM VERSO — FSTUDOS Cego: E uma cousa muita bela, Que se cantar em parcela, A cousa tao bem conhecida Domingos: $6 uma velha luzida Cantara parcela bem. Cego: £ a regra mais ou meno, Canta vocé, canta alguém Domingos: Na minha lira amare Mas para cantar pd E nds dois ¢ mais ninguém. Cego: Eu jd cantei muito bem, Mas hoje vivo tio cansado. Domingos: Assim mesmo, aonde canta Ainda da bom resultado. Cego: Quando you canta parcela, Eu nao me lembro mais dela E fico acola colocado. -2.4 — DESAFIO (MARTELO AGALOPADO) Para terminar a exemplificagio musical apresentamos o que Aceraldo denominou martelo agalopado. F um dos pontos culminantes nos cantares nordestinos. A complexidade da estrofe, em décimas com versos decassila- bos, cantada alternadamente e cm improviso, se rellete na linha melddica. Sente-se todo o imperativo da acentuagio prosédica sobre a linha da melo- dia. Nao podia deixar de ser assim. Ainda que se observem versos de pés quebrados, é um tipo de cantoria que requer habilidade invulgar, reve- lando nesses cantadores obediéncia absoluta ds rimas € ao assunto esco- lhido, que foi “O Poder da Natureza”. Nao podemos deixar de ressaltar que neste documento, mais ainda do que em qualquer outro, a notagio em pauta s'mplesmente oferece uma A MUSICA NA CANTORIA NORDESTINA 261 idéia do contorno da linha melédica. £ cantada muito livremente, desvin- culando-se das exigéncias métricas e prosédicas que o acompanhamento da rabeca e da viola poderiam impor. O ritmo compassado € sentido ape- nas entre alguns versos ou estrofes, dado pelos instrumentos. A escala é modal como todas as outras que aparecem nos documentos citados, e apresenta as constancias ja observadas. J: 88 Aderaldo a ee ie = 3 oe i Mas a-mi-gogu’stoupreocu - pado — Va-mé a- go-ra nésdoiscan-h um tra - scivso fa~14 pela no-bre-za Con-vi- da aps seuseutambemyou Como ds oPomings canta- ss ominges | 3 = i= -& vais can-ta 0 poderdanatureza E methor num sentido di-te- CoS ea 2] ae ee sy Cee SS rico debe-e-za E 0 ar pelo qual a chuvag pre-sa pelo tempo da chuvaa terra diz depois demole a terrain da asso-bi-aé multe grande o po-der danatu-re-za— 262 LITERATURA POPULAR 1 VERSO — FSTUDOS Cego Aderaldo: Mas amigo, eu estou preocupado Vam6 agora nés dois canta Um trabalho que eu qucro cita Para ir num martelo agalopado, Segundo se vai anunciado. E uma obra bonita de grandeza F. preciso fala pela nobreza, Convida aos seus, eu também vou, Como és 0 Domingo cantadd Vais canté o poder da natureza. Domingos Fonseca: F melhor, num sentido diferente, Que cantar a natureza é bem custoso, F preciso um poeta espirituoso F, alias, um pouquinho inteligente. Porque sé contemplar-se 0 sol poente, O seu raio tao rico de beleza, E o ar, pelo qual a chuva é presa, Pelo tempo da chuva, a terra diz Depois de mole a terra ainda assobia: F, muito grande o poder da natureza, Cego Por exemplo, se planta uma semente, Numa terra limpa e bem queimada, Ela nasce linda e bem grelhada, Por impulso dessa terra imida e quente, Vai crescendo e ficando diferente, Tomando aspecto e beleza; Embora que a arvore nasca pr Entre dois rochedos absolute Ela cria mesmo flores ¢ frutos Pelo pulso da mio da natureza. Sal Domingos: Se o macaco se lembra, energia, Quando vai roubar milho em um rogado, Sempre deixa na cerca colocado Um macaco pequeno como espia, Se o dono do rocado, neste dia, Vai buscar um legume pra despesa, Ele avisa aos outros e com ligcireza, Sai correndo da mata pela fralda, Com os rastilhos de milho presos 4 cauda Isto tudo é poder da natureza. A MUSIGA NA CANTORIA NORDESTINA 263 Cego: Se @ lagarta tem forma de serpente Quando vai caminhando em um'estrada, Mas, depois, metamorfoseada, Ela toma porte diferente, Cria_asas © couro reluzent Verdadeivo vislumbre de beleza, Nem arte, nem dinheiro, nem riqueza Poder pintar beleza igual. Também tudo isto universal, Impulso da mio «a natureza. Domingos: Deixa a onca, de noite, a sua caverna, Para o filho, vai atris do alimento Procurando andar de encontro ao vento, Devagar, por ali, trocando pernas: © amor proprio do filho Ihe governa E obriga a lutar, sem ter certera, Se vence ou € vencida pela presa. Mas, vencendo, quem vence & 0 pedaco, Ela leva pro filho atimentar-se, Nisto tudo se estampa a natureza 3 — CONSIDERAGOES GERAIS. 3.1 — RITMO. Na forma mais significativa da misica de cantoria seria initil indi car a duracio do tempo por um ritmo predeterminado. ‘Vemos de convir que a duracio de tempo esti implic:ta no acento lingilistico da palav Mas, embora o ritmo seja livre ¢ se aptesente refratirio aos moldes esquein ticos da miisica compassada, ele obedece a uma Logica, $ tempo integram-se ao esquema poético € cia do cantador, pela sua propria nature as unidades de io preconcebidas na conscitn- intuitiva, A ritmica da cantoria € oratéria, provém diretamente da prosédia, tal como todo 0 canto que se praticou até 0 Renascimento ¢, ainda hoje, s conserva no canto gregoriano. © ritmo da cantoria satisfaz principalmente as necessidades da acen- tuacio métrica das palavras € no como ocorre na maior parte da musica folelérica do pais, em que 0 canto obedece ao compasso, a medida a tem- Po, justificando-se pelo fato de se ter originado da misica chissica, musica de danga, desenvolvida principalmente a partir do periodo renascentista 3.2 — MELODIA Assim como a poesia, a melodia tem elementos preexistentes. Ainda que se verifiquem processos de inventiva, sio mais de detalhes, de nuances do que de conjunto. Pode-se diver que hi uma estrutura, uma base fixa, & qual se incorporam, sob a inspiracio, a necessidade do momento ou a emo- Go, pequenos desenhos, ligeiray variagdes, que emprestam as formas tradi cionalmente estabelecidas uma constante imagem de renovagio. Esses fatores de acréscimo ou transformagio contribuem para que a melodia nunca se repita da mesma maneita, E nisso agrava a dificuldade de tanscrever, de hotar em pauta com autenticidade a musica rustica dos nossos cantadores. Eles no obedecem aos paradigmas de uma afinacio universal, aos ensina Mentos institucionalizados, 4s medidas sonoras controladas por diapasao, como na miisica estudada. Sobretudo, nio repetem uma melodia escrita, po- rém a misica que conservam por tradicio oral, sujeita portanto a todas as contigéncias do improviso. MUstCHENS (Drapris om trmpaice det se sidele. Bibl, Nat, Fat. Ht.) A MUSIGA NA CANTORIA NORDFSTINA 265 Mas, apesar das variagées — como acontece em toda musica folelérica — © principio fundamental da criagdo é sempre 0 mesmo ¢ na toada de can- toria & expecificamente regional 3.3 — IMPOSTAGAO O cantador do Nordeste tem a sua maneira peculiar de cantar. En- quanto a impostacdo dos que estudam canto baseia-se na vocalizagio regu- lada pela respiragio, na arte dos nossos bardos populares a emissio se faz naturalmente. Cantam como se estivessem falando. Dai o canto ser nasa- lado. Podemos mesmo concluir ser a impostagio nasal o fator que contr: bui para que o cantador passe horas a fio, cantando e improvisando, sem demonstrar fadiga. 3.4 — INSTRUMENTAL Procurando-se a origem dos instrumentos usados na Idade Média, en- contram-se apenas indicagdes manuscritas, esculturas, baixos-relevos ¢ pin turas, como se pode apreciar na limina, dada por Beck, na obra citada como instrumentos usados no século XI (V. cliché), Sabemos que os instrumentos mais usados na época trovadoresca fo- ram a harpa ea viola, mas Lavignac informa terem os instrumentos de corda, na sua multiplicidade de formas e aspectos, s¢ organizado hierar- quicamente somente a partir do século XVI". Nao obstante, como registra Fétis, na obra j4 mencionada ™, aparecem nos séculos XIV e XV instru- mentos de 3, 4, 5 ou 6 cordas, que apresentam diferencas e se distinguem em violas altas, tenor e baixo. A rabeca é descrita como tendo timbre mais baixo, com 4 cordas de tipa geralmente afinadas em 5.* (sol, ré, li, mi) e friccionadas com arco de crina, passado em breu. A nomenclatura € igualmente complexa; davam 0 nome de viele, is veres, ao instrumento de arco, cujo tiltimo representante foi a gamba Mas 0 importante & que até a rabeca merecer os aperfeicoamentos ¢ fabricagio esmerada que The deram as familias Amati, Stradivarins e Gua nieri, na primeira metade do século XVII, na Ivilia, e ter compositores do gabarito de um Corelli, transformando-a num instrumento dos mais no- bres — ela cra plebéia — considerada como instrumento da ralé. F ainda 16 La Musique des Troubadours. 17 Lavionac, Albert, Encyclopédie de la Musique. Paris, Libr, Delagrave, 1925, Deuxi éme partie, p, 1756. 18 Histoire Générale de la Musique. 260 LITERATURA POPULAR EM VFRSO — ESTUDOS Lavignac que diz: Gigues et rebecs restent en partage aux ménétriers de basse condition, Assinala-se a presenga da rabeca na Europa até 0 século XVIL, sendo descrita como um instrumento de sonoridade irtitame ¢ estridente. Mas, rabeca, 9 nome arcaico do violino, conservou-se entre as noysias populagdes do interior ¢, bem assim, o scu arco realmente em curvatura, emprestando-the uma sonoridade especifica, em virtude de friecio sempre mais de uma corda. Outra coisa digna de registro ¢ ja assinalada por Camara Cascudo foi o habito de segurar o instrumento apoiado sobre © bracgo ¢ com a voluta para baixo, tal qual se pode verificar nas magnificas pinturas do Vaticano, em que anjos cantores empunham instrumentos de cordas (V. cliché). Ja as violas (instrumentos de corda sem arco), reduzidas a 4 principais, 4 imitagio do quarteto vocal, monopolizaram a aten luteristas que, introduzindo-thes aperfeigoamentos, acabar trumentos integrantes do quarteto classico de cordas. Mas, no se pode deixar de salientar, foi ainda com as formas popula res mais variadas, com as afinagdes bem diversificadas, com a natureza das cordas diferentes em mimero e qualidade, como se constituiam na Europa nos séculos XV e XVI, que elas chegaram ao Brasil, travidas pelos pri- inciros desbravadores, conservando-se e ambientandose ais tendéncias do folclore nordestino, Para se constatar isto ¢ bastante que se consulte Luis Heitor, quando faz o estudo “Instrumentos de Musica do Cantador Nor- destino” © se refere a rabeca de José A. de Sousa: De manufatura popular, yolumost © pesida, potlendo ser t asemelhava-se mais a uma viola (viola de arco, Tinha cordas de metal, tomaday de empréstimo a dois borddes) © se achava afinada entre a pportada a tiracolo, alto”), do que a um violino. ola sertaneja(luas brancas € jola de arco € © violino. 1 Lasts se, oft cits. po 1794, CONCLUSAO Ainda que nao se possa desdenhar da importincia do canto gregoriano na musica das camadas menos cultas do nosso povo, observando-se mesmo, em certos casos, um aproveitamento completo das melodias adaptandose as mais diferentes letras, como demonstra 0 Pe. José Geraldo de Sousa ®, julgamos, contudo, que a misica incorporada a poesia dos nossos canta- dores nao tenha sofrido influéncia direta da catequese religiosa, no Brasil. Mas, antes, sua origem é mais remota, ja estava incorporada aos proprios cantares dos primeiros colonizadores aqui aportados Eles, certamente, cram portadores de uma arte lirica, de sentido abso- lutamente profano, que enchia as suas horas de lazer ¢ que era inteira- mente desvinculada da miisica praticada nos templos religiosos. Contribui, ainda mais, para esta tomada de posigéo, 0 saberse que grande parte do nosso cancioneiro, como demonstra a saciedade em suas obras Camara Cascudo#!, tem suas raizes no periodo medievo. Também as xilogravuras, ou gravagées em relevo, na madeira, foram muito usadas. A principio imprimindo pequenas imagens de santos; mais tarde, no perfodo quatrocentista, dadas as necessidades de divulgagio e multiplicagio, com os temas mais variados, passaram a ilustrar os “livri- nhos em bloco”. Foi, entdo, farta a aplicagio das xilogravuras na arte gtfica, enquanto nao se havia inaugurado o uso dos tipos méveis fundidos, isto ¢ a nova invengio de Gutenberg. Foi assim que a xilogravura entrou em nossos costumes, certamente trazida pelos primeiros europeus chegados ao Brasil. A xilogravura cons titui um dos aspectos artisticos populares da mais alta significagio, que sobrevive na nossa literatura de cordel. Outra coisa digna de mencio é 0 instrumental acompanhante que, po- demos dizer, ainda hoje é especifico na arte dos bardos nordestinos, Vimos, ainda que superficialmente, como a rabeca ¢ a viola tém sua filiagio no instrumental de cordas, da Idade Méd 32 Sousa, José Geraldo de, pe. Contribuigie Ritmico-Modal do Canto Gregoriano Para_a Miisica Popular Brasileira. Revista do Arquivo Municipal, Sio Paulo, ano 27, 1. 163, p. 39-66, abr./jun. 1959, 21 Cascuno, Luis da Cimara, Literatura Oral. In: Liss, Alvaro, dir. Histéria da Li- feratura Brasileira, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1952. v. 6. —. Vaqueiros ¢ Cantadores. Porto Alegre, Liv. do Globo, 1939.

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