Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Apresentação
François-Xavier Arnherdt
Tradução
Paulo Meneses
. 0\BUOTECAI
DA
FACULDADE TEOLÓGICA
BATISTA DO PARANÁ
~
Edições Loyola
Sumário
Nota prévia 9
Introdução
Apresentação '" 79
Primeira seção
Filosofia e linguagem religiosa
TI' 1 - Resposta a Lewis S. Mudge 83
TI' 2 - Resposta a Don lhde 89
TI' 3 - Resposta a David Stewart 93
TI' 4 - A esperança e a estrutura dos sistemas filosóficos 101
A tarefa de uma teologia bíblica da esperança 102
A irracionalidade e a racionalidade da esperança 104
"Spero ut intelligarn" 106
TI' 5 - O texto como identidade dinâmica 117
Segunda seção
Parábolas e pregações
TI' 6 - Paul Ricoeur e a hermenêutica bíblica 133
A hermenêutica bíblica. Esboço 133
A forma narrativa 139
O processo metafórico 168
A especificidade da linguagem religiosa 192
Referências bibliográficas 221
TI' 7 - À escuta das parábolas: mais uma vez atônitos 225
Texto comentado: (Mt 13, 31-33; 45-46) 225
Acontecimento, conversão, decisão 227
Reorientação pela desorientação 230
TI 8 - "Aquele que perde sua vida por causa de mim a encontrará" 233
TI 9 - A memória do sofrimento 239
Terceira seção
Tempoe narrativa em hermenêutica bíblica e teológica
TI 10 - Mito e história 247
A Grécia antiga 251
Israel antigo 256
Referências bibliográficas 265
TI 11 - Da proclamação à narrativa 267
O anúncio do Reino de Deus 271
Controvérsia 274
Rumo à história do sofrimento 276
TI 12 - O texto "sagrado" e a comunidade 279
TI 13 - Rumo a uma teologia narrativa: sua necessidade, seus recursos,
suas dificuldades 285
A necessidade de uma teologia narrativa 285
Os recursos de uma teologia narrativa 288
A dificuldade de uma teologia narrativa 293
Referências bibliográficas
323-332) exprime bem sua divisa (p. 325) "Como ser de novo chamado para
a 'modernidade'?" Como, além do árido deserto crítico, alcançar uma "terra
prometida" pós-crítica onde repercuta de novo o apelo do kerigma textual?
A hermenêutica bíblica não escapa da diversidade conflitiva ambiente.
Foi aliás essa impressão de grande confusão que levou a Comissão Bíblica
Pontifícia, em seu documento A Interpretação da Bíblia na Igreja, a situar os
diversos métodos recentes aplicados à Escritura, operando entre eles um dis-
cernimento crítico". Assim, o monopólio quase absoluto dos métodos his-
tórico-críticos teve de recuar há alguns anos pela emergência de novas abor-
dagens oriundas seja da análise literária (retórica, narrativa e semiótica), seja
das ciências humanas (sociologia, antropologia cultural, psicologia e psica-
nálise) seja de contextos particulares (liberacionista e feminista)".
Com seus comentadores, achamos que a hermenêutica de Ricoeur pode
trazer uma contribuição de arbitragem entre múltiplas vias, e que tem êxito
nessa travessia para uma "segunda ingenuidade" pós-crítica à qual diz aspirar
(ver La Symbolique du Mal, pp. 326-327)9.
7. A maioria dos comentadores elogia a qualidade desse documento. Assim, por exem-
plo, M. SEVIN, "L' approche des textes bibliques", Lumen Vitae 50 (1993) 253-260; L.
RUPPERT, "Neue Impulse aus Rom für die Bibelauslegung - Zum neuesten Dokument der
papstlíchen Bíbelkomission", Bibel und Kirche 9 (1994) 202-213; ou P. GRUSON,
"L'interprétation de la Bible dans l'Églíse", Catéchése 136 (1994) 91-95.
8. Para enumerar os principais métodos considerados no documento da Comissão
vaticana (L'Interprétation de la Bible dans l'Église, 34-60).
9. É essa a tese da obra de M. I. WALLACE, The Second Naiueté. Banh, Ricoeurand the
New Yale Theology, Macon, 1990.
10. Conforme o duplo titulo combinado dos capitulos LXIIl e LXIV, da imponente
obra de F. DOSSE que estabelece a biografia intelectual de Ricoeur: Paul Ricoeur: les sens
d'une vie, Paris, 1997, 653-680.
11. Quando seu interlocutor Bertrand Révillon o interpelou: "Muitas vezes o apresen-
tam como 'filósofo cristão', mas o senhor não gosta muito dessa expressão", Ricoeur repli-
cou: "Encontram-se entre os perfis de pensadores pessoas conhecidas como filósofos e
cristãos. É o meu caso: sou crente, cristão de confissão protestante, mas faço questão de
manter a distância necessária entre uma fé e meu procedimento filosófico. Prefiro definir-
16 ......iNTRODUÇÃO
ser tido por uma filosofia cristã ou seu substitutivo?". A articulação das duas
fidelidades de Ricoeur faz pensar em uma elipse de dois focos. Entre a argu-
mentação filosófica racional e as convicções religiosas cristãs, nele não há nem
confusão nem separação: fazem eco uma à outra sem confundir-se, entram
em diálogo sem se sobreporem. "Parece-me que por mais longe que volte em
meu passado, sempre andei sobre duas pernas. Não é simplesmente por precau-
ção metodológica que não misturo os gêneros, é porque faço questão de afir-
mar uma dupla referência absolutamente primeira para mim" (La Critique et
la Conviction, Paris, 1995, p. 211). Ricoeur fala de uma relação polar entre a
critica e a convicção. Há polaridade porque a filosofia não é privada de con-
vicções, e a dimensão religiosa engloba também uma parte de crítica interna.
Durante alguns anos, sob pressão de uma certa intelligentsia filosófica
parisiense, Ricoeur desejou "proteger a distinção entre os dois registros" ("às
vezes com fúria", esclarece [La Critique et la Convictíon, p. 240]), por temor
de ser considerado refém do meio humanista e religioso?". Confessa mesmo
ter sido "profundamente inibido" por essas críticas malévolas", quando sem-
pre se esforçou por respeitar o pacto segundo o qual as fontes não filosófi-
cas de suas convicções não invadiriam os argumentos de seu discurso filosó-
fico (ver Reflexion [aite, Paris, 1995, pp. 78-79). Chegou mesmo a um tipo
de filosofia em que não somente a nomeação efetiva de Deus está excluída,
mas em que "a questão de Deus, enquanto questão filosófica, fica posta em
uma suspensão que se pode dizer agnóstica" (Soi-même comme un autre, Pre-
fácio, p. 36 - o destaque é nosso).
No entanto, corrige essa impressão de mútua exclusão das duas ordens
afirmando que quer fazer comunicar o registo do filosófico e o do religioso
pela exploração dos "lugares de interseção" de ambos os domínios: a compai-
xão, o mal, a esperança, a economia do dom (ver La Critique et la Conviction,
p. 240; Reply to Steuiart, p. 447 [TI 3, p. 93]. Reata assim, de certo modo, o
me como alguém que professaum cristianismo de filósofo" ("Dieu n'est pas tout-puissant... ",
Panorama 340 (1999) 26-30, aqui, 26.
12. Assim o precisa Ricoeur em seu interessante Prefácio a L'AmoTe difficile, de D.
JERVOLINO, Roma, 1995, 16.
13. A isso o. MONGINfaz eco, por exemplo, em suas contribuições sobre Ricoeur, quer
na sua "Nota editorial" a Lectures 3, Paris, 1994, 8-10, quer em sua obra intitulada Paul
RicoeuT, Paris, 1994, 204-208.
14. Como confessa a A. THOMASSET, em entrevista transcrita no anexo 3 da tese desse,
intitulada Poétique de l'existence et agir moralen société. La contribution de Paul RicoeuT au
fondement d'une éthique herméneutique et narrative, dans une perspeetive chrétienne, Lou-
vain, 1995.
I'AULRICOEUR L A BíBLIA ................. 17
19. Ver D. CROSSAN, In Parables, New York, 1973: utilização do método literário; N.
PERRIN, "Eschatology and Hermeneutics. Reflections on Method in the Interpretation of
The New Testament", Journal of BiblicalLiterature 93 (1974) 3-14. Referindo-se ao Con-
flito das interpretações, Perrin diz: "Estamos no meio de um debate interdisciplinar bastante
animado" (p. 3); R. W. FuNK, Language Henneneutics and Word of God, New York, 1966,
e muitos outros. - Essa também é a opinião da Comissão biblica Pontifícia, em presença
da "gama metodológica dos estudos exegéticos" que se ampliou de modo imprevisível há
uns trinta anos (L'interprétation de la Bible dans l'Église, Prefácio, p. 20).
20. Segundo o título de uma obra do crítico literário americano N. FRYE que muito
influenciou Ricoeur: Le Grand Code. La Bible et la littérature, I, Paris 1984 (ver também,
do mesmo autor, o tomo 11 de La Bible et la littérature: La parole souveraine, Paris, 1994).
21. Desde "Nommer Dieu" (Études théologiques et relígieuses 52, 489-508, passando
pela "Herméneutique de l'ídée de Révélatíon", em La réuélation, Bruxelas, 1977, 15-54,
até a "Herméneutique. Les finalités de l'exégêse biblique", em CENTRE THOMAS MORE, La
Bible en philosophie. Approches contemporaines, Paris, 1993, 27-51.
22. Ricoeur interessou-se de perto pelos trabalhos do jesuíta P. Beauchamp, tanto em
seu comentário do primeiro capitulo do Gênesis (Création et séparation, París-Neuchãtel,
1969), ao qual faz eco um dos artigos de Ricoeur contido na obra coletiva Exégese et
Hennéneutique (além das duas contribuições já citadas p. 16 n. 4) intitulado "Sur I'exegese
de Gn 1,1-2, 4a" (67 -68 e 85-96) e também em seu estudo estrutural da grande tríade dos
rabinos: Torá, Profetas e outros Escritos (ver os dois tomos de L'un et l'Autre Testament,
Paris, 1977 e 1990, em que se inspiram vários ensaios de Ricoeur: "Expérience et langage
dans le discours religieux" em 1.F. COURTINE, Phénoménologie et théologie, Paris, 1992, 15-
39; "L'enchevêtrement de la voix et de l'écrit dans le discours biblique", em Leetures 3,
Paris, 1994,307-326; "Accomplir les Écritures selon Paul Beauchamp, L'un et l'Autre
Testament lI, em: P. BOVATI-R. MEYNET (dirs.), Hommage a Paul Beauchamp, Paris, 1996,
7-23; ou ainda "Com me si la Bíble n'existait que lue ... "Exorde, em P.BOVATI-R. MEYNET
(dirs.), "Ouvrír les Écruures", Mélanges ofierts à Paul Beauchamp, Paris, pp. 21-28.
23. Grande parte de nossa antologia é consagrada à metaforicidade da linguagem religiosa
e das parábolas: ver "Paul Ricoeur on Biblical Hermeneutics" [TI 6: "Paul Ricoeur e a her-
menêutica bíblica, pp. 133-222] e a homilia "Listening to the Parables": Once More Ato-
nished" [TI 7: À escuta das parábolas: mais uma vez atônitos, pp. 225-232]; ver também "La
Bible et l'ímagínatíon", Revue d'histoire e de philosophie religieuse 66 (1982) 339-360.
24. Como os três ensaios traduzidos: "From Proc1amation to Narrative" [TI 11: Da
proclamação à narrativa, pp. 267-278]; "Toward a Narrative Theology: Its necessity, Its
I'AULRJCOEUR L A BÍBLIA. 19
A APOSTA DO SENTIDO
Ressources, Its Dífficultíes [TI 13: Rumo a uma teologia narrativa: sua necessidade, seus
recursos, suas dificuldades, pp. 285-299]; Myth and History [TI 10: Mito e história, pp.
247-266]; como também "Temps bíblíque", Archivía di Filosofia 53 (1985) 23-35.
25. Vários autores articulam sua apresentação de Ricoeur em tomo dessa intuição É o
caso de 1.Van Den HENGEL, The Home of Meaning. The Hermeneutics of the Subject of Paul
Ricoeur, Lanham-New York- Londres, 1982; e de T M. Van LEEWEN, The SurplusofMeaning,
Ontology and Eschatology in the Philosophy of Paul Ricoeut; Amsterdam, 1981.
26. Ao contrário da opinião de A. LÉONARD, para quem a obra de Ricoeur, à força de
multiplicar tantos desvios, termina por perder de vista sua orientação fundamental (ver
Pensées des hommes et foi en lésus-Christ. Pour um discernement intellectuel chrétien, Paris-
Namur 1980, 233),. a maioria dos comentadores vê nesses desvios etapas que se seguem
e se enriquecem mutuamente. Assim P. MUKENGEBANTU, "L'unité de l'oeuvre philosophi-
que de Paul Rícoeur", Laual théologique et philosophique 46 (1990) 209-222, aqui, 210.
27. Em sua Introdução, o. MONGIN situa essa aposta do sentido (ou aposta hermenêu-
tica, como Ricoeur a chama - ver Reply to Steuiart, p. 447 [TI 3, p. 93]) em face do
ceticismo ambiente (Paul Ricoeur, 17-32; ver também R. KEARNEY, discípulo de P. Ri-
coeur, "L'imagination herméneutique et le postmoderne", em 1. GREISCH-R. KEARNEY
20 . INTRODUÇÃO
A CRIATIVIDADE DA LINGUAGEM
POÉTICA E BíBLICA
textos", Ricoeur ampliou cada vez mais seu cuidado de esclarecer o funcio-
namento poético do discurso. Ele mesmo diz que é o dinamismo criativo
operando no texto-obra (a metáfora, a narrativa) e a imaginação na inter-
pretação que constituem os fios condutores de seu empreendimento (ver
"L'histoire com me récit et comme pratique", Esprit 54,1981, pp. 155-165,
o que o levou naturalmente a considerar o funcionamento poético do dis-
curso bíblico, sublinhando sua especificidade.
Embora preservando sua determinação de salvaguardar a autonomia
de seu pensamento filosófico, responsável por sua atividade e seu objeto
(ver "La liberté selon l'espérance", p. 394), Ricoeur dedicou-se a estudar os
textos bíblicos de feição narrativa, legislativa, profética, sapiencial, apocalíp-
tica e mítica em que o homem põe a nu sua finitude, choca-se com o mis-
tério do mal, encontra a Transcendência e gera a esperança (ver notadamen-
te, entre outras numerosas passagens: "La patemité: du fantasme au symbole",
em Le conflit des interprétations, pp. 458-486, aqui, 471-472; "Foi et philoso-
phie aujourd'hui", Foi education 42, 1972, pp. 1-13, e "Herméneutique. Les
finalités de l'exégêse biblique" pp. 38-41).
Particularmente cuidadoso com a autonomia semântica do sentido tex-
tual, em virtude dos distanciamentos sucessivos a respeito do autor e dos
destinatários primeiros do texto (ver; por exemplo, BH, pp. 66-67 [TI 6,
pp. 162-163]), Paul Ricoeur demorou-se menos na gênese e nas condições
de produção dos textos dos dois Testamentos" do que na sua capacidade
"poiética?" de produzir significações novas e a seu valor de "revelação".
Como as metáforas e os relatos de ficção, os textos da Escritura têm condi-
ção para mudar a realidade porque lhe conferem uma configuração nova e
a reescrevem através de seus modos de discursos contrastados (ver "The
Function ofFiction in Shaping Reality", Man and World 12 [1979] pp. 123-
141, aqui, p. 127).
34. P. Ricoeur tem uma vocação de árbitro, reconhecida por todos os seus comentado-
res (ver o. F. BOLLNOW, "Paul Ricoeur und die Probleme der Hermeneutik", Zeitschrift für
philosophische Forschung30 (1976),167-189 e 388-412, aqui, 176-179. Diz mesmo que
ele travou debate com as hermenêuticas em conflito à maneira "de um combate amoroso"
graças ao qual consegue de seus oponentes melhor compreensão dele mesmo" ("Réponses
à mes critiques", em C. BOUCHINDHOMME-R. ROCHLITZ (eds.): "Temps et récit" de Paul
Ricoeur en débat, Paris, 1990, 187-218.
f PAUL RICOEURLA. BíBLIA 23
35. Ensinando tanto em Chicago como em Paris, Ricoeur opera uma mediação rara
entre os pensamentos europeu e americano. Nossa antologia deseja, aliás, trazer uma con-
tribuição a essa aproximação. Sobre o próprio desejo do pensador francês de servir de
mediador entre posições opostas, ver entre outros seu artigo "A Philosophical Journey.
From Existentialism to the Philosophy of Language", Philosophy Today 17 (1973) 88-96.
36. É em tomo dessa categoria do testemunho que L. S. Mudge propõe organizar a
hermenêutica bíblica de Ricoeur em muitas constelações, tentativa pertinente na opinião
do próprio Ricoeur (ver Reply to Mudge, 42) [TI 1,83].
,
r'
I CAPíTULO SEGUNDO I
~\BLlOT€C~
DA
26 INTRODUÇÃO
Second Naiueté. Barth, Ricoeur et the New Yale Theology, P. MUKENGEBANTU vê nisso mes-
mo a especificidade da hermenêutica de Rícoeur; em sua tese intitulada precisamente
Expliqueret comprendre, Quebec, 1988.
2. A propósito, ver o artigo síntese de D. PELLAUER, "Paul Ricoeur on the Specifity of
Relígious Language", Journalof Religion 61 (1981) 264-284.
3. D. STEWART, "Ricoeur on Religious Language", em: L. E. HAHN (ed.), The Philosophy
of Paul Ricoeur, Chicago-La Salle (llI), 1955,423-442, aqui, 423 [verTI 3, p. 93, nota 2].
4. Ver acima, p. 13.
POUEONIADOTEXTO BíBLICO LTRABALH.ODE . INTERPRETAÇÃO . 27
[TI 1, p. 87]). Ora, é bem para essa recriação do homem que apontam as
Escrituras bíblicas, com o que Ricoeur chama de economia da superabun-
dância, seu kerigma da liberdade segundo a esperança e sua hermenêutica
da salvação.
Em um ensaio como "Hope and the Structure of Philosophical Systems"
r,
[TI 4 Ricoeur procura o equivalente filosófico do núcleo kerigmático da
esperança em um retorno pós-hegeliano à dialética não conclusiva de Kant.
De uma parte, na esteira de Hegel, a razão aspira a apreender a totalidade
do sentido e a regeneração da vontade prometida pela pregação pascal. Mas
de outra parte, na perspectiva kantiana, é levada a constatar que é incapaz
por si mesma de realizar essa reconciliação em plenitude: "Uma filosofia dos
'limites' que é ao mesmo tempo uma exigência prática de totalização, sem
ser fechada sobre um saber absoluto 10", tal é a estrutura do acolhimento
filosófico capaz de entrar o mais longe possível em consonância com o dado
da Revelação. É o que Ricoeur chama de aproximação filosófica da liberda-
de segundo a esperança cristã (ver "La liberte selon l'espérance", p. 403:
Hope, p. 69 [TI 4, p. 114]).
É neste ponto que' virá inscrever-se a hermenêutica dos textos bíblicos.
Com efeito, a esperança fala menos a nossa vontade que a nossa imagina-
ção", esse lugar em que o homem acolhe os "figurativos" que sustentam a
lógica absurda da esperança (ver "La foi soupçonnée", p. 70). Ora, os símbo-
los e os relatos bíblicos fornecem de maneira privilegiada os figurativos de
nossa libertação efetiva e afirmam a possibilidade real de tornar-se homem,
"apesar" da morte (ver Hope, p. 58 [TI 4, p. 105])12. A hermenêutica dos
textos bíblicos, tirando proveito dos trabalhos de Ricoeur sobre os símbolos,
Para uma hermenêutica que não tem como estabelecida essa separação não
dialética entre o interior e o exterior do texto, o problema é antes com-
preender como a linguagem continua a operar a mediação entre a huma-
nidade e o mundo, entre os próprios seres humanos, e entre o ser humano
individual e ele mesmo. [... ] Essa tríplice mediação de referencialidade (hu-
manidade e mundo), de comunicabilidade (ser humano e ser humano) e de
compreensão de si (ser humano e ele mesmo) constitui o problema mais
importante de uma hermenêutica dos textos poéticos (1NT, pp. 240-241
[TI 13, p. 290], sublinhado nosso]".
Ricoeur chegou a essa concepção operando uma sorte de arbitragem
entre as diversas posições anteriores da tradição hermenêutica com as quais
dialogou", entre as quais, as de Bultmann", Schleiermacher, Dilthey, Hei-
degger e Gadamer. E, também, estabelecendo uma dialética construtiva com
outras disciplinas tais como as diversas formas de estruturalismo (ver Reply
to lhde, pp. 72-73 [TI 2, p. 91]).
Sua contribuição particular articula-se em torno da noção positiva do
distanciamento, que é precisada por ele através de diversas categorias tex-
tuais: a efetuação da palavra como instância de discurso, a efetuação do dis-
curso como obra estruturada, a fixação da obra pela escrita, o mundo do
texto projetado pela obra escrita e a compreensão de si pelo ato de leitura à
luz do mundo do texto".
14. Para essa concepção do poder ontológico da linguagem em Ricoeur ver Ibid.,
251-253.
15. Sobre as etapas da tradição hermenêutica do ponto de vista de Ricoeur; ver 1.Van
den HENGEL, The Home of Meaning, pp. 95-104; D. KLEMM, Hermeneutical Theory of
PaulRicoeur. A ContTUetive Analysis, London-Toronto, 1983, 18-44; P.MUKENGEBANTU,
Expliqueret comprendre, 151-163; A. THOMASSET, PaulRicoeur. Une poétique de la morale,
119-123.
16. Ver Prefácio a BULTMANN, lésus, mythologie et démythologisation; démythologisation
et herméneutique, Nancy, 1967; "Mythe et proclamation chez R. Bultmann", Cahiers du
Centre Protestant de l'Ouest8 (1967) 21-33;"Foi et langage, Bultmann,Ebeling"Foi Éducation
37 (1967) 17-35 e 36-57; e "Bultmann:une théologíe sans mythologie", Cahiers d'Orgemont
72 (1969), 21-40.
Sobre os outros (Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, ver sobretudo "Cours
sur l'herméneutique' e "La tâche de l'herméneutíque", em Exegesis, 181-200,69-119; em '
E. CASTELLI (dir.), Démythisation et ídéologíe, Paris, 1973,25-61, aqui, 27-40.
17. Para uma apresentação das categorias do texto segundo Ricoeur, ver entre outros:
1f.•
s. MIGLlASSO, La théorie herméneutique de Paul Ricoeuret l'herméneutique biblique, Paris, t
1980,31-38; D. E. KLEMM, Hermeneutical Theory of Paul Ricoeur, 74-108; M. BOEHNKE, r
Konkrete Re/lexion, 95-104; W. G. JEANROND, Text und buerpretation ais Kategoríen t
theologischen Denkens, Tübingen, 1986,42,58; e A. THOMASSET, Paul Ricoeur. Unepoétique i
de la morale, 123-130.
r
f
POLIFONIA DO. TfXTO BíBUCO E TRABALHO DLJNTERPRETAÇÃO . 31
I
t
t
ço da Biblia:
Do pensamento hermenêutico de Ricoeur retenha-se primeiro o relevo que
dá à função de distanciamento como preliminar necessária a uma justa
! apropriação do texto. Existe uma primeira distância entre o texto e seu
autor, porque, uma vez produzido, o texto toma certa autonomia em rela-
ção a seu autor; começa uma carreira de sentido. Outra distância existe
entre o texto e seus leitores sucessivos. Esses devem respeitar o mundo do
texto em sua alteridade. Os métodos de análise literária e histórica são
pois necessários à interpretação'".
Em cada nível, pois, Ricoeur põe em evidência um fenômeno de dis-
tanciamento em relação à experiência de pertença, distanciamento que apa-
rece cada vez como uma mediação salutar no caminho da compreensão de
si através do aprendizado dos signos": o estabelecimento de um sentido iden-
tificável e reídentificável nas estruturas lingüísticas estáveis só é possível na
base de uma petrificação da palavra espontânea (primeira categoria textual
"instância do discurso": ver BH pp. 66-67 [TI 6, pp. 162-163]); a produção
de uma obra de discurso em formas literárias identificáveis (segunda catego-
ria textual "obra" ver ibid. pp. 67-70 [TI 6, pp. 163-166]); e sua fixação
pela escrita (terceira categoria textual: a "escrita"; ver ibid. p. 66 [TI 6, pp.
162-163]) só fazem acentuar o fenômeno, mas constituem as condições in-
dispensáveis para que o texto seja como destacado da intenção de seu autor
histórico e possa ser reassumido por leitores posteriores que não pertencem
ao mundo do autor; é porque há uma obra escrita, autônoma, um texto
mostrando seu próprio mundo (quarta categoria textual, "mundo do tex-
to"); ver TNT, p. 240 [TI 13, pp. 289-290], que as abordagens "objetificantes"
são legítimas e necessárias (pré-compreensão, dialética explicação/compreen-
são, primeiro e segundo segmentos do arco hermenêutico: ver lnterpretation
Theory, pp. 75-76), que o mundo do texto pode encontrar o mundo de uma
multidão infinita de destinatários ulteriores (categoria "ato de leitura") e assim
cada leitor pode enriquecer sua própria apreensão do real e sua própria com-
preensão de si com as projeções de sentido incluídas no texto (categoria
"apropriação", terceiro segmento do arco hermenêutico: ver Reply to Mudge,
pp. 43-44 [TI 1, pp. 85-86]).
I
desloca seus leitores. Por mundo do leitor entendo o mundo efetivo no
qual a ação real se desdobra no meio de uma "rede de relações" para usar
uma expressão de Hannah Arendt em The Human Condition (TNT 240
[TI 13, pp. 289-290]). I
É em sua recepção pelos leitores que se atualiza a capacidade do texto
r
de transfigurar a experiência. A Comissão Bíblica Pontifícia reconhece aí
um segundo traço a ser retido da hermenêutica de Rícoeur em proveito da !
exegese escriturística:
Todavia, o sentido de um texto não pode ser dado plenamente se não for
atualizado na vida dos autores que dele se apropriam. A partir de sua si-
!
I
tuação, esses são chamados a destacar as significações novas na linha do
sentido fundamental indicado pelo texto".
20. É o que também sublinha a maioria dos autores: ver R. E. C. JOHNSTON, From an
Author - Oriented to a Text - Oriented Hermeneutic, Lovaina 1977,63-76; 1.Van Den
HENGEL, The Home of Meaning, 23-51; A. THOMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la
morale, p. 254.
21. L'Interprétation de la Bible dans l'Église, 67.
22. Ricoeur resume as aproximações que opera entre metáfora e narrativa em um artigo
,
sintético:"De l'interprétation" integrado na coletânea Du texte à l'action, Paris, 1986, 18-25.
1
1'<lllfON1ADOTEXTO BíBLICO E TRABALHO DLINTERI'RfTAÇÃO 33
23. Para a teoria da tríplice mimese em Ricoeur, ver notadamente S. H. CLARK, Paul
Ricoeur, Routledge, 1990, 167-179;A.THOMASSET, Paul Ricoeur. Unepoétique de la morale,
pp. 133-143; e o artigo de L. DORNISCH, "Ricoeur's Theory of Mírnêsis, Implications for
Literature and Theology", Joumal of Literature and Theology 3 (1989) 308-318.
24. Para a passagem preconizada por Ricoeur da concepção retórica da metáfora à
"InteractionTheory",ver entre outros S. H. CLARK, Paul Ricoeur, 128-131; K. J.V ANHOOZER,
Biblical Narrative in thePhilosophy ofPaul Ricoeur, Carnbrídge, 1990, 62-67; e A.THOMASSET
Paul Ricoeur Une poétique... , 256-257.
POUfONIA DO TlXIO BíBLICO LTRABALHQ O_L lNIlRPRnAçÃO 35
Ii
Para Ricoeur, não se trata da prioridade de uma das disciplinas, mas
antes de uma relação complexa de inclusão mútua. Indo do pólo filosófico
ao pólo bíblico, a interpretação das Escrituras parece de fato com uma apli-
cação regional da interpretação constituída pela hermenêutica filosófica. Mas
I 25. O vocabulário de Ricoeur evoluiu, e ele tem consciência disso (ver Réjlexion [aite,
73-78). No tempo.de La Métaphore vive, falava da referência metafórica para significar a
fratura da linguagem para além dela mesma. Com Temps et récit, usa antes o termo refi-
I
guração para significar a mediação realizada pelo ato de leitura entre a visão veritativa do
enunciado e a efetuação dessa visão fora do texto, essa "ativa reorganização de nosso ser-
no-mundo, levada pelo leitor, por sua vez convidado pelo texto a tornar-se leitor dele
i mesmo". (Réflexion [aite, 74)-
26. L'Interprétation de la Bible dans l'Église, 67.
36 INTRODUÇÃO
indo até ao fim da hermenêutica bíblica, essa então apresenta caracteres tão
originais, pelo fato da unicidade de seu referente, isso é, o inaudito da Reve-
lação, que tende a inverter a relação, subordinando a ela a hermenêutica
filosófica como seu próprio organon (instrumento).
Trata-se de uma inclusão recíproca entre as duas disciplinas - pela
It
qual, de uma parte, a hermenêutica bíblica "é considerada como uma pro-
víncia da hermenêutica textual e, de outra parte, a hermenêutica geral é
estabelecida como um organon para a interpretação de textos que são consi-
,
,
derados como os escritos fundadores de comunidades de leitura e de inter- t
I
pretação, que, por sua vez, derivam sua própria identidade histórica dessas
comunidades" (Reply to lhde, p. 72 [TI 2, pp. 90-91 ])27. Como isso sucede?
Examinemos a aplicação das categorias gerais do texto e a interpretação no
caso da Bíblia considerada como texto-obra.
28. Ricoeur tira essa noção de N. CHOMSKY, Structures .I}'rltaxiques, Paris, 1969; e de
Aspeetsde la théorie syntaxique,Paris, 1971;e para o domínio bíblico,de E. GUETIGEMANNS,
"What is Generative Poetics?", Semeia 6 (1976) 1-21; e StudiaLinguistica Neotestamemaria,
Muníque, 1971.
29. Para essa ímportantíssima dimensão da hermenêutica bíblica de Ricoeur, ver nota-
damente: S.MIGLIASSO, La Théorie herméneutique de Paul Ricoeur et l'Herméneutique biblique,
86-121; O. MONGIN, Paul Ricoeur, 236-245; M. I. WALLACE, "Ricoeur; Rorty and the
Question of Revelation" em D. E. KLEMM-W. SCHWEIKER (eds.), Meanings ofTexts and
38 INTRODUÇÃO
34
quiel", Livro de Job , Salmos" ou Cântico dos Cânticos", como também
para o Novo Testamento.
o gênero 11 relato-parábola 11
I
I
prietário pronto a pagar aos empregados da última hora o mesmo salário
que aos que trabalharam o dia inteiro (Mt 20,1-16)7 Qual é o grão minús-
culo susceptível de transformar-se em uma árvore em que os pássaros do
l céu vêm abrigar-se (Mt 13,21-32) (ver Listening Once More, p. 307 [TI 7, p.
Temps. Mélanges offerts à Pierre Bonnard, Genebra, 1991, 299-309, aqui, 299-303. Quanto
a Ezequiel, Jó, Salmos, Cânticos etc., ver Penser la Bible.
33. RICOEUR oferece notadamente uma reflexâo sobre a visão das ossadas ressequidas
em Ez 37, em Penser la Bible, 223-245.
34. RICOEUR se debruça por diversas vezes sobre o Livro de Jó, por exemplo, em
"Religion, athéisme et foi", em Le conflit des inierpretations, 431-457, aqui, 449-456; Le
Mal! Undéfi à la philosophie et à la théologie, Genebra, 1986,20-22; 43-44; e "Le Scandale
du mal", Esprit, 140/141 (1980) 57-63, aqui, 63.
35. Ver principalmente sua abordagem do Salmo 22 em Penser... , 279-304.
36. O estudo sobre o "Cântico" fecha a obra Penser la Bible, 411-457.
37. Nossa apresentação da forma parabólica em Ricoeur apóia-se antes de tudo em W
HARNISCH, Die Gleichniserzãhlungen lesu, Gôttingen, 1985, 125-167; F. PRAMMER, Die
philosophische Henneneutik Paul Ricoeurs in ihrer Bedeutungfür eine theologische Spraduheorie,
Innsbruck, 1988, 158-162; M. 1. RADEN, Das relative Absolute: dietheologische Henneneutik
PaulRicoeurs, Francfurt, 1988, 192-208; e A.THOMASSET, Paul Ricoeur, Une poétique de la
morale, 262-270.
r
l
40 INTRODUÇÃO
38. Ver I. RAMSEY, Religious Language, New York, 1957, citado em BH, 118-120 [TI 6,
pp. 200-202].
POUEONIADO TEXTO BíBUCO.. LTRABAlHO DE INTERPRETAÇÃO .. 41
Um jogo de intertextualidade
Além disso, as parábolas entram em interação umas com as outras",
em efeitos de metaforização (chamado aqui parabolização) mútua.
A narrativa interpretativa
Em uma perspectiva análoga, Ricoeur mostra como a estrutura narrati-
va do texto bíblico traduz sua visão da história e revela sua função teológi-
ca". Enquanto a historiografia grega de Heródoto ou de 'Iucídídes aplica-se
o encerramento do Cânon
As oposições no seio das diversas modalidades do discurso, contribuem
para formar, através do jogo das tensões e das resoluções, a figura global de
um sentido em que o encerramento [clõture] do Cânon pode então aparecer
como um ato que estrutura a configuração final, no seio da qual cada forma
pode demonstrar seu sentido. Ricoeur fala da plurivocidade da Revelação
no seio da Bíblia, considerada como um grande intertexto (ou "Grande Có-
digo" na terminologia de N. Frye) (ver "Herméneutique: les finalités de
l' exégêse biblíque", pp. 16_18)47.
45. R. ALTER, The Art of BiblicalNarrative, New York, 1983, citado por Ricoeur em
MH, p. 280 [TI 10, p. 262] e no "Récit interprétatíf", p. 18.
46. Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, 310.
47. A obra, já citada de FRYE é Le Grand Code. La Bible et la littérature (ver sobre o tema:
A. THOMASSET, PaulRicoeur. UnePoétique..., 333-334; e o. MONGIN, PaulRicoeur, 239-236).
44 INTRODUÇÃO
Categoria "escritura"
A dupla palavra-escritura (3ª categoria textual "escritura", ver "Hermé-
neutique phílosophique et herméneutique biblíque", p. 220) encontra igual-
mente na literatura bíblica uma aplicação paradigmática, pois o projeto
mesmo de uma teologia da Palavra corre o risco de elevar a Palavra acima da
Escritura (ver ibíd.)so. Ora, a palavra de Jesus, como a da Igreja, são insepa-
ráveis da Escritura anterior que interpretam: de uma parte, o 1Q Testamento,
e de outra o próprio evangelho. A nova pregação é, pois, desde o começo,
uma exegese da Escritura, antes de inscrever-se, por sua vez, em um novo
testemunho escrito. Essa cadeia "escritura-palavra-escritura" é a condição de
possibilidade de uma tradição no sentido fundamental de transmissão de
uma mensagem. Colocar por escrito introduz o distanciamento pelo qual a
"coisa" do texto fica desligada de elementos contingentes que são o autor, a
situação inicial e os primeiros destinatários.
A Triaâe rabínica
Sob influência de suas próprias pesquisas de Temps et récit, como tam-
bém da obra de Paul Beauchamp, Ricoeur faz muitas vezes menção, em suas
publicações mais recentes", à Triade dos rabinos, (isso é, à divisão tripartida
Um estruturalismo teleo/ógico
Em seus últimos escritos sobre as pesquisas de P. Beauchamp, Ricoeur
sublinha, ao lado do procedimento de reduplicação ou "deuterose" - deu-
terose da Lei no Deuteronômio, da profecia no segundo Isaias, da meditação
sapiencial na Sabedoria personificada - o fenômeno da junção dos três gê-
neros em sua orientação comum para o último, para o "teles" (ver "'Comme
si la Bible n'existait que lue .. .' Exorde", pp. 24-27). Cada um deles é traba-
lhado por uma dinâmica interna que o leva para um cumprimento, o que
Ricoeur; com Beauchamp, chama "dimensão escatológica" das três espécies
de escritos (ibid., p. 26).
Rícoeur adota perfeitamente esse "estruturalismo resolutamente teleoló-
gico" de Beauchamp que faz seu (ver ibid., p. 25): de uma parte, a leitura
estrutural das três escrituras não exclui a diversidade das qualidades tempo-
rais de cada uma delas, mas mostra sua articulação no mesmo espaço textual:
Assim, a sincronia no seio do mesmo livro não é dissociada da diacronia
que põe a Lei antes dos Profetas e recapitula essas duas escrituras na ter-
ceira, que finalmente funde as duas primeiras em um só livro com aquilo
que os Sábios acrescentam ("'Comme si Ia Bible .. .", p. 25).
n' existait que lue"... "Exorde" ou "Accomplír les Écritures selon Paul Beauchamp", L'un et
l'Autre Testament, t. 11. Desenvolvemos menos essa análise porque nenhum dos artigos de
nossa antologia a ela alude. Ricoeur descobriu nessa divisão segundo as três escrituras uma
espécie de corretivo ao estudo anterior das modalidades discursivas, como ele mesmo
afirma: "encontrei em Paul BEAUCHAMP, em L'Un et l'Autre Testament, uma tipologia que
evita a dispersão finalmente ilimitada à qual não resiste a análise por gêneros literários"
("Experience et language dans le discours religieux, 29).
52. Ver o. MONGIN, PaulRicoem; 245-248 e THOMASSET, op. cito 347-358.
46 ....INTRODUÇÃO
jetivo" do texto que visa primeiro a compreensão; por sua vez, essa vertente
objetiva, pelo ato da leitura, é capaz de transformar a existência "subjetiva"
do leitor na profundeza de seu ser, de refígurar o sentido da história huma-
na e a realidade toda inteira.
ím Leben"; ver FPTN, p. 504 [TI l l, pp. 270-271]). Mas é agora segundo sua
inscrição no todo intertextual das Escrituras que os acontecimentos fundado-
res e as tradições que suscitaram encontram sua significação ("Sitz im Wort").
Assim, o povo de Israel adquiriu uma identidade histórica pela releitu-
ra sucessiva das intervenções salvíficas de Javé na história e nas tradições
esparsas que em tomo delas se organizaram. Esse trabalho de reinterpreta-
ção no seio do Cânon é normativo para a tarefa hermenêutica ao longo dos
séculos. Pertencemos à mesma tradição que presidiu à constituição dos tex-
tos, e uma leitura da Escritura que se pretende respeitosa deve encadear as
três historicidades: a "dos acontecimentos fundadores" (ou tempo oculto), a
da "interpretação viva pelos escritores sagrados" (a tradição) e a do trabalho
da "compreensão" ("historicidade da hermenêutica"). O trabalho da herme-
nêutica é a "repetição" do trabalho que presidiu à elaboração das tradições
do fundo bíblico ("Structure et herméneutique" em Le conflit de interpréta-
tions, pp. 48-51 Y9.
É sobre essa mesma intuição que se enxertou, segundo Ricoeur, o tra-
balho da exegese patrística segundo os quatro sentidos explicitados pelo P.
de Lubac'". A exegese contemporânea não deve renunciar à consciência crí-
tica moderna da distância cultural e temporal que nos separa da linguagem
escriturística e dos acontecimentos da salvação. Contudo, pode provocar no-
vas experiências de pertença ao mundo bíblico se se inscrever na tempora-
lidade exigida pelas Escrituras": uma temporalidade complexa, oriunda da
fé histórica (a história da salvação), articulada por um núcleo querigmático
(a Lei e as Confissões de fé), rompida pela palavra profética (o hoje do
oráculo), restabilizada ironicamente pela sapiência (a permanência cíclica
dos escritos sapienciais), desdobrada em um quadro cultual (o fazer memó-
ria da anamnese; ver Memory, p. 289 [TI 9, pp. 239-240]) e aberta a um
cumprimento (o futuro da escatologia e da Apocalíptica) (ver TNT, pp. 245-
59. Ver K. STOCK, "Kerygma als Thema der Philosophie", Evangelische Theologie 35
(1975) 275-281, aqui, 275-276.
60. Ricoeur remete à obra prima de Henri de LUBAC, Exégêse médiéuale. Les quatre sens
de l'Êcriture, Paris, 1959-1964 (ver, especialmente, "Accomplir les Écritures selon Paul
Beauchamp, L'un et l'Autre Testament, t. 11 p. 8).
61. É a tese da excelente contribuição de A. M. PELLETIER que prolonga as reflexões
de Ricoeur sobre a temporalidade bíblica destacando sobretudo as dimensões da anamne-
se e da escatologia (ver "L'exégese bíblique sous l'inspiration de l'herméneutique. Un
acces réouvert à la temporalité bíblique", em 1. GREISCH - R. KEARNEY (dirs.). Paul Ri-
coem: Les métamorphoses de la raison herméneutique, Paris, 1991,297-309, aqui, 307-309.
POl.JEONIADQ TEXTO BíBUCQ.E TRABALHO DE INTERPRETAÇÃO 51
246 [TI 13, pp. 293-296]; "Temps biblique" pp. 26-34; "Comme si la Bíble
n'existait que lue ... Exorde", pp. 24-25).
Essa atenção às dimensões não lineares da temporalidade bíblica" per-
mite evitar uma confiança falsa e ingênua no poder que teria a exposição
linear da intriga da narrativa para tomar plenamente inteligíveis as aporias
da existência (ver TNT, pp. 237-238 [TI 13, pp. 286-288]). Como dar con-
ta do intolerável sofrimento do justo ou da incompreensão diante do misté-
rio do mal senão pelo grito de revolta de Jó ou pela lamentação do salmista
(ver Memory, p. 291 [TI 9, pp. 241-242])63. O leitor contemporâneo, cons-
ciente da opacidade com que a realidade complexa da fé bíblica está ex-
pressa, é levado a uma segunda ingenuidade pós-crítica que lhe permite fa-
zer uma experiência de fé "homóloga" à dos escritores bíblicos e dos teste-
munhas da Tradição, que leva plenamente em conta a mesma natureza apo-
rética de nosso mundo "pós-moderno':".
A verdade do regime hermenêutico cristão está sempre por fazer. O
trabalho de interpretação consiste menos em restituir um sentido originário
do que em reativar o dizer do texto a fim de produzir na direção mesma
aberta pelas Escrituras novos textos, isso é, novas proposições que corres-
pondam à situação contemporânea e "novas práticas que permitam a emer-
gência de um novo mundo?".
"Comme si la Bible n'existait que lue", Exorde, p. 25). Nesse contexto, Ri-
coeur privilegia, seguindo Beauchamp, o método "canônico" que "põe os es-
critos de data e de planos culturais diferentes em uma relação sincrônica de
leitura" (Accomplir les Écritures selon Paul Beauchamp, L'un et l'Autre Tes-
tameni, t. 11", p. 16)67.
Ricoeur aplica-se pois a reduzir a distância que separa a exegese cien-
tífica da leitura querigmática propondo seu modelo englobante, que W. G.
Jeanrond resume na fórmula seguinte: "compreensão ínicial (ou conjetura)
+ explicação = compreensão crítica?". Com efeito, a intenção confessante
que a exegese crítica esclarece é imanente ao texto bíblico mesmo, e a leitu-
ra crente deve incorporar um segmento crítico para dar espaço aos distan-
ciamentos objetivantes inerentes ao texto da Revelação (dialética exegese
científica/leitura confessante).
Nesse espírito Ricoeur evoca a possibilidade de muitas "reconstruções
responsáveis" do conjunto das Escrituras canônicas - como os modelos de
N. Frye ou C. Westermann'". A leitura policêntrica desse último, sistemati-
zando a Bíblia hebraica a partir de quatro temas teológicos fundamentais
(os theologoumena) - "Deus que salva", "Deus que abençoa", "Deus que
pune" e "Deus que perdoa" -, em torno dos quais se organizam as expres-
sões metafóricas que designam Deus e as que visam a resposta do homem,
apresenta "a vantagem de fazer aparecer no espaço mesmo do sentido a
resposta que a leitura confessante assume fora do texto" ("Herméneutique.
Les finalités de l'exégese biblíque", p. 50).
67.1. BARR aplaude essa opção e pondo Ricoeur do lado das análises literárias vê aí uma
chance para a renovação bíblica canônica (ver Holy Scripture: Canon, Authonty, Criticism,
Oxford, 1983, 103 e 159).
68. Introduction à l'herméneutique théologique, 105.
69. Le Grand Code de Frye é citado muitas vezes por Ricoeur; quanto a Westermann
Ricoeur expõe sua Théologie de /'Anden Testament, Genebra, 1987, em "Herméneutique,
Les finalités de l'exégese biblíque", 48-50.
54 . .. INTRODUÇÃO
tros para sua organização literária final) (ver BH, pp. 37-73) [TI 6, pp. 139-
168}. Essas diversas abordagens tendem todas a explicitar os elementos cons-
titutivos do texto em relação com o conjunto. Ricoeur expõe suas convergên-
cias (momento de explicação, correspondente à mimese lI). Enfim, o arco se
conclui por uma nova apreensão "em imaginação e simpatia" do texto como
um todo (compreensão), que permite a transferência do mundo do texto ao
mundo do leitor (a apropriação, correspondente à mimese IlI). A nova com-
preensão de si implica que o sujeito consinta em desapropriar-se dele mesmo
a fim de deixar-se tomar pelas novas possibilidades de ser-no-mundo destaca-
das pelo texto. É então que a poética do discurso pode provocar uma poética
da existência no momento de decisão própria da vontade (ver "Herméneu-
tique philosophique et herméneutique bíblique", pp. 224-228).
O objetivo global do arco interpretativo é seguir a intenção referencial
do texto (sua "flecha de sentido" em direção de sua referência) para seu
mundo, para sua visão da realidade, para sua ontologia particular, através do
jogo de suas estratégias narrativas, às vezes desconcertantes. Depois de ter
deixado sua primeira inocência pré-crítica (sua compreensão imediata ingê-
nua do texto), depois de ter atravessado o deserto da explicação rigorosa
dos elementos textuais e da hermenêutica da suspeita, o leitor é convidado
a compreender o texto em uma ingenuidade segunda, pós-crítica, a fim de
desenvolver uma nova compreensão de si mesmo, capaz de habitar o tempo
e o mundo bíblico".
Assim, a trajetória de sentido do mundo do texto só termina quando
encontra o mundo do leitor e o refigura. Esse entrecruzamento sucede no
ato de leitura pelo qual o intérprete atualiza as diversas figuras de si proje-
tadas pelo texto. A apropriação autêntica exige do leitor um descentramento
de sua subjetividade finita a fim de que possa receber do texto uma com-
preensão de si mais ampla.
Para a Comissão Bíblica Pontifícia, essa apresentação da atualização exis-
tencial constitui outro traço a reter da hermenêutica ricoeuriana:
os métodos de análise literária e histórica são (pois) necessários à interpre-
tação. Contudo, o sentido de um texto só pode ser dado plenamente se for
atualizado na vivência dos leitores que dele se apropriam (p. 67).
sua capacidade de agir segundo o dever (ver Hope, pp. 59-68 [TI 4, pp.
106-114 J; ver também "La liberté selon l'espérance", pp. 401-415). Na pers-
pectiva cristã, a regeneração do homem apto a receber o apelo divino é um
puro dom de Cristo, o que Paulo chama de justificação pela fé (ver Rm
3,28), o perdão superabundante de Deus que restaura a justiça do homem
(ver "lnterprétation du mythe de la peine" em Le Conflit des interprétatums,
pp. 352-353 e pp. 366-369).
Essa restauração da liberdade humana coloca-se em estreita relação com
a economia do dom que Ricoeur desenvolve notadamente em sua conferên-
cia AmOUT et justice (Tübingen, 1990)73. A poética da existência que deseja
corresponder à poética dos evangelhos não pode contentar-se com uma ló-
gica da reciprocidade - tal como se exprime na regra de ouro (ver AmouT
et justice, pp. 44-46). Deve construir-se sobre a lógica da superabundância,
do testemunho na esperança, no mandamento novo do amor sem medida e
na afirmação da salvação apesar do mal e da morte (ver "La liberté selon
lespérance" pp. 400-401 e 413-415). Como o resume Ricoeur; o testemu-
nho da liberdade segundo a esperança que corresponde à proclamação do
texto bíblico "é essa capacidade de viver segundo a lei paradoxal da morte e
da afirmação do sentido sobre o não-sentido, em todas as situações desespe-
radas (Hope, p. 59 [TI 4, p. 105]).
É até aí que deve ir o trabalho da interpretação bíblica. Esse cuidado
que tem Ricoeur de levar a cabo a trajetória de signíficância das Escrituras,
a Comissão pontifícia reconhece-lhe plenamente, concluindo assim o pará-
grafo que lhe consagra:
A linguagem religiosa da Bíblia é uma linguagem simbólica que "dá a pen-
sar" (o trabalho do texto), uma linguagem em que não se cessa de desco-
brir riquezas de sentido (em sua polifonia inesgotável), uma linguagem que
visa uma realidade transcendente (seu referente especifico, a nominação de
Deus) e que ao mesmo tempo desperta a pessoa humana à dimensão pro-
funda de seu ser [a suas potencialidades mais próprias e ao testemunho da
esperança t.
Não se poderia sintetizar melhor o percurso proposto pela hermenêu-
tica bíblica de Ricoeur!
73. Ver também os artigos "La Regle d'Or en question: entre phílosophie et théologie",
em Lectures 3, 273-279; e "Economia del dono, amore e giustizia", Protestantesimo 49
(1984) 13-24.
74. Doe. cit., p. 67 (comentários nossos).
58 INTRODUÇÃO
Desde sempre, Ricoeur reconhece ter uma dupla filiação, que está bem
expressa no título de seu livro-entrevista: La Critique et la Conviction. De
uma parte, ele faz filosofia: fala então a linguagem comum da razão crítica.
De outra parte, reconhece pertencer à comunidade cristã (protestante) e se
reclama da tradição judeo-cristã (ver "La philosophie et la spécificité du
langage religíeux", p. 13).
Porém essa polaridade não significa que a filosofia não seja igualmente
da ordem da convicção, nem que a convicção religiosa deixe de revestir uma
dimensão crítica interna (ver La Critique et la Conviction, p. 211).
1. Para este capítulo inspiramo-nos sobretudo em: L. DORNISCH, Faith and Philosophy
in theWritings ofPaul Ricoeur, Lampeter Dyfeld, 1990,265-270;T NKERAMIHIGO, L'Homme
et la Transcendence selon Paul Ricoeur, 222-228; M. GERVASONI, La" poetica" nell'ermeneutica
teologica di Paul Ricoeur, 308-366; W. G. JEANROND, Introduction à l'herméneutique
théologique, 231-233; e o artigo de H. WELLS,"Theology and Christian Philosophy. Their
Relation in the Thought of Ricoeur", Studies in Religion 5 (1975) 45-56.
62 INTRODUÇÃO
encarar, ou meus antepassados dos quais não há representação, tanto minha dívida para
com eles é constitutiva de mim mesmo, ou Deus - Deus vivo, Deus ausente - ou um
lugar vazio.
Sobre essa aporia do Outro, o discurso filosófico estanca" (Sai même commeun autre, p.
409). A propósito desse agnosticismo metodológico de Ricoeur;ver Paul GILBERT, "Paul
Ricoeur, réflexíon, ontologie et action", Nouvelle RevueThéologique 117 (1995),339-363
e 552-564, sobretudo 562-563;e, com reservas criticas, C. THÉOBALD, "La regle d'or chez
Paul Ricoeur. Une interrogation critique", Revue des sciences religieuses 83 (1995) 43-59,
sobretudo 51 e 57-59.
8. É o combate constante que Ricoeur trava contra a "hyhris" hegelíana do saber abso-
luto e da fundação última (ver Temps et récit IlI, 280-299).
9. Ver 1. MA5IA CLAVEL, "Paul Ricoeur en la frontera de filosofia y teologia, Miscelanea
Camillas 53 (1995) 115-134.
CONCLUSÃO;.. ENTRE AHERMENlUTlCA.fllOSÓEICA LAHERMENÊUTlCA BÍBLICA . 65
10. Ver p. ex., o cuidado de Ricoeur de não confundir o nome de Deus com o ser gregq
na exegese de Ex 3,14, mesmo se admite que a leitura ontológica é uma das figuras da
história da interpretação desse texto. (Ver Pides quaerensintelleetum: antécédents bibliques?,
327-343; e "D'un Testament à l'autre: essai d'herméneutíque biblique", 300-303). Inversa-
mente, Ricoeur pensa que a exegese bíblica pode trazer uma preciosa contribuição à onto-
logia filosófica da existência humana. Mostrando que a revelação do nome Javé em Ex 3,14
não se deixa reduzir à tradução grega pelo verbo "einai", mesmo estendendo-o à polissemia
que lhe dá Aristóteles em sua Metafísica (E,2), mas sugere antes a Fidelidade de Deus à sua
presença de Aliança junto ao povo, a exegese pode levar a uma "ontologia bíblica" aberta,
humilde e plural, além da ontologia grega e da hermenêutica do si:"Pode-se, por conseguin-
te, estabelecer que a atenção privilegiada dada aos textos sagrados restrínge o horizonte de
uma hermenêutica geral, se for tomada como uma hermenêutica regional- o que é perfei-
tamente legitimo - ou que amplia o horizonte da ontologia além das significações do ser
exploradas pelos gregos e mantidas cativas de uma ontologia que presta o flanco à critica,
tanto por sua estreiteza como por sua confusão", Reply to Ihde, p. 72 [TI 2, p. 90-92]).
11. Em seu Prefácio a Sai même comme un autre, Ricoeur não esconde que no nível
profundo de suas motivações, suas convicções cristãs tenham podido exercer uma influên-
cia sobre toda a problemática do si.A propósito cita o Finaldo Diáriode um curade aldeia,
de Bemanos, que o deixa em uma espécie de "encantamento": "É mais fácil do que se
acredita, odiar-se. A graça é esquecer-se. Mas se todo orgulho estivesse morto em nós, a
graça das graças seria amar-se humildemente a si mesmo, como a qualquer dos membros
sofredores de Jesus Cristo" (p. 39, n. 3).
12. Concebe o vocábulo "fonte" no sentido dado por C. TAYLOR (Sources 01 the Self The
making01 the Modem Identity. Harvard, 1989, citado em La Critiqueet la Conviction, 227).
66 ~~~.~.~~~~~. ~~~ . ~ ~~~.
Não é espantoso encontrar nos dois registros analogias que podem tornar-
se afinidades, e isso eu assumo, porque não creio ser nem dono do jogo
nem dono do sentido. Sempre minhas duas fidelidades me escapam, mes-
mo se às vezes elas se fazem sinal mutuamente (La Critique et la Conviction,
pp.227-228).
13. Ver 1. L. SCHLEGEL, "Devant la théologie allemande", Esprit 140-148 (1988) 213-
226, aqui, 218-219; 1.Van den HENGEL, The Home ofMeaning, 214-220.
14. Esses ensaios formam a I' seção de Lectures 3, "Philosophie et non-philosophie"
(pp. 19-150).
15. Isso não impede Ricoeur de reconhecer que se deve dar espaço na Escritura ao
registo especulativo, a um "pensar bíblico" (ver La Critique et la Conviction, 226), do qual
seus próprios ensaios de "teologia filosófica" visam a prolongar o movimento (como no
artigo "D'un Testament à l'autre. Essai d'herméneutique biblique", 307-309).
CONCLUSÃO: ENTRE A.. HERMENÊ.UTICAfllOSÓFJCA. E A HERMENÊUTICA BíBUCA 67
16. Ver K. STOCK, "Kerygma aIsThema der Philosophíe", 280-281; M. R. BARRAL, "Paul
Ricoeur: The Ressurection as Hope and Freedom", Philosophy Today 29 (1985), 72-82.
17. Sintetiza aqui o que diz em outros lugares de maneira mais fragmentária: ver "La
liberté selon I'espérance", 394, 401-402 e 414; "Démythiser I' accusation", em Le Conflit
des interprétations, 330-347; e "Foi et philosophie", 8-10 e 12.
68 JNTRODUÇÃO
Nem abstenção nem capitulação frente à teologia bíblica, tal é a via au-
tônoma da "abordagem filosófica" (ver "La liberté selon l'espérance", p. 394 1s:l.
sua existência uma totalidade sem falha e que abrem a uma poética da exis-
tência (TT 13: "Rumo a uma teologia narrativa: sua necessidade, seus recur-
sos, suas dificuldades").
Textos traduzidos (TT)
Apresentação
Filosofia
e linguagem religiosa
TI 1
M ais tarde direi por que agrupei os dois ensaios de Don Ihde e de Gary
Madison' e os coloquei na frente das contribuições neste volume. Co-
meçando por Don Ihde, gostaria de lembrar a dívida particular que tenho
para com ele: foi meu primeiro intérprete em língua inglesa, na obra que
dedicou à minha filosofia em 1971, sob o título de Hermeneutic Phenomeno-
logl. Desde então não cessou de mostrar interesse por minha obra através
dos diversos estudos a que remete a nota 3 de seu ensaio. Seja-me permiti-
do agradecer-lhe por esse acompanhamento ininterrupto",
Seu presente artigo serve de introdução apropriada a meu corpus in-
teiro, tanto mais que o autor propõe uma interpretação global de minha
obra em termos de diferença entre o "lugar" filosófico que ele me vê ocupar,
1. Publicada originalmente com o título "Reply to Don lhde", no livro editado por L. E.
HAHN, The Philosophy oi PaulRicoeur, Chicago-La Salle [lll}, 1995,71-73, em resposta ao
artigo inaugural do mesmo volume de D. IHDE, Paul Ricoeur's Place in the Hermeneutic
Tradition, 59-70.
2. G. B. MADISON, "Rícoeur and the hermeneutics of the Subject", ibid., 75-92 com a
"Réplica de Ricoeur", ibid. 93-95.
3. D. lHDE, Hermeneutic Philosophy, The Philosophy of Paul Ricoeur, Evanston, 1971.
4. Ihde refere-se à sua tradução inglesa do Conflit des interprétations (The conflíct of
interpretation, Evanston, 1974), como também a vários artigos:"Interpreting Hermeneutics",
em Existential Technics, Albany, 1983; "Variaton and Boundary. A Conflít within Ricoeur's
Fenornenology", em Consequences of Phenomenology, Albany, 1986, 160-180; e "Text and
the New Hermeneutics" em D. WOOD eed.], On Paul Ricoeur: Narrativeand lnterpretatum,
London-New York, 1991, 124-139.
90 . TE.XTOS ..TRADUZIDOS
5. Em sua resposta a esse autor, nas páginas 93 a 95 da mesma antologia publicada por
L. E. HAHN.
6. Artigo publicado em G. BOVON-G. ROUILLER (eds.), Exegesis. Neuchâtel-Paris, 1975,
216- 228.
7. Acreditamos estar certos ao corrigir o texto de Ricoeur que afirma, equivocadamen-
te, a nosso ver, "a primeira (the former)".
IL2:_RE5J'OSTAADO NIH DL_
Reconhecer isso não é para mim uma fonte de embaraço - tanto mais que
não creio que um filósofo possa estar isento de pressupostos. Sempre se
filosofa a partir de alguma parte. Essa afirmação não concerne só ao fato de
pertencer a uma tradição religiosa, mas engloba toda uma rede de referên-
cias culturais de um pensador, inclusive as condições econômicas, sociais e
políticas de seu engajamento intelectual. É um objeto completamente dife-
rente se consideramos o ponto de partida adotado em uma argumentação e
a maneira específica de organizar o discurso filosófico.
O ponto de partida consiste em pôr uma questão, tida como expressão
de um espanto, que determina uma espécie de campo de gravitação para
todas as questões ulteriores. Assim, para Aristóteles ocupa a posição inicial,
"que é o ser enquanto ser?"; para Descartes, "que é a verdade primeira?"; para
Kant, "como os juízos sintéticos a priori são possíveis?". A escolha da ques-
tão, certamente, não é arbitrária. Mas é difícil separar o que a filosofia deve
ao estado do problema quando começa a filosofar e a iniciativa que toma
reorganizando o conjunto da problemática em relação a um novo centro
A isso acrescenta-se o que chamo uma maneira específica de ordenar o
discurso filosófico. Aqui penso em duas coisas: certamente, na maneira de
argumentar por uma via descritiva ou especulativa (Hume não argumenta
como Espinosa, e assim por diante), mas, de uma maneira mais sutil, na
maneira como o filósofo hierarquiza seus conceitos temáticos. Os conceitos
principais de um discurso filosófico dado não são, de fato, do mesmo nível:
nessa via, em Leibniz, a "mônada" ocupa um lugar imediatamente inicial e
terminal no plano da temática filosófica, em relação às noções de "apetite" e
de "percepção" no plano da alma viva e da alma espiritual e finalmente em
relação à idéia mesma de Deus. De maneira geral, pode-se dizer que uma
filosofia pode caracterizar-se pelos conceitos últimos que emprega, aqueles
que exercem uma função operatória que não é inteiramente reversível na
ordem temática. Platão foi talvez o primeiro a reconhecer o problema em
seus Diálogos chamados metafísicos em que tenta desenvolver uma ontolo-
gia de segunda ordem sobre a base do que chama "os gêneros maiores", tais
como o ser e o não ser, o repouso, o movimento, o uno e o múltiplo, o
mesmo e o diferente. Conhecemos as sutilezas e as aporias a que o jogo de
conjunções e disjunções entre os maiores gêneros conduz na realidade, como
lemos no Parmênides, no Teeteto, no Sofista e no Filebo.
Dito isso, a interpretação da linguagem religiosa pode ocupar dois lu-
gares diferentes no empreendimento filosófico: quanto às fontes não filosófi-
cas da filosofia, esse lugar é central mas não é uma localização exclusiva;
TT3:__RfSl'OSTAADAVIDSIfWARL
ético-políticas. Devo também dizer que, guiado pela análise semiótica e pela
critica literária tornei-me cada vez mais atento à variedade das maneiras de
nomear a Deus e ao que alguns teólogos chamam de policentrismo bíblico,
em oposição desta vez ao que pode ser uma expansão excessiva do
theologoumenon da Heilsgeschichte. A lamentação e o louvor dos salmos, o de-
safio de Jó, e mais geralmente a tradição de sabedoria que Israel partilha com
os vizinhos do antigo Oriente Próximo escapam ao controle de uma teologia
da história (além do que francamente caótica durante o período bíblico).
Mas então, tendo dito isso, já não falo como filósofo, mas como membro do
que gosto de chamar uma comunidade que escuta e interpreta a Escritura.
Essas comunidades têm regras de leitura, que não são as mesmas que guiam
a maneira como os filósofos lêem outros filósofos.
Espero que meus leitores concordem em reconhecer que cheguei a
tais delongas para evitar misturar os gêneros, embora pudesse também ser
acusado de inconsistência pessoal. Tudo bem considerado, prefiro ser alvo
de tal suspeita, do que de "confusionismo", misturando uma cripto-teo1ogia
no plano filosófico a uma cripto-filosofia no plano da exegese e da teologia!
TT 4
A esperança e a estrutura
dos sistemas fllosótkos'
surreiçao seja a única válida e ortodoxa. Digo somente que, mais do que
qualquer outra, ela suscita o pensamento.
2. Pelas expressões "sentido" e "não-sentido" desejo unir os aspectos lógico, ético, exis-
tencial e religioso do sentido e do não-sentido da vida. Talvez S. Paulo tivesse a mesma
intenção quando falava de "pecado" em um desígnio mais amplo do que moral.
106 T~XTQ5TRAD.UZIDQ5
"SPERO UT INTElllGAM"
3. Em todo caso, a filosofia entra em cena demasiado tarde para dar uma instrução
sobre o que o mundo deveria ser. Como pensamento do mundo, aparece somente quando
a realidade já está toda feita depois do processo de formação A coruja de Minerva "esten-
de as asas somente ao cair da noite". Hegel, Filosofia do Direito.
108 TEXTOS. TRADUZIDOS
sobre as instituições coletivas. Não hesito em dizer que uma filosofia moder-
na da vontade deveria considerar tão atentamente o gênero de filosofia con-
creta e prática desenvolvido nos Princípios da filosofia do direito de Hegel,
quanto a filosofia abstrata do dever recebida de Kant. Só essa grande filoso-
fia da vontade inspirada em Hegel poderia unir intimamente a herança de
Aristóteles e a de Kant. Nesse sentido, essa vasta filosofia da vontade está
ainda por fazer-se. Não pertence ao passado, mas ao futuro. Sua tarefa é a
que Hegel concebia para ela nos Princípios da filosofia do direito; é a teoria
da atualização da liberdade no seio da realidade histórica do homem.
Agora vem a questão: qual é o horizonte desse processo de atualização
da liberdade? Neste ponto precisamente começa meu desacordo com o es-
tilo hegeliano de filosofar e, com esse desacordo, a possibilidade de um re-
torno a Kant.
O conceito de atualização da liberdade, pelo qual definimos o campo
da razão prática, tem duas dimensões, a do cumprimento e a da pretensão
não cumprida. E essas duas implicações pertencem à estrutura da atualiza-
ção como tal. Por um lado, a ação humana faz sentido porque podemos
discernir em certos pontos uma adequação entre racionalidade e realidade;
nesse caso, o axioma hegeliano é verdadeiro: o que é racional é real, o que é
real é racional. Entre esses casos podemos citar, sempre com Hegel, a lei
contratual da troca, a aquisição da lei penal, a conquista de direitos civis e
alguns aspectos do Estado moderno. A fim de compreender esses casos de
realidade racional, ou de real racionalidade, desejamos um gênero de dialé-
tica que, como a dialética hegeliana, é uma dialética feliz, isto é, uma dialéti-
ca em que a negação é absorvida na mediação. Para uma tal forma de dialé-
tica feliz, para a qual a filosofia não é profecia mas reminiscência e recapitu-
lação, o animal fetiche era bem escolhido, a saber, a coruja de Minerva, a ave
que "estende suas asas somente ao cair da noite".
Mas, por outro lado, esses casos cobrem todo o campo da realidade
humana? Não são antes uma sorte de ilhotas de racionalidade rodeadas de
irracíonalídade? A filosofia hegeliana da ação não é uma forma de extrapo-
lação baseada na experiência limitada de êxitos realizados da humanidade?
Graças a essa extrapolação, a esfera da realidade racional ou da racionalida-
de real é declarada como equivalente com o saber absoluto que Hegel en-
controu no livro 13 da Metafísica aristotélica e na nova tradição platônica.
Dai a questão: Hegel não destruiu o "elã "da ação excluindo a segunda
dimensão da ação, a da pretensão inacabada, que contrabalança a primeira, a
do êxito acabado?
110 TEXTOS. TRADUZIDOS
tras que a precedem. As três questões são assim formuladas: Que podemos
saber? Que devemos fazer? Que temos o direito de esperar? Essas três ques-
tões constituem um esquema único, uma estrutura inseparável, e o jogo dos
verbos defectivos - poder (kõnnen), dever (müssen) e ter o direito (dürfen)
- adverte-nos que a interconexão entre saber; fazer e esperar deve ser res-
peitada segundo as atitudes governadas pelas três expressões kõnnen, müssen,
dürfen. O conhecimento é o que nós podemos, o fazer é o que nós devemos,
o esperar é ao que temos direito, ou a que somos autorizados.
É a razão pela qual não devemos saltar diretamente ao fim e nos en-
carregar de resolver a última conexão entre o mal e a regeneração. A fim,
precisamente, de compreender essa última conexão na obra de Kant, deve-
mos fazer o desvio que parte da primeira Critica e passar através da dialéti-
ca da segunda Critica, e só depois alcançar o nível de uma abordagem filo-
sófica do que a religião compreende por pecado e perdão e, então, tentar
elaborar, nos limites da razão apenas, o equivalente filosófico da esperança,
que é a regeneração.
Se não começamos verdadeiramente pela primeira Critica e por sua
Dialética, perdemos algo de essencial a uma filosofia da esperança, a saber; a
destruição do saber absoluto. Entre esperança e saber absoluto nós devemos
escolher. Não podemos ter ambos. Ou um ou outro, mas não os dois ao
mesmo tempo. É a função da Dialética da razão pura destruir o objeto abso-
luto do qual o saber absoluto podia ser considerado como equivalente: o
sujeito metafísico, um conceito não contraditório da livre causalidade, e aci-
ma de tudo um conceito filosófico de Deus, digamos, do Deus dos filósofos.
Uma filosofia da esperança deve então confrontar-se com o que Kant cha-
mava de ilusão transcendental, que ocupa o lugar do conceito hegeliano do
saber absoluto. O campo da esperança tem exatamente a mesma extensão
que o da ilusão transcendental. Eu espero no lugar mesmo onde sou enga-
nado pelos pretensos objetos absolutos: "Eu" como substância, "liberdade"
como objeto no mundo, "Deus" como ser supremo e como causa de todas as
causas, como o todo de toda realidade parcial. Nesse sentido, a razão deve
primeiro desesperar, desesperar do absoluto, desesperar dela mesma, enquanto
pretende alcançar o absoluto sob a forma de um objeto de conhecimento
Mas o desespero, na Crítica da razão pura, não é um sentimento, uma emo-
ção: é um processo, uma operação, o ato positivo de colocar um limite à
pretensão da inteligência e da sensibilidade a que a inteligência está ligada
- a pretensão de captar o absoluto como um objeto de conhecimento, sub-
metido às condições do espaço e do tempo. Esse ato de desespero é já um
112 TEXTOS TRADUZlD.OS
não é cumprida pelo conceito de dever, ou de lei moral, mas somente pela
síntese da virtude e da felicidade: essa exigência abre uma nova antinomia,
porque devemos acrescentar ao conceito de virtude uma noção que tínha-
mos de excluir da definição do princípio moral. Essa antinomia entre a inte-
gralidade do objeto completo da razão prática e a pureza da vida moral tem
o mesmo tipo de fecundidade que as antinomias cosmológicas que separam
a razão dela mesma no nível especulativo. Essa antinomia prática nos impe-
de de introduzir uma espécie de interesse, em nome da felicidade. Por mi-
nha parte, considero essa antinomia da razão prática como um quadro signi-
ficante para outras críticas pós-hegelíanas da religião, por exemplo, para a
crítica freudiana que desmascara uma certa necessidade infantil de seguran-
ça e de proteção por trás da pregação da recompensa e da consolação. Kant
ensina-nos que a reconciliação entre a pureza dos motivos e a exigência da
felicidade não está à nossa disposição como algo que pudéssemos adquirir
por nós mesmos ou possuir. Essa conexão (Zusammenhang) deve permane-
cer uma síntese transcendental entre o trabalho do homem e o cumprimen-
to do desejo que constitui a existência.
É essa a segunda aproximação pela razão da significação filosófica da
esperança: é a antecipação, a espera de uma conexão entre a pureza do co-
ração e a satisfação de nosso desejo mais íntimo. Essa espera é racional no
sentido que é pensada como uma conexão necessária, como uma síntese a
priori entre termos que a inteligência isola e opõe. A antinomia não é supe-
rada por esse terceiro termo que seria homogêneo aos termos contraditó-
rios, mas por um termo heterogêneo e transcendente que se situa no hori-
zonte da racionalidade.
Por conseguinte, a síntese prática não viola as regras da filosofia dos
limites. Nada acrescenta a nosso conhecimento do mundo: completa nossa
vontade sem estender a esfera do conhecimento objetivo.
Se tomarmos em consideração essa idéia de uma síntese prática que é
ao mesmo tempo requerida mas não dada, os famosos "postulados da razão
prática" aparecem como um simples comentário da síntese prática. Expri-
mem nossa experiência em um total cumprimento das exigências da razão.
Falam de uma "extensão", de um "acréscimo", de uma "abertura" que nunca
podem ser convertidos em uma intuição intelectual pela qual a metafísica
clássica e a teologia racional seriam sub-repticiamente restabelecidas. Os
postulados da razão prática falam de Deus, da imortalidade e da liberdade
além de uma espécie de "morte especulativa de Deus", implicada em uma
filosofia dos limites. E não falam de Deus, da imortalidade e da liberdade
114 ... TEXTOS... JRADUZI.DDS
o texto
como
identidade dtnámlca'
prática, ou com o julgamento moral, que com a razão teória. Esta tese possui
um importante corolário que diz respeito à relação entre a narratologia con-
temporânea e a ínteligíbilidade própria ao tecer da intriga. Vejo a narratolo-
gia como uma simulação da inteligência narrativa por meio de um discurso
de segunda ordem pertencente ao mesmo nível de racionalidade que as ou-
tras ciências da linguagem. Essa prioridade da inteligência narrativa sobre a
narratologia como disciplina racional é o núcleo de minha segunda tese. An-
tes de considerar essa dependência da narratologia científica em relação à
inteligência narrativa, desejo centrar-me no termo mesmo de inteligível. Aris-
tóteles foi o primeiro a sublinhar a capacidade da poesia de "ensinar", de
veicular significações revestidas de uma certa forma de universalidade. O
próprio ato de configuração da intriga torna-a típica e compreensível, ape-
sar da singularidade de seus "heróis" designados por nomes próprios - ou
graças a ela. Essa tipificação da história permite à poesia ser ligada a essa
outra forma de inteligibilidade, à da ética, que Aristóteles chamava a phro-
nêsis. A phronêsis diz-nos que a felicidade é o coroamento por excelência da
vida e do agir, mas ela não nos diz como obter esse estado de fato. É a
poesia que nos mostra como as mudanças da fortuna, principalmente a vira-
da de fortuna para infortúnio, alimentam-se da prática concreta. Mas mos-
tra-nos isso sob a modalidade hipotética da ficção. No entanto, é por nossa
familiaridade com esses tipos de tessitura da intriga que aprendemos como
ligar experiência e felicidade.
Essa afinidade entre inteligibilidade narrativa e phronêsis - enquanto
oposta à theõria - sugere que os universais produzidos pela intrigas não são
os do saber teórico e da ciência. São universais de uma ordem "inferior",
adaptados ao ato configuracional que atua na composição poética. Uma das
maneiras da caracterizar a inteligibilidade própria do tecer da intriga é des-
cobrir uma outra afinidade, dessa vez uma afinidade com a teoria kantiana
do juízo. Essa afinidade já foi anunciada pela descrição do tecer intriga como
"apreender em conjunto". Ora, apreender em conjunto é "julgar", no sentido
kantiano do juízo, que não consiste tanto em juntar um sujeito e um pre-
dicado, quanto em colocar uma diversidade intuitiva sob uma regra. É pre-
cisamente o gênero de subsunção que o tecer intriga efetua, colocando acon-
tecimentos sob a lei de uma história inteira e completa.
A fim de preservar a força da distinção aristotélica entre phronêsis e theô-
ria, proponho atribuir a operação do tecer da intriga a esse modo de síntese
que Kant chamava o esquematismo, que por sua vez é o núcleo inteligível da
imaginação produtiva. Segundo a Crítica da razão pura de Kant, o trabalho
j
TLS:OTEXTO COMO .1D.E.NTlDADE. DLNÂMICA.. ... 121
tro" e "fora" não é óbvia, mas resulta da extrapolação de traços que convêm
às entidades inferiores à frase, como as palavras, lexemas e fonemas, às obras
do discurso - isto é, a expressões verbais de tamanho da frase ou mais
longas que ela. É para a lingüística, como ciência dessas entidades menores,
que o dito mundo efetivo que chamamos mundo real, é uma entidade ex-
tra-lingüística. O mundo "fora" só é "fora" para um tratamento da linguagem
que a estabelece como uma série auto-suficiente de entidades a que são
imanentes todas as relações. Isso porém é uma decisão metodológica, cons-
titutiva da lingüística como ciência, tratar a linguagem como um "dentro"
sem "fora", o que toma sem pertinência qualquer exame desse "fora". Para
uma hermenêutica que não toma como assegurada essa separação não dialé-
tica entre um "dentro" e um "fora", o problema é antes compreender como
a linguagem continua a servir de mediação entre o homem e o mundo, mes-
mo quando a função poética, como o faz notar Roman Jakobson, aumenta o
fosso entre os signos e o mundo. Essa tripla mediação de referencialidade (o
homem e o mundo), de comunicabilidade (o homem e o homem) e de
compreensão (o homem e ele mesmo) constitui o problema mais importan-
te de uma hermenêutica de textos poéticos. O que denomino interseção
entre o mundo do texto e o mundo do leitor é somente um dos aspectos
desse problema hermenêutico.
Gostaria de afirmar que a precedente descrição da identidade do texto
narrativo como identidade dinãmica pode ajudar-nos a superar o fosso entre
o mundo da obra e o mundo do leitor, criado pela extrapolação da lingüísti-
ca na poética. Creio que a capacidade da ficção de transfigurar a experiên-
cia está incluída na própria natureza do ato configuracionaI. Como? A se-
gunda parte de minha quarta tese diz que é o dinamismo desse ato configu-
racional que o ato de leitura resume e completa. Nada confirma isso melhor
do que os dois traços precedentes pelos quais acabamos de caracterizar a
ficção nas teses 2 e 3, a saber, a esquematização e a tradicionalidade. Esses
dois traços nos ajudam a dissipar o preconceito que opõe o "dentro" e o
"fora" do texto. Essa oposição está estritamente ligada à concepção da estru-
tura estática e fechada do texto. A noção de uma atividade estruturante
apresentada na operação do pôr em intriga, transcende essa dicotomia. A
esquematização e a tradicionalidade são já as caracteristicas que regem a
interação entre a função operativa da escrita e a da leitura.
De uma parte, os paradigmas recebidos fornecem uma estrutura às ex-
pectativas do leitor e o ajudam a reconhecer e a identificar a regra formal, o
gênero ou o tipo exemplificados pela história narrada. Fornecem um fio
128 . . ...HXIO.SIRADUZlD.OS
condutor para o encontro entre o texto e seu leitor. Em outros termos, regu-
lam a capacidade que tem a história de ser seguida, o que Gallie chamava a
followability ("seguibilidade"). De outra parte é o ato de leitura que, de al-
gum modo, "acompanha" a configuração do relato, e atualiza sua "seguibili-
dade". Seguir uma história é representá-la ou re-atualizâ-la pela leitura. Se,
por conseguinte, o tecer da intriga não se pode descrever como um ato de
juízo no nível da imaginação produtiva, é assim na medida em que o pôr
em intriga é o trabalho conjunto do texto e de seu leitor, da mesma maneira
como Aristóteles chamava de sensação o trabalho conjunto do "que era sen-
tido" e do "que sentia".
Além disso, é o ato de leitura que acompanha o jogo mútuo entre a
inovação e a sedimentação dos paradigmas que esquematiza o tecer da in-
triga. É no ato de leitura que o destinatário joga com as coerções narrativas,
produz desvios, toma parte no combate entre romance e anti-romance e
goza desse tipo de prazer que Roland Barthes chamou "o prazer do texto".
Finalmente, é o leitor que completa a obra na medida em que, segundo
Roman Ingarden, na Estrutura da obra literária, e Wolfgang Iser, em O ato
de leitura, a obra escrita é, de fato, um guia para a leitura, mas no entanto
fica uma obra inacabada que apresenta furos, lacunas, "lugares de indetermi-
nação" e mesmo, como no Ulisses de Joyce, põe em questão a capacidade do
leitor de dar, por ele mesmo, uma configuração a uma obra que o autor
parece ter desfigurado, quando podia. Nesse caso extremo, é o leitor, literal-
mente abandonado pela obra, que leva sozinho o encargo de tecer sua intri-
ga. O ato de leitura é, por conseguinte, o vetor da transfiguração do mundo
da ação sob os auspícios da ficção. Pode desempenhar esse papel porque o
efeito provocado pelo texto sobre os destinatários é um componente intrín-
seco da significação efetiva do texto. O texto como texto é um conjunto de
instruções que o leitor individual ou público cumpre de uma maneira passiva
ou criativa. Mas o texto não se toma uma obra a não ser na interação entre
o texto e o destinatário.
Sou bem consciente das dificuldades suscitadas por essa tese. As dife-
renças entre a teoria da leitura de Iser e a teoria da recepção de Jauss, ates-
tam essas dificuldades. Iser parte da correção das análises de' Ingarden de
indeterminação e da concretização das obras literárias; Jauss parte da corre-
ção das teses de Gadamer sobre a história dos efeitos, a fusão dos horizontes
e a lógica da questão e da resposta. Iser acentua a resposta de um leitor
individual no processo de leitura, enquanto Jauss concentra-se na resposta
de um leitor público no nível de suas expectativas coletivas. Em um sentido,
TL5~ o .TEXTO.COMO IDENTIDADE DINÂMJCA 129
Parábolas e pregações
TT6
Paul Ricoeur e a
hermenêutica bíblica 1
C orno não sou nem exegeta nem teólogo vou tentar trazer uma contri-
buição à discussão adaptada à minha competência relativa no campo
de filosofia da linguagem.
Análise estrutural
Gostaria, antes de tudo, de esclarecer as estruturas formais das narrati-
vas-parábolas na base da semiótica estrutural que já foi aplicada a textos não
bíblicos pelos formalistas russos (Propp) e pelos estruturalistas franceses
(Greimas, Barthes], e que começa a estender-se aos textos bíblicos, e mes-
mo às parábolas, sob o titulo de semiótica bíblica (Güttgemanns na Alema-
nha, e Louis Marin na França).
Essa primeira abordagem é concebida como uma adição crítica à abor-
dagem de Dan O. Via que se baseava principalmente na crítica literária
americana.
Ficará logo claro que não é fácil acrescentar uma análise formal, no
sentido estrutural do termo, à "crítica histórico-literária", como Via tenta
1. Este artigo foi publicado sob o título geral de P. Ricoeur on Biblical Hermeneutícs,
que constituiu o número 4 da revista Semeia (páginas 29 a 148). Após um esboço geral
(páginas 29 a 36), o artigo apresentava-se em três partes: "The Narrative Forro", 37-73;
"The Metaphorical Process", 75-106; et "The Specificity ofReligious Language", 107-148.
134 ..... IEXTOSTRADUZIDOS
fazer. Ele põe junto "a crítica histórico-lingüística", "a análise literário-exis-
tencial" e "a interpretação existencial-teológica". Mas o tipo de inteligibilida-
de expresso pela semiótica estrutural é anti-histórico por natureza, e tende,
em seu uso mais extremo e mais fanático, a esvaziar toda pesquisa histórica
sobre as etapas redacionais do texto, e mesmo, de certo modo, de forma
provocadora, a acentuar o último texto, o que agora lemos. Para ilustrar isso,
vou utilizar o exemplo da "parábola do semeador", de que Louis Marin dá
uma explicação estrutural. De outra parte, uma análise formal torna a con-
junção entre os pontos de vista existencial e estrutural igualmente difícil (e
mais ainda uma adição de uma interpretação existencial-teológical]. De fato,
esse método tende a dissociar o que Dan o. Via considera como um nível
unificado, a saber, sua dita abordagem literário-existencial. Quanto a mim,
sou favorável a uma hermenêutica que enxerte uma interpretação existen-
cial sobre uma análise estrutural; mas essa articulação pede uma forma es-
pecífica de justificação e não pode simplesmente ser tida por assegurada.
No que segue, o tipo de aporia criado pelo estruturalismo servirá de meio
para apontar a necessidade de examinar os títulos de credibilidade de uma
possível interpretação existencial.
A abordagem poética
Vou tentar aqui identificar o elo intermediário entre uma explicação
formal e uma explicação existencial, como sendo o processo metafórico em
obra na estrutura do relato. A parábola, parece-me, é a conjunção de uma
[orma narrativa e de um processo metafórico. Acrescentarei mais tarde um
terceiro traço de~.isivo.
A explicação dessa estrutura complexa pode ser abordada de dois lados:
1. Chamar uma certa narrativa de "parábola" é dizer que a história se
refere a algo além do que é dito; ela "quer dizer. .." algo além. Mas como o
"sentido" de uma história enquanto história está ligado à sua "referência"
enquanto referência parabólica? O problema é muito mais difícil do que
parece. Se é verdade que a estrutura interna da narrativa "fecha" a história
sobre ela mesma, e faz dela uma "unidade auto-suficiente" (N. Frye], como
sabemos que a história quer dizer ... alguma outra coisa? Sem já discutir o
conteúdo teológico da expressão "o Reino de Deus é como ... ", como a simi-
litude, a semelhança trabalham em conjunção com a estrutura "interna"? Há,
no interior do próprio texto algumas "marcas" de sua referência "exterior"?
Ou devemos nos apoiar apenas no fato de que as parábolas são narrativas
TL.6: ..PAUL RICOEUR ..LAHERMENÊUnCA...BíBllCA ............................ 135
para outra não são só traduções para uma língua estrangeira, mas também tra-
duções "internas". Tomarei como exemplo o gênero de relação que Jüngel es-
tabelece entre o conceito paulino da "justiça de Deus" e o símbolo de "Reino
de Deus" em Jesus.
3. Gostaria em seguida de resumir o problema dos "qualifícadores" já
operando em um discurso religioso. Não nos orientam eles para uma certa
forma de conceito, ou para um certo uso do pensamento conceitual, que
preservaria a tensão entre "imagem" e "significação"? Não poderíamos dizer
que a relação entre as expressões-limite e as experiências-limite pede a me-
diação de conceitos-limite?
Essa sugestão nos leva mais em direção a Kant do que a Hegel. Ou -
se ouso dizer - requer um retorno pós-hegeliano a Kant, no sentido em
que devemos a Hegel a formulação do problema do "conceito-representa-
ção" (Vorstellung-Begriff) no capítulo VII da Fenomenologia do Espírito, e que
não podemos mais compreender os conceitos-limite como conceitos pura-
mente negativos, cuja função teria sido puramente proibir seu "uso objetivo"
(seu uso enquanto referindo-se positivamente a objetos exteriores). Mas,
contra Hegel, devemos encontrar conceitos que mantenham a tensão do sím-
bolo no interior da clareza do conceito. Daí a sugestão de um uso específico
de instrumentos conceituais como "aproximações" do "sentido" e da "refe-
rência" dos símbolos religiosos, com o reconhecimento da inadequação des-
ses conceitos
Entre o conceito que mata o símbolo e o puro silêncio conceitual, deve
haver lugar para uma linguagem conceitual que preserve o caráter tensional da
linguagem simbólica. Esse problema será o objeto de meu terceiro capítulo.
A FORMA NARRATIVA
operações pudessem ser conduzidas a bom termo, então nos seria preciso
descobrir as regras de transformação pelas quais (a) a "intriga", no sentido
de Via, (b) a oposição entre trágico e cômico, (c) as combinações entre esse
primeiro par e o par crise-desfecho e (d) todos os traços semíformaís descri-
tos por Via aparecerão como a estrutura de superfície derivada.
>- Há algumas razões para pensar que isso não se pode fazer. Uma
razão é que as parábolas podem constituir uma constelação completamente
diferente do corpus russo, mas isso devia ser provado tentando aplicar o
método paradigmático. E uma outra razão é que a fonna de que fala Propp
(a seqüência das trinta e uma funções) não é ainda uma estrutura de profun-
didade, mas antes um artefato da estrutura de superfície: o conto folclórico
subjacente a todos os outros contos folclóricos. Essa confusão entre fonna e
estrutura foi exposta por Lévi-Strauss em uma recensão critica à obra de
Propp. A "forma" no sentido de Propp é um "conto" único regido por um
encadeamento rígido de uma ordem de funções irreversível. O contador segue
sempre a mesma rota porque há uma só, e que isso é o conto popular russo.
Essa forma é, decerto, um tipo, porque permite atualizações diversificadas,
mas são atualizações diversas de um conto único.
>- Por essa razão, os sucessores de Propp deviam escolher entre dois
movimentos radicais: seja reconstruir o sistema na base de esferas de ação
dos principais personagens e deixar cair a seqüência das funções; ou então
considerar a própria seqüência como uma estrutura de superfície e buscar
uma estrutura de profundidade desprovida de significação cronológica e,
portanto, de todo caráter narrativo.
toda função mimética. "Uma narrativa não faz ver, não imita. A paixão que
nos pode inflamar não é a de uma visão, é a dos sentidos, isto é, de uma
ordem superior da relação que possui também suas emoções, suas esperan-
ças, suas ameaças, seus triunfos: 'o que se passa' nas narrativas é, do ponto
de vista referencial (real), literalmente nada; o que acontece é a linguagem
unicamente, a aventura da linguagem, cuja vinda não deixa nunca de ser
festejada" (1966, p. 27). Esse texto exprime, da maneira menos ambígua
possível, como a escolha metodológica se torna uma decisão dogmática.
A transição da primeira à segunda pode exprimir-se como a preferên-
cia pelo código em relação à mensagem. Se a mensagem perdeu a função
referencial, só resta uma possibilidade: a mensagem manifesta seus códigos
subjacentes. Barthes (1970) chega a dizer que a mensagem é pura citação de
seus códigos subjacentes.
2. Esse segundo passo é encorajado por toda a obra de Claude Lévi-
Strauss, que toma a segunda via aberta depois de Propp. Em lugar de forma-
lizar episódios e de preservar um fator diacrônico (como Greimas faz ain-
da), procede-se a uma radical descronologização da narrativa, estendendo às
unidades do discurso maiores do que a frase, as regras de combinação que
foram aplicadas com tanto sucesso no nível das unidades de linguagem me-
nores do que a frase, os fonemas e os lexemas. Em outros termos, tratam-se
os textos de maneira análoga ao sistema de signos que Saussure chama de
língua em oposição à palavra.
Essa extensão do modelo estrutural aos textos é uma tentativa arrisca-
da. Um texto não está mais na vertente da palavra do que na da língua?
Não é uma sucessão de enunciações, e portanto, em última análise, uma
sucessão de frases? Essas questões mostram ao menos que a extensão de
um modelo estrutural, tomado de empréstimo no nível da língua e transfe-
rido ao nível da palavra e do discurso, quer falado, quer escrito, não esgota
o campo de todas as atitudes possíveis em relação a um texto. Por conse-
guinte, devemos tomar essa extensão do modelo lingüístico ao domínio dos
textos como uma abordagem possível da noção do texto. Essa abordagem
liga-se ao pressuposto geral de que as unidades de uma ordem superior à
da frase sejam organizadas de uma maneira similar à das pequenas unida-
des de uma ordem inferior à da frase, as que precisamente pertencem ao
domínio da lingüística.
Claude Lévi-Strauss (1967, pp. 206-207) formula essa hipótese da ma-
neira seguinte em relação a uma categoria de textos, a dos mitos: "O mito,
como o resto da linguagem, é composto de unidades constitutivas. Essas
152 ............... TEXIOLTRADUZlDOS
sus. Introduz Jesus como o locutor da parábola e a parábola como uma cita-
ção. Introduz também o destinatário (a multidão, designada em 13,9) e o
quadro geográfico no qual os movimentos significativos vão produzir-se: J~
sus sai da casa (13,1). Os movimentos entre Jesus, a multidão e os discípu-
los são partes dessa "topologia" e dessa "cinemática". Enfim, se começamos
por 13,3 devemos terminar em 13,23, quando Jesus volta. Isso implica que
os três outros segmentos (por que Jesus fala em parábolas, a interpretação
em 13,18-23, mais a citação de Isaías em 13,10-17) são englobados no seg-
mento aberto da maneira como acabamos de expor.
Nosso autor admite, porém, que já foi guiado na escolha dessa estraté-
gia pelo jogo de correspondências e de transformações que estão em jogo.
(Essa concepção não implica objeção: a eficácia esperada de uma hipótese
faz parte de sua "razão de ser".)
Se alguma objeção pudesse ser levantada a essa fase inicial seria a se-
guinte: isolar um texto é ao mesmo tempo compará-lo com textos similares
com os quais constitui um corpus (as parábolas). No entanto, a decisão ini-
cial de não desconectar a parábola do conjunto da seqüência e, em particu-
lar, da interpretação alegórica pode prejudicar a segunda operação, a de "unir"
esse texto com outros textos em um único corpus. Se Marin não examina
essa objeção, é porque está literalmente fascinado pelo jogo de efeitos retroa-
tivos entre os diferentes segmentos e pela possibilidade oferecida por essa
ação retroativa (por exemplo, a de 13,9 sobre a escolha de 13,3a como pon-
to de partida), de quebrar a linearidade da estrutura de superfície.
Devemos também dizer que desde o começo nossa atenção é desviada
do exame da composição dramática específica da parábola como tal e da
intriga que permite identificar sua estrutura. Ao contrário, os traços que vão
ser postos em evidência são os que são homólogos às estruturas dos outros
segmentos. Essa falta de interesse pela "intriga" será a contrapartida do inte-
resse (excessivo) pelas leis de transformação entre 13,3a e 13,23. A especi-
ficidade da intriga será eclipsada pelo jogo das correspondências.
Portanto, nosso autor não negligencia somente a composição específica
da narrativa-parábola, mas também o caráter diacrônico de todo o fragmen-
to. Seguindo mais Barthes do que Greimas (que preservou a possibilidade e
a legitimidade das duas interpretações, acrônica e diacrônica), Marion opta
de maneira unilateral pela interpretação acrônica, argumentando que a aná-
lise de uma mensagem está a serviço do código, que o inventário dos códi-
gos é a única coisa que importa e que, em fim de contas, uma narrativa é a
manifestação de seus próprios códigos sob a forma de citação. O aspecto
IL6:PAU.LRICQEUR..LA..HERMENÊ.unCA B1BUCA 155
incluído entre os que quiseram ver e não viram. Mas é seu discurso que é
inclusivo do todo, discurso que aparece como a "reescrita" da citação que
contém. Dessa maneira a citação refere-se a um "outro" - o discurso de
Isaías - e desempenha o mesmo papel que a figura ausente do semeador
no quarto fragmento.
Se consideramos que é Jesus que enuncia o discurso de Isaías como
uma citação, e que o próprio Isaías - no outro texto - enuncia o discurso de
Javé, um "eu profético" é indiretamente designado: "Dito de outro modo, o
'eu' não é mais o do profeta, mas ainda não é de todo o de Jesus, 'eu' oblíquo
- que assinala o sujeito em sua ausência, a Palavra que fala em e por essa
ausência" (71). Assim, o jogo das citações refere-se retrospectivamente aos
três locutores como constituindo um "eu" ausente no relato. O texto marca
desse modo uma" transtextualidade, uma forma de transcendência" (72).
4. Permitam-me agora fazer minhas observações pessoais sobre essa aná-
lise sutil.
> À primeira vista, ela não deixa lugar algum para a interpretação da
parábola em termos de transposição metafórica. O sistema de transforma-
ções de modelo a modelo que manifesta a estrutura subjacente é a significa-
ção. A "intriga" que seria o ponto de partida para uma interpretação existen-
cial, é ignorada. A "intriga", se é que há na verdade intriga nessa parábola,
que não é parábola mas alegoria, está contida, parece-me, nas afirmações de
13,8 e 13,23 sobre a produção espantosa da semente na terra boa, oposta ao
tríplice fracasso da semente no caminho, nas pedras e entre os espinhos. A
dupla "perder/ganhar" dramatizada pelo excesso na perda (subtração do ha-
ver) e pelo excesso no ganho (suplemento do haver) dá à parábola uma es-
trutura de "intriga" que funda sua semelhança com as outras parábolas. Na
linguagem de Via, essa parábola oferece lado a lado os resultados trágico e
cômico de todas as parábolas.
> De acordo com uma segunda reflexão, essa análise não só menos-
preza e ignora as potencialidades dramáticas e existenciais desenvolvidas pela
narrativa, mas oferece uma interpretação alternativa que inclui a primeira.
De fato, a análise é, em si mesma e enquanto tal, uma hermenêutica de
substituição. A hipótese subjacente é que o texto analisado é a "comunica-
ção de uma mensagem sobre a comunicação". E nosso autor acrescenta esta
observação decisiva: "Mas o evangelho não é antes de tudo uma notícia?"
(37). Algumas páginas adiante, ao falar do terceiro fragmento como de uma
mensagem a respeito do código, observa: "isso pode ser uma das característi-
cas das narrativas parabólicas" (48). Assim, a significação pode ser manifes-
LL6:PAUL RlCOEUR ..EAHERMENÊ.UTJCA.BíBUCA.
não é o sentido mais geral que possamos tirar do discurso parabólico: a co-
municação ao leitor 'presente' da rede de comunicação do Outro, do Outro
completamente diferente do homem?" (74). Essa conclusão intrigante deixa
duas possibilidades abertas: seja que o Outro é somente um "furo" na textura
do texto, seja que ele é designado como ser extralingüístico pelos resíduos
do sistema de jogo e de interação e, então, a análise estrutural deve abrir-se
a um outro tipo de interpretação, que leve a sério o movimento de trans-
cendência do texto para além dele mesmo.
1:
.~" -;,
166 . . .... TEXTOS .. TRADUZlD.OS
sinais de uma troca que envolve o relato a partir do exterior. Em outros ter-
mos, mais familiares ao leitor de expressão inglesa, o sentido do relato não é
completo sem seu uso em uma situação narrativa (da mesma maneira que a
proposição "o atual rei da França é calvo" muda de valor veritativo para
Strawson segundo a situação em que é empregada).
A conseqüência dessa distinção entre a narrativa como tal e a comunica-
ção narrativa é que bem mais questões podem ser suscitadas a propósito da
narrativa do que sobre sua estrutura. Não poderiamos dizer que é no nível da
narração como comunicação que a questão do locutor toma sentido enquanto
doador da narrativa? E igualmente, a questão do "ouvinte" como beneficiário?
Além disso, a questão da "referência" da narrativa toma sentido como uma
dimensão de "troca" ou de "dom", na medida em que esse "dom" advém em
uma certa "situação" que exprime, articula ou interpreta de uma maneira nova?
Que a dimensão referencial seja reintroduzida com a noção de comu-
nicação narrativa pode ser facilmente provado com base na análise de Propp.
Não há dúvida de que contando histórias os homens adquiriram um certo
domínio sobre o caos do comportamento humano. A mimesis da tragédia
segundo Aristóteles já opera no conto folclórico, ou, para falar como Nelson
Goodman em "Linguagens da Arte" (Languages ofArt), a ficção é a "realida-
de refeita". Uma mimesis da ação e dos atores começou na base de códigos
que são modelos para dominar as complexidades humanas. O que chama-
mos "intriga" é o ponto de cruzamento de uma mimesís das ações e uma
mimesis dos personagens.
No caso dos contos folclóricos russos, como Propp os analisou, o papel
da malevolência e da falta tem uma poderosa significação mimética. Como
estrutura de profundidade, não rege menos de dezenove espécies de estru-
turas de superfície: roubo, pilhagem, dano, extorsão, substituição, canibalis-
mo, guerra, evenenamento, estupro etc. A conjunção da prova e do sucesso,
do ajudante e do oponente, do provedor e do traidor significa muitas coisas
sobre os aspectos antagonistas da vida humana.
Essas observações levam-nos à distinção entre fracamente mimétíco e
fortemente mimétíco que Dan o. Via toma emprestada a Northrop Frye. Essa
distinção faz sentido no terceiro nível descrito por Roland Barthes. Mas, com
a função mimética, não estamos mais sobre um fundamento estrutural. Como
diz Barthes, o nível da comunicação narrativa é o último. Ele "fecha" a nar-
rativa ligando a "palavra" à "língua", segundo sua própria metalinguagem. O
que é o último nível para a análise estrutural é o limiar para a hermenêutica
porque a mesma função que "fecha" a narrativa, "abre" para o mundo, a sa-
168_ ................. TEXIOS.. IRADUZIDOS
ber para uma situação e uma experiência humanas que recebem um novo
poder de interpretação da dimensão mimética da narrativa.
Se essa análise é verdadeira, a dimensão simbólica da parábola per-
tence só a esse terceiro nível, como um aspecto da narração enquanto co-
municação. Certas narrativas são "dadas" por seu "doador" a seus "destinatá-
rios" como parábolas, isso é, como desenvolvendo sua função mimética de
maneira metafórica.
o PROCESSO METAFÓRICO
A semântica da metáfora
A primeira parte deste estudo nos levará de uma retórica a uma se-
mântica. Ou, mais precisamente, como vamos ver em um momento, de uma
retórica da palavra a uma semântica do discurso ou da frase.
LL6:PAULRICOEUR.EAHERMENÊunCA.BiBuCA. 169
significação, uma torção pela qual o enunciado metafórico recebe sua signi-
ficação. Podemos dizer assim que a metáfora, considerada somente em seus
termos, consiste num deslize de significação. Mas o efeito desse deslize é
reduzir um outro deslize no nível do conjunto do enunciado, esse deslize
que acabamos de chamar de "impertinência semântica" e que consiste na
inadequação mútua dos termos quando são interpretados literalmente.
3. Agora é possível voltar ao terceiro tema da concepção retórica da
metáfora, o papel da semelhança. Isso foi, com muita freqüência, mal com-
preendido. Foi reduzido ao papel de imagens no discurso poético. Para mui-
tos críticos literários, especialmente os antigos, o estudo das metáforas de
um autor é o estudo da nomenclatura das imagens que ilustram essas idéias.
Mas se a metáfora não consiste em revestir uma idéia com uma imagem, se
consiste sobretudo em reduzir o choque entre duas idéias incompatíveis, é
nessa redução do deslize, nessa aproximação, que devemos olhar primeiro o
jogo da semelhança. O que está em jogo, no enunciado metafórico, é fazer
aparecer uma similitude onde a visão ordinária não percebe adequação ne-
nhuma. Aqui a metáfora opera de um modo muito próximo ao que Gilbert
Ryle chamou de "erro de categoria" (category mistake). É um erro calculado.
Consiste em assimilar coisas que não combinam. Mais precisamente, através
desse erro calculado a metáfora revela uma relação de significação, que até .
então não se tinha percebido, entre termos impedidos de comunicar-se en-
tre si pelas classificações anteriores. Quando o poeta diz "o tempo é um
mendigo", ensina-nos a ver "como se ...", a ver o tempo como ou semelhante
a um mendigo. Duas classes categoriais que estavam distantes até então tor-
nam-se de repente próximas: tomar próximo o que estava "distante", eis o
trabalho da semelhança. Nesse sentido Aristóteles diz com razão que "fazer
boas metáforas é perceber as semelhanças". Mas esse ver é ao mesmo tempo
uma construção: as boas metáforas são mais as que instituem uma seme-
lhança do que aquelas que só fazem registrar uma.
4. Dessa descrição do trabalho da semelhança num enunciado metafó-
rico resulta porém uma outra oposição à concepção puramente retórica da
metáfora. Para a retórica, lembremos, o tropo era simples substituição de
uma palavra por outra. Ora, a substituição é uma operação estéril, mas na
metáfora, ao contrário, a tensão entre as palavras, especialmente a tensão
entre duas interpretações, uma literal e outra metafórica, no conjunto da
frase, dá lugar a uma verdadeira criação de significação de que a retórica só
percebia o resultado final. Em uma teoria da tensão - que oponho aqui a
uma teoria da substituição - uma nova significação emerge, que tem a ver
172 .. .....TEXI-QS_.TRADUZlDOS
Metáfora e realidade
Examinar a função referencial ou denotativa da metáfora é ser levado
a propor certo número de hipóteses gerais sobre a linguagem que eu gosta-
ria de enunciar, embora não possa justificá-las aqui.
1. Primeiro, devemos admitir que é possível distinguir em cada enun-
ciado entre sentido e referência, Devemos essa distinção a Frege que a pos-
IL6':'J'AULRlCO EURLAHERMEN.ÊUTICABiBLI CA
sentido imanente, mas que aspira desenvolver a espécie de mundo que uma
obra projeta. Essa implicação hermenêutica da distinção entre sentido e re-
ferência toma-se perfeitamente impressionante se a pomos em oposição entre
a concepção romântica da hermenêutica, em que a interpretação visava a
encontrar a intenção do autor por trás do texto. A distinção de Frege convi-
da-nos antes a seguir o movimento que exprime o sentido, i.é., o movimen-
to da estrutura interna da obra para o tipo de mundo que a obra abre dian-
te do texto.
Tal é o gênero de hipótese semântica da filosofia da linguagem e da
hermenêutica que está na base das reflexões presentes sobre o alcance refe-
rencial dos enunciados metafóricos.
2. Que os enunciados metafóricos possam pretender à verdade, isso
deve enfrentar sérias objeções que não se podem reduzir a preconceitos saí-
dos da concepção puramente retórica acíma discutida. A afirmação de que a
metáfora não contém nenhuma nova informação é puramente ornamental.
Não me ocuparei com esse tipo de objeções. Mas a esses preconceitos de
origem retórica junta-se uma objeção que conceme ao funcionamento da
própria linguagem poética. Não é surpreendente que uma objeção possa vir
dessa direção porque a metáfora é tradicionalmente ligada ao funcionamen-
to da linguagem poética.
Aqui nos chocamos contra uma propensão forte na crítica literária de
recusar que a linguagem poética tenda para a realidade, ou que diga seja o
que for sobre qualquer coisa exterior a ela mesma, porque a supressão da
referência, a abolição da realidade parecem ser a lei mesma do funciona-
mento da linguagem poética. Assim Ro~an Jakobson, em seu famoso ensaio
sobre "Lingüística e poética" (Linguístícs and Poetícs), pretende que a função
poética da linguagem consiste no acento posto na linguagem por ela mes-
ma, em detrimento da função referencial da linguagem ordinária. Ele diz:
"Essa função, promovendo a palpabilidade dos signos, cava a dicotomia fun-
damental entre signos e objetos" (356). Há numerosos críticos literários que
partilham desse ponto de vista. A conjunção entre sentido e som em poesia
parece fazer do poema um objeto sólido fechado sobre ele mesmo, em que
as palavras tomam-se o material para a modelagem do poema, como o é a
pedra para a escultura. Na poesia, dizem os mais radicais desses críticos, não
é questão de outra coisa senão da linguagem mesma. Assim, podemos opor
o movimento centrípeto da linguagem poética ao movimento centrífugo da
discurso descritivo, como o faz Northrop Frye, e dizer que a poesia é urna
linguagem "auto-suficiente". Nessa perspectiva, a metáfora é um instrumen-
IL.6.:_.I'AULRlCOEUR.LA.HERMENÊUTICA _BíBUCA ..._..... 175
ou a esse ponto estranho para ela que esse referente não possa ser apreen-
dido a não ser no seio da metáfora mesma" (13), então jamais obteremos
essa convicção de uma pesquisa ulterior da estrutura lingüística da parábo-
la. O elã para o referente deve, em certo sentido, preceder toda tentativa de
fazê-lo decorrer de um melhor conhecimento da estrutura interna. É por-
que a experiência poética vem à expressão metafórica que a "linguagem
impõe uma ordem crível" (T. S. Eliot) à experiência ordinária. A estrutura
nada mais é do que essa ordem crível. Por essa razão, a ordem natural da
pesquisa devia ser a partír da participação ao referente para voltar para a
análise da estrutura "interna".
Essa convicção é também a minha, até certo ponto. Também conside-
rei como estabelecido, na primeira parte desta seção, que a narrativa signifi-
ca metaforicamente a experiência poética que vem da linguagem.
Mas se essa convicção pode inverter a ordem de prioridade das duas
questões levantadas no começo desta seção, isso não nos autoriza a apagar
outra questão: como sabemos que uma parábola é uma parábola e não sim-
plesmente uma narrativa? Essa questão não pode mais ser rejeitada desde o
momento em que existe uma análise estrutural independente da abordagem
poética. Certamente, podemos decidir nunca utilizar análise estrutural de
maneira a evitar aborrecimentos com questões concernentes ao sentido e à
"referência". Mas o estado atual do problema não nos permite mais contor-
nar essa dificuldade. A única regra que pode ajudar-nos a não ficar prisionei-
ros do impasse estrutural é evocar essa questão como a contraparte da que
discutimos na primeira parte. Como a referência simbólica trabalha através
da estrutura narrativa? A nova questão será então a seguinte: que indícios a
narrativa fornece para a compreensão de seu referente de uma maneira me-
tafórica? Minha hipótese principal é que os indícios internos fornecidos por
uma narrativa isolada são demasiado implícitos ou evasivos para serem reti-
dos ao lado da interferência dos indícios mais importantes dados pelo con-
texto. Porém irei tão longe quanto possível na busca de "sinais de metafori-
cidade" de uma única narrativa (ponto 2) antes de examinar os "indícios
contextuais" (ponto 3 a 6).
2. Os sinais de metaforicidade dados por uma única narrativa, se é que
os há, não devem encontrar-se em outro lugar que não na intriga (no sentido
de Via), no desafio que a intriga apresenta para os principais personagens e na
resposta dada por esses personagens à situação de crise. A abordagem dramá-
tica, melhor do que a abordagem puramente formalista do estruturalismo,
fornece uma base apropriada para o processo metafórico. Essa base é a estru-
186 . . TE.XTO.LTRADUZJOOS
locutor que se exprime ele mesmo por meio de uma confissão indireta. Ou,
para dizer o mesmo nos termos da discussão precedente do estruturalismo,
o locutor é quem "dá" a narrativa em uma comunicação narrativa. Mas essa
referência para trás da parábola ao "doador" da narrativa não nos permite
dizer mais do que isso: aqui, um locutor único apresenta diante de nós um
único modo de ser por meio de uma narrativa metafórica. Só a conjunção
entre o "herói" do evangelho como narrativa e o "doador" da parábola como
citação no evangelho permite-nos nomear o locutor da parábola e chamá-lo
Jesus. A expressão "parábola de Jesus" provém desse processo de intersigni-
ficação entre parábola e evangelho.
>- Uma importante conseqüência desse processo de intersigníficação
entre parábola e evangelho é que todo o conjunto das "palavras" mais as
"ações" (ordinárias, extraordinárias, milagrosas) está conectado pela media-
ção da forma "evangelho" com o principal assunto do evangelho, a narrativa
da Paixão. Essa proximidade, no seio do espaço da intersignificação entre
todas
/
as "palavras" e todas as "ações" (tais como são naturalmente ligadas
segundo o modo narrativo) e a história da Paixão tem uma enorme impor-
tância. Essa proximidade não é só uma proximidade em termos de justapo-
sição, de contigüidade, mas em termos de mútua interpretação, de interfe-
rência simbólica. Minha convicção pessoal é que a interpretação alegórica,
que a maioria dos historiadores modernos têm tanto afã em desconectar da
parábola enquanto tal, é inevitavelmente motivada por esse jogo simbólico
entre a narrativa da Paixão e as parábolas. Desse modo, as parábolas não são
apenas as "parábolas de Jesus", mas as do "Crucificado". O "herói" da narra-
tiva evangélica, que é também o "doador" das parábolas como narrativas "se-
cundárias", tende a tomar-se o referente indireto da parábola como metáfo-
ra. Dominique Crossan (XIV) tem razão em dizer que a redação do evange-
lho implica um deslocamento de intencionalidade: "Jesus proclamou Deus em
parábola, mas a Igreja primitiva proclamou Jesus como a parábola de Deus".
Esse "restabelecimento de íntencíonalídade", parece-me, é fundado no ato
mesmo da composição que conduz à redação do primeiro evangelho. Desde
que a pregação de Jesus como o "Crucificado" está entrelaçada com as nar-
rativas de suas "ações" e de suas "palavras", uma possibilidade especifica de
interpretação está aberta pelo que chamo o estabelecimento de um "espaço"
de intersignificação: por "possibilidade específica" entendo a proposição de
ler a proclamação de Jesus como "a Parábola de Deus" na proclamação por
Jesus do Deus "em parábolas". Recusar inteiramente essa possibilidade exigi-
ria que desprendêssemos as parábolas do evangelho. Então só teríamos um
192 .... ._._ ..._.. _IEXIOS.IRADUZIDOS
"artefato" criado pela crítica histórica que tenderia a tornar-se sem significa-
ção ao mesmo tempo que se tomaria "pura". Esse paradoxo deve ser exami-
nado seriamente: a inserção da parábola na forma "evangelho" é ao mesmo
tempo parte de sua significação para nós que recebemos o texto da Igreja e
o começo de sua má compreensão. É a razão pela qual devemos interpretar
as parábolas ao mesmo tempo com ajuda das distorções provocadas pelo
último contexto e contra elas. Mas não nos livramos desse paradoxo agre-
gando simplesmente o contexto fornecido pela forma "evangelho". A tensão
entre a forma parábola e a forma evangelho é inevitavelmente uma parte da
significação da parábola, como narrativa e como metáfora.
l
194 .. . .........__.. _._._ ...IEllIO.S-...IRAD.UZiD.05
descrita na narrativa. Mas de que tempo de crise se trata? E que relação tem
essa crise com a expressão "Reino de Deus"? Que quer dizer a fórmula: "O
Reino de Deus pode ser comparado a ... "? Vimos que o uso semântico e
léxico da expressão "comparado a ... " não se aplica a quem faz alguma coisa
na parábola, mas antes à seqüência mesma das ações nas quais o ator prin-
cipal está implicado. Assim fica o problema: como o "Reino de Deus" fun-
ciona enquanto referente das parábolas? Não podemos determiná-lo antes
de ter colocado as parábolas em relação com outros tipos de enunciados nos
quais o Reino de Deus serve também de ponto de convergência. Proponho
dizer que a expressão "Reino de Deus" é uma expressão limite em virtude
da qual as diferentes formas de discurso, empregadas pela linguagem religio-
sa, são modificadas, e pelo fato mesmo convergem para um ponto último
que se torna seu ponto de encontro com o infinito.
L.
198 ......... TEXIQSTRADUZIDQS
"sentido de nossa dependência como criaturas" (83). Mas vimos que o uso
explícito do paradoxo no provérbio, e talvez seu uso implícito nas parábolas,
nos deixam com o enigma de como fazer um todo de nossa existência além
do ponto de ruptura provocado pelo paradoxo. Podemos então continuar a
tratar o qualificador como o processo lógico pelo qual a palavra "Deus" "pre-
side e completa toda a linguagem das coisas criadas"? Aqui, o que se ques-
tiona é a estrutura lógica mesma do qualificador.
Essa última observação não deveria, de modo algum, desencorajar-nos
a empregar a estrutura "modelo-qualífícador". Deveria simplesmente alertar-
nos contra uma redução do papel do qualificador àquilo que completa a
imagem da realidade e da experiência, como foi tantas vezes o caso na tra-
dição metafísica ocidental em que o termo "Deus" serviu para completar e
fechar o discurso. O qualificador pode também ter a função de re-orientar
des-orientando. Nesse sentido deve exprimir e preservar, mesmo em sua es-
trutura lógica, algo da função limite que vimos antes operar na transgressão
das três formas de discurso consideradas.
Voltarei a esse ponto na terceira parte desta seção. Bastará aqui fazer
as afirmações seguintes:
1. As diversas formas de discurso religioso - pelo menos as que os
sinópticos atribuem a Jesus - apresentam uma similitude de fun-
ção, a saber, o tipo de abuso que arruina a própria forma do discurso
empregado. Tentei atrair a atenção sobre isso, chamando-as "expres-
sões-limite" .
2. O símbolo "Reino de Deus" pode ser designado como o referente
comum desses diferentes tipos de discurso e, portanto, igualmente a
seu funcionamento como expressões-limite. Poderíamos arriscar-nos
a chamar o símbolo "Reino de Deus" de referente-limite dessas ex-
pressões-limite. É esse referente-limite que preside ao que chamarei
as expressões-limite, que a linguagem religiosa tenta ré-descrever; na
segunda parte desta seção.
3. O funcionamento das expressões-limite e do símbolo "Reino de Deus"
prefigura a estrutura modelo-qualificador que caracteriza não só a lin-
guagem religiosa, mas também a linguagem propriamente teológica.
Podemos fazer a hipótese dessa constituição paradoxal da linguagem
teológica na sua fonte - i.é., ao mesmo tempo seu estímulo e sua
estrutura pré-conceitual- no funcionamento das expressões-limite
da linguagem religiosa.
204 ..
As experiências-limite
levá-la a seu limite. Por conseguinte, a distinção entre descrição e ação desa-
parece na presença de uma distinção mais importante entre a experiência
ordinária, considerada globalmente, e o discernimento operado por essa lin-
guagem no coração dessa experiência ordinária.
2. Quanto a isso, Ramsey tem toda razão em juntar as duas experiên-
cias de "discernimento bizarro" e de "engajamento total". Interpreto assim
essa conjunção: A questão não é tanto saber se a linguagem performativa é
mais apropriada do que a linguagem indicativa, mas antes saber se a lingua-
gem metafórica é mais adaptada do que a linguagem literal. De fato, a ques-
tão não é simplesmente saber por que a linguagem metafórica é mais adap-
tada do que a linguagem literal, uma vez que os provérbios e os dizeres
escatológicos não são precisamente metafóricos, mas por que as expressões-
limite são requeridas. O discernimento que a linguagem religiosa provoca é
"bizarro" porque o engajamento é "total". É total no duplo sentido de que
engaja o todo de minha vida e porque, como linguagem religiosa, visa ao
todo de minha vida. É então nesse sentido que me servirei da declaração de
Ramsey, segundo a qual o lugar empírico dos enunciados religiosos e teoló-
gicos combina "um discernimento pessoal bizarro" e um "engajamento total"
assim como um "alcance universal". Utilizarei a declaração de Ramsey com
esta dupla correção: primeiro, que a lógica dessa linguagem convida-nos a ir
desde os traços distintos que são próprios (parábolas, provérbios, proclama-
ções etc.) para os traços correspondentes da experiência, e não ao contrário;
e em segundo lugar, ir do que é mais característico entre todos esses traços
distintivos - a saber, o que já põe em jogo os qualificadores destacados por
Ramsey no nível dos enunciados especificamente teológicos - para o que
chamo agora de experiências-limite.
Por conseguinte, devemos concentrar toda nossa atenção sobre o poder
revelador do qualificador. Penso que Ramsey o fez implicitamente, ao ligar
o "discernimento bizarro" ao "engajamento total" e ao "alcance universal".
Mas é talvez possível ir mais longe do que ele, se examinarmos a função do
qualificador no caso da linguagem pré-teológica, como se fosse presente
menos para presidir e completar nosso discurso e nossa ação do que para
desorientá-los, subvertê-los em suma, introduzir neles paradoxo e escândalo.
Com efeito, é nesse ponto que a linguagem religiosa merece mais ple-
namente ser tratada em termos de "modelos de revelação". Já fizemos a apro-
ximação entre o "modelo de revelação" em Ramsey e o "modelo analógico"
em Max Black nos capítulos precedentes, do ponto de vista da relação es-
trutural, entre a história e a realidade a que ela visa metaforicamente. Gos-
...I.EXIO..LTRAUUZlD.OS
l
208~ .............................TEXIO.LIRADUZlD.OS
Os conceitos-limite
Para completar esses capítulos, queria acrescentar uma contribuição pes-
soal à relação entre as linguagens religiosa e teológica.
IT .. 6~J>AUL ..RLCOEU R-f..A HERMENluHCAB.LBlICA .
l
.. ............IEXIOS...IRAD.ULI.D.O.s
l
216 .
t
218 . ......T UTOS..TRADUZJDOS
que esse tipo de linguagem é indireto, figurativo, que tira sua força de seu
potencial hermenêutico, e que, por conseguinte, não é objetivo. O "limite"
funciona aqui como uma advertência contra uma nova escolástica. Lembra-
nos que "é como" implica "não é". Por isso não abandono o vocabulário
kantiano do limite imposto pela razão às reivindicações do saber objetivo.
Da mesma maneira que a "tensão" entre as interpretações literal e metafóri-
ca é essencial à significação da metáfora, uma tensão entre a reivindicação
objetiva do saber e a apresentação poética do Incondicionado deve ser pre-
servada na nova linguagem de advento, restauração e resolução. Essa lingua-
gem é ao mesmo tempo a dos conceitos-limite e das apresentações figurati-
vas do Incondicionado.
> Conforme a Segunda Crítica, a única "extensão" (Ausweitung) de
nosso conhecimento é prática, isso é, concerne à relação entre a liberdade
e a lei. Este contraste entre limitação teórica e extensão prática pode tor-
nar-se mais frutuoso se damos um alcance à estreíteza da moral. Espinoza
chamou sua filosofia de Ética sem ligar o destino da ética às idéias do dever
e da obrigação. Se a ética cobre todo o percurso da escravidão à liberdade,
ou, como diz o filósofo francês Jean Nabert em sua Introduction à la Éthique,
se a ética é uma teoria das mediações pelas quais cumprimos nosso desejo
de ser, nosso esforço para existir, então uma interpretação ética do discurso
poético e religioso não tem efeitos redutores. Abre, ao contrário, um diálo-
go frutuoso entre ética e hermenêutica. O conceito, uma vez mais, encon-
tra-se do lado de uma ética filosófica, seja que concebamos a ética em ter-
mos de normas, de valores, de instituição, ou em termos de criatividade, de
livre expressão, de revolução permanente etc. Ora, esses conceitos são va-
zios sem sua apresentação indireta em símbolos, parábolas e mitos. É a ta-
refa da hermenêutica destacar do "mundo" dos textos seu "projeto" implíci-
to de existência, sua "proposição" indireta de novos modos de ser. As intui-
ções são cegas na medida em que os conceitos éticos são vazios. A herme-
nêutica terminou seu trabalho quando abriu os olhos e os ouvidos, i.é.,
quando apresentou diante de nossa imaginação as figuras da existência au-
têntica. É a tarefa da ética articular seu discurso coerente, entendendo o
que dizem os poetas.
> Na Religião nos limites da simples razão, Kant estabeleceu as regras
de uma hermenêutica filosófica que pode colocar-se sob o título de uma
pesquisa transcendental sobre a imaginação e a esperança. A tarefa atribuída
por Kant a essa pesquisa transcendental poderia aparecer menos estreita,
não só se damos à ética um alcance mais vasto do que Kant lhe designava,
IL6;_PAUl_..RlC DE.URIõ..A_H ERMENÊUIICA_~iBUCA. ._. ._- 221
REFERtNClAS BIBLIOGRÁFICAS
- Literary Criticism of the New Testament. Filadélfia, Fortress Press, 1970b, 30-41.
BLACK, M. Models and Metaphors. 1taca, New York, Cornell University Press, 1962.
BREMOND, Ch. "Le message narratií". Communications 4 (1964) 4-32.
- - La logique des posib1es narratífs, Communications 8 (1966) 69-76.
CROSSAN, 1. D. In Parables. New York, Harper and Row, 1973.
DODD, C. H. The Parables of the Kingdom. New York, Scribner's, 1961.
FuNK, R. W. Language, Hermeneutics and World of God. New York, Harper and
Row,1966.
GADAMER, H. G. Wahrheit und Methode. Tübingen, Mohr, 21965.
GERHARDSSON, B. "The Parable of the Sower and its Interpretation". New Testa-
ment Studies. 14 (1967-1968) 165-193.
GOODMANN, N. Languages and Art. Indíanapolís, Bobbs-Merríl, 1967.
GREIMAS, A. 1. Sémantique strueturale. Paris, Larousse, 1966.
GÜ1TGEMANNS, E. Studia Linguistica Neotestamentaria. München, Kaiser, 1971.
HESSE, M. B. Models and Analogies in Science. Notre Dame University Press, 1966.
INGARDEN, R. The Literary Work of art. Northwestem University Press, 1973.
JAKOBSON, R. "Linguistics and Poetícs". Em: SEBEOK T. A. (ed.). Stylein Language.
Cambrídge, Mass, MIT Press, 1960, 350-377.
JEREMIAS, 1. The Parables of Jesus (Rev.). New York, Scríbner's, 1963.
JüLICHER, A. Die Gleichnisreden lesu. Tübíngen, Mohr, 1888 e 1899,2 vols.
JüNGEL, E. Paulus und Jesus. Tübingen, Mohr, 1972.
LÉVI-STRAUSS, Cl. "L'analyse morphologique des contes russes", International Journal
of Slavic Linguistics and Poetics 3 (1960) 122-149.
- - "The structural Study of Myth". Structural Anthropology, New York, Doubleday,
1967.
MARIN, L. "Essai d'analyse structurale du récit-parabole: Mathieu, 13, 1-23". Études
théologiques et religieux 46 (1971a) 35-74.
- - "Les femmes au tombeau. Essai d'analyse structurale d'un texte évangélique".
Em CHABROL C. e MARlN L. (eds.). Sémiotique narrative: récits bibliques. Paris,
Didier Larousse, 1971 b, 39-50.
MOULE, C. F. D. "Mk 4:1-20 Yet Once More". Em: ELLIS, E. E. e Wilcox, M. Neo-
testamentica et Semitica: Studies in Honor of Matthew Black. Edínburgh, Clark,
1969, 95-113.
PERRlN, N. "The Parables of Jesus as Parables, as Metaphors and as Aesthetics Objects:
A Review Artícle". The Journal of Religion 47 (1967) 340-347.
- - The New Testament: An Introduction. New York, Harcourt Brace Jovanovich,
1974, 277-303.
IL6-=-..PAUL...RKOEUR.. EA.HERM.ENÊUIKABiBU.cA ..
PROPP, v. Morphology of the Folktale. Rev. Austín, University ofTexas Press, 1968.
RAD, G. von. Weisheit in Israel. Neukírchen-Vluyn, 1970.
RAMSEY, I. T. Religious Language. New York, Macmillan, 1957.
TESNIERE, L. Éléments de syntaxe structurale. Paris, Klíncksíeck, 1959.
VIA, Dan o. The Parables. Fíladelíia, Fortress Press, 1967.
WELLEK, R. A. W. Theory of Literature. New York, Harcourt, 31956.
WHELLWRIGHT, P. Metaphor and Reality. Bloornington, Indiana Univ. Press, 1962.
- - The Buming Fountain. ed.rev. Bloomington, Indiana Univ. Press, 1968.
WILDEN, Amos. The Language of the Gospel. New York, Harper and Row, 1964.
l
TI7
(31) Propôs-lhes uma outra parábola: "O Reino dos céus é semelhante a um
grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo.
Embora seja a menor de todas as sementes, quando cresce é maior do
que qualquer hortaliça e torna-se árvore, a tal ponto que as aves do
céu se abrigam nos seus ramos".
(33) Contou-lhes outra parábola: "O Reino dos céus é semelhante ao fer-
mento que uma mulher tomou e pôs em três medidas de farinha, até
que tudo ficasse fermentado".
(44) "O Reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo:
um homem o acha e torna a esconder, e na sua alegria vai e vende
tudo o que possui e compra aquele campo".
(45) Ou ainda: "O Reino dos céus é ainda semelhante a um negociante que
anda em busca de pérolas fmas. (46) Ao achar uma pérola de grande
valor, vai, vende tudo o que possui, e compra a pérola".
Pregar hoje sobre as parábolas de Jesus parece uma causa perdida. Não
já ouvimos essas histórias na escola dominical? Não são histórias infantis
indignas de nossa pretensão ao conhecimento científico, em particular em
uma capela universitária? As situações que evocam não são típicas da vida
rural, que nossa civilização urbana tornou praticamente incompreensível? E
os símbolos que outrora despertavam a imaginação da gente simples, esses
símbolos não se tornaram metáforas mortas, tão mortas como o pé da cadei-
ra? Ainda mais: o desgaste dessas imagens, herdeiras da vida agrícola, não é
a prova mais convincente da erosão geral dos símbolos cristãos em nossa
cultura moderna?
Pregar hoje sobre as parábolas de Jesus ou, melhor, pregar as parábolas,
com efeito é um desafio: desafio de que, apesar de todos os argumentos
contrários, é sempre possível escutar as parábolas de Jesus de tal maneira
que fiquemos atônitos uma vez mais, impressionados, renovados e postos
em movimento. Foi esse desafio que me levou a tentar pregar as parábolas e
não só estudá-las de maneira erudita, como um texto entre outros.
A primeira coisa que pode impressionar-nos é que as parábolas são
narrativas radicalmente profanas. Não há deuses, nem demônios, nem anjos
nem milagres, nem tempo antes do tempo, como nas narrativas da criação,
nem mesmo acontecimentos fundadores como na narrativa do Êxodo. Nada,
mas precisamente gente como nós: proprietários palestinos partindo em via-
gem e alugando seus campos, intendentes e obreiros, semeadores e pescado-
res, pais e filhos; em uma palavra, pessoas comuns fazendo coisas comuns:
vendendo e comprando, lançando a rede ao mar e assim por diante. Encon-
tra-se aqui o paradoxo inicial: por um lado as histórias são - como disse
um crítico - narrativas da normalidade, mas, por outro, é o Reino de Deus
que se diz ser assim. O extraordinário é como o ordinário.
Outras palavras de Jesus falam do Reino dos Céus, notadamente nos
provérbios escatológicos, e parecem sinalizar para algo de Todo Outro, para
algo além, tão diferente de nossa história como o céu é da terra. É por isso
que a primeira coisa que pode surpreender-nos é que, no momento mesmo
em que esperávamos a linguagem do mito, a linguagem do sagrado, a lingua-
gem dos mistérios, recebemos a linguagem de nossa história, a linguagem
profana, a do drama aberto.
É esse contraste entre o tipo das coisas de que se fala, o Reino dos Céus,
e o tipo das coisas a que é comparado que pode pôr em movimento nossa
pesquisa. Não é a pessoa religiosa em nós, não é a pessoa sagrada em nós,
mas é precisamente a pessoa profana, a pessoa secular que é interpelada.
TI. .7~..k .. E5CUTA...DAS PARÁBOLAS.: ..MAl.LUMA..VEZ...ATÔNITOS ....
uma nova descoberta, para uma nova surpresa. E se perguntamos: "E final-
mente, que é o Reino dos céus?", devemos preparar-nos para esta resposta: o
evangelho nada diz sobre o Reino dos céus senão que é semelhante a... Não
diz o que é, mas a que se assemelha. Isso é difícil de entender. Porque toda a
nossa prática científica tende a utilizar as imagens só como meios provisó-
rios e a substituir as imagens por conceitos. Somos convidados a seguir um
outro caminho. E a pensar segundo um modo de pensamento que não é
metafórico por razões retóricas, mas por causa do que deve dizer. Só a ana-
logia é que se aproxima do que é totalmente prático. O evangelho não é o
único a falar dessa maneira. Em outro lugar ouvimos Oséias falar de Javé
como esposo, de Israel como a esposa e dos ídolos, como amantes (Os 2,4-
25). Nenhuma tradução em linguagem abstrata é oferecida, mas somente a
violência de uma linguagem que do começo ao fim pensa através da metá-
fora, e nunca além dela. O poder dessa linguagem é que ela se mantém até
o fim completamente na tensão criada pelas imagens.
Quais as implicações dessa descoberta inquietante, a saber, que as pa-
rábolas nunca permitem uma tradução em linguagem conceitual? Primeiro,
que esse estado de fato revela a fraqueza desse modo de discurso. Mas, olhan-
do mais de perto, revela a força única desse modo. Como é possível? Consi-
deremos que com as palavras não lidamos com uma narrativa única apre-
sentada em um longo discurso, mas com uma multidão de pequenas pará-
bolas reunidas na forma unifícante do evangelho. Esse fato significa alguma
coisa. Significa que as parábolas formam um todo, que devemos apreendê-
las como um todo e compreender cada uma à luz das outras. Constituem
uma rede de intersignificações, se ouso assim falar.
Se retemos essa hipótese, então nossa decepção - a decepção de um
espírito científico quando não chega a tirar uma idéia coerente, um conceito
unívoco desse conjunto de metáforas - nossa decepção pode tomar-se uma
grande surpresa. Porque há agora mais nas parábolas tomadas em conjunto
do que em qualquer sistema conceitual sobre Deus e sobre a ação de Deus
entre nós. Há mais a pensar através da riqueza das imagens do que na coe-
rência de um simples conceito. O que confirma essa impressão é que pode-
mos tirar das parábolas quase todas as teologias que dividiram a cristandade
durante séculos. Isolando a parábola da moeda perdida, quebrando o dina-
mismo da narração e extraindo dali um conceito engessado, então se obtém
o tipo de doutrina da predestinação que o calvinismo rigoroso defendia. Mas
tomando a parábola do filho pródigo, extraindo o conceito engessado da
conversão pessoal, obtém-se então uma teologia baseada na vontade absolu-
230
esquema da ocasião que só se apresenta uma vez, depois do que é tarde de-
mais, comporta uma dramatização do que na experiência ordinária chama-
mos "aproveitar a ocasião"; mas essa dramatização é, a um tempo, paradoxal
e hiperbólica. Paradoxal porque se opõe à experiência efetiva de que há
sempre uma outra chance, e hiperbólica porque exagera a experiência do
caráter único das decisões importantes da existência.
Em que bodas de aldeia se fechou alguma vez a porta na cara das vir-
gens loucas que não se preocupam com o futuro (e que, afinal, são tão des-
cuidadas como os lírios dos campos)? Diz-se que são "parábolas de crise".
Certamente, mas a hora da prova e a escolha seletiva são significadas por
uma crise na narração que intensifica a surpresa, o escândalo e às vezes pro-
voca a desaprovação, como quando o desfecho é inevitavelmente trágico.
Tiremos a conclusão que parece emergir dessa estratégia de discurso
surpreendente de que Jesus faz uso quando propõe parábolas aos discípulos
e à multidão. Escutar as parábolas de Jesus, parece-me, é deixar a imagina-
ção aberta às novas possibilidades apresentadas pela extravagância desses
curtos dramas. Se olhamos as parábolas como uma palavra dirigida antes à
nossa imaginação do que à nossa vontade, não seremos tentados a reduzi-las
a simples conselhos didáticos, a alegorias moralizadoras. Deixaremos sua pró-
pria potência poética desenvolver-se em nós.
Mas essa discussão poética não estava já em curso quando líamos a
parábola da pérola e a parábola do acontecimento, da conversão e da deci-
são? A decisão, dizíamos, a decisão moral vem em terceiro lugar. A conver-
são a precede. Mas o acontecimento abre o caminho. A potência poética da
parábola é a potência do acontecimento. Poética significa mais do que poe-
sia no sentido de gênero literário. Significa o criativo. E é no mais intimo de
nossa imaginação que deixamos o acontecimento advir antes que possamos
converter nosso coração e endireitar nossa vontade
Escutai, por isso, as parábolas de Jesus:
(31) E ele lhes propôs uma outra parábola: "O Reino dos Céus é seme-
lhante a um grão de mostarda que um homem semeou em um campo.
(32) É a menor das sementes, mas quando germina supera as outras horta-
liças e torna-se uma árvore a ponto dos pássaros do céu fazerem ninho em
seus ramos. "
(45) Ou ainda "O Reino dos Céus é comparável a um negociante que
procura pérolas finas. (46) Tendo encontrado uma pérola de grande valor
vai vender tudo o que possui, e compra a pérola".
TI8
E m Mt 16,25 lemos: "Quem quer salvar sua vida a perderá, mas aquele
que perde sua vida por causa de mim a encontrará". Se queremos com-
preender esse versículo é importante notar o fato de que a perícope a que
pertence foi colocada em todos os evangelhos sinópticos imediatamente de-
pois da confissão de Pedro. À questão de Jesus: "Mas vós, quem dizeis que
eu sou?", Simão Pedro respondeu: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". É
o mesmo Pedro que imediatamente depois escandalizou-se com o anúncio
feito por Jesus de seus sofrimentos iminentes e de sua Paixão."Deus te livre,
Senhor", exclama Pedro. "Isso nunca deve te acontecer", uma resposta que
chama a réplica surpreendente, quase violentá, de Jesus: "Retira-te Satanás.
És um escândalo para mim, porque não estás do lado de Deus mas dos
homens". Que essas duas pericopes sejam colocadas uma ao lado da outra
não é fortuito, mas deliberadamente desejado por três evangelistas sinópti-
cos, porque esse encadeamento sugere que o preço que temos de pagar para
seguir a Jesus não é independente da questão de sua identidade. Pedro pro-
cura um Cristo glorioso e não pode aceitar o fato de que o Cristo seja o
Servo sofredor, que seja o Servo sofredor cantado pelo segundo Isaías.
apelo de Jesus para segui-lo, que podemos chamar "práticas", nem as que
podemos chamar "espirituais". Se voltamos à questão dos bens materiais e
do poder, de que falei antes, refletindo uma interpretação de matiz sapien-
cial, podemos evocar a lembrança daqueles que como S. Francisco de Assis
efetivamente se separaram de todos os seus bens. Nada temos a temer por
ter recorrido a Francisco como o exemplo de todos os "loucos de Deus" atra-
vés dos séculos, de concerto também com seus irmãos e irmãs na fé (ou fora
dessa fé) hoje. O caráter anti-econômico de suas experiências pode parecer-
nos irrisório do único ponto de vista de "ganhar o mundo inteiro". Contudo
seu testemunho não pode ser ignorado - nem recusado. É porque eles sub-
vertem a hipótese de base do mundo moderno que nos intrigam - e nos
fazem medo - a esse ponto. Todavia, a nós que permanecemos no mundo
- como dizemos - fica-nos por determinar que lições devemos tirar de
seu testemunho, que limites internos devemos pôr a nossos desejos, dada a
ausência de um limite quantitativo que nos constrangeria do exterior.
Quanto às interpretações espirituais, só posso aqui evocá-las rapida-
mente, mas, colocadas sob o signo da "Imitaria Christi" (Imitação de Cristo),
todas elas visam, de uma maneira ou de outra, a fazer-nos participar, en-
quanto crentes, dos sofrimentos de Cristo, por uma vida de sacrifício e de
renúncia a nós mesmos. Só posso tocá-las de leve, mas não posso ignorá-las,
dada a maneira como na tradição reformada nos sentimos repelidos por tudo
o que cheira a misticismo. O que devemos fazer é recordar que a tradição
da Igreja universal é mais ampla do que a experiência limitada no tempo e
no espaço de nossas denominações atuais.
Assim, para concluir, voltemos à condição particular do intelectual, do
universitário a quem dediquei a parte mais problemática de minha medita-
ção na perspectiva da sabedoria, contida no texto do evangelho de hoje.
Ganhar o mundo, disse eu, para uma pessoa instruída, é buscar o domínio
absoluto por intermédio do conhecimento e das técnicas acadêmicas. É tam-
bém, acrescentei, para quem faz obra de teologia dentro de sua fé, apegar-se
a que Deus seja a garantia suprema da solidez de nosso conhecimento.
É precisamente essa tentativa de utilizar Deus como garantia de nosso
desejo dé ter uma garantia que me parece mais posta em questão pela ex-
pressão "renunciar a si mesmo". Como disse Eberhard Jüngel, um teólogo
de Tübingen, a fé é a reversão da garantia, é o risco de uma vida colocada
sob o signo do Cristo sofredor. Nossa passagem acrescenta a essa "renúncia a
si mesmo" o fato de "tomar a sua cruz". Essa poderosa expressão leva-nos ao
contexto deliberadamente escolhido pelos autores sinópticos para os versí-
238 .... TEXTOS..TRADUZID.OS
culos que estamos considerando, a saber, o anúncio feito por Jesus de sua
Paixão iminente. Que laço existe entre o convite dirigido aos cristãos, de
tomar a sua cruz, e o anúncio por Jesus da necessidade da Paixão? Que
vínculo há para a pessoa crente que adota a divisa de Anselmo, "Fides quae-
rens intellectum" (a fé que busca compreender)? Tomar uma cruz, é renun-
ciar à representação de Deus como o lugar do conhecimento absoluto como
a garantia de todo meu conhecimento. É aceitar não saber senão uma coi-
sa a respeito de Deus: é que Deus estava presente em Jesus crucificado, e
deve ser identificado com Jesus crucificado. Deus tomou a cruz. Tal é a sig-
nificação do hino cristológico aos filípenses: "esvaziou-se a si mesmo, toman-
do a condição de escravo, tornado semelhante aos homens... Humilhou-se a
si mesmo e fez-se obediente até a morte e à morte em uma cruz (FI 2,7-8).
Tomar a cruz de Jesus, para mim, membro da Universidade, dessa co-
munidade de saber, significa não supervalorizar um conhecimento, prisio-
neiro como é de questões de provas e de garantias, diante da necessidade
seguinte - mais elevada do que toda necessidade lógica - "Era necessário
que o Filho do Homem sofresse e fosse crucificado". Como único poder
divino Deus só dá aos cristãos o sinal da fraqueza divina, que é o sinal do
amor de Deus. Deixar-me ajudar pela fraqueza desse amor é, para a questão
de dar sentido à minha fé, aceitar que Deus só pode ser pensado por meio
do símbolo do servo sofredor e pela encarnação desse símbolo no aconteci-
mento eminentemente contingente da cruz de Jesus.
TT9
A memória do sofrimento'
I
TI 10
Mito e história 1
l
.......... __ _ _._ ..TEXIQ.LTRADUZJOQS
A GRÉCIA ANTIGA
Para guiar-nos nesse problema, será útil tomar como referência as rela-
ções entre mito e história na Grécia antiga. Na esfera cultural do Oriente
Próximo e da Mesopotâmia só ela - em companhia do antigo Israel -
produziu uma historiografia digna desse nome. Além disso, a diversidade de
relações que essa produção manteve com o mito (um termo grego, se há
alguml] permite-nos verificar a extrema complexidade do problema e a va-
lidade do modelo nos três níveis que acima propusemos.
Se aceitamos a definição de história como historiografia, então a rela-
ção da história com o mito é determinada em seus traços principais pelo
nascimento de um tipo de conhecimento e por um tipo de discurso (a nar-
rativa em prosa) que marca uma série de rupturas decisivas com o modo
mítico de pensar e com sua modalidade privilegiada de expressão literária, a
poesia versificada. O primeiro testemunho que temos da ruptura da história
com o mito foi fornecido por Heródoto, no meio do século V antes de Cris-
to. Sua obra constitui uma etapa literária decisiva. E seu título - Historie,
252 _ .. .... TUI.OS...T RADUZJDQS
tempos heróicos. É a maior crise para a qual a história agora busca uma
causa. Atribuindo essa causa a um ator responsável, as Histórias dão uma
coloração ética ao conjunto do curso dos acontecimentos, que ao mesmo
tempo manifesta um parentesco impressionante entre história e tragédia.
Foi a hybris de Creso que pôs em perigo a harmonia de uma nação, e mes-
mo a vitória dos gregos aparece como uma recompensa (tisis) que restabele-
ce essa harmonia. Dessa maneira, uma certa justiça divina é cumprida pelo
curso dos acontecimentos. Não se pode aqui deixar de pensar em um frag-
mento de Anaximandro: "pois [as coisas existentes] pagam tributo e recom-
pensa umas às outras por sua injustiça conforme ao julgamento do Tempo".
Esse fragmento desenvolve uma maneira de pensar a meio-caminho entre o
mito e o que os sofistas, Sócrates e Platão chamarão a sophia (sabedoria).
Dessa triplice análise podemos constatar que a passagem do mito à
história não se pode reduzir à pura substituição do primeiro pela segunda.
No caso, com essa evolução linear devemos dar lugar a uma acumulação de
gêneros literários e de modos de pensar ligados entre eles: os mitos teogôni-
cos escritos no estilo da mitologia escolar e literária, os mitos da época he-
róica moldados no modo literário da epopéia e da tragédia e, finalmente, a
história. A história substituiu tão pouco o mito, que Platão faz ainda guerra
aos mitos nos seus diálogos, não sem incluir porém aqui e ali algum palaios
logos recebido da tradição órfica ou da sabedoria atribuída ao Egito. E até
ele mesmo cria certos mitos sob a forma de contos fílosôficos, Resta agora
um terceiro problema. É o problema da representação do tempo que
subtende a história, problema que constitui o pano de fundo do debate en-
tre história e mito. Se a historiografia grega é de uma certa importância
nesse domínio, é menos em relação à pretensa oposição entre tempo cíclico
e tempo linear do que em união com a linha que separa o tempo dos deuses
do tempo dos homens.
Quanto ao debate sobre a oposição presumida nos gregos entre as con-
cepções cíclica e linear do tempo, debate aberto por Thorlief Boman em
1960, com o seu Hebrew Thought Compared with Greek ("O pensamento
hebraico comparado com o grego"), é claro que a historiografia não fornece
nenhuma confirmação da tese que sustenta que o helenismo era maciça-
mente a favor de uma concepção cíclica do tempo, mas que de fato se recu-
sa a se alinhar de um lado ou de outro. Como sublinha Arnaldo Momiglía-
no, na medida em que Heródoto concentra sua atenção em um segmento
limitado da história, ignora inteiramente todo ciclo histórico e ainda mais o
eterno retomo. Evidentemente, ele crê que há forças que agem na história,
forças ordinariamente ligadas à intervenção dos deuses na vida humana e
que se tornam visíveis somente no termo de uma longa cadeia de aconteci-
mentos. Tal era a hybris contra a qual 5010n alertava. Todavia nada indica
que essas intervenções testemunhem um tempo cíclico. Heródoto "atribuía
à guerra persa uma significação única não cíclica, antes de tudo como um
conflito de homens livres e escravos" (MOMIGLIANO, 1977, p. 187).
É neste segundo problema, o da divisão entre o tempo dos deuses e o
tempo dos homens, que a antiga historiografia grega traz a contribuição mais
decisiva. A comparação com Homero, Hesíodo e os autores trágicos é aqui
instrutiva. Em Homero a ínfima substância que reveste o tempo humano é
sempre devida ao elo de família que une a maior parte dos heróis aos deu-
ses. Para evocar esses tempos heróicos, a memória ordinária não basta: não é
pura convenção literária se no livro 11 da Ilíada [linhas 484-487) o poeta
pede às Musas, as filhas de Mnemosine (mnemo.ryné = memória) para guiá-lo
através da confusão do tempo e do espaço humanos: "E agora dizeí-me, Musas
que residis no Olimpo, porque sois na verdade deusas: presentes sobretudo,
sabeis de todas as coisas; nós só ouvimos ruídos, nós mesmos nada sabemos.
Dizei-nos quais foram os guias, os condutores das Danaides?". É porque o
tempo é uma confusão total para o observador humano, que o poeta apela à
Musa para uni-lo à mais alta visão dos deuses. Nos mitos de Hesíodo, as
idades e as raças que nele evoluem estão inseridos entre o tempo dos deuses
e o tempo dos homens, servindo tanto para separá-los como para pô-los em
relação. É uma história de decadência, interrompida somente pela quarta
raça, a dos heróis. O destino da raça da última idade, a idade de ferro, é
sofrer a fadiga e as tribulações e, portanto, viver sofridamente no tempo. O
único remédio para isso é a repetição monótona do trabalho nos campos.
Contudo, o ciclo do tempo já é o do tempo humano.
Nas obras dos autores trágicos o homem é definido como "efêmero".
Não é porque a vida do homem é curta, mas porque sua condição está
ligada aos acidentes do tempo. O "tempo soberano" cantado pelo coro, pode
ser também o "tempo vingador" que restabelecerá a justiça. De outra parte,
a historiografia, devido à tarefa que assume para si mesma, introduz uma
certa consistência no tempo dos homens, ligando ao tempo humano o pri-
meiro inventor (prõtos euretêsi. De um lado, Heródotoreconhece esses
primeiros inventores naqueles que ofenderam primeiro os gregos e por isso
mesmo levaram às guerras persas. De outro lado o historiador, nomeando-se
a si próprio, dando as razões que há para relatar o passado, procurando o
sentido dos acontecimentos passados, estabelece-se a si mesmo como o pri-
256 __ ___ TEXI.Q.LTRAD-UZmOS
meiro inventor. É dessa dupla maneira que dá ao tempo humano sua consis-
tência. Contudo, apesar desse quadro linear, esse tempo humano deixa sem-
pre lugar para essas analogias e correspondências que elevam os persona-
gens acima e além do tempo.
É só com Tucídídes que um tempo lógico' vai guiar a desordem do
tempo histórico, provinda da repetição das mesmas dissensões entre cidades,
o que provoca a "ocorrência e a recorrência sem fim" das desgraças inume-
ráveis e terríveis. O segundo grande historiador grego está então pronto para
definir sua obra como um meio de "penetrar claramente nos acontecimen-
tos do passado e nos que devem ainda vir, em razão do caráter humano que
possuem, oferecendo semelhanças e analogias" (História da guerra do Pelopo-
neso, 1.22). É o sentido da famosa expressão ktéma eis aiei (aquisição para
sempre): o tempo humano só toma consistência perante o tempo dos deu-
ses quando a narrativa é ancorada em uma espécie de lógica da ação.
ISRAEL ANTIGO
ordinária, e dos contos (Mãrchen), que são puras ficções concebidas como
distrações. Depois, entre as próprias Sagen, distinguiu entre as lendas dos
pais (Vatersagen) e as lendas dos heróis (Heldensagen). As lendas dos pais
estão ligadas aos chefes de família que são representativos de seu grupo
social. Estão muitas vezes encadeadas em uma série como as histórias de
José: Gunkel as chama de "novelas" (Novellen). As lendas dos heróis
(Heldensagen), na medida em que concernem a figuras públicas como Moi-
sés, Josué, Saul e Davi, podem conter um elemento autenticamente históri-
co. Segundo Gunkel, é nesse sub-grupo que podemos seguir a evolução des-
de a pura lenda heróica ilustrada por Gedeão, até a história em um sentido
semelhante à de Heródoto, como nas duas narrativas de Davi acima men-
cionadas. Depois Gressmann (1910) continua essa abordagem, chamando a
atenção para as lendas proféticas cuja finalidade é piedosa e edíficante,
Todavia, a contribuição mais importante de Gressmann consistiu em
sua divisão tripartida da história. Há, primeiro, a história que se refere a
acontecimentos recentes (admite-se que as narrativas sobre Davi foram es-
critas pouco tempo depois dos acontecimentos contados). Em seguida, vêm
as lendas sobre acontecimentos distantes, finalmente os mitos relativos aos
tempos primordiais. A vantagem dessa divisão tripartida é pôr entre parên-
teses a questão do grau presumido de veracidade, tal como é medido pela
noção moderna de prova documental. Contudo, em Gunkel e Gressmann o
cuidado pela tipologia é imediatamente eclipsado pelo interesse pela gêne-
se: seu maior interesse consiste em determinar como o gênero cientifico [da
história] nasceu da lenda.
A mesma questão é examinada por Gerhard von Rad (1962), mas na
base de preocupações diferentes. Também indaga sobre as condições preli-
minares da emergência da história, mas, enquanto Gunkel sublinha o papel
decisivo da emergência do estado monárquico, von Rad concentra-se no pe-
dido de explicação presente na função etiológica das lendas, sobre a forma-
ção de uma literatura em prosa e especialmente no papel organizador de-
sempenhado pela visão teológica da história. É sob a influência desse tercei-
ro fator decisivo que a organização narrativa prevalece sobre a apresentação
paratáxica das lendas heróicas. Considerada sob o mesmo ângulo, a relação
de filiação entre a lenda e o mito parece mesmo mais fraca. E é um iluminis-
mo semelhante ao de Jônia que permite a passagem da novela - que por
sua vez já é relativamente complexa - a conjuntos mesmo mais simples
tais como as histórias de Davi ou o documento javista, que são assim colo-
cados no mesmo nível que o núcleo hístoríográfíco, ao menos no que toca à
TL10;MlIOEI:I1STÓRIA__ __ _ __ _ 259
Aliança, tinha tido antes uma existência autônoma. Em torno desse núcleo
enxertou-se a história dos patriarcas, prefaciada pela majestosa história da
criação do mundo e da origem da humanidade. O Javista teria sido em se-
guida o escritor de gênio que, pelo fato do deslocamento dos mitos para
fora de sua matriz original utilizou o motivo teológico contido na tradição
da instalação para dar coerência a essa coleção de narrativas heterogêneas.
Com o Javista não falamos mais de um autor, mas de um narrador-teólogo
que exprime sua visão das relações entre Deus e seu povo, por meio de uma
história contínua, na qual a história do povo escolhido está ligada à história
universal da humanidade e à própria história do mundo.
Partindo do pólo historiográfico, os sucessores de von Rad indagaram
como a narrativa histórica da instalação se liga às narrativas da sucessão e às
do acesso de Davi ao poder. Que trocas teria havido entre a visão sagrada e
política da soberania de Deus sobre a história e a idéia de uma condução
divina operando de um lado ao outro da migração e da instalação? Teria
servido a primeira de modelo estrutural da segunda, e a segunda de modelo
teológico da primeira? É nesse contexto que a proposição de Robert Alter
toma toda a sua importância: indaga se o paradoxo da inevitabilidade do
plano divino e da recalcitrância humana não se manifestou mesmo nas me-
nores unidades narrativas, quando examinadas à luz da arte da narrativa
bíblica. As narrativas mais significativas são aquelas em que a intenção divi-
na é realizada não por uma intervenção divina, mas pelo jogo mesmo das
paixões humanas, de alguma forma, por uma nemesis inerente ao compor-
tamento humano.
Voltamos do pólo historio gráfico ao pólo mítico indagando sobre a teo-
logia da história que se manifesta nas grandes unidades narrativas ou mesmo
nas menores. De fato, devíamos falar de teologia da história, porque não é
certo que o que foi chamado história da salvação (Heilsgeschichte) recobre
todas as intenções dos escritores bíblicos. Devemos estar atentos para não
projetar a teologia bíblica de hoje sobre as Escrituras hebraicas. A interseção
de um bom número de temas teológicos diferentes deve ser salvaguardada:
a aliança, a promessa e seu cumprimento, a instrução ética pela narrativa e
assim por diante. Ao lado dessa pluralidade de teologias da história, põe-se a
questão da função de um plano teológico tomado como um todo. À guisa
de contrapartida à historicização dos mitos das origens, não poderia ele mes-
mo funcionar como um mito, no sentido do transcendente fundando a his-
tória presente sobre a base de uma história mais fundamental? Mais precisa-
mente, parece que a teologia das tradições foi assemelhada a um mito etio-
TLIO:.. MITO.LHJSTÓR IA _....._...__.... _..__...__... _.263
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBRIGHT, William F. Yahweh and the Gods of Canaan:A Historical Analysis of Two
Contrasting Faiths. Jordan Lectures in Comparative Religíon, n. 7, London, 1968.
BOMAN, Thorleif Hebrew Thought Compared with Greek, Philadelphia, 1960.
CASSUTO, Umberto. The Beginning of Historiography among the Israelites". Em:
ID.: Biblical and Oriental Studies, Jerusalém, 1973, 7-16, t. 1.
FREI, Hans W. The Eclipse of Biblical Narrative. A Study in Eighteenth and Nineteenth
Century Hermeneutics. New Haven, 1974.
FRITZ, Kurt von. "Herodotus and the Growth of Greek Hístoriography". Transac-
tions of the American Philological Association 67 (1936) 315-340.
266 TUT05TRADUZIOOS
Da proclamação à narrativa 1
1. A primeira versão deste texto foi publicada com o titulo de "Frorn proclamation to
narrative" no The Journalof Religíon 64 (1984) 501-502.
2. N. PERRIN, Rediscovering theTeaching ofJesus, New Testament Library, Londres, SeM
Press; New York, Harper and Row, 1967, 11-12.
L
268 .. . __ T.E.XTOS.TRAD.UZJOOS
ções tais como 1Cor 15,3-8: "Cristo morreu ... foi sepultado ... foi ressusci-
tado ... e apareceu a Cefas e a outros". Podemos falar do núcleo de uma
narrativa no sentido em que a pressuposição que está na base de toda a
pregação cristã é a continuidade e a identidade entre o Jesus terrestre e o
Cristo que fala pelas linguas dos profetas, na comunidade de fé. Ora, o acon-
tecimento mínimo contido no querigma primitivo foi, durante muito tem-
po, bastante para ligar o acontecimento escatológico com a história factual,
portanto com a contingência do tempo.
Até esse ponto Bultmann e Jeremias estão de acordo. Bultmann sem-
pre afirmou que o Dass da morte na cruz era o mínimo requerido pelo Was
da fé pós-pascal. Vemos por que: o querigma deve incluir o passado de Jesus
no presente de Cristo, porque, de outro modo, corre-se o risco de interpre-
tar esse último em um sentido gnóstico ou no de um mito grego.
A questão, então, é saber se o desenvolvimento narrativo desse núcleo
na forma de um novo modo literário, o evangelho, provém da mesma neces-
sidade ou se exprime a contingência de uma situação histórica e mesmo um
desvio perigoso que requeria, precisamente, a volta ao querigma que possuísse
somente o componente narrativo mais restrito. É na resposta a essa questão
que os caminhos divergem.
Devemos primeiro ouvir o que Bultmann tem a dizer: referindo-nos à
tradição sobre Jesus não assumimos a tarefa impossível de reconstruir uma
"vida de Jesus"? A história da redação e a crítica das formas não mostraram
que essa via tinha fracassado e tinha de fracassar? A teologia liberal, subesti-
mando os obstáculos estritamente exegéticos a esse empreendimento, bus-
cou tratar as interpretações cristológicas como uma superestrutura acres-
centada que podia ser esvaziada de modo que se pudesse escrever uma vida
de Jesus livre de todo preconceito dogmático ou eclesiológico. Contudo, como
Albert Schweitzer demonstrou em sua história dessas vidas de Jesus, cada
uma, em última análise, refletia a própria visão do historiador sobre o mun-
do e sobre sua época, e revelava-se assim, paradoxalmente, tão fundada teo-
logicamente quanto as narrativas que buscava precisamente substituir.
Devemos ter presente ao espírito esse fracasso das tentativas liberais
em vista de escrever uma vida de Jesus, se queremos entender as reações da
escola bultmaniana e seus excessos na direção oposta. Era o programa mes-
mo da Leben-Jesu Forschung que era derrubado pela crítica das formas. A
narrativização, paralelamente, aparecia como um fenômeno secundário, pro-
vindo da influência dos mitos e das lendas sobre uma base essencialmente
querigmática não-narrativa.
TI...1.1: ..DA.. PROCLAMAÇÃO ..À_.NARRATJVA....
4. N. PERRIN, Jesus and the Language of the Kingdom: Symbol and Metaphor in New
Testament lnierpretation, Filadélfia, Fortress Press, 1976.
5. Ver A. N. WHITEHEAD, Process and realíty. An essay in cosmology, edição de D. R.
GRIFFER e D. W SHERBURNE, New York, Free Press, 1978, especialmente as páginas 18,
187 e 287s.Ver também D. W SHERBURNE, A key toWhítehead's process and realíty, New
York, MacMillan, 1966,6-9,205-207.
TI .Jl=-D~PROLlAMAÇÃO
.. À.NARRATBIA ......._.. . _ 271
6. Não faltam argumentos exegéticos para apoiar essa posição: por exemplo, Jesus in-
terpretou os exorcismos como antecipação do Reino, Como estabelece Perrin, "a palavra
interpreta os exorcismos" (Rediscovering, 65). São sem significação, exceto pela interpreta-
ção que os liga ao futuro Reino de Deus. Eis um exemplo tirado das parábolas escatológicas
em Me 2,18s. O núcleo deve ter sido, segundo JEREMIAS, "Os convidados das bodas podem
jejuar durante as bodas?" (trad. S. H. Hooker, Parables of Jesus, ed. rev. New York, Charles
Scríbner's Sons, 1963,52, n. 4 [citado em PERRIN, Rediscovering, 79, n. 3]). Ao contrário,
l
......................... ~_TEXIQS.. TRADUZIDOS
isso sugere que havia algo de festivo no anúncio do Reino, na sua dimensão presente. A
mesma tonalidade alegre atravessa as parábolas do tesouro escondido e da pérola (Mt
13,44-45). Por que essa alegria? Porque o perdão dos pecados é anunciado não só com
certeza e generosidade, mas também com extravagância. Como diz PERRIN: "E, sem som-
bra de dúvida, essa extravagância é querida" (Rediscovering, 96). Eu também desenvolvi o
tema da extravagância no meu estudo sobre as parábolas como ficções narrativas. Aqui eu
vou diretamente ao que a exegese considera como a ponta da parábola, sem levar em
conta sua forma literária. Quer se trate da parábola da ovelha extraviada, ou da dracma
perdida, ou do retomo do filho pródigo, algo acontece que ultrapassa toda expectativa.
7. H. CONZELMANN, "Present and Future in the Synoptíc'Iraditíon", loumal forTheology
and Church 5 (1968) 26-44; retomado por R. FuNK [ed.], God and Christ, Existence and
Providence, New York, Harper and Row; Tübíngen, 1. C. B. Mohr (Paul Síebeck], 1968,26-
44 e publicado originalmente sob o titulo "Gegenwart und Zukunft in der Synoptischen
Tradition", Zeitschrift für Theologie und Kirche 54 (1957) 277-296.
8. Mesmo nas parábolas de julgamento, como a do joio no meio do trigo (Mt 13,24-
30), a separação anunciada entre grão bom e o grão mau referem-se a algum futuro não
datado, que exclui toda especulação sobre -,
a duração do intervalo. Mesmo quando essa
duração parece estar em discussão, como na parábola dos talentos, não é tanto seu tama-
nho que está em questão, quanto a sua utilização como um periodo extenso de respon-
sabilidade. Como para as comparações que parecem encorajar a especulação sobre os
sinais (o homem forte em Mc 3,27, a figueira em Mc 13,28 parecem antes pôr o acento
na presença entre nós do Reino futuro. O mesmo laço entre o presente e a existência
futura pode ser percebido nas parábolas de crescimento, sem que a questão da duração do
tempo seja apropriada. Em poucas palavras, não há outros sinais além dos que são dados
aqui e agora. Nenhuma "imagem" do futuro doravante tem sentido. Uma vez mais, é
porque a existência de Jesus e sua auto-compreensão são uma parte da substância do que
é significado nas parábolas: "A interpretação daquele que vem e da pessoa de Jesus for-
mam uma unidade (CONZELMANN, 37). Como nota Conzelmann, Rudolf Bultmann ti-
nha razão em dizer que "Jesus não dá importância ao tempo", se esse desinteressamento
recebe uma significação positiva, a saber, que os sinais que anunciam o Reino estão pre-
sentes na pessoa de Jesus.
TLl1:.._DA.._PRO_CLAMAÇÃOÀ.NARRAUVA-._ ...__ .... . . _... .._. .. ... ..... . . ......
CONTROVÉRSIA
12. Nesse sentido Perrin fala de uma "ambigüidade de referência" (Rediscovering, 202).
Comparar com W. G. KÜMMEL, "Die Naherwartung in der Verkündigung Jesus", em Zeit
und Geschichte, Dankesgabe an RudolfBultmann zum 80. Geburtstag, ed. E. DINKLER, Tü-
bingen.J, C. B.Mohr (Paul Siebeck), 1964, 31-46 (também em Heilsgeschehen und Geschichte:
Gesammehe Auisãtze, 1933-1964, éd. par E. GRAsSER, Otto et Adolf FRITz, Marburg, Elwert,
1965,457-470; "Eschatologícal Expectation in the Proc1amation of Jesus", em The Future
of Our Religions Past, ed. James M. ROBINSON, New York, Harper and Row, 1971, 29-48;
et Promise and Fulfillment, Studies in Biblical Theology 23, London, SCM Press, 1957 (pu-
blicado originalmente como: Verheissungund ErfüUung [Zürich, Zwingli Verlag, 1953]). Ver
também E. KASEMANN, "The problem of the Historical Jesus". Essays on New Testament
Themes, Studiesof Biblical Theology 41 (1964) reimpresso em Philadelphia Fortress Press,
1982, 15-4 7 (discutido parcialmente em pormenores abaixo). Kâsemann é de opinião que
Jesus percebeu o início da vinda do Reino nos confrontos que situam a humanidade diante
da situação atual e diante de sua responsabilidade em tomar uma decisão Nesse sentido, o
Reino não é tanto próximo quanto a ponto de se aproximar.
13. Uma vez mais, as parábolas são consideradas aqui não por seus conteúdos indivi-
duais, enquanto ficções narrativas autônomas, mas como discurso dirigido a alguém, como
proc1amante antes que proclamado; ou em outros termos, como atos de palavra. Amos
Wilder, preocupado em ficar tão perto quanto possível da "nova enunciação" da "irrupção
da palavra" começa sua pesquisa sobre a retórica cristã primitiva pelo diálogo antes de
considerar a narrativa ou a parábola. Ver A. WILDER, The Language of the Gospel: Early
Christian rhetoric, New York, Harper and Row, 1964, capo 1: "The new utterance" (O novo
enunciado): "A palavra oral é onde tudo começou" (p. 48). Jesus nada escreveu, ele falou.
E o diálogo é a primeira matéria de suas palavras. Tem sempre um interlocutor - Pedro,
os discípulos, a multidão, Jerusalém - e a tomada da palavra chama sempre uma resposta.
14. Comparar Wilder: O evangelho é sempre mais do que uma instrução, é um desafio
rigorosamente pessoal (p. 61). Também Norrnan Perrin coloca todo um segmento do ensi-
rr.u t: DA PROClAMAÇÃO À. NARRATIVA 275
namento de Jesus sob o titulo: "Recognition and Response" (pp. 109-153). Uma pessoa
reconhece o sentido de sua existência e responde a esse reconhecimento. Portanto, antes
de engendrar uma ética no sentido de um modelo de conduta, as parábolas constituem
"um urgente apelo a reconhecer o desafio da proclamação e a responder-lhe" (p. 109).
15. Assim, na parábola dos trabalhadores enviados à vinha (Mt 20,1-16), o anúncio da
louca generosidade do Senhor, ocultado sob o paradoxo de um generoso capricho, nos
interroga: "Sois ciumentos porque sou bom?" A mesma justificação e intenção provocado-
ra pode ser percebida na parábola da ovelha perdida (Lc 15,4-7; Mt 18,12-14): tal é a
alegria de Deus quando somente um "desses pequenos" é salvo. "E vós, que dizeis?" Na
parábola do grande banquete (Mt 22,1-10; Lc 14,16-24) a "ponta" diz respeito à relação
entre convidados e o anfitrião: sugere que ninguém é convidado de direito. Cada pessoa
deve responder a um convite que é lançado como um desafio. As maldições são lançadas
sobre os que foram convidados primeiro e se recusaram a vir. De outro lado o intendente
desonesto oferece o exemplo chocante de um malandro que, confrontado com uma crise,
sabe o que responder (Lc 16,1-8). A ironia é forte e, de maneira totalmente evidente,
concebida de maneira provocadora. A parábola dos vinhateiros contratados na última hora
não é menos irritante. Deus admite alguns na base de seus méritos e outros na base do
perdão (Mt 20,11-16). Aqui, de novo, Jesus responde a um ataque lançado contra a sua
conduta por uma parábola que diz o que Deus faz. Nas parábolas, cada elemento é um
desafio: a alegria da entrada dos pagãos no Reino na hora escatológica (a parábola do
grande banquete); o horror constituído pela recusa daqueles a que o Reino chegará como
uma catástrofe, imprevista como um ladrão (Mt 24,42-44), devastadora como a tempes-
tade (Mt 7,26-27); a paciência na espera do momento da triagem (a parábola da rede do
pescador) (Mt 13,47-50); a confiança em que o pobre ouvirá a boa nova (Lc 14,7-21;
16,19-31); a espera de que a vinha seja dada a outros (Mc 12,9), e assim por diante.
16.1. L. AUSTIN, How to Do Things wíthWards, Londres, Oxford University Press, 1962.
276 ...... IEXTOS.IRAD.UZI.D.05
Assim a proclamação produz o confronto que, por sua vez, leva à cruz.
Não temos aqui senão uma intriga já articulada, pelo menos uma cadeia de
TLll;.DkPROCLAMAÇÃOÀ..NARRATIVA... 277
há algo que permite o ato crítico: o ato crítico não é proibido pela natureza
do texto, porque não é um texto sagrado no sentido em que o Alcorão é
sagrado (pois um muçulmano diria que ler o Alcorão em inglês não é ler o
Alcorão: tem de ser lido em árabe). Mas para o cristianismo, a tradução é
totalmente possível, porque a tradução dos Setenta é uma espécie de dessa-
cralização da língua original, do momento em que se admitiu que a Bíblia
podia ser posta em grego. E uma certa atividade crítica estava implicada
nesse ato de tradução. Para seu tempo, Jerônimo era um espírito crítico.
Dessa maneira, a natureza do texto, ao menos no cristianismo, não é
completamente refratária à abordagem crítica. Há também o fato de que
temos quatro evangelhos: poderíamos imaginar uma Igreja que dissesse: "Há
um só evangelho". Mas no cristianismo todas as discordâncias eram preser-
vadas e uma certa eqüivocidade do texto era admitida desde o começo. Nin-
guém disse quantos dias durou a Paixão, ninguém disse quantos dias se pas-
saram entre a crucifixão e a ressurreição, e assim por diante. Talvez a noção
opaca do sagrado seja arruinada por essa atividade crítica; é realmente o
conceito de "sagrado" que muda. O texto torna-se fundamental, mas não é
mais sagrado no sentido de não se ter o direito de tocar ou de modificar.
Mas o que faz que a Bíblia seja sagrada nesse sentido? E para quem ela é
sagrada? Porque nem todos os textos religiosos são sagrados no mesmo sen-
tido. Temos de modular a noção de sagrado, não só em função das diferentes
religiões, mas ainda no curso da história dessas religiões.
Talvez a noção de textos que têm autoridade seja diferente da dos tex-
tos sagrados, porque "que tem autoridade" significa que há uma diferencia-
ção entre o texto que constitui o ato fundador da comunidade e os que são
excluídos dessa função fundadora. Mesmo se têm uma espécie de parentes-
co, podem ser excluídos dessa maneira: o evangelho de Tomé é muito próxi-
mo, mas não pertence à história da maneira como a comunidade se inter-
pretou a si mesma nos termos desses textos. É o que eu chamaria de texto
que tem autoridade, mas não necessariamente de texto sagrado, porque há
um ato hermenêutico em se reconhecer como fundado por um texto e em
ler esse texto como fundador. Há uma reciprocidade entre a leitura e o auto-
reconhecimento existente da identidade da comunidade. Há um tipo de re-
ciprocidade entre a comunidade e o texto. Aqui vem ao espírito a distinção
que faz Agostinho no De christiana doctrina entre signum e res: estamos cons-
cientes de que o signum não é a res, e assim uma história de abordagens
críticas do signum tomou-se possível. Questiono se isso implica de fato uma
certa distância entre o texto e sua realidade, da qual ele trata.
IL.12:_QTUTQ.-".sAG.RADOII...LA.. COMUNlDADL.____.
I
~
à tradição. Assim, o texto é engessado pela tradição, e é engessado contra a
tradição depois de ter sido engessado contra as heresias. Isso pode ser consi-
derado o terceiro acontecimento de importância. Em seguida, nós descons-
truimos essas adulterações progressivas, essas sedimentações, para voltar à
fluidez hermenêutica do período pré-canônico. O problema é saber se há
uma comunidade para assumir isso, ou se vai ficar unicamente uma espécie
de atividade acadêmica. É, pois, uma situação critica: isso matará a comuni-
dade ou a renovará? Ou, então, dir-se-á: "Vós não tendes nenhum direito de
tocar em nosso livro"?
A noção de sagrado toma-se totalmente contestável. Uma des-homo-
geneização tem dois efeitos, pois um texto sagrado tem dois contrários: ou-
tros textos sagrados e textos não sagrados. E as duas fronteiras são mais frouxas
hoje em dia; por exemplo, sabemos melhor que certos textos não se encon-
travam sempre no cânon, que outros podiam nele estar e não estiveram por
algum acidente histórico, e assim temos uma continuidade graduada em
muitos graus entre o profano e o sagrado, e não somente uma oposição ma-
ciça. E, de outro lado, nossa tradição é mais ambígua, mais complicada e
constatamos que as outras tradições são igualmente mais complexas e assim
existem mais imbricações mútuas. Trata-se de uma situação muito comple-
xa, em que não é fácil oríentar-se como indivíduo e como comunidade.
Há um ato que continua a preservar essa dupla linha de demarcação,
pelo menos no cristianismo: é o ato de pregação. Prega-se sobre textos canô-
282 TEXTOS TRADUZIDOS
l
Edward Schillebeeckx, Baam, H. Nielissen, 1983,80-92.
286 TEXT05TRADUZI DOS
2. Ver H. FREI, The Eclipse of Biblical Narrative: A Study in Eighteenth and Nineteenth
Century Hermeneutics, New Haven, Yale University Press, 1974.
3. Podemos questionar se a origem da reivindicação de universalidade da teologia nar-
rativa deve ser atribuída à composição javista ou à escatologia dos profetas ou ao movi-
mento apocalíptico ou ao primeiro esboço de uma história da salvação cristã em Lucas.
4. U. SIMON, Story and Faith in the Biblical Narrative, Londres, SPCK, 1975,81 s.
TI n:RUMOA UMA TEOLOGIA NARRATIVA 287
I
I,
~-
são apresentadas pelos diferentes gêneros literários contidos nas Escrituras
canônicas. Se esse diagnóstico é verdadeiro, uma das tarefas da teologia nar-
rativa seria libertar as narrativas bíblicas das coerções do esquema cristão, e
finalmente a rede multiforme das narrativas bíblicas do esquema cronológi-
co unívoco da história da salvação. Então a memória e a esperança seriam
libertadas da narração visível que esconde o que podemos chamar, com Johann
Baptist Metz, as "memórias perigosas" e as expectativas contestatárias que
juntas constituem a dialética não resolvida da memória e da esperanças.
Essa tarefa é tanto mais imperiosa agora que a época posterior às Lu-
zes mostrou inquietantes sintomas que convergem para o desaparecimento
da capacidade mesma de contar histórias e de ouvir histórias. A verdadeira
5.1. B. METI, "A Short Apology of Narrative", em I B. METZ, I-P. JOSSUA, Concilium
I
9: The Crisis 01Religious Language, New York, Herder and Herder, 1973,84-96.
288 . . TEXI05...TRADUZlD'OS
6. "É como se alguma coisa que nos parecia inalienável, a mais segura entre nossas
posses, nos fosse retirada: a capacidade de trocar experiências" ('N. BENJAMIN, "The
Storyteller", em H. ARENDT (ed.), Illuminations, New York, Schocken Books, 1969,83.
TL13: ..RUMO.A.UMATEOLOG1A. NARRATIVA
8. R. M. BROWN, "My Story and 'The Story'", Theology Today 32 (1975) 171.
9. D. RrrsCHL e H. o. JONES, "Story als Rohmaterial derTheologie", Theologísche Existenz
Heute 192, Munique, Christian Kaiser, 1976. Ver também H. o. JONES, "The concept of
Story and Theological Discours, Scottisch Joumal ofTheology 29 (1976) 415-433.
TT.13:.. RUMO.. A.UMA.TEOlOGJA...NARRATJVA.... ................................. 293
10. Essa nota exegética apóia-se no tratamento que Frank Kermode dá ao segredo no
evangelho de Marcos, e em sua afirmação geral de que as afirmações mais intrigantes são
as que dissimulam tanto quanto revelam. Há pois uma oculta afinidade entre a idéia de
que as metanarrações não podem ser ditas e a idéia de que as narrações engendram o
segredo. Ver F. KERMODE, The Genesis of Secrecy: On the lnterpretation of Narrative,
Cambrídge, Mass., Harvard University Press, 1979.
11. S. CRlTES, "The Narrative Quality ofExperience", Ioumal of AmericanAcademy of
Religion 39 (1971) 291-311.
294 . .....IEXTOS.. lRADUZlD.O.S
12. lbid., 298. Esse estado de consciência entre as narrativas sagradas e as profanas
explica por que Crites pode atribuir o papel de mediação à forma de consciência mesma
que faz a experiência e à narrativa inicial que a modela.
13. WEINRICH, "Narrative Theology", 50.
TL.13~.RUMo..A.UMATEO.LOGJA.NARRATJVA ... 295
vas fundamentais da Bíblia que elas são quase históricas, exceto as ficções
intencionais como as parábolas e talvez algumas narrativas do Antigo Tes-
tamento, Jonas e outros. O problema embaraçoso é que esse traço de quase-
historicidade, para aqueles que vivem na narrativa, para usar a expressão
acima empregada, ignora nossa distinção entre ficção e história. Não é fic-
ção porque não tem esse clima de invenção que Aristóteles atribui à escrita
poética. Não é história, pois o objetivo da história escrita em função da
evidência documental não é tampouco uma parte da intenção do escritor.
Assim, pois, o problema é somente nosso, precisamente como resultado de
uma crise produzida pelo caráter quase histórico das narrativas bíblicas.
Por essa razão encontramo-nos diante da quadratura do círculo: não
podemos nem contentar-nos com um conceito de narrativa que esvaziasse a
dialética da narrativa e da história, nem podemos utilizar um conceito de
história que não levasse em conta essa curva variável das relações entre nar-
rativa e história.
Um terceiro elemento se acrescenta à estranheza das narrações bíblicas
em suas relações com as histórias profanas ou mundanas. Trata-se, penso eu,
de um traço distintivo com o qual toda teologia narrativa deve confrontar-
se. Nenhuma narração bíblica funciona simplesmente como narração. Rece-
be não só sua significação, mas mesmo sua significação religiosa original, de
sua composição com outros modos de discurso. Sublinhei em outro lugar a
conjunção infrangível entre as narrações e as leis no seio da Torah l 4 • As leis
transformam as narrações em instrução, e as narrações transformam a lei em
dom. Da mesma maneira, somos também levados a reconhecer que a tradi-
ção hebraica foi impedida de tomar-se uma ideologia místifícadora devido à
sua relação dialética com a profecia. A profecia, de outra parte, revela no
seio das próprias narrações o potencial das promessas não cumpridas que
reorienta a narrativa do passado para o futuro: por outro lado, as narrações
fornecem à antecipação escatológica da era "nova" as imagens e modelos.
Esse uso tipológico das narrativas do passado com o fim de projetar o futu-
ro, dá às próprias narrações uma significação que é totalmente estranha à
arte de contar ordinária. Além do que, devemos levar em conta o impacto
profundo da literatura de sabedoria sobre as próprias narrações, impacto que
imprime sua marca de permanência dos escritos sapienciais. Essa transfígu-
15. RITSCHL, em "Story als Rohmateríal" distingue entre berichtende Sprache (relatório)
e anredende Sprache (interpelação) e sublinha a correspondência entre essa polaridade
geral e a da narrativa e do louvor (ao qual acrescenta a doxologia). Mas a narrativa em si,
na medida em que não é simplesmente do tipo informativo-descritivq mas cria, de fato,
história e realidade, passa a ser um discurso dirigido. Em conseqüência, na medida em que
a narrativa for a mim dirigida, a identidade narrativa não é somente uma identidade "ex-
pressada" mas também "dirigida".
TL13:RUMO A UMA TEOLOGIA NARRATIVA 297
j
TL 13: RUMO A UMA. TEOLOGIA. NARRATIVA 299
fessionais, por sua vez, são regidas por proposições reguladoras que presi-
dem a seleção e a coleção dos documentos narrativos, prescritivos, proféti-
cos, sapienciais e hinicos. Não é improvável que a sabedoria seja o fator mais
decisivo na elaboração de tais proposições reguladoras. Isso significaria, con-
siderando a idade antiga da sabedoria, que a narração bíblica nunca esteve
privada de alguns princípios reguladores da interpretação da obra na narra-
ção - em suma, que o narrativo nunca existiu sem um pensamento teológi-
co embrionário, exatamente como esse jamais existiu sem o seu pólo corres-
pondente, o louvor. O louvor, a doxologia e as proposições reguladoras cons-
tituem uma série progressiva donde emerge a teologia. Por conseguinte, não
podemos acentuar nem a descontinuidade entre o puro "re-contar" e o pen-
samento teológico, nem a continuidade assegurada por fontes de mediação
desde o prescritivo até ao hínico, e pelos sumários confessionais e as doxolo-
gias enxertadas principalmente sobre a expressão sapiencial e hínica da fé.
Mas a questão da origem dos conceitos reguladores permanece aberta".
20. Compreendo, mesmo se não assumo sem reservas, a conclusão negativa de Ritschl:
''A expressão de teologia narrativa, estritamente falando, é designação falsa por trás da qual
se oculta uma disposição legítima ... As narrativas, em sua forma lingüistica típica da
narração, não são as formas de expressão, mas o material bruto da teologia". ("Story aIs
Rohmaterial", 41).
Referências bibliográficas
rél'
,:,
* The logic of Jesus, the logic of God, Criterion 18 (1979) 4-6 (= Anglican Theo-
logical Review 42 [1980] 37-41).
* La logique de Jésus, Romains 5 (Écriture et prédication 33). Études théologiques
et religieuses 55 (1980) 420-425.
* Manifestatíon et proclamation. Em: CASTELLI, E. (ed.). Le Sacré. Études et
recherches. Paris, 1974, 57-76.
• The memory of suffering. Criterion 28 (1989) 2-4 (Reeditado em: WALLACE, M.
I. (ed.), Figuring the sacred. Religion, narrative and imagination. Minneapolis, 1995,
289-292).
La métaphore et le probleme central de l'herméneutique. Revue philosophique de
Louvain 70 (1972) 93-112.
Mimesis et représentation. Em: Aetes du XVII' congrês des sociétés de philosophie
de Zangue française. Strasbourg, 1982, 51-63.
I o
I .
ARTIGOS, CONTRIBUiÇÕES
19 (1981) 23-3l.
• FORTIN-MELKEVIK, A. Deux paradigmes pour penser le rapport de la théologie
aux sciences humaines: herméneutique et narratologie. Lavai théologique et philo-
sophique 49 (1993) 223-231.
• oLes méthodes en théologie. La pensée interdisciplinaire en théologie. Con-
cilium 256 (1994) 131-142.
P.RlN.CtPAJLHCRtIOS_CONSAGRADOS..À.. .HllMENt UIJCA..SISltCADLPAULRlCOEUR. 317
55 (1994) 458-480.
* WALLACE M. I. The world of the text: Theological hermeneutics and biblical
interpretation in the thought of Karl Barth and Paul Ricoeur. Union Seminary
Quarterly Review 41 (1986) 1-15.
* _ _ Theology without Revelation? Theology Today 45 (1988) 208-213.
o
61-76.
* BEAUCHAMP, P. Création et séparation. Étude exégétique du premier chapitre de
la Genese (Bibliotheque de sciences religieuses). París-Neuchâtel-Bruges, 1969.
* _ _ Narrativité biblíque du récit de la Passion. Recherches de science religieuse
o
73 (1985) 39-60.
* _ _ Parler d'Éentures saintes. Paris, 1987.
o
76-80.
* DODD, C. H. The parables of the Kingdom. New York, 1961.
• DORÉ, 1. Introduction à l'étude de la théologie (Manuel de théologie). Paris, 1991,
t. I.
* EBELlNG, G. Einführungin theologische Sprachlehre. Tübíngen, 1971.
* ELlADE, M. Aspects du mythe. Paris, 1963.
FREGE, G. Über Sinn und Bedeutung. Zeitschrift für Philosophie und philosophische
Kritik 100 (1892) (Sens et dénotation. Em: Écrits logiques et philosophiques. Paris,
1971).
FREUD, S. Die Traumdeutung, Gesammelte Werke, t. I, II-III. Frankfurt, 1961 (L'inter-
prétation des rêves, Paris, 1967).
FRYE, N. Anatomy of criticism. Princeton, 1957 (Anatomie de la critique. Paris, 1970).
• _ _o La Bible et la littérature (Poétique). Paris, t. I, Le grand code, 1984; t. Il,
La parole souueraine, 1994.
* FuCHS, E. Hermeneutik. Bad Cannstatt, 1958.
• FuNK, R. W. The parable as metaphor. Em: Language, hermeneutic and word of
Gad. LondonINew York, 1966, 133-162.
GADAMER, H. G. Vérité et méthode [trad. parcial]. Les grandes lignes d'une hermé-
neutique. Paris, 197~ (Wahrheit und Methode. Tübingen, 1960, 1973).
* GERHARDSSON, B. The parable of the sower and its interpretation. New Testament
Studies 14 (1967) 165-193.
GOODMAN, N. Languages of Art. An approach to a theory of symbols. Indianapolis,
1968.
GREIMAS, A. 1. Sémantique structurelle. Recherche de méthode. Paris, 1966.
OBRAS A QUE fAZEM RHERÊNCIAOSARTlGOSOL NOSSAANTQlOGIA 323
116-141.
• llarticulation du sens [to I, Discours scientifique et parole de la foi; t. Il, Les
o
SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt. Zum Sein von Mensch und Ding. Wiesbaden,
21976.
SCHLEIERMACHER, F. Hermeneutik [reed. H. KIMMERLE]. Abhand der
Heidelberger Akademie der Wissenschaft. Heidelberg, 1959 (Herméneutique. Ge-
nebra, 1986).
* SCHMID, H. H. Das alttestamentliche Verstândnis von Geschichte in seinem Ver-
hãltnis zum gemeinorientalischen Denken., Wort und Dienst 13 (1975) 9-21.
SEARLE, 1. R. Speech aets. Cambrídge, 1969 (Les Aetes de langage. Paris, 1972).
* SIMON, U. Story and faith in the biblical narrative. London, 1975.
STRAWSON, P. F. lntention and convention in speech acts. The Philosophical Review
63 (1964).
TESNIERE, L. Éléments de syntaxe structurale. Paris, 1959.
* TILLICH, P. Biblical religion and the search for ultimate reality, New York, 1985.
ULLMANN, S. The principles of semantics. Glasgow-Oxford, 1951, 1959.
* VAN SETERS, 1. In search of history. Historiography in the Ancient World and the
origins of bíblícal history. New Haven, 1983.
* VIA, D. o. The parables. Their literary and existential dimensiono Phíladelphie, 1967.
VIDAL-NAQUET, P. Temps des dieux et temps des hommes. Revue de l'histoire
des religions 157 (1960) 55-80.
WARREN, A., WELLEK, R. Theory of literature. New York, 31956.
WEINRICH, H. Tempus. Besprochene und erzâhlte Zeit. Stuttgart, 1964 (Le temps.
Le récit et le commentaire. Paris, 1973).
* WESTERMANN, C. Zum Geschichtsverstãndnis des Alten Testaments. Em: WOLFF,
H. W (ed.). Probleme biblischer Theologie. Muních, 1971,611-619.
* _ _ Théologie de l'Ancien Testament, Geneve, 1987.
o
WHITEHEAD, A. N. Process and reality. New York, 1929 (Proces et réalité, Paris,
1995).
* WILDER, A. N. Early christian rhetoric. The language of the Gospe!. New York,
1964.