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A modernização do Repente de Viola e os Impactos na sua

Dinâmica

CÍCERO RENAN NASCIMENTO FILGUEIRA∗

A Cantoria de Viola

O repente de viola é assim denominado por ter como característica principal a


improvisação dos versos narrados pelos poetas. O repente pode ser praticado com vários
instrumentos de acompanhamento, como o pandeiro (mais conhecido na embolada), rabeca,
viola, ou até mesmo sem nenhum instrumento, como hoje conhecemos as chamadas mesas de
glosas, onde certo número de poetas sentam-se em torno de uma mesa em frente à um público
para glosarem vários motes sorteados. O trabalho aqui apresentado focará no repente de viola,
que é das denominações mais difundidas do repente.

A chamada cantoria de viola, ou cantoria pé-de-parede, normalmente se divide em


várias etapas que se distinguem pela forma da métrica dos versos elaborados pelas duplas de
poetas. Um dos momentos que causam maior euforia entre a plateia é durante o desafio. O
desafio consiste no fato dos poetas, em versos em sete (sete sílabas poéticas em casa linha),
trocarem ofensas e testar os oponentes a dar respostas incisivas. Na cantoria de pé-de-parede
normalmente são decididos os cachês dos artistas com o dono da casa ou estabelecimento.
Mas, tradicionalmente é mais comum as cantorias de bandeja, onde:

Convencionalmente, os cantadores colocam a bandeja a seus pés, pois ela não pode
circular entre os presentes para não desvalorizar o cantador. Um apologista
verdadeiro paga ao poeta com prazer, ele vai para o ambiente já preparado para isso
e nunca oferece sua ‘paga’ por caridade ou esmola: quando o verso é bom, o
dinheiro sai (EVANGELISTA; SOUZA, 2012, p.3).

Mais à frente falarei de outra modalidade de evento, os Congressos de Violeiros.


Graduando em História pela UFPE. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Isabel Cristina Martins Guillen, UFPE.
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A Cantoria de Viola há muito se faz presente no sertão nordestino, onde a presença da


viola não é anterior ao Século XVIII (WILSON, 1986, p.77-83). Tendo surgido na região do
Pajeú pernambucano e o Cariri paraibano, tem como principais cidades Itapetim-PE, São José
do Egito-PE, Tabira-PE, Monteiro-PB, Patos-PB, entre outras cidades que formam esse
“quadrilátero da poesia”. O desafio, um dos modelos de cantoria de viola mais famoso, tem
seu registro mais antigo por volta de meados do século XIX, com poetas como: Agostinho
Nunes da Costa, o Glosador(1797-1852) e seus filhos Nicodemos Nunes da Costa (18??-
19??), Ugolino do Sabugi (Teixeira – 1832-1895), primeiro grande cantador brasileiro, e
Nicandro Nunes da Costa(Teixeira – 1829-1918), o poeta ferreiro, Silvino Pirauá Lima(Patos-
PB – 1848-1913), introdutor da sextilha na cantoria, do uso da deixa e do martelo-agalopado
(modalidade de verso com estrofe de dez versos e dez sílabas cada linha); Germano da Lagoa
(Teixeira – PB – 1842-1904); Romano da Mãe d’Água(1840-1891), Francisco Romano,
tornado lenda pelas famosas pelejas com Inácio da Catingueira (Catingueira-PB – 1845-
1881), o chamado gênio escravo, entre outros inúmeros poetas do meio rural sertanejo.
Interessante notar que a maioria dessas primeiras levas de poetas era de descendência de
cristãos novos, como os Nunes da Costa, da qual saíram mais tarde os “Irmãos Batista”
(Lourival, Dimas e Otacílio), considerados grandes expoentes da poesia sertaneja no século
XX (COSTA; PASSOS, 2013, p. 31-34).

Os estudos sobre o fenômeno da cantoria somente surgem com a República em fins de


XIX e início do século XX. Um dos primeiros a estudar profundamente o tema foi Silvio
Romero, em sua obra “Estudo sobre poesia popular”, escrito em 1888. Apesar de ter um
cunho determinista e eurocentrista, característico da sua escola formadora, Romero abre
espaço para outros estudos. O grande clássico do estudo sobre os poetas repentistas foi feito
por Leonardo Mota, onde em inúmeras obras dedica ao estudo do fenômeno, porém sua
principal obra foi “Cantadores”, escrita em 1921. Leonardo Mota aflora esses indivíduos que
estavam escondidos por trás de estudos superficiais que não olhavam as peculiaridades dos
cantadores, não entrevistavam a fundo nenhum cantador. Leonardo Mota fez questão de
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conviver com esses indivíduos para conhecer o universo da cantoria de viola. Outro
conterrâneo de Leonardo Mota foi, o também folclorista, Rodrigues de Carvalho que, entre
outras obras, escreveu “Cancioneiro do Norte” de 1903 e trás um riquíssimo conjunto de
relatos e fatos que recolheu ao longo de suas viagens pelo sertão, esta foi denominado por
Câmara Cascudo como sendo a obra “O clássico na bibliografia folclórica” (CARVALHO,
1967, p.12).

Leonardo Mota e outros tantos fizeram parte desse universo do início do século XX
dos chamados folcloristas. Um dos grandes expoentes foi Câmara Cascudo que,
principalmente em sua obra “Vaqueiros e Cantadores”, faz um apanhado dos temas, origens,
principais cantadores do universo da viola. Assim como diz o autor, o livro é uma obra de
“confidências”, onde muito dos relatos foram tirados de sua infância e da reunião de notas e
leituras feitas ao longo de 15 anos. É de seu livro que tiramos uma das vertentes mais aceitas
da origem do fenômeno por anos, de que viria da Europa, assim Câmara Cascudo nos aponta:

O que existe no sertão, evidentemente, nos veio pela colonização portuguesa e foi
modificado para melhor. Aqui tomou aspectos novos, desdobrou os gêneros
poéticos, barbarizou-se, ficando mais áspero, agressivo e viril, mas o fio vinculador
é lusitano, peninsular, europeu.(CASCUDO,2005, p-192)

O autor deixa em segundo plano a miscigenação do negro escravo, branco europeu e


índio nativo, ocorrida durante o processo civilizatório no sertão nordestino. O mesmo ocorreu
no pensamento de Silvio Romero onde, segundo este, a poesia popular como vemos no sertão
nordestino é peculiarmente brasileiro e para tal ocorrer foi devido a miscigenação, mas com
uma certa hierarquia. Silvio usa do darwinismo social ao afirmar que a condição do índio é
primitiva demais para influenciar tanto quanto os europeus no ideário do povo que se formava
quando os portugueses chegaram e, portanto, foram civilizados pelos europeus. Já o papel do
escravo na poesia popular é obscurecido por um sentimento de passividade quase como se os
africanos estivessem no Brasil apenas a passeio. Deixando assim a cargo dos ibéricos o papel
de maestro do desenvolvimento da cultura brasileira e, logicamente, da poesia popular
brasileira (ROMERO, 1888).
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Mais tarde, o estudioso espanhol erradicado no Brasil Luis Soler, em seu livro
“Origens árabes no folclore do sertão brasileiro”, faz um belíssimo trabalho onde procura
enquadrar o fenômeno dos nossos repentistas sertanejos nos vasto panorama de países.
Busca, portanto, uma fronteira comum: a dos árabes, no Ocidente europeu-medieval, com a
floração da sabedoria e da arte por eles implantaram e desenvolveram durante 800 anos na
Península Ibérica e na Sicília. Como reflexo deste processo, vemos os colonizadores
espanhóis e portugueses, “impregnados ainda da rica cultura dos povos recém-banidos da
Península, foram expandir para a América do Sul” (SOLER1995, p.17) uma cultura de um
povo (árabes) que nem sequer fez parte da migração direta para essas terras (SOLER, 1995).
A partir deste ponto, Soler, como sendo professor do Departamento de Música da UFPE,
transcreve várias semelhanças entre trovadores peninsulares e improvisadores de outros países
da América Latina ao mesmo tempo em que disserta sobre os processos que os instrumentos
musicais (pandeiro, rabeca e viola, por exemplo) usados na poesia de improviso passaram até
chegar aos nossos dias.

Após passar por esse breve apanhado de alguns estudiosos que dedicaram obras ao
tema da origem da poesia do repente, passarei a dedicar mais especificamente à análise da
dinâmica dos violeiros do repente ao longo de boa parte do século XX. Saindo do foco do
estudar a forma pelo qual chegou até nós o fenômeno e partindo para o estudo do tema, assim
como chamou Silvio Romero, do fenômeno peculiarmente brasileiro, nordestino.

A modernização do repente de viola no século XX


Ao longo do século XX observamos algumas mudanças na dinâmica da cantoria de
viola e dos violeiros em si. Um processo que podemos chamar de urbanização e midiatização
da cantoria. Mas, devemos entender essa urbanização como sendo uma urbanização focada
nos grandes centros e capitais, não nos centros urbanos locais. O repentista sempre teve um
contato muito particular com a cidade (ou pequenas vilas), pois, das feiras locais saiam seu
principal sustento.
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Nestes processos observamos que no início do século raramente havia cantoria em


grandes centros urbanos, sendo a grande maioria dos eventos ocorrida em sítios nas zonas
rurais das cidades do interior do estado. Assim, Câmara Cascudo descreve no prefácio de
“Cantadores” de Leonardo Mota:

Posso, evidentemente, dar meu testemunho e antiguidade de simpatia porque me


criara no alto sertão, ouvindo e aplaudindo cantadores. Numa capital era apenas, na
melhor da expressão, esquisitice, excentricidade, tolice. Assim, antes de 1921 [ano
de lançamento do livro de Leonardo Mota], o cantador não tomara, normalmente,
contato com a “terra grande”, cidade, jornais. Não era, e foi muitíssimo depois, um
assunto noticiativo. Meu pai tinha um jornal (“A imprensa”, 1914-1927) e era uma
surpresa tremenda, desconcertante, atroadora, quando iniciei a publicação das
minhas primeiras e tímidas pesquisas folclóricas (1976, p XLVIII).

O estranhamento da população da capital para com os repentistas podia passar além do


simples sentimento de esquisitice. Ou seja, podemos notar certo preconceito por parte da elite
(tanto econômica, como intelectual) com os poetas populares. Tal fato pode ser exemplificado
no fato de multas vezes poetas que cantavam em mercados eram confundidos com mendigos e
que por muitos anos não havia espaço para poesia dos repentistas nos manuais de literatura. O
poeta cego Cesário José de Pontes (Patos-PB, 1875-1947) em uma viagem para Recife em
busca de mais renda para família, fora confundido certa vez com um mendigo, em uma das
épocas em que a polícia retirava os mendigos das ruas como uma verdadeira forma de
“limpeza” das ruas. O poeta, que não pedia esmolas, vivia de cantar com os amigos nos
mercados, foi levado para a cadeia. Como resposta, após o incidente fazia uma cantoria no
bairro da Encruzilhada e, em meio a esta foi pedido que parasse a cantoria, pois, passava um
enterro de um soldado por perto. Logo em seguida, o poeta assim declamou em forma de
sextilha:

Passei ontem toda a noite,


Preso, num quarto, trancado,
Mas agora, ouço dizer
Que aí vai morto um soldado,
Se for dos que pegam cego,
Eu, desse, estou descansado. (WILSON, 1986, p.45)
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Com a chegada do rádio e de outras modernizações ao interior de Pernambuco a partir


da década de 1930-1940. Vemos que há uma gradual mudança na dinâmica do repente.
Primeiramente, a partir do lançamento de livros de folcloristas e com as missões de pesquisa,
como a proposta por Mário de Andrade1. Ao longo das primeiras décadas do século XX,
vemos uma maior aceitação pelas elites urbanas. Os poetas passam a animar as rádios e fazer
músicas para políticos em campanha na região. Podemos tomar como um grande fato e de
fundamental importância para a nova guinada que o repente de viola tomara foi o surgimento
dos Congressos de Violeiros. O I Congresso Regional de Cantadores de Viola ocorreu em
1948 no Teatro de Santa Isabel, em Recife, e foi idealizado pelo já conhecido intelectual
Ariano Suassuna e pelo poeta de Itapetim-PE, Rogaciano Leite. Este último foi um grande
representante da difusão do repente pelo país, tornou-se jornalista de grandes jornais, como
“Gazeta do Ceará” e chegou a ser repórter convidado do “Jornal do Commercio” e “Diário da
Noite”, ambos de Pernambuco. Fez, inclusive, apresentações em vários estados, cantando
inúmeras vezes para autoridades políticas (LEITE, 2009, p 6). Aos poucos as estratégias e os
contextos das cantorias de viola foram se alterando, novas perspectivas foram sendo inseridas
no mundo da cantoria de viola. Sobre tal fato nos diz Karlla Souza e Jucieude Evangelista:

Percebe-se que o movimento de “urbanização” do repente ocorre concomitante à


mudança de estratégias dos cantadores, isto é, os congressos surgem juntamente com
a poesia que migra para as cidades, dá-se então, em referências distintas do contexto
principal em que foi construída a cantoria, diferenciando-se também do conjunto de
estratégias utilizadas pelos cantadores até a década de sessenta. Nesse sentido, fazem
parte dessas novas estratégias, além das formulações de congressos, as gravações de
CD, os programas de rádio, TV e publicação de livros (2012, p.6).

Com a midiatização crescente da cantoria de viola a partir da década de 1960, o


cantador entrou em processo de profissionalização, motivado principalmente por um poeta
nascido no meio urbano, Ivanildo Vila Nova. Nos últimos anos, observamos a anexação dos
valores culturais globalizados à cantoria de viola, como um contato cada vez maior com o rap
e shows em larga escala, como é o caso da dupla de cantadores Os Nonatos, que utilizam dos
1
Primeiramente sozinho Mário de Andrade fez uma campanha em 1928. Posteriormente, idealizou junto ao
Governo da cidade de São Paulo a vida de uma missão, isso em 1938.
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artifícios da cantoria na construção de músicas que atingem um novo público não


familiarizado com a cantoria de viola. Tal modernização nas culturas populares é discutida
pelo antropólogo Néstor Canclini, em sua obra “Culturas Híbridas”, onde o autor foca sua
atenção nos papéis dos agentes sociais envolvidos na construção dos produtos culturais ditos
cultos, populares ou massivos, os ligados à produção da indústria cultural, e suas relações com
a modernidade. Em seu livro o autor atenta para o fato, por exemplo, de que os agentes
modernizantes (Indústria Cultural, Folcloristas, etc.) nada mais fizeram do que moldar os
cultos populares para uma realidade da elite oligárquica e intelectual, tudo sobre a premissa de
preservar algo que, para os estudiosos da época (folcloristas) estava por se findar. Para
contrapor tal ideia dos folcloristas, Canclini fez uma série de refutações, entre elas: o
desenvolvimento moderno não suprime as culturas populares, onde dados apontam para um
aumento do percentual de artesãos na população econômica ativa de paises latino-americanos;
e, as culturas camponesas e tradicionais já não representam a parte majoritária da cultura
popular (há participação significativa de populações urbanas e uma maior relação com a vida
urbana) (CANCLINI, 1998, p. 215-238).

Outro intelectual que nos ajuda a entender o impacto do choque de culturas é


historiador inglês, Edward Thompson, estudou a fundo a formação da classe operária inglesa
no século XVIII e em sua obra “Costumes em Comum” analisa através de uma “perspectiva
de baixo” as manifestações populares e a construção de costumes tradicionais. Para
Thompson, o objetivo principal da obra é identificar como os costumes, envoltos pela ideia de
manutenção da tradição, resistiam ao processo de modernização, oriundo do processo de
liberalização da economia. Thompson viu sinais de uma pressão vindos das elites em relação
às culturas subalternas inglesas no sentido de uma adequação do corpo camponês ao mundo
do trabalho industrial. Para a realidade da elite inglesa da época era conveniente que a
população seja ignorante, ou seja, que a educação seja vetada das classes baixas. A ignorância
dos plebeus mantinha o equilíbrio natural das forças da sociedade (MANDEVILLE apud
THOMPSON, 2008, p.15). A classe plebeia, excluída do padrão oficial de educação,
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principalmente durante o contexto de consolidação da alfabetização em massa, sustenta sua


estabilidade social a partir da tradição oral que, segundo Thompson, está repleta de costume,
imagens constituídas como mentalité. No entanto, não uma negação ou falta de assimilação
total da cultura patrícia, ou seja:

A cultura plebeia, que se reveste da retórica do costume e que corresponde ao tema


central deste livro, não se autodefinia, nem era independente de influências externas.
Assumira sua forma defensivamente, em oposição aos limites e controles impostos
pelos governantes patrícios (THOMPSON, 2008, p.17).

Fazendo um paralelo com a realidade encontrada com a cultura da cantoria de viola é


observável que, mesmo que muitos poetas apoiam as novas dinâmicas tomadas a partir da
década de 1950 como uma forma de sobrevivência da tradição, os congressos de viola são
vistos não como forma de manutenção, mas sim de fragmentação. Segundo Karlla Souza:

Numa visão conservadora, os congressos como campos de consagração poética


implicam em uma forma de competição ríspida e degradante. Além disso, reflete um
tipo de adequação ao espetáculo, a uma espécie de show que escamoteia o repente
como fragmento de um folclore nacional (EVANGELISTA; SOUZA, 2012, p.5).

Ainda podemos observar nesse contexto que os congressos podem ser considerados
como uma fenda que separa os repentistas de renome dos que não conseguem aspirar um
reconhecimento profissional. Porém, há uma resposta pela continuidade da tradição dos
ancestrais da poesia e, podemos tirar com exemplo deste fato, os congressos promovidos na
cidade de Itapetim, que apesar de ter mudado com o tempo aceitando muitos poetas de outros
lugares, começou somente com poetas locais (de renome nacional ou não) para a promoção da
poesia com rebusques dos grandes mestres de outros tempos. Outra forma que podemos
interpretar como sendo de resistência às mudanças está galgada no âmbito mais temático das
poesias produzidas. É notável um sentimento de rebuscamento ao campo, às origens rurais da
cantoria sempre trazendo a tona um sentimento de saudade, em inúmeras poesias produzidas
nas cantorias. Tal fato é notável em larga escala até mesmo nos poetas de renome dos meios
urbanos, como, por exemplo, o poeta João Paraibano que é conhecido como um dos melhores
nas temáticas que falam da natureza e do campo.
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Aliado a proposta de Thompson – resistência a processo de aculturamento em virtude


a modernidade, vemos o que o historiador Carlo Ginzburg desenvolveu a partir do
pensamento de Bakthin, a “circularidade cultural”. Ideias desenvolvidas principalmente no
seu livro “O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição” e que basicamente é o que o autor considera influxo recíproco entre cultura
subalterna e cultura hegemônica. Carlo Ginzburg utilizou dessa teoria para elaborar o estudo
sobre o processo inquisitório do moleiro Menocchio, que foi condenado por pregar ideias
contrárias às aceitas pela elite vigente. Tais ideias foram sendo construídas ao passo que
Menocchio tinha contato com leituras e as interpretava com seu olhar de camponês inserido
em uma realidade cultural diferente da que se projetava pela elite, no caso, a Igreja. Ideias
como que a vida teria sido gerada da putrefação, do caos.

Se buscarmos o pensamento de Ginzburg acerca da “circularidade cultural”, podemos


fazer uma conexão com o que ocorreu ao longo do século XX na cantoria de viola. A
quantidade de modalidades do repente que surgiram a partir dos anos 1920 é incontável.
Basicamente usavam-se, antes de 1920, principalmente a “quadra” (que caiu em desuso) e a
“sextilha” de seis e sete silabas poéticas2. Com o tempo surgiram várias outras, como a
“oitavas”, “décimas”, “martelo alagoano”, “galope na beira do mar”, entre outras. O contato
com o letramento trouxe aos poetas uma assimilação com modalidades poéticas da elite
cultural como, por exemplo, os sonetos, largamente utilizados no romantismo. Hoje os
sonetos estão mais que difundidos entre cantadores e glosadores, fazem parte do dia-a-dia dos
poetas. As temáticas e as estratégias dos poetas mudaram. Hoje é extremamente comum em
cantorias ter motes onde os poetas rimam com palavras em inglês ou têm que improvisar
versos que falam da política internacional, tal fato, mostra a construção do sentimento poético
no mundo globalizado. Porém, é observável também o movimento contrário, a assimilação da
cultura do repente pela cultura tradicional globalizada. Inúmeras bandas de música, que

2
Quadra consiste em uma estrofe de quatro linhas onde a primeira rima com a terceira e a segunda com a
quarta. Sextilha consiste em uma estrofe de seis linhas onde se rima as linhas pares.
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trazem em sua estrutura concepções contemporâneas, usam da estrutura e da forma de


declamar dos repentistas na confecção de suas músicas e shows. Assim como já foi
exemplificado a cima, com o rap, mas também, com bandas como “Cordel do Fogo
Encantado”, “Fim de Feira”, “Encanto e Poesia”, entre outras. Portanto, a cultura pode ser
encarada como uma mão de via dupla, onde influencia e é influenciada.

Conclusão

A construção de uma história da cultura popular torna-se essencial na manutenção e


autoconhecimento do fenômeno ao longo do tempo. O trabalho analítico sobre o fenômeno do
repente de viola surge como um fato a acrescentar perante os trabalhos descritivos praticados
por muitos folcloristas do início do século XX. Aqui pretendi abordar um pouco da história do
repente com foco no século XX e seus vários desdobramentos até os dias atuais com um olhar
crítico. Com isso, procurei construir uma ligação com dois teóricos da história cultural e
antropologia social, com Canclini, Thompson e Ginzburg, onde cada um, apesar das
coincidências, fazem leituras diferentes sobre a escrita da história cultural. O primeiro
focando nos impactos da modernidade nas culturas populares latino-americanas, o segundo na
resistência das culturas subalternas e o terceiro na construção do diálogo entre a cultura da
elite e das culturas ditas periféricas. Portanto, a construção de uma história cultural vista de
baixo quebra com antigos paradigmas da construção da história, ou seja, expõe uma nova
forma de interrogar a realidade.

Referências

• CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da


modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1998.

• CARVALHO, José Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. 3 ed. Rio de Janeiro, Instituto
Nacional do Livro, 1967.
11

• CASCUDO, Luiz da Câmara. Vaqueiro e Cantadores. São Paulo: Global. 2005.

• COSTA, Marcos; PASSOS, Saulo. Itapetim: “ventre imortal da poesia”. 2 ed. Recife: Ed.
CEHM/CONDEPE/FIDEM, 2013.

• EVANGELISTA, J. L. ; SOUZA, Karlla Christine Araújo. A poesia em movimento:


enraizamento e itinerância no repente. Em: XV Encontro de Ciências Sociais do Norte e
Nordeste e Pré-Alas Brasil, 2012.

• GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro


perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

• LEITE, Rogaciano Bezerra. Carne e Alma. 4 ed. Recife, FASA, 2009.

• MOTA, Leonardo. Cantadores; prefácio de Luís da Câmara Cascudo. 4 ed. Rio de Janeiro,
Cátedra. INL, 1976.

• ROMERO, Silvio. Estudos sobre poesia popular do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Ladmmert
& C., 1888.

• SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do sertão brasileiro. Florianópolis: Ed. da UFSC,
1995.

• THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Companhia das Letras, São Paulo: 2008.

• WILSON, Luís. Roteiro de velhos cantadores e poetas populares do sertão. 2 ed. Recife:
CEHM, 1986.

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