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ARTIGO ARTICLE
Gestão ambiental e democracia:
análise crítica, cenários e desafios

Environmental management: critical analysis, scenarios and challenges

Marcelo Firpo de Souza Porto 1


Gabriel Eduardo Schütz 2

Abstract This article discusses the limits, alter- Resumo O artigo discute limites, alternativas e
natives and challenges of environmental manage- desafios da gestão ambiental nas sociedades con-
ment in contemporary globalized capitalist soci- temporâneas inseridas no capitalismo globalizado
eties. It is based on a critical analysis supported a partir de uma análise crítica apoiada em autores
by authors from social sciences, political ecology das ciências sociais, da ecologia política e da saúde
and public health. To this end, we systematize the coletiva. Para isso, sistematizamos o significado da
meaning of hegemonic environmental manage- gestão ambiental hegemônica em sua vertente da
ment in terms of eco-efficiency and its limits to ecoeficiência e seus limites para o enfrentamento
tackle environmental risks and construct demo- dos riscos ambientais e para a construção de pro-
cratic processes and societies. We developed four cessos e sociedades mais democráticos. Construí-
ideal scenarios involving possible combinations mos quatro tipos ideais de cenários envolvendo
of environmental management and democracy. possíveis combinações entre gestão ambiental e
This model served as a base, together with aca- democracia. Este modelo serviu de base, juntamente
demic studies and the theoretical and militant com trabalhos acadêmicos e a experiência teórica
experience of the authors, for a reflection on the e militante dos autores, para uma reflexão sobre as
current characteristics and future trends of envi- características atuais e as tendências futuras de
ronmental management and democracy, with gestão ambiental e democracia, com ênfase na re-
emphasis on the reality of Latin America, specif- alidade latino-americana, mais especificamente na
ically Brazil. Lastly, we discuss possibilities for brasileira. Por fim, discutimos possibilidades de
social transformation taking into consideration transformação social a partir das contradições e
the contradictions and emancipatory alternatives alternativas emancipatórias decorrentes das con-
1
Centro de Estudos da Saúde resulting from confrontations between hegemon- frontações entre tendências hegemônicas do mer-
do trabalhador e Ecologia
ic tendencies of the market and counter-hegemon- cado e contra-hegemônicas provenientes de uto-
Humana, Escola Nacional de
Saúde Pública Sergio ic utopias and social movements. The latter as- pias e movimentos sociais, estas assumindo prin-
Arouca, Fundação Oswaldo sume principles of environmental justice, econom- cípios da justiça ambiental, da economia solidá-
Cruz. Av. Leopoldo Bulhões
ic solidarity, agro-ecology and sustainability as ria, da agroecologia e da sustentabilidade, bem
1480, Manguinhos. 21041-
210 Rio de Janeiro RJ. well as the construction of new epistemologies. como da construção de novas epistemologias.
marcelo.firpo@ensp.fiocruz.br Key words Environmental management, Democ- Palavras-chave Gestão ambiental, Democracia,
2
Instituto de Estudos em
racy, Future scenarios, Eco-efficiency, Citizen Cenários futuros, Ecoeficiência, Controle cidadão
Saúde Coletiva,
Universidade Federal do Rio control
de Janeiro.
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Porto MFS, Schütz GE

Introdução incorporação ou não dos quatro pilares propos-


tos para sua eficiência; e de outro a democracia,
Este artigo busca discutir as possibilidades de analisada não em seu sentido descritivo, como
gestão ambiental nas sociedades contemporâne- forma de governo e modo de vida de uma socie-
as inseridas no capitalismo globalizado a partir dade de mercado, mas em seu sentido substanci-
de uma análise crítica apoiada em alguns autores al e normativo3, como forma de sociedade inte-
das ciências sociais, da ecologia política e da saú- ressada em garantir, para todos os seus mem-
de coletiva. A importância desta reflexão parte de bros, a liberdade necessária à concretização e ao
dois pressupostos1,2: (a) a agudização dos pro- desenvolvimento de suas capacidades, incluindo
blemas ambientais na atualidade, que passa a ser os direitos humanos fundamentais e a distribui-
caracterizada como crise a partir do consumo ção equitativa de poder entre todos os cidadãos.
sem precedentes dos recursos naturais, da de- O modelo elaborado gerou quatro tipos ideais
gradação dos ecossistemas, da dramática redu- entre o pior (menos gestão e menos democracia)
ção da biodiversidade e do agravamento dos ris- e o melhor (mais gestão e mais democracia), os
cos ambientais, em particular os riscos ecológi- quais foram utilizados tanto para refletir sobre
cos globais tais como a destruição da camada de os limites e as possibilidades da gestão ambiental
ozônio, a poluição química transfronteiriça e as no contexto atual como para cenários futuros,
mudanças climáticas globais decorrentes dos assumindo de forma simplificada alguns pressu-
gases de efeito estufa; (b) o uso amplamente dis- postos metodológicos do planejamento estraté-
seminado pela sociedade e pela academia da ca- gico e da construção de cenários futuros4. Para a
tegoria gestão ambiental como principal estraté- análise foram levados em consideração cinco pa-
gia de resolução dos problemas ambientais, as- râmetros principais: econômico (externalida-
sociado a uma concepção de ecoeficiência que des), técnico (avanço técnico-científico), episte-
enfatiza ferramentas como tecnologias limpas e, mológico (incertezas), político (controle cidadão)
mais recentemente, a economia verde. Tal uso, e comunicativo (soberania informativa), os quais
entretanto, frequentemente oculta o contexto his- serão explicados mais a frente. A base empírica
tórico e social dos problemas ambientais despo- para a análise considera as características dos pro-
litizando o debate sobre os sentidos do desen- blemas ambientais, em especial no caso brasileiro
volvimento e da sustentabilidade. e dos demais países latino-americanos, tendo por
O artigo está organizado da seguinte forma: referência trabalhos que os analisam criticamente
inicialmente resgatamos a etimologia do termo no interior das sociedades contemporâneas1,5-7,
ecologia para discutir sua fragmentação, bem assim como a experiência teórica, prática e mili-
como as contradições e os limites da democracia tante dos autores no campo da saúde ambiental e
liberal hegemônica orientada pelos interesses de mobilizações por justiça ambiental2,8.
mercado para lidar com a sustentabilidade am-
biental e a justiça social. Em seguida, analisamos
o conceito de gestão ambiental e seus quatro pi- Ambiente, gestão e democracia:
lares no escopo da ecoeficência autorregulada, uma visão crítica
quais sejam: (i) sistema de gestão ambiental; (ii)
certificação ambiental; (iii) processos de produ- O termo Ökologie (Ecologia) provém do antigo
ção mais limpa; e (iv) avaliação do ciclo de vida. vocábulo grego oikos que significa casa, lugar onde
A ecoeficiência, visão de cunho gerencial e econô- se habita. A ação de fazer habitável a casa expres-
mico que orienta de forma hegemônica o concei- sava-se oikopoióse e oikonomos, a gestão da casa.
to de gestão ambiental, pode ser entendida como O oikos na cultura clássica denominava a unida-
a principal resposta de setores empresariais e de básica de produção e satisfação das necessi-
organismos internacionais à crise ambiental dis- dades vitais, e o oikonomos (economia) referia-
cutida pela ONU nas últimas décadas, tendo seu se às normas de administração dos bens ou ren-
apogeu na Rio 92. dimentos domésticos. Nas sociedades modernas,
Logo após, buscamos desenvolver uma con- fazer gestão define-se como a ação de dirigir, re-
tribuição teórica original em duas etapas: inicial- gular, governar, administrar. Por gestão ambien-
mente construímos um modelo de tipos ideais tal entende-se, portanto, a ação de gerir o ambi-
de gestão ambiental a partir da combinação da ente, seja em entornos localizados (trabalho/fá-
intensidade de dois elementos considerados cha- brica/casa), ampliados (bairros, cidades, regiões)
ves para a sustentabilidade e a justiça social. De ou globais, envolvendo, por exemplo, diferentes
um lado, a gestão ambiental avaliada a partir da países, continentes, oceanos ou o planeta como
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um todo. Sendo o ambiente um bem comum, do na própria ideia de gestão ambiental, tanto
sua gestão incumbe à esfera social, na qual pro- no senso comum quanto no campo acadêmico7.
cessos vitais dos indivíduos adquirem relevância Invisibilizados seus determinantes históricos, ela
pública. Quando a Polis começou a gerir a esfera passa a ser concebida não como uma ação polí-
social, a economia doméstica (oikonomos) se tica que busca dar sustentabilidade ao capitalis-
transformou em economia política9. No entan- mo e a interesses do “mercado” (oikonomos), mas
to, o debate sobre como devem ser geridos os como uma maneira neutra de administrar os
aspectos ambientais do oikos é mais recente, de- ecossistemas que dão suporte à vida (oikopóios)
mandando uma integração a priori da Ökologie e controlar riscos. De certa forma podemos atri-
com oikopóios e oikonomos, o que vem ocorren- buir à gestão ambiental um caráter de fetiche:
do nas últimas décadas nas ciências sociais e da assim como o fetichismo da mercadoria vem tor-
vida, por exemplo através do desenvolvimento nando invisível o trabalho humano, o fetichis-
da Ecologia Política e da Economia Ecológica2,5. mo da subjetividade faz com que as pessoas acre-
A Ecologia explica que os organismos dispõem ditem firmemente na autonomia de seu poder de
da capacidade para gerir seu habitat como estra- escolha, muito embora seus desejos possam es-
tégia de sobrevivência; porém, não consegue ex- tar determinados em forma heterônoma pelos
plicar sem reducionismos a intervenção na natu- dispositivos simbólicos do mercado7,10.
reza mediada pela ação humana, a qual resulta de Nesta perspectiva, a gestão ambiental hege-
processos históricos e envolve uma complexida- mônica insere-se na crítica que Nunes11 faz ao
de emergente ou reflexiva, característica dos siste- modelo da “dupla delegação” presente nas de-
mas sociais, técnicos ou mistos os quais não po- mocracias modernas: de um lado, colocando de
dem ser explicados de forma mecanicista ou fun- forma exclusiva a competência na produção de
cionalista1,6. Um aspecto importante que diferen- conhecimento nas mãos de especialistas e cien-
cia os humanos dos demais seres vivos é o fato de tistas, e de outro a político-administrativa nas
gerar relações entre congêneres que condicionam mãos de políticos eleitos, funcionários do Estado
seu comportamento posterior: em cada momen- e suas instituições. O cidadão é reduzido ao pa-
to histórico as combinações de propriedade / aces- pel de mero eleitor, consumidor e “usuário” de
so / uso dos recursos disponíveis estão determi- serviços e “opções” políticas de cuja formulação
nadas pelas relações sociais de produção, as quais, não participa, ampliando-se a lógica instrumen-
por sua vez, condicionam em grande parte as for- tal de mercado para o conjunto da vida social.
mas diferenciadas de relacionamento das socie- Neste contexto, a sujeição das relações sociais à
dades com a natureza6. Este relacionamento pro- ordem hegemônica precisa invisibilizar fraque-
duz o “ambiente”, uma construção determinada zas e contradições do sistema, em especial a não
pela conjunção histórica das forças sociais que universalidade da participação, os conflitos soci-
conseguem impor a sua hegemonia. oambientais e as demandas de saúde colocadas
Atualmente, observam-se hegemonias bem sob a ótica dos direitos e da justiça ambiental,
consolidadas5,7-9: (i) A democracia liberal capita- bem como formas de conhecimento, solidarie-
lista como sistema em que prevalece a lógica eco- dade e sustentabilidade incompatíveis com inte-
nômica, e a política se torna um problema ape- resses dominantes. Portanto, podemos entender
nas administrativo; (ii) as leis de mercado como a concepção hegemônica de gestão ambiental
instrumento de regulação das relações sociais; como uma ferramenta de governança, ou seja,
(iii) a governança como instrumento de mitiga- uma forma de administrar a conflitividade social
ção dos conflitos sociais; (iv) a prioridade lexical decorrente das contradições e fragilidades pró-
da propriedade e do individualismo como valo- prias do modelo de acumulação capitalista7.
res morais; (v) uma ciência “normal” baseada na Uma das fragilidades da gestão ambiental e
objetividade e na neutralidade que sistematica- sua prática de governança envolve a questão de-
mente desconsidera a complexidade, contextos, mocrática da participação cidadã. Porém, a par-
valores e incertezas, e dessa forma se integra mais ticipação negligenciada não significa ausência de
facilmente às demandas regulatórias do merca- participação, como mostra um estudo europeu12
do. Diante delas, distintos dispositivos de natu- que identificou seis formas de governança: (1)
reza psicológica e simbólica produzem subjetivi- discricionária: Estado sem a participação civil;
dades de cunho político que ocultam ou mani- (2) educacional: mídia e enquetes de opinião pú-
pulam as ações históricas que se encontram por blica; (3) deliberativa: direcionada à busca de
detrás de temas e problemas debatidos publica- consensos, tendo a participação pública o objeti-
mente. Mutatis mutandis isso pode ser observa- vo de dar suporte às escolhas técnicas dos especia-
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listas; (4) corporativas: as soluções dos conflitos No modelo da dupla delegação11, um grupo
de interesses são estabelecidas em processos fe- selecionado de atores sociais (stakeholders) e pe-
chados de negociação e deliberação; (5) de mer- ritos “credenciados” – cuja base é a da ciência
cado: a participação é concebida como fonte de normal pretensamente neutra e objetiva – parti-
competitividade, e o público como consumidor; cipam de discussões de natureza dita técnica na
e, finalmente, (6) agonística: se realiza em condi- perspectiva dos interesses econômicos dominan-
ções de confrontação incluindo ações diretas tes. A atual noção de gestão ambiental encontra
(manifestações, boicotes); tende a ser ocultada a sua origem nesta estratégia apolítica, que difi-
ou considerada ilegítima, sendo frequentemente culta as articulações equivalenciais necessárias
punida através da criminalização dos ativistas e para produzir ações coletivas transformadoras
seus parceiros. Contudo, algumas demandas por parte de atores e movimentos sociais que se
podem acabar sendo reconhecidas em processos posicionam enquanto portadores de direitos
de negociação posteriores às ações diretas. (stakerights).
Autores da vertente ecomarxista8 apontam as
fragilidade do modelo hegemônico associadas às
duas contradições fundamentais do próprio ca- Ecoeficiência
pitalismo. A primeira, central no período inicial e tipos ideais de gestão ambiental
do capitalismo industrial até a o início da segun-
da metade do século XX, relaciona-se com as Atualmente, a política ambiental das grandes cor-
condições de trabalho, tendo como principais porações e, em parte, das organizações do Estado
protagonistas os trabalhadores expropriados da é estruturada pela formulação de diretrizes de
sua produção (alienação, mais-valia). Já a segun- Ecoeficiência que compõem sistemas de gestão
da, crescentemente importante desde então, está autorregulados. A Ecoeficiência é uma política es-
associada às condições de produção, o que in- tratégica que incorpora a responsabilidade cor-
cluiria as problemáticas ambientais, de gênero, porativa; encoraja as empresas a se tornarem mais
étnicas dentre outras. Seus principais protago- inovadoras e competitivas; propaga a ideia de
nistas são coletivos contra-hegemônicos organi- autorregulação – em contraposição à ação regu-
zados em torno de suas próprias agendas de latória e fiscalizadora do Estado – e amplia a ade-
mudança social, como feministas, ambientalis- são voluntária14. Trata-se de uma resposta con-
tas, povos tradicionais, agricultores familiares li- ceitual e política desenvolvida por grandes corpo-
gados à agroecologia, organizações de justiça rações e associações industriais e empresariais para
ambiental, dentre outros13,14. responder a vários desafios apresentados na Rio-
Na perspectiva hegemônica, a gestão ambi- 92 sob a lógica da gestão eficiente.
ental restringe o espaço de solução de conflitos Para fins analíticos, propõe-se aqui caracte-
às instâncias institucionais consolidadas e à bus- rizar tipos ideais dos atuais modelos de gestão
ca de consensos por mecanismos como compo- ambiental. Entende-se que os tipos ideais não são
sição, negociação ou decisão por maioria. Tais descrições exatas da realidade, mas intentos de
mecanismos, contudo, assumem que as deman- construir, a partir de elementos essenciais, uma
das sociais consideradas legítimas são apenas tipologia que faça inteligível a caótica e dispersa
aquelas cujas soluções não implicam transfor- evidência acumulada na experiência e que contri-
mações radicais ou estruturais da ordem social bua na análise de tendências atuais e futuras4. Os
instituída. Portanto, há um processo social de elementos essenciais tipificadores aqui conside-
ocultar dissensos e isolar as reclamações, sejam rados são os quatro instrumentos que definem a
elas parcialmente satisfeitas ou não, para que os Ecoeficiência de um empreendimento, isto é, a
atores sociais demandantes constituam identi- prática parcial ou total de quatro ferramentas
dades sociais fragmentadas, seja na condição de interrelacionadas: (i) Sistema de gestão ambien-
vulneráveis que necessitam ações de ajuda, seja tal (SGA); (ii) Certificação ambiental; (iii) Pro-
na condição de ilegítimos ou inimigos. Em con- cessos de produção mais limpa (P+L); e, (iv)
trapartida, existe uma pluralidade de demandas, Avaliação do ciclo de vida (ACV)15. A implanta-
mobilizações e realizações por direitos coletivos ção de um SGA permite à empresa reduzir custos
que, através de sua articulação equivalencial, pro- de produção racionalizando insumos materiais
duzem subjetividades, plataformas e agendas e energéticos, muitas vezes limitado aos proces-
mais amplas dos atores, redes e movimentos so- sos administrativos e de publicidade. O sistema
ciais, sendo fundamentais para a transformação de certificação ambiental mais geral disponível, e
social15. aplicável a todos os processos produtivos é a sé-
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rie de normas ISO 14000, formulado pela orga- tificadas, o que significa a coexistência camufla-
nização não-governamental International Stan- da do tipo 1 junto aos tipos 2 ou mesmo 3.
dardization Organization (ISO) e que trata de No Tipo 2 há uma busca por reduzir pro-
temas como a implantação do SGA , a realização gressivamente o impacto ambiental do processo
de auditorias ambientais, a avaliação de desem- produtivo, racionalizando o máximo possível o
penho ambiental, as rotulagens e as declarações consumo de recursos materiais (água, matérias
ambientais dos produtos e a própria ACV. A ACV primas, descartáveis) e energéticos (eletricidade,
é um procedimento que permite ponderar os combustíveis). Desta forma há uma incorpora-
impactos ambientais de um produto em forma ção de externalidades, porém difusas e nem sem-
integrada, desde seu design até a disposição final pre territorializadas junto à empresa. À diferença
dos resíduos. Adotar procedimentos de P+L sig- do Tipo 3, o Tipo 2 não assume necessariamente
nifica escolher os procedimentos menos polui- o compromisso de utilizar a tecnologia mais lim-
dores disponíveis em cada etapa do processo de pa disponível, não incorporando diversas exter-
produção, por exemplo, averiguando se deter- nalidades associadas aos riscos, com empresas
minada fábrica, processo produtivo ou produto que exibem como única certificação ambiental a
adota a Best Available Technology (BAT). ISO 14001.
Para fins desta tipificação, considerar-se-á que Embora o Tipo 3, ao se comprometer com a
os compromissos de cada item são postos em P+L incorpore mais externalidades que o Tipo 2,
prática (independente do alcance dos seus resul- ainda o faz somente com respeito aos processos
tados), estabelecendo quatro tipos ideais de ges- produtivos diretamente envolvidos. Ou seja, con-
tão ambiental: (1) não incorpora nenhum ins- tinua sem assumir as externalidades derivadas
trumento de autorregulação; (2) instrumenta da utilização e disposição final dos produtos –
apenas a certificação do SGA; (3) instrumenta resíduos – desses processos. Por exemplo, uma
tanto a certificação do SGA quanto a P+L; e, (4) indústria química pode exibir as melhores certi-
instrumenta as quatro ferramentas. Uma vez que ficações ambientais disponíveis para garantir que
a lógica que determina a Ecoeficiência autorre- produz um agrotóxico com segurança e com a
gulada é a economia de mercado, resulta interes- melhor tecnologia disponível (BAT) sem, no en-
sante começar a análise destes tipos ideais por tanto, discutir os impactos que a utilização e des-
meio de um parâmetro econômico: as externali- tino final dos seus produtos e outros resíduos
dades, quer dizer, efeitos (positivos ou negati- possam vir a provocar no tecido social, no ecos-
vos) que recaem sobre terceiros não implicados sistema e na saúde dos trabalhadores rurais.
na sua produção. As externalidades ambientais Por último, o Tipo 4, ao instrumentar a ACV
negativas expressam impactos sociais à saúde e do produto, incorporaria, em tese, o conjunto
ao ambiente que não são incorporados na for- das externalidades devidas a riscos conhecidos.
mação dos preços. As externalidades, junto com Entretanto, o tipo 4 também pode gerar efeitos
os free-riders, são considerados fatores de dis- perversos camuflando tipos inferiores associa-
torção do mercado livre. Os free-riders são indi- dos às cadeias produtivas e ao comércio interna-
víduos ou coletivos que participam do benefício cional, através de um metabolismo social insus-
de uma atividade sem contribuir nem para o cus- tentável e injusto14. Pode-se dizer, ainda, que as
to da mesma, nem para os custos das externali- diretrizes corporativas comumente são formu-
dades negativas14. ladas de forma demasiado genérica, permitindo
Do ponto de vista das externalidades, o Tipo omissões importantes. Ao mesmo tempo, é pos-
1 aparece como o típico modelo de gestão laissez sível identificar diversos casos em que a ecoefici-
faire: os custos socioambientais externalizados ência autorregulada produziu inovações tecno-
não são suportados por aqueles que colhem os lógicas e organizacionais favoráveis ao ambien-
benefícios. Exemplos são os pequenos empreen- te, ao melhor controle de riscos e à prevenção de
dimentos rudimentares, atividades econômicas acidentes10.
informais e empresas terceirizadas que realizam Todavia, a problemática das externalidades
o “trabalho sujo” de grandes corporações priva- adquire outra dimensão argumentativa quando
das ou estatais. Cabe destacar que as certifica- se introduz na discussão o parâmetro incertezas.
ções ambientais são outorgadas a linhas de pro- Do ponto de vista epistemológico, é difícil afir-
dução determinadas, e não às pessoas físicas ou mar que os riscos serão sempre reconhecidos ba-
jurídicas que as desenvolvem, o que contribui seados em evidências científicas em situações de
para encobrir a presença de empresas do tipo 1 alta complexidade que marcam o campo ambi-
dentro de cadeias produtivas com empresas cer- ental, os riscos industriais e os efeitos à saúde. As
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incertezas representam um dilema para a gover- fruí-las no futuro desde que isso não implique a
nança hegemônica, pois aceitá-las significaria re- geração de privilégios injustos. Portanto, um de-
conhecer que as decisões em matéria ambiental safio central consiste em como reformular e de-
devem fundamentar-se em critérios políticos e mocratizar os instrumentos de gestão ambiental
ético-valorativos, e não apenas discussões técni- assumindo o seu caráter político.
cas, daí sua manipulação na defesa de interesses
econômicos envolvendo indústrias e produtos
perigosos como o fumo16. Uma vez introduzidas Gestão e democracia:
as incertezas, o modelo autorregulado hegemô- presente e futuro em quatro cenários
nico é confrontado pelo Princípio da Precaução17,
que além de ter vocação universal, teria regência A partir dos tipos ideais de gestão desenvolvidos,
mesmo sem o rigor das certezas científicas. propomos aqui um exercício teórico de construir
Há, ainda, outros dois testes pelos quais a quatro cenários que, de forma sintética, esque-
ecoeficiência autorregulada não consegue passar matizam possíveis ordens sociais decorrentes das
satisfatoriamente: o do controle cidadão e o da diferentes combinações da gestão ambiental com
soberania informativa. O controle cidadão sig- a democratização da sociedade. Para isso, nos
nifica a capacidade de ação fiscalizadora da soci- apoiamos nos estudos de cenários utilizados
edade civil organizada, e existem limites mesmo como referencial de futuros possíveis e alternati-
tendo sido normalizado em várias legislações vos, permitindo a reflexão sobre a realidade em
nacionais em relação às atividades de governos e que se vive e diante da qual se planeja construir
de instituições públicas, inclusive porque os pro- alternativas, incluindo os sonhos e utopias por
cessos de certificação e auditoria envolvem entes um mundo melhor4.
privados que, sob a lógica de mercado, assumem A Figura 1 mostra o esquema que define os
formas restritivas de participação, não de cida- cenários: acima e à direita os parâmetros aumen-
dãos, mas de consumidores. tam, ao passo que abaixo e à esquerda se redu-
Diversas corporações têm divulgado ao pú- zem. Metaforicamente, o cenário 1 (menos de-
blico relatórios de desempenho social e ambien- mocracia, menos gestão) é a combinação mais
tal, sugerindo grandes esforços feitos em inova- perversa da economia laissez faire com ausência
ções tecnológicas e investimentos ambientais, mas de contrato social. A violência não é monopólio
omitindo causas e contextos17,18. O fato das gran- do Estado, as relações de trabalho são indignas e
des empresas privadas usarem a comunicação a exploração dos recursos naturais é predatória.
como uma peça crucial da governança hegemô- Não há políticas públicas que atenuem as conse-
nica e marketing dificulta o exercício democráti- quências socioambientais e sanitárias da destrui-
co da soberania informativa, entendida como o ção dos ecossistemas, com exclusão social e ex-
livre e efetivo acesso à informação, valorizada
como um bem público e não como uma mera
mercadoria, já que o direito a estar adequada-
mente informado é crucial à cidadania, pois ali-
cerça a autonomia dos sujeitos.
Sem acesso ao conhecimento sobre os proce- Mais democratização
dimentos envolvidos na obtenção de uma certi-
ficação ambiental, a sociedade tende a relacioná-
la a uma espécie de premiação por não poluir19, Cenário 2 Cenário 4
sem identificar os determinantes históricos inse-
ridos na governança hegemônica. Por isso, a con- Menos gestão Mais gestão
solidação da soberania informativa é tão impor-
tante, não apenas para desconstruir o fetiche da Cenário 1 Cenário 3
gestão, mas para a consolidação de uma demo-
cracia mais justa e inclusiva.
Apesar das críticas, é importante ressaltar que
Menos democratização
as ferramentas de gestão ambiental não podem
ser desprezadas em função de sua origem na ló-
gica de mercado: elas têm imbuído trabalho his- Figura 1. Os quatro diferentes cenários
tórico e fazem parte das conquistas tecnológicas socioambientais construídos a partir da ponderação
e materiais da humanidade, que poderemos usu- combinatória de gestão ambiental com democracia.
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pulsão territorial, sendo as culturas tradicionais serviços ecossistêmicos. Por isso, embora a ri-
os coletivos mais vulneráveis. Impera a ganância, queza social seja distribuída equitativamente, ain-
a injustiça na distribuição da riqueza e não há da há vulnerabilidade socioambiental por causa
garantias para o exercício dos direitos fundamen- da inadequação da racionalidade instrumental
tais e para o acesso à informação. Os principais em relação ao manejo dos recursos naturais e
beneficiários deste modelo são os apropriadores energéticos. A diversidade cultural e a afirmação
de recursos naturais e da força de trabalho (ge- de identidades étnicas encontram aqui um relati-
ralmente extraterritoriais) e os free-riders (fre- vo espaço nas esferas social e institucional, com
quentemente violentos e corruptos), gerando-se boas perspectivas para desenvolver sua dimen-
um enorme déficit democrático e a intensificação são espiritual, mas com dificuldades para que
de assimetrias de poder. A vulnerabilidade insti- sua geração de renda garanta um alto padrão de
tucional se apresenta através da ausência de polí- desenvolvimento humano e de melhor sustenta-
ticas públicas ou seu forte atrelamento aos inte- bilidade ambiental, inclusive pela restrição eco-
resses privados ou, ainda, da criminalização de nômica que limita implementar tecnologias mais
coletivos sociais. A ausência do Estado também sustentáveis que exigem maiores investimentos.
facilita o controle monopólico da produção sim- Tal cenário parece próximo da realidade de al-
bólica da informação na mídia, a corrupção ge- guns territórios de certos países latinoamerica-
neralizada e a proliferação de práticas violentas e nos cujos governos possuem maior compromis-
mafiosas de repressão. Este cenário é mais factível so histórico com demandas populares. Contu-
em territórios mais afastados dos centros onde se do, permanece difícil reverter a intensa explora-
tomam as decisões que dão governança à econo- ção dos ecossistemas e recursos naturais associ-
mia capitalista, mesmo dentro de países onde ce- ada à expansão das fronteiras de investimento
nários mais vantajosos encontram-se presentes. capitalista na região em sua inserção no comér-
O cenário 2 (menos democracia, mais gestão) cio internacional, caso da produção energética e
parece ser o mais comum nos territórios que par- de commodities agrícolas e metálicas, assentados
ticipam da economia capitalista globalizada sem em setores e lobbies do agronegócio, da minera-
ter consolidado práticas de participação cidadã ção, siderúrgicos e petroquímicos considerados
mais efetivas. Neste cenário, a exploração dos re- pelos governos como estratégicos para a balança
cursos naturais e da força de trabalho obedece à comercial e a ampliação de políticas públicas.
lógica do mercado. Em geral, o poder público Ainda que as políticas sociais e as práticas de ges-
acompanha os interesses do poder econômico tão ambiental possam delimitar áreas de prote-
sem anular ou excluir a existência de instituições ção ambiental e aumentar os direitos de agricul-
públicas, convivendo com elas em regime de con- tores familiares e de povos tradicionais (originá-
trole e manipulação, inclusive em processos pro rios/indígenas; quilombolas; extrativistas e pes-
forma de licenciamento ambiental ou de certifica- cadores artesanais), a natureza mais solidária e
ções para atender exigências do mercado. A ges- frequentemente mais sustentável dos processos
tão ambiental é implantada apenas como um ins- de trabalho destes territórios se confronta e é
trumento para esses fins, podendo incluir práti- constrangida frente aos padrões de produção e
cas seguras e tecnologias limpas desde que sua consumo direcionados por lógicas de mercado e
adoção seja economicamente interessante frente valores de qualidade de vida mais urbanos e con-
a diversas externalidades negativas que ainda per- sumistas. Tais valores se diferenciam e se con-
manecem. A exploração encontra limites nas pres- frontam com o chamado “bem viver”, conceito
sões da sociedade civil organizada em situações que vem sendo usado pelos coletivos contra he-
de conflito frequentemente invisibilizadas, o que é gemônicos e que considera a liberdade das dife-
revertido através de mobilizações com redes soci- rentes formas de desenvolvimento econômico,
ais nacionais e internacionais que amplificam o cultural e espiritual subordinada ao respeito pela
poder das populações locais vulneráveis em situ- natureza e sua proteção.
ações de conflito. Finalmente, o cenário 4 (mais democracia,
Já o cenário 3 (mais democracia, menos ges- mais gestão) é o melhor cenário possível consi-
tão) é o caso em que as decisões são tomadas de derando a permanência do mercado e do fluxo
forma coletiva através de processos decisórios internacional do comércio, porém com padrões
mais democráticos e inclusivos, ou ainda por diferenciados aos atuais em função de critérios
políticas sociais mais redistributivas. Porém, den- globais mais claros de proteção ambiental e res-
tre os valores perseguidos não se hierarquiza a peito às soberanias locais e regionais. Neste ce-
preocupação com as formas de utilização dos nário teórico a sociedade, de forma ampla nos
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Porto MFS, Schütz GE

vários países e continentes, tem consolidada sua tões de direitos e democracia, conectadas ao
democracia e se apropria politicamente dos ins- ambientalismo e à própria saúde coletiva.
trumentos que permitem gerir os recursos natu- Existem vários processos que, nas próximas
rais e os ecossistemas de forma justa e sustentá- décadas, poderão impactar diferentemente os ní-
vel. O poder decisório está nas mãos da cidada- veis de democracia e gestão ambiental, mesclan-
nia, que exerce com soberania e solidariedade o do, expandindo ou restringindo tendências entre
usufruto da riqueza socialmente produzida, com os cenários apontados. Por exemplo, as atuais
a sociedade e o Estado atuando na defesa dos crises do capitalismo (financeira, social e ambi-
bens e interesses públicos e impondo restrições ental), ao mesmo tempo em que geram instabili-
ao poder do mercado, permitindo a gestação de dades e retrocessos, podem permitir rearranjos
outras formas de economia e saberes. Há uma de poder dentro dos países e entre eles, através de
gestão mais democrática e precaucionaria do ris- um maior controle das instituições financeiras e
co e da produção de conhecimento técnico-cien- do mercado, bem como de uma multipolaridade
tífico, o direito à informação está plenamente ga- que reforce padrões mais democráticos de go-
rantido, gerando as condições de autonomia que vernança global. Por sua vez, o uso contra hege-
renovam a cada momento histórico as relações mônico da internet tem possibilitado enormes
equivalenciais entre indivíduos, comunidades e avanços para o controle cidadão e a soberania
coletivos sociais. Desta forma, a diversidade cul- informativa, mas se confronta com as ameaças
tural encontra seu espaço na esfera social com do espetáculo midiático que aumenta o poder de
múltiplas possibilidades de desenvolvimento controle de informações e subjetividades por
humano, tanto nas dimensões materiais quanto parte das grandes corporações e mídias a elas
espirituais. Este cenário idealmente ótimo não associadas.
possui, ainda, nenhum exemplo concreto na rea- O aumento dos impactos, ou da percepção
lidade atual, pois mesmo nas sociedades mais dos mesmos, relativos às mudanças climáticas
ricas e democráticas da atualidade, tal cenário é reforça a agenda ambiental nas políticas públicas
restringido pela atual lógica do comércio inter- e práticas de modelos mais eficientes de gestão em
nacional baseada numa divisão do trabalho e dos diferentes níveis, ressignificada como economia
riscos que subordina a riqueza de uns à explora- verde ou economia de baixo carbono, associada à
ção social e à degradação ambiental de outros14,20. criação de novos mecanismos de mercantilização
Para fins de breve ilustração para compreen- da natureza, como o mercado de carbono e o
der a atual realidade brasileira, verificamos uma chamado REDD (Redução de Emissões por Des-
clara tendência de expansão de práticas compa- matamento e Degradação). Estes temas, vitrine da
tíveis com o cenário 2, ao mesmo tempo em que Conferência Rio+20, devem ser vistos com extre-
formas violentas de gestão desreguladas e sem a ma cautela, pois representam um novo fetiche
atuação do Estado ainda permanecem, como para a solução de problemas socioambientais que
assassinatos e práticas mafiosas na defesa de in- deverão se intensificar nas próximas décadas. Por
teresses econômicos, o que pode ocorrer tanto outro lado, mesmo iniciativas em torno de tecno-
nos confins da Amazônia como nas periferias de logias “limpas” renováveis também podem vul-
metrópoles como o Rio de Janeiro. Isto é dialeti- nerabilizar populações, caso da implantação de
camente acompanhado por movimentos de ins- parques eólicos no nordeste brasileiro que aca-
titucionalização de práticas cidadãs que aproxi- bam afetando ecossistemas, populações tradicio-
mam certos contextos do cenário 3 e possibili- nais, pescadores e agricultores familiares.
tam vislumbrar cenários mais otimistas. A pre- Outro fator decisivo para o futuro da demo-
sença de grandes investimentos em quase todo o cracia está relacionado a como a humanidade e
país relacionados à expansão do agronegócio; dos os vários países lidarão com ameaças de grande
portos de exportação de commodities; das gran- perigo, sejam catástrofes ambientais ligados a
des hidrelétricas, hidrovias e ferrovias; dos com- grandes interesses corporativos (caso do setor
plexos siderúrgicos e petroquímicos; dos rear- nuclear e a tragédia de Fukushima), ou mesmo
ranjos urbanos provenientes de grandes eventos atos terroristas de maior envergadura, os quais
como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, são possam impactar o fluxo de informações, a mo-
todos processos reveladores da inserção brasi- bilidade e o exercício de direitos humanos fun-
leira na atual lógica do capitalismo global. Ao damentais. Também o fim ou a localização em
mesmo tempo, intensificam conflitos e situações poucos países de recursos naturais estratégicos,
de injustiça ambiental, gerando inúmeras mobi- sejam eles energéticos (petróleo e urânio) ou vi-
lizações coletivas que colocam em seu centro ques- tais (água) nas próximas décadas poderão gerar
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Ciência & Saúde Coletiva, 17(6):1447-1456, 2012


práticas mais rigorosas de gestão ambiental, mas ferramenta dos cidadãos para administrar com
também disputas que, em situações de tensão, soberania o usufruto solidário do seu capital
poderão desembocar em conflitos mais genera- social, natural e cultural. Ainda, o cenário mais
lizados de natureza bélica. Estes processos serão favorável a um modelo de desenvolvimento hu-
decisivos para a evolução dos níveis de democra- mano mais justo e ecológico – conjugando oiko-
cia e gestão do ambiente nas próximas décadas, e nomos com oikopóios – deve incluir uma gestão
por isso representam elementos norteadores da plenamente democrática, plural e precaucioná-
agenda e da ação política por parte dos grupos ria da informação e do conhecimento.
que pleiteiam mais sustentabilidade ambiental, Para isso, um desafio central envolverá o con-
democracia e justiça. fronto dialético de ruptura e de reconstrução
entre formas hegemônicas e contra-hegemôni-
cas. Mais especificamente, como formas legíti-
Breves conclusões mas reguladas pelos Estados (lógica da defesa
dos direitos coletivos) e autorregulados pelas
A dialética produção-destruição, central no capi- empresas (lógica empresarial da Ecoeficiência)
talismo contemporâneo e concretizada na crise poderão conviver – sem estrangular – com ou-
socioambiental2, estabelecerá cada vez mais uma tras lógicas da economia solidária e da justiça
dialética entre prudência e os processos de eman- ambiental, assim como por valores culturais lo-
cipação social, combinando estratégias de rever- cais e tradicionais e expressos em espaços como
são dos problemas ambientais em contextos even- os Fóruns Sociais20 e o Encontro Diálogos e Con-
tualmente dramáticos como desastres e catástro- vergências entre Redes e Movimentos Sociais21,
fes ambientais, com a luta pela democratização que apontam para inúmeras experiências de re-
das sociedades centrada no enfrentamento das sistências e alternativas de novas economias e
assimetrias de poder frente às grandes corpora- saberes sendo construídos nos territórios, sejam
ções e suas influência nas instituições, na defesa campos e florestas com agricultores e povos ori-
dos direitos fundamentais e na conquista de pro- ginários, sejam urbanos nas periferias e produ-
cessos deliberativos mais próximos dos territóri- ções culturais de alta qualidade.
os e das pessoas que nele vivem e trabalham. Para tanto, o próprio sentido de conhecimen-
Apesar das críticas e limites dos cenários ana- to e ciência deverá passar por rupturas e avanços
lisados, experiências, movimentos e processos no que poderíamos chamar de uma epistemolo-
sociais inovadores e democráticos poderão rede- gia política. Considerar, construir e articular no-
finir o significado da ação humana de gerir o vas epistemologias11,20 é estratégico para se com-
ambiente. Sob este ponto de vista, entende-se que preender e atuar diante da complexidade dos sis-
a gestão ambiental deverá ser cada vez mais apro- temas socioecológicos e novas formas de gestão
priada pela cidadania e consolidada como uma sustentáveis e humanizadoras.

Colaboradores

MFS Porto e GE Schütz participaram igualmente


de todas as etapas de elaboração do artigo.
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Porto MFS, Schütz GE

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