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PAUl RICOfUR

Apresentação
François-Xavier Arnherdt

Tradução
Paulo Meneses

. 0\BUOTECAI
DA
FACULDADE TEOLÓGICA
BATISTA DO PARANÁ
~
Edições Loyola
Sumário

Nota prévia 9

Introdução

Capítulo Primeiro - Paul Ricoeur e a Bíblia 13


Entre o filosófico e o religioso, nem confusão nem separação 15
A aposta do sentido 19
A criatividade da linguagem poética e bíblica 20
Do conflito à articulação dos métodos de interpretação 22
Capítulo Segundo - Polifonia do texto bíblico e trabalho de interpretação 25
A relação entre hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica:
um fio condutor através da obra de Ricoeur 26
Valorização do fenômeno do distanciamento: o texto como
entidade dinâmica e a interpretação como arco hermenêutico 29
Inovação semântica, mimese e refiguração
na metáfora e na narrativa 32
A Bíblia como texto-obra: polifonia da nominação de Deus 35
Seguindo o arco hermenêutica: finalidades e métodos da exegese bíblica 48
A interpretação: um prolongamento do trabalho do texto
em imaginação e simpatia 49
Capítulo Terceiro - Conclusão: entre a hermenêutica filosófica e a
hermenêutica bíblica, uma relação dialética complexa 61
Uma dupla referência: filosófica (crítica) e religiosa (convicção) 61
A constituição hermenêutica da fé e da filosofia 62
Leitura crítica e leitura confessante 62
Autonomia do discurso filosófico 63
A fé bíblica, fonte e motivação da filosofia de Ricoeur '" 64
As linguagens bíblica e teológica como temas da hermenêutica filosófica 66
Os problemas teológicos: ao mesmo tempo fontes
e temas da reflexão filosófica 67
Aproximações filosóficas de noções teológicas: a filosofia
leva à fonte da teologia 67
Uma relação de inclusão mútua 69
Uma exegese instruida 71
Capítulo Quarto - Perfil dos artigos traduzidos 73
Primeira seção: filosofia e linguagem religiosa 73
Segunda seção: parábolas e pregações 74
Terceira seção: tempo e narrativa em hermenêutica bíblica e teológica 74

Textos traduzidos (TT)

Apresentação '" 79

Primeira seção
Filosofia e linguagem religiosa
TI' 1 - Resposta a Lewis S. Mudge 83
TI' 2 - Resposta a Don lhde 89
TI' 3 - Resposta a David Stewart 93
TI' 4 - A esperança e a estrutura dos sistemas filosóficos 101
A tarefa de uma teologia bíblica da esperança 102
A irracionalidade e a racionalidade da esperança 104
"Spero ut intelligarn" 106
TI' 5 - O texto como identidade dinâmica 117

Segunda seção
Parábolas e pregações
TI' 6 - Paul Ricoeur e a hermenêutica bíblica 133
A hermenêutica bíblica. Esboço 133
A forma narrativa 139
O processo metafórico 168
A especificidade da linguagem religiosa 192
Referências bibliográficas 221
TI' 7 - À escuta das parábolas: mais uma vez atônitos 225
Texto comentado: (Mt 13, 31-33; 45-46) 225
Acontecimento, conversão, decisão 227
Reorientação pela desorientação 230
TI 8 - "Aquele que perde sua vida por causa de mim a encontrará" 233
TI 9 - A memória do sofrimento 239

Terceira seção
Tempoe narrativa em hermenêutica bíblica e teológica
TI 10 - Mito e história 247
A Grécia antiga 251
Israel antigo 256
Referências bibliográficas 265
TI 11 - Da proclamação à narrativa 267
O anúncio do Reino de Deus 271
Controvérsia 274
Rumo à história do sofrimento 276
TI 12 - O texto "sagrado" e a comunidade 279
TI 13 - Rumo a uma teologia narrativa: sua necessidade, seus recursos,
suas dificuldades 285
A necessidade de uma teologia narrativa 285
Os recursos de uma teologia narrativa 288
A dificuldade de uma teologia narrativa 293

Referências bibliográficas

Principais escritos de Paul Ricoeur em hermenêutica bíblica 303


Livros, cursos (classificados por ordem cronológica) 303
Artigos, contribuições, prefácios (classificados por ordem alfabética) 305
Principais escritos consagrados à hermenêutica bíblica de Paul Ricoeur 313
Livros,teses, cursos, números de revista 313
Artigos, contribuições 315
Obras a que fazem referência os artigos de nossa antologia 321
Nota prévia

A introdução à presente antologia corresponde, em suas linhas princi-


pais, às duas primeiras partes da dupla tese que apresentamos diante
das faculdades de filosofia e de teologia da Universidade de Friburgo, sob o
título de "A hermenêutica filosófica de Paul Ricoeur e sua importância para a
exegese bíblica". Tomamos a liberdade de remeter o leitor aos escritos de Ri-
coeur e de seus intérpretes para mais detalhes e referências. A introdução que
segue é concebida sobretudo como uma apresentação preliminar à compreen-
são dos textos de Ricoeur que aqui traduzimos. A esses vamos referir-nos em
primeiro lugar. Porém, como o critério da escolha dos artigos foi exclusivamente
lingüístico, a saber, textos inéditos em francês, não tivemos a pretensão de
cobrir com eles toda a trajetória da hermenêutica bíblica de Rícoeur:
Por isso remetemos a outras contribuições de Ricoeur; das quais forne-
cemos a lista completa na primeira parte de nossa bibliografia, seguida da
dos principais comentários consagrados a esse domínio do pensamento do
filósofo francês.
Por razões de clareza e de comodidade, as remissões aos artigos traduzi-
dos se fazem da ~eguinte maneira: citaremos primeiro a versão inglesa por
meio de abreviações - que fazemos igualmente figurar no sumário - segui-
da das páginas do original; depois indicaremos o lugar da tradução brasileira*

• Assumimos e adotamos à presente edição brasileira os critérios metodológicos expos-


tos por François Xavier Amherdt no "Avertissement" da edição francesa.
10 A. HERMENÊUTICA BÍBLICA

correspondente, com ajuda do número de classificação do artigo na antolo-


gia, precedido das letras TI (= texto traduzido) e seguido das páginas desta
edição brasileira. Assim, por exemplo: ver Hope, pp. 68-69 [= TI 4, p. 115].
Quanto aos outros livros e contribuições de Ricoeur, como também às
obras e artigos consagrados à hermenêutica bíblica de Ricoeut só daremos a
referência completa na primeira vez em que ocorrerem. Depois, só daremos
o título completo em itálico, para os livros, e, entre aspas, para as outras con-
tribuições. O leitor encontrará a lista completa nas referências bibliográficas.
No que toca às referências bibliográficas mencionadas nos textos tra-
duzidos, foram por nós modificadas de modo a corresponderem ao método
apresentado em nossa Introdução.
Introdução
I CAPíTULO PRIMEIRO I

Paul Ricoeur e a Bíblia

E mbora Ricoeur seja um filósofo, que sua preocupação permaneça sem-


pre filosófica, e que ele faça questão de distinguir com cuidado os domí-
nios: "Se defendo meus escritos filosóficos contra a acusação de cripto-teolo-
gia, eu me guardo, com igual vigilância, de atribuir à fé bíblica uma função
crípto-fílosófíca" (Soi-même commme un autre, Paris, 1990, Prefácio, p. 37), a
Bíblia ocupa, entretanto, um grande lugar em sua vida e em suas pesquisas.
Já no Prefácio de uma de suas primeiras obras ele se diz "ouvinte da
Palavra" (Histoire et verité, Paris, 1967, 3ª ed., p. 10). Sua educação, sua for-
mação e sua orientação na tradição protestante da teologia da palavra ("Wort-
geschehen") marcada por Karl Barth, R. Bultmann, G. Ebeling e E. Fuchs, sua
estima por G. MareeI e sua filosofia da encarnação, sua amizade com E.
Mounier e sua filosofia da pessoa, sua admiração pela "leituras das cifras" de
K. Jaspers, fizeram que Ricoeur tenha sempre declarado sua fé. Concebe a
vida como uma "extensão da palavra", porque "a palavra é seu reíno'". Exer-
ce mesmo uma atividade de pregador ocasional, notadamente na capela
Rockefeller da Universidade de Chicago. Esta antologia transcreve aliás dois
de seus sermões (TI 7: "À escuta das parábolas: mais uma vez atônitos"; e
TI 8: "Aquele que perde sua vida por causa de mim, a encontrará"}', como

1. Do titulo de um artigo publicado na revista Esprit 23 (1995), 192-205.


2. Pronunciou outros sermões no mesmo lugar: "You are the Salt of Earth" ("Vós sois o
sal da terra"), Ecumenical Review 10 (1958) 264-276; "Listening to the Parables of Jesus"
("Escutando as Parábolas de Jesus"), Criterion 13 (1974) 18-22; e, publicado em francês,
14 INTRODUÇÃO

também uma alocução pronunciada no quadro do Memorial do Shoah de


1989 para o serviço inter-religioso da Comunidade Emanuel de Chicago
(TT 9: "A memória do sofrimento").
Algumas de suas expressões típicas tornaram-se parte integrante do fun-
do comum da teologia, por exemplo: "o símbolo dá a pensar", "os mestres da
suspeita", "o conflito das interpretações", "a segunda ingenuidade", "o mun-
do do texto". Numerosos autores o consideram agora como uma "passagem
obrigatória" para a exegese e a teologia atuais.
É de todo sintomático, quanto a isso, que duas das mais recentes intro-
duções à teologia dêem muito espaço a Ricoeur: a primeira, Initiation à la
pratique de la théologie, pediu-lhe uma contribuição direta'; na segunda, In-
troduetion à l'étude de la théoiogie, autores como A. Dartigues, 1. Greisch e
M. Neusch citam-no abundantemente".
Como diz L. Poland, no contexto da relação entre a crítica literária e
a hermenêutica bíblica, "a obra do filósofo Paul Ricoeur é de uma signifi-
cação exemplar. Ricoeur refletiu também sobre os problemas particulares
da interpretação dos textos bíblicos, sobre a relação entre a hermenêutica
geral e teológica e sobre os conceitos teológicos específicos - a revelação
e o testemunho em particular - tais como se articulam com as preocupa-
ções da interpretação bíblica". Aliás, entre as teorias hermenêuticas
contemporâneas úteis à interpretação dos textos bíblicos na Igreja católi-
ca, a Comissão bíblica pontifícia atribui a Ricoeur a melhor parte, junto
com Bultmann e Gadamer".
É sem dúvida porque, no concerto atual do pluralismo metodológico, a
voz de Ricoeur eleva-se como uma das possibilidades de conciliação entre
hermenêuticas rivais. A conclusão de La simbolique du mal (Paris, I960, p.

"Lalogique de Jésus.Romains 5" (Escriture et predication 33), Étudesthéologiques et relígioses


55 (1980) 420-425.
3. B. LAURET - F. REFOULÉ (eds), Initiation à la pratiquede la théologie, Paris, 1982, com
o artigo de Ricoeur "Poétique et symbolíque" nas páginas 37 a 61.
4.1. DORÉ (dir.) Introduction à l'étude de la théologie (Manuel de théologie) I, Paris,
1991 e as contribuições de A. DARTIGUES, "Les sciences du langage et la question reli-
gieuse", 128-178; 1. GREISCH, "La philosophie de la religion devant le fait chrétíen", 243-
514, sobretudo 467-501; eM. NEUSCH, "La philosophie aux prises avec l'Écriture", 518-
560, sobretudo 541-555.
5. Ver L. POLAND, Literary Criticism and BiblicalHermeneutics:A Critique 01Formalist
Approaches, Califórnia, Chico, 1985, 161.
6. Ver o documento da Pontifícia Comissão Biblica, L'Interprétation de la Bible dans
l'Église, Paris, 1993,66-67 [= A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1994].
PAULRICOEURLA . BíBLIA ..................... lS

323-332) exprime bem sua divisa (p. 325) "Como ser de novo chamado para
a 'modernidade'?" Como, além do árido deserto crítico, alcançar uma "terra
prometida" pós-crítica onde repercuta de novo o apelo do kerigma textual?
A hermenêutica bíblica não escapa da diversidade conflitiva ambiente.
Foi aliás essa impressão de grande confusão que levou a Comissão Bíblica
Pontifícia, em seu documento A Interpretação da Bíblia na Igreja, a situar os
diversos métodos recentes aplicados à Escritura, operando entre eles um dis-
cernimento crítico". Assim, o monopólio quase absoluto dos métodos his-
tórico-críticos teve de recuar há alguns anos pela emergência de novas abor-
dagens oriundas seja da análise literária (retórica, narrativa e semiótica), seja
das ciências humanas (sociologia, antropologia cultural, psicologia e psica-
nálise) seja de contextos particulares (liberacionista e feminista)".
Com seus comentadores, achamos que a hermenêutica de Ricoeur pode
trazer uma contribuição de arbitragem entre múltiplas vias, e que tem êxito
nessa travessia para uma "segunda ingenuidade" pós-crítica à qual diz aspirar
(ver La Symbolique du Mal, pp. 326-327)9.

ENTRE O FilOSÓFICO E O RELIGIOSO,


NEM CONFUSÃO NEM SEPARAÇÃO'·

Embora recuse a etiqueta de "filósofo cristão", Ricoeur não hesita em


falar de "cristianismo dê filósofo?", segundo uma expressão de Léon Bruns-
chvicg herdada através de Jean Nabert, "o qual não deveria de modo algum

7. A maioria dos comentadores elogia a qualidade desse documento. Assim, por exem-
plo, M. SEVIN, "L' approche des textes bibliques", Lumen Vitae 50 (1993) 253-260; L.
RUPPERT, "Neue Impulse aus Rom für die Bibelauslegung - Zum neuesten Dokument der
papstlíchen Bíbelkomission", Bibel und Kirche 9 (1994) 202-213; ou P. GRUSON,
"L'interprétation de la Bible dans l'Églíse", Catéchése 136 (1994) 91-95.
8. Para enumerar os principais métodos considerados no documento da Comissão
vaticana (L'Interprétation de la Bible dans l'Église, 34-60).
9. É essa a tese da obra de M. I. WALLACE, The Second Naiueté. Banh, Ricoeurand the
New Yale Theology, Macon, 1990.
10. Conforme o duplo titulo combinado dos capitulos LXIIl e LXIV, da imponente
obra de F. DOSSE que estabelece a biografia intelectual de Ricoeur: Paul Ricoeur: les sens
d'une vie, Paris, 1997, 653-680.
11. Quando seu interlocutor Bertrand Révillon o interpelou: "Muitas vezes o apresen-
tam como 'filósofo cristão', mas o senhor não gosta muito dessa expressão", Ricoeur repli-
cou: "Encontram-se entre os perfis de pensadores pessoas conhecidas como filósofos e
cristãos. É o meu caso: sou crente, cristão de confissão protestante, mas faço questão de
manter a distância necessária entre uma fé e meu procedimento filosófico. Prefiro definir-
16 ......iNTRODUÇÃO

ser tido por uma filosofia cristã ou seu substitutivo?". A articulação das duas
fidelidades de Ricoeur faz pensar em uma elipse de dois focos. Entre a argu-
mentação filosófica racional e as convicções religiosas cristãs, nele não há nem
confusão nem separação: fazem eco uma à outra sem confundir-se, entram
em diálogo sem se sobreporem. "Parece-me que por mais longe que volte em
meu passado, sempre andei sobre duas pernas. Não é simplesmente por precau-
ção metodológica que não misturo os gêneros, é porque faço questão de afir-
mar uma dupla referência absolutamente primeira para mim" (La Critique et
la Conviction, Paris, 1995, p. 211). Ricoeur fala de uma relação polar entre a
critica e a convicção. Há polaridade porque a filosofia não é privada de con-
vicções, e a dimensão religiosa engloba também uma parte de crítica interna.
Durante alguns anos, sob pressão de uma certa intelligentsia filosófica
parisiense, Ricoeur desejou "proteger a distinção entre os dois registros" ("às
vezes com fúria", esclarece [La Critique et la Convictíon, p. 240]), por temor
de ser considerado refém do meio humanista e religioso?". Confessa mesmo
ter sido "profundamente inibido" por essas críticas malévolas", quando sem-
pre se esforçou por respeitar o pacto segundo o qual as fontes não filosófi-
cas de suas convicções não invadiriam os argumentos de seu discurso filosó-
fico (ver Reflexion [aite, Paris, 1995, pp. 78-79). Chegou mesmo a um tipo
de filosofia em que não somente a nomeação efetiva de Deus está excluída,
mas em que "a questão de Deus, enquanto questão filosófica, fica posta em
uma suspensão que se pode dizer agnóstica" (Soi-même comme un autre, Pre-
fácio, p. 36 - o destaque é nosso).
No entanto, corrige essa impressão de mútua exclusão das duas ordens
afirmando que quer fazer comunicar o registo do filosófico e o do religioso
pela exploração dos "lugares de interseção" de ambos os domínios: a compai-
xão, o mal, a esperança, a economia do dom (ver La Critique et la Conviction,
p. 240; Reply to Steuiart, p. 447 [TI 3, p. 93]. Reata assim, de certo modo, o

me como alguém que professaum cristianismo de filósofo" ("Dieu n'est pas tout-puissant... ",
Panorama 340 (1999) 26-30, aqui, 26.
12. Assim o precisa Ricoeur em seu interessante Prefácio a L'AmoTe difficile, de D.
JERVOLINO, Roma, 1995, 16.
13. A isso o. MONGINfaz eco, por exemplo, em suas contribuições sobre Ricoeur, quer
na sua "Nota editorial" a Lectures 3, Paris, 1994, 8-10, quer em sua obra intitulada Paul
RicoeuT, Paris, 1994, 204-208.
14. Como confessa a A. THOMASSET, em entrevista transcrita no anexo 3 da tese desse,
intitulada Poétique de l'existence et agir moralen société. La contribution de Paul RicoeuT au
fondement d'une éthique herméneutique et narrative, dans une perspeetive chrétienne, Lou-
vain, 1995.
I'AULRICOEUR L A BíBLIA ................. 17

que já praticava em 1970 - e que na realidade nunca deixou de praticar! -


quando em um ensaio como "Hope and Structure of Philosophical Systems"
[TI 4: "A esperança e a estrutura dos sistemas filosóficos", p. 101] procurava
estabelecer "nos limites da simples razão" as condições de ínteligibílidade do
querigma da esperança, solicitando a racionalidade filosófica, segundo um
"retorno pós-hegeliano a Kant" (Ibid., p. 60 [TI 4, pp. 107-108]).
Sejam quais forem as relações de "inclusão mútua" entre as disciplinas
filosófica e bíblica em Ricoeur (ver Reply to lhde, p. 72 [TI 2, p. 89]), de
que um dos artigos traduzidos ("Reply to O. Stewart" [TI 3, "Resposta a D.
Stewart", p. 93]) recapitula em um bom resumo, o fato é que o filósofo
francês não consagrou menos de uma centena de ensaios a problemáticas
que tocam de perto ou de longe a fé bíblica, e que sua obra é de lado a lado
atravessada pela questão religiosa?", antes de tudo quando estuda a polisse-
mia dos símbolos e dos mitos religiosos". Quando Ricoeur analisa a lingua-
gem simbólica, considera a exegese bíblica como o lugar de nascimento da
hermenêutica no sentido de ciência da interpretação de um texto: fala mui-
tas vezes da síntese patrística dos "quatro sentidos" como do espaço de cons-
tituição do problema interpretativo (ver Réflexion [aite, p. 58-59)17.
Depois disso, dedicou-se constantemente a explicitar as "incidências teo-
lógicas das pesquisas atuais a respeito da linguagem'?". Nesse ponto, coinci-
de com autores como O. Crossan, N. Perrin ou R.W. Funk para os quais a
interdisciplinaridade é agora uma aquisição da interpretação moderna da

15. É o que expõe C. LAVAUD em seu inteligente artigo intitulado "Philosophie et


religion dans l'oeuvre de Paul Ricoeur", Études 362 (1985) 519-533, aqui, 519.
16.Ver sobretudo La Symbolique du mal, a última seqüência do Conflitdes interprétations,
Paris, 1969, e ensaios como "Langage religieux, mythe et symbole" em Le Langage, II,
Langages, Aetes du XIII Congrês des sociétés de phiiosophie de langue française, Neuchâtel,
1969, 129-137; "Manifestation et proclamation", em E. CASTELLI (ed.), Le Sacré. Etudes
et recherches, Paris, 1974, 57 -76; "Parole et symbole", Revuede sciences religieuses 79 (1975)
142-161 "Poétique et symbolíque", em B.LAURET - F. REFOULÉ (eds.), Initiation... , 37-61.
17. Ver também De l'interprétation. Essai sur Freud, Paris, 1965, 18,33,46 s; "Préface
aR. Bultmann, Jesus, mythologie et démythologisation", em Le conflit des interprétations;
Paris, 1969, 373-392, aqui, 376-377. Ou no artigo mais recente "Le récit ínterprétatíf
Exegese et théologie dans les récits de la Passion", Recherches de science religieuse 73 (1985)
17-38, aqui, 27.
18. Foi o título de um curso no Instituto Superior de Estudos Ecumênicos do Instituto
Católico de Paris (1972, reeditado em 1981). Outros artigos vão no mesmo sentido, em
especial os que estão incluídos em Exégese et herméneutique (Paris, 1971). "Ou conflit à la
convergence des méthodes en exégese biblique" (35-56) e "Contribution d'une réflexíon
sur le langage à une théologie de la parole" (301-319).
18 ....... INTRODUÇÃO

Escritura". Interessou-se em particular pelos fenômenos de intertextualida-


de no interior do "Grande Código" bíblico" e pelas maneiras múltiplas como
os textos da Escritura denominam a Deus (ver Ref/exion [aite, p. 42 21) , nota-
damente segundo a estrutura rabínica das três Escrituras, tal como a estu-
dou o exegeta Beaucharnp". A seguir, desenvolveu muito a aplicação de sua
teoria da metáfora e da inovação semântica que a linguagem religiosa opera
em sua especificidade, notadamente no caso das parábolas". Enfim seu vo-
lumoso estudo sobre a articulação do tempo e da narrativa já encontrou
prolongamentos interessantes para a narração e a temporalidade bíblicas".

19. Ver D. CROSSAN, In Parables, New York, 1973: utilização do método literário; N.
PERRIN, "Eschatology and Hermeneutics. Reflections on Method in the Interpretation of
The New Testament", Journal of BiblicalLiterature 93 (1974) 3-14. Referindo-se ao Con-
flito das interpretações, Perrin diz: "Estamos no meio de um debate interdisciplinar bastante
animado" (p. 3); R. W. FuNK, Language Henneneutics and Word of God, New York, 1966,
e muitos outros. - Essa também é a opinião da Comissão biblica Pontifícia, em presença
da "gama metodológica dos estudos exegéticos" que se ampliou de modo imprevisível há
uns trinta anos (L'interprétation de la Bible dans l'Église, Prefácio, p. 20).
20. Segundo o título de uma obra do crítico literário americano N. FRYE que muito
influenciou Ricoeur: Le Grand Code. La Bible et la littérature, I, Paris 1984 (ver também,
do mesmo autor, o tomo 11 de La Bible et la littérature: La parole souveraine, Paris, 1994).
21. Desde "Nommer Dieu" (Études théologiques et relígieuses 52, 489-508, passando
pela "Herméneutique de l'ídée de Révélatíon", em La réuélation, Bruxelas, 1977, 15-54,
até a "Herméneutique. Les finalités de l'exégêse biblique", em CENTRE THOMAS MORE, La
Bible en philosophie. Approches contemporaines, Paris, 1993, 27-51.
22. Ricoeur interessou-se de perto pelos trabalhos do jesuíta P. Beauchamp, tanto em
seu comentário do primeiro capitulo do Gênesis (Création et séparation, París-Neuchãtel,
1969), ao qual faz eco um dos artigos de Ricoeur contido na obra coletiva Exégese et
Hennéneutique (além das duas contribuições já citadas p. 16 n. 4) intitulado "Sur I'exegese
de Gn 1,1-2, 4a" (67 -68 e 85-96) e também em seu estudo estrutural da grande tríade dos
rabinos: Torá, Profetas e outros Escritos (ver os dois tomos de L'un et l'Autre Testament,
Paris, 1977 e 1990, em que se inspiram vários ensaios de Ricoeur: "Expérience et langage
dans le discours religieux" em 1.F. COURTINE, Phénoménologie et théologie, Paris, 1992, 15-
39; "L'enchevêtrement de la voix et de l'écrit dans le discours biblique", em Leetures 3,
Paris, 1994,307-326; "Accomplir les Écritures selon Paul Beauchamp, L'un et l'Autre
Testament lI, em: P. BOVATI-R. MEYNET (dirs.), Hommage a Paul Beauchamp, Paris, 1996,
7-23; ou ainda "Com me si la Bíble n'existait que lue ... "Exorde, em P.BOVATI-R. MEYNET
(dirs.), "Ouvrír les Écruures", Mélanges ofierts à Paul Beauchamp, Paris, pp. 21-28.
23. Grande parte de nossa antologia é consagrada à metaforicidade da linguagem religiosa
e das parábolas: ver "Paul Ricoeur on Biblical Hermeneutics" [TI 6: "Paul Ricoeur e a her-
menêutica bíblica, pp. 133-222] e a homilia "Listening to the Parables": Once More Ato-
nished" [TI 7: À escuta das parábolas: mais uma vez atônitos, pp. 225-232]; ver também "La
Bible et l'ímagínatíon", Revue d'histoire e de philosophie religieuse 66 (1982) 339-360.
24. Como os três ensaios traduzidos: "From Proc1amation to Narrative" [TI 11: Da
proclamação à narrativa, pp. 267-278]; "Toward a Narrative Theology: Its necessity, Its
I'AULRJCOEUR L A BÍBLIA. 19

A APOSTA DO SENTIDO

Além desse lugar importante que a interpretação da Escritura ocupa


efetivamente na existência e nas pesquisas de Ricoeur; muitos traços de seu
empreendimento filosófico podem levar-nos e dirigir-nos para ela na espe-
rança de tirar proveito dela para a hermenêutica bíblica. Filosofia reflexiva
do sujeito, o procedimento ricoeuriano parte da intuição fundamental de
que a existência humana é portadora de sentido": E Paul Ricoeur tenta buscar
traços desse sentido em todas as obras humanas que testemunham "nosso
esforço para existir e nosso desejo de ser" ("Existence et herméneutique" em
Le conflit des interpréuuions, p. 21). Assim Ricoeur nunca aceitou dogmatis-
mos, seja o autoritarismo político, seja a fascinação pelo saber absoluto. Re-
jeitando o obscurantismo intelectual e o curto-circuito de certas ontologias
de inspiração hegeliana, empreendeu a via longa do diálogo epistemológico
com as "contra-disciplinas" que se inclinam para as expressões do sujeito
pensante (ver Reply to Stewart, p. 446 [TI 3, p. 93]26.
Esses desvios são indispensáveis para a interpretação da Escritura no
coração da grande "rornança" da cultura moderna. Com efeito, a Palavra de
Deus atinge tão dificilmente o homem de hoje pelo fato de que a sensibili-
dade à linguagem simbólica degradou-se profundamente sob a influência da
dicotomia entre a consciência soberana e o mundo objetivo manipulável
(ver "L'homme et son mystere", em Le Mystere, Paris, 1960, pp. 119-130,
aqui, 121-122;"Le language de la foi", Bulletin du Centre protestant d' études,
16,1964, pp. 17-31, aqui, 17_18)27. Como admitir, pergunta Ricoeur, que

Ressources, Its Dífficultíes [TI 13: Rumo a uma teologia narrativa: sua necessidade, seus
recursos, suas dificuldades, pp. 285-299]; Myth and History [TI 10: Mito e história, pp.
247-266]; como também "Temps bíblíque", Archivía di Filosofia 53 (1985) 23-35.
25. Vários autores articulam sua apresentação de Ricoeur em tomo dessa intuição É o
caso de 1.Van Den HENGEL, The Home of Meaning. The Hermeneutics of the Subject of Paul
Ricoeur, Lanham-New York- Londres, 1982; e de T M. Van LEEWEN, The SurplusofMeaning,
Ontology and Eschatology in the Philosophy of Paul Ricoeut; Amsterdam, 1981.
26. Ao contrário da opinião de A. LÉONARD, para quem a obra de Ricoeur, à força de
multiplicar tantos desvios, termina por perder de vista sua orientação fundamental (ver
Pensées des hommes et foi en lésus-Christ. Pour um discernement intellectuel chrétien, Paris-
Namur 1980, 233),. a maioria dos comentadores vê nesses desvios etapas que se seguem
e se enriquecem mutuamente. Assim P. MUKENGEBANTU, "L'unité de l'oeuvre philosophi-
que de Paul Rícoeur", Laual théologique et philosophique 46 (1990) 209-222, aqui, 210.
27. Em sua Introdução, o. MONGIN situa essa aposta do sentido (ou aposta hermenêu-
tica, como Ricoeur a chama - ver Reply to Steuiart, p. 447 [TI 3, p. 93]) em face do
ceticismo ambiente (Paul Ricoeur, 17-32; ver também R. KEARNEY, discípulo de P. Ri-
coeur, "L'imagination herméneutique et le postmoderne", em 1. GREISCH-R. KEARNEY
20 . INTRODUÇÃO

nessas condições a linguagem bíblica, cheia de expressões mitico-simbóli-


cas, possa ter algo a dizer sobre a realidade (ver "Le language de la foi", pp.
19-21)? Tanto mais que a heteronomia da Revelação vem aparentemente
ameaçar a autonomia do indivíduo. Donde a reação dos três filósofos des-
mistificadores, Freud, Marx e Nietzsche, os "mestres da suspeita", segundo
Ricoeur: a linguagem bíblica podia ser somente, segundo eles, uma "trans-
crição codificada de algo outro que preferimos não dispor?", o fruto de um
tríplice mecanismo de domínação-submíssão-alíenação, ou a criação de uma
consciência falsa, prisioneira de um absoluto ilusório. De seu lado, Ricoeur
faz a aposta da fé. Parte do pressuposto de que os textos da pregação cristã
são autênticos testemunhos da presença do absoluto na história (ver "La
liberté selon l' espérance", em Le Conflit des interprétations, pp. 393-415, aqui,
p. 397Y9 e que o discurso religioso "não é privado de sentido, que vale a
pena ser examinado porque nele se diz algo que não é dito nas outras mo-
dalidades do discurso": discurso ordinário, discurso científico, discurso poé-
tico ("La phílosophie et la spécificité du langage religieux", Revue d'histoire
et de philosophie religieuses, 55, 1975, pp. 13-26, aqui, p. 13; ver "Nommer
Dieu", p. 489).
No entanto, para Ricoeur, nenhuma articulação autêntica da fé cristã
pode prescindir da crítica impiedosa dos "mestres da suspeita" ("The Criti-
que of Relígion and the Language of Faith", Union Seminary Quarterly Review
28, 1973, pp. 203-224, aqui, p. 219)30.

A CRIATIVIDADE DA LINGUAGEM
POÉTICA E BíBLICA

Deslizando progressivamente de uma eidética e de uma empiria da


vontade à hermenêutica dos símbolos, depois à teoria da interpretação dos

(dirs.) Paul Ricoeur. Les métamorphoses de la raison herméneutique, Paris, 1991,357-371,


aqui, 357-362.
28. L. S. MUDGE, "Paul Ricoeur on Biblical Interpretatíon", em Id. (ed.), Paul Ricoeur.
Essays on Bíblical interpretation, Londres, 1981, 1-40, aqui, 40.
29. Essa aposta de.Ricoeur pela fé é notadamente sublinhada por M. BOEHNKE, Kankrete
Reflexion. Philosophische und theologische Hermeneutik. Ein lnterpretanonsuersuck über Paul
Ricoeur, Bern-NewYork-Frankfurt, 1983, 128-129.
30. É, entre os méritos de Ricoeur; o que W. G. JEANROND mais destaca em seu impor-
tante panorama, intitulado Introduction à l'herméneutique théologique Développement et
signification, Paris, 1995 (sobretudo 105-107, 149, 156-157) em que atribui um lugar de
escolha ao filósofo francês.
PAUL RICOEUR E A BíBLJA 21

textos", Ricoeur ampliou cada vez mais seu cuidado de esclarecer o funcio-
namento poético do discurso. Ele mesmo diz que é o dinamismo criativo
operando no texto-obra (a metáfora, a narrativa) e a imaginação na inter-
pretação que constituem os fios condutores de seu empreendimento (ver
"L'histoire com me récit et comme pratique", Esprit 54,1981, pp. 155-165,
o que o levou naturalmente a considerar o funcionamento poético do dis-
curso bíblico, sublinhando sua especificidade.
Embora preservando sua determinação de salvaguardar a autonomia
de seu pensamento filosófico, responsável por sua atividade e seu objeto
(ver "La liberté selon l'espérance", p. 394), Ricoeur dedicou-se a estudar os
textos bíblicos de feição narrativa, legislativa, profética, sapiencial, apocalíp-
tica e mítica em que o homem põe a nu sua finitude, choca-se com o mis-
tério do mal, encontra a Transcendência e gera a esperança (ver notadamen-
te, entre outras numerosas passagens: "La patemité: du fantasme au symbole",
em Le conflit des interprétations, pp. 458-486, aqui, 471-472; "Foi et philoso-
phie aujourd'hui", Foi education 42, 1972, pp. 1-13, e "Herméneutique. Les
finalités de l'exégêse biblique" pp. 38-41).
Particularmente cuidadoso com a autonomia semântica do sentido tex-
tual, em virtude dos distanciamentos sucessivos a respeito do autor e dos
destinatários primeiros do texto (ver; por exemplo, BH, pp. 66-67 [TI 6,
pp. 162-163]), Paul Ricoeur demorou-se menos na gênese e nas condições
de produção dos textos dos dois Testamentos" do que na sua capacidade
"poiética?" de produzir significações novas e a seu valor de "revelação".
Como as metáforas e os relatos de ficção, os textos da Escritura têm condi-
ção para mudar a realidade porque lhe conferem uma configuração nova e
a reescrevem através de seus modos de discursos contrastados (ver "The
Function ofFiction in Shaping Reality", Man and World 12 [1979] pp. 123-
141, aqui, p. 127).

31. L. S. MUDCE apresenta o percurso de Ricoeur em "Paul Ricoeur on Biblical Inter-


pretation", 44-48, e o. OKONDA, em "L'herméneutique chez Paul Ricoeur. Instances et
méthodes", Cahíers philosophiques africains 6 (1974) 33-60.
32. Sem negar o valor dos métodos histórico-críticos, deu-lhes menos atenção do que
às análises estrutural, semi ótica e literária (ver"Du conflít à la convergence des méthodes
en exégese bíblíque", 36; Prefácio a A. LACOCQUE, Le Livre de Daniel, Neuchâtel, 1976,
5-11, aqui, 8-9.
33. Com Ricoeur damos a esse termo seu sentido etimológico C'poiesís") de criação,
trabalho de produção, "fabricação de uma coisa distinta de seu autor" (ver, por exemplo,
"Poétique et symbolique", 39).
22 . .. INTRODUÇÃO

Aplicando suas pesquisas sobre o processo metafórico da linguagem às


formas do discurso bíblico, Ricoeur soube destacar a intransponível especifi-
cidade da linguagem da Escritura: sua referência última - Deus-Cristo-o
Reino -, o jogo polífônico dos gêneros literários irredutíveis um ao outro,
e a extravagância de seu modo discursivo (notadamente nas parábolas, nos
provérbios e nos dizeres apocalípticos), o que nenhum discurso especulati-
vo pode exprimir de maneira satisfatória (é o objeto de todo o terceiro
estudo de BH, "The Specificity of Religious Language", pp. 107-148 [TI 6,
pp. 191-220] ver também "La philosophie et la spécíficíté du langage
religieux", p. 24).

DO CONFLITO À ARTICULAÇÃO DOS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO

Diante das perturbações causadas pelo enfrentamento das interpreta-


ções rivais", Ricoeur intenta propor uma teoria englobante da hermenêuti-
ca dos textos que vale também para a linguagem religiosa (ver De l'interpré-
tation. Essai sur Freud, p. 13). Para ele, interpretar um texto não se limita
nem a captar a intenção do autor (ver "Heméneutique philosophique et
herméneutique bíblíque" em F. Bovon-G. Rouiller (eds), Exegesis, Neuchâtel-
Paris, 1975, pp. 216-228) ou o pano de fundo histórico do texto - na pers-
pectiva da crítica bíblica tradicional - nem a apreender o jogo de significa-
ções internas ao texto sem nenhuma referência ao real fora do texto -
como propõem numerosos leitores pós-modernos da Escritura (ver "La
fonction herméneutique de la distanciation", em Exegesis, pp. 201-215, aqui,
212-213). Segundo Ricoeur, a interpretação tem por fim compreender o
"mundo" literário e teológico desenvolvido no texto (ver Interpretation Theory:
Discourse and the Surplus of Meaning, Fort Worth, 1976, pp. 36-37). Paul
Ricoeur não deseja sacrificar nenhuma dessas duas abordagens explicativas,
mas antes articular uma à outra para preveni-las dos riscos que cada uma
corre: a critica histórica, do desinteresse pela matéria teológica do texto, e a
poética pós-estrutural, de sua vontade anti-referencial.

34. P. Ricoeur tem uma vocação de árbitro, reconhecida por todos os seus comentado-
res (ver o. F. BOLLNOW, "Paul Ricoeur und die Probleme der Hermeneutik", Zeitschrift für
philosophische Forschung30 (1976),167-189 e 388-412, aqui, 176-179. Diz mesmo que
ele travou debate com as hermenêuticas em conflito à maneira "de um combate amoroso"
graças ao qual consegue de seus oponentes melhor compreensão dele mesmo" ("Réponses
à mes critiques", em C. BOUCHINDHOMME-R. ROCHLITZ (eds.): "Temps et récit" de Paul
Ricoeur en débat, Paris, 1990, 187-218.
f PAUL RICOEURLA. BíBLIA 23

Contra a crítica bultmaniana, Ricoeur sublinha com força que é indis-


pensável questionar o funcionamento da linguagem bíblica e seu modo lin-
guístico de referência à transcendência. Opõe-se à redução do texto das es-
crituras em um núcleo kerigmático despojado de sua forma narrativa e à
desconstrução da linguagem simbólica da Bíblia em uma construção concei-
tual não mitológica, mesmo que fosse o existencialismo de Heidegger. Dá
lugar assim à análise literária como um momento indispensável da "explica-
ção" dos textos (ver "The Critique of Religion and the Language of Faith",
pp. 220-222).
Mas nem por isso sacrifica o momento da compreensão existencial que
chama apropriação. Melhor, a interpretação, segundo ele, só está acabada se
dá origem a experiências "segundo as Escrituras" (ver "La fonction herméneu-
tique de la distanciation", pp. 213-214).
Apesar da dificuldade de seu estilo, apesar da incrível amplidão de suas
pesquisas através da história da filosofia, as disciplinas científicas mais diver-
sas, a dupla herança helenística e judaica (ver Reply to lhde, p. 72 [TI 2, p.
89], os campos francófono e anglo-saxão't..., julgamos que Paul Ricoeur
pode ser um dos pensadores graças aos quais, no coração da modernidade
corrosiva, o homem é chamado de novo pelo poder transformador dos tex-
tos da Revelação, suscitando nele um ato criativo de interpretação e um
testemunho novo (ver "La liberte selon I'espérance", pp. 396-401; Reply to
Mudge [TT I, passim Y6.

35. Ensinando tanto em Chicago como em Paris, Ricoeur opera uma mediação rara
entre os pensamentos europeu e americano. Nossa antologia deseja, aliás, trazer uma con-
tribuição a essa aproximação. Sobre o próprio desejo do pensador francês de servir de
mediador entre posições opostas, ver entre outros seu artigo "A Philosophical Journey.
From Existentialism to the Philosophy of Language", Philosophy Today 17 (1973) 88-96.
36. É em tomo dessa categoria do testemunho que L. S. Mudge propõe organizar a
hermenêutica bíblica de Ricoeur em muitas constelações, tentativa pertinente na opinião
do próprio Ricoeur (ver Reply to Mudge, 42) [TI 1,83].
,
r'

I CAPíTULO SEGUNDO I

Polifonia do texto bíblico


e trabalho de interpretação

A hermenêutica filosófica de Ricoeur articula-se em tomo de dois pólos:


o texto e a interpretação do texto. Falamos de "pólos" pois um não vai
sem o outro: o trabalho efetivado no texto exige como contraparte um tra-
balho de interpretação. Inversamente, a dinâmica da interpretação consiste
em esclarecer e em acompanhar a dinâmica que já está efetivada no texto.
É assim que Ricoeur faz do cruzamento entre o "mundo do texto" e o "mun-
do do leitor" a tese central de sua hermenêutica filosófica. Essa é a quarta
afirmação de seu artigo "The Text as Dynamic Identity", pp. 183-186 [TI 5
"O texto como identidade dinâmica", pp. 126-129]: "O papel da herme-
nêutica é acompanhar a atividade estruturante que parte do pleno da vida,
investe-se no texto e, graças à leitura privada e à recepção pública, retoma
à vida" CP. 186).
Simetricamente, a hermenêutica bíblica de Ricoeur pode organizar-se
de maneira sistemática em redor dessas mesmas categorias filosóficas: pri-
meiro, para o pólo do texto da Escritura, em tomo das quatro categorias
textuais de instância de discurso, de obra e de gêneros literários, de escrita e
de mundo do texto. Depois, para o pólo da interpretação escriturística, com
a ajuda dos três segmentos do arco hermenêutico, a pré-compreensão, a dia-
lética explicação/compreensão, enfim, o ato de leitura é a apropriação'.

1. Vários autores põem em evidência que essa articulação é um arco hermenêutico


completo do explicar e do compreender que faz a força do método ricoeurianq como L.
POLAND, Literary Criticism and Biblical Henneneutics, 161-162, ou M. I. WALLACE, The

~\BLlOT€C~
DA
26 INTRODUÇÃO

É justamente levando a termo o paralelo entre os textos poéticos em


geral e as Escrituras bíblicas - nesse sentido há continuidade entre as duas
disciplinas - que se manifesta a especificidade irredutível da linguagem
religiosa, a saber aquilo sobre que incide, o nome de Deus, seu referente
último, o Reino de Deus que precisamente escapa à conclusão de todos os
discursos - há então descontinuidade entre as duas hermenêuticas.
Para Ricoeur, a hermenêutica bíblica é "um caso único porque todos os
discursos parciais são referidos a um Nome, que é o ponto de interseção e o
indício de incompletude de nossos discursos parciais sobre Deus e porque
esse Nome tornou-se solidário de "acontecimento-sentido" pregado como
Ressurreição. Mas a hermenêutica bíblica não pode pretender dizer uma
coisa única a não ser que essa coisa única fale como o mundo do texto que
se dirige a nós, como a coisa do texto" ("Herméneutique phílosophique et
herméneutique biblique", p. 22SY

A RELAÇÃO ENTRE HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E HERMENÊUTICA BíBLICA:


UM FIO CONDUTOR ATRAVÉS DA OBRA DE RICOEUR

Essa relação entre hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica cons-


titui uma das inspirações centrais de todo o empenho de Ricoeur; a ponto
de ser possível ler sob essa luz e nessa perspectiva todo o itinerário do
pensador.
Com efeito, segundo afirma D. Stewarr' a reflexão ricoeuriana, embora
permanecendo intrinsecamente filosófica e protegendo sua independência
(ver Reply to Steuiart, p. 445 [TI 3, p. 95] fica constantemente, e em nome
mesmo da exigência filosófica, aberta ao apelo de uma palavra transcenden-
te que guie e magnetize a palavra humana. De lado a lado, seu pensamento
está atravessado pela questão religiosa e, muito particularmente, pela dimen-
são da revelação que emana das Escrituras bíblicas, de que ele se diz ouvin-
... 4
te, como Ja vimos.

Second Naiueté. Barth, Ricoeur et the New Yale Theology, P. MUKENGEBANTU vê nisso mes-
mo a especificidade da hermenêutica de Rícoeur; em sua tese intitulada precisamente
Expliqueret comprendre, Quebec, 1988.
2. A propósito, ver o artigo síntese de D. PELLAUER, "Paul Ricoeur on the Specifity of
Relígious Language", Journalof Religion 61 (1981) 264-284.
3. D. STEWART, "Ricoeur on Religious Language", em: L. E. HAHN (ed.), The Philosophy
of Paul Ricoeur, Chicago-La Salle (llI), 1955,423-442, aqui, 423 [verTI 3, p. 93, nota 2].
4. Ver acima, p. 13.
POUEONIADOTEXTO BíBLICO LTRABALH.ODE . INTERPRETAÇÃO . 27

Desde a primeira obra de Ricoeur; consagrada a Karl Jaspers', manifes-


ta-se a necessidade para a filosofia prática de passar pela leitura das "cifras"
por uma decifração dos signos através dos quais o homem exprime sua re-
lação para com o ser. Esse trabalho de interpretação encontra seu desafio
mais exigente no ponto em que a liberdade humana choca-se contra o enigma
do mal e do fracasso, diante das situações limites que são a morte, o sofri-
mento e a culpa.
No primeiro tomo da Phílosophíe de la volonté, intitulado Le volontaire
et l'Involuntaíre6 , Ricoeur aplica o método fenomenológico de Husserl à di-
mensão prática da vontade, como consciência encarnada. Mas enfrenta a
opacidade irredutivel do involuntário, preso à culpabilidade e ao mal, e deve
recorrer a outro tipo de leitura do real: a exegese dos símbolos pelos quais
os grandes mitos religiosos tentaram exprimir o enigma do mal.
No segundo tomo de sua Philosophie de la volonté, Fínítude et culpabilité,
dividido em dois volumes, L'Homme faíllíble e La Symbolique du mar passa
então a outro método que denomina "empírico" que consiste em um traba-
lho de interpretação dos símbolos do mal, pelos quais o homem exprime
sua própria culpabilidade. Entre todos os mitos examinados, Ricoeur dá ni-
tidamente prioridade aos relatos bíblicos do Gênesis, de um lado porque,
para ele, são textos que permitem ir mais longe na elucidação do mal já
presente; de outro, porque a Revelação bíblica é a que abre melhor para o
terceiro momento da Filosofia da vontade, que Ricoeur denomina "poético",
que ele muitas vezes prometeu mas não realizou, a saber a restauração da
vontade alienada pela culpa" (Réf/exíon [aue, p. 26; Reply to Mudge, p. 45

5. Publicada com M. DUFRENNE e intitulada Karl lasperset la philosophie de l'existence,


Paris, 1947. Seguiu-se outro livro consagrado a Gabriel Mareei et Karl Jaspers. Philosophie
du mystére et philosophie du paradoxe, Paris, 1948.
6. Philosophie de la volonté, I, Le Volontaire et I' Involontaire, Paris, 1950.
7. Philosophie de la volonté, 11, Finitude et culpabilité, Paris, 1960 [vol. 1: L'hommefaiUible;
vol. 2: La Symbolique du mal).
8. Alguns criticas de Ricoeur fazem da poética o fio condutor de sua pesquisa filosófica
e o horizonte de sua hermenêutica teológica, como M. GERVASONI, La "poética" nell'erme-
neutica teologica di Paul Ricoeur, Brescia, 1985 (como mostram seus capítulos VII: "Poetica",
221-286 e VIlI: "La 'Poetíca' e l'ermeneutica teologica", 287-384); T. NKERAMIHIGO,
L'Hommeet la Transeendanee selon Paul Ricoeur. Essai de poétiquedans la philosophie de P.
Ricoeur, Paris, 1984 (cap. VIII: "Poétique et transcendence"19I-228); ou G. GRAMPA, seja
em sua obra Ideologia e poetica. Marxismo e ermeneutica per illinguaggio religioso, Milão,
1979; seja em seu artigo"Interpretazíone e simbolo: La poetica come discipline ermeneutica
nel pensiero de P. Ricoeur" em G. GALLJ (ed.), lnterpretazione e simbolo, Turim, 1984,55-
83; ou aínda em seu Prefácio à edíção italiana de artigos de Ricoeur sobre hermenêutica
28 INTRODUÇÃO

[TI 1, p. 87]). Ora, é bem para essa recriação do homem que apontam as
Escrituras bíblicas, com o que Ricoeur chama de economia da superabun-
dância, seu kerigma da liberdade segundo a esperança e sua hermenêutica
da salvação.
Em um ensaio como "Hope and the Structure of Philosophical Systems"
r,
[TI 4 Ricoeur procura o equivalente filosófico do núcleo kerigmático da
esperança em um retorno pós-hegeliano à dialética não conclusiva de Kant.
De uma parte, na esteira de Hegel, a razão aspira a apreender a totalidade
do sentido e a regeneração da vontade prometida pela pregação pascal. Mas
de outra parte, na perspectiva kantiana, é levada a constatar que é incapaz
por si mesma de realizar essa reconciliação em plenitude: "Uma filosofia dos
'limites' que é ao mesmo tempo uma exigência prática de totalização, sem
ser fechada sobre um saber absoluto 10", tal é a estrutura do acolhimento
filosófico capaz de entrar o mais longe possível em consonância com o dado
da Revelação. É o que Ricoeur chama de aproximação filosófica da liberda-
de segundo a esperança cristã (ver "La liberte selon l'espérance", p. 403:
Hope, p. 69 [TI 4, p. 114]).
É neste ponto que' virá inscrever-se a hermenêutica dos textos bíblicos.
Com efeito, a esperança fala menos a nossa vontade que a nossa imagina-
ção", esse lugar em que o homem acolhe os "figurativos" que sustentam a
lógica absurda da esperança (ver "La foi soupçonnée", p. 70). Ora, os símbo-
los e os relatos bíblicos fornecem de maneira privilegiada os figurativos de
nossa libertação efetiva e afirmam a possibilidade real de tornar-se homem,
"apesar" da morte (ver Hope, p. 58 [TI 4, p. 105])12. A hermenêutica dos
textos bíblicos, tirando proveito dos trabalhos de Ricoeur sobre os símbolos,

bíblica "Dire Dio: poetica e linguaggio religioso in P Ricoeur. Editoriale", em P. RICüEUR-


E.1üNGEL, Dire Dio. Per un'enneneutica dellinguaggio religioso, Brescia, 1978, 5-40.
9. Ver também "La Iiberté selon l'espérance", ensaio integrado ao Conflit des lnterpré-
tations, 393-415.
10. A.THüMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, Louvain,1996, 244.
Thomasset desenvolve toda a argumentação de Hope em um parágrafo intitulado "Une
phílosophie ouverte à la Révélation: I'approximation du Kérygme" [ibíd., 237-250).
11. A imaginação tem um papel-chave na hermenêutica de Ricoeur: "Quando o distan-
ciamento da imaginação corresponde ao distanciamento que a 'coisa' do texto cava no
coração da realidade, uma poética da existência corresponde à poética do discurso" ("Her-
méneutique philosophique et herméneutique biblique", 227-228; ver também Cours sur
I'herméneutique, Louvain, 1971-1972, 216; ou "L'imagination dans le discours et dans
l'actíon", em Du texte à l'action, Paris, 1986,213-236, aqui, 208-214.
] 2. Segundo a lógica da superabundância desenvolvida pela epistola aos romanos que
se resume nos termos "quanto mais" e "apesar de" (ver Hope, pp. 58-59 [TI 4, 104-105]).
POLIfONIA DO TEXTO BíBUCO E TRABALHO DL INTERPRETAÇÃO 29

as metáforas e os relatos, vai permitir explicitar a mediação de linguagem,


pela qual se exprimem os figurativos da esperança",
Se retomamos o fio do itinerário de Ricoeur, a quase totalidade dos
trabalhos posteriores à Symbolíque du mal (que data de 1960), desde De
i'Interprétation: essaí sur Freud (1965), até os três tomos das Leetures (1991-
1994), passando pelo Conflit des Interprétations (1969), La Métaphore vive
(1975) e os três tomos de Temps et récit (1983-1985) - excetuando talvez
Soi-même comme un autre (1990) - foràm todos escritos no rosto herrne-
nêutico do empirico da vontade, cujas condições de possibilidade enten-
dem afirmar.
Com efeito, o primeiro mergulho na prática efetiva da hermenêutica
bíblica vai tornar-se, para aquele que se convencionou chamar o "segundo
Ricoeur", a ocasião de um confronto com toda uma série de problemas
ligados à estrutura semântica e ao alcance referencial da linguagem simbó-
lica e mítica.
Em primeiro lugar, o duplo sentido próprio da estrutura narrativa leva
Ricoeur para investigações metodológicas, sucessivamente semiológicas, sin-
táticas e semânticas, seja em seu diálogo com a psicanálise (Freud), com os
diferentes estruturalismos (Le conflít des ínterprétatíons) ou em seu exame
do aumento icônico ou da referência desdobrada de La Metáphore vive.
Em segundo lugar, a dimensão temporal própria da estrutura narrativa
dos mitos enriquece as considerações precedentes com reflexões ligadas à
historiografia, à teoria literária e à especulação filosófica sobre o tempo.
Desafio multiforme, com o qual a trilogia Temps et récit pretende lidar.

VALORIZAÇÃO DO FENÔMENO DO DISTANCIAMENTO: O TEXTO COMO


ENTIDADE DINÂMICA E A INTERPRETAÇÃO COMO ARCO HERMENÊUTICa

É precisamente quando Ricoeur deixa as considerações de semiótica estru-


tural, de sintaxe e de semântica no nível da palavra e da frase, para abordar o
nível do texto, que ele se situa no plano propriamente hermenêutico, isso é,
nessa dimensão que leva em conta a veemência ontológica da linguagem, de
sua capacidade de dizer o homem e o mundo (ver Reflexíon faíte, p.41).
Com efeito, Ricoeur distingue-se de certas correntes da crítica literária
que excluem de suas investigações "o exterior" do texto e confinam-se no
exame das relações imanentes ao texto:

13. Ver A. THüMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, 250.


30 INTRODUÇÃO

Para uma hermenêutica que não tem como estabelecida essa separação não
dialética entre o interior e o exterior do texto, o problema é antes com-
preender como a linguagem continua a operar a mediação entre a huma-
nidade e o mundo, entre os próprios seres humanos, e entre o ser humano
individual e ele mesmo. [... ] Essa tríplice mediação de referencialidade (hu-
manidade e mundo), de comunicabilidade (ser humano e ser humano) e de
compreensão de si (ser humano e ele mesmo) constitui o problema mais
importante de uma hermenêutica dos textos poéticos (1NT, pp. 240-241
[TI 13, p. 290], sublinhado nosso]".
Ricoeur chegou a essa concepção operando uma sorte de arbitragem
entre as diversas posições anteriores da tradição hermenêutica com as quais
dialogou", entre as quais, as de Bultmann", Schleiermacher, Dilthey, Hei-
degger e Gadamer. E, também, estabelecendo uma dialética construtiva com
outras disciplinas tais como as diversas formas de estruturalismo (ver Reply
to lhde, pp. 72-73 [TI 2, p. 91]).
Sua contribuição particular articula-se em torno da noção positiva do
distanciamento, que é precisada por ele através de diversas categorias tex-
tuais: a efetuação da palavra como instância de discurso, a efetuação do dis-
curso como obra estruturada, a fixação da obra pela escrita, o mundo do
texto projetado pela obra escrita e a compreensão de si pelo ato de leitura à
luz do mundo do texto".

14. Para essa concepção do poder ontológico da linguagem em Ricoeur ver Ibid.,
251-253.
15. Sobre as etapas da tradição hermenêutica do ponto de vista de Ricoeur; ver 1.Van
den HENGEL, The Home of Meaning, pp. 95-104; D. KLEMM, Hermeneutical Theory of
PaulRicoeur. A ContTUetive Analysis, London-Toronto, 1983, 18-44; P.MUKENGEBANTU,
Expliqueret comprendre, 151-163; A. THOMASSET, PaulRicoeur. Une poétique de la morale,
119-123.
16. Ver Prefácio a BULTMANN, lésus, mythologie et démythologisation; démythologisation
et herméneutique, Nancy, 1967; "Mythe et proclamation chez R. Bultmann", Cahiers du
Centre Protestant de l'Ouest8 (1967) 21-33;"Foi et langage, Bultmann,Ebeling"Foi Éducation
37 (1967) 17-35 e 36-57; e "Bultmann:une théologíe sans mythologie", Cahiers d'Orgemont
72 (1969), 21-40.
Sobre os outros (Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, ver sobretudo "Cours
sur l'herméneutique' e "La tâche de l'herméneutíque", em Exegesis, 181-200,69-119; em '
E. CASTELLI (dir.), Démythisation et ídéologíe, Paris, 1973,25-61, aqui, 27-40.
17. Para uma apresentação das categorias do texto segundo Ricoeur, ver entre outros:
1f.•
s. MIGLlASSO, La théorie herméneutique de Paul Ricoeuret l'herméneutique biblique, Paris, t
1980,31-38; D. E. KLEMM, Hermeneutical Theory of Paul Ricoeur, 74-108; M. BOEHNKE, r
Konkrete Re/lexion, 95-104; W. G. JEANROND, Text und buerpretation ais Kategoríen t
theologischen Denkens, Tübingen, 1986,42,58; e A. THOMASSET, Paul Ricoeur. Unepoétique i
de la morale, 123-130.
r
f
POLIFONIA DO. TfXTO BíBUCO E TRABALHO DLJNTERPRETAÇÃO . 31

I Tal é o primeiro mérito que o documento da Comissão Bíblica ponti-


fícia atribui à hermenêutica filosófica de Ricoeur; como base teórica a servi-

I
t
t
ço da Biblia:
Do pensamento hermenêutico de Ricoeur retenha-se primeiro o relevo que
dá à função de distanciamento como preliminar necessária a uma justa
! apropriação do texto. Existe uma primeira distância entre o texto e seu
autor, porque, uma vez produzido, o texto toma certa autonomia em rela-
ção a seu autor; começa uma carreira de sentido. Outra distância existe
entre o texto e seus leitores sucessivos. Esses devem respeitar o mundo do
texto em sua alteridade. Os métodos de análise literária e histórica são
pois necessários à interpretação'".
Em cada nível, pois, Ricoeur põe em evidência um fenômeno de dis-
tanciamento em relação à experiência de pertença, distanciamento que apa-
rece cada vez como uma mediação salutar no caminho da compreensão de
si através do aprendizado dos signos": o estabelecimento de um sentido iden-
tificável e reídentificável nas estruturas lingüísticas estáveis só é possível na
base de uma petrificação da palavra espontânea (primeira categoria textual
"instância do discurso": ver BH pp. 66-67 [TI 6, pp. 162-163]); a produção
de uma obra de discurso em formas literárias identificáveis (segunda catego-
ria textual "obra" ver ibid. pp. 67-70 [TI 6, pp. 163-166]); e sua fixação
pela escrita (terceira categoria textual: a "escrita"; ver ibid. p. 66 [TI 6, pp.
162-163]) só fazem acentuar o fenômeno, mas constituem as condições in-
dispensáveis para que o texto seja como destacado da intenção de seu autor
histórico e possa ser reassumido por leitores posteriores que não pertencem
ao mundo do autor; é porque há uma obra escrita, autônoma, um texto
mostrando seu próprio mundo (quarta categoria textual, "mundo do tex-
to"); ver TNT, p. 240 [TI 13, pp. 289-290], que as abordagens "objetificantes"
são legítimas e necessárias (pré-compreensão, dialética explicação/compreen-
são, primeiro e segundo segmentos do arco hermenêutico: ver lnterpretation
Theory, pp. 75-76), que o mundo do texto pode encontrar o mundo de uma
multidão infinita de destinatários ulteriores (categoria "ato de leitura") e assim
cada leitor pode enriquecer sua própria apreensão do real e sua própria com-
preensão de si com as projeções de sentido incluídas no texto (categoria
"apropriação", terceiro segmento do arco hermenêutico: ver Reply to Mudge,
pp. 43-44 [TI 1, pp. 85-86]).

18. Ilinterprétation de la Bible dans l'Églíse, 66-67.


19. Para retomar o título da excelente obra de B. STEVENS, L'apprentíssage des sígnes.
Lecture de Paul Ricoeur; Dordrecht, 1991.
32 INTRODUÇÃO

É em torno da noção de mundo que Ricoeur articula a tese central de


sua hermenêutica (ver "Herméneutique philosophique et herméneutique bi-
blique'', p. 222)20. A significação do texto advém à interseção entre o mundo
do texto e o mundo de seus leitores: !
Por mundo do texto entendo o mundo desdobrado pelo texto diante dele,
I
por assim dizer, como o horizonte da experiência possível na qual a obra
I

I
desloca seus leitores. Por mundo do leitor entendo o mundo efetivo no
qual a ação real se desdobra no meio de uma "rede de relações" para usar
uma expressão de Hannah Arendt em The Human Condition (TNT 240
[TI 13, pp. 289-290]). I
É em sua recepção pelos leitores que se atualiza a capacidade do texto
r
de transfigurar a experiência. A Comissão Bíblica Pontifícia reconhece aí
um segundo traço a ser retido da hermenêutica de Rícoeur em proveito da !
exegese escriturística:
Todavia, o sentido de um texto não pode ser dado plenamente se não for
atualizado na vida dos autores que dele se apropriam. A partir de sua si-
!
I
tuação, esses são chamados a destacar as significações novas na linha do
sentido fundamental indicado pelo texto".

INOVAÇÃO SEMÂNTICA, MIMESE E REFIGURAÇÃO


NA METÁFORA E NA NARRATIVA22

Foi partícularmente na prova da metáfora (La Métaphore vive) e da


narrativa (Temps et récit) que Ricoeur verificou a pertinência dos critérios da
textualidade estabelecidos de maneira teórica em outros escritos (por exem-
plo, na lnterpretation Theory). Porque mesmo que a narrativa se refira a gê-
neros literários que se desenvolvem no nível de uma hermenêutica dos tex-
tos, enquanto a metáfora se refere a figuras de discurso que evoluem antes
no nível da frase, uma problemática comum liga de fato metáfora e narrati-
va. Aliás, Ricoeur fala muitas vezes da metáfora como de um texto em mi-
niatura. O que é comum à representação narrativa como à redescrição me-

20. É o que também sublinha a maioria dos autores: ver R. E. C. JOHNSTON, From an
Author - Oriented to a Text - Oriented Hermeneutic, Lovaina 1977,63-76; 1.Van Den
HENGEL, The Home of Meaning, 23-51; A. THOMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la
morale, p. 254.
21. L'Interprétation de la Bible dans l'Église, 67.
22. Ricoeur resume as aproximações que opera entre metáfora e narrativa em um artigo
,
sintético:"De l'interprétation" integrado na coletânea Du texte à l'action, Paris, 1986, 18-25.

1
1'<lllfON1ADOTEXTO BíBLICO E TRABALHO DLINTERI'RfTAÇÃO 33

tafórica é o poder propriamente "poético" de trazer ao discurso literal (coti-


diano, científico, em uma palavra, "positivo") um excedente de sentido, um
aumento icônico, e projetar esse sentido sobre o mundo, ao qual esse discur-
so nunca deíxou de referir-se.
No nível do sentido, quer se trate da atribuição impertinente da metá-
fora chamada "viva" ou do enredo da narrativa (o que Aristóteles chama de
"mythos", isso é, a seleção e a organização dos acontecimentos relatados a
fim de fazer deles uma história inteira, tendo começo, meio e fim), há nos
dois casos um fenômeno de inovação semântica, de criatividade pelo qual o
não-ainda-dito surge na linguagem: já uma nova pertinência da predicação
baseada em um desvio em relação à pertínência literal, já uma intriga fictí-
cia (no caso das narrativas de ficção) ou uma nova congruência histórica (no
caso da historiografia) baseada na articulação de ações heterogêneas. É o
objeto da primeira tese de DI, sobre a vertente da narratividade: "o enredo é
o paradigma de toda 'síntese do heterogêneo' no campo narrativo" (p. 176
[TI 5, p. 118]).
É também o primeiro dos recursos fornecidos pela narratividade a uma
teologia narrativa (ver TNT, p. 239 [TI 13, pp. 288-289]).
Além disso há igualmente, no caso da metáfora como da narrativa, uma
inteligibilidade em ação: tanto a que testemunha a competência de apreen-
der a emergência de uma figura metafórica, como a demonstrada pela apti-
dão em seguir uma intriga, inteligíbilídade comum à historiografia e à ficção
e que constitui a unidade do que Ricoeur chama de função narrativa. Para
Ricoeur, o estatuto epistemológico da inteligibilídade desenvolvida pelo ato
configuracional do enredo - e, acrescentaríamos, para a apreensão do sur-
gimento de uma metáfora viva - "mostra mais afinidade com a sabedoria
prática ou o julgamento moral do que com a razão teórica" (segunda tese de
DI, pp. 177-181 [TI 5, pp. 119-123J; e segunda contribuição à teologia
narrativa, ver TNT p. 239 [TI 13, p. 289-290]).
Enfim, para a metáfora como para o relato, há um funcionamento da
imaginação produtora que esquematiza (que sintetiza, no sentido kantiano)
figuras antes separadas: já uma nova figura de discurso faz ver a semelhança,
isto é, a aproxim~ção entre duas figuras semanticamente afastadas, já uma
intriga é composta (história) ou inventada (ficção) a partir de elementos
heterogêneos (circunstâncias, caracteres etc.).
Esse esquematismo metafórico ou narrativo - é a terceira tese de DI -
"é por sua vez constituído por uma história que participa de todas as carac-
terísticas de uma tradição (pp. 181-183 [TI 5, pp. 124-126]), isto é, oscila
34 lNTRODUÇÃO

entre a sedimentação de uma tipologia de paradigmas e a inovação de figu-


ras a cada vez inéditas:
Nessa dialética entre inovação e sedimentação, toda uma panóplia de solu-
ções se desdobra entre os dois pólos da repetição servil e do desvio calcu-
lado, potencialmente através de todos os graus da defonnação regulada (ter-
ceiro recurso da teologia narrativa, TNT p. 240 [TI 13, p. 289]).
No nível da referência, o que se perfila na teoria narrativa aparece ain-
da mais nitidamente no processo metafórico: a intriga narrativa imita a rea-
lidade das ações humanas (o que Aristóteles chama de mimesis). A história
reconstrói o passado como a ficção reinventa o mundo. Tanto uma como a
outra, por um jogo de referências cruzadas (ora mais "reais", ora mais "fictí-
cias"), contribuem juntamente a refigurar a temporalidade, no seio da qual
se desenvolve a ação dos homens. Essa refiguração (ou "mimese I1I") implica
manter em suspenso a referência implícita e imediata ao real que está incluída
na pré-compreensão do mundo próprio à ação (ou "mimese I") a fim de
poder projetar sobre esse mesmo mundo uma referência enriquecida pelas
configurações incluídas nos textos narrativos (ou "mimeses Il)23.
Assim, quando Ricoeur analisa o funcionamento da parábola evangéli-
ca em termos de uma forma narrativa (BH, pp. 29-30 [TI 6, pp. 133-134])
à qual se aplica o processo metafórico (ver ibid., pp. 30-32 [TI 6, pp. 134-
135]), recorre a essa concepção tensional da metáfora tomada como au-
mento icônico no plano do sentido, e como ficção eurística no plano da
referência (ver ibid., p. 31 [TI 6, p. 135])24.
O trabalho de interpretação, para Ricoeur, deve aplicar-se a recuperar
esse trabalho do texto poético e narrativo tanto no nível do sentido-confi-
guração quanto no da referência-t'refíguração".
Chega-se então à noção de "identidade dinâmica" do texto, que, como
ele diz na quarta tese de DI, emerge para a intersecção entre o mundo do
texto e o mundo do leitor. É no ato de leitura que a capacidade da intriga de
transfigurar a experiência é atualizada. O ato de leitura pode ter esse papel

23. Para a teoria da tríplice mimese em Ricoeur, ver notadamente S. H. CLARK, Paul
Ricoeur, Routledge, 1990, 167-179;A.THOMASSET, Paul Ricoeur. Unepoétique de la morale,
pp. 133-143; e o artigo de L. DORNISCH, "Ricoeur's Theory of Mírnêsis, Implications for
Literature and Theology", Joumal of Literature and Theology 3 (1989) 308-318.
24. Para a passagem preconizada por Ricoeur da concepção retórica da metáfora à
"InteractionTheory",ver entre outros S. H. CLARK, Paul Ricoeur, 128-131; K. J.V ANHOOZER,
Biblical Narrative in thePhilosophy ofPaul Ricoeur, Carnbrídge, 1990, 62-67; e A.THOMASSET
Paul Ricoeur Une poétique... , 256-257.
POUfONIA DO TlXIO BíBLICO LTRABALHQ O_L lNIlRPRnAçÃO 35

porque seu dinamismo próprio se enxerta sobre o do ato configuracional e


o leva a acabamento" CP. 183 [TI 5, pp. 126-127]); ver o quarto recurso da
teologia narrativa, TNT, pp. 240-241 [TI 13, pp. 289-291]. O trabalho de
interpretação corresponde ao trabalho do texto, prolonga-o e acaba-o.
Assim, toda teoria da leitura e da recepção, segundo Ricoeur, deve en-
globar, no problema da comunicação, o da referência:
O que é comunicado, além da significação interna de um texto, é o mundo
que projeta e o horizonte que constitui. Reciprocamente, o leitor recebe
essa pro-posição ou pro-jeto de mundo, segundo sua capacidade limitada
de responder, que por sua vez é definida segundo uma situação que é limi-
tada e que, no entanto, abre sobre um horizonte de mundo (Conclusão de
DI, p. 186 [TI 5, pp. 129]).
É essa concepção referencial, ou melhor, "refíguracíonal't", que permi-
te à Comissão Bíblica Pontifícia reconhecer que para Ricoeur:
O conhecimento bíblico não deve parar na linguagem; busca atingir a rea-
lidade de que fala o texto. A linguagem religiosa da Bíblia é uma lingua-
gem que visa a uma realidade transcendente e que, ao mesmo tempo, des-
perta a pessoa humana para a dimensão profunda de seu ser".

A BíBLIA COMO TEXTO-OBRA:


POLIFONIA DA NOMINAÇÃO DE DEUS

É esse o movimento que levou Rícoeur desde os problemas surgidos

I por ocasião da exegese bíblica da simbólica do mal, em direção do estabele-


cimento de uma metodologia hermenêutica original. Que acontece agora
quando se opera o movimento de retomo, isso é, quando essa nova metodo-
t logia filosófica se aplica à hermenêutica bíblica?

Ii
Para Ricoeur, não se trata da prioridade de uma das disciplinas, mas
antes de uma relação complexa de inclusão mútua. Indo do pólo filosófico
ao pólo bíblico, a interpretação das Escrituras parece de fato com uma apli-
cação regional da interpretação constituída pela hermenêutica filosófica. Mas

I 25. O vocabulário de Ricoeur evoluiu, e ele tem consciência disso (ver Réjlexion [aite,
73-78). No tempo.de La Métaphore vive, falava da referência metafórica para significar a
fratura da linguagem para além dela mesma. Com Temps et récit, usa antes o termo refi-

I
guração para significar a mediação realizada pelo ato de leitura entre a visão veritativa do
enunciado e a efetuação dessa visão fora do texto, essa "ativa reorganização de nosso ser-
no-mundo, levada pelo leitor, por sua vez convidado pelo texto a tornar-se leitor dele
i mesmo". (Réflexion [aite, 74)-
26. L'Interprétation de la Bible dans l'Église, 67.
36 INTRODUÇÃO

indo até ao fim da hermenêutica bíblica, essa então apresenta caracteres tão
originais, pelo fato da unicidade de seu referente, isso é, o inaudito da Reve-
lação, que tende a inverter a relação, subordinando a ela a hermenêutica
filosófica como seu próprio organon (instrumento).
Trata-se de uma inclusão recíproca entre as duas disciplinas - pela
It
qual, de uma parte, a hermenêutica bíblica "é considerada como uma pro-
víncia da hermenêutica textual e, de outra parte, a hermenêutica geral é
estabelecida como um organon para a interpretação de textos que são consi-
,
,
derados como os escritos fundadores de comunidades de leitura e de inter- t

I
pretação, que, por sua vez, derivam sua própria identidade histórica dessas
comunidades" (Reply to lhde, p. 72 [TI 2, pp. 90-91 ])27. Como isso sucede?
Examinemos a aplicação das categorias gerais do texto e a interpretação no
caso da Bíblia considerada como texto-obra.

Categoria "instância de discurso"

Se a teologia tem todo interesse pelas questões de hermenêutica tex-


tual, é que o problema central do cristianismo focaliza-se na interpretação
de um acontecimento de Palavra tornado sentido de uma Escritura (primei-
ra categoria "instância de discurso"; ver "La philosophíe et la spécifité du
langage religieux", pp. 15-16).

Categoria "obra literária"


A categoria estrutural de "forma" de discurso (segunda categoria tex-
tual, "obra e gênero literário"; ver ibid., pp. 16-20) permite distinguir nos
documentos bíblicos uma série de formas caracterizadas cada uma por sua
I
r
estrutura particular: as formas narrativa, profética, prescritíva, sapiencial e t
~
hinica. Esses gêneros não são simples quadros retóricos que abrigariam uma
mensagem oculta a ser extraída. Ao contrário, a cada forma do discurso cor-
responde um estilo próprio de confissão de fé (ver, por exemplo,
"Herméneutique. Les finalités de l'exégêse biblique", pp. 38-41): à estrutura
narrativa corresponde a figura de Jahvé, grande Ator da história de Israel; à
estrutura prescritiva, o doador da lei ... segundo o princípio: "o que se anuncia
(teologicamente) é cada vez qualificado pelas formas do anúncio" ("Hermé-
neutique de l'idée de Révelation", p. 31).

27. Ver A. THOMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, 255-256.


POLIfONiA DO TEXTO BíBliCO LTRABAlHODE INTERP.RETAÇÃO

As significações teológicas são, pois, indissociáveis dos diferentes mo-


dos discursivos entre os quais circula o nome de Deus. Ricoeur desenvolve
assim uma "gramática generativa" da linguagem da Escritura (ver BH, p. 70
[TI 6, p. 165])28, para mostrar como o conteúdo do discurso religioso é
determinado pela forma literária empregada.
A retórica bíblica que Ricoeur detalha dessa maneíra não se concebe
como uma fachada acidental que se devesse destruir a fim de extrair um
certo número de conceitos abstratos. Ao contrário, constitui uma "poética
geral" que nomeia a Deus através da interação feita de conflitos e de com-
plementaridade, entre as diversas formas do discurso bíblico. Com efeito,
cada tipo de confissão de fé está em relação de tensão com as outras mo-
dalidades, tanto no plano da nominação de Deus (ver "Nommer Dieu", pp.
495-500 e "Herméneutique. Les finalités de l'exegese biblique", pp. 39-41)
como no plano da configuração da temporalidade. Por exemplo, a dimen-
são do relato opõe-se à permanência da Torah e à dimensão escatológica
da profecia:
Nenhuma narração bíblica funciona símplesmente como narração. Recebe
não só sua significação mas, mesmo, sua significação religiosa original de
sua composição com outros modos de discurso. [... ] [Por sua conjunção in-
separável no seio da Torah] as leis transformam as narrações em instrução, e
as narrações transformam as leís em dom. Da mesma maneíra, somos tam-
bém levados a reconhecer que a tradição hebraica é impedida de tornar-se
uma ideologia mistíficadora, graças à relação dialética com a profecia. A
profecia, de um lado, revela no seio das próprias narrações o potencíal das
promessas não cumpridas que reorientam o relato do passado para o futu-
ro: as narrações, por outro lado, fornecem a antecipação escatológica da era
"nova" das imagens e dos modelos TNT, p. 245 [TT 13, pp. 294-295]).

Polifonia das formas literárias


A hermenêutica de Ricoeur permite assim fazer tocar maravilhosamente
a polifonía dessas formas em sua irredutibilidade e em seu entrecruzamento":

28. Ricoeur tira essa noção de N. CHOMSKY, Structures .I}'rltaxiques, Paris, 1969; e de
Aspeetsde la théorie syntaxique,Paris, 1971;e para o domínio bíblico,de E. GUETIGEMANNS,
"What is Generative Poetics?", Semeia 6 (1976) 1-21; e StudiaLinguistica Neotestamemaria,
Muníque, 1971.
29. Para essa ímportantíssima dimensão da hermenêutica bíblica de Ricoeur, ver nota-
damente: S.MIGLIASSO, La Théorie herméneutique de Paul Ricoeur et l'Herméneutique biblique,
86-121; O. MONGIN, Paul Ricoeur, 236-245; M. I. WALLACE, "Ricoeur; Rorty and the
Question of Revelation" em D. E. KLEMM-W. SCHWEIKER (eds.), Meanings ofTexts and
38 INTRODUÇÃO

A fim de sermos aptos a falar de um tempo bíblico, deveríamos levar em


conta todos os gêneros literários e não só o narratívo. Há um tempo íme-
morial das leis, um tempo proléptico da profecia, um tempo cotidiano da
sabedoria, um "agora" da lamentação e do louvor híníco. O tempo bíblico
- se é que essa expressão tem um significado - é feito do entrelaçamen-
to de todos esses valores temporais. A representação de um tempo linear e
I·•...•
irreversível é de todo inapropriada a um tal coro de vozes (MH, p. 281 [TI
lO, p. 264]). (Os grifos são nossos).
Trata-se absolutamente de preservar a rica variedade das qualidades
temporais, desdobradas pelos diversos gêneros literários contidos nas Escri-
turas canônicas e que uma certa concepção de "Heilsgeschuhte", pondo to-
dos os elementos lado a lado, do Gênesis ao Apocalipse, teve tendência de
nivelar. Ricoeur ataca com violência o que chama o "esquema cristão", esse
esquema cronológico universal da "história da salvação" que tende a "abolir
as peripécias, perigos, fracassos, rupturas e horrores da história em sua pro-
cura de uma visão de conjunto tranquilizadora fornecida pelo esquema pro-
videncial dessa grandiosa narração" (1NT, p. 238 [TI 13, p. 287]). Uma das
tarefas da teologia narrativa é libertar a rede multiforme dos textos bíblicos
dessa concepção unívoca da história da salvação",
O próprio Ricoeur se aplica a isso. Dá sugestivas aplicações da
polifonia à obra na trama escriturística, tanto para o Antigo Testa-
mento (relatos da criação"], estudo do Decálogo"; visões de Eze-

Aetíons: Questíoning Paul Rícoeur, Charlottesville-Londres, 1993, 234-254: ou A.


THüMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, 341-347.
30. É a principal crítica que Ricoeur faz a H. FREI, culpado, a seus olhos, em sua obra
The Eclipse 01Bíblícal Narrative A 5tudy in Eighteenth and Nineteenth Century Henneneutícs,
New Haven, 1974, de sobrepor ao grande intertexto das Escrituras um meta-relato em
que tudo é achatado em uma espécie de cronologia unitária e unificante: "Não se poderia
deplorar bastante os estragos que fizeram esses meta-relatos, em que tudo se põe lado a
lado misturando qualidades temporais diferentes. Há uma qualidade temporal própria aos
mitos, às lendas, ao que é histórico, que é anulada por essa espécie de achatamento"
(Herméneutique. Les finalités de exegese biblíque", 44, n. 16.
31. Por exemplo: "Sur l'exégese de Genese 1,1-2,4a", "Fides quaerens intellectum: an-
técédents bíblíques", em: Leetures 3. Aux frontieres de la philosophie, Paris, 1994, 327 -354,
aqui, 347-350; e o primeiro estudo de seu recente Penser la Bible, Paris, 1998, 57-102.
Abordamos menos a' essas leituras veterotestamentárias, tais como são apresentadas na
última extensa obra de Ricoeur (Penser la Bible), em razão de elas estarem situadas fora da
perspectiva dos ensaios reunidos neste nosso florilégio.
32. RICOEUR estuda o texto das dez parábolas em Penser la Bíble, 157-189. Evoca a
fórmula da auto-apresentação de Deus que abre o Decálogo "Eu sou Jahvé teu Deus" em
Fides quaerens íntellectum: antécédents bibliques?",333-336; e em "D'un Testament à l'autre:
essai d'herméneutique biblique", em D. MARGUERAT-J. ZUMSTEIN (eds.) La Mémoíre et le
~DUfQNIADOTE.XTO BÍBLICO L TRABALHO.. DE. INTERPRETAÇÃO 39

34
quiel", Livro de Job , Salmos" ou Cântico dos Cânticos", como também
para o Novo Testamento.

o gênero 11 relato-parábola 11

Muito particularmente, Ricoeur explicita como, nos relatos-parábolas,


a forma narrativa (ver BH, l" estudo, pp. 37-74 [TI 6, pp. 139-167]) sofre
uma torção metafórica extravagante (ver ibid. 2° estudo, pp. 75-106 [TI 6,
pp. 167-192]), sob a pressão de expressões-limite tais como o Reino de Deus
(ver BH, 3º estudo, pp. 107-146 [TI 6, pp. 191-221]Y.
Que é que, nas parábolas, nos leva a olhá-las como metáforas de uma
outra realidade diferente daquela de que falam aparentemente? Sua estru-
tura narrativa torna-as aptas a receber uma análise formal de tipo estrutural
(ver ibid., pp. 29-30) [TI 6, pp. 133-134]). Uma tensão se estabelece em
cada uma delas entre o ordinário de sua trama e o extraordinário de seu
desenlace (ver ibul. pp. 32-33 [TI 6, pp. 136-137]). O processo metafórico
do qual surge uma inovação semântica estende-se à composição mesma da
intriga em sua totalidade. Cada um dos relatos parabólicos é marcado por
um traço de extravagância que faz surgir o extraordinário na narração banal
à primeira vista (ver ibid., pp. 114-118 [TI 6, pp. 197-201]). Qual é o pro-

I
I
prietário pronto a pagar aos empregados da última hora o mesmo salário
que aos que trabalharam o dia inteiro (Mt 20,1-16)7 Qual é o grão minús-
culo susceptível de transformar-se em uma árvore em que os pássaros do

l céu vêm abrigar-se (Mt 13,21-32) (ver Listening Once More, p. 307 [TI 7, p.

Temps. Mélanges offerts à Pierre Bonnard, Genebra, 1991, 299-309, aqui, 299-303. Quanto
a Ezequiel, Jó, Salmos, Cânticos etc., ver Penser la Bible.
33. RICOEUR oferece notadamente uma reflexâo sobre a visão das ossadas ressequidas
em Ez 37, em Penser la Bible, 223-245.
34. RICOEUR se debruça por diversas vezes sobre o Livro de Jó, por exemplo, em
"Religion, athéisme et foi", em Le conflit des inierpretations, 431-457, aqui, 449-456; Le
Mal! Undéfi à la philosophie et à la théologie, Genebra, 1986,20-22; 43-44; e "Le Scandale
du mal", Esprit, 140/141 (1980) 57-63, aqui, 63.
35. Ver principalmente sua abordagem do Salmo 22 em Penser... , 279-304.
36. O estudo sobre o "Cântico" fecha a obra Penser la Bible, 411-457.
37. Nossa apresentação da forma parabólica em Ricoeur apóia-se antes de tudo em W
HARNISCH, Die Gleichniserzãhlungen lesu, Gôttingen, 1985, 125-167; F. PRAMMER, Die
philosophische Henneneutik Paul Ricoeurs in ihrer Bedeutungfür eine theologische Spraduheorie,
Innsbruck, 1988, 158-162; M. 1. RADEN, Das relative Absolute: dietheologische Henneneutik
PaulRicoeurs, Francfurt, 1988, 192-208; e A.THOMASSET, Paul Ricoeur, Une poétique de la
morale, 262-270.
r
l
40 INTRODUÇÃO

231-232])? Em que noite de núpcias se fechou jamais a porta no nariz das


damas de honra, tão descuidadas a ponto de não fazerem reserva de óleo
para suas lâmpadas (Mt 25,1-13) (ver ibid. [TI 7, p. 232])?
A força metafórica se revela assim em um momento de crise seguido
de uma resolução cômica ou trágica (ver ibid., pp. 305-306 [TI 7, pp. 227-
229]). É esse elemento insólito, exagerado, inesperado, mesmo escandaloso
que, por contraste com o realismo anódino da história, provoca a transgres-
são do relato, que de repente sinaliza para o Todo Outro (ver BH, pp. 121-
122 [TI 6, pp. 202-203]; "Nommer Dieu", p. 502).
Esse traço de extravagância, as parábolas partilham com outras moda-
lidades da linguagem da Escritura: as palavras escatológicas (como "o Reino
de Deus está muito próximo" [Mc 1,15] que subvertem a concepção crono-
lógica habitual, ou expressões proverbiais (como "quem perde sua vida por
causa de mim a encontrará" [Me 8,35] [ver Whoever, pp. 284-285 [TI 8,
pp. 233-235]) que se servem do paradoxo ou da hipérbole para desorientar
o senso comum (ver BH, pp. 109-114 [TI 6, pp. 193-197]).

A especificidade da linguagem religiosa


Essa subversão da linguagem que usam os relatos-parábolas, as fórmu-
las escatológicas e os provérbios é devida ao que Ricoeur chama expressões-
limite, que por uma lógica absurda impelem as formas do discurso ordinário
ou descritivo a seu limite para os transportar para o inaudito do Reino. Para
dar conta disso, Ricoeur refere-se ao estudo da linguagem teológica de I.
Ramsey em termos de "modelos" e de "qualífícadores'?", Da mesma forma
que um qualificador como ex nihilo suscita uma superação do modelo ex-
plicativo "criação", assim as expressões-limite fazem romper o quadro habi-
tual da linguagem nos modelos de redescrição da realidade que são as pará-
bolas, as proclamações escatológicas ou as fórmulas proverbiais.
São essas expressões-limite que determinam a especificidade da lingua-
gem religiosa no seio da função poética comum. E é o símbolo Reino de
Deus que serve de referente último a essas expressões-limite (ver BH, pp.
108-109 [TI 6, Pl? 192-194]; FPTN, p. 508, n. 14 [TI n, p. 275, nota 15]).
Na mesma linha, Ricoeur esboça uma modalidade de linguagem teo-
lógica constituída de conceitos-limite que salvaguardariam a tensão entre

38. Ver I. RAMSEY, Religious Language, New York, 1957, citado em BH, 118-120 [TI 6,
pp. 200-202].
POUEONIADO TEXTO BíBUCO.. LTRABAlHO DE INTERPRETAÇÃO .. 41

as apresentações metafóricas e figurativas do discurso bíblico e sua reto-


mada racional objetiva (ver BH, pp. 129-145 [TI 6, pp. 208-221], uma
espécie de "apresentação indireta do Incondicionado" (ver ibid., p. 143
[TT 6, p. 219])39.
É encorajado para ísso pelos traços presentes no seio mesmo do discur-
so escriturístico "de primeira ordem", de um discurso teológico de "segunda
ordem" (sumários confessionais, proposições reguladoras, doxologias.) (ver
7NT, pp. 246-248 [TI 13, pp. 297-299]), raízes constitutivas de um "pensar
bíblico" (ver La Critíque et la Convíetíon, p. 215).
Como toda linguagem poética, a linguagem religiosa provoca uma refi-
guração do real. As expressões-limite que fazem sua característica suscitam
uma forma de ruptura na concepção costumeira da existência que sacode o
leitor em seu projeto de fazer de sua vida um todo coerente (o ato "de
autoglorifícação" ou a "salvação pelas obras" de que fala S. Paulo, ver BH, p.
125 [TI 6, pp. 205]). Elas levam a uma reorientação pela desoríentação por
causa da radicalidade que veiculam (ver Lísteníng Once More, pp. 306-307
[TI 7, pp. 230-232]). Assim, às expressões-limite do discurso bíblico cor-
respondem experiências-limite (ver Jaspers) que tocam, ao mesmo tempo,
"a preocupação última da existência em sua verticalidade (ver Barth) e em
seu paradoxo (ver Kierkegaard) como à espessura toda da experíência hu-
mana comum (ver BH, p. 128 [TI 6, pp. 207-208]). A linguagem religiosa
funciona então à maneira de um modelo de desvelamento que revela os
aspectos insuspeitados da realidade, abre para a dimensão transcendente da
existência humana (ver BH, pp. 125-126 [TI 6, pp. 205-206]) e provoca a
um agir renovado (ver Lísteníng Once More, p. 307 [TI 7, pp. 231-232];
Whoever, p. 287 [TI 8, pp. 237-238]).

Um jogo de intertextualidade
Além disso, as parábolas entram em interação umas com as outras",
em efeitos de metaforização (chamado aqui parabolização) mútua.

39. Ver A. THOMASSET, Paul Ricoeur, Une poétique de la morale, 278-279.


40. Em sua contribuição intitulada "La Bible et l'imagination", Ricoeur estuda os efei-
tos da íntersignífícação entre as parábolas dos vinhateiros assassinos que desenha o percur-
so "decrescente do corpo" e a do semeador que figura o crescimento da semente: a apro-
ximação dos dois relatos parábolas "não convida a dizer que, para que a palavra cresça, é
preciso que o corpo decresça? Tal seria a grande metáfora que engloba as duas parábolas"
(ibid. p. 354).
42 iNTRODUÇÃO

o processo de parabolização" estende-se ao conjunto do evangelho


porque as parábolas são pronunciadas pelo "herói" de um relato englobante
no qual estão encaixadas (ver BH, pp. 103-106 [TI 6, pp. 189-192]; "La
Bible et l'imagination" pp. 344-345). Assim se estabelece uma rede de in-
tersignificação entre o personagem principal da narração evangélica e os
personagens dos relatos-parábolas encaixados. Aquele que dá as parábolas é
o mesmo cuja história o Evangelho conta. É por isso que se fala das parábo-
las de Jesus. E também das parábolas do crucificado. Porque, entre as diver-
sas "ocasiões de narração" que a exegese histórico-critica permite destacar
no seio dos testemunhos primitivos autênticos (ao lado dos anúncios da
vinda do Reino (ver FP7N, pp. 505-507 [TI 11, pp. 271-273J) e as contro-
vérsias de Jesus com os chefes do povo por causa de sua presença junto aos
pecadores e publicanos (ver ibid., pp. 507-510 [TI 11, pp. 274-276]), Ri-
coeur concorda com a opinião de N. Perrin para afirmar que é sobretudo
por causa da Paixão que o evangelho se desenvolveu sob forma de relato
(ver ibid., pp. 510-512 [TI 11, pp. 276-278J)42. Aquele que dá a parábola
dos vinhateiros assassinos é o mesmo de quem o evangelho narra a história
do sofrimento. A transferência metafórica assim esclarecida é guiada pelas
expressões-enigmas, tais como "Reino de Deus" e pelas expressões querig-
máticas da proclamação primitiva, como "Cristo" e "Senhor" que orientam
o conjunto do evangelho. Todas essas expressões conduzem o jogo da inter-
textualidade e acabam o processo da parabolização. Como diz Jean Ladriê-
re, constituem "o horizonte de estruturação" do simbolismo religioso toma-
do em sua totalidade".

A narrativa interpretativa
Em uma perspectiva análoga, Ricoeur mostra como a estrutura narrati-
va do texto bíblico traduz sua visão da história e revela sua função teológi-
ca". Enquanto a historiografia grega de Heródoto ou de 'Iucídídes aplica-se

41. Nesse último ensaio Ricoeur refere-se às pesquisas de I. ALMEIDA (L'Opératívité


sémantiquedes récus-paraboles: Sémiotique narrative et textuelle. Herméneutique du langage
religieux, Paris, 1978) e-aos modelos semióticos de A. 1. GRElMAS [Êlérnents d'une grammaire
narrative", em Du senso Essais sémiotíques, Paris 1970).
42. Ver a obra de N. PERRIN em que se apóia o ensaio: FPTN:RediscoveringThe Teaching
01 Jesus, Londres-New York, 1967.
43.1. LADRIÉRE, "Le discours théologique et le syrnbole", Revuedessciences religieuses,
49 (I975), 116-141 citado por RICOEUR em "La Bible et I'ímagination", 359.
44. Ver A.THOMASSET, Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, 309-310.
POLJEONIADO TEXIOBíBUCO E.TRABAlHO. DE INTERPRETAÇÃO. 43

em distinguir as forças naturais e divinas, a fim de chegar a estabelecer as


causas e as responsabilidades humanas no desenrolar dos fatos históricos
(ver MH, p. 276 [TI 10, p. 255]), os escritores hebraicos relêem a história
dos povos à luz de suas relações com Deus.
A identidade de Israel é de todo histórica, mas a visão dessa história é
antes de tudo teológica, da ordem de uma história da salvação (ver MH, p.
280 [TI 10, pp. 261-262]).
Como expõe admiravelmente R. Alter", a composição literária das Es-
crituras põe em jogo a tensão entre a inevitabilidade do desígnio divino e a
recalcitrância das reações humanas. A fidelidade de Deus a seu projeto "ine-
lutável" só se concretiza através da contingência das resistências do homem,
seja nos relatos dramáticos do Antigo Testamento (José e seus irmãos, ascen-
são de Davi ao trono real) seja nas Paixões neotestamentárias (ver MH, p.
281 [TI 10, pp. 264-265]; "Le récit interprétatif", pp. 18-20).
Assim Ricoeur estabelece, a partir das narrativas da Paixão segundo
Marcos, como os evangelhos afirmam a identidade do Jesus da história e do
Cristo da fé em sua apresentação como narrativas interpretativas, isto é, nar-
rativas com forte teor querigmático, ou como um querigma narrado, como
disse A. Thomasset: "A identidade de Jesus é configurada por uma narrativa
ficcional que interpreta cristologicamente os eventos históricos?" (ver: "Hér-
meneutique. Les finalités de l'exégese biblique", pp. 36-38; "Le récit inter
prétatif", pp. 20-23).

o encerramento do Cânon
As oposições no seio das diversas modalidades do discurso, contribuem
para formar, através do jogo das tensões e das resoluções, a figura global de
um sentido em que o encerramento [clõture] do Cânon pode então aparecer
como um ato que estrutura a configuração final, no seio da qual cada forma
pode demonstrar seu sentido. Ricoeur fala da plurivocidade da Revelação
no seio da Bíblia, considerada como um grande intertexto (ou "Grande Có-
digo" na terminologia de N. Frye) (ver "Herméneutique: les finalités de
l' exégêse biblíque", pp. 16_18)47.

45. R. ALTER, The Art of BiblicalNarrative, New York, 1983, citado por Ricoeur em
MH, p. 280 [TI 10, p. 262] e no "Récit interprétatíf", p. 18.
46. Paul Ricoeur. Une poétique de la morale, 310.
47. A obra, já citada de FRYE é Le Grand Code. La Bible et la littérature (ver sobre o tema:
A. THOMASSET, PaulRicoeur. UnePoétique..., 333-334; e o. MONGIN, PaulRicoeur, 239-236).
44 INTRODUÇÃO

Assim, a obra de interpretação, antes de ser um ato do leitor, já é na


verdade uma operação hermenêutica interna ao texto mesmo:
A Bíblia, assim lida, toma-se um grande intertexto vivo, que é o lugar, o
espaço de um trabalho do texto sobre ele mesmo. Nosso ato de leitura
quer ser a apreensão, pela imaginação reconstrutora, desse trabalho do tex-
to sobre ele mesmo" ("Tempo bíblico", p. 27).
É nesse sentido que a Comissão Bíblica Pontifícia sublinha que para a
hermenêutica de Rícoeur, a linguagem religiosa da Bíblia é uma linguagem
simbólica que "dá a pensar?", uma linguagem cujas riquezas de sentido nun-
ca se cessa de descobrir".

Categoria "escritura"
A dupla palavra-escritura (3ª categoria textual "escritura", ver "Hermé-
neutique phílosophique et herméneutique biblíque", p. 220) encontra igual-
mente na literatura bíblica uma aplicação paradigmática, pois o projeto
mesmo de uma teologia da Palavra corre o risco de elevar a Palavra acima da
Escritura (ver ibíd.)so. Ora, a palavra de Jesus, como a da Igreja, são insepa-
ráveis da Escritura anterior que interpretam: de uma parte, o 1Q Testamento,
e de outra o próprio evangelho. A nova pregação é, pois, desde o começo,
uma exegese da Escritura, antes de inscrever-se, por sua vez, em um novo
testemunho escrito. Essa cadeia "escritura-palavra-escritura" é a condição de
possibilidade de uma tradição no sentido fundamental de transmissão de
uma mensagem. Colocar por escrito introduz o distanciamento pelo qual a
"coisa" do texto fica desligada de elementos contingentes que são o autor, a
situação inicial e os primeiros destinatários.

A Triaâe rabínica
Sob influência de suas próprias pesquisas de Temps et récit, como tam-
bém da obra de Paul Beauchamp, Ricoeur faz muitas vezes menção, em suas
publicações mais recentes", à Triade dos rabinos, (isso é, à divisão tripartida

48. A Comissão parafraseia aqui o título do artigo de Ricoeur, integrado no final de


Symbolíque du mal: "Le symbole donne à penser", 323-332.
49. lllnterprétation de la Bible dans l'Église, 67.
50. Foí esse o risco em que íncorreram as teologías da Palavra de Fuchs ou Ebeling (ver
"Foi et langage, Ebeling", 45).
51. Por exemplo, em "Temps biblique","Expérience et langage dans le discours relígieux",'
"L'enchevêtrement de la voix et de l'écrit dans le discours biblíque", "Cornme si la Bíble
POUFONIADOTEXTO BíBUCO E.. TRABALHODE JNTERPRETAÇÃO 45

do Primeiro Testamento em Torah/Profetas/Sabedoria e outros Escritos). A


cada uma dessas "três escrituras" veterotestamentárias corresponde um tipo
de relação à voz que o engendra e à temporalidade que desenvolve. Ricoeur
expõe a relação complexa que existe entre o Imemorial da Lei, dada por
Javé, grande Ator da História da Libertação de Israel, o futuro ameaçador
dos oráculos proféticos e o eterno presente da Sabedoria".

Um estruturalismo teleo/ógico
Em seus últimos escritos sobre as pesquisas de P. Beauchamp, Ricoeur
sublinha, ao lado do procedimento de reduplicação ou "deuterose" - deu-
terose da Lei no Deuteronômio, da profecia no segundo Isaias, da meditação
sapiencial na Sabedoria personificada - o fenômeno da junção dos três gê-
neros em sua orientação comum para o último, para o "teles" (ver "'Comme
si la Bible n'existait que lue .. .' Exorde", pp. 24-27). Cada um deles é traba-
lhado por uma dinâmica interna que o leva para um cumprimento, o que
Ricoeur; com Beauchamp, chama "dimensão escatológica" das três espécies
de escritos (ibid., p. 26).
Rícoeur adota perfeitamente esse "estruturalismo resolutamente teleoló-
gico" de Beauchamp que faz seu (ver ibid., p. 25): de uma parte, a leitura
estrutural das três escrituras não exclui a diversidade das qualidades tempo-
rais de cada uma delas, mas mostra sua articulação no mesmo espaço textual:
Assim, a sincronia no seio do mesmo livro não é dissociada da diacronia
que põe a Lei antes dos Profetas e recapitula essas duas escrituras na ter-
ceira, que finalmente funde as duas primeiras em um só livro com aquilo
que os Sábios acrescentam ("'Comme si Ia Bible .. .", p. 25).

Por outro lado, a dimensão teleológica permite escapar à busca sem


fim das origens dos textos, uma "teleología do cumprimento, diametralmen-
te oposta à orientação arqueológica da exegese fascinada pelos começos
(ibid.).

n' existait que lue"... "Exorde" ou "Accomplír les Écritures selon Paul Beauchamp", L'un et
l'Autre Testament, t. 11. Desenvolvemos menos essa análise porque nenhum dos artigos de
nossa antologia a ela alude. Ricoeur descobriu nessa divisão segundo as três escrituras uma
espécie de corretivo ao estudo anterior das modalidades discursivas, como ele mesmo
afirma: "encontrei em Paul BEAUCHAMP, em L'Un et l'Autre Testament, uma tipologia que
evita a dispersão finalmente ilimitada à qual não resiste a análise por gêneros literários"
("Experience et language dans le discours religieux, 29).
52. Ver o. MONGIN, PaulRicoem; 245-248 e THOMASSET, op. cito 347-358.
46 ....INTRODUÇÃO

Além disso, Ricoeur retoma a tese de Beauchamp que faz do Apoca-


lipse, em seu caráter enigmático de abertura-fechamento não um gênero de
escrito suplementar, mas o gênero do "telas", a "junção dos três outros fora
deles mesmos": "Por sua posição, de certo modo fora de lugar, o Apocalipse
se faz lugar em oco para o Novo Testamento, tornado o suplemento por
excelência" (ibid.).
O conjunto dessas forças que emanam do texto levam o Primeiro Tes-
tamento para fora de si mesmo, para o seu outro, o Outro Testamento. Na
juntura dos dois está a figura de Cristo, reconhecido por Beauchamp como
pelos Padres "em sua postura de barqueiro [passeur]" (''Accomplir les Écritures
selon Paul Beauchamp, L'Un et l'Autre Testament, t. Il", p. 7). As Escrituras
cristãs nascem dessa passagem incessante, que vale nos dois sentidos: o cum-
primento do antigo no novo Testamento não cessa de ocorrer, enquanto a
"estrutura do discurso da fé no Novo Testamento" revela a do Antigo
("'Comme si la Bible .. .", p. 28). Passagem e troca de um para o outro Tes-
tamento, cumprimento que só se concebe como uma ação produtora:
Se o poder de engendrar é o que dá sentido aos textos, a tese fundadora da
hermenêutica bíblica, segundo a qual o Novo Testamento é o cumprimen-
to do Antigo, só se compreende se o acento é posto no verbo "cumprir",
não no resultado (ibid., p. 21)53.

Categoria "mundo do texto": a nominação de Deus


A "coisa" ou o "mundo" do texto (4ª categoria textual) é a categoria
central, tanto para a hermenêutica filosófica quanto para a bíblica. Com
efeito, é sobre ela que se articulam a objetivação pela estrutura como tam-
bém o distanciamento pela escritura. É em seu encontro com o mundo do
leitor que se produz o ato de leitura e é, enfim, sobre ela que se articulará a
compreensão de si na apropriação do texto. É pela distância que estabelece
o mundo do texto, da metáfora, do relato de ficção ou do escrito bíblico, em
relação à realidade cotidiana visada pela linguagem ordinária, que pode li-
bertar-se uma referência de outro tipo, que enriquece o mundo habitual
com um excedente de sentido inacessível ao discurso literal.
A objetividade da "coisa" do texto bíblico, sua alteridade, sua estranhe-
za mesma, figuram a anterioridade da Palavra que ali se revela. Como diz T.

53. Teses desenvolvidas porTHOMASSET, op. cit., 359-365, em um parágrafo intitulado


"Le livre fermé et ouvert",
POUEONJADOTEXTO BíBLICO LTRABALHO. DE .INTERPRETAÇAo_ 47

Nkeramihigo: "O sentido e a 'coisa' do texto dispõem o homem para que,


por sua vez, reconheça sua transcendência ao reconhecer sua solicitação'?'.
O mundo do texto escriturístico põe à distância o querigma que nos
precede. Desse modo, uma autêntica interpretação consiste primeiro em aco-
lher um sentido dado pela Revelação.
É justamente aplicando à exegese bíblica a categoria central do mundo
do texto que vai afirmar-se a reversão pela qual a hermenêutica bíblica não
é mais somente uma aplicação regional da hermenêutica filosófica, mas an-
tes uma disciplina única cuja teoria filosófica de interpretação aparece en-
tão apenas como instrumento. Com efeito, é porque os textos da revelação
bíblica nomeiam Deus e Cristo que os referentes últimos funcionam ao mes-
mo tempo como poder infinito de reunião, ponto de fuga e indício de in-
completude de todas as formas parciais do discurso, e, portanto, abrem um
horizonte que escapa ao fechamento de todo discurso humano e a lingua-
gem religiosa se distingue de todas as outras linguagens.
No famoso texto de Êxodo 3,14a, "Eu sou o que sou", a fórmula que
desvela o nome de Deus tanto preserva seu incógnito quanto o revela (ver
1NT, p. 243 [TI 13, p. 293])55.
É por seu referente único que se distingue a hermenêutica bíblica: o
nome de Deus, a palavra Cristo, o acontecimento da Paixão/Ressurreição de
Cristo que se acrescenta à confissão da Onipotência, dominante no Primei-
ro Testamento, a Todo-Fraqueza celebrada pela Nova Aliança (ver "Nommer
Dieu", p. 504). O nome de Cristo confere à palavra "Deus" sua plena densi-
dade histórica em referência ao amor sacrificai mais forte do que a morte
(ver "Herméneutique philosophique et herméneutique biblíque", p. 129; "La
philosophie et la spécificité du langage religieux", p. 24; "D'un Testament à
l'autre: essai d'herméneutique biblique", pp. 306-307).
Se, pois, o texto das Escrituras manifesta as possibilidades de ser-no-
mundo e ser-no-tempo como as mais essenciais ao homem, é porque proje-
ta diante do leitor o mundo novo, o ser novo, o novo nascimento, o Reino
de Deus de que fala a Revelação. Assim, o referente da Bíblia tem como
duas "vertentes": o Nome de Deus, os acontecimentos da história de Israel,
o Reino, o acontecimento/sentido da Ressurreição de Cristo, o mundo "ob-

54. L'Homme et la Transcendance selon Paul Ricoeur, 206.


55. A inefabilidade do nome de Deus é um tema constante em Ricoeur: a este tema ele
dedica um dos estudos de Penser la Bible (p. 335-371) e numerosos outros desenvolvimen-
tos: "Nommcr Dieu", 501, "Fides quaerens intellectum: antécédents bibliques?", 327 -343;
e "D'un testament à l'autre: essai d'hermeneutique biblique", 300-303.
48 INTRODUÇÃO

jetivo" do texto que visa primeiro a compreensão; por sua vez, essa vertente
objetiva, pelo ato da leitura, é capaz de transformar a existência "subjetiva"
do leitor na profundeza de seu ser, de refígurar o sentido da história huma-
na e a realidade toda inteira.

SEGUINDO O ARCO HERMENÊUTICa:


FINALIDADES E MÉTODOS DA EXEGESE BíBLICA

Para além de Bultmann: as tarefas da exegese bíblica


A essa nominação plural de Deus no texto das Escrituras corresponde
o papel criativo do leitor da Escritura. Foi por ocasião de sua discussão do
empreendimento bultmaniano, cujo sinal de partida foi dado por seu Prefá-
cio ao Jesus do exegeta alemão, que Ricoeur desenhou os contornos de seu
próprio programa hermenêutico e esboçou a maior parte de suas reflexões
posteriores sobre a interpretação da Bíblia.
Embora concorde com Bultmann no cuidado de relacionar a significação
dos textos bíblicos com o universo moderno, dominado pela mentalidade cien-
tífica e, assim, permitir à Escritura esclarecer a experiência humana, Ricoeur
recusa a rapidez com que Bultmann salta o longo caminho da interpretação
textual para passar imediatamente dos textos a seu conteúdo existencial.
Criticando a desmitologização preconizada por Bultmann, Ricoeur con-
dena sua distinção ingênua entre as expressões míticas objetivantes e as for-
mulações não míticas da proclamação cristã. Para essas últimas, Bultmann não
propõe nenhuma teoria de interpretação e chega diretamente à adesão da fé.
Ora, a decisão existencial só pode ser tomada autenticamente se o processo
de interpretação e os meandros explicativos exigidos pela linguagem da Escri-
tura tiverem permitido aos textos desdobrarem fielmente sua signíficação".
Quanto a seu recurso à filosofia heideggeriana, de si não ilegítimo, Ri-
coeur retém que Bultmann não foi de fato bastante longe em sua retomada
filosófica, não prestando atenção à linguagem do último Heidegger. Senão,
Bultmann teria podido desenvolver essa instância crítica da linguagem que lhe
faz tão cruelmente falta (ver Rep!y to Stewart, pp. 448-449 [TI 3, p. 99]). L.
Poland justifica assim sua preferência por Ricoeur contra Bultmann:
Demonstrando que é o referente dos escritos bíblicos engendrado e proje-
tado pelo seu sentido que é o objeto dos textos, articulando esse referente

56. Ver W. G. JEANROND, Introduetion à l'herméneutique théologique, 204-206.


l'oUfONIADO.TEXTO. BíBLICO E. TRABALHO DE. INTERPRETAÇÃO. . 49

em termos de função poética da linguagem, Ricoeur preserva a ênfase de


Bultmann sobre a matéria dos textos embora adiando, ao mesmo tempo, o
momento da decisão e da apropriação, e a necessidade de uma "tradução"
nas categorias filosóficas e teológicas".

A INTERPRETAÇÃO: UM PROLONGAMENTO DO TRABALHO


DO TEXTO EM IMAGINAÇÃO E SIMPATIA

Antes de ser obra dos leitores, a interpretação segundo Ricoeur é, pri-


meiro, feita pelo texto: uma interpretação no texto e pelo texto. O trabalho
dos intérpretes consiste, antes de tudo, em desvelar esse dinamismo do tex-
to, depois, em prolongá-lo "em imaginação e em simpatia" (ver "Herméneu-
tique. Les fínalítés de l'exégese biblique", p. 34) para sua nova situação. Ou,
para retomar os termos do documento romano que destaca os pontos fortes
da concepção de Ricoeur: "A partir de sua situação os leitores são convida-
dos a destacar situações novas na linha do sentido fundamental indicado
pelo texto'?".
A mesma Declaração acrescenta (p. 67 e 68), ao falar da utilidade de
teorias contemporâneas como a de Ricoeur para a interpretação da Escritura:
A necessidade de uma hermenêutica, ou seja de uma interpretação no hoje
de nosso mundo, encontra um fundamento na própria Bíblia e na história
de sua interpretação. O conjunto dos escritos do Antigo e do Novo Testa-
mento apresenta-se como produto de um longo processo de interpretação
dos acontecimentos fundadores, em união com a vida das comunidades.
Na tradição eclesíal, os primeiros intérpretes da Escritura, os Padres da Igreja,
consideravam que sua exegese dos textos só era completa quando destaca-
vam seu sentido para os cristãos em seu tempo e em sua situação. Só há
fidelidade ao texto bíblico na medida em que se tenta reencontrar, no co-
ração de sua formulação, a realidade da fé que exprimem e que se religue
essa à experiência dos fiéis de nosso mundo.
Esse "estruturalismo intertextual" (Ver "Temps biblíque", pp. 26-27):
"Comme si la Bible n'exístait que lue... Exorde", p. 25), desenvolvido por
Ricoeur sob influência de Beauchamp, provém da sensibilidade pelas tradi-
ções em obra nos textos canônicos. Os métodos histórico-críticos, assim como
mostra N. Perrin, permitem esclarecer as "ocasiões" históricas prováveis que
na continuação produziram as diversas tradições narrativas e literárias (o "Suz

57. L. POLAND, Literary Criticism and Biblical Hermeneutics, 194.


58. COMMISSION BIBLlQUE PONTIFlCALE, L'interpretation de la Bible dan's l'Église, 67.
50 ...JNTRODUÇÃO

ím Leben"; ver FPTN, p. 504 [TI l l, pp. 270-271]). Mas é agora segundo sua
inscrição no todo intertextual das Escrituras que os acontecimentos fundado-
res e as tradições que suscitaram encontram sua significação ("Sitz im Wort").
Assim, o povo de Israel adquiriu uma identidade histórica pela releitu-
ra sucessiva das intervenções salvíficas de Javé na história e nas tradições
esparsas que em tomo delas se organizaram. Esse trabalho de reinterpreta-
ção no seio do Cânon é normativo para a tarefa hermenêutica ao longo dos
séculos. Pertencemos à mesma tradição que presidiu à constituição dos tex-
tos, e uma leitura da Escritura que se pretende respeitosa deve encadear as
três historicidades: a "dos acontecimentos fundadores" (ou tempo oculto), a
da "interpretação viva pelos escritores sagrados" (a tradição) e a do trabalho
da "compreensão" ("historicidade da hermenêutica"). O trabalho da herme-
nêutica é a "repetição" do trabalho que presidiu à elaboração das tradições
do fundo bíblico ("Structure et herméneutique" em Le conflit de interpréta-
tions, pp. 48-51 Y9.
É sobre essa mesma intuição que se enxertou, segundo Ricoeur, o tra-
balho da exegese patrística segundo os quatro sentidos explicitados pelo P.
de Lubac'". A exegese contemporânea não deve renunciar à consciência crí-
tica moderna da distância cultural e temporal que nos separa da linguagem
escriturística e dos acontecimentos da salvação. Contudo, pode provocar no-
vas experiências de pertença ao mundo bíblico se se inscrever na tempora-
lidade exigida pelas Escrituras": uma temporalidade complexa, oriunda da
fé histórica (a história da salvação), articulada por um núcleo querigmático
(a Lei e as Confissões de fé), rompida pela palavra profética (o hoje do
oráculo), restabilizada ironicamente pela sapiência (a permanência cíclica
dos escritos sapienciais), desdobrada em um quadro cultual (o fazer memó-
ria da anamnese; ver Memory, p. 289 [TI 9, pp. 239-240]) e aberta a um
cumprimento (o futuro da escatologia e da Apocalíptica) (ver TNT, pp. 245-

59. Ver K. STOCK, "Kerygma als Thema der Philosophie", Evangelische Theologie 35
(1975) 275-281, aqui, 275-276.
60. Ricoeur remete à obra prima de Henri de LUBAC, Exégêse médiéuale. Les quatre sens
de l'Êcriture, Paris, 1959-1964 (ver, especialmente, "Accomplir les Écritures selon Paul
Beauchamp, L'un et l'Autre Testament, t. 11 p. 8).
61. É a tese da excelente contribuição de A. M. PELLETIER que prolonga as reflexões
de Ricoeur sobre a temporalidade bíblica destacando sobretudo as dimensões da anamne-
se e da escatologia (ver "L'exégese bíblique sous l'inspiration de l'herméneutique. Un
acces réouvert à la temporalité bíblique", em 1. GREISCH - R. KEARNEY (dirs.). Paul Ri-
coem: Les métamorphoses de la raison herméneutique, Paris, 1991,297-309, aqui, 307-309.
POl.JEONIADQ TEXTO BíBUCQ.E TRABALHO DE INTERPRETAÇÃO 51

246 [TI 13, pp. 293-296]; "Temps biblique" pp. 26-34; "Comme si la Bíble
n'existait que lue ... Exorde", pp. 24-25).
Essa atenção às dimensões não lineares da temporalidade bíblica" per-
mite evitar uma confiança falsa e ingênua no poder que teria a exposição
linear da intriga da narrativa para tomar plenamente inteligíveis as aporias
da existência (ver TNT, pp. 237-238 [TI 13, pp. 286-288]). Como dar con-
ta do intolerável sofrimento do justo ou da incompreensão diante do misté-
rio do mal senão pelo grito de revolta de Jó ou pela lamentação do salmista
(ver Memory, p. 291 [TI 9, pp. 241-242])63. O leitor contemporâneo, cons-
ciente da opacidade com que a realidade complexa da fé bíblica está ex-
pressa, é levado a uma segunda ingenuidade pós-crítica que lhe permite fa-
zer uma experiência de fé "homóloga" à dos escritores bíblicos e dos teste-
munhas da Tradição, que leva plenamente em conta a mesma natureza apo-
rética de nosso mundo "pós-moderno':".
A verdade do regime hermenêutico cristão está sempre por fazer. O
trabalho de interpretação consiste menos em restituir um sentido originário
do que em reativar o dizer do texto a fim de produzir na direção mesma
aberta pelas Escrituras novos textos, isso é, novas proposições que corres-
pondam à situação contemporânea e "novas práticas que permitam a emer-
gência de um novo mundo?".

Convicção e crítica, exegese científica e leitura confessante


Para Ricoeur, a hermenêutica bíblica alia necessariamente a convicção à
crítica. Em vez de recusar o círculo hermenêutico em virtude de ilusória ob-
jetividade herdada do positivismo, deve entrar resolutamente nele, a fim de
tomá-lo produtivo. Aderindo ao fato de que a Bíblia nomeia Deus, o leitor
entra na inteligência de uma rede intertextual das Escrituras (da convicção à
crítica); aceitando o desvio dos métodos objetivantes, transforma a proposi-

62. Como sublinha fortemente M. L WALLACE, p. ex., em sua introdução à coletânea


de textos de RICOEUR, Figuring the Sacred, 25-26.
63. São os mesmos registros de indignação e de lamento a que recorreu a memória do
sofrimento sobretudo quando se trata de acontecimentos únicos no horror como o Holo-
causto (ver Memory, 290-291 [TI 9, pp. 240-242]).
64. Nesse contexto, Wallace parte do "pós-estruturalismo" de Ricoeur (Figuring the
Sacred, 25). Em sua recente Introdução a uma outra antologia de ensaios de Ricoeur,
Re/lexion and Imagination (21-30), M. 1. VALDES usa a mesma noção para caracterizar a
filosofia ricoeuriana.
65. L. M. CHAUVET, Symbole et sacrement, Paris, 1982, 73.
52 INTRODUÇÃO

ção de sentido em experiência de verdade e enriquece sua fé (da critica à


convicção). Chega assim a articular em um mesmo arco hermenêutico os três
tempos da pré-compreensão, da explicação e da compreensão-apropriação.
Em sua hermenêutica filosófica, Ricoeur opõe-se absolutamente ao corte
estabelecido por Dilthey entre a "explicação" reservada à objetividade das
ciências naturais e a "compreensão" válida para o domínio das ciências huma-
nas (ver "Les tâches de l'herméneutique", p. 185). Igualmente rejeita o an-
timetodologismo da hermenêutica ontológica de Gadamer (ver ibid., p. 197)66.
Segundo ele, todo ato de interpretação, inclusive para a Escritura, deve arti-
cular dialeticamente a explicação e a compreensão em um só e mesmo arco
hermenêutico.
Ricoeur renova a concepção clássica de circulo hermenêutico ou, an-
tes, dos circulos hermenêuticos (Ver La Critique et la Conviction, pp. 219-
220: "L'enchevêtrement de la voix et de l'écrit dans le díscours bíblique", pp.
312-313 e 324-325). Para chegar à inteligência das Escrituras não há que
sair dos circulos hermenêuticos por considerá-los viciosos. Convém antes
penetrar neles resolutamente, sabendo que nenhum ato interpretativo, seja
qual for, pode abstrair a subjetividade do intérprete. É sempre de alguma
parte que se eleva a interpretação, e Ricoeur faz, pois, a aposta do sentido e
da fé. Adotando a postura do crente, insere-se na comunidade que confessa
sua dependência para com a anterioridade de uma palavra da qual as Escri-
turas, consideradas como canônicas, levam o traço autêntico (primeira eta-
pa: pré-compreensão). Essa relação à Comunidade de leitura e de interpre-
tação constitui aliás um dos traços que especificam os relatos bíblicos com
relação aos relatos profanos (ver TNT, p. 243 [TI 13, pp. 293-294]) ou os
textos religiosos comparados com os textos filosóficos ou literários (ver Reply
to lhde, p. 72 [TI 2, p. 91)): é a Comunidade que atribui aos textos conside-
rados como inspirados seu estatuto de escritos fundadores e que, em troca,
recebe desses mesmos textos sua própria identidade histórica (ver Sacred
Text, p. 272 [TI 12, pp. 280-281)).
Mas a leitura confessante não pode dispensar uma exegese científica,
por causa das características "objetivas" do texto da Revelação. Ao contrário,
explicando mais, a leitura crente compreende e crê melhor (segunda etapa:
os procedimentos explicativos). Nesse ponto, não se deve descartar nenhum
método; trata-se antes de aplicar-se a fazer convergir suas visões, notada-
mente articulando as abordagens arqueológicas estruturais e te1eológicas (ver:

66. Ver W. G. JEANRüND, Introduction à l'herméneutique théologique, 102-103.


I'OLIJONIA.. OO ..TlXTO BíBl.lCO .LTRABALHO.DL.INTlRI'RHAÇÃO..

"Comme si la Bible n'existait que lue", Exorde, p. 25). Nesse contexto, Ri-
coeur privilegia, seguindo Beauchamp, o método "canônico" que "põe os es-
critos de data e de planos culturais diferentes em uma relação sincrônica de
leitura" (Accomplir les Écritures selon Paul Beauchamp, L'un et l'Autre Tes-
tameni, t. 11", p. 16)67.
Ricoeur aplica-se pois a reduzir a distância que separa a exegese cien-
tífica da leitura querigmática propondo seu modelo englobante, que W. G.
Jeanrond resume na fórmula seguinte: "compreensão ínicial (ou conjetura)
+ explicação = compreensão crítica?". Com efeito, a intenção confessante
que a exegese crítica esclarece é imanente ao texto bíblico mesmo, e a leitu-
ra crente deve incorporar um segmento crítico para dar espaço aos distan-
ciamentos objetivantes inerentes ao texto da Revelação (dialética exegese
científica/leitura confessante).
Nesse espírito Ricoeur evoca a possibilidade de muitas "reconstruções
responsáveis" do conjunto das Escrituras canônicas - como os modelos de
N. Frye ou C. Westermann'". A leitura policêntrica desse último, sistemati-
zando a Bíblia hebraica a partir de quatro temas teológicos fundamentais
(os theologoumena) - "Deus que salva", "Deus que abençoa", "Deus que
pune" e "Deus que perdoa" -, em torno dos quais se organizam as expres-
sões metafóricas que designam Deus e as que visam a resposta do homem,
apresenta "a vantagem de fazer aparecer no espaço mesmo do sentido a
resposta que a leitura confessante assume fora do texto" ("Herméneutique.
Les finalités de l'exégese biblíque", p. 50).

Para a refiguração do mundo do leitor: a apropriação


O arco hermenêutico, como Ricoeur o concebe, começa pois por uma
primeira apreensão do texto, captado como um todo (a pré-compreensão cor-
responde à mímesis I de Temps et récit). É seguido por urna série de procedi-
mentos explicativos, uns voltados para a produção do texto (métodos históri-
cos, críticos, diacrônicos) (ver FPTN, pp. 501-504 [TI 11, pp. 267-271 D, ou-

67.1. BARR aplaude essa opção e pondo Ricoeur do lado das análises literárias vê aí uma
chance para a renovação bíblica canônica (ver Holy Scripture: Canon, Authonty, Criticism,
Oxford, 1983, 103 e 159).
68. Introduction à l'herméneutique théologique, 105.
69. Le Grand Code de Frye é citado muitas vezes por Ricoeur; quanto a Westermann
Ricoeur expõe sua Théologie de /'Anden Testament, Genebra, 1987, em "Herméneutique,
Les finalités de l'exégese biblíque", 48-50.
54 . .. INTRODUÇÃO

tros para sua organização literária final) (ver BH, pp. 37-73) [TI 6, pp. 139-
168}. Essas diversas abordagens tendem todas a explicitar os elementos cons-
titutivos do texto em relação com o conjunto. Ricoeur expõe suas convergên-
cias (momento de explicação, correspondente à mimese lI). Enfim, o arco se
conclui por uma nova apreensão "em imaginação e simpatia" do texto como
um todo (compreensão), que permite a transferência do mundo do texto ao
mundo do leitor (a apropriação, correspondente à mimese IlI). A nova com-
preensão de si implica que o sujeito consinta em desapropriar-se dele mesmo
a fim de deixar-se tomar pelas novas possibilidades de ser-no-mundo destaca-
das pelo texto. É então que a poética do discurso pode provocar uma poética
da existência no momento de decisão própria da vontade (ver "Herméneu-
tique philosophique et herméneutique bíblique", pp. 224-228).
O objetivo global do arco interpretativo é seguir a intenção referencial
do texto (sua "flecha de sentido" em direção de sua referência) para seu
mundo, para sua visão da realidade, para sua ontologia particular, através do
jogo de suas estratégias narrativas, às vezes desconcertantes. Depois de ter
deixado sua primeira inocência pré-crítica (sua compreensão imediata ingê-
nua do texto), depois de ter atravessado o deserto da explicação rigorosa
dos elementos textuais e da hermenêutica da suspeita, o leitor é convidado
a compreender o texto em uma ingenuidade segunda, pós-crítica, a fim de
desenvolver uma nova compreensão de si mesmo, capaz de habitar o tempo
e o mundo bíblico".
Assim, a trajetória de sentido do mundo do texto só termina quando
encontra o mundo do leitor e o refigura. Esse entrecruzamento sucede no
ato de leitura pelo qual o intérprete atualiza as diversas figuras de si proje-
tadas pelo texto. A apropriação autêntica exige do leitor um descentramento
de sua subjetividade finita a fim de que possa receber do texto uma com-
preensão de si mais ampla.
Para a Comissão Bíblica Pontifícia, essa apresentação da atualização exis-
tencial constitui outro traço a reter da hermenêutica ricoeuriana:
os métodos de análise literária e histórica são (pois) necessários à interpre-
tação. Contudo, o sentido de um texto só pode ser dado plenamente se for
atualizado na vivência dos leitores que dele se apropriam (p. 67).

70. Para essa concepção ricoeuriana da apropriação, ver: R. E. JOHNSTüN, From an


Author-Oriented to a Text-Oriented Hermeneutic, 196-207; S. MIGLIASSO, La théorie her-
méneutique de Paul Ricoeuret l'herméneutique biblique, 131-132; L. POLAND, Literary Cri-
ticismand Biblical Henneneutics, 175-178 e 193-194; e A. THOMASSET, Paul Ricoeut; Une
poétique de la morale, 274-276.
I'OLlfONIA 0.0. TlXTO BíBLICO E. TRAB.AlHO.. DE. INURP.RE.TAÇÃO 55

Com efeito, Ricoeur leva em conta o papel do leitor na constituição do


sentido da Escritura, a ponto de Wallace falar de uma "retórica da Revelação
na hermenêutica ricoeuriana", a saber:
a análise do poder do texto de solicitar o leitor para que arrisque sua vida
nos valores e ideais que o texto projeta. Através de um apelo não violento
à imaginação do leitor, a Biblia fornece um ângulo de visão que aumenta a
capacidade de ver o mundo diferentemente, de tal modo que ele pode ser
dito, nos termos de Ricoeur, apto a "refazer a realidade"'1.
A textura polimorfa da Revelação lança um apelo polifônico ao leitor
e sugere uma resposta plural de sua parte. Ao policentrismo da Biblia cor-
responde um Eu policêntrico do intérprete. Projetando-se fora delas mes-
mas, as três escrituras do Primeiro Testamento (a Lei, os Profetas e os outros
escritos) estabelecem o leitor diante do livro:
Ao mesmo tempo o sujeito de leitura encontra-se antecipado no sujeito já
inscrito no texto: sujeito triplamente estruturado pela antigüidade da Lei,
pela iminência do acontecimento profético, pela perenidade da sabedoria
("Comme si la Bible n'existait que lue", Exorde, p. 27).
É no ato de leitura que se realiza esse jogo de interlocução entre o
apelo da Escritura e a resposta do sujeito convocado, cujo paradigma é o
profeta mandatário. O leitor vem com seu mundo diante do texto, oferece-
o como o "espaço ontológico das operações de sentido e de referência" do
texto (Réflexion [aite, p. 48). Pelo ato de ler, a configuração poética e narra-
tiva dos textos bíblicos (no nível da mimese II) é atualizada; e o mundo do
leitor encontra o mundo do texto deixando-se refigurar por ele (no nível de
mimese III). Em obra recente em que tenta estabelecer uma verdadeíra teo-
ria hermenêutica susceptível de interpretar o Novo Testamento como Escri-
tura Sagrada, S. M. Schneiders inspira-se amplamente no modelo ricoeuriano
do ato de leitura. A autora parte da Bíblia como "texto do encontro?". Entre
o mundo por trás do texto (a proclamação do acontecimento Jesus), o mun-
do do texto (como linguagem reveladora e testemunho) e o mundo diante
do texto (a apropriação, por parte do leitor, do texto revelador).

71. M. I. WALLACE, "Ricoeur, Rorty, and the question of Revelation", 235.


72. É o título do livro: S. M. SCHNEIDERS, Le texte de la rencontre. Ilinterprétation du
Nouveau Testamentcomme Écriture sainte, Montréal, Paris, 1995. A autora tinha consagra-
do um artigo à hermenêutica neotestamentária de Ricoeur com o título.'The PascalIma-
gination: Objectivity and subjectivity in NewTestament Intertrepation", Theological Studies
43 (1982) 52-68, entendendo por "imaginação pascal" a capacidade espiritual do cristão
de construir seu mundo a partir das "imagens"do Novo Testamento (p. 174).
S6 ... INTRODUÇÃO

o objetivo último de todo o arco hermenêutico permanece para Ri-


coeur eminentemente existencial: a interpretação só termina quando o lei-
tor apropria-se do mundo do texto. Contudo, quem diz apropriação não diz
"o retorno sub-reptício da subjetividade soberana" (Refléxion [aue, p. 57). Ao
contrário, a apropriação passa necessariamente pela crítica das ilusões do
sujeito e pela "desapropriação" de si mesmo (ver "Herméneutique philoso-
phique et herméneutique biblique", p. 227; "The critique of Religion", pp.
213-219). Como diz Ricoeur, em termos típicos de Soi-même comme un autre:
"Troco o Eu, senhor dele mesmo, contra o Si, discípulo do texto" (Rejléxion
[aite, p. 57).
Esse distanciamento de si mesmo comporta uma dimensão altamente
positiva. Consentindo em deixar-se descentrar de seus preconceitos pela re-
descrição criadora do mundo da Escritura, o leitor entra no jogo infinito de
variações imaginativas que levam à metamorfose de sua subjetividade e fa-
zem-no descobrir seus "possíveis mais próprios" (ver "Hennéneutique philoso-
phique et herméneutique biblique", p. 226; "La Bible et l'imagination", p.
360). Ao poder da imaginação Ricoeur acrescenta a voz da consciência como
ponto de contato entre a Palavra de Deus e o ser humano (ver "Le sujet
convoque", pp. 93-94). Pelo trabalho de sua imaginação e pelo testemunho
de sua consciência, o leitor interpelado pela rede simbólica das Escrituras
reencontra o Si como dom.
As expressões-limite trazidas à linguagem pelos enunciados bíblicos,
levam simetricamente a experiências-limite em que o agir habitual é remo-
delado (ver BH, pp. 122-128 [TI 6, pp. 203-208]; Whoever, p. 285 [TI 8,
pp. 234-235]). Assim como o discurso bíblico leva o discurso poético à sua
extremidade, também a práxis, em conformidade com o apelo do Deus das
Escrituras cristãs, resulta em uma intensificação paradoxal da ação humana,
a ponto de causar uma total reversão dos valores ordinários. É o que a Bíblia
chama conversão (ver Listening Once More, p. 305 [TI 7, p. 228]). Os pro-
jetos de vida do leitor encontram-se transtornados e, devido a essa radical
desorientação, sua existência pode ser totalmente reorientada.
Para Ricoeur, "a instauração de um Si pela mediação das Escrituras e
pela aplicação a si mesmo das múltiplas figuras da nominação de Deus su-
cede no nível de nossa capacidade mais fundamental de agir" ("Expérience
et langage dans le discours religieux", p. 38, n. 1).
Ele encontra a aproximação filosófica dessa restauração do Si capaz de
ser de novo interpelado pelo querigma da esperança na concepção kantiana
("pós-hegeliana") da religião encarregada de restabelecer o sujeito moral em
PQ1.HONIADOTEXTO BrBUCO E TRABALHO DE INTERPRETAÇÃO .. 57

sua capacidade de agir segundo o dever (ver Hope, pp. 59-68 [TI 4, pp.
106-114 J; ver também "La liberté selon l'espérance", pp. 401-415). Na pers-
pectiva cristã, a regeneração do homem apto a receber o apelo divino é um
puro dom de Cristo, o que Paulo chama de justificação pela fé (ver Rm
3,28), o perdão superabundante de Deus que restaura a justiça do homem
(ver "lnterprétation du mythe de la peine" em Le Conflit des interprétatums,
pp. 352-353 e pp. 366-369).
Essa restauração da liberdade humana coloca-se em estreita relação com
a economia do dom que Ricoeur desenvolve notadamente em sua conferên-
cia AmOUT et justice (Tübingen, 1990)73. A poética da existência que deseja
corresponder à poética dos evangelhos não pode contentar-se com uma ló-
gica da reciprocidade - tal como se exprime na regra de ouro (ver AmouT
et justice, pp. 44-46). Deve construir-se sobre a lógica da superabundância,
do testemunho na esperança, no mandamento novo do amor sem medida e
na afirmação da salvação apesar do mal e da morte (ver "La liberté selon
lespérance" pp. 400-401 e 413-415). Como o resume Ricoeur; o testemu-
nho da liberdade segundo a esperança que corresponde à proclamação do
texto bíblico "é essa capacidade de viver segundo a lei paradoxal da morte e
da afirmação do sentido sobre o não-sentido, em todas as situações desespe-
radas (Hope, p. 59 [TI 4, p. 105]).
É até aí que deve ir o trabalho da interpretação bíblica. Esse cuidado
que tem Ricoeur de levar a cabo a trajetória de signíficância das Escrituras,
a Comissão pontifícia reconhece-lhe plenamente, concluindo assim o pará-
grafo que lhe consagra:
A linguagem religiosa da Bíblia é uma linguagem simbólica que "dá a pen-
sar" (o trabalho do texto), uma linguagem em que não se cessa de desco-
brir riquezas de sentido (em sua polifonia inesgotável), uma linguagem que
visa uma realidade transcendente (seu referente especifico, a nominação de
Deus) e que ao mesmo tempo desperta a pessoa humana à dimensão pro-
funda de seu ser [a suas potencialidades mais próprias e ao testemunho da
esperança t.
Não se poderia sintetizar melhor o percurso proposto pela hermenêu-
tica bíblica de Ricoeur!

73. Ver também os artigos "La Regle d'Or en question: entre phílosophie et théologie",
em Lectures 3, 273-279; e "Economia del dono, amore e giustizia", Protestantesimo 49
(1984) 13-24.
74. Doe. cit., p. 67 (comentários nossos).
58 INTRODUÇÃO

Os recursos filosóficos da exegese bíblica


Numa perspectiva de hermenêutica bíblica, as teorias filosóficas, res-
peitadas em sua autonomia, permanecem modelos e instrumentos destina-
dos a facilitar o desenrolar da "coisa" única dos textos biblicos.
Ricoeur não quer submeter sua hermenêutica bíblica à sua teoria filo-
sófica. Ao contrário, não hesita em levar um diálogo serrado entre os dois
campos hermenêuticos e a apelar para instrumentos filosóficos a serviço da
inteligibilidade da fé.
Recorrendo à análise estrutural das narrativas, à concepção tensional
da metáfora e à teoria dos modelos-qualificadores, ele estabelece um esque-
ma de interpretação das parábolas evangélicas que permite pôr em relevo
sua especificidade: visam a linguagem poética e humana da realidade do
Reino de Deus e do Nome de Deus, que precisamente excedem todo dis-
curso (ver BH, pp. 108-122 [TI 6, pp. 192-203]).
Valorizando plenamente os recursos da narratividade, mostra que as
narrativas bíblicas ao mesmo tempo exemplificam, intensificam e contradi-
zem os traços comuns de toda narrativa. Porque, de uma parte, as narrações
da Escritura entram em composição com outros modos discursivos no seio
do mesmo Cânon (ver TNT, p. 245 [TI 13, pp. 295-296]); de outra parte
enquanto contando a "parceria" entre Deus e o homem, a narratíva bíblica
englobante - ou metanarrativa - é constituída por uma multidão de nar-
rativas paralelas às temporalidades de tal modo distintas que a tomam ao
mesmo tempo inacabada e propriamente indizível (ver ibid., pp. 242-243
[TI 13, pp. 292-293]).
As conclusões das duas análises, aliás, coincidem. Segundo os termos
de Ricoeur:
Neste ponto, o caráter da metanarrativa como a que não pode ser contada
coincide com o tema teológico da inefabilidade de Deus. Ou melhor, a
inefabilidade do Nome é a mesma coisa que o caráter inesgotável da meta-
narrativa (Ibid, p. 243). (TI 13, p. 293)
Da mesma maneira, com a ajuda de sua análise fina das relações entre
ficção e história, Ricoeur precisa uma noção encontrada em H. Frei de nar-
rativas "history-like" (quase históricas) (ver ibid. p. 244 [TI 13, pp. 294-295]),
estabelecendo que os fatos relatados pela Bíblia são sempre acontecimentos
interpretados, nem pura construção imaginária, nem descrição imediata dos
fatos passados. Como diz Wallace, o mundo da narração bíblica, em termos
ricoeurianos, é "uma tentativa altamente imaginativa de configurar os aconte-
POUfONIADOTEXTQ BíBLICO. LTRABAlHO DE INTERPRETAÇÃO ... 59

cimentos históricos do passado em um todo significante e posto em narrati-


va. É uma ficção narrativa com um interesse histórico, ou, para dizer de
outro modo, é uma memória historicamente mediatizada de uma série de
acontecimentos animada pela imaginação literária de seus criadores".
A hermenêutica filosófica de Ricoeur permite assim, ao mesmo tempo,
afastar a tentação - a que sucumbem certos defensores da teologia narrativa
como H. Weínrich" - de esvaziar pura e simplesmente a questão da verda-
de factual da história bíblica (ver 7NT, p. 244, TI 13, pp. 293-295); poderia
igualmente ajudar a deixar, nessa problemática da realidade histórica das Es-
crituras, uma certa noção perniciosa do fato histórico oriunda do positivis-
mo. Toda história, profana ou bíblica, não copia servilmente o passado como
se fosse inalterável, mas o configura narrativamente de maneira criadora.
Da mesma maneira, o acesso à realidade histórica da vida e da pessoa de
Jesus é sempre mediatizado pelo texto, isso é, pela configuração narrativa que
fornece o texto aos acontecimentos da história de Jesus. A abordagem "tropo-
lógica"de H. White (que Ricoeur elogia como pertinente em Temps et récit111,
pp. 219-227)77 poderia ser de grande auxílio para a pesquisa cristológica, como
o explicita 1. Van den Hengel em uma de suas proposições à teologia que faria
uso dos recursos de Temps et récit - prolongamentos que Ricoeur mesmo não
desenvolveu": "A refiguração metafórica das ocasiões pela narração do evan-
gelho cria a referência indireta da narrativa do acontecimento original".
Van den Hengel prossegue, em uma formulação que certamente Ri-
coeur não rejeitaria (ver Temps et récit llI, pp. 225-229Y9:
O Jesus real é significado como sendo semelhante ao Jesus configurado pelo
evangelho. A realidade de Jesus é como está dito que ele é, no evangelho.
O traço de Jesus nos evangelhos representa metaforicamente o passado de
Jesus, semelhante a ele ao mesmo tempo em que não lhe é semelhante'".

75. M. I. WALLACE, The Second Naiueté, p. 121.


76. H. WEINRICH, "Narrative Theology", em Concilium 9 (1973) 45-56, aqui, 50, cita-
do por Ricoeur em TNT, p. 244, nota 12 [TI 13, p. 294, n. 13].
77. H. WHlTE, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteensh-Century Europe
Baltímore-Londres, 1973.
78.1. VAN DEN HENGEL, "Jesus between Fiction and History", em D. E. KLEMM-W.
SCHWElKER (eds.) Meanings in Texts and Actions: Questioning Paul Ricoeur, Charlottesville
1993. (Retemos aqui as sugestões desse autor, embora com reservas para certas outras
posições suas).
79. Nessa passagem, RICOEUR desenvolveas noções de "lieutenance" e de "représentance",
funções exercidas pelo discursono que respeita aos feitos históricos (ver Tempset récit IlI, 204).
80.1. VAN DEN HENGEL, "Jesus between Fiction and Hístory", 146-147.
I CAPíTULO TERCEIRO I

Conclusão: entre a hermenêutica filosófica


e a hermenêutica bíblica, uma relação
dialética complexa

A o final dessa visão panorâmica, retomemos em síntese os principais


componentes das relações dialéticas complexas que mantêm na obra
hermenêutica de Paul Ricoeur a hermenêutica filosófica e a hermenêuti-
ca bíblica I.

UMA DUPLA REFERÊNCIA:


FILOSÓFICA (CRíTICA) E RELIGIOSA (CONVICÇÃO)

Desde sempre, Ricoeur reconhece ter uma dupla filiação, que está bem
expressa no título de seu livro-entrevista: La Critique et la Conviction. De
uma parte, ele faz filosofia: fala então a linguagem comum da razão crítica.
De outra parte, reconhece pertencer à comunidade cristã (protestante) e se
reclama da tradição judeo-cristã (ver "La philosophie et la spécificité du
langage religíeux", p. 13).
Porém essa polaridade não significa que a filosofia não seja igualmente
da ordem da convicção, nem que a convicção religiosa deixe de revestir uma
dimensão crítica interna (ver La Critique et la Conviction, p. 211).

1. Para este capítulo inspiramo-nos sobretudo em: L. DORNISCH, Faith and Philosophy
in theWritings ofPaul Ricoeur, Lampeter Dyfeld, 1990,265-270;T NKERAMIHIGO, L'Homme
et la Transcendence selon Paul Ricoeur, 222-228; M. GERVASONI, La" poetica" nell'ermeneutica
teologica di Paul Ricoeur, 308-366; W. G. JEANROND, Introduction à l'herméneutique
théologique, 231-233; e o artigo de H. WELLS,"Theology and Christian Philosophy. Their
Relation in the Thought of Ricoeur", Studies in Religion 5 (1975) 45-56.
62 INTRODUÇÃO

A CONSTITUiÇÃO HERMENÊUTICA DA FÉ E DA FILOSOFIA'

Nos dois campos de investigação, Ricoeur privilegia a mediação da lin-


guagem e da escritura. Desconfia tanto do imediatismo da transparência para
si mesmo como do intuicionismo da experiência religiosa. Portanto, é de
textualidade para textualidade que se estabelece a relação entre os dois re-
gistros. Têm ambos uma constituição hermenêutica e ambos são confronta-
dos com o problema da atividade da leitura dos textos. Contudo, não se
referem ao mesmo corpus: a lista dos textos filosóficos fundamentais difere
do corpus religioso das Escrituras canônicas, patrísticas e teológicas mesmo
se certos textos ocupam um lugar intermediário (S. Agostinho, Homero, He-
síodo ou os trágicos gregos) (ver La Critique et la Convíction, p. 212).

LEITURA CRíTICA E LEITURA CONFESSANTE3

A polaridade entre convicção e crítica leva Ricoeur a distinguir com


cuidado o tipo de abordagem dos textos - cada um com pressupostos e
objetivos diferentes. Já no domínio da interpretação bíblica, a finalidade dos
diversos tipos de exegese erudita (histórico-crítica, filológica, semiótica) di-
fere da finalidade da leitura eclesial e confessante (ver ibid., pp. 212-213).
É no nível da exegese dita canônica, i.é., da que reconhece a autorida-
de dos textos fundadores que a comunidade separa dos outros textos para o
encerramento do Cânon, que se cindem o teológico e o filosófico. Assim, a
hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica confessante distinguem-se
por sua atitude de leitura: à atitude crítica da leitura livre dos textos filosó-
ficos opõe-se a atitude crente da leitura "querigmática" que confessa sua
dependência para com uma Palavra anterior cuja autoridade é reconhecida
pela comunidade em que se situa (ver ibid., pp. 218-219; TNT, p. 243 [TI
13, pp. 293-294]; Sacred Text, p. 272 [TI 12, p. 28ü]t

2. Ver E. SCHILLEBEECKX, "Le philosophe Paul Ricoeur, docteur en théologie", Christia-


nisme social 76 (1968) 639-645, aqui, 643-644; C. Z. ZAIDAN, Ricoeur's Conception of
Language and its Implications for Foundational Theology, Washington, 1979,269-270.
3. Ver M. BOEHNKE, Konkrete Re/lexion, 138-139; W C PLACHER, Paul Ricoeur and Post-
liberal Theology: A Conflit of Interpretations?, Modem Theology, 4 (1987) 35-52, aqui, 40.
4. Na mesma linha comparando a teologia querigmática à filosofía diz Rícoeur.'A teo-
logia procede da pregação, palavra que cria o que diz, enquanto a filosofia é só um discurso,
não cria coisa alguma: é um discurso reflexivo, critico" ("Foi et philosophie", p. 12).
CONCLUSÃO: ENTRLA H.ERMENIUTlCA ..fJ.LOSÓnCAEA HERMENÊUTICA. BrBUCA .... 63

AUTONOMIA DO DISCURSO FILOSÓFICO

Estabelecida essa diferença fundamental de atitude, Ricoeur sempre se


manteve fiel à sua regra da não-confusão entre as fontes bíblicas de suas
convicções pessoais e a argumentação de seu discurso filosófico (ver Réflexion
faite,p.15e42).
No plano dos "princípios" de sua filosofia, antes de tudo, isso é, dos
"espantos" fundamentais que determinam uma espécie de espaço de gravi-
tação para as questões seguintes', Ricoeur considera a ação e a linguagem
comum como os dois centros de organização em torno dos quais sua refle-
xão filosófica se desenvolveu, e a partir dos quais se hierarquizaram as te-
máticas que abordou em torno dos "conceitos últimos": para a ação, o vo-
luntário e o involuntário, o desejo de ser e o esforço de existir, e a ontologia
do agir; para a linguagem, o dizer da vontade, o dizer dos mitos e dos sím-
bolos, o dizer dos textos, da metáfora e da narrativa.
Foram essas as duas questões iniciais que lhe serviram de fio condutor
através dos debates entre numerosas heranças (filosofia existencial, reflexiva,
fenomenológica, crítica, analítica e hermenêutica), que motivaram os múltiplos
desvios de seu empreendimento, por causa do caráter mediato da compreensão
de si. Em tudo isso, afirma Ricoeur; a "filosofia é autônoma e leva a res-
ponsabilídade dela mesma (ver Reply to Stewart, p. 445 [TI 3, p. 95]).
Por isso, em suas grandes obras filosóficas como La Métaphore vive [A
metáfora viva], Temps et récit [Tempo e narrativa] ou Soi-même comme un autre
[Si mesmo como um outro], Ricoeur pratica conscientemente um ascetismo
da argumentação que o leva a um discurso agnóstico em que está ausente a
nominação de Deus, de maneira que a posição do leitor a respeito da fé
bíblica nunca seja comprometida (ver Soi-même comme un autre, p.38).
Esse agnosticismo do "filósofo enquanto filósofo", testemunhado pelas
últimas paginas de Soi-même comme un autre (pp. 409-41Or, manifesta essa

5. Ricoeur dá alguns exemplos dessas questões principiais que põem em caminho o


conjunto de um sistema filosófico; para Aristóteles: "Que é o ser enquanto ser?"; para
Descartes: "Qual é a verdade primeira?"; para Kant: "Como os juízos sintéticos a priori são
possíveis? (ver Reply to Stewart, 444 [TI 3, p. 95]).
6. Ao falar de "conceitos últimos", Ricoeur pensa nos "grandes gêneros" platônicos (ser
e não ser; repouso e movimento, um e múltiplo) sobre cuja base Platão desenvolve uma
ontologia de segunda ordem (nos diálogos ditos "metafísicos": Pannênides, Teeteto, O Sofis-
ta e Filebo) (ver ibid.).
7. "Talvez o mósofo, enquanto filósofo, deva confessar que não sabe e não pode dizer
se esse Outro, fonte da injunção, é um outrem que eu possa encarar, ou que possa me
64 . INTRODU.ÇÃO

vontade repetida de Ricoeur de defender seus escritos filosóficos contra a


acusação de "cripto-teologia" que certos meios filosóficos franceses lhe lança-
ram. Ricoeur recusa-se a fazer da fé bíblica a solução em última instância de
todas as aporias deixadas pela análise filosófica (o tempo, o Outro, a identi-
dade etc.) e de atribuir-lhe uma função "cripto-filosófica" (ver ibid., p. 37).
Por isso deixa de lado, em Soi-même comme um autre, a perspectiva
nova que acrescenta a poética da "agapé" bíblica à ética filosófica ligando o
amor à nominação de Deus. Para Ricoeur, a hermenêutica bíblica não deve
reintroduzir sorrateiramente a pretensão de oferecer uma fundação última
do discurso filosófico, enquanto uma hermenêutica filosófica não deixa de
lutar contra essa ambição falaciosa":
A dependência do Si a uma palavra que o despoja de sua glória, confortan-
do ao mesmo tempo sua coragem de existir, livra a fé biblica da tentação
que chamo aqui crípto-filosófíca, de assumir o papel doravante vacante de
fundação última (Sai-même comme un autre, p. 38).
Inversamente, a interpretação da fé bíblica em sua precaríedade pode
contribuir a que a filosofia hermenêutica não recaia na distorção das filoso-
fias auto-suficientes do cogito.

A FÉ BíBLICA, FONTE E MOTIVAÇÃO


DA FILOSOFIA DE RICOEUR'

No cuidado de não-confusão, e sob a influência de Karl Barth, Ricoeur


pôde em certa época acentuar o dualismo entre os dois domínios, a ponto
de "promulgar uma espécie de interdito de permanência, contra Deus em
filosofia" (La critique et la conviction, p. 226). Assím Ricoeur demonstrou

encarar, ou meus antepassados dos quais não há representação, tanto minha dívida para
com eles é constitutiva de mim mesmo, ou Deus - Deus vivo, Deus ausente - ou um
lugar vazio.
Sobre essa aporia do Outro, o discurso filosófico estanca" (Sai même commeun autre, p.
409). A propósito desse agnosticismo metodológico de Ricoeur;ver Paul GILBERT, "Paul
Ricoeur, réflexíon, ontologie et action", Nouvelle RevueThéologique 117 (1995),339-363
e 552-564, sobretudo 562-563;e, com reservas criticas, C. THÉOBALD, "La regle d'or chez
Paul Ricoeur. Une interrogation critique", Revue des sciences religieuses 83 (1995) 43-59,
sobretudo 51 e 57-59.
8. É o combate constante que Ricoeur trava contra a "hyhris" hegelíana do saber abso-
luto e da fundação última (ver Temps et récit IlI, 280-299).
9. Ver 1. MA5IA CLAVEL, "Paul Ricoeur en la frontera de filosofia y teologia, Miscelanea
Camillas 53 (1995) 115-134.
CONCLUSÃO;.. ENTRE AHERMENlUTlCA.fllOSÓEICA LAHERMENÊUTlCA BÍBLICA . 65

sempre desconfiança visceral a respeito da teologia natural ou ontoteologia


e, principalmente, em relação às "provas da existência de Deus"JO.
Desde então, Ricoeur admite ter evoluído, de modo que em vários tex-
tos recentes proponha uma "espécie de armistício na guerra entre a fé e a
razão" (ver Reflexion [aite, p. 15), distinguindo as argumentações filosóficas
oferecidas ao espaço público e as motivações profundas de seu compromis-
so filosófico e de sua existência pessoal e comunitária (ver La Critique et la
Conviction, p. 227; Soi-même comme un autre, p. 36t. No nível de sua inspi-
ração (ver Reply to lhde, p. 72 [TI 2, pp. 90-91]), Ricoeur em nenhum caso
contesta a linguagem bíblica, constituindo-se seus símbolos, seus relatos e
suas figuras discursivas em uma das fontes mais importantes de seu gosto
pela filosofia, um dos pressupostos essenciais donde se eleva seu empreen-
dimento filosófico, uma das principais - mas não a única - "fontes não
filosóficas de sua filosofia" (ver Reply to Stewart, pp. 443-444 [TI 3, p. 95]
- os sublinhados são nossos). Ao falar de fonte, Ricoeur designa algo que o
precede e que ele não domina". É o que remete tanto à antecedência do
dizer poético sobre a palavra pessoal, quanto ao primado da Palavra de Deus
sobre o ser do homem. Ricoeur está bem consciente disso:

10. Ver p. ex., o cuidado de Ricoeur de não confundir o nome de Deus com o ser gregq
na exegese de Ex 3,14, mesmo se admite que a leitura ontológica é uma das figuras da
história da interpretação desse texto. (Ver Pides quaerensintelleetum: antécédents bibliques?,
327-343; e "D'un Testament à l'autre: essai d'herméneutíque biblique", 300-303). Inversa-
mente, Ricoeur pensa que a exegese bíblica pode trazer uma preciosa contribuição à onto-
logia filosófica da existência humana. Mostrando que a revelação do nome Javé em Ex 3,14
não se deixa reduzir à tradução grega pelo verbo "einai", mesmo estendendo-o à polissemia
que lhe dá Aristóteles em sua Metafísica (E,2), mas sugere antes a Fidelidade de Deus à sua
presença de Aliança junto ao povo, a exegese pode levar a uma "ontologia bíblica" aberta,
humilde e plural, além da ontologia grega e da hermenêutica do si:"Pode-se, por conseguin-
te, estabelecer que a atenção privilegiada dada aos textos sagrados restrínge o horizonte de
uma hermenêutica geral, se for tomada como uma hermenêutica regional- o que é perfei-
tamente legitimo - ou que amplia o horizonte da ontologia além das significações do ser
exploradas pelos gregos e mantidas cativas de uma ontologia que presta o flanco à critica,
tanto por sua estreiteza como por sua confusão", Reply to Ihde, p. 72 [TI 2, p. 90-92]).
11. Em seu Prefácio a Sai même comme un autre, Ricoeur não esconde que no nível
profundo de suas motivações, suas convicções cristãs tenham podido exercer uma influên-
cia sobre toda a problemática do si.A propósito cita o Finaldo Diáriode um curade aldeia,
de Bemanos, que o deixa em uma espécie de "encantamento": "É mais fácil do que se
acredita, odiar-se. A graça é esquecer-se. Mas se todo orgulho estivesse morto em nós, a
graça das graças seria amar-se humildemente a si mesmo, como a qualquer dos membros
sofredores de Jesus Cristo" (p. 39, n. 3).
12. Concebe o vocábulo "fonte" no sentido dado por C. TAYLOR (Sources 01 the Self The
making01 the Modem Identity. Harvard, 1989, citado em La Critiqueet la Conviction, 227).
66 ~~~.~.~~~~~. ~~~ . ~ ~~~.

Não é espantoso encontrar nos dois registros analogias que podem tornar-
se afinidades, e isso eu assumo, porque não creio ser nem dono do jogo
nem dono do sentido. Sempre minhas duas fidelidades me escapam, mes-
mo se às vezes elas se fazem sinal mutuamente (La Critique et la Conviction,
pp.227-228).

AS LINGUAGENS BíBLICA E TEOLÓGICA COMO


TEMAS DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA"

De fonte, a linguagem religiosa pode tornar-se um tema da investiga-


ção filosófica, mais ou menos central ou periférico. Pode ser tematizada como
uma linguagem entre outras [científica, ordinária, ética ou política), uma
linguagem que dá a pensar e que pode ser considerada como uma parte da
poética geral, em virtude de seu funcionamento simbólico-metafórico. Nes-
se sentido, a interpretação da linguagem bíblica só é considerada como um
modo hermenêutico entre outros, modo em que o debate metodológico entre
a explicação e a compreensão encontra um campo de aplicação privilegiado
(é filosofia aplicada, na terminologia contemporânea) (ver Reply to Stewart,
p. 445, [TI 3, p. 95]).
Depois, quando se eleva do nível especulativo, a linguagem religiosa
pode tornar-se um dos objetos da crítica filosófica, sob a rubrica da filosofia
da religião, nos limites só da razão, de Kant, de Hegel, de Rosenzweig e de
Levínas". Ali ele situa-se nas fronteiras da filosofia e da não-filosofia, mas
não as ultrapassa. Senão, não aborda quase o nivel de uma hermenêutica
propriamente teológica. Coloca-se quase exclusivamente no plano de her-
menêutica bíblíca". E mesmo quando estuda Barth, Bultmann, Tillich ou
Bonhoeffer, essas discussões devem situar-se, segundo sua opinião, "na peri-
feria do campo filosófico de sua investigação das temáticas religiosas" (en-
quanto objetos da crítica) (ibid., pp. 445-446 [TI 3, pp. 95-96]).

13. Ver 1. L. SCHLEGEL, "Devant la théologie allemande", Esprit 140-148 (1988) 213-
226, aqui, 218-219; 1.Van den HENGEL, The Home ofMeaning, 214-220.
14. Esses ensaios formam a I' seção de Lectures 3, "Philosophie et non-philosophie"
(pp. 19-150).
15. Isso não impede Ricoeur de reconhecer que se deve dar espaço na Escritura ao
registo especulativo, a um "pensar bíblico" (ver La Critique et la Conviction, 226), do qual
seus próprios ensaios de "teologia filosófica" visam a prolongar o movimento (como no
artigo "D'un Testament à l'autre. Essai d'herméneutique biblique", 307-309).
CONCLUSÃO: ENTRE A.. HERMENÊ.UTICAfllOSÓFJCA. E A HERMENÊUTICA BíBUCA 67

OS PROBLEMAS TEOLÓGICOS: AO MESMO TEMPO FONTES


E TEMAS DA REFLEXÃO FILOSÓFICA

Além disso, Ricoeur menciona alguns problemas que se põem no pon-


to de interseção entre a filosofia e a teologia, e que para o pensamento filo-
sófico constituem ao mesmo tempo uma fonte e um tema. Entre eles, há
dois aos quais deu uma atenção particular através de toda a sua obra: o
desafio do mal e a esperança. Na filosofia kantiana a esperança constitui
antes de tudo uma fonte de reflexão. Com efeito, elaborar a filosofia da
religião só nos limites da razão é, para Kant, determinar "o que é permitido
esperar". Depois, a esperança é também um tema da filosofia prática, por-
que conceme à capacidade de regenerar a vontade moral (ver Reply to Stewart,
p. 446 [TI 3, p. 95]).

APROXIMAÇÕES FILOSÓFICAS DE NOÇÕES TEOLÓGICAS' 6 :


A FILOSOFIA LEVA À FONTE DA TEOLOGIA

Aliás, é por ocasião de sua reflexão sobre a esperança que Ricoeur se


propõe renovar o problema da relação entre a filosofia e a teologia, posto
habitualmente em termos de relação entre a razão e a fé (ver Hope, p. 55
[TI 4, p. 101]). Ele busca o Intellectus spei, isso é, o esquema racional inte-
ligível da esperança bíblica, o que ele chama de aproximação filosófica da
virtude teologal da esperança nos limites somente da razão (ver "La líberté
selon l'espérance", p. 394). Que entende ele por isso? Ricoeur resume seu
pensamento no termo de seu ensaio "Hope and the Structure of Philosophical
Systerns" (pp. 68-69 [TI 4, pp. 114-116])17.
O problema da esperança, que representa a um tempo uma fonte e
um tema da hermenêutica e da crítica filosóficas, concerne também e so-
bretudo a finalidade mesma da tarefa filosófica, como a da teologia. Com
efeito, a esperança é o ponto de fuga e o horizonte do cumprimento das
duas disciplinas (ver ibid., p. 68 [TI 4, pp. 113-114]).
A hermenêutica teológica tem suas próprias fontes. Procede do querigma
da fé. Sua função é desenvolver uma conceitualidade específica que seja fiel

16. Ver K. STOCK, "Kerygma aIsThema der Philosophíe", 280-281; M. R. BARRAL, "Paul
Ricoeur: The Ressurection as Hope and Freedom", Philosophy Today 29 (1985), 72-82.
17. Sintetiza aqui o que diz em outros lugares de maneira mais fragmentária: ver "La
liberté selon I'espérance", 394, 401-402 e 414; "Démythiser I' accusation", em Le Conflit
des interprétations, 330-347; e "Foi et philosophie", 8-10 e 12.
68 JNTRODUÇÃO

à sua origem bíblica e apta a ligar a proclamação escriturística da Ressurrei-


ção do Senhor a todos os domínios de experiência humana (ver "La Liberté
selon l'espérance", p. 394).
A teologia concebe pois a pregação da esperança como antecipação, na
história, da ressurreição dos mortos (ver Hope, pp. 56-57 [TI 4, pp. 102-104]).
Nesse sentido, o querigma da esperança é ao mesmo tempo racional e
irracional. É irracional porque anuncia a irrupção inesperada de um aconteci-
mento que escapa à razão, sendo um desmentido à realidade da morte, um
jorrar inaudito de sentido, para além do desespero. Rompe a ordem antiga,
inaugura uma criação nova, abre uma "carreira de existência e de história" (ver
"La liberté selon l'espérance", p. 402; Hope, pp. 57-59 [TI 4, pp. 104-106]).
Mas, ao mesmo tempo, essa novidade irracional dá a pensar à inteligên-
cia, senão permaneceria uma fulgurância sem continuação. Desvela-se em
signos que podem ser decifrados. Estabelece uma lógica nova que faz senti-
do e história, a lógica da munificência e da generosidade superabundante,
que se opõe a todas as leis econômicas habituais (ver "Foi et philosophie", p.
r
9; "La liberté selon espérance" p. 402; Hope, p. 69 [TI 4, p. 115 D.
Ricoeur procura então um equivalente filosófico ao querigma da espe-
rança. Pensa achar esse discurso homólogo na dialética não fechada de Kant.
Para Kant, a esperança não se deixa englobar pela dialética do conhecimen-
to absoluto. Perante o mal radical que afeta nossa liberdade, somos chama-
dos a postular a regeneração dessa última. Corrigir nossas máximas, estamos
em medida de fazê-lo, porque o devemos. No termo da dialética kantiana, a
liberdade "real" do homem só pode jorrar como uma esperança para além
dessa "sexta-feira santa" especulativa (noite do saber) e prática (noite do
poder, por causa do mal radical). Em parte alguma, em um filósofo, conti-
nua Ricoeur, estamos mais próximos do querigma da esperança da ressurrei-
ção dentre os mortos (ver "La liberté selon l' espérance", p. 413; "Foi et
phílosophie", p. 10; Hope, p. 68 [TI 4, pp. 114-115]).
Assim, entre a teologia da esperança e a dialética quebrada de Kant, se
estabelece uma relação dinâmica de homologia e de aproximação:
Por aproximação, entendo o esforço do pensamento para aproximar-se cada
vez mais do acontecimento escatológico que constitui o centro de uma
teologia da esperança. Graças a essa ativa aproximação da esperança pela
dialética, a filosofia sabe algo e diz algo da pregação pascal. Mas o que ela
sabe e diz permanece nos limites da para razão. É nessa auto-restrição que
residem ao mesmo tempo a responsabilidade e a modéstia da filosofia (Hope,
p. 69 [TI 4, p. 115]).
CONCLUSÃO: ENTRLA HERMENÊ.UTJCA. fILOSÓFICA ..LA H.ERM.ENÊ.UTICABíBllCA ..... 69

Nem abstenção nem capitulação frente à teologia bíblica, tal é a via au-
tônoma da "abordagem filosófica" (ver "La liberté selon l'espérance", p. 394 1s:l.

UMA RELAÇÃO DE INClUSÃO MÚTUA"

Aliás, no plano metodológico da interpretação dos textos, a hermenêu-


tica filosófica (i.é., a hermenêutica em geral) e a hermenêutica bíblica colo-
cam-se em uma relação de inclusão mútua.
De um lado, a hermenêutica bíblica subordina-se à hermenêutica geral
enquanto hermenêutica regional, porque a primeira incorpora necessariamen-
te conceitos, argumentos e métodos oriundos da segunda. Vimos tudo o que
a medição do estudo filosófico da linguagem fornece para o uso da herme-
nêutica querigmática: a reflexão sobre as categorias do texto e de sua inter-
pretação, sobre a dialética da explicação e da compreensão, sobre o papel do
leitor e sobre a historicidade do sentido, "serve de organon à hermenêutica
bíblica" (ver La Critique et la conviction, p. 228; Reply to lhde, pp. 71-72 [TI
2, pp. 89-91]).
Mas, inversamente, a especificidade da linguagem bíblica, í.é., a origi-
nalidade "absoluta" de seu referente central (o nome de Deus e de Cristo) e
de seu mundo (o Reino) subverte a relação e faz da hermenêutica bíblica
um caso único da hermenêutica geral. É seu objeto que dá à linguagem das
Sagradas Escrituras um lugar à parte no seío da linguagem poétíca em geral.
O próprio da Bíblia e da teología é dar um nome próprío a essa experiência
(de ser precedida por uma palavra), o nome de Deus, de Jesus Crísto, e de
crístalizar essa experiência em torno de um acontecimento fundador ("Foi
et philosophie", pp. 12-13).

18. Na mesma perspectiva a pessoa de Cristo encontra a aproximação seguinte no


discurso do filósofo enquanto filósofo (Ricoeur traduz em sua própria linguagem a con-
cepção de Kant): "Para o filósofo, Cristo é o esquema da esperança; tem a ver com uma
imaginação mítico-poética que concerne o 'cumprimento' do desejo de ser" ("Démythiser
l'accusatíon", 341). - Ricoeur distingue em seguída claramente essa abordagem da do
crente (que ele é) e do teólogo: "Isso não basta ao teólogo que questiona como o esquema
se enraíza no testemunho histórico de Israel e como a geração apostólica o pôde reconhe-
cer no "Verbo feito carne" (ibid.).
19. Ver D. PELLAUER, "Paul Ricoeur and the Specificíty of Religious Language", 267-
268; S. MIGLIASSO, "Dal simbolo allinguaggio simbólico", Rivistabíblica italiana, 29 (1981),
187-203, aqui, 197-201; B. MONDIN,"Ermeneutica filosofica e ermeneutica biblica",Bibbia
e Oriente 21 (1979) 115-128; e o. AIME, "Ermeneutica e poetica. 11 contributo di Paul
Ricoeur all'ermeneutíca bíblica", Archivio teologico torinese 1 (1995) 60-89, aqui, 63.
INTRODUÇÃO

Então, a hermenêutica bíblica subordina-se a seu "organon" filosófico e


serve de invólucro à hermenêutica geral. Há relação de mútua inclusão, por-
que cada um, por seu turno, engloba o outro (ver "Herméneutique phíloso-
phique et herméneutique biblique", pp. 216-225; e também Reply to lhde, p.
72 [TI 2, pp. 89-90]).
Ricoeur o sintetiza assim:
A hermenêutica bíblica é sucessivamente uma hermenêutica regional em
uma hermenêutica única que une a si a hermenêutica filosófica como seu
próprio "organon", É um caso particular, visto que a Bíblia é um dos gran-
des poemas da existência. Um caso único, porque todos os discursos par-
ciais são referidos ao Nome que é o ponto de interpretação e a caixa vazia
de todos os nossos discursos sobre Deus, em nome do Inominável" ("Hermé-
neutique de l'idée de Révelatíon", p. 42).
A especificidade da hermenêutica bíblica confessante situa-se, pois, para
Ricoeur; no nível do círculo que se estabelece entre a comunidade crente e as
Escrituras que ela tem por inspiradas. Confessar sua pertença à comunidade
eclesial é reconhecer que os textos sagrados canônicos nomeiam verdadeira-
mente a Deus, é aceitar deixar-se interpretar por eles e tomar o risco de ver
sua existência completamente transtornada por esse ato de leitura (ver Reply
to lhde, p. 72 [TI 2, p. 90-91]; Reply to Stewart, p. 448 [TI 3, pp. 98-99]).
A Pontifícia Comissão Bíblica destaca os mesmos elementos fundamen-
tais que Ricoeur, ao determinar o que faz a especificidade da hermenêutica
bíblica em relação à hermenêutica geral de todo texto literário e histórico: a
unicidade do objeto das Escrituras, o contexto eclesial da interpretação, aos
quais acrescenta ainda a ação do Espírito Santo, omitida por Ricoeur:
A hermenêutica bíblica, embora seja do âmbito da hermenêutica geral de
todo texto literário e histórico, é ao mesmo tempo um caso único dessa
hermenêutica. Suas características específicas vêm-lhe de seu objeto. Os
acontecimentos da salvação e seu cumprimento na pessoa de Jesus Cristo
dão um sentido a toda a história humana. As interpretações históricas no-
vas só poderão ser o desenvolvimento dessas riquezas de sentido. O relato
bíblico desses acontecimentos (de salvação) não pode ser compreendido
plenamente só pela razão. Pressupostos particulares comandam sua inter-
pretação, taís como a fé vivida em comunidade eclesial e a luz do Espírito.
Com o crescimento da vida no Espírito, cresce no leitor a compreensão das
realidades de que fala o texto bíblico20.

20. L'Interprétation de la Bible dansl'Église, p. 69. Consideramos a ausência do papel do


Espírito Santo na hermenêutica bíblica de Ricoeur uma da principais fraquezas de sua
posição, embora não seja uma critica que lhe possa ser feita enquanto filósofo
CONClUSÃO: ENTRLA. HERMENÊUTI.CA fllOSÓfICA.LAHERMENÊUTICA.BiBUCA .. 71

Além disso, sem proibir a pluralidade das interpretações da Bíblia -


uma riqueza e não um vício, precisa de novo Ricoeur, o sinal do caráter
inesgotável de sua mensagem (ver Reply to Stewart, p. 448 [TI 3, pp. 98-
99]) - a comunidade desempenha a função indispensável de norma contra
a divisão ilimitada das interpretações:
As barreiras à disseminação encontram-se no papel estruturante exercido
pela vida comunitária eclesial, que não tem equivalente em filosofia: uma
comunidade histórica interpreta-se a si mesma ao interpretar o tesouro de
sua Escritura. É dessa maneira que as comunidades de leitura e de inter-
pretação se constituem, que embora não sendo redutíveis a uma unidade,
não correm o perigo de uma dispersão infinita (ibid. )21.

UMA EXEGESE INSTRUíDA22

Enfim, Ricoeur ultrapassa às vezes os limites da filosofia para tomar


posição sobre questões de fronteira da exegese e da teologia", Ao estudar a
polifonia das modalidades discursivas da Bíblia - seu "policentrismo" - e a
variedade das maneiras de nomear a Deus; ao tomar posição contra a ampli-
dão excessiva da teologia da "Heilsgeschichte" em relação a outras constru-
ções de teologia bíblica; ao criticar a desmitologização de Bultmann e sua
interpretação existencial demasiado exclusiva, Ricoeur está além das fron-
teiras da filosofia. Mas utiliza sempre os instrumentos de sua própria her-
menêutica filosófica (ver Reply to Stewart, pp. 448-449 [TI 3, pp. 99-100]).
Em suma, Ricoeur é "um profissional da filosofia e um amador da exegese
esclarecida" (ibid. p. 448 [TI 3, p. 99]).

21. Dizendo isso, Ricoeur é perfeitamente consciente de nossocontexto pós-moderno,


em que, de fato, proliferam interpretações privadas, mesmo anárquicas, dos documentos
bíblicos. O problema para ele é saber se esses textos antigos vão poder continuar a falar
às novas gerações e ajudá-las a conviver (ver Reply to Steuian, p.448 [TI 3, pp. 98-99]).
22. Como diz M. BOEHNKE (Konkrete Reflexion, p. 146), quando Ricoeur saidos limites
da filosofia, pratica menos a exegese no sentido estrito do que uma espécie de "biblisdie
Verstehenslehre" ("reflexãosobre as finalidades do exercício exegético").
23. É o que faz nos textos que formam a terceira seqüência de Lectures 3, denominados
expressamente,"Essais d'herméneutíque biblique", 263-366.
I CApíTULO QUARTO I

Perfil dos artigos traduzidos

A s páginas anteriores tentaram situar, de maneira diacrônica, depois sin-


crônica, no seio da obra de Ricoeur, as treze contribuições que se se-
guem. Dão uma vista geral interessante, embora não exaustiva, de sua her-
menêutica bíblica. Um dos textos tem um alcance exclusivamente filosófi-
co: (TI 5: "O texto como identidade dinâmica"). Foi incluído nesta antolo-
gia consagrada à hermenêutica bíblica por resumir bem o que estabelece-
mos que Ricoeur inscrevia no coração de sua teoria hermenêutica geral: o
dinamismo em obra no texto provoca um trabalho de interpretação que lhe
corresponde quando, no ato de leitura, o mundo do texto encontra o mun-
do do leitor para refigurá-lo,

PRIMEIRA SEÇÃO: FILOSOFIA E LINGUAGEM RELIGIOSA

A ordem dos ensaios traduzidos corresponde, grosso modo, à organiza-


ção do texto de nossa introdução. Começamos pelas três "Réplicas" de Ri-
coeur a seus comentadores, sendo que a primeira delas permite articular seu
percurso pessoal em constelações coerentes em tomo da noção de testemu-
nho (TI 1: "Resposta a Lewis S. Mudge"], A segunda, precisar o lugar de
sua hermenêutica bíblica no conjunto de seu empreendimento (TI 2: "Res-
posta a Don Ihde"]: a terceira articula modalidades complexas que regem as
relações de inclusão mútua entre sua hermenêutica filosófica e sua herme-
nêutica bíblica (TI 3: "Resposta a David Stewart"]. Colocamos então um
74 INTRODUÇÃO

ensaio que ilustra bem as relações multiformes entre filosofia e teologia,


pois Ricoeur nele procura uma aproximação filosófica do núcleo querigmático
da esperança cristã e da liberdade, o que ele chama "íntellectus spei" (TI 4:
"A esperança e a estrutura dos sistemas filosóficos").

SEGUNDA SEÇÃO: PARÁBOLAS E PREGAÇÕES

O artigo sobre a identidade dinâmica do texto acima citado (TT 5: "O


texto como identidade dinâmica") servirá em seguida de trampolim em di-
reção ao volumoso estudo dos relatos parábolas de evangelho, onde cruzam
numerosos temas da hermenêutica ricoeuriana (daí o título global do TI 6:
"Paul Ricoeur e a hermenêutica bíblica" e do esboço introdutório: "A her-
menêutica bíblica"). Com efeito, para Ricoeur; o gênero literário parábola
repousa na conjunção de uma forma narrativa, estudada pelos diversos tipos
de análise estrutural (primeira seção: ''A forma narrativa"), de um processo
metafórico segundo sua concepção tensional da metáfora viva (segunda se-
ção: "O processo metafórico"), e de expressões-limite que lhe conferem seu
caráter de extravagância, comum a outros tipos de discurso bíblico (as pro-
clamações escatológicas e as fórmulas proverbiais), todos especificados como
linguagem religiosa por sua convergência para o referente último, o "Reino
de Deus" (terceira seção: "A especificidade da linguagem religiosa").
Os dois textos seguintes fornecem aplicações práticas dessa concepção,
pois trata-se de duas homilias pronunciadas por Ricoeur; uma sobre as pará-
bolas de Mateus do grão de mostarda, do tesouro e da pérola (Mt 13,31-32;
44-50) (TI 7: "À escuta das parábolas: mais uma vez atônitos"); a outra
homilia sobre uma expressão de Jesus, de feitio proverbial, que recorre à
hipérbole e ao paradoxo (Mt 16,25) (TI 8: "Aquele que perde sua vida por
causa de mim, a encontrará").
Segue enfim uma terceira alocução de Ricoeur em um quadro litúrgi-
co, em que explora as diferentes formas de "fazer memória", culminando no
gênero sapiencial da lamentação para o caso de acontecimentos unicamente
únicos como o "Holocausto" (TT 9: "A memória do sofrimento").

TERCEIRA SEÇÃO: TEMPO E NARRATIVA


EM HERMENÊUTICA BíBLICA E TEOLÓGICA

Os últimos ensaios reunidos nessa antologia sublinham a atenção


dedicada por Ricoeur ao encaixamento dos diversos discursos em jogo nas
I'ERFJLDOS. ARTIGOS. TRADUZIDOS 75

Escrituras e explicitam os diversos motivos de sua reticência em relação ao


esquema universal de uma história da salvação linear (que Ricoeur chama
"esquema cristão") que nivelaria em uma trama uniforme a irredutível poli-
fonia do concerto biblico. As Escrituras hebraicas se distinguem da historio-
grafia grega pelo fato de não apagarem os diversos tipos de temporalidades
ligadas às outras formas discursivas da narração (lei, profecia, sabedoria e
hino). A história biblica é uma história da salvação porque articula a oni-
temporalidade do designio de Deus em seu enfrentamento com a humani-
dade recalcitrante (TI 10: "Mito e história").
No mesmo sentido, a passagem da proclamação originária aos relatos
evangélicos mostra que a forma "evangelho" é um gênero misto em que
querigma e narração interferem mutuamente. Seguindo N. Perrin, Ricoeur
estabelece a necessidade para o querigma cristão de desenvolver-se sob o
modo narrativo, destacando no ensinamento de Jesus três "ocasiões" de nar-
ração, isso é, pontos de ancoragem na proclamação originária para o desen-
volvimento dos relatos evangélicos: o anúncio da proximidade do reino, as
controvérsias sobre a frequentação dos pecadores e o destino trágico de Je-
sus condenado à morte (TI 11: "Da proclamação à narrativa").
Os dois últimos ensaios desse florilégio determinam enfim o que espe-
cifica os relatos bíblicos em relação às outras espécies de relatos profanos: é
a relação mantida com a comunidade que os reconhece como portadores de
uma autoridade e estabelece com eles uma espécie de círculo hermenêutico
segundo o qual a comunidade encontra sua identidade nos textos aos quais
atribui sua autoridade (TI 12: "O texto 'sagrado' e a comunidade").
Tirando proveito dos recursos da narratividade desenvolvidos no seu
volumoso livro "Temps et récit", Ricoeur põe o dedo na pretensão das narra-
ções biblicas de coincidirem com a história e de refigurar a realidade. Con-
tudo, uma teologia exclusivamente narrativa não poderia dar conta de toda
a complexidade da linguagem das Escrituras nem do tipo de "festa de senti-
do" que ela parece cultivar conservando zonas de indeterminação e de rup-
turas que atentam conta a aparente unidade de uma "Heilsgeschichte", pre-
tensamente coerente. A temporalidade narrativa, de tendência unificadora e
triunfalista, só pode efetivamente fazer sentido quando entra em interseção
com as outras modalidades temporais da trama bíblica, como a fragilidade e
o relativismo ligados ao discurso sapiencial por exemplo. Dessa tensão entre
relato e sabedoria, entre concordância e discordância - entre vários outros
entrecruzamentos mantidos pela Escritura - destacam-se possibilidades no-
vas de ser-no-tempo, que põem em causa toda vontade do leitor de fazer de
INTRODUÇÃO

sua existência uma totalidade sem falha e que abrem a uma poética da exis-
tência (TT 13: "Rumo a uma teologia narrativa: sua necessidade, seus recur-
sos, suas dificuldades").
Textos traduzidos (TT)
Apresentação

O critério de escolha de artigos cuja tradução apresentamos aqui foi pu-


ramente lingüístico: trata-se das principais contribuições de Ricoeur em
hermenêutica bíblica publicadas primitivamente em inglês e que não tinham
ainda recebido tradução francesa "autorizada", pois nossas traduções beneficia-
ram-se todas da releitura do autor e assim receberam seu aval "oficial".
Mesmo se estes treze ensaios não pretendem cobrir a integralidade das
problemáticas abordadas pela hermenêutica bíblica de Ricoeur; oferecem
dela um esboço bastante substancial. Numerosas remissões a nossos textos
traduzidos (com a abreviação cômoda de TI) estabeleceram-no claramente
ao longo de nossa Introdução.
Como foi dito no capítulo IV, a classificação dos artigos corresponde
mais ou menos ao plano seguido por nossa apresentação. Os ensaios agrupa-
dos na primeira seção (Filosofia e linguagem religiosa - TI 1 a 5) situam as
relações que a hermenêutica bíblica de Ricoeur mantém com sua herme-
nêutica geral. Os ensaios que constam da segunda seção (Parábolas e prega-
ções, TI 6 a 9), apresentam uma das aplicações paradigmáticas das pesqui-
sas filosóficas de Ricoeur, sobre a metáfora e a forma narrativa, às modalida-
des literárias da Bíblia considerada como texto-obra (os relatos parábolas).
Quanto às contribuições reunidas na terceira seção (Tempo e narrativa em
hermenêutica bíblica e teológica: TI 10 a 13) apelam para alguns recursos
da narratividade tão estudados por Ricoeur em benefício de uma aborda-
gem exegética que respeite a plurivocidade das Escrituras bíblicas.
80 T EXT OS TRADUZI DOS

Respeitamos os originais no destaque de termos ou expressões. Quan-


to ao sistema de notas bibliográficas ou citações da Escritura usamos o mes-
mo do texto de nossa Introdução.
Arriscamos algumas correções - quando pareceu indispensável - que
estão assinaladas no rodapé da página.
Além disso, acrescentamos algumas notas necessárias à compreensão do
discurso, e também referências a passagens da Escritura, quando pareceu útil.
Fornecemos também a tradução dos títulos dos livros e artigos conti-
dos no texto, ou nas notas das contribuições primitivas.
Enfim, quando o original apresentava um termo, uma expressão ou uma
frase em uma língua outra que o inglês, deixamos como estavam, mas acres-
centando tradução para nosso idioma.
Primeira seção

Filosofia
e linguagem religiosa
TI 1

Resposta a Lewis S. Mudge'

L eWis S. Mudge tenta fornecer ao leitor uma visão de conjunto coerente


de meus escritos. É precisamente essa tentativa que exige minha grati-
dão cordial, pelo fato de eu mesmo ser incapaz de realizar tal panorama,
tanto por estar sempre impelido para diante por um novo problema a ata-
car e porque, quando me acontece lançar um olhar retrospectivo sobre mi-
nha obra, fico antes chocado pelas descontinuidades de meus trâmites do
que pelo caráter cumulativo de minha obra. Busco considerar cada obra como
um todo auto-suficiente, gerado por um desafio específico, e a seguinte como
procedente de problemas não resolvidos, produzidos como um resíduo pe-
las obras precedentes. Assim, La symbolique du mal originou-se da impossi-
bilidade, para uma "pura" fenomenologia, de dar conta da vontade "má". De
I'interprétation. Essai sur Freud, por sua vez, era uma tentativa de responder
ao desafio de uma hermenêutica da suspeita, opondo-se a uma hermenêuti-
ca do recolhimento, ingenuamente aplicada ao conjunto dos símbolos tradi-
cionais relativos ao mal. Em seguida, em Le Conflit des interprétations. Essais
d'herméneutique [O Conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica],
tentei ampliar o debate e tratar de maneira não eclética e dialética os pro-
blemas postos por uma hermenêutica multidimensional. Mais recentemen-
te, La Métaphore vive [A metáfora viva] abordou os problemas da emergên-

1. Publicado como resposta ao prefácio de L. S. MUDGE (Paul Ricoeur on biblical inter-


pretation) à antologia PaulRicoeur. Essayson biblical interpretation, Londres, 1981,41-45.
84 TEXTOS.lRADUZID05

cia de novas significações na linguagem e as pretensões referenciais levanta-


das por tais discursos não descritivos como o discurso poético. Em certo
sentido, esses problemas estavam implícitos no começo de minha pesquisa
sobre as formas simbólicas do discurso, mas só podiam ser reconhecidos como
resultado da discussão hermenêutica. O resto da solução preconizada nessa
obra é o problema complexo da ficção e da imaginação produtiva. Tento ago-
ra abordar esse problema no quadro de uma pesquisa sobre os relatos que
guardei nos confins de meu estudo, sobre as metáforas compreendidas como
modelos para redescrever a realidade. As narrativas, mais do que todos os
outros "jogos de linguagem", têm esse poder de remodelar a experiência
humana, ao menos em seus traços temporais.
É nesse ponto que encontro a proposição de Lewis Mudge de reorga-
nizar todo o campo, não mais em termos de sucessão de minhas obras, mas
em termos de sua estrutura interna tomada como um todo. Nesse fim, Mudge
destaca a categoria do testemunho, que à primeira vista parece algo de mar-
ginal em meus escritos. Achei essa interpretação muito esclarecedora para
minha própria compreensão de mim mesmo. Quanto a isso, quero dizer que
despertei para as potencialidades filosóficas, como também teológicas, dessa
categoria não por teólogos, mas por um filósofo francês que muito admiro,
Jean Nabert. Para esse filósofo, o testemunho, entendido como o testemu-
nho de uma vida, é o equivalente da verificação para toda experiência espi-
ritual. Escolhendo essa categoria, Mudge mostra como certos problemas que
discuti em diferentes épocas e contextos podem ser reagrupados em algu-
mas constelações pouco numerosas.
A primeira dessas constelações reúne a aposta filosófica que em La
symbolique du mal leva-me a sublinhar a centralidade do relato bíblico da
queda entre outros mitos ou histórias à espécie de compreensão que forne-
ce a orientação à interpretação de qualquer texto. Nesse primeiro sentido a
categoria de testemunho regula a articulação entre o alcance religioso de
minha obra e seu núcleo filosófico.
A segunda dessas constelações engloba minhas diferentes abordagens
do problema da heterogeneidade entre os inúmeros jogos de linguagem. Essa
intuição condutora proíbe toda tentativa de fazer um sistema de usos dis-
tintos de linguagem tais como a ciência e a poesia, o discurso ordinário, o
discurso psicanalítico, o discurso religioso etc. A abordagem deve fazer-se
peça por peça, segundo as linhas de semelhanças e de diferenças (como fa-
zemos, assim diz Wittgenstein, ao passar de um jogo para o outro). Pela
mesma razão deve-se resistir a todo ensaio de redução da linguagem religio-
TL1:- RESPOSTA ALEWISS.MUDGE ............... __ .... .__...._.__ 85

sa à ideologia, ao ressentimento ou à neurose obsessiva, como Marx, Níetzs-


che e Freud queriam que se fizesse. Uma vez mais, segundo Mudge, é o
testemunho dado a significações irredutíveis que é a alma da resistência a
toda tentativa redutora.
A terceira constelação reúne todos os temas que podem ser colocados
sob o chapéu de uma fenomenologia hermenêutica, para seguir o testemu-
nho de Don lhde. Posso dizer que estou de acordo com a escolha dessa ex-
pressão que faz justiça tanto à minha lealdade para com Husserl e Merleau-
Ponty quanto ao meu reconhecimento ulterior a Heídegger e a Gadamer. A
idéia mestra dessa fenomenologia hermenêutica é que a reflexão sobre si é o
fim, a interpretação é o meio. Em outros termos, não há via direta de mim
para mim, exceto a via desviada da apropriação dos signos e das obras de
arte e de cultura que devem primeiro ser exploradas pelas "contra-discipli-
nas", como as designa Lewis Mudge. Devo confessar que essa necessidade de
um procedimento de desvio para a compreensão de si forneceu-me uma
desculpa constante para acrescentar desvios sobre desvios. Mudge é bastante
amável para discernir, por trás dessa desculpa, a permanência de uma dupla
convicção: primeiro, que a reflexão deve fazer-se interpretação; segundo, que
a interpretação, por sua vez, gera uma nova exigência, a de que a compreen-
são se torne explicação objetiva. Ainda uma vez, Mudge vê na categoria do
testemunho o indicio dessa dupla dialética. Mostra que a auto-referência do
discurso a seu próprio locutor é o equivalente lingüístico do testemunho,
compreendido como a prova da verdade, que é tão marcante no quarto evan-
gelho. "O processo interpretativo, diz ele, é uma questão de vida ou de mor-
te para a comunidade de fé." E vê esse processo em curso trabalhar em três
níveis, dentro dos textos compreendidos, por sua vez, como um depósito de
tradições, no nível das doxologias e das interpretações teológicas e no nível
da comunidade que encontra sua própria identidade nesse processo inter-
pretativo. Dessa maneira, a dialética do testemunho torna-se um modelo para
toda dialética semelhante que englobe os três momentos da compreensão
"ingênua", da explicação objetiva e da apropriação. Estou totalmente de acordo
com a maneira com que Mudge interpreta essas etapas em minha
Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning [Teoria da inter-
pretação: o discurso e o excedente de sentido], em termos de "testemunho
em elaboração", "momento critico" e "momento pós-crítico".
No que concerne mais especificamente ao "momento crítico", também
concordo com Mudge que ainda não mostrei claramente como a integridade
intelectual que a crítica bíblica comporta pode ser englobada nessa dialética
86 . ................................ . ...UX.TOS TRADUZIDOS

do testemunho sem sacrificium intellectus. Esse problema é o mesmo com


que lida Van Harvey em The Historian and the believer [O historiador e o
crente]. Mudge pergunta: "haverá uma relação entre as disciplinas críticas e
a prova da verdade que distingue o verdadeiro do falso testemunho para o
leitor da Bíblia hoje? Essa questão extremamente difícil não pode encontrar
resposta direta em Ricoeur". Isso é verdade. Concordo que acrescentar uma
teoria da leitura estrutural ao método da crítica histórica, como estou fazen-
do para os relatos bíblicos, só fornece uma resposta íncompleta. Se os relatos
do Antigo Testamento são quase históricos - como diz Hans W. Frei, em The
eclipse of biblical narrative: A story in Eighteenth and nineteenth Century Her-
meneutics [O eclipse do relato bíblico: um estudo hermenêutico dos séculos
XVIII e XIX], a questão das pretensões referenciaís dessas histórias perma-
nece inevitável. A tentativa de colocar entre aspas as referências e de conser-
var o sentido, i.é., levantar unicamente questões de sentido e renunciar às
questões sobre a realidade histórica, fracassa de certa maneira, porque se
opõe à minha convicção principal de que mesmo as ficções são a respeito de
um mundo. Uma das maneiras de sair desse labirinto seria dizer que o mun-
do mostrado pelas histórias bíblicas, e que eclipsa nossas convicções ordiná-
rias sobre o mundo "real", não é um mundo histórico, um mundo de aconte-
cimentos reais, mas o mundo do texto. Esse gênero de resposta é semelhante
ao que a critica moderna daria quanto ao "mundo" apresentado por uma
pintura abstrata. Não descreve nenhum objeto do mundo real, mas gera um
modelo emocional que remodela nossa vista global sobre o mundo. Mas vol-
ta a questão da relação entre a aura ontológica da obra e suas perspectivas
éticas, de uma parte, e os acontecimentos históricos que são ao mesmo tem-
po descritos por essas histórias quase históricas, de outra parte. Devemos
dizer então, a propósito da ressurreição, que alguma coisa se produziu, mas
só temos o vestígio do acontecimento nos testemunhos que são já interpre-
tações? Então a noção de "alguma coisa que se produziu" funciona como
uma idéia limite, no sentido kantiano, uma idéia que nos lembra que as in-
terpretações só utilizam interpretações, e que são ultimamente sobre o que
"realmente se produziu". Mas dar a acontecimentos tão evasivos o estatuto
igualmente evasivo de "coisa em si" kantiana é um preço que ninguém está
disposto a pagar depois das críticas de Fichte e de Hegel da "coisa em si".
Fica aberta a questão de saber se e em que medida a categoria de testemu-
nho pode preservar a dialética do sentido e da referência - i. e., do sentido
imanente e daquilo a que se refere - sem cair em nenhuma das armadilhas
bem conhecidas. O estatuto das histórias quase históricas repousa em última
TL1: .. RESPOSTA A LEWLS.. S •...MUDGE. 87

instância na resposta dada a esse problema delicado. Estou atualmente ocu-


pado com as diferentes alternativas que ainda permanecem abertas.
Lewis Mudge escolheu terminar sua contribuição por uma discussão
sobre "o papel da conceptualização" no pensamento religioso. Aplaudo essa
escolha porque me ajuda a me unir com a possibilidade do que Me Quarrie
chamava palavra sobre Deus (God talk). Penso que Mudge tem razão quan-
do sugere que uma filosofia dos limites no sentido kantiano (o que seria o
equivalente filosófico de uma teologia negativa) não exclui, mas exige, um
tipo especifico de símbolo cuja função seria "representar imaginativamente o
limite além do qual a demanda de plenitude do saber conceitual não pode
ir". Além disso, como sugeri em meu precedente argumento, sobre as expres-
sões enigmas tais como Reino de Deus ou Filho do Homem, esses símbolos,
nos termos de Mudge, "servem para limitar, mas também para romper e abrir
nosso processo de raciocínio". Penso sempre que uma pesquisa transcenden-
tal sobre imaginação da esperança deveria ser estendida a um símbolo de
regeneração e que essa tarefa define o alcance de uma Poética da vontade.
TT2

Resposta a Don lhde'

M ais tarde direi por que agrupei os dois ensaios de Don Ihde e de Gary
Madison' e os coloquei na frente das contribuições neste volume. Co-
meçando por Don Ihde, gostaria de lembrar a dívida particular que tenho
para com ele: foi meu primeiro intérprete em língua inglesa, na obra que
dedicou à minha filosofia em 1971, sob o título de Hermeneutic Phenomeno-
logl. Desde então não cessou de mostrar interesse por minha obra através
dos diversos estudos a que remete a nota 3 de seu ensaio. Seja-me permiti-
do agradecer-lhe por esse acompanhamento ininterrupto",
Seu presente artigo serve de introdução apropriada a meu corpus in-
teiro, tanto mais que o autor propõe uma interpretação global de minha
obra em termos de diferença entre o "lugar" filosófico que ele me vê ocupar,

1. Publicada originalmente com o título "Reply to Don lhde", no livro editado por L. E.
HAHN, The Philosophy oi PaulRicoeur, Chicago-La Salle [lll}, 1995,71-73, em resposta ao
artigo inaugural do mesmo volume de D. IHDE, Paul Ricoeur's Place in the Hermeneutic
Tradition, 59-70.
2. G. B. MADISON, "Rícoeur and the hermeneutics of the Subject", ibid., 75-92 com a
"Réplica de Ricoeur", ibid. 93-95.
3. D. lHDE, Hermeneutic Philosophy, The Philosophy of Paul Ricoeur, Evanston, 1971.
4. Ihde refere-se à sua tradução inglesa do Conflit des interprétations (The conflíct of
interpretation, Evanston, 1974), como também a vários artigos:"Interpreting Hermeneutics",
em Existential Technics, Albany, 1983; "Variaton and Boundary. A Conflít within Ricoeur's
Fenornenology", em Consequences of Phenomenology, Albany, 1986, 160-180; e "Text and
the New Hermeneutics" em D. WOOD eed.], On Paul Ricoeur: Narrativeand lnterpretatum,
London-New York, 1991, 124-139.
90 . TE.XTOS ..TRADUZIDOS

e os lugares em que situa Heidegger e Gadamer filosófico hermenêutico


contemporâneo.
Não vou me aventurar a qualquer avaliação sobre a maneira como Don
Ihde organiza o jogo de semelhanças e de diferenças entre os autores a que
se refere. A abordagem que adota em seu ensaio, ao mesmo tempo sinótica
e diferenciada, exprime a plena responsabilidade assumida pelo leitor, con-
cernido pelo fato de colocar-se, ele mesmo, a uma distância apropriada dos
autores que chama à barra na sala de audiências. Preferi pôr à parte duas ou
três notas que permitem começar uma discussão, que prosseguirei mais tar-
de com Gary Madison".
Cuidadoso em notar a maneira como toda filosofia hermenêutica se
enraiza em uma certa tradição textual, Don Ihde sublinha minha própria
dívida para com a hermenêutica bíblica em oposição a Heidegger, herdeiro
dos pré-socráticos. Isso é verdade. Contudo, Don Ihde não pára aí, mas enri-
quece sua observação por um estudo atento da maneira como a exegese
bíblica é incorporada, de um ponto de vista metodológico, em uma herme-
nêutica textual geral e segundo uma perspectiva ontológica, em uma antro-
pologia filosófica autônoma.
Gostaria de acrescentar aquí alguns elementos: a relação de minha filo-
sofia com a fonte bíblica é altamente complexa. De um ponto de vista me-
todológico, Don Ihde tem razão de sublinhar a inclusão da exegese em uma
hermenêutica geral, começada por Schleiermacher. Contudo, a relação pode
ser invertida: em "Herméneutique philosophique et herméneutique biblíque"
[Hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica ]6, falei de uma relação de
inclusão recíproca pertencendo às duas disciplinas, pela qual, de uma parte
a segunda é considerada como uma província da hermenêutica textual e, de
outra parte, a hermenêutica geral é estabelecida como um organon para a
interpretação de textos, que são considerados como escritos fundadores de
comunidades de leitura e de interpretação, que, por sua vez, tiram sua pró-
pria identidade histórica dessas comunidades. Essa especificidade atribuída
aos textos religiosos em contraste com os textos filosóficos leva-me a subli-
nhar uma outra diferença quanto à metodologia: os textos religiosos perten-

5. Em sua resposta a esse autor, nas páginas 93 a 95 da mesma antologia publicada por
L. E. HAHN.
6. Artigo publicado em G. BOVON-G. ROUILLER (eds.), Exegesis. Neuchâtel-Paris, 1975,
216- 228.
7. Acreditamos estar certos ao corrigir o texto de Ricoeur que afirma, equivocadamen-
te, a nosso ver, "a primeira (the former)".
IL2:_RE5J'OSTAADO NIH DL_

cem ao nível da inspiração e da motivação, um nível que evito confundír


com o da argumentação propriamente filosófica. Explico meu pensamento
sobre esse ponto no prefácio de Soi-même comme un autre (pp. 35-39). É a
razão pela qual tive o cuidado de jamais utilizar um texto bíblico como
argumento. Isso é verdade, mesmo quando falo de esperança e de escatolo-
gia como horizonte da história: tento falar, como faz Kant, sob os auspícios
da questão: o que eu tenho o direito de esperar?
No que toca à contribuição da exegese bíblica para a ontologia da exis-
tência humana, proponho que o "eu sou o que sou" de Êxodo 3,14 não se
situa na polissemia do verbo grego ser, mesmo se isso foi estendido por Aris-
tóteles, na Metafísica E 2, ao ser como poder e ato. O uso da primeira pes-
soa, como também a inserção dessa declaração enigmática em um relato de
vocação profética, sugere um emprego além da comparação com o verbo
que traduzimos por ser, mas mostra mais afinidade com o caráter durável de
um acompanhamento histórico do que com a imutabilidade de um princí-
pio. Esse excesso de relação com a extensão da significação (grega) do ser,
leva-nos a pensar que a fonte hebraica não pode ser incluída na fonte grega
e pode dar nascimento a rupturas e a amplificações, no nível da ontologia
fundamental, muito além da hermenêutica do si. Pode-se, por conseguinte,
estabelecer que a atenção privilegiada dada aos textos sagrados restringe o
horizonte de uma hermenêutica geral se ela for considerada como uma her-
menêutica regional - o que é perfeitamente legítimo - ou se estende o
horizonte da ontologia além das significações exploradas pelos gregos e os
temas cativos de uma ontologia que presta flanco à critica, tanto por sua
estreiteza quanto por sua confusão.
Quando Don Ihde se afasta dos problemas relativos à arqueologia da
hermenêutica e se dirige à função exploratória da hermenêutica do século
XX, interrogando a célebre Rückfrage (questão em retorno) parece-me que
um viés paradoxal podia ser dado a essa operação na qual o autor vê, preci-
samente, "uma arqueologia da significação para uma possível hermenêutica"
(p. 6). O que chama "arqueologia desconstrutíva" pode ser visto como uma
outra face de uma exploração das potencialidades que fazem do ser humano
um ser do futuro, i.é., portador de uma promessa não cumprida. Aqui a
tradição revela-se como a face inversa da inovação, a arqueologia da teleologia
e o enraizamento da abertura. Com isso, só faço embelezar o caráter dialéti-
co que Don Ihde acentua tão fortemente em meu empreendimento. Esse
caráter concerne não só à minha relação com qualquer dos pensamentos
que examino, amigo ou inimigo do mesmo modo, nem mesmo meu respeito
92 . TEXTOS TRADUZIDOS

pelas situações irredutivelmente conflítívas no plano das interpretações fun-


damentais, desde Le Conflit des interprétations até o Temps et récit, mas es-
sencialmente à tensão entre a via curta de uma ontologia direta e a via longa
de uma reflexão pela qual a opacidade do "eu sou" exige os inúmeros desvios
da mediação.
TT 3

Resposta a David Stewart'

D avid Stewart é dos meus intérpretes mais antigos e atentos. Tenho o


prazer de exprimir-lhe aqui minha gratidão. Ele toma como pedra de
toque de minha obra a interpretação que dou da linguagem religiosa. Mas
toma essa discussão precisa como ocasião de incluir o problema posto por
uma teoria geral da interpretação, e conclui com questões que concemem a
essa última, mesmo se estava inicialmente interessado nesse ensaio pelas re-
percussões dessa teoria geral sobre a interpretação da linguagem.
Gostaria de deter-me e examinar a questão inicial posta nas primeiras
linhas do ensaio sobre o lugar - periférico ou central - da interpretação
da linguagem religiosa em minha filosofia'. Volto aqui a uma discussão co-
meçada com Don Ihde no começo dessa obra. A resposta à questão é dife-
rente segundo se interrogue sobre as fontes de meu interesse pela filosofia,
ou sobre os princípios que governam o discurso filosófico em minha obra.
Não há dúvida de que a experiência religiosa expressa em histórias, símbo-
los e figuras é uma fonte de grande importância de meu gosto pela filosofia.

1. Publicada originalmente sob o titulo "Reply to David Stewart", em L. E. HAHN (ed.),


The Philosophy ofPaul Ricoeur, Chicago-La Salle (I1I), 1995,443-449. O artigo de Stewart
intitula-se Ricoeur on Religious Langage, 423-442.
2. Stewart escreveu, no início de sua contribuição: "A tese deste artigo é que o proble-
ma da interpretação da linguagem religiosa não é só uma preocupação periférica de Ri-
coeur, mas situa-se no coração de sua filosofia e que foi assim desde o começo de sua obra.
Mostrarei como esse tema aparece nos seus primeiros escritos, como leva a muitos "des-
vios" (para utilizar esse termo) e ressurge agora em seu estudo da narrativa", ibid., p.423).
94 TEXIO.LTRADUZlDOS

Reconhecer isso não é para mim uma fonte de embaraço - tanto mais que
não creio que um filósofo possa estar isento de pressupostos. Sempre se
filosofa a partir de alguma parte. Essa afirmação não concerne só ao fato de
pertencer a uma tradição religiosa, mas engloba toda uma rede de referên-
cias culturais de um pensador, inclusive as condições econômicas, sociais e
políticas de seu engajamento intelectual. É um objeto completamente dife-
rente se consideramos o ponto de partida adotado em uma argumentação e
a maneira específica de organizar o discurso filosófico.
O ponto de partida consiste em pôr uma questão, tida como expressão
de um espanto, que determina uma espécie de campo de gravitação para
todas as questões ulteriores. Assim, para Aristóteles ocupa a posição inicial,
"que é o ser enquanto ser?"; para Descartes, "que é a verdade primeira?"; para
Kant, "como os juízos sintéticos a priori são possíveis?". A escolha da ques-
tão, certamente, não é arbitrária. Mas é difícil separar o que a filosofia deve
ao estado do problema quando começa a filosofar e a iniciativa que toma
reorganizando o conjunto da problemática em relação a um novo centro
A isso acrescenta-se o que chamo uma maneira específica de ordenar o
discurso filosófico. Aqui penso em duas coisas: certamente, na maneira de
argumentar por uma via descritiva ou especulativa (Hume não argumenta
como Espinosa, e assim por diante), mas, de uma maneira mais sutil, na
maneira como o filósofo hierarquiza seus conceitos temáticos. Os conceitos
principais de um discurso filosófico dado não são, de fato, do mesmo nível:
nessa via, em Leibniz, a "mônada" ocupa um lugar imediatamente inicial e
terminal no plano da temática filosófica, em relação às noções de "apetite" e
de "percepção" no plano da alma viva e da alma espiritual e finalmente em
relação à idéia mesma de Deus. De maneira geral, pode-se dizer que uma
filosofia pode caracterizar-se pelos conceitos últimos que emprega, aqueles
que exercem uma função operatória que não é inteiramente reversível na
ordem temática. Platão foi talvez o primeiro a reconhecer o problema em
seus Diálogos chamados metafísicos em que tenta desenvolver uma ontolo-
gia de segunda ordem sobre a base do que chama "os gêneros maiores", tais
como o ser e o não ser, o repouso, o movimento, o uno e o múltiplo, o
mesmo e o diferente. Conhecemos as sutilezas e as aporias a que o jogo de
conjunções e disjunções entre os maiores gêneros conduz na realidade, como
lemos no Parmênides, no Teeteto, no Sofista e no Filebo.
Dito isso, a interpretação da linguagem religiosa pode ocupar dois lu-
gares diferentes no empreendimento filosófico: quanto às fontes não filosófi-
cas da filosofia, esse lugar é central mas não é uma localização exclusiva;
TT3:__RfSl'OSTAADAVIDSIfWARL

mesmo desse ponto de vista, que chamo às vezes o da motivação (ver o


Prefácio de Soi-même comme un autre, p. 36), o sentido para a ação humana,
as preocupações morais e políticas constituem para mim centros de interes-
se distintos que não são inteiramente absorvidos na preocupação com a re-
ligião. No lugar disso, falarei de uma constelação primitiva de interesses em
que a preocupação religiosa é ora central, ora periférica. Tomando-se agora
em consideração a organização do discurso filosófico, a questão do lugar da
experiência e da linguagem religiosa requer uma resposta de todo diferente.
Quero dizer com isso que o lugar do espanto e, portanto, o do questiona-
mento, foi duplo, desde o começo. Por um lado posso dizer com razão que a
ação foi sempre o centro de organização de minha reflexão filosófica sob
uma variedade de títulos; primeiro, o voluntário e o involuntário, depois o
desejo e o esforço - elevados ao nível "metafísico" do desejo de ser e do
esforço de existir - e finalmente, o poder da ação em Soi-même comme un
autre; por outro lado pode-se considerar que a linguagem é o ponto de orga-
nização de muitas investigações. A esse respeito, não há razão para falar de
uma virada lingüística: o dizer da vontade, o dizer do símbolo etc. estiveram
sempre em discussão em minhas primeiras obras. Quanto à epistemologia
do discurso filosófico, encontrei-me desde o início em um debate multidi-
mensional no meio de diversas heranças: a da filosofia existencial (Gabriel
Marcel e Karl Jaspers), a da filosofia reflexiva (Jean Nabert), a da fenome-
nologia (Husserl) e a da hermenêutica (Heidegger e Gadamer), o que me
levou a tentativas de arbitragem, algumas das quais deixaram sem resolver
os conflitos de interpretação. No que conceme à questão da hierarquização
do discurso, continuei a preocupar-me com ela: as categorias da hermenêu-
tica englobam as da fenomenologia (é a questão que subentende a idéia de
enxertar a hermenêutica sobre a fenomenologia)? A ontologia da ação en-
globa todas as questões postas pela linguagem, a ação, a narração e a impu-
tação moral? Pode-se fazer reviver os "grandes gêneros" platônicos acima
enumerados e a polissemia aristotélica do ser, e dali extrair a predominância
do ser como ato e potência, a fim de articular no nível especulativo mais
elevado a ontologia pressuposta da ação humana? Sob todos esses aspectos
- espanto inicial, vias múltiplas de argumentação, especulação última -
mantenho que o discurso filosófico é autônomo, como gosto de repetir, e
assume a responsabilidade por si mesmo. A filosofia cuida dela mesma. Mas
isso não quer dizer que o problema da interpretação da linguagem religiosa
desapareceu do horizonte. De fonte mais ou menos central, toma-se tema
mais ou menos periférico. É antes de tudo tematizado como linguagem e
96 TEXTOS.TRADUZlDOS

portanto, linguagem entre as outras (ordinária, científica, prática, moral e


política e filosófica); depois é considerado como um modo de interpretação
entre outros (o debate entre compreensão e explicação encontra aqui um
campo de aplicação privilegiado ao lado de outras disciplinas textuais). En-
fim, é em virtude de suas pretensões onto-teológicas que passa sob o olhar
crítico o exame rigoroso da filosofia. Mas é porque Se elevou ele mesmo,
por sua própria conta e a seu próprio risco, ao nível especulativo da teologia
- e, portanto, bem além da hermenêutica bíblica, à qual geralmente me
limito. A linguagem religiosa, levada a esse nível do pensamento especulati-
vo, coloca-se entre os objetos da filosofia na categoria da filosofia da religião
E é nesse sentido que falo em meus ensaios sobre a filosofia da religião de
Kant, de Hegel, de Rosenzweig ou de Levinas. Minhas discussões episódicas
referentes a Karl Barth, Bultmann, Tillich e Bonhoeffer devem situar-se por
conseguinte inteiramente na periferia de meu campo filosófico de investiga-
ção da temática religiosa.
Não quero concluir essa discussão sem conceder que certos problemas
situam-se no ponto de interseção, em que o religioso, ao mesmo tempo que
opera em relação à filosofia como uma fonte, é assumido por ela como um
tema. Isso é verdade no problema do mal, a que voltaremos em próximo
ensaio'. O caso da filosofia kantiana é exemplar nesse ponto. Kant pergunta:
pode-se filosofar nos limites da razão sobre uma estrutura da experiência
que se exprime primeiro na linguagem dos símbolos e dos mitos? Sim, res-
ponde, na medida em que a religião abrange da questão mais ampla de de-
terminar o que me é permitido esperar. Essa questão surge no ponto de
interseção da filosofia com a religião, tanto mais que a esperança conceme à
capacidade de regenerar a vontade moral cujas estruturas são inteiramente o
terreno da filosofia prática. Pode-se, então, dizer da própria esperança que é
ao mesmo tempo fonte e tema da filosofia.
Creio dever esse esclarecimento a David Stewart. Em todo caso, isso
esvazia a resposta mais simplista à questão inicial posta por meu amigo: a
que faria de minhas pesquisas filosóficas, tomadas em conjunto, um imenso
desvio para resolver problemas postos pela linguagem filosófica. A noção de
"desvio" encontra sua aplicação no seio mesmo do campo filosófico. Dei sua
significação mais precisa em Soi-même comme un autre', quando motivo meu

3. "Reply to Stephan Tyrnan" em L. E. HAHN, The Philosophy of Paul Ricoeur, Chicago-


La Salle (I1I), 1995,472-476. O artigo de Tyman (ibid., 451-471) é consagrado à questão
do mal, sob o título de "Ricoeur and the Problem of Evil".
4. Ver o prefácio deste livro, 28-29.
TL3: RlSPOSTA ADAVIDSHWART 97

empréstimo à filosofia analítica para fazer o desvio necessário da reflexão


filosófica como resultado do caráter mediato da auto-reflexão. O "desvio"
marca o afastamento entre o ego e o seI!, a propósito do qual Kathleen Blamey
levará mais longe o ensaio que coloco na conclusão da presente obras.
A autonomia temática, metódica e especulativa da filosofia em rela-
ção à experiência religiosa está pressuposta por todos os desenvolvimentos
que dão seqüência à questão inicial de David Stewart e pelas questões que
ele propõe in finl. O interesse pela linguagem simbólica ampliou-se desde
o início aos domínios do onírico, do cósmico e do sagrado. E é a pensar que
nos convidam. Em seguida, são modalidades conílitivas da interpretação
que nos convidam a pensar mais. Com essa situação conflitiva estamos na
situação em que a hermenêutica é abordada como hermenêutica regional,
de acordo com o ensinamento de Schleiermacher. A dicotomia entre ar-
queologia-teleologia mencionada a seguir por D. Stewart (p. 428-429), como
a entre suspeita e restauração, pertence à mesma hermenêutica filosófica,
na qual o que está em jogo é a compreensão de si pela compreensão de um
conjunto simbólico, de um espaço textual e, finalmente, da diversidade de
mundos textuais. Não é precisamente a noção de "aposta hermenêutica"?
- a linha final de defesa da compreensão e da recepção do mundo do
texto - que não constitui uma categoria da hermenêutica filosófica geral.
Levando em conta a extensão da noção de texto no campo prático tomado
como um todo, incluindo a história, isso pertence claramente a uma her-
menêutica filosófica, embora contribuindo no plano temático para a cons-
trução de uma antropologia filosófica que teria a ação humana como con-
ceito chave. Essa retomada dos problemas de uma hermenêutica geral pode
concluir-se pela teoria da tríplice mimese mencionada no fim do ensaio de
David Stewart (p.439).
Chego agora aos "problemas que permanecem", com os quais D. Stewart
termina seu estudo (p. 438-441). Divido-os em dois grupos. O primeiro
concerne à hermenêutica geral, o segundo às conseqüências de minhas posi-
ções de hermenêutica geral para a hermenêutica bíblica, considerada não
como uma hermenêutica regional mas como a hermenêutica propriamente
dita para a qual a hermenêutica geral desempenha o papel de organon.

5. K. BLAMEY, "From the Ego to the Self: a Phílosophical Itínerary", em L. E. HAHN,


The Philosophy of PaulRicoeur, Chicago-La Salle (I1I), 1985,571-603.
6. Na última parte de sua contribuição, às páginas 438-441. As principais, Ricoeur as
menciona na abertura da presente resposta.
7. Do artigo de D. Stewart, p. 431.
98 TEX TOS~TRADUZIDO.S

o primeiro problema consiste em determinar se existe um tenninus a


quo da interpretação e os critérios para saber quando a interpretação está
em função. Podia-se dar uma resposta geral dizendo que a interpretação in-
tervém quando há um problema de significação, na medida em que a signi-
ficação é sempre para alguém. Mas pode-se tornar isso mais específico di-
zendo com Schleiermacher que a interpretação advém quando há a convic-
ção polêmica de uma má compreensão. O risco começa com a distância
espacial, temporal e, mais geralmente, cultural entre um texto e seu leitor; a
interpretação busca agora atravessar essa distância. Finalmente, a interpreta-
ção está de novo em função quando já houve interpretação e o processo de
interpretação já levou a conflitos, impasses, aporias; é nessa situação que me
encontrei a maior parte do tempo e na qual me coloquei eu mesmo por
vontade própria.
A questão do tenninus ad quem é mais difícil: quando a interpretação é
completa? Não basta responder que não é nunca. Mais sensata é a resposta
que recorre a uma lógica da probabilidade e, portanto, a uma retórica da
argumentação. Entramos aqui em uma epistemologia e em uma ética da
discussão na qual cada pessoa aceita responder à questão em que deve deci-
dir o que constitui seu melhor argumento e na qual cada um tem o direito
de propor a mesma questão a todos os outros protagonistas. Pode-se esperar
que de tal discussão resulte que desapareçam as questões de má qualidade
como também as falsas respostas. Nesse sentido, não creio que se possa di-
zer que "há tantos mundos de textos quantos leitores" CP. 439t Entre o uno
e o múltiplo, como diria Platão, há o "vários". A história dos conflitos revela
linhas de força, correntes de pensamento, orientações principais - em suma,
tradições de interpretação que são em número finito. Mas não se pode espe-
rar a emergência de um consenso completo e definitivo.
É por isso que posso somente contar que a posição de meu adversário
contenha também alguma verdade, mesmo se não sei em que grau e de que
modo. Contudo, o argumento é reversível: espero o mesmo crédito da parte
da outra pessoa. Discuto, aliás, uma questão próxima mas diferente: a da
relação entre a pretensão universal de um argumento e a condição histórica
de sua formulação: o debate concerne mais particularmente ao julgamento
moral e ao julgamento político.
O problema do destino da hermenêutica bíblica considerada por si mes-
ma é uma matéria totalmente diferente. Qual o impacto sobre ela das posi-

8. D. Stewart acusa Ricoeur disso.


TT .3: RESPOSTA A DAVID STEWART 99

ções tomadas no nível da hermenêutica geral? Essa questão, marginal em


relação à temática filosófica, torna-se central no caso do que alguns denomi-
nam pensamento biblico. Os problemas acima mencionados, em particular o
terminus ad quem da interpretação, tomam uma aspecto particular sendo
dada a autoridade atribuída à Escritura. Nunca escondi minha convicção de
que um pluralismo de interpretação não constitui um defeito, mas uma ri-
queza para a hermenêutica bíblica. O caráter inesgotável da mensagem bí-
blica encontra sua verificação nas ramificações da interpretação. É o mo-
mento de lembrar as palavras de Gregório Magno: "A Escritura crê com seus
leitores". As barreiras à disseminação encontram-se nesse papel estruturante
exercido pela vida comunitária eclesial. Que não tem equivalente em filoso-
fia: uma comunidade histórica interpreta-se a si mesma interpretando o te-
souro de sua Escritura. É dessa maneira que as comunidades de leitura e de
interpretação se constituem: sem ser redutíveis a uma unidade, não correm
o perigo de uma dispersão infinita. Deve-se contudo admitir que estamos
em um período que viu a ruptura de comunidades e, particularmente, a
proliferação das interpretações privadas. Não é preciso auto-acusar-se. É o
destino das comunidades religiosas que têm seu destino ligado ao da inter-
pretação de um depósito textual, submetido à história da leitura erudita e
popular, coletiva ou privada, autorizada ou anárquica. A única questão a ser
posta é a de saber se nas condições da modernidade - ou da pós-moderni-
dade, se preferem - à qual a história da leitura da Escritura está submetida,
esses velhos textos continuarão a instruir e a ajudar as novas gerações de
mortais a viver em conjunto e a compreender-se mutuamente.
Terminarei dizendo que, como profissional de filosofia e amador de exe-
gese esclarecida, tive eventualmente de tomar posição sobre problemas situa-
dos na fronteira da exegese e da teologia; e fiz isso à luz de minhas teses em
filosofia hermenêutica. Assim, em seu tempo, tomei o partido de Bultmann
contra Barth por causa da maior atenção que Bultmann prestava às limita-
ções impostas pelas estruturas míticas da época ao querigma bíblico. Mas
tomei igualmente minhas distâncias em relação a Bultmann na medida em
que, na base da filosofia heideggeriana do Dasein, transpondo-a talvez erro-
neamente, ele coloca um acento quase exclusivo na conversão individual.
Quanto a isso, Stewart tem razão de perguntar se uma exegese heideggeriana
do Novo Testamento produz outra coisa do que uma nova autenticidade
(Eigentlíchkeit). Devo dizer que a atenção que, como filósofo, dou às dimen-
sões comunitária e histórica da experiência humana, torna-me mais sensível
no nível da exegese bíblica a temas como a Aliança e a suas implicações
100 . U.X.TOSTRADUZIDO.s

ético-políticas. Devo também dizer que, guiado pela análise semiótica e pela
critica literária tornei-me cada vez mais atento à variedade das maneiras de
nomear a Deus e ao que alguns teólogos chamam de policentrismo bíblico,
em oposição desta vez ao que pode ser uma expansão excessiva do
theologoumenon da Heilsgeschichte. A lamentação e o louvor dos salmos, o de-
safio de Jó, e mais geralmente a tradição de sabedoria que Israel partilha com
os vizinhos do antigo Oriente Próximo escapam ao controle de uma teologia
da história (além do que francamente caótica durante o período bíblico).
Mas então, tendo dito isso, já não falo como filósofo, mas como membro do
que gosto de chamar uma comunidade que escuta e interpreta a Escritura.
Essas comunidades têm regras de leitura, que não são as mesmas que guiam
a maneira como os filósofos lêem outros filósofos.
Espero que meus leitores concordem em reconhecer que cheguei a
tais delongas para evitar misturar os gêneros, embora pudesse também ser
acusado de inconsistência pessoal. Tudo bem considerado, prefiro ser alvo
de tal suspeita, do que de "confusionismo", misturando uma cripto-teo1ogia
no plano filosófico a uma cripto-filosofia no plano da exegese e da teologia!
TT 4

A esperança e a estrutura
dos sistemas fllosótkos'

A prop ost a desta comunicação é explorar um caminho que pudesse le-


var à renovação do problema clássico sobre a relação entre a filosofia e
a teologia. Habitualmente, esse problema é concebido como o da relação
entre razão e fé. Tal relação entre razão e fé é, por sua vez, concebida como
um confronto entre o objeto da razão e o objeto da fé, isso é, entre o Deus
dos filósofos e o Deus de Jesus Cristo, e esse confronto entre objetos leva a
um outro confronto entre o método da razão e o método da fé, ou, diga-
mos, entre prova e crença.
Quando suscito o problema da esperança antes que o da fé ou mesmo
o do amor, meu pressuposto é que um deslocamento de problemática pode
acarretar uma mudança radical na própria natureza do confronto entre filo-
sofia e teologia. A esperança pode dizer respeito à filosofia não tanto pro-
pondo-lhe um objeto - mesmo que seja um objeto além de todos os obje-
tos, um objeto transcendente - mas requerendo uma mudança na organiza-
ção dos sistemas filosóficos. Se houvesse algo na ordem de um iniellectus spei
(como paralelo à expressão intelleetus fidei) poderia suceder que esse intellec-
tus spei, essa íntelígíbílídade da esperança não consistisse em assinalar para
um objeto específico, mas para uma mudança estrutural dentro do discurso
filosófico. Essa mudança estrutural podería concernir ao que chamaríamos o

1. Publicado originalmente com o título "Hope and Structure ofPhilosophical Systerns",


em G. McLEAN- F. DOUGHERTY (eds.), Philosophy and Christian Theology, Procedings
of the American Catholic Philosophical Association, Washington, 1970,55-69.
102 TEXTOS TRADUZLDOS

ato de encerramento do discurso. Da mesma maneira como há um proble-


ma no ponto de partida da filosofia, como sublinharam Descartes e Husserl,
há também o problema do ponto de encerramento - ou melhor, do hori-
zonte - do discurso filosófico.
Esse é o caminho que quero explorar. Minha hipótese de trabalho está
expressa no título desta comunicação: "A esperança e a estrutura dos siste-
mas filosóficos".
Esse título significa que estou em busca de uma relação que encontra
sua expressão no movimento e no "elã" do discurso: em outros termos, estou
em busca de uma relação que diz respeito à finalidade do discurso, ao cum-
primento do desejo que o impele para a frente.
Antes de explorar esse aspecto estrutural do discurso filosófico, que-
ro dizer algumas palavras sobre duas questões preliminares: que significa
esperança para a teologia bíblica? Que tipo de inteligibilidade a esperança
desenvolve?

A TAREFA DE UMATEOLOGIA BíBLICA DA ESPERANÇA

Que é a esperança? Que significa a esperança para a teologia bíblica?


Se queremos respeitar a especificidade da noção, devemos dizer de início
que a esperança não pertence, em primeiro lugar, ao discurso filosófico: os
teólogos do passado tinham razão ao chamar a esperança de "virtude teolo-
gal" - ao lado da fé e do amor. Com esse título, preservavam a dimensão a
que pertence a esperança. É essa dimensão que devemos reconhecer.
Tomo de empréstimo a idéia principal dessa primeira parte ao teólogo
alemão Jürgen Moltmann em sua Teologia da esperança. Jürgen Moltmann é
herdeiro de uma longa tradição de exegetas partindo de Johannes Weiss e de
Albert Schweitzer: para essa escola, o núcleo do Novo Testamento é consti-
tuído pela pregação do Reino de Deus. Se é verdade que o querigma da
Igreja primitiva centrava-se no acontecimento escatológico, então a totalida-
de da teologia deve ser interpretada segundo a norma da escatologia: a teolo-
gia não pode tomar como fio condutor a noção de logos ou de manifestação
que fosse independente da esperança das coisas por vir, ou anteriores a ela. A
tarefa de uma teologia da esperança consistiria em revisar todos os conceitos
teológicos na base de uma exegese dirigida pela pregação do Reino por vir.
Essa revisão encontra uma ajuda significativa em um ensaio paralelo
devido a Martin Buber que opõe o Deus da promessa - o Deus do deser-
to, o Deus da vida errante - aos deuses das religiões da "epifania". Esses
TL4; .. A ..ESPERANÇA.L.AESTRUTURA...OOS.. SISTEMAS FILOSÓFICOS .. 103

deuses aparecem aqui e agora - estão presentes em seus ídolos ou na


figura de seu rei. O Deus de Israel não aparece: é um puro nome que
exclui todas as imagens.
Essa oposição entre o Nome e o Ídolo é a chave de uma série de opo-
sições: a primeira é que ao Nome corresponde uma teologia da história: ao
Ídolo, uma visão cosmológica. A segunda é que o tipo de história que é
coerente com uma teologia do Nome, não é, por sua vez, uma história dada,
centrada em um presente dado: é uma história dirigida para um cumpri-
mento. Nesse sentido, a própria história é a esperança da história; cada rea-
lização, cada cumprimento, é compreendido como o restabelecimento de
uma promessa - o "ainda não" da promessa dá sua tensão à história.
Tais eram as idéias que um teólogo cristão como Jürgen Moltmann
podia encontrar em uma interpretação judaica do Antigo Testamento, prin-
cipalmente a idéia de uma teologia da história levada pela tensão entre pro-
messa e cumprimento.
A questão seguinte para esse teólogo cristão era saber se a pregação
central da Igreja primitiva anunciando o Senhor ressuscitado não significava
o cumprimento da promessa e, nesse sentido, a eliminação da promessa como
conceito central da teologia. Se o Reino de Deus está entre nós, onde está a
promessa? Era precisamente a função de uma teologia cristã da esperança
reinterpretar a própria Ressurreição como um acontecimento escatológico.
Moltmann avança para essa interpretação mostrando que a Ressurreição não
é somente um acontecimento do passado, não é uma manifestação do sagra-
do, como era o caso com as epifanias pagãs: é um acontecimento que abre
um futuro novo e restabelece a promessa, confirmando-a. A Ressurreição é
o sinal de que agora a promessa é para todos os homens; sua significação
permanece no futuro: na morte da morte, na Ressurreição de todo homem
dentre os mortos. Nesse sentido, Moltmann ousa falar do futuro da Ressur-
reição de Jesus: se Cristo é o primeiro nascido dos mortos, então a significa-
ção de sua Ressurreição é incompleta enquanto sua promessa não for reali-
zada em uma nova criação, em uma nova totalidade de ser. Por conseguinte,
a tarefa de uma teologia da esperança, de livrar a pregação "daquele que
vem" de suas falsificações e das cristologias gregas, para as quais a encar-
nação seria a manifestação temporal do ser eterno.
Claro, não sou teólogo, mas filósofo. Não é minha tarefa dizer em que
medida é verdadeiro afirmar que a categoria principal do cristianismo é a
promessa antes que a presença, que Deus é "Aquele que vem" antes que
"Aquele que é". De modo algum pretendo que essa hermenêutica da Res-
.. TEXTOS..TRADUZiDOS
1
1
1

surreiçao seja a única válida e ortodoxa. Digo somente que, mais do que
qualquer outra, ela suscita o pensamento.

A IRRACIONAlIDADE E A RACIONALIDADE DA ESPERANÇA

o primeiro pensamento que a esperança suscita, desde que se aplique


ao campo da experiência humana, é, paradoxalmente, a irracionalidade da
própria esperança. Para uma antropologia existencial, com efeito, a esperan-
ça desenvolve o que Kierkegaard chama de "lógica absurda". Tomamos esse
caminho? E se o tomamos, não devemos renunciar ao projeto de um in-
tellectus fidei et speil Creio que não. Ao contrário, a autêntica racionalidade
da esperança não pode ser apreendida em nenhuma outra parte a não ser no
termo dessa "lógica absurda".
A primeira expressão dessa lógica absurda da esperança deve encon-
trar-se na concepção antropológica de S. Paulo. Paulo foi o primeiro que
tentou elaborar uma interpretação existencial dos dois acontecimentos
cristológicos centrais: a Cruz e a Ressurreição. E essa interpretação existen-
cial é fundamentalmente antinômica: morte do homem velho, renascimento
do homem novo. Esse segundo nascimento é o acontecimento escatológico
em termos existenciais. Contudo, esse acontecimento escatológico não se
pode exprimir por meio de uma lógica da identidade. Devemos exprimi-lo
como uma ruptura, como um salto, como uma nova criação, como um to-
talmente outro.
A expressão mais chocante dessa antropologia antinômica pode achar-
se no famoso capítulo 5º da epístola aos Romanos (5,18-19):
Assim como a culpa cometida por um só levou todos os homens à conde-
nação, assim o cumprimento da justiça por um só levou todos os homens à
justificação que dá a vida.
Não há quem não conheça o paralelismo entre Adão e Jesus Cristo.
Esse paralelismo fornece um quadro retórico para a nova lógica da esperan-
ça que atravessa a lógica do pecado.
Mas o dom gratuito de Deus e a culpa não têm a mesma medida. Com
efeito, se a morte feriu a multidão dos homens pela culpa de um só, quan-
to mais a graça de Deus cumulou a multidão, essa graça que é dada em
um só homem, Jesus Cristo... Com efeito, se por causa de um só homem,
pela culpa de um só homem, a morte reinou, quanto mais por causa de
Jesus Cristo, e dele só, reinarão na vida aqueles que recebem em plenitude
o dom da graça que os toma justos [Rrn 5,15-17).
IL4:A HPERANÇAE A ESTRUTURA. O.O.L51STEMAS. fiLOSÓfICOS 105

Tal é a lógica absurda da esperança, expressa por essa fórmula gramati-


cal: quanto mais, quanto mais.
A lógica do crime e da punição era uma lógica da equivalência ("o
salário do pecado é a morte"), a lógica da esperança é uma lógica de acrés-
cimo e de superabundância ("Onde abundou o pecado, a graça superabun-
dou", 5,20-21).
Essa lógica absurda é a lógica da esperança em oposição à lógica de
repetição. A esperança representa a superabundância da significação em opo-
sição à abundância do não-sentido, do fracasso e da destruição.
A significação existencial dessa lei de superabundância é rica e com-
plexa. Há várias maneiras de viver segundo esse acontecimento escatológico
da nova criação. V árias maneiras: pessoal e coletiva, ética e politica. Todas
essas maneiras são irredutíveis à pura sabedoria do eterno presente: trazem
a marca do futuro do "ainda não" e do "quanto mais": nos termos de
Kierkegaard, a esperança faz da liberdade a paixão pelo possível, contra a
triste meditação do irrevogável. Essa paixão pelo possível é a resposta da
esperança a todo amor níetzscheano do destino, a toda adoração do destino,
a todo Amor fatio
A paixão pelo possível não implica nenhuma ilusão: sabe que toda res-
surreição é uma ressurreição dentre os mortos, que toda criação nova é a
despeito da morte. Como costumavam dizer os Reformadores, a Ressurreição
está escondida sob seu contrário, a Cruz. Com efeito, considerada desse pon-
to de vísta da esperança, a vida não é somente o contrário, mas a negação da
morte: essa negação repousa sobre sinais, não sobre provas. Interpreta de uma
maneira criativa os sinais da superabundância da vida a despeito da evidência
da morte. O "tanto mais" da lei da superabundância não pode abrir mão do "a
despeito de", a despeito da morte, que dá à esperança sua lucidez, sua serie-
dade, sua determinação. De minha parte, direi que a liberdade é a capacidade
de viver segundo a lei paradoxal da superabundância, da negação da morte e
da afirmação do excesso de sentido sobre o não-sentido' em todas as situa-
ções desesperadas.
Tais são os aspectos da irracionalidade da esperança. É somente em ter-
mos de paradoxo que podemos falar da paixão pelo possível, da negação da
morte, do "quanto mais" da graça, do excesso do sentido sobre o não-sentido.

2. Pelas expressões "sentido" e "não-sentido" desejo unir os aspectos lógico, ético, exis-
tencial e religioso do sentido e do não-sentido da vida. Talvez S. Paulo tivesse a mesma
intenção quando falava de "pecado" em um desígnio mais amplo do que moral.
106 T~XTQ5TRAD.UZIDQ5

A questão agora é saber se essa pretensa irracionalidade da esperança


não desenvolve um outro tipo de racionalidade. Falamos da lei da supera-
bundância. Não é ela a chave de uma outra lógica, uma lógica da existência
para a qual o excesso de sentido sobre o não-sentido seria a regra? No en-
tanto, uma lógica da identidade e da equivalência - equivalência entre pe-
cado, morte e castigo - está superada. Não há uma outra lógica - que
podemos chamar lógica dialética? Para essa outra lógica, é o excesso do sen-
tido sobre o não-sentido que engendra o pensamento.
A segunda parte dessa comunicação será consagrada a essa lógica dialé-
tica sugerida pela esperança ou, ao menos, a uma introdução a essa lógica
dialética. Essa segunda parte poderia ser colocada sob o título de Spero ut
íntellígam: espero para compreender. Mas não estaremos em condição de
desenvolver todas as implicações desse íntellectus spei, o que implicaria um
sistema completo de pensamento e de ação. Restringimos nossa pesquisa à
constituição do discurso filosófico e encontraremos o equivalente racional
da esperança em um aspecto estrutural desse discurso.
Como disse por antecipação na introdução, esse aspecto estrutural con-
cerne ao ato de encerramento desse discurso. Ao problema "ponto de parti-
da" em filosofia, oporemos o problema do "ponto de encerramento" [clôture],
ou, para dizer melhor, o horizonte do discurso filosófico.

"SPERO UT INTElllGAM"

A fim de explicar o que entendo por horizonte e para explorar a rela-


ção que pode eventualmente ser encontrada entre a esperança e a estrutura
do horizonte dos sistemas filosóficos, proponho considerar dois tipos de sis-
temas filosóficos opostos em relação ao que chamei ato de encerramento do
discurso: o tipo hegeliano e o tipo kantiano. Pelas necessidades da demons-
tração, não os considerarei como sistemas individuais, mas precisamente como
tipos. Visto que a ordem histórica não é essencial ao intento, começarei pelo
sistema hegeliano.
Como se sabe, no pensamento hegeliano, o horizonte do sistema é cha-
mado saber absoluto. Que sorte de horizonte o saber absoluto representa
para o resto do sistema? De modo algum um sentido por vir; um campo
inexplorado de significações, mas a repetição filosófica das mediações ante-
riores. Não há nada de novo no saber absoluto; só faz concluir a reconcilia-
ção já em obra nas fases sucessivas da progressão filosófica entre certeza e
verdade. No Prefácio da Fenomenologia de Espírito, Hegel afirma que a ver-
IT4:AESPERANÇA. L A ESTRUTURA. DOS SISTEMAS. FILOSÓfiCOS. 107

dade, que existia somente por si mesma ao longo do desenvolvimento dialé-


tico das figuras, existe por si mesma no fim do processo. Há agora adequa-
ção entre o sentido imanente do processo e o sentido que esse processo tem
para nós enquanto filósofos. Essa adequação é o saber absoluto. O saber
absoluto não é de modo algum uma significação nova e última que poderia
acrescentar-se ao desenvolvimento precedente, é esse próprio desenvolvi-
mento enquanto absolutizado: ou melho~, é a significação final que dá sen-
tido a todas as significações intermediárias. O sistema hegeliano é um siste-
ma escrito do fim para o começo, a partir do ponto de vista da totalidade,
em direção a acabamentos parciais do sistema.
E esse fim não é algo que poderia ser aguardado ou esperado: é o eter-
no presente do pensamento, que sustenta a história do pensamento. Não é
por acaso que as últimas páginas da Enciclopédia das Ciências Filosóficas são
dedicadas ao comentário do livro treze da Metafísica de Aristóteles. O saber
absoluto é esse pensamento divino que Aristóteles chamava "noesis noéseõs"
- o pensamento do pensamento. Mas para Hegel, esse pensamento do pen-
samento é idêntico ao sistema tomado como um todo, uma sorte de sumário
recapitulativo de todas as noções intermediárias. Se interpreto corretamente
o conceito de saber absoluto de Hegel, podemos dizer que o sistema hege-
Bano representa o contrário de uma filosofia da esperança. É uma filosofia
da reminiscência pela qual a racionalidade pertence ao todo como presente:
essa discordância entre Hegel e o intelleetus fidei et spei aparece claramente
no famoso texto que encerra o Prefácio dos Principias da filosofia do Direito',
A filosofia chega sempre demasiado tarde. Se isso é verdade quanto à
filosofia, o que se diria quanto à razão? Com essa questão somos remetidos
de Hegel a Kant, ou melhor, do tipo hegeliano ao tipo kantiano de filosofia.
Mas antes de considerar esse tipo kantiano, desejo fazer uma nota geral
a respeito da relação entre Kant e Hegel. Essa relação não é simplesmente
uma antítese. Para nós e entre nós, leitores modernos de Kant e de Hegel,
instaurou-se uma espécie de debate, e de debate recíproco, que, por razões
evidentes, não podia ter lugar entre os autores mesmos. Graças a esse deba-
te, algo de Hegel superou Kant, mas algo de Kant superou Hegel. Essa troca
e mútua correção foram possíveis porque nos tomamos tão radicalmente

3. Em todo caso, a filosofia entra em cena demasiado tarde para dar uma instrução
sobre o que o mundo deveria ser. Como pensamento do mundo, aparece somente quando
a realidade já está toda feita depois do processo de formação A coruja de Minerva "esten-
de as asas somente ao cair da noite". Hegel, Filosofia do Direito.
108 TEXTOS. TRADUZIDOS

pós-hegelianos que somos pós-kantianos; penso que essa permutação mode-


la ainda o discurso filosófico de hoje. A presente discussão, que trata do
encerramento do discurso filosófico, vai ajudar-nos a comentar o que acon-
tece quando a maneira kantiana e a maneira hegeliana se confrontam e, por
assim dizer, estão em intercâmbio em nosso meio.
A maneira como quero proceder abre-se pela importante distinção fei-
ta por Kant entre entendimento (Verstand) e razão (Vernunft). Essa dualida-
de tem muitas implicações que são adaptadas ao intellectus fidei et spei. Como?
Principalmente graças à função de horizonte assumida pela razão na dupla
constituição do conhecimento e da ação. Nos dois campos, a razão significa
primeiramente a exigência de uma totalidade de significação; depois, a im-
possibilidade e mesmo a proibição do acabamento de toda totalidade dada
e, portanto, finalmente, a projeção de uma tarefa que é o equivalente filosó-
fico da esperança e a aproximação filosófica mais apropriada para a liberda-
de segundo a esperança.
Somos levados a opor dois estilos filosóficos, o de uma filosofia do sa-
ber absoluto e o de uma filosofia dos limites. E não temos só de opô-las,
mas também de pensá-las juntamente, não só uma contra a outra, mas uma
através da outra.
Digamos antes de qualquer coisa qual parte da filosofia kantiana consi-
dero superada por Hegel: seremos então capazes de isolar a parte dessa filo-
sofia que merece sobreviver à critica.
Gostaria de dizer que a parte morta do sistema kantiano é sua ética do
dever: penso que Hegel a pintou corretamente dizendo que é uma maneira
abstrata de pensar, isto é, segundo a noção rigorosa da abstração, um pensa-
mento que separa, que isola, que divide; nesse caso, separa a forma de seu
conteúdo; o dever, do desejo; a coerência, da vida; a universalidade, da hísto-
ricidade; a legalidade, da eficácia; a racionalidade da realidade. Nesse senti-
do, a Crítica da razão prática é somente uma crítica da inteligência "que
julga" e não da razão prática efetiva e reaL Aqui estou totalmente de acordo
com a crítica hegeliana da moral kantiana e oponho a essa moral abstrata o
conceito hegelíano do direito, definido como atualização da liberdade. Nesse
sentido, o dever e, em geral, toda moralidade formal seriam só um segmento,
o mais abstrato de todos no seio do processo global da história, graças ao
qual a liberdade toma-se real; desse ponto de vista, a história do contrato e
da lei penal e esse tipo de racionalidade em obra na vida econômica e polí-
tica são mais significativos para a atualização da liberdade que toda moral
da pura intenção, privada de todo impacto sobre os desejos individuais e
TL4:A ESPERANÇA LA f5TRUTURADOS.5JSTfMAS FILOSÓFICOS 109

sobre as instituições coletivas. Não hesito em dizer que uma filosofia moder-
na da vontade deveria considerar tão atentamente o gênero de filosofia con-
creta e prática desenvolvido nos Princípios da filosofia do direito de Hegel,
quanto a filosofia abstrata do dever recebida de Kant. Só essa grande filoso-
fia da vontade inspirada em Hegel poderia unir intimamente a herança de
Aristóteles e a de Kant. Nesse sentido, essa vasta filosofia da vontade está
ainda por fazer-se. Não pertence ao passado, mas ao futuro. Sua tarefa é a
que Hegel concebia para ela nos Princípios da filosofia do direito; é a teoria
da atualização da liberdade no seio da realidade histórica do homem.
Agora vem a questão: qual é o horizonte desse processo de atualização
da liberdade? Neste ponto precisamente começa meu desacordo com o es-
tilo hegeliano de filosofar e, com esse desacordo, a possibilidade de um re-
torno a Kant.
O conceito de atualização da liberdade, pelo qual definimos o campo
da razão prática, tem duas dimensões, a do cumprimento e a da pretensão
não cumprida. E essas duas implicações pertencem à estrutura da atualiza-
ção como tal. Por um lado, a ação humana faz sentido porque podemos
discernir em certos pontos uma adequação entre racionalidade e realidade;
nesse caso, o axioma hegeliano é verdadeiro: o que é racional é real, o que é
real é racional. Entre esses casos podemos citar, sempre com Hegel, a lei
contratual da troca, a aquisição da lei penal, a conquista de direitos civis e
alguns aspectos do Estado moderno. A fim de compreender esses casos de
realidade racional, ou de real racionalidade, desejamos um gênero de dialé-
tica que, como a dialética hegeliana, é uma dialética feliz, isto é, uma dialéti-
ca em que a negação é absorvida na mediação. Para uma tal forma de dialé-
tica feliz, para a qual a filosofia não é profecia mas reminiscência e recapitu-
lação, o animal fetiche era bem escolhido, a saber, a coruja de Minerva, a ave
que "estende suas asas somente ao cair da noite".
Mas, por outro lado, esses casos cobrem todo o campo da realidade
humana? Não são antes uma sorte de ilhotas de racionalidade rodeadas de
irracíonalídade? A filosofia hegeliana da ação não é uma forma de extrapo-
lação baseada na experiência limitada de êxitos realizados da humanidade?
Graças a essa extrapolação, a esfera da realidade racional ou da racionalida-
de real é declarada como equivalente com o saber absoluto que Hegel en-
controu no livro 13 da Metafísica aristotélica e na nova tradição platônica.
Dai a questão: Hegel não destruiu o "elã "da ação excluindo a segunda
dimensão da ação, a da pretensão inacabada, que contrabalança a primeira, a
do êxito acabado?
110 TEXTOS. TRADUZIDOS

Temos uma importante razão para pensar que um horizonte de reivin-


dicações inacabadas pertence à mais autêntica experiência da ação. Essa ra-
zão liga-se a nossa experiência do mal. Cada um de nós tem alguma idéia
dessa experiência e da diferença entre o mal e o fracasso. Compreendemos
que o fracasso é fundamentalmente técnico, Lé., não conceme a uma discre-
pância contingente entre o fim e os meios, e enquanto tal poderia ter sido
evitado ou reparado: que o mal conceme à origem da ação e não só às dis-
posições técnicas dos meios em relação com o fim; que há algo de quebrado
no próprio coração da ação humana que impede nossa experiência parcial
dos sucessos acabados de considerá-los como correspondendo ao conjunto
do campo da ação humana.
É essa ruptura, essa cesura que é recusada pela pretensão hegeliana ao
saber absoluto e à sua extensão ousada da racionalidade parcial à racionali-
dade total. Para Hegel o filósofo só pode falar de negações que podem ser
mediatizadas, i.é., superadas por uma negação da negação. O mal é somente
um caso entre as negações não mediatizadas e o perdão dos pecados sim-
plesmente um caso de mediação em curso, como lemos no fim do capítulo
VI da Fenomenologia do espírito. A cegueira diante da realidade do mal e
diante da especificidade da experiência humana a respeito do mal, não pode
separar-se dessa outra cegueira que acabamos de denunciar; a cegueira dian-
te da reivindicação não cumprida que é a contrapartida do acabamento re-
matado, a que se liga a filosofia da ação de Hegel.
Como dizia, com esse desacordo começa nosso retomo a Kant. Para mim,
Kant continua sendo o filósofo que pensou os limites do conhecimento e da
ação e que ligou a possibilidade de uma filosofia da esperança a essa mediação
sobre as limitações teóricas e práticas do homem. Nesse ponto poderiamos ser
tentados a ir diretamente para a última obra de Kant, A religião nos limites da
simples razão, e assim alcançar imediatamente o ponto em que a noção do mal
radical leva à da regeneração, que é um outro nome da esperança, o nome filo-
sófico da esperança, se assim podemos falar: Mas por essa maneira de saltar
diretamente ao fim erraríamos o alvo, que não é localizar em alguma parte o
tema da esperança, como um tema último, mas compreender como pertence à
estrutura do sistema. A esperança não é um tema que vem depois dos outros
temas, a idéia que fecha o sistema, mas um impulso que abre o sistema, que
rompe o encerramento do sistema: é uma maneira de reabrir o que fora indevi-
damente fechado. Nesse sentido, pertence à estrutura do sistema enquanto tal.
Se é essa a função da esperança nos sistemas filosóficos, não podemos
separar a terceira questão posta por Kant no Opus postumum, das duas ou-
TI A: A ESPERANÇA E A . ESTRUTURA nos. SISTEMAS FILOSÓfiCOS 111

tras que a precedem. As três questões são assim formuladas: Que podemos
saber? Que devemos fazer? Que temos o direito de esperar? Essas três ques-
tões constituem um esquema único, uma estrutura inseparável, e o jogo dos
verbos defectivos - poder (kõnnen), dever (müssen) e ter o direito (dürfen)
- adverte-nos que a interconexão entre saber; fazer e esperar deve ser res-
peitada segundo as atitudes governadas pelas três expressões kõnnen, müssen,
dürfen. O conhecimento é o que nós podemos, o fazer é o que nós devemos,
o esperar é ao que temos direito, ou a que somos autorizados.
É a razão pela qual não devemos saltar diretamente ao fim e nos en-
carregar de resolver a última conexão entre o mal e a regeneração. A fim,
precisamente, de compreender essa última conexão na obra de Kant, deve-
mos fazer o desvio que parte da primeira Critica e passar através da dialéti-
ca da segunda Critica, e só depois alcançar o nível de uma abordagem filo-
sófica do que a religião compreende por pecado e perdão e, então, tentar
elaborar, nos limites da razão apenas, o equivalente filosófico da esperança,
que é a regeneração.
Se não começamos verdadeiramente pela primeira Critica e por sua
Dialética, perdemos algo de essencial a uma filosofia da esperança, a saber; a
destruição do saber absoluto. Entre esperança e saber absoluto nós devemos
escolher. Não podemos ter ambos. Ou um ou outro, mas não os dois ao
mesmo tempo. É a função da Dialética da razão pura destruir o objeto abso-
luto do qual o saber absoluto podia ser considerado como equivalente: o
sujeito metafísico, um conceito não contraditório da livre causalidade, e aci-
ma de tudo um conceito filosófico de Deus, digamos, do Deus dos filósofos.
Uma filosofia da esperança deve então confrontar-se com o que Kant cha-
mava de ilusão transcendental, que ocupa o lugar do conceito hegeliano do
saber absoluto. O campo da esperança tem exatamente a mesma extensão
que o da ilusão transcendental. Eu espero no lugar mesmo onde sou enga-
nado pelos pretensos objetos absolutos: "Eu" como substância, "liberdade"
como objeto no mundo, "Deus" como ser supremo e como causa de todas as
causas, como o todo de toda realidade parcial. Nesse sentido, a razão deve
primeiro desesperar, desesperar do absoluto, desesperar dela mesma, enquanto
pretende alcançar o absoluto sob a forma de um objeto de conhecimento
Mas o desespero, na Crítica da razão pura, não é um sentimento, uma emo-
ção: é um processo, uma operação, o ato positivo de colocar um limite à
pretensão da inteligência e da sensibilidade a que a inteligência está ligada
- a pretensão de captar o absoluto como um objeto de conhecimento, sub-
metido às condições do espaço e do tempo. Esse ato de desespero é já um
112 TEXTOS TRADUZlD.OS

ato de esperança, porque não é o pensamento do Incondicionado que é


destruído, mas a pretensão de tornar equivalente esse pensamento do incon-
dicionado um conhecimento objetivo que avança de condição em condição.
A ilusão transcendental torna-se dessa maneira o instrumento da sepa-
ração entre o Denken e o Erkennen - Denken como o pensamento do in-
condicionado, Erkennen como o trabalho do entendimento, como o conheci-
mento através dos objetos. Esse ato disjuntivo, que Kant chama de limite, é
a resposta à primeira das três questões: que posso saber?
É esse o primeiro passo de uma filosofia da esperança: consiste em um
ato de renúncia pelo qual a pura razão especulativa abandona sua pretensão
de acabar o pensamento do incondicionado na linha do conhecimento dos
objetos empíricos: esse repúdio pela razão de sua pretensão absoluta é a
última palavra da razão teórica.
Essa estrutura teórica que inclui o pensamento do incondicionado, a
teoria da ilusão transcendental, a crítica dos objetos absolutos, a posição de
um limite, é essencial ao íntellectus spei. Fornece um quadro para muitas
concepções pós-hegelianas críticas da metafísica e da teologia racional: mes-
mo o ateísmo pode ser reinterpretado como um aspecto da mesma crítica
da ilusão transcendental em uma filosofia dos limites: por essa reinterpreta-
ção, o ateísmo pode ser curado de uma outra ilusão, de sua própria ilusão:
da ilusão que coloca o homem no centro e o transforma em um novo abso-
luto. O pensamento do incondicionado nos protege dessa última ilusão, que
poderíamos chamar a ilusão antropológica.
Dessa maneira podemos compreender que uma filosofia dos limites
não encerra o discurso filosófico mas rompe a pretensão que nutre o conhe-
cimento objetivo de encerrá-lo no nível dos objetos espaço-temporais. O
limite é um ato que abre, porque é um ato que rompe o encerramento.
Nesse sentido, já pertence à esperança, a despeito de ser puramente negati-
vo, como a destruição de uma ilusão e de uma pretensão.
Agora, que é que a segunda Crítica, a Crítíca da razão prática, acres-
centa a essa dialética? Essencialmente, estende para a vontade a mesma es-
trutura, o mesmo ato de pôr fim ao discurso filosófico de uma maneira que
ao mesmo tempo rompe o encerramento e abre um horizonte.
O tema principal da dialética da Razão prática é o conceito de bem
supremo. Essa idéia clássica recebe, na dialética kantiana, uma significação
nova: não é uma segunda versão do objeto absoluto que foi excluído da
esfera da razão teórica, é uma exigência prática, a do cumprimento da von-
tade. Essa vontade requer uma espécie de totalidade incondicionada que
ITA:~ESPERAN ÇA.E A ESTRUTURA D05_SI5TEMAS.fJL05ÓHCOS._ .. ..... _113

não é cumprida pelo conceito de dever, ou de lei moral, mas somente pela
síntese da virtude e da felicidade: essa exigência abre uma nova antinomia,
porque devemos acrescentar ao conceito de virtude uma noção que tínha-
mos de excluir da definição do princípio moral. Essa antinomia entre a inte-
gralidade do objeto completo da razão prática e a pureza da vida moral tem
o mesmo tipo de fecundidade que as antinomias cosmológicas que separam
a razão dela mesma no nível especulativo. Essa antinomia prática nos impe-
de de introduzir uma espécie de interesse, em nome da felicidade. Por mi-
nha parte, considero essa antinomia da razão prática como um quadro signi-
ficante para outras críticas pós-hegelíanas da religião, por exemplo, para a
crítica freudiana que desmascara uma certa necessidade infantil de seguran-
ça e de proteção por trás da pregação da recompensa e da consolação. Kant
ensina-nos que a reconciliação entre a pureza dos motivos e a exigência da
felicidade não está à nossa disposição como algo que pudéssemos adquirir
por nós mesmos ou possuir. Essa conexão (Zusammenhang) deve permane-
cer uma síntese transcendental entre o trabalho do homem e o cumprimen-
to do desejo que constitui a existência.
É essa a segunda aproximação pela razão da significação filosófica da
esperança: é a antecipação, a espera de uma conexão entre a pureza do co-
ração e a satisfação de nosso desejo mais íntimo. Essa espera é racional no
sentido que é pensada como uma conexão necessária, como uma síntese a
priori entre termos que a inteligência isola e opõe. A antinomia não é supe-
rada por esse terceiro termo que seria homogêneo aos termos contraditó-
rios, mas por um termo heterogêneo e transcendente que se situa no hori-
zonte da racionalidade.
Por conseguinte, a síntese prática não viola as regras da filosofia dos
limites. Nada acrescenta a nosso conhecimento do mundo: completa nossa
vontade sem estender a esfera do conhecimento objetivo.
Se tomarmos em consideração essa idéia de uma síntese prática que é
ao mesmo tempo requerida mas não dada, os famosos "postulados da razão
prática" aparecem como um simples comentário da síntese prática. Expri-
mem nossa experiência em um total cumprimento das exigências da razão.
Falam de uma "extensão", de um "acréscimo", de uma "abertura" que nunca
podem ser convertidos em uma intuição intelectual pela qual a metafísica
clássica e a teologia racional seriam sub-repticiamente restabelecidas. Os
postulados da razão prática falam de Deus, da imortalidade e da liberdade
além de uma espécie de "morte especulativa de Deus", implicada em uma
filosofia dos limites. E não falam de Deus, da imortalidade e da liberdade
114 ... TEXTOS... JRADUZI.DDS

senão de uma maneira prática, a saber, como implicações existenciais de


estrutura da ação, como condições existenciais para a atualização da liberda-
de. Falam da realidade graças à qual a liberdade pode existir. Essa realidade
pode somente ser postulada; essa expressão significa que na linguagem da
racionalidade, a modalidade da crença permanece a da hipótese, e não a da
evidência. Do ponto de vista epistemológico, a esperança não é apodítica,
mas hipotética: sua necessidade não é a da evidência especulativa, como o é
para Hegel: a necessidade da esperança não é epistemológica, mas prática e
existencial. Essa necessidade é imanente a uma vontade que aguarda e exige
o cumprimento de seu desejo de reconciliação; essa necessidade é da razão
prática, não do saber absoluto. O Deus dos postulados não é uma entidade
sobre a qual pudéssemos especular: Deus é concebido como a origem de
um dom, o dom dessa reconciliação de que falamos antes, entre a pureza do
coração e a necessidade de felicidade. A significação aqui implicada perma-
nece a de uma crença; no entanto é uma "crença racional", tanto mais que
essa conexão pode compreender-se e ser pensada como necessária do ponto
de vista prático.
Tal é o segundo passo do longo caminho de desvio que tínhamos pre-
tendido tomar antes de alcançar a segunda obra de Kant, A Religião nos
limites da simples razão. Se tivéssemos saltado as etapas preparatórias - a
crítica da ilusão transcendental, os paradoxos e antinomias da razão prática
- seríamos tentados a opor ao conceito hegeliano do saber absoluto um
conceito vazio de crença e de esperança. De fato, o último livro de Kant foi
muitas vezes tratado à parte do conjunto da estrutura de uma filosofia dos
limites. É somente no fundo de todo o sistema que a principal doutrina
desse livro pode ser compreendida.
Como é bem sabido, o problema do mal abre a investigação específica
desse livro. Contudo, o mal é um problema para o filósofo somente na me-
dida em que pertence à problemática da atualização da liberdade: o mal faz
da liberdade uma impossível possibilidade. Apesar do fato de que o mal
vem de nossa liberdade, não está mais em nosso poder mudar essa natureza
adquirida da "vontade má". Podemos mudar a máxima de nossas ações; não
podemos mudar a natureza de nossa liberdade. Aqui atingimos o fundo do
abismo. Como notou Karl Jaspers, Kant leva aos extremos sua filosofia dos
limites. O tema do mal radical desempenha aqui o mesmo papel que o da
ilusão transcendental na filosofia especulativa: acrescenta um desespero prá-
tico ao desespero teórico. Esse duplo desespero é o reverso da esperança. O
postulado da liberdade deve agora passar através da noite do entendimento,
IL4:AESPERANÇA. E.AESTRUTURADOS.SISTEMAS Hl05ÓJJCOS... ................... 115

com a crise da ilusão transcendental, e pela noite da impotência, com a crise


do mal radical. Uma liberdade real pode somente ser esperada além dessa
sexta-feira santa especulativa e prática. Em parte alguma estamos tão perto
do querigma cristão como aqui: a esperança é esperança na ressurreição, na
ressurreição dentre os mortos. Em termos filosóficos: o mal exige uma trans-
formação não ética e não política de nossa vontade, que Kant chama rege-
neração: é a tarefa de uma "religião nos limites da simples razão" elaborar a
condição de possibilidade dessa regeneração, sem alienar a liberdade nem a
uma concepção mágica da graça e da salvação nem a uma organização auto-
ritária da comunidade religiosa.
Nesse sentido, a critica kantiana da teologia clássica, quer medieval quer
luterana, deve ser tomada a sério e considerada como uma contribuição posi-
tiva ao que podemos chamar de critica da esperança nos limites da pura razão.
Quero agora concluir esta comunicação com as proposições seguintes:
1. O problema da esperança, em comparação com o da fé, é menos o
problema de um objeto específico que o da finalidade do discurso
filosófico e teológico. A filosofia e a teologia são concernidas pela
esperança na maneira como ambas estão ligadas no ponto respectivo
do encerramento de seu horizonte.
2. A tarefa específica da teologia, sob esse aspecto, é ligar a pregação
da esperança e da ação humana - ética e política - à pregação
central da Igreja, a do Senhor ressuscitado. Em outros termos, a teo-
logia compreende a esperança como a antecipação através da histó-
ria da ressurreição de todos os homens dentre os mortos.
3. Enquanto tal, a esperança é ao mesmo tempo irracional, como sen-
do "a despeito" da morte e "além" do desespero, e racional, como
afirmando uma lei nova, a lei da superabundância, da superabun-
dância do sentido sobre o não-sentido.
4. O equivalente filosófico da esperança e de sua lei da superabundân-
cia deve encontrar-se na forma de dialética que rege a relação entre
a liberdade e a plena atualização. Enquanto a dialética hegeliana,
que é uma dialética conclusiva, é o equivalente filosófico de uma
teologia especulativa centrada no eterno Agora da verdade, a dialéti-
ca kantiana, que é uma dialética não conclusiva, tem mais afinidade
com uma teologia da esperança, i.é., com uma interpretação do cris-
tianismo para a qual a esperança não pode ser resolvida pela gnosis e
para a qual, portanto, a esperança abre o que o conhecimento pre-
tende fechar.
116 TEXTOS.. IRADULID05

5. Entre uma filosofia da esperança e essa espécie de dialética não con-


clusiva há não só uma relação de correspondência, que permanece
ainda uma relação estática, mas uma relação dinâmica que chamo
de relação de aproximação. Por aproximação entendo o esforço do
pensamento para aproximar-se cada vez mais do acontecimento es-
catológico que constitui o centro de uma teologia da esperança.
Graças a essa ativa aproximação da esperança pela dialética, a filoso-
fia sabe algo e diz algo da pregação pascal. Mas o que ela sabe e diz
permanece nos limites da pura razão. É nessa auto-restrição que re-
sidem ao mesmo tempo a responsabilidade e a modéstia da filosofia.
TT5

o texto
como
identidade dtnámlca'

T oda discussão da identidade - inclusive a identidade do texto - é


destinada a passar entre dois escolhos: o de tomar identidade em um
sentido demasiado restrito de identidade lógica, ou de ceder às delícias do
jogo da semelhança e da diferença, segundo o modelo de Platão no Sofista e
no Parmênides, para não falar do tratamento obscuro da ldentuâi und Differenz
("identidade e diferença") Meu propósito é seguir uma via intermédia entre
a Caribde da identidade lógica e a Sila da identidade da identidade e da
diferença, falando da identidade dinâmica do texto. Ao longo dessa terceira
via, tenho a intenção - com a esperança - de conservar algo, de um lado,
da busca da lógico em vista de critérios mínimos de identificação, sem ceder
à sua reivindicação segundo a qual a identificação se reduz ao reconheci-
mento não contraditório e tautológico de alguma entidade atemporal; de
outro, ficar aberto a uma reavaliação radical da noção de identidade, sem
ceder à falta de interesse pela críteríologia, como nos pré-socráticos moder-
nos. Mas a noção da identidade dinâmica do texto deveria ao mesmo tempo
refletir algo das reivindicações de cada campo, e resistir a suas estratégias
opostas de intimidação.
Gostaria de tomar duas liberdades preliminares. Permitam-me primei-
ro fixar meu ponto de partida no campo de pesquisa que atualmente é o

1. Publicado originalmente em M. 1. V ALDES - O. MILLER (eds.), Identity of the Literary


Text, Toronto, 1985, 175-186.
118 .. TEXTOS TRADUZI 0.05

meu, o da narratividade no sentido amplo, incluindo a narrativa histórica


como também a ficcional. Permitam-me, além disso, concentrar-me na fun-
ção estrutural da intriga para seguir a Poética de Aristóteles, que coloca sob
o termo de "intriga" não só o argumento de uma narrativa - a intriga no
sentido estrito - mas também os personagens, o tema, o ponto de vista ou
voz narrativa - em suma, todos os componentes do processo integrativo
que estabelece uma narrativa como uma ação imitada, inteira e completa.
É a identidade dinâmica do processo que estrutura o pôr em intriga
que quero colocar à prova neste artigo, na esperança de que, apesar da es-
treiteza deliberada de meu ponto de vista, essa pesquisa destaque alguma
perspectiva mais ampla donde contemplar o ato de composição poética que
Aristóteles chamou poiêsis e que nos dará igualmente acesso a esses traços
da poiésis que sustentam os procedimentos de identificação compatíveis com
seus diversos modos de historicidade.

Procederei do modo seguinte. Reagruparei minhas observações em tor-


no de quatro proposições centrais ou teses, que tomadas em conjunto são
destinadas a definir o que eu gostaria de chamar de identidade dinâmica.

1. Minha primeira tese é que o tecer intriga é o paradigma de toda "sín-


tese do heterogêneo" no campo narrativo.
Como podem ter notado, digo "tecer da intriga" antes que "intriga" a
fim de sublinhar o caráter de processo da própria intriga. Já na Poética de
Aristóteles, todas as definições que concemem ao mythos (quer dizer, a fá-
bula, a história ficcional) da tragédia e da epopéia são substantivos deriva-
dos de verbos: a fábula - a intriga - diz Aristóteles, é "o arranjo [rystasis,
synthesis] de acontecimentos em uma ação inteira e completa". Para isso,
desejo primeiro sublinhar a função de mediação da intriga. É essa função
mediadora que está subentendida no conceito de uma "síntese do heterogê-
neo". Esse conceito resumia, de fato, muitos traços singulares que tocam o
ato configuracional que faz da história contada um todo temporal.
Ficando perto da definição de Aristóteles do mythos da tragédia e da
epopéia, podemos dizer que a intriga, como "tecer da intriga", serve de media-
ção entre os acontecimentos ou peripécias dispersas (ta pragmata na Poética
de Aristóteles) e a história inteira. Quanto a isso, podemos dizer seja que a
intriga tira uma história inteligível a partir de diversos acontecimentos ou
peripécias, seja que coloque esses acontecimentos ou peripécias em uma his-
tória (As proposições recíprocas "a partir de" e "em" caracterizam a intriga
TL 5:0 IEXTO.COMOIDENTlDAD.LDINÂMIeA 119

como mediação entre esses acontecimentos e peripécias e a ação contada).


Por conseguinte, um acontecimento deve ser mais do que uma ocorrência
singular e deve caracterizar-se como um acontecimento por sua contribui-
ção à progressão da intriga. Por outro lado, uma história deve ser mais do
que uma simples enumeração de acontecimentos postos em uma ordem su-
cessiva: deve organizá-los em um todo inteligivel que permita a quem o
deseje perguntar qual é o "tema" da história.
Em segundo lugar,o tecer da intriga reúne traços tão heterogêneos quan-
to as circunstâncias, os atores, as interações, as intenções, os meios, e os re-
sultados acidentais. O tecer da intriga fornece a esses elementos heterogê-
neos o estatuto ambíguo de um todo concordante-discordante. Obtemos uma
compreensão sintética dessa composição no ato de "seguir uma história"
(Gallie) - ou melhor, no ato de "redizer" a história (Mink) - na medida
em que nessa segunda leitura estamos menos sujeitos ao inesperado e mais
atentos à maneira, como Marx teria afirmado, como os seres humanos fazem
suas histórias de circunstâncias que eles mesmo não fizeram e - eu acres-
centaria - com resultados que não procuraram. O historiador francês Paul
Veyne pode, por isso, definir a intriga como a unidade dinâmica de fins, meios
e contingências. É essa unidade dinâmica que estâ em jogo no processo de
identificação do "que" da história contada. A identidade é a resposta dada à
questão: contar "o quê"?
Em terceiro lugar, de outro ponto de vista, pôr em intriga serve de
mediação à temporalidade própria da composição poética. Essa temporali-
dade mistura duas composições temporais: de uma parte, a sucessão pura,
distinta e interminável do que podemos chamar as peripécias da história: de
outra parte, o aspecto de integração, de cume e de encerramento realizado
pelo que Louis o. Mink chama de ato configuracional da narração. Esse ato
consiste em "tomar em conjunto" as peripécias de uma história criando uma
configuração de uma sucessão. Esse terceiro traço está em relação com a
estrutura dupla do tempo humano. O tempo é, ao mesmo tempo, o que
passa e o que dura. A criação de um todo temporal é precisamente o meio
poético de mediação entre o tempo como passagem e o tempo como duração.
O que tentamos pôr em evidência é a identidade temporal do que dura no
meio do que passa.

2. Minha segunda tese refere-se ao estatuto epistemológico da inteligibili-


dade apresentada pelo ato configuracional do tecer da intriga. Minha tese, aqui,
é que essa inteligilnlidade narrativa possui mais afinidade com a sabedoria
120_ UXTOS. TRADUZIDOS

prática, ou com o julgamento moral, que com a razão teória. Esta tese possui
um importante corolário que diz respeito à relação entre a narratologia con-
temporânea e a ínteligíbilidade própria ao tecer da intriga. Vejo a narratolo-
gia como uma simulação da inteligência narrativa por meio de um discurso
de segunda ordem pertencente ao mesmo nível de racionalidade que as ou-
tras ciências da linguagem. Essa prioridade da inteligência narrativa sobre a
narratologia como disciplina racional é o núcleo de minha segunda tese. An-
tes de considerar essa dependência da narratologia científica em relação à
inteligência narrativa, desejo centrar-me no termo mesmo de inteligível. Aris-
tóteles foi o primeiro a sublinhar a capacidade da poesia de "ensinar", de
veicular significações revestidas de uma certa forma de universalidade. O
próprio ato de configuração da intriga torna-a típica e compreensível, ape-
sar da singularidade de seus "heróis" designados por nomes próprios - ou
graças a ela. Essa tipificação da história permite à poesia ser ligada a essa
outra forma de inteligibilidade, à da ética, que Aristóteles chamava a phro-
nêsis. A phronêsis diz-nos que a felicidade é o coroamento por excelência da
vida e do agir, mas ela não nos diz como obter esse estado de fato. É a
poesia que nos mostra como as mudanças da fortuna, principalmente a vira-
da de fortuna para infortúnio, alimentam-se da prática concreta. Mas mos-
tra-nos isso sob a modalidade hipotética da ficção. No entanto, é por nossa
familiaridade com esses tipos de tessitura da intriga que aprendemos como
ligar experiência e felicidade.
Essa afinidade entre inteligibilidade narrativa e phronêsis - enquanto
oposta à theõria - sugere que os universais produzidos pela intrigas não são
os do saber teórico e da ciência. São universais de uma ordem "inferior",
adaptados ao ato configuracional que atua na composição poética. Uma das
maneiras da caracterizar a inteligibilidade própria do tecer da intriga é des-
cobrir uma outra afinidade, dessa vez uma afinidade com a teoria kantiana
do juízo. Essa afinidade já foi anunciada pela descrição do tecer intriga como
"apreender em conjunto". Ora, apreender em conjunto é "julgar", no sentido
kantiano do juízo, que não consiste tanto em juntar um sujeito e um pre-
dicado, quanto em colocar uma diversidade intuitiva sob uma regra. É pre-
cisamente o gênero de subsunção que o tecer intriga efetua, colocando acon-
tecimentos sob a lei de uma história inteira e completa.
A fim de preservar a força da distinção aristotélica entre phronêsis e theô-
ria, proponho atribuir a operação do tecer da intriga a esse modo de síntese
que Kant chamava o esquematismo, que por sua vez é o núcleo inteligível da
imaginação produtiva. Segundo a Crítica da razão pura de Kant, o trabalho

j
TLS:OTEXTO COMO .1D.E.NTlDADE. DLNÂMICA.. ... 121

do esquematismo é engendrar as regras que podem ser ordenadas sistematica-


mente no nível do discurso filosófico. O esquematismo tem tal poder porque
a própria imaginação produtiva exerce uma função fundamentalmente sinté-
tica. Reúne o nível do entendimento e o da intuição gerando novas sínteses
tanto intelectuais como intuitivas. Da mesma maneira, o tecer da intriga gera
uma inteligibilidade mista entre o que podemos chamar de pensamento - o
tema ou o assunto da história - e a apresentação intuitiva das circunstân-
cias, caracteres, episódios, mudanças de fortuna etc. Podemos assim falar de
um esquematismo da função narrativa para caracterizar o trabalho da inteli-
gíbilidade própria da intriga. É nesse nível intermediário do esquematismo
que identificamos uma intriga. Para continuar com o modelo do esquematis-
mo, que Kant considera a matriz das categorias do entendimento, poderia-
mos dizer que é devido a essa inteligibilídade potencial que as íntrigas parti-
culares, por sua vez, tendem a tomar-se tipologias do gênero daqueles cons-
truídas por Northrop Frye em Anatomy of Criticism. Tais tipologias, na minha
opinião, refletem uma familiaridade intensa com as obras singulares de nossa
tradição ou de nossas tradições narrativas e constituem o esquematismo da
função narrativa, da mesma maneira que as intrigas singulares exprimem a
imaginação produtiva em obra no nível concreto da composição poética.
Essa é a maneira pela qual podemos transpor em termos mais moder-
nos a afirmação de Aristóteles de que a poesia ensina os universais. Esses
universais não são os do pensamento teórico, mas os do esquematismo da
função narrativa. Nós os apreendemos somente ao refletir sobre a auto-estru-
turação de nossa ou de nossas tradições narrativas. Nesse sentido, pertencem
ao ciclo da imaginação produtiva com seu potencial de intelígibílidade e
não ao da razão teórica. Essa afinidade com a imaginação produtiva consti-
tui uma parte de nosso conceito de identidade dinâmica. Identificamos uma
intriga como um produto da imaginação produtiva e segundo um esquema
potencial definido no campo narrativo.
O corolário dessa tese é que a narratologia, tal como praticada com a
precisão e a competência intelectual que admiramos nas obras de Roland
Barthes, Gérard Genette, Tzvetan Todorov, Claude Bremond e, acima de
todos, por A. 1. Greimas, provém de uma mudança de níveis estratégicos.
Acentuando as coerções lógicas que atuam no nível das estruturas profun-
das constitutivas da "gramática" de um relato, a narratologia desloca o inte-
resse científico do nível da mensagem para o nível do código. Pode-se, então,
questionar se o que chamamos tecer da intriga não é puramente uma confi-
guração de superfície de texto e, por conseguinte, se a inteligência narrativa
122 . TE.XTOSTRADUZJDOS

não é simplesmente um modo derivado de compreensão fundado em algu-


ma operação mais fundamental referindo-se a uma racionalidade desprovida
de todo caráter irredutivelmente narrativo.
Minha afirmação é, antes, que esse tipo de racionalidade posto em obra
pela análise lógica das coerções narrativas é que é derivado da inteligência
narrativa. Na minha opinião, o objetivo da narratologia é simular, por meio
de um discurso de segunda ordem, o que compreendemos, no nível do es-
quematismo, como função narrativa. Essa relação de simulação pode encon-
trar-se nas disciplinas lingüísticas que forneceram à poética estrutural um
modelo eficaz, porque um fonema ou um lexema têm um estatuto cultural
anterior à sua definição pela lingüística. A ciência lingüística não se interessa
por objetivos já comprometidos em suas redes simbólicas. Não provoca ne-
nhuma outra prática simbólica cujo objeto já tivesse aparecido como um
objeto cultural distinto. Com os relatos, a situação é completamente diferen-
te: a narratologia é precedida por uma criação cultural anterior que desen-
volve uma íntelígibilídade por sua própria conta. A esse propósito, a raciona-
lidade da narratologia é um corpo estranho à ínteligíbilídade das próprias
narrativas. Um exemplo: em narratologia estamos acostumados a falar de
diacronia e de sincronia. Mas essas categorias, características da nova racio-
nalidade da narratologia, implicam uma fragmentação da aparente unidade
do objeto cultural, de modo a estabelecer, devido à sua fragmentação, um
novo sistema combinatório segundo regras estranhas à estratégia do pôr em
intriga. É em vista dessa nova racionalidade que o tempo narrativo é agora
expresso em termos de diacronia, subordinados à sincronia dos modelos que
regem a lógica narrativa a instalar. O que se chama aspecto cronológico da
narrativa deve agora ser derivado de sua dimensão lógica. Como diz Roland
Barthes em sua Introdução à análise estrutural da narrativa, a tarefa dessa
análise consiste em "descronologizar" o conteúdo narrativo e submetê-lo ao
que Mallarmé chamava "o brilho primordial da lógica". Mas a dimensão "cro-
nológica" de que já se deu conta aqui, já saiu da transformação do produto
da formação poética no objeto de uma ciência que necessita de sua própria
prática de iniciação. Dessa maneira, a tentativa mesma de transformar o ob-
jeto cultural em um objeto de análise estrutural implica que o tempo narra-
tivo é tido como ilusão cronológica. É a substituição da inteligência narrativa
pela racionalidade analítica que exige que o tempo seja relegado ao estatuto
de ilusão cronológica. Na minha opinião, é a tarefa de uma hermenêutica do
tempo narrativo mostrar que a lógica narrativa é um discurso de segunda
ordem, que decorre da inteligência narrativa que pretende engendrar, e que
IL5~O TEXTO COMO IDENTlDAOLDJNÂMlCA . .............. 123

goza do mesmo estatuto epistemológico que a lógica transcendental de Kant


no que diz respeito ao esquematismo da imaginação produtiva.
Por exemplo, pode-se mostrar que na M01fologia do conto folclórico russo,
de Propp, a definição das trinta e uma funções, cuja cadeia constitui o conto
folclórico russo, repousa na definição da função como contribuindo à pro-
gressão do conto como um todo e, nesse sentido, ao seu tecer da intriga. A
apreensão da intriga como um todo auto-estruturante controla as operações
de segmentação e encadeamento constitutivas da abordagem analítica. Não
posso fazer alusão a esse conflito entre uma apreensão teleológica do conto
como um sistema de partes e como um todo, e um encadeamento puramen-
te externo e mecânico de segmentos abstratos, pela enumeração dos sinto-
mas seguintes: a noção de "situação inicial"; a de "parte preparatória"; o papel
da "infâmia" como a função que fornece ao conto sua dinâmica; a descrição
de um pacote de funções como uma "busca"; a função de encerramento assu-
mida por essa última função ("nesse ponto", diz Propp, "o conto vai para um
encerramento"); finalmente, a afirmação de que um conto dado é constituí-
do por um ou muitos "movimentos" (xod): "chamamos esse tipo de desen-
volvimento um movimento (xod): cada novo ato de infâmia, cada nova falta,
cria um movimento". Esse conceito de "movimento" é o exemplo mais cho-
cante do papel oculto desempenhado pela abordagem teleológica do conto
popular como intriga na distribuição das funções ao longo de uma série uni-
linear de funções elementares.
Concluindo a segunda seção do meu artigo, desejo dizer explicitamen-
te que os problemas analíticos característicos de uma abordagem racional
dos textos narrativos são absolutamente legítimos. Sou o primeiro a admirar
as obras dos estruturalistas franceses acima citados. O problema não é esta-
belecer o que é correto ou não, mas a autocompreensão da disciplina exa-
minada. A dita lógica dos relatos é uma disciplina autônoma? Ou reformula
em uma disciplina de segunda ordem o que já está compreendido no nível
do discurso de primeira ordem, o da composição poética constitutiva do
tecer da intriga? Como se pode supor, a identidade do texto significa duas
coisas diferentes, conforme se apóie unicamente nos procedimentos de seg-
mentação e de combinação de uma lógica narrativa, ou então se atribui -
como penso que deveríamos fazer - a reconstrução do texto por procedi-
mentos analíticos à identidade dinâmica assegurada pelo ato poético de con-
figuração. Meu argumento será o de considerar o recurso aos procedimentos
analíticos como um desvio que, partindo de uma compreensão ingênua e
seguindo o longo caminho da explicação, está a serviço de uma compreen-
124 .......... . TEXTOS TRADUZJDOS

são mais amadurecida e leva a uma compreensão "instruída" - ou, às vezes,


talvez, a uma docta ignorantia.

3. Minha terceira tese é que o esquematísmo narrativo é por sua vez


constituído por uma história que participa de todas as características de uma
tradição. Com isso não aludo à transmissão inerte de algum depósito morto,
mas à transmissão viva de uma inovação que pode sempre ser reativada pela
volta aos momentos mais criativos da composição poética. Esse fenômeno
da tradicionalidade é a chave do funcionamento dos paradigmas narrativos
e, por conseguinte, de sua identificação. A constituição de uma tradição re-
pousa no jogo entre inovação e sedimentação. É à sedimentação que pode-
mos atribuir os paradigmas que constituem a tipologia do tecer da intriga
de que acima falamos. Eles - ou antes, sua esquematização - provêm de
uma história sedimentada cuja gênese foi apagada.
A sedimentação está em vigor em muitos níveis, que requerem que se
distinga com cuidado nosso uso do termo "paradigma". Assim, Aristóteles
desenvolve sua análise do tecer da intriga em três níveis, que são por assim
dizer, "nivelados" na Poética. Apresenta primeiro um conceito formal da in-
triga, como a concordância discordante de toda história que engloba peripé-
cias, i.é., contingências em uma ordem temporal de qualquer tipo. Em se-
guida, desenvolve o conceito genérico da tragédia grega, especificado pela
reversão da fortuna em infortúnio, por causa de incidentes lamentáveis e
terríveis, pela falta trágica de um personagem, senão distinto pela excelência
e a ausência de vícios ou de malevolência etc. Esse "gênero" mais ou menos
regulou o desenvolvimento posterior da literatura dramática no Ocidente.
Em terceiro lugar, há algo de paradigmático em obras singulares como a
lliada ou o Édipo-Rei. Na medida em que o laço causal supera a pura suces-
são - o "um por causa do outro" - antes do que "um depois do outro" -
o arranjo das peripécias toma-se um tipo que produz um universal. Dessa
maneira, nossa tradição narrativa foi modelada não só pela sedimentação da
forma de concordância discordante, mas pela do gênero trágico e, finalmente,
pela dos tipos engendrados no nível de obras singulares tratadas como para-
digmáticas. Se admitimos como paradigmáticos a forma, os gêneros e os tipos,
obtemos uma hierarquia de paradigmas que nasceram do trabalho da imagi-
nação produtiva em diversos níveis.
A identificação de uma obra dada começa por esse reconhecimento múl-
tiplo de paradigmas subjacentes. Mas a identificação de uma obra não é esgo-
tada pela identificação de seus paradigmas sedimentados. Leva também em
TLS:_O.. TEXTO COMO.. lDENTI.DADE.DJNÂMICA.

conta o fenômeno oposto da inovação. Por quê? Porque os paradigmas, sendo


engendrados por uma inovação anterior; fornecem um fio condutor para a
experimentação ulterior no campo narrativo. Mudam sob a pressão da inova-
ção, mas mudam lentamente e mesmo resistem à mudança por causa do pro-
cesso sedimentar. A inovação permanece, assim, o pólo oposto da tradição.
Sempre há lugar para a inovação na medida em que aquilo que é ultimamen-
te produzido, na poiêsis do poema, é sempre uma obra individual, esta obra.
Os paradigmas são uma espécie de gramática que rege a composição e obras
novas - novas antes de se tornarem típicas. Cada obra é esta produção origi-
nal, um existente novo no domínio do discurso. Mas o inverso não é menos
verdadeiro: a inovação permanece um comportamento regulado. O trabalho
da imaginação não parte do nada. Está ligado, de um modo ou de outro, aos
paradigmas de uma tradição. Mas pode entrar em uma relação diversificada
com esses paradigmas. A série de soluções é amplamente desenvolvida entre
os dois pólos da repetição servil e do desvio calculado, passando por todos os
y.
graus da "déformation réglée" [deformação regulada Os contos populares,
os mitos e os relatos tradicionais em geral, encontram-se perto do pólo da
repetição. Por isso é que constituem o reino privilegiado do estruturalismo.
Mas logo que deixamos o domínio de tais relatos tradicionais, o desvio torna-
se a regra. A novela contemporânea, por exemplo, pode em grande parte
definir-se como uma anti-novela, na medida em que a contestação dos para-
digmas reguladores prevalece sobre a pura variação de sua aplicação.
Além disso, o desvio pode operar em todos os níveis: na relação aos
tipos, aos gêneros, e finalmente ao princípio mesmo da discordância. O
primeiro modo de desvio - o desvio em relação ao tipo - parece ser cons-
titutivo de qualquer obra singular. Cada obra nova afasta-se de cada obra
precedente. Menos freqüentes são as mudanças de gênero: isso equivale à
criação de novo gênero, por exemplo: o da novela em oposição ao drama e
ao romance, ou ao da historiografia em oposição à crônica. Mas a rejeição
mais radical é a do princípio formal da concordância-discordância. Podemos
deixar aberta a questão da amplidão do espaço de variação autorizada pelo
paradigma formal. Mas podemos já supor que quando a rejeição torna-se
cisma, para empregar os termos de Frank Kermode, não há mais nenhuma
forma narrativa a identificar,
De qualquer modo, a possibilidade do desvio está incluída na relação
entre sedimentação e inovação que constitui a tradição. Sob a forma extre-

2. "Déformatíon réglée", aqui como abaixo, em francês no original inglês.


126 TEXTQSTRADUZIDO_S

ma do cisma, o desvio é simplesmente o contrário da aplicação servil, e a


"deformação regulada" permanece o eixo central em torno do qual as moda-
lidades das mudanças de paradigmas se distribuem. Tal variação confere à
imaginação produtiva uma historicidade em sentido pleno e mantém viva a
tradição narrativa. Se essa análise é correta, a identidade de uma obra não é
outra coisa senão um ponto de equilíbrio entre o processo de sedimentação
e o processo de inovação, e implica uma dupla identificação, a dos paradig-
mas que exernplífica e a do desvio que dá a medida de sua novidade. Essa
dupla identificação leva a noção de identidade perto da linha fronteiriça em
que identidade e diferença se confundem. Mas, como já disse, não me dei-
xarei engolir por esse turbilhão conceitual. Baste notar que a noção de iden-
tidade dinâmica nunca esteve privada de tensões dialéticas, primeiro, entre a
unidade do ato configuracional e a diversidade episódica que reúne; depois,
entre a inteligibilidade dos universais "instruídos" pela intriga e a concretude
dos fins, meios e contingências que o ato configuracional recupera; e, final-
mente, entre os paradigmas identificáveis sedimentados na tradição e o des-
vio identificável que faz a novidade de uma obra nova.

4. Quarta tese. A identidade do texto narrativo não se limita ao que se


chama o "dentro" do texto. Como identidade dinâmica, emerge para a interse-
ção entre o mundo do texto e o mundo do leitor. É nesse ato de leitura que a
capacidade que tem a intriga de transfigurar a experiência é atualizada. O ato
de leitura pode desempenhar esse papel porque seu dinamismo próprio enxerta-
se no do ato configuracional e o conduz a seu acabamento.
Há três etapas nesta quarta tese. Primeiro, fala de uma "interseção" en-
tre dois tipos de mundos. Por mundo do texto, entendo o mundo apresenta-
do pela ficção diante dela mesma, por assim dizer, como o horizonte da expe-
riência possível no qual a obra desloca seus leitores. Por mundo do leitor,
entendo o mundo efetivo em que a ação real se desvela. É um mundo no
sentido em que a ação se produz no meio de circunstâncias que, como o
termo sugere, "rodeiam" a ação; ou, para utilizar a expressão de Hannah Arendt,
na Condição humana, a ação passa-se em uma "rede de relações" no meio das
quais o agente é desvelado em palavras e ações. É o "desvelamento de quem
é o atuante", que implica um mundo como o horizonte das circunstâncias e
das interações que constituem a rede próxima de relações de cada agente.
Para a critica literária, o mundo da ação é o "fora" do texto, como opos-
to ao "dentro" do texto. Enquanto "fora" do texto, é estranho a seu mundo
de investigação. Minha opinião é que essa distinção não dialética entre "den-
TI 5:.0 TEXTO COMO IDENTJDADLDJNÂMICA .. 127

tro" e "fora" não é óbvia, mas resulta da extrapolação de traços que convêm
às entidades inferiores à frase, como as palavras, lexemas e fonemas, às obras
do discurso - isto é, a expressões verbais de tamanho da frase ou mais
longas que ela. É para a lingüística, como ciência dessas entidades menores,
que o dito mundo efetivo que chamamos mundo real, é uma entidade ex-
tra-lingüística. O mundo "fora" só é "fora" para um tratamento da linguagem
que a estabelece como uma série auto-suficiente de entidades a que são
imanentes todas as relações. Isso porém é uma decisão metodológica, cons-
titutiva da lingüística como ciência, tratar a linguagem como um "dentro"
sem "fora", o que toma sem pertinência qualquer exame desse "fora". Para
uma hermenêutica que não toma como assegurada essa separação não dialé-
tica entre um "dentro" e um "fora", o problema é antes compreender como
a linguagem continua a servir de mediação entre o homem e o mundo, mes-
mo quando a função poética, como o faz notar Roman Jakobson, aumenta o
fosso entre os signos e o mundo. Essa tripla mediação de referencialidade (o
homem e o mundo), de comunicabilidade (o homem e o homem) e de
compreensão (o homem e ele mesmo) constitui o problema mais importan-
te de uma hermenêutica de textos poéticos. O que denomino interseção
entre o mundo do texto e o mundo do leitor é somente um dos aspectos
desse problema hermenêutico.
Gostaria de afirmar que a precedente descrição da identidade do texto
narrativo como identidade dinãmica pode ajudar-nos a superar o fosso entre
o mundo da obra e o mundo do leitor, criado pela extrapolação da lingüísti-
ca na poética. Creio que a capacidade da ficção de transfigurar a experiên-
cia está incluída na própria natureza do ato configuracionaI. Como? A se-
gunda parte de minha quarta tese diz que é o dinamismo desse ato configu-
racional que o ato de leitura resume e completa. Nada confirma isso melhor
do que os dois traços precedentes pelos quais acabamos de caracterizar a
ficção nas teses 2 e 3, a saber, a esquematização e a tradicionalidade. Esses
dois traços nos ajudam a dissipar o preconceito que opõe o "dentro" e o
"fora" do texto. Essa oposição está estritamente ligada à concepção da estru-
tura estática e fechada do texto. A noção de uma atividade estruturante
apresentada na operação do pôr em intriga, transcende essa dicotomia. A
esquematização e a tradicionalidade são já as caracteristicas que regem a
interação entre a função operativa da escrita e a da leitura.
De uma parte, os paradigmas recebidos fornecem uma estrutura às ex-
pectativas do leitor e o ajudam a reconhecer e a identificar a regra formal, o
gênero ou o tipo exemplificados pela história narrada. Fornecem um fio
128 . . ...HXIO.SIRADUZlD.OS

condutor para o encontro entre o texto e seu leitor. Em outros termos, regu-
lam a capacidade que tem a história de ser seguida, o que Gallie chamava a
followability ("seguibilidade"). De outra parte é o ato de leitura que, de al-
gum modo, "acompanha" a configuração do relato, e atualiza sua "seguibili-
dade". Seguir uma história é representá-la ou re-atualizâ-la pela leitura. Se,
por conseguinte, o tecer da intriga não se pode descrever como um ato de
juízo no nível da imaginação produtiva, é assim na medida em que o pôr
em intriga é o trabalho conjunto do texto e de seu leitor, da mesma maneira
como Aristóteles chamava de sensação o trabalho conjunto do "que era sen-
tido" e do "que sentia".
Além disso, é o ato de leitura que acompanha o jogo mútuo entre a
inovação e a sedimentação dos paradigmas que esquematiza o tecer da in-
triga. É no ato de leitura que o destinatário joga com as coerções narrativas,
produz desvios, toma parte no combate entre romance e anti-romance e
goza desse tipo de prazer que Roland Barthes chamou "o prazer do texto".
Finalmente, é o leitor que completa a obra na medida em que, segundo
Roman Ingarden, na Estrutura da obra literária, e Wolfgang Iser, em O ato
de leitura, a obra escrita é, de fato, um guia para a leitura, mas no entanto
fica uma obra inacabada que apresenta furos, lacunas, "lugares de indetermi-
nação" e mesmo, como no Ulisses de Joyce, põe em questão a capacidade do
leitor de dar, por ele mesmo, uma configuração a uma obra que o autor
parece ter desfigurado, quando podia. Nesse caso extremo, é o leitor, literal-
mente abandonado pela obra, que leva sozinho o encargo de tecer sua intri-
ga. O ato de leitura é, por conseguinte, o vetor da transfiguração do mundo
da ação sob os auspícios da ficção. Pode desempenhar esse papel porque o
efeito provocado pelo texto sobre os destinatários é um componente intrín-
seco da significação efetiva do texto. O texto como texto é um conjunto de
instruções que o leitor individual ou público cumpre de uma maneira passiva
ou criativa. Mas o texto não se toma uma obra a não ser na interação entre
o texto e o destinatário.
Sou bem consciente das dificuldades suscitadas por essa tese. As dife-
renças entre a teoria da leitura de Iser e a teoria da recepção de Jauss, ates-
tam essas dificuldades. Iser parte da correção das análises de' Ingarden de
indeterminação e da concretização das obras literárias; Jauss parte da corre-
ção das teses de Gadamer sobre a história dos efeitos, a fusão dos horizontes
e a lógica da questão e da resposta. Iser acentua a resposta de um leitor
individual no processo de leitura, enquanto Jauss concentra-se na resposta
de um leitor público no nível de suas expectativas coletivas. Em um sentido,
TL5~ o .TEXTO.COMO IDENTIDADE DINÂMJCA 129

uma teoria da recepção pressupõe uma teoria da leitura, enquanto é através


do processo de leitura que o texto revela sua "estrutura de apelo" (Appeistrnk-
tur). Mas em outro sentido, uma teoria da leitura pressupõe uma teoria da
recepção, na medida em que a leitura individual é pressuposta pelas expec-
tativas culturais. Dessa maneira, uma estética da recepção pode salvar a teo-
ria da leitura do perigo de psicologismo, incluindo a leitura individual no
processo mais amplo de constituição de uma história literária - uma histó-
ria que poderia equilibrar, e mesmo desafiar e provocar a teoria literária
marxista e o estruturalismo (O titulo Lueraturgeschichie ais Provokation [His-
tória da literatura como provocação] fala por si mesmo). Concordo que uma
teoria da leitura e/ou da recepção deve evitar os dois escolhos do "psicolo-
gismo" e/ou do "sociologismo". Mas esses dois perigos são o preço a pagar
por uma hermenêutica da obra em que o texto acaba sua trajetória no ato,
que em retomo não tem outra função a não ser servir de mediação entre
dois mundos, o mundo da obra e o mundo do leitor.
Devemos, por conseguinte, dar um terceiro passo: não basta dizer que
uma teoria da leitura e uma teoria da recepção pressupõem-se mutuamente,
na medida em que, de um lado, o leitor individual participa das expectativas
já sedimentadas no público que guia sua leitura e que, de outro lado, essas
expectativas públicas resultam da série infinita de atos individuais de leitu-
ra. Devemos incluir sempre essa relação circular entre a leitura privada e a
recepção pública no interior de um círculo mais amplo constituído pela
relação recíproca entre o mundo da obra e o mundo do leitor. Em outros
termos devemos ligar o problema da comunicabilidade da obra ao de sua
reierencialidade, i.é., sua capacidade de "remodelar a realidade". Um vez mais,
o que se deve suprimir é a oposição entre um "fora" e um "dentro" do texto.
Para este fim, não bastaria colocar lado a lado ou combinar de maneira ele-
mentar e eclética um estruturalismo do "dentro" e uma psicossociologia do
"fora" do texto. O papel da hermenêutica é acompanhar a atividade estrutu-
rante que parte do pleno da vida, investe-se no texto e, graças à leitura pri-
vada e à recepção pública, retoma à vida. Uma estética da recepção é inca-
paz de tratar exclusivamente do problema da comunicação, sem englobar o
da referência. O que é comunicado, em última instância, além da significa-
ção "interna" de um texto, é o mundo que projeta e o horizonte que consti-
tui. Reciprocamente, o leitor recebe essa pro-posição ou pro-jeto de mundo,
segundo sua capacidade limitada de responder, que por sua vez é defini-
da segundo uma situação que é limitada e que no entanto abre sobre um
horizonte de mundo.
Segunda seção

Parábolas e pregações
TT6

Paul Ricoeur e a
hermenêutica bíblica 1

A HERMENÊUTICA BíBLICA. ESBOÇO

C orno não sou nem exegeta nem teólogo vou tentar trazer uma contri-
buição à discussão adaptada à minha competência relativa no campo
de filosofia da linguagem.

Análise estrutural
Gostaria, antes de tudo, de esclarecer as estruturas formais das narrati-
vas-parábolas na base da semiótica estrutural que já foi aplicada a textos não
bíblicos pelos formalistas russos (Propp) e pelos estruturalistas franceses
(Greimas, Barthes], e que começa a estender-se aos textos bíblicos, e mes-
mo às parábolas, sob o titulo de semiótica bíblica (Güttgemanns na Alema-
nha, e Louis Marin na França).
Essa primeira abordagem é concebida como uma adição crítica à abor-
dagem de Dan O. Via que se baseava principalmente na crítica literária
americana.
Ficará logo claro que não é fácil acrescentar uma análise formal, no
sentido estrutural do termo, à "crítica histórico-literária", como Via tenta

1. Este artigo foi publicado sob o título geral de P. Ricoeur on Biblical Hermeneutícs,
que constituiu o número 4 da revista Semeia (páginas 29 a 148). Após um esboço geral
(páginas 29 a 36), o artigo apresentava-se em três partes: "The Narrative Forro", 37-73;
"The Metaphorical Process", 75-106; et "The Specificity ofReligious Language", 107-148.
134 ..... IEXTOSTRADUZIDOS

fazer. Ele põe junto "a crítica histórico-lingüística", "a análise literário-exis-
tencial" e "a interpretação existencial-teológica". Mas o tipo de inteligibilida-
de expresso pela semiótica estrutural é anti-histórico por natureza, e tende,
em seu uso mais extremo e mais fanático, a esvaziar toda pesquisa histórica
sobre as etapas redacionais do texto, e mesmo, de certo modo, de forma
provocadora, a acentuar o último texto, o que agora lemos. Para ilustrar isso,
vou utilizar o exemplo da "parábola do semeador", de que Louis Marin dá
uma explicação estrutural. De outra parte, uma análise formal torna a con-
junção entre os pontos de vista existencial e estrutural igualmente difícil (e
mais ainda uma adição de uma interpretação existencial-teológical]. De fato,
esse método tende a dissociar o que Dan o. Via considera como um nível
unificado, a saber, sua dita abordagem literário-existencial. Quanto a mim,
sou favorável a uma hermenêutica que enxerte uma interpretação existen-
cial sobre uma análise estrutural; mas essa articulação pede uma forma es-
pecífica de justificação e não pode simplesmente ser tida por assegurada.
No que segue, o tipo de aporia criado pelo estruturalismo servirá de meio
para apontar a necessidade de examinar os títulos de credibilidade de uma
possível interpretação existencial.

A abordagem poética
Vou tentar aqui identificar o elo intermediário entre uma explicação
formal e uma explicação existencial, como sendo o processo metafórico em
obra na estrutura do relato. A parábola, parece-me, é a conjunção de uma
[orma narrativa e de um processo metafórico. Acrescentarei mais tarde um
terceiro traço de~.isivo.
A explicação dessa estrutura complexa pode ser abordada de dois lados:
1. Chamar uma certa narrativa de "parábola" é dizer que a história se
refere a algo além do que é dito; ela "quer dizer. .." algo além. Mas como o
"sentido" de uma história enquanto história está ligado à sua "referência"
enquanto referência parabólica? O problema é muito mais difícil do que
parece. Se é verdade que a estrutura interna da narrativa "fecha" a história
sobre ela mesma, e faz dela uma "unidade auto-suficiente" (N. Frye], como
sabemos que a história quer dizer ... alguma outra coisa? Sem já discutir o
conteúdo teológico da expressão "o Reino de Deus é como ... ", como a simi-
litude, a semelhança trabalham em conjunção com a estrutura "interna"? Há,
no interior do próprio texto algumas "marcas" de sua referência "exterior"?
Ou devemos nos apoiar apenas no fato de que as parábolas são narrativas
TL.6: ..PAUL RICOEUR ..LAHERMENÊUnCA...BíBllCA ............................ 135

no interior de uma narrativa (o evangelho), na medida em que a forma


evangelho é uma forma narrativa? Ou há traços "interiores" que já estão
implicitamente dirigidos para significações existenciais, e que só se tornam
explícitos quando colocados na convergência com outros modos de discurso
no resto do evangelho? Em outros termos, como o relato começa, dele
mesmo, o processo que faz dele uma parábola?
2. Partindo do outro lado - quer dizer do processo metafórico -,
pode-se perguntar como uma metáfora pode tomar a forma mediadora de
uma narrativa. A teoria moderna da metáfora só resolve em parte o proble-
ma. Torna compreensível o funcionamento dos enunciados metafóricos na
base de algumas "tensões" internas que são resolvidas através de uma "ino-
vação semântica". Mas esses enunciados metafóricos limitam-se a frases, e
são as expressões transitórias e vívas que se tornam triviais e, depois, mor-
tas. A teoria da parábola exige um desenvolvimento específico a fim de ser
aplicada a uma "obra" de discurso, que tem uma composição por sua pró-
pria conta em nivel mais elevado que o da frase, a valores metafóricos que
se tornam tradicionais sem se tornarem triviais ou mortos (ao menos não
muito depressal].
Para compreender como a epijora e a diáfora (Wheelwright) são pro-
cessos diretamente aplicados à forma narrativa, será necessário introduzir a
teoria dos modelos. Meu objetivo será estabelecer que a metáfora trabalha
como um modelo quando é mediatizada por um "gênero literário" que a
põe em pé de igualdade com a rede de significações altamente estruturadas
implicada por um modelo.
Esse desvio pela teoria dos modelos nos proporcionará o conceito
chave de ficção heurística que serve de meio para redescrever a realidade
(Mary Hesse).
Meu objetivo será aplicar o par ficção-redescríção à forma narrativa da
parábola (A discussão sobre o referente último dessa redescrição será adiada
por motivos que vão aparecer depois).
Chamo essa segunda abordagem, uma abordagem poétíca porque atrai
a atenção para a produtividade de um relato, sua demanda de interpreta-
ção. Essa produtividade foi chamada poiêsis por Aristóteles, em sua teoria da
tragédia compreendida como uma mimêsis da ação séria por meio de um
mythos inventado pelo poeta. Do mesmo modo, a parábola é um mythos
(uma ficção heuristica) que tem o poder mimético de "redescrever" a exis-
tência humana.
136 .

Parábolas e discurso religioso

Se as parábolas são espécies de textos "poéticos", o que faz delas, de


fato, formas de discursos especificamente "religiosos"?
Essa questão levanta o problema da significação da frase"Reino de Deus"
nas parábolas de expressão do Reino.
Proponho uma hipótese baseada na comparação entre as maneiras como
vários modos de discurso apontam em direção à expressão "Reino de Deus":
os ditos proclamatórios, os ditos proverbiais e os ditos parabólicos. Há nes-
ses diversos modos de discurso um procedimento comum, uma estratégia
comum, apesar do fato de que um dito proclamatório não é um dito
proverbial e que a parábola é a única forma narrativa metafórica? Norman
Perrin mostrou como, pela maneira como Jesus dele se serve, o quadro mítico
do discurso apocalíptico explode, e o poder simbólico das significações tem-
porais mediatizadas pelo mito é liberado, devido à mediação mítica e apesar
dela. Da mesma maneira Beardslee mostra que os ditos proverbiais utiliza-
dos por Jesus sofrem uma espécie de intensificação, baseada na hipérbole e
no paradoxo. Buscando um traço correspondente para a parábola, fiquei im-
pressionado com o contraste entre o realismo da narrativa e a extrauagância
do desfecho e dos principais personagens. A "extravagância" não seria um
traço especificamente "religioso" da parábola, semelhante à "intensificação"
no provérbio e à liberação de símbolos temporais, além da interpretação
literal, nos mitos escatológicos?
Se isso for verdade, não seria possível reunir esses três modos de "trans-
gressão" dos usos ordinários ou tradicionais das formas correspondentes de
discurso sob uma só expressão, a saber, a que Jan Ramsey aplicou às afirma-
ções propriamente teológicas (como, por exemplo, "Deus é imutável" etc.) e
que ele chamou os "qualífícadores" acoplados aos "modelos"?
Então seríamos levados a dizer que o Reino de Deus é esse sentido
"bizarro", utilizado por diferentes modos de discurso, como o "qualíficador"
que lhe confere seu uso especificamente "religioso". Isso implicaria que é
somente em conjunção com outros modos de discurso que a parábola fun-
ciona como uma Parábola do Reino. Enquanto tal, a parábola poderia per-
manecer uma forma "poética" de discurso e poderia ser aplicada diretamen-
te à vida corrente sem significação especificamente "religiosa".
Ao dizer que o Reino de Deus é o elemento comum a vários modos de
discurso, de modo algum pretendo subentender que seja o referente último
das parábolas, provérbios ou ditos proc1amatórios que falam dessa noção de
TL6: PAUL RICQEUREAHERMENÊUncABÍBucA . 137

uma maneira ou de outra. Chamando-o "qualificador" de cada um desses


modos de discurso, trato-o como um símbolo que requer uma interpretação
capaz de fazer dele uma parte do "sentido" da parábola, do provérbio ou do
dito procIamàtório. É o "indicador" que aponta para além da estrutura, para
além mesmo da dimensão metafórica, e que requer um fator corresponden-
te de radicalidade na "redescrição" da realidade humana.
Esse traço de radicalidade será o tema da próxima seção.
Resumamos primeiro os três traços que me parecem essenciais à defi-
nição do "gênero literário" da parábola: a narrativa-parábola repousa na con-
junção de uma [orma narrativa, de um processo metafórico e de um "qualífi-
cador" apropriado que assegure sua convergência com outras formas do dis-
curso, que apontam todas para a expressão "Reino de Deus".
Podemos agora indagar sobre o referente último da parábola.

o referente último da parábola


Voltemos à nossa afirmação precedente sobre a conexão entre ficção e
redescrição. Tínhamos tomado essa conexão como a chave de solução do
problema levantado pela análise estrutural: como captar o referente quando
se é prisioneiro do sentido? Dizíamos que o processo metafórico é a epijora
ou a diáfora que "transpõe" ou "transfere" a significação da história da ficção
para a realidade. Mas essa maneira de conduzir o problema era apropriada
para todo tipo de discurso "poético" na medida em que redescreve ficticia-
mente a realidade. Que dizer de uma linguagem poética que funciona como
um modelo mais um qualificador?
Não poderíamos dizer que a linguagem poética, tal como a das pará-
bolas, provérbios e ditos procIamatórios, redescreve a realidade humana se-
gundo a "qualificação" trazida pelo símbolo "Reino de Deus"? Isso significa-
ria que o referente último da linguagem parabólica (proverbial e proclama-
tória) é a experiência humana centrada em tomo das experiências-limite que
correspondem às expressões-limite do discurso religioso.
A tarefa da hermenêutica, definida como a tarefa de apresentar a espé-
cie de "mundo" projetado por um certo tipo de texto, encontraria sua reali-
zação nesse nível: na decifração das experiências-limite da vida humana (tan-
to das experiências extremas de criação e de alegria, como das experiências
trágicas chamadas experiências-limite por KarI Jaspers: o sofrimento, a mor-
te, a luta, a culpabilidade). Ao mesmo tempo, a tarefa de ligar a interpreta-
ção do texto e a interpretação da vida seria realizada pelo método de dari-
138 .... UX:rOS_TRADUZJDQS

ficação mútua das expressões-limite da linguagem religiosa e das expres-


sões-limite da vida humana.
Isso sugere uma extensão de nossa precedente definição da parábola,
que tomava em conta mais o sentido do que a referência. O referente da
parábola, poderíamos dizer (e o dos outros modos de discurso) é a expe-
riência humana, concebida como experiência de todo o homem e de todos
os homens, enquanto interpretada à luz dos recursos miméticos de algumas
ficções realistas e extravagantes, por sua vez enquadradas em estruturas nar-
rativas específicas.

Do discurso religioso ao discurso teológico


Que impele o discurso "religioso" - como modo simbólico - para
uma clarificação "teológica"?
Sublinhando essa questão, suponho duas coisas: primeiro, que há um
problema legítimo ligado ao reconhecimento dos dois níveis de discurso sig-
nificante: um chamado "religioso", outro, "teológico", pois a verdadeira ques-
tão diz respeito ao movímento da transição do primeiro nível para o segun-
do. Por isso sou inclinado a olhar mais uma vez para a constituição inter-
na do discurso parabólico e, em geral, do discurso religioso, a fim de deter-
minar os traços que pedem uma clarificação teológica.
1. Antes de tudo, o discurso religioso mesmo não é um modo de dis-
curso unidimensional. Comporta uma tensão entre "imagem" e "sentido" que
pede uma interpretação. Em parte alguma, o discurso religioso é desprovido
de um esforço mínimo de interpretação. Kêrygma e hermêneia vão de mãos
dadas. Nesse sentido, a conexão entre a forma narrativa e o processo meta-
fórico prepara o caminho para uma série infinita de ensaios de interpreta-
ções. Segmentos de "comentários em prosa" encontram-se inseridos em uma
"declaração poética". A apologia didática e os componentes dogmáticos es-
tendem esses "comentários em prosa". Mesmo se essas "adições" pertencem
à fase da redação, não são de todo exteriores ao texto, mas prolongam o que
eu gostaria de chamar sua produtividade. Não está abolida a tensão inicial:
ela trabalha unicamente em um nível mais próximo da elaboração concei-
tual. Por essa razão, a oposição entre "interpretação alegórica" e interpreta-
ção metafórica deve ser submetida a exame e talvez a revisão.
2. Da interpretação passamos à "tradução", em que o conteúdo signifi-
cante é explorado na base de conceitos e de noções pertencentes a uma cadeia
de pensamento distinta da base simbólica. As traduções de uma linguagem
TT6:PAUl RICOEUR.E. A HERMENÊUnCABíBlICA 139

para outra não são só traduções para uma língua estrangeira, mas também tra-
duções "internas". Tomarei como exemplo o gênero de relação que Jüngel es-
tabelece entre o conceito paulino da "justiça de Deus" e o símbolo de "Reino
de Deus" em Jesus.
3. Gostaria em seguida de resumir o problema dos "qualifícadores" já
operando em um discurso religioso. Não nos orientam eles para uma certa
forma de conceito, ou para um certo uso do pensamento conceitual, que
preservaria a tensão entre "imagem" e "significação"? Não poderíamos dizer
que a relação entre as expressões-limite e as experiências-limite pede a me-
diação de conceitos-limite?
Essa sugestão nos leva mais em direção a Kant do que a Hegel. Ou -
se ouso dizer - requer um retorno pós-hegeliano a Kant, no sentido em
que devemos a Hegel a formulação do problema do "conceito-representa-
ção" (Vorstellung-Begriff) no capítulo VII da Fenomenologia do Espírito, e que
não podemos mais compreender os conceitos-limite como conceitos pura-
mente negativos, cuja função teria sido puramente proibir seu "uso objetivo"
(seu uso enquanto referindo-se positivamente a objetos exteriores). Mas,
contra Hegel, devemos encontrar conceitos que mantenham a tensão do sím-
bolo no interior da clareza do conceito. Daí a sugestão de um uso específico
de instrumentos conceituais como "aproximações" do "sentido" e da "refe-
rência" dos símbolos religiosos, com o reconhecimento da inadequação des-
ses conceitos
Entre o conceito que mata o símbolo e o puro silêncio conceitual, deve
haver lugar para uma linguagem conceitual que preserve o caráter tensional da
linguagem simbólica. Esse problema será o objeto de meu terceiro capítulo.

A FORMA NARRATIVA

OS princípios formais da crítica histórico-literária de Via


A melhor maneira de introduzir o tipo de problemas incluídos em uma
abordagem estrutural derivada da lingüística ou, mais precisamente, da se-
miótíca, é começar pelos componentes estruturais da interpretação de Via,
na medida em que oferecem o começo de uma formalização desses compo-
nentes. Em seguida, introduzirei uma série de modelos estruturais organiza-
dos segundo o grau de formalização estrutural.
I. Via aborda o problema do ponto de vista da critica literária america-
na (Wellek, Wimsatt, Northrop Frye, Brooks, os "neo-aristotélicos" de Chica-
140 ~~~~.~.~.~~~~ ~~~. ~ ~ ~ ~~~ TEXTOLTRADUZ1DOS

go etc.). Sua primeira decisão metodológica consiste em tratar a parábola


como um objeto estético autônomo, que apresenta uma unidade orgânica:
"Já que a obra literária é fictícia e que é uma estrutura organizada do inte-
rior, capaz de atrair uma atenção referencial, ela é ... autônoma" (77). Esté-
tica, nesse contexto, é sinônimo de "intrinsecamente centrado sobre si mes-
mo" (78), de "centrípeto" (79), de "intransitivo ou não referencial" (ibid.) e
de "auto-suficiente" (89). No caso da parábola, essa discussão estética está
ligada ao gênero literário da "ficção narrativa": "são histórias livremente in-
ventadas" (96).
2. A "intriga" é a estrutura característica da ficção narrativa. A distinção
entre "cômico" e "trágico" provém de duas formas básicas do movimento da
intriga: movimento para o alto em direção do maior bem-estar, ou movimento
para baixo em direção da catástrofe.
3. Encontro e diálogo - principalmente enquanto conflito - dão à
ficção sua qualidade dramática.
4. O poder de ação do protagonista fornece a chave do conceito de
modo fracamente mimétíco (ou modo realista) oposto ao modo fortemente
mimético da epopéia e da tragédia clássica. Essa definição é retomada do
campo de ação do protagonista (o mundo da vida real ordinária) e da equi-
valência (a falta de superioridade) entre o protagonista e seu campo de ação.
5. Isso implica uma homogeneidade semelhante na imagerie e no sim-
bolismo associados ao campo de ação: "As imagens são tiradas da experiên-
cia ordinária e as idéias centrais são o fazer e o trabalho" (98).
6. Uma função decisiva cabe às cenas de reconhecimento, em que o
principal personagem chega ao conhecimento dele mesmo, à identificação
dele mesmo ("chegando a ele mesmo") e descobre se é trágico ou cômico.
"Pelo reconhecimento é significada a iluminação do protagonista em relação à
verdadeira natureza de suas ações no momento da catástrofe" (116). Uma
tipologia baseada na cena do reconhecimento permite-nos situar a imagem
cristã do "trágico" entre outras possibilidades: segundo essa imagem, "o pro-
tagonista não aguarda a catástrofe e percebe, depois que é tarde demais, que
sua queda é inevitável" (116). Essa sorte de axioma dá uma função constitu-
tiva ao personagem principal.
7. A estrutura temporal é regida pela "intriga", particularmente por um
tipo de causalidade que ultrapassa a sucessão puramente cronológica dos
acontecimentos. Não perguntamos: "E depois"? mas "Por quê?". "Ação trági-
ca, cena de reconhecimento, queda" constituem a seqüência trágica típica
(167). Mas há possibilidade de combinações entre o começo, o meio e o
IL6;PAULRJ COEURE. A Hf.RMf.NÊUII CAB íB.UCA .. ......... ..... ..... 141

fim. No filho pródigo (uma parábola "cômica"), é a "ação trágica, queda,


cena de reconhecimento" (167); essa combinação faz do filho pródigo "uma
'comédia', que engloba e ultrapassa a 'tragédia" (167). A gama das combi-
nações é implicitamente regida pela conjunção de duas considerações: trági-
co versus cômico, e a seqüência: começo, meio e fim. A cena de reconheci-
mento é o fator de conexão entre as duas espécies de movimentos da intriga
ligados ao protagonista principal e à seqüência ternária. Nesse sentido, a his-
tória dita é a "superfície" do texto e a combinação entre as estruturas rege as
"estruturas de profundidade" do texto.
8. Uma última consideração formal pode ser tirada do tratamento das
parábolas por Via: refere-se ao par de figuras - principal e subsidiária -
que dá ao texto a forma quase elíptica. Essa configuração aparece só quan-
do levamos as figuras ao nível de "tipos". Temos então duas séries: uma figu-
ra de senhor-rei-pai que inaugura a ação e traz o "poder de ação", e uma
figura servo-intendente-filho cujo destino confere à narrativa sua "Gestalt"
(sua configuração) formal. As combinações entre as duas figuras tipos per-
tencem igualmente às estruturas de profundidade do texto.
Tirei, em uma espécie de procedimento axiomático, os princípios for-
mais da análise de Via. Esses princípios formais não são discutidos por eles
mesmos por Via, que não apresenta nenhuma tentativa de sistematizá-los nem
de derivá-los de estruturas mais primitivas. É a tarefa de uma abordagem
formalista. Mas o preço de tal análise será a dissolução do conceito mesmo de
uma "análise literária existencial". Um fosso aparecerá entre a estrutura "in-
terna" e a referência existencial "externa". Minhas próprias reflexões come-
çam a partir do pleno reconhecimento desse fosso que permanece ainda oculto
em uma análise "semiformal" como a análise literário-existencial de Via.

Análise formal do relato: Propp


V. Propp é o ancestral da análise das narrativas. Tomando por modelos
Goethe (que lhe forneceu os epigramas de seus capítulos) e especialmente
o trabalho de classificação característico da botânica, da zoologia e da mine-
ralogia, Propp quis tornar-se o Lineu do folclore. Seus fins, com efeito, eram
idênticos: descobrir a maravilhosa unidade escondida no labirinto das apa-
rências. Esse projeto implicava que todas as questões da gênese, e, em geral,
de história, fossem subordinadas às de estrutura. Por conseguinte, o paralelo
com Saussure é chocante: "Não podemos falar da origem de nenhum fenô-
meno sem ter antes descrito esse fenômeno". "A análise estrutural de cada
142 .. TEXTOS ...TRADUZJDOS

aspecto do conto folclórico é a condição necessária para seu estudo histó-


rico. O estudo das regras formais predetermina o estudo das regras históri-
cas". A classificação deve seguir a partir da descrição e não podemos classi-
ficar arbitrariamente as coisas, mas unicamente em função das característi-
cas reais, renunciando por isso mesmo a todas as classificações intuitivas.
Então podemos alcançar um "sistema de signos formais", a partir do qual a
classificação pode estabelecer-se. Por essas razões, Propp recusa-se a classifi-
car os contos populares segundo o assunto ou "motivo", i.é., segundo as
unidades da história imediatamente dadas. O elemento estável deve ser pro-
curado em outro lugar, nas funções, e não nos personagens e suas ações. Por
conseguinte, a descrição não deve ser tomada em seu sentido imediato e
empírico, mas em um sentido de subordinação dos valores variáveis em re-
lação aos valores constantes. O que descrevemos são as leis estruturais e não
algum catálogo superficial de características de superfície. Esse empreendi-
mento deve ser definido como um "trabalho analítico", que "divide um con-
to segundo suas partes constitutivas". A esse preço, novas possibilidades ge-
néticas podem ser oferecidas, na medida em que essa análise formal nos dá
acesso a alguma coisa como uma forma original do conto popular.
A realização desse projeto é construída sobre essas poucas hipóteses
de base:
1. "Os acontecimentos constantes e permanentes do conto folclórico
são funções de personagens, sejam quais forem esses personagens e a manei-
ra como essas funções são cumpridas. Essas funções são partes constitutivas
fundamentais do conto popular". Por função, Propp entende "a ação de um
personagem definida do ponto de vista de sua significação para o desenvol-
vimento da intriga".
2. "O número de funções que comportam os contos fantásticos é limi-
tado". Eis um postulado comum a todos os formalistas. As aparências são
abundantes, mas as estruturas subjacentes são limitadas. Encontramos a
mesma hipótese, por exemplo, em Dumézil, que divide as diversas aparên-
cias das mutações dos deuses em um pequeno número de funções. A mes-
ma coisa vale para os contos de fadas em que os personagens são numerosos
e as mudanças da intriga mesma mais importantes. Por conseguinte, deve-
mos arrancar a ação de suas múltiplas modalidades, destacá-la dos atuantes
e só considerá-la do ponto de vista de sua contribuição para o encadeamen-
to do conjunto.
3. A ordem das funções não é somente um desenvolvimento clássico
qualquer: segue os encadeamentos típicos e, além disso, "a sucessão das fun-
IL6:PAULR1COEUR E AH ERMENÊUnCABiBUCA. ..143

ções é sempre idêntica". Essa hipótese sintagmática dividirá os sucessores de


Propp. Os que seguem Propp ficam ligados a uma lógica da narração; outros
que seguem Lévi-Strauss tendem mesmo a reduzir a narração a uma combi-
nação subjacente que não é necessariamente cronológica.
4. As funções não se excluem nem se contradizem uma a outra. É por
isso que não podemos dividi-las segundo os princípios da exclusão. Todas
juntas fonnam uma única história. "Todos os contos fantásticos pertencem
ao mesmo tipo no que concerne à sua estrutura". Ou, em outros termos,
"todas as funções são ordenadas em uma história única e contínua". Por con-
seguinte, é possível tomar todos os contos folclóricos russos como as varia-
ções de um único conto. Essa quarta hipótese permite aos sucessores de
Propp opor estrutura e forma. A forma é a de uma história única; a estrutu-
ra será um sistema de combinações muito mais independente em relação à
configuração cultural particular do conto folclórico russo. E é a razão pela
qual Propp deve reconhecer que sua análise não vale para outros contos
populares, como os de Grimm e de Andersen, e em geral para "contos po-
pulares criados artificialmente".
5. Não consideramos aqui a análise que faz Propp dos cem contos fol-
clóricos tirados da coleção Afanás'ev. Iremos reter apenas os pontos seguin-
tes, que são interessantes para nossa própria discussão.
> As funções (Propp destaca trinta e uma delas) podem ser descritas,
nomeadas e receberem um sinal convencional: ausência, proibição, viola-
ção, reconhecimento, libertação, fraude e cumplicidade, para citar apenas
os sete primeiros que, aos olhos de Propp, constituem a parte preparatória
da intriga.
> A ação está ligada a uma função que Propp chama malevolência, e
que "dá ao conto seu movimento". Antes da desgraça, há uma situação ini-
cial - mesmo se essa situação não é uma função, representa sempre um
"importante elemento morfológico". A noção de desgraça é, falando com
propriedade, uma categoria criada pela própria morfologia. Hoje a chama-
riamos de estrutura de metalinguagem. Isso permite a Propp reunir sob um
só título a "lista exaustiva" de formas, tais como o rapto, o roubo, a pilha-
gem, o estupro, os danos corporais, o homicídio etc., de que Propp enumera
ao menos dezenove formas! De outra parte, a desgraça não cobre todas as
possibilidades da intriga. Tem seu paralelo em uma situação de carência -
ou de penúria - que pode igualmente provocar uma busca. Mas, nesses
dois casos, algo faz falta, por causa de uma carência provocada do exterior
(como no rapto) ou do interior (como na penúria).
144 . . ....... TEXTOS..TRADUZ!o'OS

> Começando pela desgraça, abre-se uma seqüência que só terminará


pela reintegração. Da desgraça à reintegração, desenvolve-se a busca que põe
em cena o heróí-buscador e o herói-vítima. As ações interpoladas consti-
tuem as mudanças da intriga tais como o chamado, o envio ou a partida do
herói, a revelação do mal etc. (o que põe em movimento o herói-buscador)
e a detenção, a libertação secreta, a compaixão etc. (que concemem ao he-
rói-vítima). Tal é o começo do que aqueles que vieram depois de Propp
chamam "a lógica dos possíveis narrativos", uma lógica que Propp sempre
colocou no nível da história única subjacente a todos os contos folclóricos
de seu repertório. É por isso que Propp não podia distinguir com clareza
entre as séries que constituem a lógica da ação ~ os encadeamentos caracte-
rísticos unicamente do tipo de mitos q~e ele examinava. Tomadas em con-
junto, as funções constituem um só eixo. Porém, é verdade que Propp já
falava das "necessidades lógicas e estéticas" do encadeamento em virtude do
princípio que nenhuma função excluía outra função e que o conjunto do
esquema funciona como uma "unidade de medida".
> Apesar do caráter único de encadeamento, Propp isolou alguns mo-
dos de ligação entre as funções que não têm necessariamente um caráter de
sucessão: a troca entre os diferentes personagens, o fato de triplicar os ele-
mentos (três partes, três tarefas, três irmãs), a motivação - ou seja, os mo-
tivos e os fins dos personagens, o que constitui um elemento menos deter-
minado do que as funções e suas ligações.
6. O passo decisivo é marcado pela passagem das funções para os perso-
nagens. A passagem é assegurada por intermédio das "esferas de ação", e há
tantas esferas de ação quanto atuantes. Propp descobriu sete deles: o malva-
do, o doador, o ajudante, a pessoa procurada, o mandante, o herói, o falso
herói. Um personagem pode ocupar uma ou várias esferas e a esfera pode
repartir-se entre vários personagens. Além disso, cada personagem tem sua
maneira de entrar em cena: mostrando-se, sendo enviado, fazendo parte da
situação inicial etc. (uma maneira de introduzir o herói-buscador é seu nasci-
mento milagroso etc.). Resultando da relação entre funções e personagens, os
atributos dos personagens (suas qualidade exteriores) são valores variáveis (apa-
rência e nome, particularidades da entrada em cena, habitação etc.). E um
personagem pode substituir outro em função de metamorfoses estabelecidas.
7. Se eliminamos as variáveis e conservamos só as formas fundamentais
obtemos o conto folclórico, de que os contos fantásticos são simplesmente
variantes. É a "protoforma do conto fantástico". Aqui encontramos a tese
histórica segundo a qual"o conto de fadas, na base morfológica, é um mito".
TL6:PAULRICOEUR LA HERMENÊUnCABíRlICA 145

Mas chegamos a essa conclusão por intermédio da análise morfológica. A


definição morfológica do conto de fadas é aplicada à protoforma: cada de-
senvolvimento começa por alguma desgraça e passa por funções intermediá-
rias para terminar em um casamento ou em outra função utilizada como
desfecho. E é na base dessa forma canônica que Propp quer tratar o proble-
ma da origem do conto folclórico: "A uniformidade absoluta da estrutura dos
contos fantásticos" parece com efeito postular uma fonte única. Então, é a
própria tese morfológica que sugere a tese genética. Extrapolando um pou-
co, a partir daí Propp entrevê uma possível relação com a história compara-
da das religiões, se é verdade que "uma cultura morre, uma religião morre e
que seu conteúdo é transformado em um conto folclórico". Mas para verifi-
car essa hipótese deveríamos combinar a análise estrutural com uma abor-
dagem histórica e com um método comparativo.
8. Propp entrevê igualmente o alcance de um problema final, o da
relação entre coerção e liberdade na composição. Se, com efeito, a desgraça
e a reintegração estão ligadas por sua dependência recíproca, como no caso
do combate e da vitória, os outros elementos apresentam possibilidades, com-
binações mais livres. O que não é livre é a ordem das funções: donde a
obrigação de escolher no repertório exemplos de cada função, para definir
os personagens em função de seu papel no seio da história inteira, e para
abrir e fechar a história nos termos da situação inicial. Em troca, o contador
é livre para omitir certas funções, para concretizar os meios escolhidos entre
diversas possibilidades, para variar os personagens - "essa liberdade é o tra-
ço específico de cada conto popular" - e para variar o estilo do conto.
9. O fenômeno decisivo é a introdução da distinção entre estrutura de
profundidade e estrutura de superfície. Essa distinção pode ajudar-nos a cla-
rificar certas ambigüidades da obra de Via. Contudo não estou tão certo
quanto Erhard Güttgemanns de que a metodologia de Propp possa ser in-
corporada diretamente ao lado da de Via, em uma teoria de ordem superior
que ele chama de "poética generativa" (Generative Poetik), a que voltarei
mais tarde.
> Estariam parábolas realmente ligadas uma à outra no interior de
um corpus como o são os diversos contos folclóricos, ou constituem um con-
junto de outra espécie? Para responder a essa questão seria necessário: a)
descobrir as invariantes subjacentes a todas as parábolas; b) defini-las inde-
pendentemente de seus personagens e portanto dissociar as funções (as in-
variantes) dos papéis (as variáveis); c) enumerar a coleção finita dessas fun-
ções e d) redigir a seqüência única que constitui a parábola. Se todas essas
146 . . IEXTOS.. IRADULID05

operações pudessem ser conduzidas a bom termo, então nos seria preciso
descobrir as regras de transformação pelas quais (a) a "intriga", no sentido
de Via, (b) a oposição entre trágico e cômico, (c) as combinações entre esse
primeiro par e o par crise-desfecho e (d) todos os traços semíformaís descri-
tos por Via aparecerão como a estrutura de superfície derivada.
>- Há algumas razões para pensar que isso não se pode fazer. Uma
razão é que as parábolas podem constituir uma constelação completamente
diferente do corpus russo, mas isso devia ser provado tentando aplicar o
método paradigmático. E uma outra razão é que a fonna de que fala Propp
(a seqüência das trinta e uma funções) não é ainda uma estrutura de profun-
didade, mas antes um artefato da estrutura de superfície: o conto folclórico
subjacente a todos os outros contos folclóricos. Essa confusão entre fonna e
estrutura foi exposta por Lévi-Strauss em uma recensão critica à obra de
Propp. A "forma" no sentido de Propp é um "conto" único regido por um
encadeamento rígido de uma ordem de funções irreversível. O contador segue
sempre a mesma rota porque há uma só, e que isso é o conto popular russo.
Essa forma é, decerto, um tipo, porque permite atualizações diversificadas,
mas são atualizações diversas de um conto único.
>- Por essa razão, os sucessores de Propp deviam escolher entre dois
movimentos radicais: seja reconstruir o sistema na base de esferas de ação
dos principais personagens e deixar cair a seqüência das funções; ou então
considerar a própria seqüência como uma estrutura de superfície e buscar
uma estrutura de profundidade desprovida de significação cronológica e,
portanto, de todo caráter narrativo.

A sintaxe dos "modelos atuanciais" de Greimas


1. A primeira opção, a das esferas de ação, é seguida por alguns estrutu-
ralistas franceses da escola de Algirdas Julien Greimas, Roland Barthes e
Claude Bremond. O objetivo de Greimas é elaborar uma sintaxe de "mode-
los atuanciais" i. é., de relações recíprocas entre os papéis típicos definidos
no nível das estruturas de profundidade e as regras de transformação dessas
relações fundamentais. Por essa razão, inverte a ordem seguida por Propp, e
começa a partir da relação entre as esferas de ação e os principais persona-
gens. Como vimos, Propp reduz o número de personagens a sete: o malvado,
o doador, o ajudante, a pessoa procurada, o mandante, o herôi e o falso
herói. Esse inventário fornece uma definição "atuancial" do conto russo como
sendo uma história de sete personagens. A questão seguinte é saber se essa
IL6:PAU LRICOEUR.. LA.HERMENÊUTJCABJB LICA. ........................................................................ 147

lista é puramente contingente ou se está fundada em algumas características


universais da ação humana. Agora, se não queremos proceder a uma descri-
ção exaustiva das possibilidades combinatórias da ação humana no nível da
superfície, devemos encontrar no próprio discurso o princípío da construção
do modelo no nível da profundidade. Greimas pensa que pode tirar essa
matriz da obra de Lucien Tesniere. Segundo Tesniêre, a mais simples frase é
um drama que inclui um processo de autores e de circunstâncias. Esses três
componentes sintáticos geram as classes do verbo, os "atuantes" (os que to-
mam parte no processo) e as "circunstâncias". Essa estrutura de base faz da
frase "um espetáculo que o homo loquens dá a si mesmo".
Greimas, comparando a lista dos personagens tipos de Propp (que é a
posteriori, sendo tirada de um corpus dado de textos), com as estruturas sin-
táticas de Tesniére (que são a priori), tenta construir, de uma maneira menos
contigente, a matriz dos "atuantes". Nessa pesquisa, aplica o princípio de
oposição binária amplamente utilizado em lingüística, princípalmente por
R. Jakobson e chega a: senhor x pessoa buscada; mandante x pessoa manda-
da; ajudante x oponente; ou seja, seis papéis no total. No universo mítico, o
ajudante e o malvado correspondem a forças benévolas e malévolas. Têm
sua contrapartida nas categorias do "aspecto" em gramática (às vezes expres-
sas por advérbios como "de bom grado" x "todavia") e mais geralmente por
circunstâncias da ação.
2. Greimas concede que é um quadro para ser testado, que deve pro-
var seu valor operacional. Concede igualmente que isso implica um esque-
ma da ação humana na qual (a) um objeto de desejo, ao qual aspira (b) um
sujeito é situado, como objeto de comunicação, entre um "destínador" (man-
dante) e um "destinatário" (o que se beneficia da ação do herói) e que ele é
(c) ajudado ou lesado pelo desejo de outros seres. Esse esquema, de fato, é
o da "busca".
Por conseguinte, é difícil ter um modelo que não fosse demasiado sim-
plista (se fosse reduzido à sua estrutura sintática) ou já "investido" nos domí-
nios definidos pelos traços empíricos que não podem ser derivados do pró-
prio modelo (um sistema econômico, um sistema mítico). Em outros termos,
o modelo "sintático" requer um investimento temático e a busca é já um
sistema desses, investido tematicamente. A conseqüência é que não é fácil
destacar o modelo atuancial da análise qualitativa de um "micro-universo",
3. No caso das parábolas, é fácil ver que os três tipos - pai x filho, rei
x intendente, senhor x servo - são já "temáticos" em função de papéis
investidos em diferentes "micro-universos" (família, Estado, propriedade etc.).
148 IEXTOS TRADUZID.OS

Mas o que parece promissor é o fato de que as espécies de ação desenvolvi-


das pelas parábolas são regidas por idéias organizadoras do fazer e do traba-
lho (VIA, p. 98). Fica a questão de saber se o esquematismo dos "atuantes"
proposto por Via poderia ser formalizado segundo essa matriz dos "atuan-
tes" de Greimas, e tirado, por transformação, do jogo das figuras entre elas
(GÜTfGEMANNS, p. 175). Mas seriam as parábolas de um modo tal que pos-
sibilitariam, senão uma seqüência única subjacente (PROPP), pelo menos uma
única "lógica atuancial" (GREIMAS), que constituiria, nos termos de Güttge-
manns (175), "as classes de equivalência de uma gramática de base" ("Áquiva-
lenz-Klassen einer 'Basis'-Grammatik"}?
Não utilizamos ainda a primeira - e principal - parte da análise de
Propp, a saber, a descrição das "funções": ausência, proibição, violação, reco-
nhecimento, libertação, fraude, cumplicidade, vilania, falta etc. - até trinta
e uma! Greimas orienta sua análise para esse problema, mas na base de seu
próprio "modelo atuancial" na esperança de ser capaz de reconstruir uma
seqüência mais limitada e, ao mesmo tempo, menos rigida. Aqui, aplica de
novo seu princípio bínário de distribuição, na base das unidades "episódicas",
apresentando uma escolha alternativa: injunção x aceitação; confronto x su-
cesso etc. Essas funções conjugadas correspondem, no mesmo nivel de pro-
fundidade, aos campos de ação dos "atuantes".
A vantagem desse procedimento é liberar a análise - pelo menos em
certa medida (ver abaixo) - da ordem temporal de sucessão, essencial à
seqüência única de funções, segundo Propp. O sistema de escolhas alternati-
vas constitui antes a base "sêmica" para os segmentos "semânticos" da ação
enunciada no nível de superfície.
4. Certo, pode-se argumentar tanto que a lista é demasiado curta para
cobrir o conjunto do campo dos possíveis narrativos, quanto que já está
demasiado "investida" em um círculo específico de histórias, digamos, de
histórias que implicam o envio de um herói, um contrato, uma prova, os
episódios do engano de um traidor, a glorificação do herói. Essa combinação
é precisamente a dos contos folclóricos russos. Mas pode-se igualmente re-
plicar que pertence ao gênero narrativo contar histórias que começam por
uma forma de falta ou de malevolência ou de alienação, e trabalhar em
direção de uma sorte de restabelecimento, eliminando a falta. Somente a
transposição a um novo material pode aduzir a prova de uma ou da outra
tese. Com efeito, o caso das parábolas seria apropriado. Mesmo se o modelo
não funcionasse, isso significaria muito para a compreensão da estrutura
narrativa das parábolas
T.L 6: PAUL RICOEUREAHERMENÊUTICABíBlICA 149

5. Mas] na minha opinião] o problema mais importante está em outro


lugar. Refere-se à relação entre a estrutura de superfície e a estrutura de
profundidade. Como acabamos de ver, o objetivo é que o sistema de rela-
ções entre as "funções" seja "acrônico" e que] por conseguinte] supere a apa-
rência "cronológica" da narrativa. Em outros termos] a análise estrutural subs-
titui a seqüência sintagmática por uma ordem paradigmática.
Até que ponto] porém? Aqui Greimas é muito mais prudente do que
os autores estruturalistas que vamos considerar mais tarde. Para ele não é
verdade que todos os elementos "diacrônicos" tenham sido] ou possam ser,
eliminados. Ao contrário! A estrutura "acrônica" põe mais em evidência o
"resíduo diacrônico" da análise] i. é., a dupla confronto x sucesso] que é a
dupla "sêmica" subjacente ao elemento semântico do combate] presente em
cada forma de "prova". Com a prova, uma seqüência temporal reaparece e
com ela a liberdade do herói, para o qual as duplas lógicas são livres alterna-
tivas. Os seis atuantes vêem seu campo de ação cruzar-se na prova do herói.
Partindo desse núcleo diacrônico] a expansão temporal da narrativa é
assegurada por todos os meios que constituem a arte de contar, que desen-
volvem] adiam] afastam ou distendem a estrutura acrônica ("afastamentos
funcionais" [GREIMAS] 207]. Essa tensão dramática] no plano da estrutura
de superfície] exprime essa estratégia de dis-tensão entre os termos opostos
de um grupo acrônico (desgraça x restabelecimento).
O que me impressiona aqui é que a análise estrutural não dissolve] de
modo algum] o elemento dramático] mas antes intensifica sua significação por
contraste com a significação acrônica do conto. "É só depois do acabamento
dessa análise que a verdadeira significação do conto folclórico aparece: como
no mito (Lévi-Strauss previu e confirmou esse ponto], revela contradições]
estratagemas igualmente inexplicáveis e irrealizados. No contexto do conto
folclórico russo] essa contradição pode ser formulada nos seguintes termos: a
liberdade do indivíduo tem a alienação por corolário. O restabelecimento de
valores deve pagar-se pela instalação de uma ordem] i.é., pelo abandono dessa
liberdade" (230).
6. Não poderíamos dizer então que a função da análise estrutural é
desvelar esse núcleo diacrônico por meio de estruturas acrônicas? Esse nú-
cleo diacrônico constituiria a semântica de profundidade do relato, sobre o
qual poderia facilmente enxertar-se uma interpretação existencial.
De fato] não é essa a direção que toma a análise estrutural. Tende antes
a considerar o elemento dramático como a manifestação no discurso do mo-
delo atuancial e a antropomoriização da própria estrutura acrônica, devido à
150 ... TEXIOS.. TRADUZIDOS

qual o relato aparece como uma sucessão de acontecimentos e ações no


tempo. Tudo o que interessa a essa análise estrutural é a estrutura complexa
que é ex-posta e distendida e que não implica enquanto tal nenhum ele-
mento figurativo. A "prova" é então reduzida ao estatuto de uma pura "ex-
pressão figurativa do modelo de transformação" (212).
No entanto, a possibilidade de haver duas interpretações, a primeira
acentuando o elemento diacrônico, a outra a estrutura acrônica, está enrai-
zada na própria narrativa como uma mediação - mediação entre estrutura
e comportamento, entre permanência e história, entre sociedade (contrato
etc.) e indivíduo (herói, ajudante e traidor). Enquanto tal, a mediação do
relato consiste seja na "humanização do mundo", dando-lhe uma dimensão
de individuo ou de acontecimento - "O mundo é justificado pelo homem,
o homem é integrado no mundo" (213) - , seja em que a ordem existente é
tida por insuportável. Então o esquema do relato oferece o "arquétipo de
uma mediação como promessa de salvação" (213).
7. Essas últimas citações não chegam como estranhas seqüelas teológi-
cas? Mas qualquer que possa ser a importância dessas interpolações pessoais
de Greimas, surge a questão metodológica: para nosso propósito hermenêu-
tico, como essas duas interpretações (diacrônica e acrônica) estão ligadas
uma à outra? Uma interpretação existencial poderia ser conectada à inter-
pretação acrônica sem a mediação da interpretação diacrônica?
Antes de voltar a esse difícil problema, examinemos uma nova etapa
no desenvolvimento da análise estrutural.

A análise estrutural francesa das narrativas


Um passo novo foi dado quando alguns estruturalistas franceses com-
binaram o método estrutural com a ideologia estruturalista. Por esse termo,
entendo uma concepção geral quanto ao estatuto filosófico do discurso
como "texto".
1. Para esses autores, a autonomia do texto é não só um fator de dis-
tanciamento na comunicação humana mas significa a abolição completa da
dimensão referencial da linguagem. Seguindo uma observação de Roland Ja-
kobson (segundo a qual o elemento poético da comunicação é pôr em evi-
dência a mensagem por ela mesma, quer dizer, em prejuízo de sua função
referencial), Roland Barthes (1966, 1970, 1971) e seus discípulos declaram
que a significação de uma narrativa é somente a integração de seus elemen-
tos no seio do fechamento de sua forma. Essa imanência do sentido exclui
TL6: .PAUL RICOEUR LA.HERMENÊUTJCA.B.ÍBUCA.. . 151

toda função mimética. "Uma narrativa não faz ver, não imita. A paixão que
nos pode inflamar não é a de uma visão, é a dos sentidos, isto é, de uma
ordem superior da relação que possui também suas emoções, suas esperan-
ças, suas ameaças, seus triunfos: 'o que se passa' nas narrativas é, do ponto
de vista referencial (real), literalmente nada; o que acontece é a linguagem
unicamente, a aventura da linguagem, cuja vinda não deixa nunca de ser
festejada" (1966, p. 27). Esse texto exprime, da maneira menos ambígua
possível, como a escolha metodológica se torna uma decisão dogmática.
A transição da primeira à segunda pode exprimir-se como a preferên-
cia pelo código em relação à mensagem. Se a mensagem perdeu a função
referencial, só resta uma possibilidade: a mensagem manifesta seus códigos
subjacentes. Barthes (1970) chega a dizer que a mensagem é pura citação de
seus códigos subjacentes.
2. Esse segundo passo é encorajado por toda a obra de Claude Lévi-
Strauss, que toma a segunda via aberta depois de Propp. Em lugar de forma-
lizar episódios e de preservar um fator diacrônico (como Greimas faz ain-
da), procede-se a uma radical descronologização da narrativa, estendendo às
unidades do discurso maiores do que a frase, as regras de combinação que
foram aplicadas com tanto sucesso no nível das unidades de linguagem me-
nores do que a frase, os fonemas e os lexemas. Em outros termos, tratam-se
os textos de maneira análoga ao sistema de signos que Saussure chama de
língua em oposição à palavra.
Essa extensão do modelo estrutural aos textos é uma tentativa arrisca-
da. Um texto não está mais na vertente da palavra do que na da língua?
Não é uma sucessão de enunciações, e portanto, em última análise, uma
sucessão de frases? Essas questões mostram ao menos que a extensão de
um modelo estrutural, tomado de empréstimo no nível da língua e transfe-
rido ao nível da palavra e do discurso, quer falado, quer escrito, não esgota
o campo de todas as atitudes possíveis em relação a um texto. Por conse-
guinte, devemos tomar essa extensão do modelo lingüístico ao domínio dos
textos como uma abordagem possível da noção do texto. Essa abordagem
liga-se ao pressuposto geral de que as unidades de uma ordem superior à
da frase sejam organizadas de uma maneira similar à das pequenas unida-
des de uma ordem inferior à da frase, as que precisamente pertencem ao
domínio da lingüística.
Claude Lévi-Strauss (1967, pp. 206-207) formula essa hipótese da ma-
neira seguinte em relação a uma categoria de textos, a dos mitos: "O mito,
como o resto da linguagem, é composto de unidades constitutivas. Essas
152 ............... TEXIOLTRADUZlDOS

unidades constitutivas implicam a presença de unidades constitutivas que


intervêm na linguagem quando é analisada em outros níveis, a saber, os fo-
nemas, os morfemas e os semantemas - mas diferem no entanto dessas
últimas unidades da mesma maneira que essas últimas diferem entre elas:
pertencem a uma ordem mais elevada e mais complexa. Por essa razão, po-
demos chamá-las grandes unidades constitutivas". Por meio dessa hipótese de
trabalho, as grandes unídades, que são pelo menos do tamanho da frase e
que, postas em conjunto, formam o relato próprio do mito, vão poder ser
tratadas segundo as mesmas unidades conhecidas da lingüística. É para insis-
tir nessa semelhança que Lévi-Strauss fala de mitemas, exatamente como
falamos de fonemas, de morfemas e de semantemas. Mas para ficar nos limi-
tes da analogia entre os mitemas e as unidades de nível inferior, a análise
dos textos deve realizar o mesmo tipo de abstração que a praticada pelo
foneticista. Para esse último, o fonema não é um som concreto, é um sentido
absoluto, com sua qualidade acústica. Não é, para utilizar a linguagem de
Saussure, uma "substância" mas uma "forma", i.é., um jogo de relações. Igual-
mente, o mitema não é uma das frases de um mito, mas um valor oposto
ligado a certas frases individuais que formam, segundo os termos de Lévi-
Strauss, "um pacote de relações". "Só como pacotes essas relações podem ser
colocadas e combinadas de maneira a produzir uma significação" (207). O
que aqui se chama uma significação não é, de modo algum, o que o mito
quer dizer, seu conteúdo ou sua intuição filosófica ou existencial, mas o
arranjo, a disposição dos mitemas, em suma, a estrutura do mito.
Lembremos aqui brevemente a análise do mito de Édipo que Lévi-
Strauss apresenta, servindo-se desse método. Reparte as frases do mito em
quatro colunas. Na primeira coluna coloca todas as frases que falam de uma
relação parental sobre-avaliada (por exemplo, Édipo desposa Jocasta, sua
mãe; Antígona enterra Polinices, seu irmão, apesar da ordem de não fazê-
10). Na segunda coluna devem encontrar-se as mesmas relações, mas com
sinal contrário: uma relação parental sub-avaliada (Édipo mata seu pai Laos;
Etéoc1es mata seu irmão Polinices). A terceira coluna concerne aos mons-
tros e à sua destruição. A quarta agrupa todos os nomes próprios cuja signi-
ficação sugere uma dificuldade de locomoção (o coxo, o desajeitado, o pé
inchado). Uma comparação entre as quatro colunas revela uma correlação.
Entre a primeira e a segunda temos as relações parentais alternativamente
sobre-avaliadas ou sub-avaliadas. Entre a terceira e a quarta temos uma afir-
mação, depois uma negação da pertença do homem à terra (sua autoctonia).
"Segue-se que a quarta coluna está para a terceira como a segunda está para
TL6:-PAULRICOEUR. LA. HERMENtUTICABíBHCA .... 153

a primeira, a super-avaliação das relações de sangue está para sua sub-ava-


liação o que a tentação de escapar à autoctonia está para a impossibilidade
de consegui-lo" (212). Assim, o mito aparece como uma espécie de instru-
mento lógico que opera conexões entre contradições a fim de superá-las. "A
impossibilidade de pôr em conexão duas espécies de relações é superada
(ou antes substituída) pela afirmação de que essas relações contraditórias
são idênticas, na medida em que se contradizem ambas a elas mesmas de
uma maneira semelhante" (212).
Podemos então dizer que explicamos o mito, mas não que o interpre-
tamos. Através da análise estrutural, podemos fazer aparecer a lógica das
operações que liga um ao outro, os quatro pacotes de relações. Essa lógica
constitui "a lei estrutural do mito examinado". Não se deixará de notar que
essa lei é antes de tudo um objeto da leitura, e de modo algum da palavra,
no sentido de que, pela recitação, o poder do mito pode ser reativado em
uma situação particular. Aqui o texto é somente um texto graças à suspen-
são da significação para nós, e devido à remissão de toda atualização pela
palavra presente.
3. Damos agora um exemplo dessa abordagem ultra-estruturalista que
combina Greimas, Lévi-Strauss e Barthes. O exemplo proposto é o da pará-
bola do semeador (Mt 13,1-23) tal como a explica Louis Marin (1971 a).A
escolha dessa parábola parece provocação. Por razões que vão aparecer no
momento devido, a tentativa de isolar um texto primitivo dessa parábola tal
como foi pronunciada por Jesus é intencionalmente ignorada. A interpreta-
ção chamada alegórica faz parte do texto porque o texto é o último texto
(de um ponto de vista histórico-crítico), i.é., o que lemos no evangelho de
Mateus como sendo o próprio texto dado. Se o texto é inconsistente de um
ponto de vista histórico-crítico, ele é altamente significante para uma aborda-
gem estrutural: suas partes não são simplesmente colocadas em uma ordem
sucessiva, mas apresentam muitos níveis de discurso ligados um ao outro,
segundo as leis de transformação específicas. O sistema de transformações é
o referente para a própria análise. Veremos adiante por que o autor pensa
que essa abordagem convém particularmente aos textos bíblicos.
Por conseguinte o que queremos analisar não é uma parábola, mas um
segmento do texto conhecido como o evangelho de "Mateus".
A exclusão de toda pesquisa histórica permite-nos levantar a primeira
questão, a dos limites do texto escrituristico (em jargão estruturalista, seu
fechamento). A decisão de começar em Mt 13,3a: "E disse-lhes muitas coisas
em parábolas ... " - implica que o texto em Mt 13,1 é um relato sobre Je-
154 . . TEXTOS.TRAO.UZJDOS

sus. Introduz Jesus como o locutor da parábola e a parábola como uma cita-
ção. Introduz também o destinatário (a multidão, designada em 13,9) e o
quadro geográfico no qual os movimentos significativos vão produzir-se: J~­
sus sai da casa (13,1). Os movimentos entre Jesus, a multidão e os discípu-
los são partes dessa "topologia" e dessa "cinemática". Enfim, se começamos
por 13,3 devemos terminar em 13,23, quando Jesus volta. Isso implica que
os três outros segmentos (por que Jesus fala em parábolas, a interpretação
em 13,18-23, mais a citação de Isaías em 13,10-17) são englobados no seg-
mento aberto da maneira como acabamos de expor.
Nosso autor admite, porém, que já foi guiado na escolha dessa estraté-
gia pelo jogo de correspondências e de transformações que estão em jogo.
(Essa concepção não implica objeção: a eficácia esperada de uma hipótese
faz parte de sua "razão de ser".)
Se alguma objeção pudesse ser levantada a essa fase inicial seria a se-
guinte: isolar um texto é ao mesmo tempo compará-lo com textos similares
com os quais constitui um corpus (as parábolas). No entanto, a decisão ini-
cial de não desconectar a parábola do conjunto da seqüência e, em particu-
lar, da interpretação alegórica pode prejudicar a segunda operação, a de "unir"
esse texto com outros textos em um único corpus. Se Marin não examina
essa objeção, é porque está literalmente fascinado pelo jogo de efeitos retroa-
tivos entre os diferentes segmentos e pela possibilidade oferecida por essa
ação retroativa (por exemplo, a de 13,9 sobre a escolha de 13,3a como pon-
to de partida), de quebrar a linearidade da estrutura de superfície.
Devemos também dizer que desde o começo nossa atenção é desviada
do exame da composição dramática específica da parábola como tal e da
intriga que permite identificar sua estrutura. Ao contrário, os traços que vão
ser postos em evidência são os que são homólogos às estruturas dos outros
segmentos. Essa falta de interesse pela "intriga" será a contrapartida do inte-
resse (excessivo) pelas leis de transformação entre 13,3a e 13,23. A especi-
ficidade da intriga será eclipsada pelo jogo das correspondências.
Portanto, nosso autor não negligencia somente a composição específica
da narrativa-parábola, mas também o caráter diacrônico de todo o fragmen-
to. Seguindo mais Barthes do que Greimas (que preservou a possibilidade e
a legitimidade das duas interpretações, acrônica e diacrônica), Marion opta
de maneira unilateral pela interpretação acrônica, argumentando que a aná-
lise de uma mensagem está a serviço do código, que o inventário dos códi-
gos é a única coisa que importa e que, em fim de contas, uma narrativa é a
manifestação de seus próprios códigos sob a forma de citação. O aspecto
IL6:PAU.LRICQEUR..LA..HERMENÊ.unCA B1BUCA 155

sintagmático da "intriga" deve, por conseguinte, desaparecer em proveito dos


"modelos" paradigmáticos e de sua "transformação" cujo conjunto constitui
a "estrutura" do texto. Essa codificação da mensagem torna-se a mensagem.
Eis alguns exemplos chocantes: "o texto resplandece em seus códigos, onde
se designa"; a propósito do movimento do corpus em direção a este texto, e
dos códigos em direção à mensagem, ele fala da rede ou da localização em
que os códigos "se implícitam" (48); "nos quais se citam, pelo investimento
sucessivo e ordenado dos modelos nesse texto que os apaga em sua totalida-
de individual (análise integrativa pela qual o texto fala os códigos configuran-
do-os em sua unidade): o motor desse duplo movimento sendo o estabeleci-
mento das correlações e sua coordenação na organização sintagmática do
texto escolhido" (49). Seria difícil dizer mais fortemente que a mensagem
torna-se uma espécie de epifenômeno da única coisa que importa: os códi-
gos, as operações de transformação, a estrutura.
Não podemos dar aqui todos os pormenores da análise. Será bastante
apresentar alguns apanhados do que se trata.
>- A oposição entre "Jesus saiu .... Jesus voltou" implica um sistema
de movimentos no espaço, baseado na oposição fechado/aberto, com uma
disjunção (Jesus/ a multidão) e uma conjunção (discípuloslJesus). Para Marin,
não se trata de detalhes insignificantes, mas de indícios para a correlação
entre três relações semânticas nas quais o. par "sêmico" (aberto/fechado) é
invertido: nas coletividades (multidão/discípulos), no espaço (entrar/sair) e
na palavra (oculta/desvelada). Uma única categoria "sêmica" (abertolfecha-
do) rege os três campos invertidos. Ao mesmo tempo, Jesus aparece como o
operador do conjunto do sistema das oposições: seus movimentos no espa-
ço são homólogos ao movimento da narrativa, para o desenvolvimento de
sua significação - "os deslocamentos no espaço mimetizam - represen-
tam - os deslocamentos a respeito da enunciação entre os três níveis de
sentido da mensagem, entre as duas formas de coletividade" (53). (Pode-se
notar que a oposição aberto/fechado é tão vaga que o caráter alegórico da
relação entre o relato enquanto "fechado" e sua explicação enquanto aberta
torna-se secundário. Mas, para Marin, um "paradigma sêmico" deve ter esse
tipo de generalidade.)
>- A parábola por si só (13,3b-9) aparece como uma narrativa na nar-
rativa, dita pelo personagem principal da primeira narrativa, mas escrita em
estilo direto. Essa seqüência é fechada por um pedido de informação (13,10)
que será uma informação (dada aos discípulos) sobre uma informação (dada
à multidão], ligada a uma disjunção e a uma conjunção (no espaço).
156 . TEXTOS.TRADUZJDOS

Para o estruturalismo, o traço importante a notar é a "topografia" da


distância percorrida e dos lugares (caminho, pedras, espinheiro, terra boa) à
qual o segundo conjunto de informações aplicará uma série correspondente
de significações simbólicas. Mas antes de considerar esse sistema de correla-
ções, nosso autor sobrepõe a topologia desse fragmento à "cinemática" do
primeiro fragmento, que aparece desse modo como uma taxinomia operan-
do uma mediação entre o primeiro e o terceiro fragmento.
Utilizando o modelo "atuancial" de Greimas, ele nota que o ato de
"semear" que substitui o de "falar" devido à correlação precedente, especifi-
ca os lugares atravessados em função da oposição entre "oponentes" (pássa-
ros, sol, espinheiros) e os "ajudantes" (boa terra). A função de "semear" tor-
na-se o operador de equivalência entre "espaço" e "linguagem". Todas as es-
truturas de profundidade são homólogas e a estrutura do texto é regida pela
transformação sucessiva de seus modelos parciais.
~ O terceiro fragmento (13, 10-17) é um discurso metalingüístico, pre-
parando a "decodificação" de 13,3b-9 a 13,18-23, da mesma comunicação
designada como a parábola do semeador (13,18). Para o estruturalista, esse
fragmento ocupa uma posição-mestra: é o "núcleo central" do qual o segun-
do e o quarto fragmento constituem as "transformações sucessivas", Ao mes-
mo tempo, um novo "destinatário" (ou auditório) é introduzido: o leitor do
evangelho para o primeiro relato (13,1-3a), a multidão para a parábola, os
discípulos para a narrativa "decodificada". Mas como o primeiro relato en-
globa os outros fragmentos e estabelece a comunicação no nível do escritor
("Mateus") e do leitor (nós), todas as operações de decodificação pertencem
por conseguinte a essa comunicação inclusiva global.
No que diz respeito à estrutura interna desse fragmento, o analista su-
blinha o sistema de oposição entre "dado/não dado", "vós/eles", que governa
a modalidade da comunicação como um "suplemento" à "escuta". A falta de
compreensão aparece agora como uma "subtração" da "escuta". Tal é o papel
da competência para a utilização do código.
A correlação entre os outros fragmentos é assegurada pela tipologia que
desenvolve a regra da competêncía (ver e ouvir sem ver nem ouvir; ver e
ouvir verdadeiramente, diretamente; ter desejado ver e não o ter feito. Ter
ouvido e ter-se recusado a compreender). Um eixo temporal ("então" versus
"agora") rege essa tipologia e prepara a transformação temporal das distin-
ções precedentes (sua aplicação à lei mosaica, aos profetas antigos, aos cris-
tãos "mornos" aos verdadeiros crentes).
1L6:_ PAULRICOEURLAHERMENÊUIICA _BiBlJCA 157

~ O fragmento 13,18-23 representa a "decodificação" de 13,3-9, in-


cluído como uma citação na primeira narrativa e designado como a mesma
parábola (13,18). Faz emergir o código da mensagem, mas enquanto inves-
tido em uma narrativa "típológica". As quatro articulações do primeiro e do
segundo relato podem ser reconhecidas facilmente através de algumas trans-
posições, que vou saltar a fim de me concentrar na noção principal, a saber,
a "saída" da "significação" para fora de sua "figura". A saída de Jesus, a saída
do semeador e a saída da verdade são homogêneas.
Segundo Marin, esse novo discurso não é exatamente uma "decodifica-
ção", mas um "redizer" da parábola, donde a expressão de "transcodificação",
que mistura elementos do código e elementos da mensagem em uma isoto-
pia híbrida: "aquele que recebeu a semente em ... "; "ele não tem raiz em si
mesmo". O sistema de equivalências (semente = palavra; pássaros = Malig-
no; sol = tribulações; espinheiros = cuidados mundanos) leva a uma "típolo-
gia" não totalmente desinvestida de sua "topologia". A expressão "aquele que
recebeu" assegura a homogeneidade entre typos e topos e reafirma a equiva-
lência palavra/espaço já observada, mas dessa vez como uma relação "verti-
cal", entre mensagem e código.
~ Uma última observação sobre esse fragmento: só uma figura não é
descodificada - o semeador, absorvido pela palavra/semente. Esse lugar va-
zio é o do locutor da parábola, Jesus, "que se designa metaforicamente por
essa ausência no espaço do texto" (65). Jesus toma-se o "ou-topos", "lugar de
palavra fora-de-lugar" (ibid.), o "centro vazio" na rede de interferências entre
o código e a mensagem. O personagem da primeira narrativa (13,1-3a), que
é também o locutor da segunda narrativa (13,3b-9) e o doador da regra de
competência do fragmento metalingüístico, está ausente da narrativa trans-
codificada: "O texto deixa-se assim furar pelo ponto utópico do sujeito que
transcende toda textualidade" (66, grifo de Ricoeur).
~ Essa última nota leva a algumas observações interessantes sobre a
citação profética em 13,14-15. Sua função é abrir o texto em direção de
outros textos e inaugurar o jogo da intertextualidade. Considerada em si
mesma, a citação repete e realiza todas as oposições manifestadas pelos mo-
delos subjacentes a cada fragmento ("vós" versus "eles", "ver e compreender"
versus "ver e não compreender" etc.). Ao mesmo tempo, esse texto dentro
do texto, esse "foco do foco" é como "a escuta de outra voz" (56). O narrador
Mateus toma-se, por assim dizer, narrado e despojado de seu discurso. A
categoria sêmica "aberto/fechado" (olhos, ouvidos, a própria palavra) gover-
na o texto a partir do lugar de outro texto. Ao mesmo tempo, o profeta é
158 ______ __.TEXIQ.LTRADUZlD.OS

incluído entre os que quiseram ver e não viram. Mas é seu discurso que é
inclusivo do todo, discurso que aparece como a "reescrita" da citação que
contém. Dessa maneira a citação refere-se a um "outro" - o discurso de
Isaías - e desempenha o mesmo papel que a figura ausente do semeador
no quarto fragmento.
Se consideramos que é Jesus que enuncia o discurso de Isaías como
uma citação, e que o próprio Isaías - no outro texto - enuncia o discurso de
Javé, um "eu profético" é indiretamente designado: "Dito de outro modo, o
'eu' não é mais o do profeta, mas ainda não é de todo o de Jesus, 'eu' oblíquo
- que assinala o sujeito em sua ausência, a Palavra que fala em e por essa
ausência" (71). Assim, o jogo das citações refere-se retrospectivamente aos
três locutores como constituindo um "eu" ausente no relato. O texto marca
desse modo uma" transtextualidade, uma forma de transcendência" (72).
4. Permitam-me agora fazer minhas observações pessoais sobre essa aná-
lise sutil.
> À primeira vista, ela não deixa lugar algum para a interpretação da
parábola em termos de transposição metafórica. O sistema de transforma-
ções de modelo a modelo que manifesta a estrutura subjacente é a significa-
ção. A "intriga" que seria o ponto de partida para uma interpretação existen-
cial, é ignorada. A "intriga", se é que há na verdade intriga nessa parábola,
que não é parábola mas alegoria, está contida, parece-me, nas afirmações de
13,8 e 13,23 sobre a produção espantosa da semente na terra boa, oposta ao
tríplice fracasso da semente no caminho, nas pedras e entre os espinhos. A
dupla "perder/ganhar" dramatizada pelo excesso na perda (subtração do ha-
ver) e pelo excesso no ganho (suplemento do haver) dá à parábola uma es-
trutura de "intriga" que funda sua semelhança com as outras parábolas. Na
linguagem de Via, essa parábola oferece lado a lado os resultados trágico e
cômico de todas as parábolas.
> De acordo com uma segunda reflexão, essa análise não só menos-
preza e ignora as potencialidades dramáticas e existenciais desenvolvidas pela
narrativa, mas oferece uma interpretação alternativa que inclui a primeira.
De fato, a análise é, em si mesma e enquanto tal, uma hermenêutica de
substituição. A hipótese subjacente é que o texto analisado é a "comunica-
ção de uma mensagem sobre a comunicação". E nosso autor acrescenta esta
observação decisiva: "Mas o evangelho não é antes de tudo uma notícia?"
(37). Algumas páginas adiante, ao falar do terceiro fragmento como de uma
mensagem a respeito do código, observa: "isso pode ser uma das característi-
cas das narrativas parabólicas" (48). Assim, a significação pode ser manifes-
LL6:PAUL RlCOEUR ..EAHERMENÊ.UTJCA.BíBUCA.

tada em uma espécie de "jogo de espelhos" "que é talvez, no seio do texto, o


jogo do sentido, a cintilação do sentido" (54). Adiante" considerando a equi-
valência entre "espaço" e "palavra": "Há uma espécie d~ cintilação estrutural
'até o infinito' ou para o abismo, que é sem dúvida característica do texto
evangélico, i.é., de um texto de comunicação sobre a comunicação (boa nova
=evangelho)" (63 nota 34).
Essa tese já é uma tese hermenêutica - nada há de significante existen-
cialmente a procurar, porque um evangelho é uma comunicação sobre a
comunicação.
~ Essa tese é expressa, do modo mais explícito, por Louis Marin
(1971b) em sua análise estrutural das "mulheres junto ao túmulo" (Mt 28,1-
8; Me 16,1-8; Lc 24,1-11). O relato é um gênero de "busca", começada pelo
"desejo" (encontrar o corpo) e terminada pela frustração desse "desejo", como
desejo de possuir o corpo, pela substituição simbólica de uma palavra. "A
substituição da mensagem ao objeto do desejo" (45) é, em termos hegelianos,
"a transformação do desejo de um objeto na comunicação da mensagem"
(46). O [aaum é o dictum: "O Senhor ressuscitou". Mas isso quer somente
dizer que o objeto lingüístico substitui o objeto do desejo (47). A mensa-
gem é o corpo morto enquanto negado.
Marin pensa tocar aqui na especificidade de um texto cristão: uma nar-
rativa de superfície sobre um acontecimento sobrenatural diz uma outra
narrativa, que diz a comunicação mesma da mensagem. "É o momento ex-
cepcional na narrativa, em que as coisas, o referente, os corpos se apagam e
faltam, e onde em seu lugar aparecem - como corpos, como coisas - as
palavras, as mensagens, em suma, onde as palavras tomam-se coisas" (48).
Penso que essa afirmação é a chave da aspiração a que o evangelho seja
uma comunicação sobre a comunicação, e a dissolução de todos os valores
reierenaais no jogo das correlações. Aqui, a posição anti-hermenêutica tor-
na-se uma tese hermenêutica. E essa tese é a expressão última da ausência
de conteúdo existencial, a proclamação da insignificância existencial.
~ Mas uma vez dito isso, surge nova possibilidade para uma terceira
consideração que de repente traduz um estranho parentesco entre a noção
de comunicação e o conceito de Fuchs de "acontecimento da palavra" (Spra-
chereignis). Essa terceira consideração apóia-se em diversas notas de Marin
sobre "o lugar vazio, a outra voz, a abertura do texto a outro texto" que está
em seu próprio centro, como seu "outro" (1971a; 70; a hierarquia dos "eus":
Jesus, Isaías, Javé), a palavra que fala na ausência e através dela, a transtex-
tualidade como forma de transcendência (72), e sua última frase: "Mas isso
160 .. .....TEXIOSTRADUZmOS

não é o sentido mais geral que possamos tirar do discurso parabólico: a co-
municação ao leitor 'presente' da rede de comunicação do Outro, do Outro
completamente diferente do homem?" (74). Essa conclusão intrigante deixa
duas possibilidades abertas: seja que o Outro é somente um "furo" na textura
do texto, seja que ele é designado como ser extralingüístico pelos resíduos
do sistema de jogo e de interação e, então, a análise estrutural deve abrir-se
a um outro tipo de interpretação, que leve a sério o movimento de trans-
cendência do texto para além dele mesmo.

o estruturalismo: uma fase intermediária ou uma via alternativa?


O estruturalismo levanta duas questões interligadas: é um tipo de abor-
dagem que não pode, de modo algum, ser conectado com a hermenêutica e
que deve ser negligenciado pela hermenêutica existencial como uma via al-
ternativa de fazer hermenêutica? E se é um modo de abordagem radical-
mente estranho, é ele um novo começo ou uma situação sem saída, o me-
lhor meio de matar os textos?
Sei que pensadores da corrente existencialista tomaram essas duas po-
sições firmes contra o estruturalismo. Desenvolverei as razões que poderiam
justificar uma dicotomia pura e simples entre estruturalismo e hermenêuti-
ca, mas essa não será minha posição pessoal. A análise das parábolas vai dar-
nos uma nova possibilidade de tentar o caminho mais difícil, segundo o qual
uma análíse estrutural - desconectada da ideologia estruturalísta - pode
enriquecer uma hermenêutica existencial.
1. Mas apresentemos primeiro o caso dos que tenderiam a afirmar que
o estruturalismo é uma via totalmente "outra" para abordar um texto, e even-
tualmente um impasse que não merece o tanto de atenção e esforço que lhe
dedicamos nas seções precedentes.
A última coisa a dizer é que depois do estruturalismo não é mais pos-
sívelligar uma análise estrutural seja a uma abordagem hístórica como a de
Jeremias (mesmo se for rebatizada de hístórico-literária como em Via), seja a
uma abordagem exístencial, mesmo com o titulo complexo de "análise lite-
rário-existencial". O que desaparece é justamente o vínculo entre a análise
histórica e literária e o vínculo entre as abordagens literária e existencial. A
linha de separação passa entre as categorias metodológicas. De uma parte, a
abordagem estrutural pode ser aplicada 'a cada fase do processo redacional,
não deixando nenhum privilégio à etapa que se presume "primitiva". Como
vimos, o último texto, o que agora lemos, é tão importante como qualquer
TL6:PAULRICOEURLA.HERMENÊUTJCABJBUCA. 161

outro texto. A escolha do texto a examinar é uma livre escolha. A conse-


qüência principal é que "a busca do Jesus histórico", cujo destino está ligado
à recuperação do "texto inicial", é considerada como fora de propósito, como
o são em geral todas as pesquisas sobre o autor presumido de determinado
texto. Um texto remete a seus "códigos", e não a seu "locutor". A conse-
qüência seguinte parece inevitável: uma interpretação das parábolas como a
de Jeremias que se apóia na reconstrução das ipsissima verba de Jesus, é
incompatível com a análise estrutural.
Igualmente inaceitável é a interpretação de Via que, do modo como a
faz, funda-se na continuidade entre a critica literária e a análise existencial e
a interpretação. O conceito epistemológico de "análise literário-existencial"
cai em pedaços. Ess~ conseqüência radical tomou-se explícita pela análise
estrutural de Louis Marin, que reduz o resíduo "diacrônico" da análise de
Greimas a fenômenos puramente superficiais. Por conseguinte, se queremos
prosseguir a interpretação existencial, a melhor coisa a fazer seria dar as
costas à análise estrutural, e considerá-la como uma alternativa inconciliável
com a hermenêutica.
2. Apesar da força aparente desse argumento, quero explorar um outro
caminho e levantar a seguinte questão: em que medida, ou em que condi-
ções, uma abordagem estrutural poderia ser útil à hermenêutica? Minha res-
posta será a seguinte: as condições segundo as quais uma abordagem estru-
tural pode ser útil à hermenêutica são exatamente as mesmas condições que
a impedem de tomar-se uma pura situação sem saída.
Na minha opinião, o estruturalismo é um impasse no momento mesmo
em que trata toda "mensagem" como pura "citação" de seu "código" subjacen-
te. Essa pretensão, por si só, traz um prejuízo estruturalista ao método estru-
tural. O estruturalismo como ideologia começa com a reversão na relação
entre código e mensagem, que toma o código essencial e a mensagem secun-
dária. Essa é a razão pela qual se dá o passo de matar o texto como mensa-
gem e de considerar toda interpretação existencial como não apropriada a
uma mensagem, que foi reduzida a puro epifenômeno dos "códigos". Só a
volta do código à mensagem pode ao mesmo tempo fazer justiça à mensa-
gem enquanto tal e preparar o caminho ao movimento da estrutura no pro-
cesso, como o exige a compreensão das parábolas. Chamo impasse não qual-
quer análise estrutural mas só a que torna não apropriada ou inútil, e até
impossível, a volta das estruturas de profundidade às estruturas de superfície.
Quero agora apoiar, com argumentos específicos, minha afirmação de
que a análise estrutural pode ser destacada da ideologia estruturalista e que
162 TEXTOSTRADUZlD05

a análise estrutural pode ser ligada à interpretação existencial. Esses dois


argumentos tomados em conjunto implicam o caminho de volta do código
à mensagem a fim de compreender corretamente o texto enquanto texto.
A primeira etapa preparatória consiste em lembrar que a fonte da no-
ção do texto é a de "discurso". Entendo por "discurso" a atualização da lin-
guagem em um ato de palavra baseado em um gênero de unidade irredutí-
vel aos elementos constitutivos da linguagem como código. Essa unidade de
base da linguagem é a frase.
Essa origem do texto no discurso deve ser lembrada porque é o discur-
so que ao mesmo tempo levanta a questão da referência para adiante a uma
realidade metalingüistica, da referência para trás a um locutor e da comuni-
cação com um destinatário. A linguagem ou o discurso têm um locutor, um
mundo e um frente a frente. Esses três traços constituem juntos o discurso
como acontecimento em um tríplice sentido: o locutor é levado à lingua-
gem; uma dimensão de mundo é levada à linguagem; e um diálogo entre
seres humanos é levado à linguagem.
A dimensão do ato de palavra, ao lado de seu tríplice caráter de acon-
tecimento, não é abolida pela atualização do discurso como texto. Um dis-
tanciamento mínimo já está presente na linguagem oral, que é simplesmente
reforçada pela escrita, mas que não é uma pura criação da escríta. O corre-
lato intencional de toda frase, seu conteúdo proposicional, para ser identifi-
cado e reidentificado como o "mesmo" de um ato de palavra para outro.
Mesmo os traços "ilocucionários" (a frase como "descritiva" ou "performatí-
va"; como a "ordem" ou o "voto") podem ser isolados do próprio aconteci-
mento e compreendidos como significantes por si mesmos junto aos ouvin-
tes. Tal é o tipo de exteriorização intencional pela qual um acontecimento
de palavra leva ele mesmo a todas as formas de terminais autônomos, dos
quais a fixação material pela linguagem é só o mais freqüente.
Mas, por mais longe que possa ir a autonomia do texto em relação à
intenção do autor, do Sitz im Leben do acontecimento da palavra inicial e do
contexto sociocultural de comunicação, o distanciamento que se produz en-
tre o texto e o autor, a situação inicial e os destinatários primitivos não pode
abolir a dimensão de discurso que mantém sempre os textos na esfera da
linguagem. Mesmo a escrita, que aparece como a consagração do distancia-
mento mais do que como sua causa, e que até falta em certas formas de
transmissão oral, não altera radicalmente o caráter discursivo da linguagem.
Faz somente cumprir um traço que é virtual é todo discurso: o distancia-
mento entre sentido e acontecimento. Nesse caso, o papel da hermenêutica
IL.6;.PAUL RICOfURLAHERMEN.ÊUnCA..BJBUCA

é reconduzir ao discurso o texto escrito, senão como discurso oral, ao menos


como ato de palavra atualizado no ato de leitura.
Se essa primeira condição é válida, então é falso dizer, como o faz Bar-
thes, que nas narrativas só conta a codificação da "língua", abaixo do nível
da frase, e a codificação do "texto", acima do nível da frase: "entre o código
forte da língua e o código forte da narrativa estabelece-se um oco: a frase"
(1966, 26). A frase não só é uma "depressão entre dois códigos fortes"; ela
confere o caráter de discurso ao conjunto.
A dimensão de discurso é tão forte que o "modelo atuancial" de Grei-
mas apóia-se na sintaxe da frase. Mesmo nos tipos mais formalizados da
análise estrutural, como o que foi elaborado por Lévi-Strauss, os "pacotes
de relações" que constituem os "mitemas" são tirados de uma análise das
frases e de um agrupamento sob paradigmas que só fazem sentido nas fra-
ses. A sobre-avaliação das relações de sangue no mito grego de Édipo é um
exemplo disso.
Concluo daí que o objeto da hermenêutica não é o "texto" mas o texto
como discurso, ou o discurso como texto.
~ A segunda etapa preparatória conceme ao estatuto dos "gêneros li-
terários" (como a narrativa) na produção do discurso. Com esse segundo
passo, introduzo certas categorias que são muito mais importantes do que a
distinção entre as linguagens oral e escrita. Os gêneros literários referem-se
à linguagem, seja ela oral ou escrita. Alguns deles são certamente orais, como
a parábola. A "nova enunciação", que, segundo Amos Wilder, desenvolveu a
"Retórica cristã primitiva" (Early Christian Rhetoric - tal é o titulo inglês
de seu livrinho magnífico The Langage of the Gospel - (lA linguagem do
Evangelho") cobria tanto o discurso escrito quanto o oral (10) com uma
preferência concedida à linguagem oral ("Jesus foi uma voz, não um ho-
mem de pena; um arauto, não um escriba ... " 21). Por conseguinte não deve-
mos misturar os problemas dos "modos do discurso" (ou dos gêneros literá-
rios) com os que suscita o distanciamento operado pela escrita. Contudo,
esses modos de discurso introduzem no discurso um distanciamento de um
tipo específico que toma possível um tratamento estrutural dos atos de pala-
vra inseridos nesses modos, mas não necessariamente uma interpretação es-
truturalista do fenômeno.
Por que uma abordagem estrutural? Porque, devido a esses modos, o
discurso apresenta-se como uma obra. Aqui falo de uma obra de discurso no
sentido em que falamos de uma obra de arte. O conceito de obra deve ser
tomado literalmente. Implica a extensão ao discurso de categorias próprias
164 ............... IEXTQLIRADUZIDO.S

ao mundo da produção e do trabalho. Impor uma forma a uma matéria,


submeter uma produção a códigos particulares, produzir essas configurações
únicas que assimilam uma obra a um indivíduo e que chamamos de estilo,
eis as maneiras de considerar a linguagem como um material a trabalhar e a
formar. São as maneiras como o discurso torna-se o objeto de uma práxis e
de uma técnica.
Um modo específico de objetivação e de distanciamento resulta dessa
imposição de uma forma sobre o discurso. Aristóteles chamava taxis, "com-
posição", esse modo de organização de segunda ordem que afeta o discurso
em um nível mais elevado que o da frase e que faz do texto um organismo
complexo. Os gêneros literários são codificações que regem essas unidades
de discurso de segunda ordem. Produzir um discurso como um poema, ou
relato, ou ensaio, consiste em "codificá-lo" segundo as regras do modo de
discurso apropriado. Uma abordagem estrutural não é só possível, mas ne-
cessária na medida em que a codificação que nela opera, pertence à produ-
ção do discurso como poema, como relato, como ensaio etc.
No entanto - e é neste ponto que introduzo meu principal argu-
mento contra a ideologia estruturalista - um modo de discurso, um gêne-
ro literário não é nada mais do que um meio para produzir mensagens
singulares, para dar um estilo a discursos individuais. Esse ponto foi omiti-
do mesmo por críticos literários que não são estruturalistas no sentido es-
pecífico do estruturalismo francês. Para a maioria deles, os gêneros literá-
rios são apenas estratégias utilizadas pelos críticos literários mesmos para
classificar as obras de arte individuais (inclusive as obras de discurso). René
Wellek e Austin Warren têm grande dificuldade para encontrar um lugar
apropriado para a noção de gênero literário em seu quadro teórico (que
segue mais ou menos a teoria da obra literária segundo Ingarden). A difi-
culdade provém de um conceito inapropriado do que é gênero literário.
Não é uma classe em uma taxonomia, não é um meio de classificação, mas
um meio de produção.
Agora, como aprendemos de Aristóteles, produzir é gerar um indiví-
duo: "Todas as práticas e todas as produções ligam-se ao indivíduo. Não é o
homem (em geral) que é cuidado pelo médico, salvo acidentalmente, mas
Kallios ou Sócrates ou qualquer outro indivíduo assim designado, que é ao
mesmo tempo um homem" (Metafísica, A, 981a). A vantagem de aceder à
noção "modo de discurso" graças a uma categoria prática, é refutar direta-
mente o erro típico da ideologia estruturalista, que eu chamo "o erro do
código por ele mesmo".
IL6:.PAUL ..RICOEUR..LA..HERMENÊUTICA .BíBlICA

Podemos confirmar essa conclusão com uma comparação entre os có-


digos gramaticais e literários. Ambos são códigos generativos: o primeiro no
nível da frase, o segundo no da taxis do discurso. Regem a produção do
discurso como sentença e como obra. Assim como a função da gramática
consiste em manter a qualidade gramatical do discurso e, nessa base, assegu-
rar a comunicação guiando a interpretação semântica da mensagem, assim
também a função dos gêneros literários é fornecer regras para codificar e
decodificar uma mensagem produzida como poema, relato ou ensaio.
Essa concepção da função generativa dos gêneros literários para produ-
zir o discurso como uma obra pode ser de uma importância enorme para a
exegese. Tais modos de discurso, como as narrativas, os provérbios, os orácu-
los devem ser vistos como processos de codificação, e não como meios de
classificação. Não estou certo de que Erhard Güttgemanns de Bonn pense o
mesmo quando fala de uma "poética generativa", fazendo eco à "gramática
generativa de Noam Chomsky", mas retomarei de bom grado a expressão
por minha conta se por "poética generativa" se entende o conjunto das re-
gras de "competência" que governam a "performance" de textos específicos
como parábolas, provérbios, oráculos etc.
Sejam quais forem as maneiras diferentes de utilizar a expressão "poé-
tica generativa" dispomo-nos a dizer que os modos de discurso estão a servi-
ço das mensagens individuais e singulares que eles ajudam a produzir, e não
o contrário.
Essa conclusão pode dar a impressão de chocar-se contra a propensão
natural da gramática e da crítica literária que parecem estudar as frases e os
discursos em busca dos códigos subjacentes. Mas a natureza mesma desses
códigos gramaticais e literários é engendrar frases e discursos. É unicamente
de um ponto de vista abstrato que a gramática e os códigos tornam-se obje-
to de um discurso metalingüístico. O erro começa com o esquecimento da
natureza abstrata do procedimento metalingüístico, e o deslocamento do
ponto de vista generativo para um ponto de vista taxonômico.
Concluo meu segundo ponto dizendo que é tarefa da hermenêutica iden-
tificar o discurso individual (a mensagem) por meio dos modos de discurso (os
códigos) que o engendram como obra do discurso. Em outros termos, é tarefa
da hermenêutica utilizar a dialética do discurso e da obra, ou da performance
e da competência, como mediação a serviço não do código, mas da mensagem.
Dessa maneira, estamos prontos a subordinar esse novo fator de distan-
ciamento, (talvez o mais importante e pelo menos mais primitivo do que a
escrita) 'ao processo de comunicação.

1:
.~" -;,
166 . . .... TEXTOS .. TRADUZlD.OS

Os gêneros literários cumprem muitas funções a respeito da comuni-


cação: primeiro, fornecem um fundamento comum para a compreensão e
para a interpretação, devido ao contraste entre o caráter tradicional do gê-
nero e a novidade da mensagem. Segundo, preservam a mensagem da distor-
ção graças à autonomia da forma em relação ao locutor e ao ouvinte. Isso
explica por que Jeremias podia pretender que as parábolas continham as
palavras de Jesus com mais segurança do que qualquer outro discurso. Ter-
ceiro, a "forma" garante a sobrevivência do sentido depois do desapareci-
mento de seu Sitz im Leben e, desse modo, começa um processo de descon-
textualização que abre a mensagem a interpretações inéditas segundo os
novos contextos de discurso e de vida. Nesse sentido a "forma" não só esta-
belece a comunicação devido a seu caráter comum, mas preserva a mensa-
gem da deformação devido à circunspecção que impõe à obra de arte e a
abre à história e à interpretação.
> Essa última nota prepara nossa terceira fase preparatória. Refere-se
ao funcionamento das próprias narrativas entre todos os outros modos de
.>,

discurso. Se um modo de discurso é um meio generativo visando à produ-


ção de uma mensagem particular, uma análise seria truncada se não proce-
desse das duas maneiras, da mensagem ao código e do código à mensagem.
Assim, a mensagem não é mais uma "citação" de seus códigos, mas seus
códigos são a "mediação" da mensagem. Isso implica que a estrutura de su-
perfície da intriga não é um epífenômeno, mas a própria mensagem. Uma
análise estrutural só é completa quando dá maís sentido à "intriga" do que o
faz a primeira leitura ingênua.
Encontro uma certa confirmação dessa tese em uma nota de Roland Bar-
thes (1966: 18, 21). Segundo Barthes, uma análise estrutural implica três ní-
veis hierárquicos: as "funções", no sentido de Propp, í.é., as unidades de base da
ação; as "ações" (no sentido lógico dos "atuantes" de Greimas); e finalmente no
nível da "comunicação narrativa". Esse último nível conceme à maneira como
um narrador dá a narração e à maneira como os destinatários a recebem: "As-
sim como há, no interior da narrativa, uma grande função de troca (repartida
entre um "doador" e um "beneficiário'), assim também, homologícamente, o
relato, como objeto, está em jogo na comunicação: há um "autor" do relato, há
um "destinatário" do relato. O nível redacional está, pois, ocupado por sinais da
narratividade, o conjunto dos operadores que reintegram funções e ações na
comunicação narrativa, articulada sobre seu doador e seu destinatário".
Estou de acordo com Barthes quanto ao fato de que os "sinais da nar-
ratívídade" devem ser buscados no interior da própria narrativa. Mas são os
TL6: PAUL RICOEURf A HERMENÊUnCA.BÍBLlCA . . ...................... 167

sinais de uma troca que envolve o relato a partir do exterior. Em outros ter-
mos, mais familiares ao leitor de expressão inglesa, o sentido do relato não é
completo sem seu uso em uma situação narrativa (da mesma maneira que a
proposição "o atual rei da França é calvo" muda de valor veritativo para
Strawson segundo a situação em que é empregada).
A conseqüência dessa distinção entre a narrativa como tal e a comunica-
ção narrativa é que bem mais questões podem ser suscitadas a propósito da
narrativa do que sobre sua estrutura. Não poderiamos dizer que é no nível da
narração como comunicação que a questão do locutor toma sentido enquanto
doador da narrativa? E igualmente, a questão do "ouvinte" como beneficiário?
Além disso, a questão da "referência" da narrativa toma sentido como uma
dimensão de "troca" ou de "dom", na medida em que esse "dom" advém em
uma certa "situação" que exprime, articula ou interpreta de uma maneira nova?
Que a dimensão referencial seja reintroduzida com a noção de comu-
nicação narrativa pode ser facilmente provado com base na análise de Propp.
Não há dúvida de que contando histórias os homens adquiriram um certo
domínio sobre o caos do comportamento humano. A mimesis da tragédia
segundo Aristóteles já opera no conto folclórico, ou, para falar como Nelson
Goodman em "Linguagens da Arte" (Languages ofArt), a ficção é a "realida-
de refeita". Uma mimesis da ação e dos atores começou na base de códigos
que são modelos para dominar as complexidades humanas. O que chama-
mos "intriga" é o ponto de cruzamento de uma mimesís das ações e uma
mimesis dos personagens.
No caso dos contos folclóricos russos, como Propp os analisou, o papel
da malevolência e da falta tem uma poderosa significação mimética. Como
estrutura de profundidade, não rege menos de dezenove espécies de estru-
turas de superfície: roubo, pilhagem, dano, extorsão, substituição, canibalis-
mo, guerra, evenenamento, estupro etc. A conjunção da prova e do sucesso,
do ajudante e do oponente, do provedor e do traidor significa muitas coisas
sobre os aspectos antagonistas da vida humana.
Essas observações levam-nos à distinção entre fracamente mimétíco e
fortemente mimétíco que Dan o. Via toma emprestada a Northrop Frye. Essa
distinção faz sentido no terceiro nível descrito por Roland Barthes. Mas, com
a função mimética, não estamos mais sobre um fundamento estrutural. Como
diz Barthes, o nível da comunicação narrativa é o último. Ele "fecha" a nar-
rativa ligando a "palavra" à "língua", segundo sua própria metalinguagem. O
que é o último nível para a análise estrutural é o limiar para a hermenêutica
porque a mesma função que "fecha" a narrativa, "abre" para o mundo, a sa-
168_ ................. TEXIOS.. IRADUZIDOS

ber para uma situação e uma experiência humanas que recebem um novo
poder de interpretação da dimensão mimética da narrativa.
Se essa análise é verdadeira, a dimensão simbólica da parábola per-
tence só a esse terceiro nível, como um aspecto da narração enquanto co-
municação. Certas narrativas são "dadas" por seu "doador" a seus "destinatá-
rios" como parábolas, isso é, como desenvolvendo sua função mimética de
maneira metafórica.

o PROCESSO METAFÓRICO

Na seção de abertura deste "Esboço" propus definir o modo parabólico


de discurso como a conjunção de uma narrativa e de um processo metafóri-
co (um terceiro componente será examinado adiante com o título de "expres-
sões-limite" e será ligado ao caráter extravagante das parábolas de Jesus).
Sob o título de "processo metafórico", pretendo identificar o elo interme-
diário entre uma explicação formal (seção 1) baseada nos traços estruturais
da forma narrativa, e a interpretação existencial (seção 3) baseada no fun-
cionamento das "expressões-limite".
Dois problemas principais estão englobados aqui, cada um deles englo-
bando por sua vez duas questões subordinadas.
~ O primeiro problema concerne à importância de uma teoria da me-
táfora para o estudo do discurso bíblico. Duas afirmações serão feitas: (a)
que a metáfora é mais do que uma figura de estilo, mas contém uma inova-
ção semântica; (b) que a metáfora inclui uma dimensão denotativa ou refe-
rencial, a saber, o poder de redefinir a realidade.
~ O segundo problema refere-se à articulação entre a estrutura narra-
tiva e o processo metafórico. O problema pode ser abordado de dois ângu-
los: (a) do processo à estrutura: que queremos dizer quando dizemos que
nas parábolas a narrativa deve ser tomada metaforicamente e não literal-
mente? (b) da estrutura ao processo: que indícios internos ou externos nos
levam a interpretar urna narrativa como parábola, se isso que dízer interpretá-
la metaforicamente?

A semântica da metáfora
A primeira parte deste estudo nos levará de uma retórica a uma se-
mântica. Ou, mais precisamente, como vamos ver em um momento, de uma
retórica da palavra a uma semântica do discurso ou da frase.
LL6:PAULRICOEUR.EAHERMENÊunCA.BiBuCA. 169

Na tradição retórica, a metáfora é classificada entre os tropos, i.é.,


entre as figuras que concernem às variações de significação no uso das
palavras, e, mais precisamente, no processo da nominação. As preocupa-
ções da retórica são da natureza seguinte: as próprias palavras têm seu
sentido próprio, quer dizer, o sentido comum à comunidade falante, fixa-
do pelas normas em uso nessa comunidade e inscrito em um código léxi-
co. A retórica começa onde o código lexical termina. Ela trata dos sentidos
figurados de uma palavra, i. e., desses sentidos que se tornam de uso ordi-
nário. Por que essas variações, esses desvios, essas figuras da palavra? Os
retóricos antigos respondiam, em geral, da maneira seguinte: ou para preen-
cher as lacunas semânticas ou para ornar o discurso. É porque temos mais
idéias do que palavras que precisamos estender o sentido dessas palavras
de que dispomos além de seu uso ordinário. Ou então, podemos ter uma
palavra correta, mas preferimos usar uma palavra figurada para agradar e
seduzir. Essa estratégia é uma parte da função da retórica que consiste em
persuadir, ou seja, influenciar as pessoas por meio do discurso que não é
nem o meio da prova nem o da violência, mas antes de tornar o provável
mais aceitável.
A metáfora é uma dessas figuras. Nela, a semelhança serve de razão à
substituição de uma palavra figurativa por uma palavra literal, seja que
falte, seja que se omita. A metáfora distingue-se de outras figuras de estilo
tais como a metonímia na qual a contigüidade desempenha o papel da
semelhança na metáfora.
Tal é o resumo muito esquemático de uma longa história que começa
com os sofistas gregos, passa por Aristóteles, Cícero e Quintiliano, e termina
com os últimos tratados de retórica no século XIX. O que permanece cons-
tante nessa tradição pode resumir-se nas seis proposições seguintes: (1) a
metáfora é um tropo, i.é. uma figura do discurso que concerne à nominação.
(2) A metáfora é uma extensão da nominação por um desvio do sentido
literal das palavras. (3) A razão desse desvio na metáfora é a semelhança. (4)
A função da semelhança é fundar a substituição da significação figurativa de
uma palavra ao sentido literal de uma palavra que poderia ter sido usada no
mesmo lugar. (5) A significação substituída não inclui inovação semântica:
podemos então traduzir uma metáfora restabelecendo a palavra literal no
lugar da palavra figurativa que lhe foi substituída. (6) Porque não comporta
inovação, a metáfora não dá nenhuma informação sobre a realidade: é só
um ornamento do discurso e, por conseguinte, pode ser categorizada como
uma função emocional do discurso.
170 .TEXTOS TRADUZIDOS

Todos esses pressupostos da retórica são questionados pela semântica


moderna da metáfora.
L O primeiro pressuposto que deveria ser combatido é aquele segun-
do o qual a metáfora é só um acidente da nominação, um deslocamento,
uma mudança na significação das palavras. Tratando assim a metáfora, a re-
tórica não descreve senão um efeito de sentido, Lé., o impacto da palavra na
produção do sentido que inclui a frase completa. Tal é com efeito a primeira
descoberta de uma semântica da metáfora. A metáfora depende de uma
semântica da frase antes de concernir a uma semântica da palavra. A metá-
fora só é significante num enunciado - é um fenômeno de predicação. Quan-
do um poeta fala de um "anjo azul", de um "crepúsculo branco" ou de uma
"noite verde" coloca dois termos em tensão, que podemos, com I. A. Ri-
chards, chamar tenor e veículo sendo que somente seu conjunto constitui a
metáfora. Nesse sentido não devemos falar de palavras utilizadas metafori-
camente, mas de enunciados metafóricos. A metáfora provém da tensão entre
os termos de um enunciado metafórico.
2. Essa primeira tese implica uma segunda. Se a metáfora só conceme
às palavras porque se produz primeiro no nivel da frase toda, então o pri-
meiro fenômeno não é o desvio da significação literal ou própria das pala-
vras, mas o funcionamento mesmo da predicação no nível de todo o enuncia-
do. O que chamamos de tensão não é simplesmente algo que se produz
entre os dois termos do enunciado, mas entre as interpretações completas do
enunciado. A estratégia do discurso pela qual o enunciado metafórico recebe
sua significação é o absurdo. Esse absurdo manifesta-se como o absurdo de
uma interpretação literal. O anjo não é azul, se o azul é uma cor. Assim, a
metáfora não existe em si mesma, mas em uma interpretação. A interpreta-
ção metafórica supõe uma interpretação literal que é destruída. A interpre-
tação metafórica consiste na transformação de uma contradição inesperada
que se autodestrói em uma contradição significante. É essa transformação
que impõe à palavra uma espécie de "torção". Somos obrigados a dar uma
nova significação à palavra, uma extensão da significação que lhe permite
fazer sentido onde uma interpretação literal não faz sentido. Assim, a metá-
fora aparece como uma resposta a uma certa inconsistência do enunciado
interpretado literalmente. Podemos chamar essa inconsistência de "imperti-
nência semântica", para empregar uma expressão menos rígida e mais exten-
sa que a de contradição ou de absurdo. Uma vez que utilizando somente o
valor léxico ordinário das palavras não posso fazer sentido a não ser salvando
o conjunto do enunciado, submeto as palavras a uma espécie de trabalho de
TL 6.~PAULRI.COEUREAHERMENtUTJCA.B íBUCA ........ 171

significação, uma torção pela qual o enunciado metafórico recebe sua signi-
ficação. Podemos dizer assim que a metáfora, considerada somente em seus
termos, consiste num deslize de significação. Mas o efeito desse deslize é
reduzir um outro deslize no nível do conjunto do enunciado, esse deslize
que acabamos de chamar de "impertinência semântica" e que consiste na
inadequação mútua dos termos quando são interpretados literalmente.
3. Agora é possível voltar ao terceiro tema da concepção retórica da
metáfora, o papel da semelhança. Isso foi, com muita freqüência, mal com-
preendido. Foi reduzido ao papel de imagens no discurso poético. Para mui-
tos críticos literários, especialmente os antigos, o estudo das metáforas de
um autor é o estudo da nomenclatura das imagens que ilustram essas idéias.
Mas se a metáfora não consiste em revestir uma idéia com uma imagem, se
consiste sobretudo em reduzir o choque entre duas idéias incompatíveis, é
nessa redução do deslize, nessa aproximação, que devemos olhar primeiro o
jogo da semelhança. O que está em jogo, no enunciado metafórico, é fazer
aparecer uma similitude onde a visão ordinária não percebe adequação ne-
nhuma. Aqui a metáfora opera de um modo muito próximo ao que Gilbert
Ryle chamou de "erro de categoria" (category mistake). É um erro calculado.
Consiste em assimilar coisas que não combinam. Mais precisamente, através
desse erro calculado a metáfora revela uma relação de significação, que até .
então não se tinha percebido, entre termos impedidos de comunicar-se en-
tre si pelas classificações anteriores. Quando o poeta diz "o tempo é um
mendigo", ensina-nos a ver "como se ...", a ver o tempo como ou semelhante
a um mendigo. Duas classes categoriais que estavam distantes até então tor-
nam-se de repente próximas: tomar próximo o que estava "distante", eis o
trabalho da semelhança. Nesse sentido Aristóteles diz com razão que "fazer
boas metáforas é perceber as semelhanças". Mas esse ver é ao mesmo tempo
uma construção: as boas metáforas são mais as que instituem uma seme-
lhança do que aquelas que só fazem registrar uma.
4. Dessa descrição do trabalho da semelhança num enunciado metafó-
rico resulta porém uma outra oposição à concepção puramente retórica da
metáfora. Para a retórica, lembremos, o tropo era simples substituição de
uma palavra por outra. Ora, a substituição é uma operação estéril, mas na
metáfora, ao contrário, a tensão entre as palavras, especialmente a tensão
entre duas interpretações, uma literal e outra metafórica, no conjunto da
frase, dá lugar a uma verdadeira criação de significação de que a retórica só
percebia o resultado final. Em uma teoria da tensão - que oponho aqui a
uma teoria da substituição - uma nova significação emerge, que tem a ver
172 .. .....TEXI-QS_.TRADUZlDOS

com o conjunto do enunciado. Sob esse aspecto, a metáfora é uma criação


instantânea, uma inovação semântica que não tem estatuto na linguagem
estabelecida e que só existe pela atribuição de predicados inabituais. Dessa
maneira, a metáfora é mais próxima da resolução ativa de um enigma do
que da simples associação por semelhança. É a resolução de uma dissonân-
cia semântica. Não reconhecemos a especificidade do fenômeno se conside-
ramos unicamente metáforas mortas, que não são verdadeiras metáforas,
como, p. ex., o pé da cadeira, o pé da mesa. Verdadeiras metáforas são metá-
foras de invenção em que uma nova extensão da significação das palavras
corresponde a uma discordância inédita da frase. É verdade que a metáfora
de invenção tende a tomar-se, pela repetição, uma metáfora morta. A exten-
são da significação é então inscrita no léxico e se torna uma parte da polis-
semia da palavra que, desse modo, simplesmente aumenta. Mas não há me-
táforas vivas no dicionário.
5. Duas conclusões resultam dessa análise que será de grande impor-
tância para a segunda e a terceira parte dessa seção. E essas duas conclusões
opõem-se aos temas tirados do modelo retórico. Primeiro, as verdadeiras
metáforas são intraduziveis. Só as metáforas de substituição podem receber
uma tradução que restaure sua significação própria. As metáforas de tensão
são intraduzíveis porque criam significação. Dizer que são intraduzíveis não
significa que não podem ser parafraseadas, mas a paráfrase é infinita e não
esgota a inovação da significação.
6. A segunda conseqüência é que a metáfora não é um ornamento do
discurso. A metáfora tem mais do que um valor emocional. Comporta uma
informação nova. Com efeito, por meio de um "erro de categoria", de novos
campos semânticos nascem aproximações inéditas. Resumindo, a metáfora
diz algo de novo sobre a realidade.
É essa última conclusão que servirá de base para a segunda etapa dessa
seção, que será consagrada à função de referência ou ao poder de denotação
dos enunciados metafóricos.

Metáfora e realidade
Examinar a função referencial ou denotativa da metáfora é ser levado
a propor certo número de hipóteses gerais sobre a linguagem que eu gosta-
ria de enunciar, embora não possa justificá-las aqui.
1. Primeiro, devemos admitir que é possível distinguir em cada enun-
ciado entre sentido e referência, Devemos essa distinção a Frege que a pos-
IL6':'J'AULRlCO EURLAHERMEN.ÊUTICABiBLI CA

tulou como lógico. "Sentido" (Sinn) é o conteúdo ideal objetivo de uma


proposição; a "referência" (Bedeutung) é sua pretensão à verdade. Minha hi-
pótese é que essa distinção é interessante não só para o lógico, mas que diz
respeito ao funcionamento do discurso em todo o seu alcance. O sentido é o
que um enunciado diz, a referência é aquilo sobre que o diz. O que um
enunciado diz é imanente a ele - é seu arranjo interno. Aquilo de que trata
é extralinguístico. É real na medida em que é expresso pela linguagem: é o
que é dito sobre o mundo.
A extensão da distinção de Frege ao conjunto do discurso implica uma
concepção do conjunto da linguagem próxima da de Humboldt e de Cassi-
rer, para os quais a função da linguagem é articular nossa experiência sobre
o mundo, dar forma a essa experiência. Essa hipótese marca nossa completa
ruptura com o estruturalismo em que a linguagem funciona puramente de
maneira interna ou imanente, em que cada elemento só se refere a outro
elemento do mesmo sistema. Essa visão é perfeitamente legítima enquanto
podemos tratar os fatos da palavra e do discurso como homogêneos aos fe-
nômenos da língua, e por conseguinte como diferentes somente pela di-
mensão das unidades em jogo - fonemas, lexemas, frases, discursos, textos,
obras. De fato, certos discursos, textos e obras funcionam na base de estru-
turas fechadas sobre elas mesmas, como o jogo de diferenças e de oposições
homólogas às diferenças apresentadas pelo esquema fonológico com uma
espécie de pureza cristalina. Porém essa homologia não devia fazer esquecer
um traço fundamental do discurso, a saber que o discurso é baseado sobre
uma unidade de um gênero completamente diferente das unidades da lín-
gua que são signos. Essa unidade é a frase. Ora, a frase tem características
que não são de modo algum uma repetição das características da língua.
Entre essas características, a diferença entre referência e sentido é funda-
mental. Se a língua é fechada sobre ela mesma, o discurso é aberto e volta-
do para um mundo que ele quer exprímir e transmitir na linguagem. Se a
hipótese geral é verdadeira e significante, o problema último levantado pela
metáfora é saber em que medida a transposição de significação que a define
contribui para a articulação da experiência, para a formação do mundo.
Além disso, a concepção da totalidade da linguagem implicada pela
distinção de orígem lógica entre sentido e referência comporta uma con-
cepção hermenêutica que expus na seção anteríor. Se aceitamos que a tare-
fa da hermenêutica é conceituar os princípios da interpretação das obras de
linguagem, a distinção entre sentido e referência tem por conseqüência que
a interpretação não se detém na análise estrutural das obras, i.é., em seu
174 .. . TEXTOS.. T RADUZmOS

sentido imanente, mas que aspira desenvolver a espécie de mundo que uma
obra projeta. Essa implicação hermenêutica da distinção entre sentido e re-
ferência toma-se perfeitamente impressionante se a pomos em oposição entre
a concepção romântica da hermenêutica, em que a interpretação visava a
encontrar a intenção do autor por trás do texto. A distinção de Frege convi-
da-nos antes a seguir o movimento que exprime o sentido, i.é., o movimen-
to da estrutura interna da obra para o tipo de mundo que a obra abre dian-
te do texto.
Tal é o gênero de hipótese semântica da filosofia da linguagem e da
hermenêutica que está na base das reflexões presentes sobre o alcance refe-
rencial dos enunciados metafóricos.
2. Que os enunciados metafóricos possam pretender à verdade, isso
deve enfrentar sérias objeções que não se podem reduzir a preconceitos saí-
dos da concepção puramente retórica acíma discutida. A afirmação de que a
metáfora não contém nenhuma nova informação é puramente ornamental.
Não me ocuparei com esse tipo de objeções. Mas a esses preconceitos de
origem retórica junta-se uma objeção que conceme ao funcionamento da
própria linguagem poética. Não é surpreendente que uma objeção possa vir
dessa direção porque a metáfora é tradicionalmente ligada ao funcionamen-
to da linguagem poética.
Aqui nos chocamos contra uma propensão forte na crítica literária de
recusar que a linguagem poética tenda para a realidade, ou que diga seja o
que for sobre qualquer coisa exterior a ela mesma, porque a supressão da
referência, a abolição da realidade parecem ser a lei mesma do funciona-
mento da linguagem poética. Assim Ro~an Jakobson, em seu famoso ensaio
sobre "Lingüística e poética" (Linguístícs and Poetícs), pretende que a função
poética da linguagem consiste no acento posto na linguagem por ela mes-
ma, em detrimento da função referencial da linguagem ordinária. Ele diz:
"Essa função, promovendo a palpabilidade dos signos, cava a dicotomia fun-
damental entre signos e objetos" (356). Há numerosos críticos literários que
partilham desse ponto de vista. A conjunção entre sentido e som em poesia
parece fazer do poema um objeto sólido fechado sobre ele mesmo, em que
as palavras tomam-se o material para a modelagem do poema, como o é a
pedra para a escultura. Na poesia, dizem os mais radicais desses críticos, não
é questão de outra coisa senão da linguagem mesma. Assim, podemos opor
o movimento centrípeto da linguagem poética ao movimento centrífugo da
discurso descritivo, como o faz Northrop Frye, e dizer que a poesia é urna
linguagem "auto-suficiente". Nessa perspectiva, a metáfora é um instrumen-
IL.6.:_.I'AULRlCOEUR.LA.HERMENÊUTICA _BíBUCA ..._..... 175

to privilegiado para suspender a realidade por meio de um deslocamento da


significação ordinária das palavras. Se uma visão descritiva está ligada à sig-
nificação ordinária, a abolição da referência está igualmente ligada à aboli-
ção da significação ordinária.
3. Gostaria de opor a essa concepção da função poética uma outra
hipótese, a saber que a suspensão da função referencial da linguagem ordi-
nária não significa a abolição de toda referência, mas, ao contrário, que essa
supressão é a condição negativa para a liberação de uma outra dimensão
referencial da linguagem e de uma outra dimensão da própria realidade
O próprio Jakobson, acima citado, convida-nos a explorar nessa dire-
ção. Diz assim: "A preeminência da função poética sobre a função referen-
cial não suprime a referência (a denotação) mas a torna ambígua". Diz tam-
bém que a poesia é uma "referência desdobrada".
Tomemos como ponto de partida a tese precedente segundo a qual a
significação de um enunciado metafórico é produzida pelo desmoronamen-
to da interpretação literal do enunciado. Numa interpretação literal, a signi-
ficação destrói a si mesma assim como a referência ordinária. A abolição da
referência da linguagem está assim ligada à autodestruição da significação
para uma interpretação literal dos enunciados metafóricos. Mas essa auto-
destruição da significação, por meio do absurdo, i.é., por meio da imperti-
nência semântica ou da inconsistência do enunciado, é só o reverso de uma
inovação de significação no nível da frase inteira. A partir desse ponto, não
poderíamos dizer que a interpretação metafórica dá origem a uma reinter-
pretação da própria realidade, apesar da abolição da referência - e devido a
ela - que corresponde à interpretação literal do enunciado?
Assim, proponho estender à referência o que disse do sentido: a saber,
que a significação metafórica instituía uma "proximidade" entre os signifi-
cantes que até então eram distantes. Direi agora que é essa proximidade
que faz surgir uma nova visão da realidade a que resiste a visão ordinária
ligada ao uso ordínário das palavras. É então a função da linguagem poética
enfraquecer a referência de primeira ordem da linguagem ordinária para
permitir a emersão dessa referência de segunda ordem.
Mas referência a quê? Proponho dois desvios a fim de preparar uma
resposta a essa questão.
4. Seguirei uma primeira sugestão que vem da relação entre metáfora
e modelo. Devo-a a Max Black em seu "Modelos e metáforas" (Models and
Metaphors) e a Mary B. Hesse em seu "Modelos e analogias em ciência" (Mo-
dels and Analogies in ScienceJ: A idéia geral é que a metáfora está para a
176 .... ~TfXIOS...TRADUZlD.OS

linguagem poética como o modelo está para a linguagem científica. Na lin-


guagem científica, um modelo é essencialmente um instrumento hermenêu-
tico que serve para romper uma interpretação inadequada e traçar uma via
luminosa e mais apropriada. Nos termos de Mary Hesse, é um instrumento
de "re-descríção". É a expressão que adotarei para a análise seguinte. É im-
portante, porém, compreender a significação desse termo em seu uso estri-
tamente epistemológico.
O poder de redescrição dos modelos pode compreender-se somente
se, de acordo com Max Black, distinguimos cuidadosamente três tipos de
modelos: os modelos de escala, que parecem materialmente com o origi-
nal, como, por exemplo, um modelo de barco; os modelos analógicos que
só conservam as identidades estruturais, como, por exemplo, um diagrama;
e os modelos teóricos, que consistem na construção de um objeto imaginá-
rio mais acessível à descrição e na transposição de propriedades desse obje-
to em um dominio de realidade mais complexo. Ora, diz Max Black, des-
crever um domínio da realidade em termos de modelo teórico imaginário
é uma certa maneira de ver as coisas "diversamente", mudando nossa lin-
guagem a respeito das coisas. E a mudança de linguagem passa pela cons-
trução de uma ficção heurística e, na transposição dessa ficção heurística, à
realidade mesma.
Apliquemos agora à metáfora esse mundo do modelo. Nosso fio con-
dutor será a conexão entre as duas noções de ficção heurística e de redescri-
ção por transferência da ficção à realidade mesma. É o duplo movimento
que encontramos na metáfora. "Uma metáfora memorável tem o poder de
pôr em relação cognitiva e afetiva dois domínios separados usando uma lin-
guagem adaptada a uma [realidade) como lente para ver a outra (237). Atra-
vés desse desvio da ficção heurística, percebemos novas conexões nas coisas"
(238). A razão de ser disso é o isomorfismo presumido entre o modelo e
um domínio de aplicação. É esse isomorfismo que funda a "transferência
analógica de um vocabulário" (238) e que permite à metáfora, como ao
modelo, "revelar novas relações" (238).
> Um segundo desvio em direção a uma teoria da metáfora consiste
em mostrar que uma linguagem da arte existe, e que não difere fundamen-
talmente da linguagem geral. O primeiro desvio passava pela comparação
entre poesia e ciência, o segundo passa pela comparação entre a arte plásti-
ca e linguagem ordinária. Esse desvio é proposto por Nelson Goodman em
seu "Linguagens da arte" (Languages of Art). Nessa obra, Goodman se opõe
à solução fácil que consiste ~m dizer que só a linguagem científica se refere
U ...6 :...PAUL...RICOEUR...L A...HERMENtunCA.B.íBUCA.... .177

à realidade e que a arte se limita a acrescentar à denotação conotações pu-


ramente subjetivas e emocionais. Uma pintura não representa menos a rea-
lidade do que o faz um discurso sobre a realidade. Não é que a pintura
imite o que representa; ao contrário, como descrição, a representação pictó-
rica organiza a realidade. Esse poder de organização é tanto maior quanto a
denotação for mais ficcional, i. é., em linguagem lógica, quando a denotação
está no grau zero. Mas uma denotação múltipla, uma denotação única e
uma denotação nula são todas igualmente denotações, tanto uma quanto as
outras, o que equivale a dizer que referem-se ao real, ou, em última análise,
organizam o real. Nelson Goodman coloca essa análise sob um título que
choca à primeira vista: "A realidade refeita" (Reality remade): esse título apli-
ca-se a todos os funcionamentos simbólicos.
Que é então a metáfora? É uma extensão da denotação pela transfe-
rência de noções a novos objetos, que resistem a essa transferência. Então
uma pintura pode ser chamada cinzenta literalmente e triste metaforica-
mente. A metáfora não é outra coisa do que a aplicação de um atributo
familiar a um novo objeto, que primeiro resiste, depois cede à sua aplica-
ção. Aqui reconhecemos um ponto essencial da análise precedente que
comparava a metáfora a um erro calculado. Mas esse ponto está agora in-
serido no quadro de uma teoria da denotação. Esse erro calculado não
segue a aplicação literal do predicado. Com efeito, as pinturas literalmente
não são nem felizes nem tristes, porque não são seres dotados de sensibili-
dade. O erro literal é, pois, um ingrediente da verdade metafórica. Uma
aplicação contra-indicada nos põe na pista de uma aplicação transferida.
Vou reter no que segue essa forte expressão de Nelson Goodman: "erro
literal e verdade metafórica". O erro literal consiste na falsa atribuição de
um predicado, a verdade metafórica, na reatribuição do mesmo predicado
por transferência.
5. Depois desses dois desvios pela noção de modelo e pela de transfe-
rência de atributos, podemos voltar à questão que tínhamos deixado em
suspenso: a da "referência ambígua" ou da referência "desdobrada" da lingua-
gem poética.
A linguagem poética fala também da realidade, mas faz isso em nível
totalmente diferente da linguagem científica. Não nos mostra um mundo
já presente, como o fazem as linguagens descritiva e a didática. Com efei-
to, como vimos, a referência ordinária da linguagem é abolida pela estraté-
gia natural do discurso poético. Mas na medida mesma em que essa refe-
rência de primeira ordem é abolida, é liberado um outro poder de dizer o
178 . . .. _...__. ..____TEXTO'S. IRAD.ULIDD.s

mundo, embora em outro nível de realidade. Esse nível é o que a fenome-


nologia husserliana designou como "o mundo do vivo" (Lebenswelt) e que
Heidegger chamou "ser no mundo". É um mundo que eclipsa os objetos
manipuláveis, um mundo que esclarece a vida, um "ser no mundo" não
manipulável, que me parece sera contribuição ontológica fundamental da
linguagem poética.
Aqui reencontro a grande idéia de Aristóteles em sua Poética. A poesia
é descrita como uma mimêsis da ação humana (Aristóteles pensa na tragé-
dia). Mas essa mimêsis passa pela criação, pela poiêsis de uma fábula ou de
um mito, que é o trabalho mesmo do poeta. Na linguagem que adotei aqui,
diria que a poesia imita a realidade somente recriando-a em um nível míti-
co do discurso. Aqui ficção e redescrição vão de mãos dadas. É a ficção
heurístca que leva a função da descoberta na linguagem poética.
6. Concluirei essa segunda parte da seção com três observações: (a) As
funções retórica e poética da linguagem são reciprocamente invertidas. A
primeira tenta persuadir os homens conferindo ao discurso ornamentos agra-
dáveis; a segunda visa a re-descrever a realidade pelo caminho tortuoso da
ficção heuristica. (b) A metáfora é essa estratégia de discurso pela qual a
linguagem despoja-se de sua função descritiva ordinária a fim de servir-se de
sua função extraordinária de re-descrição. (c) Podemos falar com precaução
de verdade metafórica para designar a pretensão de atingir a realidade que
está ligada ao poder de re-descrição da linguagem poética. Quando o poeta
diz: "A natureza é um templo onde pilares vivos ... " o verbo ser não se limita
a correlacionar o predicado "templo" ao sujeito "natureza". A cópula não é
só relacional. Implica que essa relação re-descreve o que é de certa maneira.
Diz que tal é o caso.
Estaríamos a ponto de cair assim na mesma armadilha que a lingua-
gem nos reserva confundindo os dois sentidos do verbo "ser", o sentido rela-
cional e o sentido existencial? Seria esse o caso se tomássemos o verbo ser
no sentido literal. Mas há também um sentido metafórico do verbo no qual
a tensão que encontramos entre os termos (natureza e templo) é mantida,
como também as tensões entre as interpretações [literal e metafórica). A
mesma tensão encontra-se no verbo "ser" nos enunciados metafóricos. O "é"
é ao mesmo tempo um "não é" e um Ué como" metafórico. A ambigüidade, o
desdobramento são, pois, estendidos do sentido à referência e, através dessa
última, ao Ué" da verdade metafórica. A linguagem poética não diz literal-
mente o que as coisas são, mas a que elas são semelhantes; dessa maneira
oblíqua diz o que elas são.
IL.6:'J'AULRI.COEUR.E.. A ..HERMENÊunCA..B.LBUCA...... ... 179

A transferência metafórica da estrutura narrativa


Tentamos definir a parábola como o modo de discurso que aplica a
uma [orma narrativa um processo metafórico. Essa definição exprime em
linguagem mais técnica a convicção espontânea do leitor profano de estar
lidando, ao mesmo tempo, com uma história livremente criada e com uma
transferência de significação que não afeta essa ou aquela parte da história,
mas a narrativa como um todo, e que se toma desse modo uma ficção capaz
de re-descrever a vida. Para uma retórica do discurso bíblico, a dificuldade
principal consiste em articular de maneira adequada a forma narrativa e o
processo metafórico e, portanto, em combinar corretamente a teoria dos
gêneros que rege a forma narrativa e a teoria dos "tropos" que rege a trans-
ferência de significação da história, tomada como um todo, para a esfera
existencial à qual é aplicada. Nossa tentativa de definição da parábola como
funcionamento metafórico de uma narrativa só faz exprimir a tarefa a cum-
prir no quadro de uma retórica do discurso bíblico.
De fato, não é tão fácil quanto parece à primeira vista explicar o que
queremos dizer quando afirmamos que, nas parábolas, a narrativa deve ser
tomada metaforicamente e não literalmente. Além disso, não é evidente de-
terminar quais indícios internos e externos levam-nos a interpretar a narra-
tiva como uma parábola, se isso significa interpretá-la metaforicamente. Essa
segunda parte da questão será reservada para a última seção do presente
ensaio, pois implica uma comparação entre os dizeres parabólicos e alguns
outros modos de discurso na tradição sinóptica.
I. Só muito recentemente os pesquisadores aplicaram o conceito de
metáfora às parábolas (ver PERRIN, 1967). A. Jülicher, fundador da exegese
moderna das parábolas, descartou explicitamente a noção de metáfora como
inapta a caracterizar o funcionamento do "comparar" (Vergleichen) e do "tor-
nar semelhante" (Verãhnlichen) em obra nos "discursos parábolas de Jesus"
(Gleichnisreden Jesu). Para Jülicher, a metáfora é o instrumento retórico da
alegoria, que constitui por sua vez a maneira como Marcos e a Igreja primi-
tiva interpretavam as parábolas, a saber como um discurso obscuro (dunkel),
que buscava dissimular a verdadeira mensagem e exigia uma interpretação
(Deutung). A metáfora é o dispositivo retórico que uma interpretação alegó-
rica descobre nas parábolas. É definida por Jülicher como a substituição (Erset-
zung) de uma palavra por outra, semelhante, com o fim de dissimular a sig-
nificação. Por conseguinte, a alegoria caracteriza o tipo de interpretação re-
querido pelo modo do discurso, e a metáfora é o traço correspondente no
180 . ....TfXT05.IRADUZID05

modo de discurso quando é interpretado de maneira alegórica. Para Jülicher;


e para quase todos os críticos modernos, uma parábola não é uma alegoria.
Ele não visa a dissimular "os mistérios"; ao contrário, procura ilustrar
(veranschaulichen) um certo ensinamento. Sua função é figurativa (bildlich)
e não dissimuladora. Para Jülicher a conseqüência é que as parábolas ex-
cluem a "metáfora" tanto como a "alegoria" e a "interpretação". Esses três
conceitos têm um destino comum.
A tarefa é, pois, construir a comparação (Vergleichung) de maneira não
metafórica. Para resolver o problema, Jülicher buscou uma solução utilizan-
do não a Poética de Aristóteles, mas sua Retórica, livro Il, capo XX, sobre as
koinas pisteis, i.é., "os meios comuns de procurar uma convicção". Esses ins-
trumentos de prova "sustentam" ou "reforçam" um juízo precedente atacan-
do as objeções suscitadas pela dúvida. É, pois, uma Erskenntnishilfe: "ajudam
o conhecimento". O semelhante (Gleichnis = comparação), em um sentido
técnico da palavra, é o mais simples desses meios auxiliares. Liga duas frases
postas em paralelo devido a um tertium comparationis (o terceiro termo da
comparação). Dessa figura de palavra, tiramos uma das três espécies de pa-
rábolas, o tipo não narrativo, o "símile" (a comparação) que coloca dois enun-
ciados lado a lado (Nebenstellung); o primeiro, sendo literal (sachhaft), o se-
gundo, figurativo (bildhaft). Para Jülícher; a primeira frase definida pelo pró-
prio tema (die Sache) é uma proposição ética universal.
As parábolas narrativas (Gleichniserzãhlungen), i.é., a parábola no sen-
tido estrito do termo, não são outra coisa do que "símiles" (comparações)
estendidas em que o segundo enunciado - o "figurativo" - é uma narrati-
va. Donde a definição proposta por Jülicher: "A figura de estilo na qual a
eficácia de um enunciado (ou de uma idéia) é assegurada pela justaposição
de uma história ficcional desenvolvida em outro domínio, na qual o enca-
deamento das idéias é semelhante ao da primeira proposição" (I, 98). Nesse
sentido a palavra interpreta (deutet) a idéia mas não pode ser interpretada
(gedeutet). A idéia, que é "clarificada" pela narrativa por causa da similitude
de estrutura, é a ponta da parábola.
(Omitirei o terceiro tipo de parábola, "as narrativas exemplares" que
levantam problemas totalmente diferentes e que talvez simplesmente não
existam, se Crossan tem razão em sua interpretação da narrativa exemplar
tipica, o bom samaritano).
O problema levantado por Jülicher conceme ao estatuto da compara-
ção mesma (a Vergleichung na Gleichnis). Para Jülicher; a comparação dá-se
entre dois enunciados e duas correntes de pensamento. Ela requer um "ter-
TL.6:.PAUL. RICOEUR LAHERMENÊUTICABÍBUCA... . . . 181

ceiro" que é sua "ratio". O "terceiro" é o fator comum ao tema (Sache) e à


figura (Bild). Afinal, a estratégia que aqui opera é a da persuasão. Consiste
em aumentar a força de um argumento "criando clareza". Prova esclarecen-
do. Parece que tal análise é duplamente errônea. Errônea quanto ao que faz
uma metáfora, e errônea quanto ao que faz uma parábola.
2. Como Eberhard Jüngel demonstrou com convicção em seu Paulo e
Jesus (Paulus und Jesus), a parábola não é um meio auxiliar de prova. Não
há pensamento literal, enunciado sachlich a extrair, que a parábola revestiria
de um manto figurativo, o suposto enunciado bildlich. O erro inicial consiste
em identificar o mashal da literatura hebraica com a parabolê da retórica
grega que é, por sua vez, uma parte da lógica aristotélica (a retórica tem
como contraparte a dialética que é uma lógica do provável, não uma lógica
de argumentos necessários). O mashal hebraico liga diretamente a significa-
ção do que é dito com a disposição correspondente na esfera da existência
humana, sem o desvio por um enunciado ético geral que a parábola ilustra-
ria. Em outros termos, a parábola não é um meio auxiliar de conhecimento.
Por conseguinte, se há algo de "figurativo" na parábola, ~ão é no sentido
retórico de uma "figura" que copiaria uma idéia. Se a parábola é "figurativa"
(bildlich), não é como a "figura" retórica de uma matéria (Sache) mas como
a "figura" de um modo de ser que pode desenvolver-se na experiência hu-
mana. A Sache - a questão em jogo - não é uma "idéia", nem uma "propo-
sição" que se poderia pôr por escrito em "justaposição" à narrativa. A Sache
é o referente na experiência humana.
Por conseguinte, devemos esquecer o dualismo "tema" e "figura de esti-
lo" e esquecer sua transcrição sob a forma de "idéia" e de "imagem". Mas no
que toca a seu referente existencial, seríamos capazes de construir sua fun-
ção figurativa como metáfora?
O exemplo de Jülicher mostra claramente que não podemos fazê-lo
diretamente sem uma revisão drástica do conceito de metáfora, tão drástica
quanto a do conceito de figura, mas tal que ambos poderiam unir-se no
conceito de enunciado metafórico, que elaborei na primeira parte desse arti-
go. De fato, a teoria da metáfora implicitamente assumida por Jülicher é
uma teoria de substituição, tomada mais complexa pela afirmação de que o
fim da substituição é dissimular a significação. O parentesco próximo esta-
belecido por Jülicher entre metáfora e alegoria desaparece se a metáfora
não é um processo de substituição.
3. Mas não basta refutar a construção retórica da metáfora como subs-
tituição para chegar a uma noção adequada da metáfora, pronta para ser
aplicada às "narrativas". A teoria da metáfora que preconizei anteriormente
requer ainda algumas precisões, de modo a estender o processo metafórico
não só das palavras às frases, mas das frases às estruturas narrativas e, em
geral, aos modos discursivos do discurso.
4. As metáforas tais como são construídas em uma teoria da tensão
permanecem acontecimentos pontuais do discurso. Apesar de sua nova afi-
liação com as frases antes do que com as palavras isoladas - ou antes, devi-
do a ela - ficam sempre ligadas ao uso das palavras em uma frase, por
conseguinte, segundo uma estratégia específica que encontra seu ponto de
partida na polissemia das palavras. Metáforas tensionais fazem sentido no
nível da frase, porque "torcem" o sentido das palavras. Insisto nesse ponto
para alertar contra uma transposição apressada de uma teoria tensional da
metáfora para o discurso parabólico.
> Três diferenças principais devem ser examinadas entre as frases me-
tafóricas e o discurso parabólico. A primeira diz respeito à diferença de ní-
vel na hierarquia das formas do discurso. A teoria da tensão foi edificada no
nível da frase; o discurso parabólico funciona no nível da composição (Aris-
tóteles falava de taxis) que é característico de uma obra, i.é., de conjuntos
que têm uma significação enquanto conjuntos (um ensaio, uma peça, um
poema etc.). Os gêneros literários pertencem a esse nível de composição.
> Uma segunda diferença deve ser sublinhada. As metáforas - en-
quanto metáforas tensionais - têm uma existência efêmera. Duram enquanto
o choque semântico é percebido entre as palavras. Suas inovações semânti-
cas não têm estatuto na linguagem estabelecida. Logo que se tomam co-
muns e são tidas por estabelecidas, tomam-se igualmente triviais e morrem
como metáforas. Por conseguinte, devem permanecer acontecimentos de dis-
curso, acontecimentos transitórios. Parece que segundo a teoria da tensão,
histórias figurativas tradicionais deveriam ser metáforas mortas. Certamente,
esse pode ser o caso. Contudo, não parecem morrer da mesma maneira, ou
ao menos não tão rapidamente como poderíamos esperar na base dessa teo-
ria. É porque parecem ligadas a um outro tipo de tensão do que a tensão
"tenor/veículo" de Richard e de outros: pode suceder que essa outra forma
de tensão ofereça outros meios de regeneração que simplesmente um reju-
venescimento verbal.
> Essa observação leva nossa atenção para um terceiro fato. A parábo-
la não apresenta nada da tensão descrita acima. Não podemos dizer que em
uma parábola certas palavras são tomadas literalmente, e outras, metaforica-
mente. Ao contrário, o conjunto da narrativa é contado no nível de aconte-
IL6:...PAUL..RtCOfUR.E.A..HERMENÊUIICA...BÍBUCA.. ........._ ..... 183

cimentos da vida ordinária. Se na parábola (enquanto oposta ao mito, se-


gundo a afirmação de Marianne Moore) temos "jardins imaginários tendo
no interior sapos reais" então o jardim pode ser imaginário, mas todos os
sapos são reais. Logo, a tensão deve situar-se em outra parte, digamos entre
jardins imaginários e reais!
5. Seguramente, as metáforas não são sempre esses acontecimentos de
discursos isolados que descrevemos por cuidado de simplificação. Há muitas
vezes conjuntos ou redes de metáforas subentendendo seja um poema, seja
a obra inteira de um poeta, seja mesmo uma cultura e - por que não? - as
expressões poéticas da humanidade tomadas como um poema único. Os
retóricos antigos tinham uma idéia desse nível do problema quando falavam
de "metáforas duráveis". Com efeito, uma metáfora nunca aparece só. Uma
metáfora chama outra, e todas em conjunto permanecem vivas devido à sua
tensão mútua e ao poder de cada uma de evocar o conjunto da rede. Por
exemplo, na tradição hebraica, Deus é chamado Rei, Pai, Esposo, Dono da
casa, Pastor, Juiz e também Rocha, Fortaleza e Redentor etc. Do mesmo
modo, emergem certas metáforas que reúnem muitas metáforas parciais tira-
das de diferentes campos da experiência e que lhes fornecem uma espécie
de equilíbrio. Essas metáforas "fontes" têm uma aptidão particular a engen-
drar um número ilimitado de interpretações potenciais em um nível mais
conceitual. Assim, ao mesmo tempo reúnem e difundem. Reúnem metáfo-
ras subordinadas e difundem novas correntes de pensamento.
6. As narrativas de ficção parecem constituir uma classe à parte no
processo metafórico. O que traz a metáfora não são as frases individuais das
narrativas, mas a estrutura inteira, as narrativas tomadas como um todo, o
que Aristóteles chamou o mythos no poema. Por conseguinte poderíamos
falar da função cênica da parábola no sentido que o prof Lorenzer dá a esse
termo em sua interpretação da psicanálise (em que fala de "cena neuróti-
ca", "cena primitiva", "cena de transferência"). Poderíamos dizer, da mesma
maneira, que o que trabalha metaforicamente na parábola não é outra coisa
do que a narrativa tomada como cênica. Isso explica por que não há tensão
entre certas palavras tomadas literalmente e outras palavras tomadas meta-
foricamente, mas como a função figurativa é assumida pela narrativa en-
quanto tal, e como, então, a tensão produz-se entre a cena e a vida cotidia-
na e a realidade.
7. Nessa etapa, a parábola é a contraparte metafórica mais próxima do
que parece como um modelo na teoria das ciências. Só os conjuntos de
metáforas e metáforas-narrativas apresentam uma articulação e uma estabí-
184 ........._ _._HXIOS..TRAD.UZIDOS

lidade semelhantes às dos modelos científicos tais como descritos na segun-


da parte desta seção. A grande vantagem dessa aproximação é que acentua
a visão referencial das narrativas figurativas e, por conseguinte, sua dimen-
são referencial-existencial. Se um modelo é um instrumento heurístico, que
serve para romper uma descrição anterior inadequada e para traçar um ca-
minho para uma nova descrição mais adequada, a metáfora aproxima-se de
perto dessa função heurística quando o processo metafórico é veiculado
por uma narrativa de ficção. Então desenvolve o mesmo poder de ligar a
ficção e a redescrição.
O paralelismo vai mais longe do que parece à primeira vista. Não con-
cerne somente à articulação tanto do modelo quanto das ficções narrativas,
não somente ao estatuto imaginativo tanto dos modelos teóricos quanto das
ficções literárias, mas só à tensão introduzida no nível da realidade mesma
entre descrição e re-descrição. A teoria dos modelos permite-nos estender
essa noção da "tensão" bem além de uma simples tensão entre tenor e veicu-
lo, i.é., entre as palavras no interior da frase e mesmo além de uma tensão
entre as interpretações literal e metafórica da mesma mensagem. A tensão
afeta o referente mesmo como descrito e ré-descrito Tal é o gênero de ten-
sões que se pode encontrar nas parábolas, que não oferecem tensão interna
entre "tenor" e "veículo" por causa da "normalidade" da narrativa e da pouca
tensão entre as interpretações literal e metafórica da própria mensagem. A
"tensão" está inteiramente do lado da visão da realidade entre a percepção
apresentada pela ficção e nossa maneira ordinária de olhar as coisas.

Indícios da metáfora na estrutura narrativa


Podemos agora voltar-nos para a quarta e última questão proposta no
começo deste segundo capítulo. A questão era a seguinte: se chamar uma
certa narrativa de parábola é dizer que a história se refere a ..., significa
... alguma coisa diferente na experiência humana, então como o "sentido" da
narrativa implicaria seu "referente" metafórico?
1. Há uma maneira de contornar a dificuldade. É ignorar puramente a
abordagem estrutural. É o que Crossan escolheu fazer em sua obra "Em pa-
rábolas" (In Parables). Começa imediatamente pela dimensão figurante das
parábolas e adota desde o começo uma noção de símbolo concebido como
uma participação ao referente do símbolo. O referente é o mestre, diz Crossan.
Em um sentido, tem razão. Se não começamos com a convicção de
que "a metáfora articula UJ;Il referente a esse ponto novo para a consciência
IL6~PAULRICOEU.R.E.A.H.E RMEN.Ê.UncABÍBuCA.. .. ... _ 185

ou a esse ponto estranho para ela que esse referente não possa ser apreen-
dido a não ser no seio da metáfora mesma" (13), então jamais obteremos
essa convicção de uma pesquisa ulterior da estrutura lingüística da parábo-
la. O elã para o referente deve, em certo sentido, preceder toda tentativa de
fazê-lo decorrer de um melhor conhecimento da estrutura interna. É por-
que a experiência poética vem à expressão metafórica que a "linguagem
impõe uma ordem crível" (T. S. Eliot) à experiência ordinária. A estrutura
nada mais é do que essa ordem crível. Por essa razão, a ordem natural da
pesquisa devia ser a partír da participação ao referente para voltar para a
análise da estrutura "interna".
Essa convicção é também a minha, até certo ponto. Também conside-
rei como estabelecido, na primeira parte desta seção, que a narrativa signifi-
ca metaforicamente a experiência poética que vem da linguagem.
Mas se essa convicção pode inverter a ordem de prioridade das duas
questões levantadas no começo desta seção, isso não nos autoriza a apagar
outra questão: como sabemos que uma parábola é uma parábola e não sim-
plesmente uma narrativa? Essa questão não pode mais ser rejeitada desde o
momento em que existe uma análise estrutural independente da abordagem
poética. Certamente, podemos decidir nunca utilizar análise estrutural de
maneira a evitar aborrecimentos com questões concernentes ao sentido e à
"referência". Mas o estado atual do problema não nos permite mais contor-
nar essa dificuldade. A única regra que pode ajudar-nos a não ficar prisionei-
ros do impasse estrutural é evocar essa questão como a contraparte da que
discutimos na primeira parte. Como a referência simbólica trabalha através
da estrutura narrativa? A nova questão será então a seguinte: que indícios a
narrativa fornece para a compreensão de seu referente de uma maneira me-
tafórica? Minha hipótese principal é que os indícios internos fornecidos por
uma narrativa isolada são demasiado implícitos ou evasivos para serem reti-
dos ao lado da interferência dos indícios mais importantes dados pelo con-
texto. Porém irei tão longe quanto possível na busca de "sinais de metafori-
cidade" de uma única narrativa (ponto 2) antes de examinar os "indícios
contextuais" (ponto 3 a 6).
2. Os sinais de metaforicidade dados por uma única narrativa, se é que
os há, não devem encontrar-se em outro lugar que não na intriga (no sentido
de Via), no desafio que a intriga apresenta para os principais personagens e na
resposta dada por esses personagens à situação de crise. A abordagem dramá-
tica, melhor do que a abordagem puramente formalista do estruturalismo,
fornece uma base apropriada para o processo metafórico. Essa base é a estru-
186 . . TE.XTO.LTRADUZJOOS

tura dramática da narrativa, i.é., a intriga. A intriga não é, como as formas e os


códigos dos sucessores de Propp, uma estrutura subjacente que toma a histó-
ria contada secundária, como puro epifenômeno dos mesmos códigos: a intri-
ga é a estrutura mesma da narrativa. A estrutura dramática é o dinamismo da
narrativa e, nesse sentido, homogênea a ela. Como Jeremias mostrou de ma-
neira convincente, se o Reino de Deus é como alguma coisa, não é o homem
que... a mulher que ... o levedo que ... a pérola que ... mas o Reino é como
o que acontece na história. O Reino de Deus não é como aquele que, é como
quando. Em outros termos, é a intriga enquanto tal que é portadora do pro-
cesso metafórico. Mais precisamente, o processo metafórico parte desses tra-
ços da intriga que tomam a parábola seja trágica, seja cômica, a saber o mo-
vimento "para baixo" ou "para cima", da crise ao desfecho. Dessa maneira, to-
das as aproximações existenciais, que a seguir poderiam ser preconizadas, de-
vem estar enraizadas na própria estrutura dramática. É essa estrutura dramá-
tica que significa que a existência pode ser "perdida" ou "ganha". A existência,
de certo modo, deve ser re-descrita em função dos movimentos da intriga de
base. Se isso é verdade, uma análise estrutural da estrutura de profundidade
não ajuda em nada enquanto não fornece uma melhor compreensão da crise
à estrutura de superfície. Uma vez mais (ver a discussão do capítulo primei-
ro) o caminho de volta da estrutura de profundidade à estrutura de superfície
é o único movimento decisivo para uma hermenêutica da parábola.
Mas mesmo se essa condição for satisfeita, fica a questão: que é que
leva a considerar a intriga, a crise, o desafio e a resposta no seio da narrativa
como referindo-se a alguma estrutura semelhante da experiência humana
fora da narrativa?
A resposta de Crossan era que somos motivados a agir assim pela "nor-
malidade" da história. Se essa normalidade não fosse simbólica, diz ele, a
história seria inútil. Se aceitamos que não seja inútil é que aceitamos a ad-
vertência "Quem tem ouvidos para ouvir que ouça!" e buscamos uma inter-
pretação que faça sentido.
Há certamente muito de verdade nessa resposta. O modo de discurso
da parábola toma-se um caso de eufemismo - significar o mais dizendo o
menos - ou melhor, de ironia. A parábola deveria ser interpretada metafo-
ricamente porque pretende ser simples e trivial.
Mas, uma vez mais, como sabemos que alguém fala ironicamente se
não dá indícios suplementares de seu duplo discurso?
Seja-me permitido emitir uma hipótese que de fato não é contrária
mas complementar da anterior. (Infelizmente não posso desenvolvê-la com-
pletamente porque implica uma interpretação do símbolo "Reino de Deus"
que põe em relação muitos modos de discurso [o declaratório, o proverbial
e o parabólico].) Minha sugestão é que o traço que nos convida a transgredir
as estruturas narrativas é o mesmo que especifica a parábola como forma
religiosa do discurso "poético". Esse traço, na minha opinião, é o elemento
de extravagância que faz a estranheza da narrativa, misturando o extraordi-
nário ao ordinário.
Não se poderia dizer que essa dimensão de extravagância libera a aber-
tura do processo metafórico do fechamento da forma narrativa? Gostaria de
insistir no contraste entre abertura e fechamento.
O primeiro tema está fortemente ligado ao que um gênero literário faz
no nível que chamamos, no capítulo I, o nível do discurso enquanto obra. O
gênero literário, dizíamos, fornece distância, autonomia e forma. O processo
metafórico, ao contrário, "abre" o discurso para o exterior, a saber, para o
infmito da interpretação (cap.111). A mensagem parabólica emana dessa tensão
entre uma forma que a circunscreve e um processo que transgride as fron-
teiras da narrativa e sinaliza para um "outro", um "além".
Ora, o contraste entre fechamento e abertura constitui uma espécie de
paradoxo, que é parcialmente resolvido por esse traço específico que chamo
de extravagância do discurso, porque a presença do extraordinário no ordi-
nário torna a própria estrutura instável e incoerente. Na tensão entre narra-
tiva como forma e metáfora como processo, a inconsistência narrativa espe-
cífica tende a romper o esquema narrativo e a engendrar uma transgressão
no sentido "para o interior" em relação à referência "para o exterior".
Seja qual for a solidez dessa sugestão, que não passa de uma sugestão,
concedo de bom grado que essa própria extravagância não poderia ser iden-
tificada por ela mesma sem a ajuda de outros tipos de palavras e sem o
simbolo "Reino de Deus" que lhe fornece um horizonte comum. No entan-
to, não é de todo inútil considerar por um instante o esquema narrativo das
parábolas como instável, como polarizado entre o "fechado" e o "aberto", e
de olhar a dimensão de extravagância como o tipo de impertinência narrati-
va (ou incoerência, inconsistência) que "pisca o olho" (como dizia Heídeggerl]
na direção de uma interpretação metafórica, fazendo eco dessa maneira à
advertência "Quem tem ouvidos para ouvir que ouça!".
3. As parábolas como "corpus". Mas se há indicios internos para uma
compreensão metafórica das parábolas, eles são demasiado evasivos e duvi-
dosos para serem identificados somente na base de uma só parábola. Minha
aposta é que as parábolas fazem sentido se, e somente se, são tomadas em
T~XT.O.s..TRAD.UZIDOS

conjunto. Uma parábola isolada é uma construção artificial do método histó-


rico-crítico. As parábolas constituem uma coleção, um "corpus", que só é ple-
namente significante tomado como um todo. Certamente, não conservamos
todas as parábolas de Jesus, mas a seleção que foi operada pela tradição da
Igreja parece bastante para fazer aparecer um esquema de sentido comum.
Nesse sentido, Crossan tem razão de tomar toda a coleção das parábo-
las como um campo de artículação ao qual aplica uma seqüência temporal
tírada da ontologia heideggeriana: espera, reversão e ação.
Quero só acrescentar uma observação que me foi sugerída pelo que foi
dito acima a propósíto da noção de rede metafórica. Essas parábolas não
constituem uma coleção no mesmo sentido que os contos folclóricos russos
estudados por Propp, que são redutíveis a um só conto fundamental. Entre
as parábolas há antes uma relação dinâmica de convergência e divergência.
Deveríamos falar mais de conjuntos do que de sistema. Isso significa que há
uma tensão não só no interíor de uma parábola (entre narrativa e metáfora)
mas entre várias parábolas. Não dizem a mesma coísa. A rede de suas signi-
ficações cruzadas (intersignificações) é uma fonte importante de interpreta-
ção não literal. Se seguimos até ao fim essa pista, não há hermenêutica de
uma parábola mas das parábolas. Um dos principais indícios para uma inter-
pretação metafórica é assim a tensão entre os diferentes esquemas de crise e
de resposta. Algumas falam de um "tesouro", que nada faz para ser encon-
trado, outras falam de "grãos" que crescem como seres naturais, outras ainda
de "ovelhas" que são menos passivas. Outras falam de "intendentes" e de
"servos" que tomam iniciativas significativas, e uma fala mesmo de um "fi-
lho" que desenvolve todo um paradigma da metanoia. Quantas boas - e
más! - teologias são sugeridas potencialmente - e rejeitadas! - pelo con-
junto da rede das parábolas, sustentando-se ou opondo-se mutuamente!
4. Próxima da proposição precedente, uma nova hipótese vem ao espí-
rito. Não temos só de tomar o corpus das parábolas como um todo, mas
também o corpus dos dizeres atribuídos a Jesus pelos sinópticos. Como o
expõe Norman Perrín (1974, 277-303) os dizeres escatológicos, os dizeres
proverbiais, os dizeres parabólicos apontam juntos na mesma direção. O sím-
bolo "Reino de Deus" (ao qual voltarei depois por ele mesmo) designa o
horizonte comum a esses três modos de discurso. Essa nota é de uma impor-
tância enorme: implica que os diferentes modos de discurso podem ser tra-
duzidos um no outro. Essa "traduzibilídade" de um modo de discurso em
outro, logo que percebida, livra o ouvinte de toda veleidade de apegar-se à
compreensão literal. Abre os olhos e os ouvidos. A convertibilidade entre os
TL6:PAU L...RlCOE.UR ..E .A.H.f.RM.f.NÊUnCABíB LlCA... . 189

dizeres proverbiais e os dizeres parabólicos tem uma importância particular.


Os dizeres proverbiais estendem aos dizeres parabólicos sua própria ironia,
sua textura paradoxal e hiperbólica, sua arte de desorientar o ouvinte. Pro-
ponho dizer que uma narrativa pode ser compreendida como parábola se
pode também ser convertida em provérbio ou em dizer escatológico. A equi-
valência entre parábola, proclamação e provérbio ajuda-nos a romper as es-
truturas narrativas. Faz explodir o "fechamento" da estrutura. Assim, a estru-
tura narrativa recua para o plano de trás, e o processo metafórico vem para
o primeiro plano. Essa inversão de prioridade entre estrutura e processo não
poderia ser realizada sem essas trocas mútuas entre vários modos de discur-
so, porque a atenção deveria ser atraída para além da narrativa no momento
mesmo em que é captada pela própria intriga. O fato de pensar no interior
como no exterior da forma é possibilitado pela atração exercida por uma
forma de discurso sobre o outro.
5. Se ampliamos um pouco mais o fundo contextual das parábolas,
somos levados à hipótese seguinte: o processo de "intersignifícação" que se
produz entre as parábolas tomadas como um corpus distinto, depois entre
esse corpus e as outras "palavras" de Jesus deve ser prosseguido, um passo
adiante, pela íntersigníficação entre as "palavras" mesmas consideradas como
um corpus maior e as "ações" de Jesus. Por essa observação, fazemos justiça a
uma idéia importante de Jeremias segundo a qual algumas ou mesmo a
maioria das parábolas [de Jesus] são apologias e justificações de sua própria
maneira de tratar publicanos, prostitutas e fariseus. Certamente, surge a ob-
jeção de que recaímos na interpretação "histórica" ou "biográfica", em ter-
mos de Sitz im Leben. Recuso categoricamente que seja esse o caso. As ações
de Jesus não são menos acessíveis - tais como sígníficadas pelos textos -
do que as parábolas ou outras palavras de Jesus. O processo de "íntersignífí-
cação" está, ele mesmo, contido nos limites da "textualídade": interpreta um
texto por intermédio de um outro texto, no interior de um texto mais amplo.
Se seguimos essa sugestão, não devemos hesitar em pôr sob o titulo de
"ações" não só as ações ordinárias - que de fato são tão extravagantes, tão
hiperbólicas, tão irônicas que as palavras e, por conseguinte, tão extraordiná-
rias no ordinário como as histórias contadas nas parábolas - mas até mes-
mo os milagres. Os milagres, na realidade, são histórias dadas como histórias
verdadeiras As parábolas são histórias dadas como ficção. Mas o que querem
dizer é a mesma coisa: o curso da vida ordinária é rompido, a surpresa jorra.
O inesperado acontece, os ouvintes são interpelados e levados a pensar o
impensável. Se pomos juntas as diferenças entre as duas afirmações concer-
190 .. . TEXIOS....TRADUZ1D.OS

nentes à relação com a realidade efetiva, e se nos concentramos na "signifi-


cação" das palavras, das ações ordinárias e das ações milagrosas, não poderia-
mos então dizer que as parábolas atraem nossa atenção para a dimensão
"milagrosa" do tempo, ao mesmo tempo que as narrativas dos milagres rece-
bem da pregação sua dimensão "parabólica"? Não é por acaso que o evange-
lho de João chamará os milagres de semeia (sinais). Nem tampouco é por
acaso que podemos ler as parábolas da semente como sinalizando o valor
milagroso da messe: "Mas outros grãos caíram sobre a terra boa; deram fruto
brotando e desenvolvendo-se e produziram trinta, sessenta, cem por um"
(Mc 4,8; Lc 8,8; Mt 13,8).
6. Somos levados passo a passo a suscitar a questão inevitável da fun-
ção do evangelho mesmo - como quadro literário - para a compreensão
das parábolas.
Minha questão não é de ordem histórica, mas de ordem hermenêutica.
Mesmo se o evangelho como texto é o resultado último de um proces-
so redacional (e admito que esse é seu estatuto para uma abordagem histó-
rico-critica), permanece a questão de saber se a inserção da parábola no seio
do quadro mais amplo do evangelho, contribui à sua significação enquanto
parábola. O problema, uma vez mais, não é da ordem da história mas sim
da significação. É por isso que o chamo de problema hermenêutica.
>- Esse problema tem muitos aspectos. Antes de tudo, a forma "evan-
gelho" fornece o "lugar" comum e limitado de intersignificação para as dife-
rentes espécies de discurso que entram em consideração, e para a conver-
gência de significação entre as "ações" e as "palavras".
>- Em segundo lugar, o evangelho, na medida em que ele mesmo é
uma narrativa (admito com Norman Perrin que é algo mais e algo diferen-
te), inclui narrativas na narrativa. Os estruturalistas trazem um elemento
interessante a respeito: as parábolas nos chegam como citações inseridas no
interior de um texto. Isso significa que o locutor que "diz" a parábola é tam-
bém o "herói" da narrativa global. Através disso, a parábola é imputada a seu
locutor como àquele de que fala a narrativa de segunda ordem (que de fato
é a "primeira" narrativa). Essa identificação do locutor - que nos permite
falar das parábolas como as parábolas de Jesus - é, por conseguinte o pon-
to de cruzamento de dois processos. De uma parte a singularidade do locu-
tor é designada pela singularidade de sua visão da realidade. Uma única vi-
são do mundo implica uma dupla referência, uma referência para trás e
uma referência para diante - uma referência para diante para o modo de
ser que se abre para nós diante do texto, e uma referência para trás, para o
IL6':'~I'AULRJCOEUR-~.E~AJi.ERM.ENíUIJCABjB.LJ.CA ..

locutor que se exprime ele mesmo por meio de uma confissão indireta. Ou,
para dizer o mesmo nos termos da discussão precedente do estruturalismo,
o locutor é quem "dá" a narrativa em uma comunicação narrativa. Mas essa
referência para trás da parábola ao "doador" da narrativa não nos permite
dizer mais do que isso: aqui, um locutor único apresenta diante de nós um
único modo de ser por meio de uma narrativa metafórica. Só a conjunção
entre o "herói" do evangelho como narrativa e o "doador" da parábola como
citação no evangelho permite-nos nomear o locutor da parábola e chamá-lo
Jesus. A expressão "parábola de Jesus" provém desse processo de intersigni-
ficação entre parábola e evangelho.
>- Uma importante conseqüência desse processo de intersigníficação
entre parábola e evangelho é que todo o conjunto das "palavras" mais as
"ações" (ordinárias, extraordinárias, milagrosas) está conectado pela media-
ção da forma "evangelho" com o principal assunto do evangelho, a narrativa
da Paixão. Essa proximidade, no seio do espaço da intersignificação entre
todas
/
as "palavras" e todas as "ações" (tais como são naturalmente ligadas
segundo o modo narrativo) e a história da Paixão tem uma enorme impor-
tância. Essa proximidade não é só uma proximidade em termos de justapo-
sição, de contigüidade, mas em termos de mútua interpretação, de interfe-
rência simbólica. Minha convicção pessoal é que a interpretação alegórica,
que a maioria dos historiadores modernos têm tanto afã em desconectar da
parábola enquanto tal, é inevitavelmente motivada por esse jogo simbólico
entre a narrativa da Paixão e as parábolas. Desse modo, as parábolas não são
apenas as "parábolas de Jesus", mas as do "Crucificado". O "herói" da narra-
tiva evangélica, que é também o "doador" das parábolas como narrativas "se-
cundárias", tende a tomar-se o referente indireto da parábola como metáfo-
ra. Dominique Crossan (XIV) tem razão em dizer que a redação do evange-
lho implica um deslocamento de intencionalidade: "Jesus proclamou Deus em
parábola, mas a Igreja primitiva proclamou Jesus como a parábola de Deus".
Esse "restabelecimento de íntencíonalídade", parece-me, é fundado no ato
mesmo da composição que conduz à redação do primeiro evangelho. Desde
que a pregação de Jesus como o "Crucificado" está entrelaçada com as nar-
rativas de suas "ações" e de suas "palavras", uma possibilidade especifica de
interpretação está aberta pelo que chamo o estabelecimento de um "espaço"
de intersignificação: por "possibilidade específica" entendo a proposição de
ler a proclamação de Jesus como "a Parábola de Deus" na proclamação por
Jesus do Deus "em parábolas". Recusar inteiramente essa possibilidade exigi-
ria que desprendêssemos as parábolas do evangelho. Então só teríamos um
192 .... ._._ ..._.. _IEXIOS.IRADUZIDOS

"artefato" criado pela crítica histórica que tenderia a tornar-se sem significa-
ção ao mesmo tempo que se tomaria "pura". Esse paradoxo deve ser exami-
nado seriamente: a inserção da parábola na forma "evangelho" é ao mesmo
tempo parte de sua significação para nós que recebemos o texto da Igreja e
o começo de sua má compreensão. É a razão pela qual devemos interpretar
as parábolas ao mesmo tempo com ajuda das distorções provocadas pelo
último contexto e contra elas. Mas não nos livramos desse paradoxo agre-
gando simplesmente o contexto fornecido pela forma "evangelho". A tensão
entre a forma parábola e a forma evangelho é inevitavelmente uma parte da
significação da parábola, como narrativa e como metáfora.

A ESPECIFICIDADE DA LINGUAGEM RELIGIOSA

>- Essa seção final é consagrada à especificidade da linguagem religio-


sa. Tomarei como ponto de partida os resultados do que precede, que era
baseado principalmente no funcionamento do discurso sob forma de parâ-
bola. Essa análise poderia ter deixado a impressão de que a linguagem reli-
giosa é uma variedade da linguagem poética, e eu assumiria essa qualifica-
ção até um certo ponto, com a condição de que não identifiquemos "poéti-
ca" com "estética" e respeitemos o alcance da função poética, tal como a
defini, a saber, como o poder de fazer corresponder a redescrição da realida-
de ao poder de levar as ficções da imaginação à palavra. Porque a função
poética do discurso era concebida dessa maneira, a linguagem religiosa das
parábolas é um exemplo da linguagem poética. Contudo, é precisamente na
base da poética que a linguagem religiosa revela seu caráter específico, na
medida em que a função poética pode aparecer, no sentido inverso, como o
medium ou o organon da linguagem religiosa.
>- Na primeira parte desta seção, proponho-me a mostrar como a lin-
guagem religiosa modifica a linguagem poética por diversos procedimentos
tais como a intensificação, a transgressão e, levando ao limite, o que faz dela,
segundo a expressão de Ian Ramsey, uma linguagem "bizarra". Colocaria o
estudo desses diversos procedimentos sob o titulo geral de "expressões-limi-
te". Tenho intenção de mostrar que essas expressões-limite contêm já o que
Ramsey designa por "qualíficadores" no nível do discurso teológico, em um
alto nível conceitual, e que vê aplicar-se a diferentes expressões pelas quais
a linguagem religiosa funciona como um "modelo" em relação ao conjunto
da experiência humana.
:U.6:...PAUL.RI.CQfUR ...L A..HERMENfUTICA-&ÍB.lt.eA. _

>- Essa relação entre modelo e qualificador vai levar-me, na segunda


parte desta seção, a examinar como a relação entre ficção e redescrição fun-
ciona no nível da linguagem propriamente religiosa. Proponho mostrar que
as expressões-limite da linguagem religiosa são adaptadas à redescrição do
que poderíamos correlativamente chamar as experiências-limite do homem,
e que essas experiências-limite, redescritas pelas expressões-limite da lin-
guagem religiosa, constituem o referente apropriado dessa linguagem.
>- Finalmente, examinarei qual linguagem conceitual poderia ser adap-
tada a essa relação entre expressões-limite e experiências-limite. Proporei
que só os conceitos-limite podem assumir essa função de mediação.

As expressões-limite no discurso religioso


No capítulo precedente, só consideramos uma forma da linguagem re-
ligiosa, a parábola. Essa redução à parábola podia fazer acreditar que a lin-
guagem religiosa era puramente metafórica. Quero aqui mostrar que não é
tanto a função metafórica enquanto tal que constitui a linguagem religiosa,
quanto uma certa intensificação da função metafórica que também se en-
contra em outros discursos não metafóricos, tais como o discurso proclama-
tório, especialmente os enunciados de caráter escatológico dos evangelhos
sinópticos e os dizeres proverbiais. Essas formas como tais não constituem a
linguagem religiosa, mas antes o que chamarei provisoriamente a "transgres-
são" pela qual essas formas de discurso sinalizam, além de sua significação
imediata, para o Todo Outro.
Se isolássemos as parábolas das outras formas de discurso, poderíamos
passar ao lado desse fenômeno da transgressão. Na seção anterior limitamo-
nos a captar a articulação da relação entre a forma narrativa e sua função
metafórica. Nada foi dito sobre a função da parábola como expressão limite.
No entanto, o fato de serem as parábolas a propósito do "Reino de Deus",
deveria alertar-nos que ali havia algo mais a considerar. Acima de tudo, essa
referência a um referente último deveria nos alertar contra toda interpreta-
ção existencial prematura, que faria com demasiada pressa corresponder uma
aplicação moral do leitor ao conteúdo da parábola. Taís interpretações são
bem conhecidas, especialmente nessas formas do pensamento protestante
marcadas pela influência de Karl Barth e de Bultmann. Trata-se, dizem eles,
de tomar uma decisão em um tempo de "crise", significado pela forma dra-
mática da parábola, exatamente como os personagens da parábola têm (ou
não) sabido como decidir-se eles mesmos, em relação à situação de crise

l
194 .. . .........__.. _._._ ...IEllIO.S-...IRAD.UZiD.05

descrita na narrativa. Mas de que tempo de crise se trata? E que relação tem
essa crise com a expressão "Reino de Deus"? Que quer dizer a fórmula: "O
Reino de Deus pode ser comparado a ... "? Vimos que o uso semântico e
léxico da expressão "comparado a ... " não se aplica a quem faz alguma coisa
na parábola, mas antes à seqüência mesma das ações nas quais o ator prin-
cipal está implicado. Assim fica o problema: como o "Reino de Deus" fun-
ciona enquanto referente das parábolas? Não podemos determiná-lo antes
de ter colocado as parábolas em relação com outros tipos de enunciados nos
quais o Reino de Deus serve também de ponto de convergência. Proponho
dizer que a expressão "Reino de Deus" é uma expressão limite em virtude
da qual as diferentes formas de discurso, empregadas pela linguagem religio-
sa, são modificadas, e pelo fato mesmo convergem para um ponto último
que se torna seu ponto de encontro com o infinito.

1. Os dizeres proclamatórios. A maneira de proceder mais apropriada


parece-me que é esquecer um momento as parábolas e começar por dois
outros tipos de discurso, que nos permitirão perceber melhor a detonação
da forma do discurso sob a pressão das expressões-limite. Começamos assim
pelos dizeres proclamatórios. É aqui que a singularidade da linguagem reli-
giosa é a mais evidente, se é verdade que a proclamação de Jesus foi essen-
cialmente uma proclamação escatológica. Consideremos as quatro fórmulas
que Norman tinha por autênticas. "Os tempos estão cumpridos: o Reino de
Deus está perto: convertei-vos e crede na Boa Nova" (Mc 1,15). "Mas se é
pelo dedo de Deus que expulso os demônios, é então que o Reino de Deus
adveio para vós" (Lc 11,20). "O Reino de Deus não vem de uma maneira
visivel. Não se dirá: 'Ei-lo, está aqui' ou então: 'Está ali' Com efeito, eis que
o Reino de Deus está no meio de vós" (Lc 17,20-21). "Desde os tempos de
João Batista até ao presente, o Reino dos céus sofre a violência e os violen-
tos buscam apoderar-se dele" (Mt 11,12).
O que é importante nessas palavras não é tanto a forma apocalíptica
do discurso, que é uma forma de discurso tradicional, exatamente como o
mashal o é em relação à parábola. O fato importante para nós é que essa
forma é simultaneamente empregada, transgredida e revertida por seu uso
novo. Podemos dizer que a forma apocalíptica desempenha aqui o mesmo
papel que a forma narrativa na parábola. Aqui também a proclamação apo-
calíptica apresenta um caráter literal que é transgredido de maneira compa-
rável à que transgride a forma de uma história na parábola. Com efeito, há
em seguida uma maneira literal de compreender o simbolismo apocalíptico.
IL_6: .I'AU.L_.RtCQEULLA...HERMENÊUTtíABíBUCA __ _ 195

É compreendê-lo temporalmente, segundo uma ordem cronológica e per-


guntar: "Quando vai acontecer? É para o fim ou agora, ou ainda não?" Deve-
mos admitir que as tentativas de solução oferecidas por intérpretes bem
conhecidos como Schweitzer (escatologia iminente), Dodd (escatologia rea-
lizada) e Jeremias (escatologia realizando-se: sich-realisierende) ficam todas
engessadas no esquema temporal literal. Quanto a isso, essas interpretações
parecem encorajadas pela maneira como o mito funciona em relação aos
mitos fundamentais postos em obra por essa forma de discurso. Como já
mostrei na "Simbólica do mal" (La Symbolique du Mal), os símbolos primá-
rios funcionam somente por intermédio de símbolos de segunda ordem, que
põem em jogo personagens, acontecimentos, um drama etc. Mas o mito tem
a função ambígua, de uma parte, de preservar a função simbólica de manei-
ra a tomá-la operativa, em certa medida, num nível pré-conceitual e, de
outra parte, de canalizar e, em certo sentido, interceptar o movimento do
símbolo-fonte, dando-lhe uma expressão histórica, de maneira a impedir a
manifestação do que Philípp Wheelwright chama sua "vitalidade ancestral".
É a razão pela qual a forma do mito encoraja e parece autorizar inter-
pretações em termos de "esteno-sistemas", Na realidade, é desse modo que
o discurso apocalíptico funciona. Põe em jogo os grandes símbolos do "Se-
nhor", do "Reino" e do "Poder" que falam do que Norman Perrin chama a
"atividade régia" de Deus. Afeta igualmente o símbolo da redenção, que Per-
rin diz ser talvez até mais rico do que todos os símbolos do Reino. Mas esses
símbolos funcionam num tempo mítico que, embora não sendo o tempo
das origens de que fala Mircea Eliade, não é menos simétrico em relação ao
tempo do fim, um tempo mítico em que o símbolo desenvolve todas as suas
potencialidades temporais, embora dissimulando-as em representações que
objetivizam a temporalidade fundamental sígníficada pelo mito.
Ora, que faz Jesus? De novo, no primeiro texto, interpreta seus pró-
prios exorcismos na base das pragas do Egito, mas projeta sua significação
em uma ternporalidade que escapa às alternativas propriamente cronológi-
cas (o Reino de Deus está "bem perto"). O novo Êxodo para o qual aponta
a reativação do símbolo incluído no mito do êxodo, é um símbolo que ope-
ra ao mesmo tempo no mito, na medida em que é fonte de força vital para o
povo concernido, e contra o mito, subvertendo sua interpretação literal. O
segundo texto acima citado implica claramente a recusa de calcular o tem-
po, i.é., de interpretar o símbolo do "reino que sobrevém" em termos de
temporalidade literal. O que é essencialmente discutido nesse texto é, para
citar Perrin, "a prática apocalíptica da procura dos sinais", Lé., o tratamento
196

do mito como alegoria e dos símbolos como esteno-símbolos, Dizendo "O


Reino de Deus está no meio de vós", Jesus coloca seus ouvintes diante do
símbolo apocalíptico como diante de um símbolo verdadeiramente tensio-
nal, com seu poder de evocar um conjunto de significações, assim como o
mito da redenção toma-se um verdadeiro mito, com seu poder de mediati-
zar a experiência da realidade existencial.
Da mesma maneira, no quarto texto, a linguagem é tirada dos mitos da
guerra santa e aplicada à significação profundamente existencial do sofri-
mento do Batista, de Jesus e de seus discípulos. Esse mito significa seu des-
tino. E não tenho nenhuma dificuldade em seguir Norman Perrin quando
propõe discernir a mesma preocupação existencial no pedido da prece do
Senhor: "Venha o teu Reino".

2. As fórmulas proverbiais. A espécie de subversão interna que afeta os


dizeres apocalípticos talvez possa ser mais esclarecida se a aproximamos do
fenômeno comparável que podemos ver em obra nos dizeres proverbiais.
Entendo com isso esse traço que William A. Beardslee (1970a, 1970b) su-
blinhou e suas conclusões de que Norman Perrin se serviu em sua própria
obra. Beardslee chama esse traço "intensificação", e desejo colocá-lo em re-
lação com o traço precedente que consiste em superar o quadro escatológi-
co tradicional nas palavras proclamatórias.
A base comum pressuposta e utilizada aqui é constituída pelas pala-
vras de sabedoria, que, diferentes das palavras proclamatórías, não visam a
singularizar a tradição judaica, mas que funcíonam antes "para lançar uma
ponte entre a perspectiva da fé e a experiência do homem fora desse círcu-
lo da fé" (1970a, 62). A interpretação da existência aqui empregada é seja a
da sabedoria especulativa, na linha em que se colocam algumas categorias
cristológicas fundamentais, como o "Logos" e a "Sabedoria de Deus", seja a
da sabedoria prática que as palavras proverbiais de Jesus prolongam. Mas
- e é este o traço decisivo - a forma do discurso é ao mesmo tempo
retomada e transgredida e aniquilada. Em sua forma usual, o provérbio é
"um enunciado a respeito de um tipo particular de circunstância ou situa-
ção, uma seqüência ordinária de experiências, que pode eventualmente ser
repetida" (65). É assim que essa forma de discurso apresenta certa analogia
com a parábola. Sem ser uma "narrativa", o provérbio implica "uma histó-
ria, algo que acontece" (65). Encontramos aqui o começo de uma generali-
zação, mas em um nível "pré-discursivo" (66). A arte de utilizar essa forma
consiste em discernir em .cada caso que pequena história lhe convém. É
TL6.: __ PAULRlCOEURT_A__HERMENÊUTLeABíBllCA _ _ _ ___ 197

esse jogo entre "generalização" e "confronto" que a palavra proverbial de


Jesus subverte pelo processo que designamos por "intensificação". Com isso,
Beardslee entende a utilização do paradoxo e da hipérbole, que faz manifes-
tar a intenção do provérbio.
O paradoxo é mais especificamente a intensificação dessa forma co-
nhecida como "reversão de destinos", como as utilizam as fórmulas antitéticas
de provérbios como "Quem buscar conservar sua vida perdê-Ia-á, e quem a
perder, a salvará" (Lc 17,33; ver Me 8,35). Aqui, diz Beardslee, a reversão é
tão aguda que "a imaginação é projetada, sacudida para fora de sua visão de
uma conexão contínua entre uma situação e a outra" (67). O paradoxo con-
siste em duas afirmações opostas. De um lado, retoma o pressuposto sobre
o qual o uso das palavras de sabedoria se apóia, a saber, "o projeto de fazer
da existência um todo contínuo" (67). Pois quem pode forjar um projeto
coerente "perdendo sua vida para salvá-la"? De outro lado, afirma que "ape-
sar de tudo, a vida é concedida através desse caminho paradoxal" (68). Se
assim não fosse, teríamos uma simples negação - seja cética, seja irônica,
por exemplo, do projeto de existência.
A hipérbole é outra forma de intensificação: "Amai vossos inimigos,
fazei o bem aos que vos odeiam" (Lc 6,27; ver Mt 5,44). Como o paradoxo,
a hipérbole é concebida "para ejetar o ouvinte para fora do projeto de fazer
uma continuidade de sua vida" (69). Mas enquanto o humor e o desprendi-
mento podem afastar-nos totalmente da realidade, a hipérbole nos reconduz
ao coração da existência. O desafio da sabedoria convencional é, ao mesmo
tempo, uma "maneira de viver" (69). Essa intensificação pelo paradoxo e
pela hipérbole nos fornecerá mais adiante uma chave importante para a in-
terpretação das parábolas como poemas da fé.
A transmutação da existência terrestre, de que fala Robert Funk (195)
a propósito das parábolas, é realizada no provérbio por uma estranha estra-
tégia que chamarei "re-orientação pela des-orientação". A palavra toma aqui
o caminho desviado da ficção: o provérbio toma o de uma impossível possi-
bilidade. Mas ambos pressupõem um campo de experiência comum, "uma
base a partir da qual responder ao desafio" (71), donde um campo de inten-
sificação que já foi orientado pela sabedoria tradicional.
Talvez seja também necessário dizer da parábola o que dissemos aqui
do provérbio, a saber, que dele mesmo não fornece nem uma via prática,
pela qual seria possível re-inserir o modelo impossível no curso da existên-
cia, nem uma via de incorporação dessa ruptura em uma visão uníficante,

L.
198 ......... TEXIQSTRADUZIDQS

3. A extravagância das parábolas. Gostaria de voltar agora às parábolas


com os recursos de interpretação que acabamos de aplicar às palavras pro-
clamatórias e proverbiais. Isso não se destina a substituir uma eis-egesis a
uma ex-exegesis, nem a "ler em", mas antes a "ler fora de" o que chamarei de
expressões-limite constituídas pela extravagância das parábolas.
Não é tanto a bipolaridade entre "ensinamento" (proclamação) e "pre-
gação" (provérbio e parábola) sublinhada por Norman Perrin, que aqui é
importante, mas antes a similitude da "passagem ao limite" que opera nas
duas instâncias.
>- Devemos a Dodd e a Jeremias ter recolocado as parábolas sobre o
fundamento das palavras escatológicas e ter descoberto a conexão entre a
visão escatológica das palavras apocalípticas e a das palavras narrativas. O
que Jeremias não mostrou, porém, é por que essa visão escatológica é ex-
pressa na forma mesma das parábolas. Sua interpretação passa diretamente
a uma interpretação teológica, de fato a uma interpretação teológica apre-
sentada em uma língua muito próxima da pregação tradicional do lutera-
nismo alemão, como Perrin descobriu. Só temos de lembrar-nos da série
das "rubricas" sob as quais expõe sua interpretação das parábolas para ver
isso. E esse curto-circuito entre uma crítica histórica e uma interpretação
teológica faz-nos perder um traço essencial, que apareceria em uma análise
literária colocada entre a critica histórica e a interpretação teológica. Esse
traço é um paralelo com as formas de intensificação pelo paradoxo e pela
hipérbole nos provérbios, Mas desta vez funciona em nível narrativo. É o
que chamo a "extravagância" das parábolas.
Esse traço não foi sublinhado, mesmo onde o realismo das parábolas
foi acentuado. .As parábolas contam histórias que teriam podido acontecer
ou que sem dúvida aconteceram, mas é esse realismo das situações, persona-
gens e intrigas que justamente acentua a excentricidade dos modos de com-
portamento aos quais o Reino dos céus é comparado. O extraordinário no
ordinário: é o que me impressiona no desfecho das parábolas.
Consideramos a extravagância do dono da propriedade na "parábola
dos vinhateiros maus", que, depois de ter enviado os servos, envia o filho.
Que proprietário palestino vivendo no estrangeiro, seria bastante louco para
agir como esse dono de casa? Ou que dizer do anfitrião na "parábola do
grande banquete" que faz buscar convidados de substituição na rua? Não
diríamos que foi pouco banal? E, na "parábola do filho pródigo", o pai não
ultrapassa todos os limites ao acolher seu filho? Jeremias diz "amor sem
limite", mas é também conduta chocante1
r
I'c/i
TL6;PAULRlCOEUR.LAHERMENÊUTICA .B.ÍB.UCA. .....

Que empregador pagaria a seus empregados da undécima hora o mes-


......... 199

mo salário que aos contratados na primeira hora?


As "parábolas de crescimento" não são mais plausiveis. Eis como opera
aqui a hipérbole do provérbio. Que "pequena semente" poderia dar uma
árvore imensa em que os pássaros pudessem fazer seu ninho? O contraste é
apenas menor na "parábola do fermento": que surpresa diante do efeito que
supera a causa! A parábola do semeador é construída sobre o mesmo con-
traste. Se ela sinaliza para a plenitude escatológica, é porque a produtivida-
de do grão na história supera de longe a realidade. A messe na "parábola do
granjeiro paciente" (Mc 4,26-29) apela igualmente para um crescimento des-
proporcionado, ao menos em relação aos esforços do homem ("Quer esteja
dormindo ou acordado", diz a parábola). Jeremias diz: "começo imperceptí-
vel, resultado triunfante". Que contraste!
Se na "parábola do juiz iníquo" a figura central, como diz Jeremias, é o .:
juiz e não a viúva, e se, então, fizermos uma extrapolação do juiz a Deus,
não da viúva ao crente, como seria o caso em uma interpretação patética,
então é a estranheza do comportamento do juiz que é a ponta: o juiz ini-
quo faz "de repente" justiça (en takhei, Lc 18,8). E a "parábola do amigo
que pede ajuda de noite", que não podemos mais interpretar como uma
exortação à perseverança na oração, põe em relevo o comportamento do
amigo incomodado, comportamento que, embora esperado, não deixa de
ser causa de espanto.
As parábolas mais paradoxais e mais estranhas, no que concerne ao seu
realismo, são as que Jeremias agrupou sob os títulos de "a iminência da ca-
tástrofe" e de "pode ser tarde demais". O esquema de "colher a ocasião que
só se apresenta uma vez, depois do que será tarde demais" inclui a dramati-
zação do que na experiência ordinária chamamos "aproveitar a ocasião"; mas
essa dramatização é ao mesmo tempo paradoxal e hiperbólica: paradoxal
porque vai contra a experiência efetiva segundo a qual há sempre uma ou-
tra chance, e hiperbólica porque exagera a experiência do caráter único das
decisões importantes da existência. Vejamos o devedor de Mt 5,25 e o cres-
cendo inexorável do juiz ao oficial em prisão que dramatiza a decisão. Com
relação à atitude do "intendente injusto" é habitualmente dito que é exem-
plar, precisamente por causa do espírito de decisão que demonstra diante
das necessidades do momento. E não é igualmente escandaloso que o "con-
vidado sem o traje de núpcias" seja lançado fora (Mt 22, 11-13)?
Poderíamos atenuar o efeito de escândalo traduzindo "traje de núpcias"
por arrependimento ou por vestimenta de vida, mas não é menos verdade
200 _ ___________________ _ I.EXIO.5..__IRAOUZ1D_OS

que a história tal como é contada provoca uma extrapolação em direção da


escatologia por um comportamento que só pode parecer desproporcionado
em relação à lógica da intriga.
Em que núpcias de aldeia alguém já bateu a porta às virgens insensatas
que não se preocupam com o futuro (e que são, afinal, tão descuidadas quanto
os lírios dos campos)? Diz-se que "são parábolas de crise". Certamente, a
hora da prova e da "triagem seletiva" é signíficada por uma crise na história
que intensifica a surpresa, o escândalo e às vezes provoca a desaprovação,
quando o desfecho é "inevitavelmente trágico" e não "cômico" para utilizar a
linguagem de Via, como no "filho pródigo". É advertido (phronimos) aquele
que compreendeu a situação escatológica, escreve Jeremias, mas somos le-
vados a essa compreensão por exemplos dos quais o menos que se pode
dizer é que nos desconcertam e desorientam, no sentido em que falávamos
acima em relação aos provérbios.
Vamos considerar menos provocantes as parábolas que falam menos da
ação estranha de Deus do que da exigência do estado de discípulos? Mas a
dupla parábola do "tesouro no campo" e da "pérola" fala-nos no nível narra-
tivo de uma história ao mesmo tempo plausível e desconcertante. Pois que
comerciante trocaria todos os seus bens por uma pérola? Os comentários
"piedosos" atenuam nosso espanto (ver Mt 13,44-46).
Mesmo a atitude do "bom samaritano" comporta um traço excessivo
que é expressamente concebido para impedir que a história se torne uma
parábola exemplar, e que preserva seu caráter parabólico, como Crossan o
demonstrou. Se não é a ilustração de um estilo de vida recomendado, e se
devia ser tratada da mesma maneira como o "intendente iníquo" - cujo
comportamento não é de modo algum recomendado -, é sempre o caráter
de compaixão sem limites que é representado, exatamente como na "pará-
bola do amor do Pai". O acento deve sempre ser colocado sobre o "sem
limite", mesmo se a história deve ao mesmo tempo ser uma parábola e nos
oferecer um exemplo moral.
Quanto às parábolas do trigo (Mt 13,24-30) e da rede (Mt 13,47-50),
que Jeremias coloca sob a rubrica "a via dolorosa e a exaltação do Filho do
Homem", parecem desprovidas de todo traço de extravagância, talvez por
causa da imagem da triagem que tem uma força simbólica imediata. Contu-
do, um traço deveria nos surpreender. O homem, na parábola do trigo, "não
quis que se arrancasse o joio". Jeremias nota que a pergunta dos servos:
"Queres que vamos arrancar a erva má?" não é de modo algum uma questão
deslocada. É habitual arrancar o joio, e mesmo repetidamente. Assim a sig-
nífícação da palavra é precisamente que "se evite toda discriminação prema-
tura", o que pareceria ao contrário sugerir o curso normal da ação.
Vou concluir fazendo uma sugestão. O que é simbólico em uma histó-
ria-metáfora? É seu aspecto de realismo ou, ao contrário, a extravagância
que interrompe o curso da ação soberbamente pacífico e que constitui o
que chamei o extraordinário no meio do ordinário? Se essa hipótese é ver-
dadeira, teremos determinado o traço que transforma a poética da parábola
em uma poética da fé.
> Para justificar essa hipótese, vou tentar compreender o que é co-
mum à transgressão do quadro cronológico nos dizeres apocalípticos, à in-
tensificação pelo paradoxo e pela hipérbole no provérbio, e à dramatização
extravagante da história parabólica. Vejo aqui em obra um processo que
Ramsey (55-102) elucidou como o dos "modelos e qualificadores". Mas en-
quanto Ian Ramsey vê essa estrutura "modelo-qualificador" funcionar em
um discurso já altamente conceitualizado, no nível teológico, em particular
na formulação dos atributos e características de Deus, vejo essa relação em
obra no nível das formas particulares do discurso religioso. Sou tentado a
dizer que o livro de Ramsey deveria ser escrito ao contrário: começando
pela linguagem da Bíblia, depois considerando a relação modelo-qualifica-
dor e, enfim, examinando a natureza das situações que designamos como
religiosas. Esse, ao menos, é o caminho que vou tomar.
Que entende Ramsey por qualificador? Tira seu primeiro grupo de
exemplos da teologia negativa, como quando Deus é nomeado "imutável"
ou "impassível". Esses atributos dizem uma coisa: "tudo muda". Porém, a
seguir acrescentam: "mas não tudo". O modelo "muda", ele diz de repente
algo mais sob influência do operador negativo. Os exemplos do segundo
grupo - unidade, simplicidade, perfeição - põem em caminho o mesmo
processo.Aproximamo-nos de sua significação a partir dos contrários: plura-
lidade, complexidade ambigüidade, da experiência humana etc. Quando ten-
tamos extrair o que essas expressões significam, utilizando um método de
contraste, o atributo intervém para levar a seu limite o que o contraste suge-
re no contexto da linguagem ordinária. É então aquilo pelo qual a palavra
"Deus" preside o resto da linguagem e aquilo em que "a completa".
O terceiro grupo considerado por Ramsey consiste em expressões tais
como "causa primeira" "infinitamente sábio e bom", "criação ex nihilo", "pla-
no eterno" etc. A palavra "causa", por exemplo, constitui um modelo para a
explicação e a palavra "primeira" modifica o modelo, prescrevendo uma ma-
neira especial de desenvolver as situações típicas, e fazendo jorrar o "algo
202 . . ... TEXTOS.. TRAD.UZJDQS

mais" correspondente a situações em que alguma coisa é vista ... e, depois,


alguns. A palavra "Deus" completa em seguida as histórias causais, ela é "lo-
gicamente anterior" a tais histórias, é sua primeira palavra (7). A análise do
qualificador infinito revela a mesma estrutura lógica: "Reivindica para Deus
uma localização lógica distinta, uma posição de presidência sobre o conjun-
to da linha da linguagem" (74). Convida-nos a desenvolver as histórias que
pudemos forjar sobre os homens sábios e bons, na direção do "algo mais"
que o qualificador impõe a partir do modelo, até ao ponto em que a signi-
ficação lógica dá passagem a uma revelação. O qualifícador ex nihilo força-
nos a re-trabalhar da mesma maneira toda nossa experiência de criação, so-
bretudo artística e poética, até ao ponto em que a expressão sinaliza para a
experiência de um "discernimento cósmico".
Retomando essa análise de Ramsey, proponho dizer que essa lógica já
opera nos três tipos de linguagem religiosa examinados acima, e que é por
causa de seu funcionamento no nível da linguagem religiosa que o filósofo é
provocado a examinar seu estatuto lógico.
O que me anima a olhar nessa direção é o fato de que já fomos capa-
zes de aplicar a noção de modelo ao funcionamento da parábola. Pelo termo
"modelo" pudemos caracterizar a função de re-descrição que está ligada a
ficção, ou, na linguagem de Aristóteles, a relação eminentemente poética que
une mythos e mimêsis. E o que dissemos acima sobre o provérbio e os dize-
res escatológicos convida-nos a estender a noção de modelo para além da
simples função narrativa. Vimos, com Beardslee, que a função tradicional do
provérbio era guiar as decisões nas circunstâncias ordinárias da vida e, como
dissemos, o uso paradoxal do provérbio por Jesus consiste em re-orientar
des-orientando. Nesse sentido, o provérbio também é uma espécie de mo-
delo para a re-descrição, Mesmo se é mais difícil aplicar a relação de mythos
e mimêsis ao discurso escatológico, podemos sempre dizer sem forçar o tex-
to que rompendo a interpretação alegórica e seu quadro cronológico, o dis-
curso escatológico de Jesus convida-nos a re-descrever a totalidade de nos-
sas relações temporais no sentido proposto por Crossan.
Se, então, a noção de modelo é apropriada a esse nível de discurso, que
dizer da função de qualificador? Parece-me que seu papel na proclamação
escatológica, os provérbios e as parábolas, consiste em fazer-nos ver uma
modalidade que a lógica tende a passar em silêncio, o escândalo lógico. Com
efeíto, estranheza diz muíto pouco: só "escândalo" convém. Ramsey reco-
nhece isso quanto à criação ex nihilo, mas atenua o escândalo dissipando-o
no poder, desenvolvido pelo termo de criação ex nihilo, de evocar em nós o
I I 6:PAULRICOE URLAH.ERMEN~uncABíBHcA 203

"sentido de nossa dependência como criaturas" (83). Mas vimos que o uso
explícito do paradoxo no provérbio, e talvez seu uso implícito nas parábolas,
nos deixam com o enigma de como fazer um todo de nossa existência além
do ponto de ruptura provocado pelo paradoxo. Podemos então continuar a
tratar o qualificador como o processo lógico pelo qual a palavra "Deus" "pre-
side e completa toda a linguagem das coisas criadas"? Aqui, o que se ques-
tiona é a estrutura lógica mesma do qualificador.
Essa última observação não deveria, de modo algum, desencorajar-nos
a empregar a estrutura "modelo-qualífícador". Deveria simplesmente alertar-
nos contra uma redução do papel do qualificador àquilo que completa a
imagem da realidade e da experiência, como foi tantas vezes o caso na tra-
dição metafísica ocidental em que o termo "Deus" serviu para completar e
fechar o discurso. O qualificador pode também ter a função de re-orientar
des-orientando. Nesse sentido deve exprimir e preservar, mesmo em sua es-
trutura lógica, algo da função limite que vimos antes operar na transgressão
das três formas de discurso consideradas.
Voltarei a esse ponto na terceira parte desta seção. Bastará aqui fazer
as afirmações seguintes:
1. As diversas formas de discurso religioso - pelo menos as que os
sinópticos atribuem a Jesus - apresentam uma similitude de fun-
ção, a saber, o tipo de abuso que arruina a própria forma do discurso
empregado. Tentei atrair a atenção sobre isso, chamando-as "expres-
sões-limite" .
2. O símbolo "Reino de Deus" pode ser designado como o referente
comum desses diferentes tipos de discurso e, portanto, igualmente a
seu funcionamento como expressões-limite. Poderíamos arriscar-nos
a chamar o símbolo "Reino de Deus" de referente-limite dessas ex-
pressões-limite. É esse referente-limite que preside ao que chamarei
as expressões-limite, que a linguagem religiosa tenta ré-descrever; na
segunda parte desta seção.
3. O funcionamento das expressões-limite e do símbolo "Reino de Deus"
prefigura a estrutura modelo-qualificador que caracteriza não só a lin-
guagem religiosa, mas também a linguagem propriamente teológica.
Podemos fazer a hipótese dessa constituição paradoxal da linguagem
teológica na sua fonte - i.é., ao mesmo tempo seu estímulo e sua
estrutura pré-conceitual- no funcionamento das expressões-limite
da linguagem religiosa.
204 ..

As experiências-limite

Qual é o referente último da linguagem religiosa? O poder poético de


ficção, dissemos no capítulo precedente, é o de ré-descrever a realidade. É
precisamente nesse sentido que é uma espécie de modelo; mas o discurso
religioso, acabamos de dizer, não é uma ficção como as outras. É, podería-
mos dizer, uma metáfora-limite. Por conseguinte, a questão é saber que po-
der de re-descrição está ligado à linguagem religiosa, na medida em que é o
lugar das metáforas-limite e de todas as outras expressões-limite às quais as
parábolas de Jesus estão ligadas. Outra maneira de pôr o mesmo problema
seria perguntar, tomando em consideração o vocabulário introduzido acima,
qual é o uso e a função da ficção quando é levada ao extremo pela adição
de qualificadores.
1. Esse tipo de questão pode ligar-se facilmente ao tipo de pesquisa
que apareceu na tradição analitica anglo-saxã sobre a significação das pro-
posições religiosas. Mais precisamente, a questão coincide com a da análise
lingüística quando a análise lingüística não se limita mais, como fez na pri-
meira fase, representada pela obra de Ayer: "Linguagem, Verdade e Lógica"
(Language, Trutb and Logic), à aplicação do princípio de verificação; nem
como em sua segunda fase, como vemos na obra de Anthony Flew, que
busca mas não acha os fatos que podiam falsificar a proposição "Deus nos
ama". Na terceira fase, com efeito, não perguntamos se esses enunciados são
verificáveis ou falsificáveis, mas estudamos seu uso e sua função - que tra-
balho fazem, para utilizar a expressão de Basil Mitchel. Minha própria aná-
lise situa-se na linha de pensamento aberta por essa questão, mas esforça-se
para ir um pouco mais longe do que os autores que até então trabalharam
nesse domínio. O funcionamento da linguagem religiosa como expressão li-
mite, parece-me, orienta nossa pesquisa para uma característica correspon-
dente da experiência humana que podemos chamar experiência-limite.
Para começar por uma nota negativa, essa idéia torna imediatamente
evidente que uma análise como as de R. M. Hare e R. B. Braithwaite é
inadequada. Limitam-se a opor os usos ético e descritivo das proposições
religiosas. Tais enunciados não são afirmações sobre o mundo, diz Hare, ex-
primem antes nossas visões (bliks), nossas diferentes atitudes a respeito do
mundo. A lógica dos enunciados religiosos, diz Braithwaíte, limita-se a ex-
primir a intenção de quem as pronuncia para agir de certa maneira. Mas,
como vimos, a força lógica das palavras de Jesus não era tanto recomendar
um tipo de conduta, mas servir-se de uma linguagem já constituída para
IL.6;..1'AUL.RJCOE.UR...E...A.HERM.EN.ÊUIJCA~ BiBUCA ..... .. .... ........~~~~ ..... 20S

levá-la a seu limite. Por conseguinte, a distinção entre descrição e ação desa-
parece na presença de uma distinção mais importante entre a experiência
ordinária, considerada globalmente, e o discernimento operado por essa lin-
guagem no coração dessa experiência ordinária.
2. Quanto a isso, Ramsey tem toda razão em juntar as duas experiên-
cias de "discernimento bizarro" e de "engajamento total". Interpreto assim
essa conjunção: A questão não é tanto saber se a linguagem performativa é
mais apropriada do que a linguagem indicativa, mas antes saber se a lingua-
gem metafórica é mais adaptada do que a linguagem literal. De fato, a ques-
tão não é simplesmente saber por que a linguagem metafórica é mais adap-
tada do que a linguagem literal, uma vez que os provérbios e os dizeres
escatológicos não são precisamente metafóricos, mas por que as expressões-
limite são requeridas. O discernimento que a linguagem religiosa provoca é
"bizarro" porque o engajamento é "total". É total no duplo sentido de que
engaja o todo de minha vida e porque, como linguagem religiosa, visa ao
todo de minha vida. É então nesse sentido que me servirei da declaração de
Ramsey, segundo a qual o lugar empírico dos enunciados religiosos e teoló-
gicos combina "um discernimento pessoal bizarro" e um "engajamento total"
assim como um "alcance universal". Utilizarei a declaração de Ramsey com
esta dupla correção: primeiro, que a lógica dessa linguagem convida-nos a ir
desde os traços distintos que são próprios (parábolas, provérbios, proclama-
ções etc.) para os traços correspondentes da experiência, e não ao contrário;
e em segundo lugar, ir do que é mais característico entre todos esses traços
distintivos - a saber, o que já põe em jogo os qualificadores destacados por
Ramsey no nível dos enunciados especificamente teológicos - para o que
chamo agora de experiências-limite.
Por conseguinte, devemos concentrar toda nossa atenção sobre o poder
revelador do qualificador. Penso que Ramsey o fez implicitamente, ao ligar
o "discernimento bizarro" ao "engajamento total" e ao "alcance universal".
Mas é talvez possível ir mais longe do que ele, se examinarmos a função do
qualificador no caso da linguagem pré-teológica, como se fosse presente
menos para presidir e completar nosso discurso e nossa ação do que para
desorientá-los, subvertê-los em suma, introduzir neles paradoxo e escândalo.
Com efeito, é nesse ponto que a linguagem religiosa merece mais ple-
namente ser tratada em termos de "modelos de revelação". Já fizemos a apro-
ximação entre o "modelo de revelação" em Ramsey e o "modelo analógico"
em Max Black nos capítulos precedentes, do ponto de vista da relação es-
trutural, entre a história e a realidade a que ela visa metaforicamente. Gos-
...I.EXIO..LTRAUUZlD.OS

taria agora de voltar a esse paralelo do ponto de vista do qualificador que


opera na estrutura. Como foi dito nas seções precedentes, os "modelos de
revelação" têm mais afinidade com os "modelos analógicos" do que com os
"modelos de escala" aos quais Black os opõe, porque o poder metafórico da
parábola provém da intriga, i.é., de um traço estrutural da ação narrada. É a
"intriga" que funciona como modelo. Ora, que traço na intriga tem o valor
de uma metáfora mais do que todo o resto? É a extravagância, o paradoxo, a
hipérbole. Não poderiamos dizer, com alguma plausibílidade, que o provér-
bio tomado em sua função ordinária de orientação da vida, o dizer escatoló-
gico interpretado literalmente e a parábola tratada como ilustração de ver-
dades éticas gerais em uma utilização exemplar e moralizante, funcionam
ainda como modelos-imagens, e que é somente quando essas formas de dis-
curso são levadas ao extremo que exercem o poder de "revelação" que Ramsey
reconhece nelas? Mas eu gostaria de dizer, como o faz Ramsey, que o poder
de revelação consiste na capacidade do modelo de incorporar de uma ma-
neira coerente a série mais ampla possível de fenômenos, a fim de realizar
um "panorama" de nossa experiência, juntando a essa idéia, a idéia de uma
economia e de uma simplicidade de expressão em relação à gama complexa
dos fenômenos. Ao contrário, parece-me que se a revelação deve opor-se á
imagem, é porque o qualificador caracteristico da linguagem religiosa des-
trói o projeto de fazer uma totalidade de nossa vida - um projeto que S.
Paulo identifica ao ato de autoglorifícação, ou em resumo, à salvação pelas
obras. O instrumento hermenêutico particular aos "modelos de revelação"
parece-me implicar nada menos do que a conjunção de toda a seqüência
"oríentar-desorientar-reorientar" sem permitir-nos talvez refazer nunca um
todo, um sistema de nossa experiência posta, por isso mesmo, em questão.
3. Duas objeções a esse "extremismo" professado em duas ocasiões-
uma vez no plano da linguagem, outra vez no da experiência - serão sem
dúvida levantadas. Serei acusado de reduzir a leitura cristã da existência a
um só aspecto, o que Kierkegaard levou a seu mais alto ponto de virulência,
a saber, o paradoxo, e portanto de negligenciar seus outros aspectos, sua
proclamação tanto como seu ensinamento, pondo assim de lado a função
principal do discurso religioso que é estabelecer, graças ao evangelho, uma
vida vivida para os outros, e de antecipar, ética e politicamente, uma huma-
nidade libertada. Mas seria completamente errôneo interpretar a análise pre-
cedente como uma apologia do paradoxo vivido na solidão" e .na impotência.
Há paradoxo, como foi dito acima à luz da meditação de Beardslee sobre os
provérbios, porque a distância da ironia e do ceticismo é excluída, e porque
IL6.~PAUL.RIC.OE.U.R ..E...A._H.ERM.EN.Êu_n.CA..BiBLI.CA... . 207

o paradoxo só desorienta para re-orientar, Além disso o qualificador, que me


pareceu caracterizar cada forma de discurso religioso, modifica também cada
expressão, seja especulativa, prática ética ou política. Nenhuma é privilegia-
da, todas são afetadas. Também estou disposto a falar do evangelho como o
projeto de uma humanidade libertada e a desenvolver as implicações políti-
cas desse projeto. O que quero dizer é que o momento propriamente reli-
gioso de todo discurso, inclusive do discurso político, é o "sempre mais" que
ele insinua em toda parte, intensificando todo projeto da mesma maneira,
inclusive o projeto político. Por conseguinte, o discurso político não é me-
nos orientado, desorientado e re-oríentado que qualquer outra forma de dis-
curso, e a maneira especifica como é desorientado e re-orientado é que se
torna o lugar de inscrição de uma demanda impossivel, uma demanda que
podemos validamente interpretar em termos de utopia, significando com
isso uma busca que não pode ser esgotada por nenhum programa de ação.
O paradoxo não atinge a praxis menos do que a théorie, nem a praxis políti-
ca menos do que a praxis de uma moral privada. Impede-nos simplesmente
de converter inteiramente o discurso religioso em um discurso político -
pelas mesmas razões que proíbe sua conversão em um discurso moral, mes-
mo se essa moral for elevada à dignidade da sabedoria proverbial.
A segunda objeção dará ocasião de tornar isso mais claro. Insistindo
sobre a ruptura mais do que sobre a continuidade e a totalidade, não esta-
mos favorecendo a dimensão vertical em prejuízo da horizontal? Não estamos
reintroduzindo, com isso mesmo, uma nova forma de "sobrenaturalismo'', mais
ou menos à maneira de Karl Barth, o sobrenaturalismo do Todo Outro?
Minha resposta é que a irrupção do inaudito em nosso discurso e em
nossa experiência constitui precisamente uma dimensão de nosso discurso
e de nossa experiência. Falar de experiências-limite é falar de nossa ex-
periência. Essa expressão não diz de modo algum que nada há em nossa
experiência humana comum e em nossa linguagem comum que correspon-
da à palavra sobre o extremo. Se assim não fosse, a pretensão das Escrituras
de que a compreensão-de-si cristã seja, de fato, a compreensão da autêntica
existência humana, fracassaria totalmente. É precisamente como extrema
que a linguagem religiosa é apropriada. É essa adequação de expressões-
limite às experiências-limite que é signíficada por nossa afirmação de que a
linguagem religiosa, como toda linguagem poética, no sentido mais forte do
termo, redescreve a experiência humana.
Nessa expressão - "redescreve a experiência humana" devemos su-
blinhar as duas partes: o que a linguagem religiosa faz é redescrever; o que

l
208~ .............................TEXIO.LIRADUZlD.OS

ela redescreve é a experiência humana. Nesse sentido, devemos dizer que o


referente último das parábolas, provérbios e dizeres escatológicos não é o
Reino de Deus, mas a realidade humana em sua totalidade, como isso está
indicado por numerosas expressões nas obras de Norman Perrin. É ali que
reside a inabalável verdade da interpretação existencial do Novo Testa-
mento. A linguagem religiosa revela a dimensão religiosa da experiência
humana comum.
Gostaria de ligar aqui o conceito de experiência limite, como foi ela-
borado sob a rubrica do referente da linguagem limite, a um conceito seme-
lhante provindo da filosofia de Karl Jaspers, o da situação limite ou da situa-
ção fronteira. A condição humana como tal inclui experiências que deso-
rientam o discurso e a práxis. Jaspers cita a morte, o sofrimento, a culpabili-
dade e o ódio como exemplos. Mas não são unicamente as experiências de
angústia que têm esse poder de ruptura; as experiências culminantes de ple-
nitude - "as experiências de ponta" - especialmente as experiências de
criação e de alegria, tais as que são descritas na parábola da pérola e da
moeda perdida, não são menos extremas do que as experiências de catástro-
fe. Nem são menos desorientadoras. Têm mesmo maior capacidade de
reorientar a vida, de tal maneira que nenhum plano ou projeto racional
poderia igualar ou esgotar, antes do que rompê-la.
Assim não teria nenhuma objeção ao conceito de "preocupação últi-
ma" de Tillich, nem ao tema "formalmente incondicionado" de Bemard Lo-
nergan, que é pressuposto pela pesquisa científica e ética. Ainda menos ob-
jetaria à sua recente análise da experiência propriamente religiosa que ca-
racteriza pela expressão "ser-amoroso-sem-qualificação". Todas essas fórmu-
las parecem-me profundamente exatas. Diria somente que é mútua e simul-
taneamente que a linguagem religiosa projeta sua visão radical da existência
e que a experiência ordinária toma explícita sua dimensão potencialmente
religiosa, em tensão e conflito, poderia acrescentar, com todos os traços que
levam essa experiência para um vago humanismo, ou mesmo um ateísmo
agressivo. Mas o texto bíblico não encontra seu referente último a não ser
quando a experiência ordinária se reconheceu como significada em sua lar-
gura, sua altura, sua profundeza, pelo dito do texto.

Os conceitos-limite
Para completar esses capítulos, queria acrescentar uma contribuição pes-
soal à relação entre as linguagens religiosa e teológica.
IT .. 6~J>AUL ..RLCOEU R-f..A HERMENluHCAB.LBlICA .

1. Da expressão figurativa à expressão conceitual. Uma primeira impli-


cação, que me parece sugerida pelos estudos precedentes, é que a própria
linguagem religiosa requer a transposição das imagens, ou antes, dos modos
figurativos para os modos conceituais de expressão.
>- À primeira vista, essa transposição pode parecer que é somente uma
mudança extrínseca, entendida como mudança imposta do exterior. A lingua-
gem figurativa parece obrigada a tomar a estrada do conceito por uma razão
que é própria à cultura ocidental. Nessa cultura, a linguagem religiosa sem-
pre esteve exposta a uma outra linguagem, a da filosofia, que é a linguagem
conceitual por excelência. É uma situação contingente, transformada em des-
tino, de que a cultura judeo-cristã tenha aparecido nas fronteiras do mundo
grego, e até um certo ponto dentro de sua zona de influência. Isso explica
por que tantos escritos, quer no Antigo quer no Novo Testamento, traem
uma certa influência do helenismo. E isso explica acima de tudo por que a
Igreja cristã foi incapaz de elaborar um discurso teológico sem a ajuda da
conceptualidade grega. O cristianismo tirou do helenismo suas formas de
argumentação e até sua semântica fundamental. Palavras como pecado, graça,
redenção, expiação, vida eterna etc. receberam sua significação por mediação
de conceitos filosóficos disponíveis na época e, acima de tudo, sob a influên-
cia de algumas problemáticas marcantes no mundo cultural do tempo: o in-
teresse pela eternidade na espiritualidade neo-platônica, por exemplo.
Se é verdade que um vocabulário religioso só se compreende no seio
de uma comunidade de interpretação e segundo uma tradição de interpre-
tação, é também verdade que não existe tradição de interpretação que não
seja "medíatízada" por alguma concepção filosófica. Assim, a palavra "Deus",
que nos textos bíblicos recebe sua significação da convergência de muitos
modos de discurso (narrativas e profecias, textos legislativos e literatura sa-
piencial, provérbios e hinos) - enquanto simultaneamente ponto de inter-
seção e horizonte que escapa a cada uma dessas formas - , teve de ser ab-
sorvida no espaço conceitual para ser reinterpretada em termos do Absoluto
filosófico, como o primeiro motor, a causa primeira, o actus essendi, o ser
perfeito etc. Daí vem que nosso conceito de Deus pertence a uma onto-
teologia na qual continua a organizar a constelação inteira das palavras cha-
ves da semântica teológica, mas no interior de um quadro de significações
prescritas pela metafísica.
Mas essa pressão exterior exercida sobre a experiência e a linguagem
religiosa não é menos evidente quando a onto-teologia desmorona sob os
golpes da critica kantiana, da metacrítica marxista, do níhilismo no sentido
210 ___.If.X.IOS-...IRAD.UZID.O.s

nietzschiano, da psicanálise e das ciências humanas. É agora com uma con-


ceptualidade anti-ontológica que a teologia deve haver-se. Mas a situação
fundamental não se modificou radicalmente. É sempre em função de uma
problemática exterior que a teologia deve interpretar seus próprios signifi-
cantes. A teologia da secularização e da morte de Deus apresentam a mes-
ma estrutura formal que a da onto-teologia no passado. São também deter-
minadas culturalmente e filosoficamente.
>- A força de um modelo teológico como o que poderia ser designado
como neo-liberal é de introduzir essa relação externa à filosofia no interior
do próprio espaço teológico e de assumi-la como uma relação interna ema-
nando da polaridade inicial que define a tarefa teológica. É o papel da teo-
logia coordenar a experiência articulada pelo texto bíblico com a experiên-
cia humana em grande escala e como um todo. O argumento mais impor-
tante não é que a primeira não pode ignorar a segunda porque existe pura e
simplesmente no exterior, mas que essa polaridade é requerida pela nature-
za mesma da experiência e do discurso religioso, na medida em que é sua
pretensão descrever - ou ré-descrever! - toda experiência do homem e de
todo homem. Como diz Ian Ramsey, o discurso religioso une uma lingua-
gem "estranha", um engajamento total e um pensamento universal.
É bem conhecido que Paul Tillich inaugurou esse modelo com seu mé-
todo de correlação. Por minha parte, adoto facilmente esse conceito se ele
designar que a tarefa formal de ligar entre elas as duas fontes do discurso
teológico (as significações apresentadas pelos textos religiosos tais como são
interpretados em uma das grandes tradições cristãs e as significações desta-
cadas pela experiência humana ordinária). Sou mais reticente a caracterizar
pela expressão "método de correlação" o próprio conteúdo de uma teologia
regida por essa pluralidade de fontes. A história da cultura ocidental mostra
abundantemente que essa polarização é muitas vezes transformada em um
confronto dramático entre reivindicações opostas, exacerbado pelas paixões
demoníacas do clericalismo e do "livre pensamento". Por conseguinte, pode
suceder que, em determinada situação histórica, seja o espírito da Aufkliinmg
que exprima da maneira mais fiel a palavra libertadora do evangelho. Em
outras situações culturais, a correlação pode ter de tomar a forma de uma
recusa das tentações de completa secularização da mensagem evangélica -
e de uma ruptura com elas. Hoje, na época da hermenêutica da suspeita, a
tensão não é só entre as duas fontes, mas no interior da autocompreensão da
experiência e do discurso cristãos em face da contestação radical que uma
parte importante da cultura "moderna" dirige contra toda interpretação reli-
giosa da experiência humana. O "conflito das interpretações" parece ser a
figura existencial inevitável que hoje reveste um "método de correlação" -
a primeira ingenuidade está perdida e uma segunda ingenuidade - se dis-
ponível - leva necessariamente os estigmas da idade pós-crítica.
Por conseguinte, quando dizemos - como fiz antes - que uma rela-
ção mútua rege a troca entre a projeção do modo de ser cristão e a explicação
da dimensão potencialmente religiosa da experiência ordinária, devemos
aceitar que essa relação mútua exprime de maneira formal toda uma série
de situações existenciais, desde a harmonia até à guerra aberta, passando
pela coexistência pacífica.
Isso implica que a conceptualidade que exprimiria o estado concreto
do confronto característico de nossa situação deveria levar em conta a ten-
são e os paradoxos que regem esse confronto dramático. Devemos conceder
que esse tipo de conceptualidade falta sempre porque recebemos sobretudo
da tradição expressões conceituais das "altas épocas", isso é, desses momen-
tos supremos em que nossa cultura sonhava com sua completa integração e
projetava seus sonhos nos sistemas em que a harmonia prevalecia sobre a
guerra, pelo menos no discurso. Tais foram os tempos abençoados das gran-
des onto-teologias neo-platônicas, da síntese aristotélico-tomista, da teodi-
céia leibniziana, do sistema hegeliano. De fato, nós pensamos com os destro-
ços e as sobras provenientes dos escombros desses sistemas e - talvez -
com os sonhos que esses sistemas trouxeram para a linguagem.
Ora, seja qual for o estatuto epistemológico dos conceitos adaptados à
nossa situação cultural e filosófica atual, o problema é olhar a própria lin-
guagem religiosa e esclarecer suas potencialidades conceituais, ou, se prefe-
rem, sua capacidade de ser articulada conceptualmente no espaço de con-
fronto de nossa cultura atual
>- Nosso método regressivo nos levou de um encontro puramente ex-
trinseco entre a linguagem religiosa e os conceitos filosóficos, através da no-
ção de correlação, para um exame direto da linguagem religiosa, do ponto
de vista de suas potencialidades conceptuais.
Estamos preparados para assumir essa nova abordagem pelo que disse-
mos acima sobre os gêneros literários específicos da linguagem religiosa.
Beardslee acentuou esse ponto. Enquanto o discurso escatológico é dirigido
primitivamente a um auditório relativamente fechado de crentes já inicia-
dos nesse modo de discurso, a literatura de sabedoria - e acima de tudo os
dizeres proverbiais - é concebida para lançar uma ponte entre os judeus e
as "nações", entre a cultura "interna" e a "externa". O mesmo parece verdade

l
.. ............IEXIOS...IRAD.ULI.D.O.s

quanto aos discursos parabólicos. É dirigido pelo pregador como ensinante


(Perrin) a todo o povo. No mesmo sentido, os conceitos que poderiam arti-
cular o espaço de confronto, entre as duas grandes fontes do discurso teoló-
gico, podem dizer-se que prolongam os modos sapienciais de discurso.
Da mesma maneira, somos levados a examinar os traços desses modos
de discurso que necessitam de um esclarecimento conceptual.
Podemos formular esse traço como o dinamismo graças ao qual toda a
linguagem simbólica demanda urna interpretação. Esse dinamismo é a condi-
ção primeira para todo movimento de expressão figurativa em direção à ex-
pressão conceitual. O processo de interpretação não é algo sobreposto do exte-
rior sobre uma interpretação autosuficíente: é motivado pela própria expressão
simbólica que suscita o pensamento. Pertence à essência de urna expres-
são figurativa, que é ser sinônima de algo outro, chamar um novo ato de pala-
vra para parafrasear o primeiro sem esgotar-lhe os recursos de significação.
O caso das parábolas é particularmente chocante. É impossível acentuar
demais o seu parentesco com o enigma, quer o elemento enigmático prove-
nha da normalidade, da extravagância ou de uma mistura dos doís. Considerada
corno um enigma, a narrativa simbólica é uma pergunta implícita apelando
para uma resposta explícita. Às vezes a questão é posta explicitamente: "Que
pensais do homem que ... ? Que é de um pai que... T" (ver Jeremias).
Essa estrutura interrogativa explica que a parábola estava, bem desde o
começo, à espera de uma interpretação. A parábola enquanto tal é, em gran-
de parte, uma reconstrução do método histórico-critico [exceto, é verdade,
algumas parábolas que se mantêm por elas mesmas, como nos provérbios
narrativos ou nos aforismos, corno são habituais no Evangelho de Tome} Mes-
mo quando a parábola nos chega desprovida de toda explicação, ela pede
alguma forma de "aplicação" (Gadamer, 290-295). Dizer com Jeremias que
as parábolas eram inicialmente concebidas como uma justificação de Jesus e
urna defesa da Boa-Nova, é urna maneira de limitar sua "aplicação" à situa-
ção de Jesus. As interpretações alegóricas e parenéticas que a Igreja acres-
centou ao "redízer" das histórias, são também aplicações, mas a novas situa-
ções, diferentes da situação inicial. A "explicação" da parábola do semeador
é o caso paradígmático, primeiro em Marcos, depois nos outros sinópticos.
Em certa medida (quero dizer, na medida em que a explicação não é res-
ponsável por certas expressões no interior da própria parábola, que se adap-
tam à explicação], há uma real congruência entre a parábola e a interpreta-
ção (Gerhardson, Moule). Estou pronto a admitir que a explícação e a inter-
pretação iniciais (no caso das parábolas: a interpretação "histórica" no senti-
TL6: .PAllLRlC.OIUR.LA..H.E.RMINÊUTJeA..BíBUCA..

do de Jeremias) têm uma sorte de prioridade e, nessa medida, dominam


sobre as reinterpretações. Mas devemos acrescentar, ao mesmo tempo, que
nenhuma interpretação pode esgotar sua significação, nem mesmo a inter-
pretação "histórica". Nossas interpretações devem somente estar ligadas à
nossa situação particular, como a interpretação original o era à situação ini-
cial. É dessa maneira analógica (A está para B assim como C está para D)
que o alcance significativo original, Lé., a interpretação histórica, domina
sobre a reinterpretação [Funk, 150-151).
Este é o paradoxo: de um lado a parábola pede uma interpretação, seja
qual for, porque, como diz Dodd (16), ela deixa o espírito "em uma dúvida
suficiente sobre sua aplicação precisa para titilar sua presença ativa". De outro
lado, cada interpretação produz o que Funk (134-135) chama de "desperdí-
cio do potencial hermenêutico" porque a parábola é de clausura aberta.
Por conseguinte, podemos acusar a tradição sinóptica de ter "fechado" a
clausura "aberta" da parábola. Mas a interpretação histórica, não menos do
que a interpretação alegórica da Igreja antiga, "exclui o futuro" (Funk, ISO),
delimitando seu alcance e seu auditório. Em fim de contas, o desmantelamen-
to da interpretação alegórica não tem outra função senão a de limpar o hori-
zonte para reinterpretações apropriadas a tempos novos e a lugares novos.
O resultado desta díscussão é que a dinâmica da significação, que orienta
o figurativo para o conceitual, deve ficar sob o controle do potencial herme-
nêutico da metáfora. Discutiremos mais adiante que tipo de conceito pode
satisfazer essa exigência.

2. Da interpretação à tradução. Um segundo degrau intermediário entre


o discurso figurativo e o conceitual pode encontrar-se em uma série de modos
de discurso semi-conceituais tipicos da literatura didática, apologética e dog-
mática, donde surgiu a teologia, em conjunção com as filosofias gregas. As
primeiras cristologias pertencem a esse grupo. Sua linguagem tem alguma
afinidade com o ramo da literatura de sabedoria, que Beardslee chama "es-
peculativa" (ver G. von Rad) em contraposição a outra forma mais popular,
a que pertencem os dizeres proverbiais. Chamo essa linguagem de lingua-
gem de "tradução", "em que o conteúdo significante é explorado como a
base de conceitos e de noções pertencentes a uma corrente de pensamento
distinto da base simbólica". Reproduzo aqui um conceito utilizado pelo prof
Fred Streng em curso dado diante da Associação Americana para o Estudo
da Religião, na Universidade de Vanderbilt (primavera 1973). Segundo esse
pesquisador, é um traço fundamental do cristianismo poder transmitir sua
214 ...

linguagem criando uma série de linguagens de translação, i.é., linguagens


capazes de uma dupla história, a da linguagem de onde vêm e da linguagem
em que são traduzidas. (Assim, a palavra "religião" refere-se ao mesmo tem-
po à piedade romana e à fé judaica e cristã.) A cada etapa do processo de
translação, a linguagem religiosa recolhe novas metáforas, novos instrumen-
tos retóricos e, também, novas dimensões conceituais, que tornam a lingua-
gem original apta, ou pelo menos não demasiado inadequada, para tratar
com outras religiões, com as culturas estrangeiras e com a própria filosofia.
Essa análise bate perfeitamente com o exemplo específico desenvolvi-
do, em sua obra magistral, por Eberhard Jüngel. A obra trata da correlação
entre o conceito paulino de "justiça de Deus" e o símbolo "Reino de Deus"
empregado por Jesus. Ambos veiculam a mesma mensagem fundamental,
são "acontecimentos de palavra" (Sprachereignisse) semelhantes, mas em dois
níveis diferentes em relação à conceptualidade. (Os leitores anglófonos en-
contrarão uma comparação similar em Funk [124-133 e 224-250] entre a
parábola e a carta como modo de discurso.)
Nas parábolas, Jüngel (135-139) diz que a expressão Basileia (Reino)
advém como parábola. Nenhuma distinção pode ser feita, por conseguinte,
entre figura e matéria, e nenhum tertium comparationis é requerido. Ou an-
tes, o Reino vem à palavra na parábola enquanto parábola. As palavras de
Jesus trazem para a linguagem o Reino de Deus como parábola (135).Além
disso a parábola "reúne" (sammelt) os elementos intuitivos e os traços narra-
tivos em um ponto (ein Punkt) que faz a ponta (die Pointe) da parábola. Da
mesma maneira, ela "reúne" aquele a quem é dirigida, de tal modo que a
"ponta" da parábola se torne a "ponta" de sua existência. Assim, reunindo os
traços individuais em um "ponto", a parábola tende a desvelar (entbergen) as
coisas; mas porque tem necessidade dos traços individuais da comparação,
tende a velar (verbergen), mas não a cegar. Finalmente - e esse traço é de-
cisivo para a comparação seguinte - "se as parábolas de Jesus levam à lin-
guagem o Reino como parábola, a vinda à linguagem do Reino é um modo
específico de sua vinda. E se o Reino de Deus advém como parábola em
Jesus, então devemos dirigir nossa atenção para a relação dessa palavra com
seu locutor, portanto para o próprio Jesus" (139), o que quer dizer para seu
comportamento em relação aos pecadores e para com seu próprio destino..
Que tipo de Sprachereignis "põe em movimento" (bewegt) a "representa-
ção" (vorsteUung) que rege a doutrina paulina da justificação? Em um sentido,
é a doutrina de que Jesus é o Cristo. Jüngel não o recusa."Na doutrina paulina
da justificação, Jesus vem à palavra como Cristo" (3). Mas o perigo dessa
TL6:~~~PAULR1CQ.EURLA ..HERMENÊUTlCA~_BíBllCA_. _

fórmula é que Jesus se tome um "outro" na cristologia de Paulo. E o perigo


cresce, se a categoria de "comportamento de Jesus" é tomada como um con-
ceito psicológico. Essa má compreensão é evacuada se tratamos o comporta-
mento de Jesus como uma parte de sua proclamação, como acima fizemos,
se dizemos que "Jesus toma-se ele mesmo quando vem à palavra como Cris-
to" (4). Mas como podemos mostrar a congruência entre Jesus como locutor
das parábolas e Cristo como objeto da doutrina? Jüngel parece-me abrir no-
vas possibilidades, deslocando o acento da antinomia Cristo vs. Jesus para a
similitude entre os dois Sprachereignisse, tais como podem ser apreendidos no
conceito "justiça de Deus" e no simbolo parabólico "Reino de Deus".
Infelizmente, Jüngel não pesquisa sobre o estatuto epistemológico res-
pectivo de "conceito" e de "parábola", talvez por causa da expressão maciça
e obscura de Sprachereignisse. Não procura sequer prosseguir o paralelismo
sob forma de uma análise de conteúdo. Sua análise do conceito "justiça de
Deus" permanece exterior à sua exegese do simbolo "Reino de Deus". Por-
que começa pelo conceito antes de ir para o símbolo, trata o jogo das opo-
sições paulinas ("justiça pela fé" vs. "justiça da lei"; "pela lei" vs. "sem a lei")
como uma doutrina auto-suficiente. Assim, a principal afirmação segundo a
qual os dois "acontecimentos de palavra sucessivos devem ser compreendi-
dos no interior de uma história da palavra (Sprachegeschichte, 263) carece
completamente de justificação. Contudo Jüngel prepara o caminho para um
exame do caráter escatológico comum aos dois discursos (263-268) que re-
pousaria em uma relação de "translação" entre o conceito e o símbolo.
Façamos algumas proposições nessa direção. Não haveria uma conver-
gência de significação entre a vinda da "justiça de Deus" sem a lei na doutri-
na de Paulo e a vinda proclamada em parábolas (Crossan), por exemplo na
parábola da pérola e, de maneira mais explícita, na parábola do grande ban-
quete (ver o longo comentário de Funk, 163-198)? E, por contraste, a tenta-
tiva mortal de obter justiça pela lei não encontra sua contraparte nas pará-
bolas "trágicas'? Do mesmo modo, a "liberdade que a justiça dá" não está
descrita nas parábolas de conversão e de decisão?
Sobretudo, estou inclinado a pôr o acento principal na afinidade fun-
damental entre a lógica da justificação pela fé e a lógica das parábolas.
Evocamos simplesmente a estranha lógica da superabundância expressa no
"com quanto mais forte razão" de Rm 5,15-17 e resumida no paradoxo de
Rm 5,20-21:
Mas o dom gratuito de Deus e a falta não têm a mesma medida. Com
efeito, se a morte feriu a multidão dos homens pela falta de um só, quanto

l
216 .

mais a graça de Deus cumulou a multidão, essa graça que é dada em um


só homem, Jesus Cristo. O dom de Deus e as conseqüências do pecado de
um só também não têm a mesma medida: com efeito, de uma parte, pela
falta de um só, o juizo levou à condenação; de outra parte, por uma mul-
tidão de faltas, o dom gratuito de Deus conduz à justificação. Com efeito,
se por causa de um só homem a morte reinou, quanto mais por causa de
Jesus Cristo, e dele só reinarão na vida aqueles que recebem em plenitude
o dom da graça que os toma justos... Quanto à lei de Moisés, ela interveio
para que se multiplicasse a falta; mas ali onde o pecado se multiplicou, a
graça superabundou. Assim, pois, do mesmo modo como o pecado estabe-
leceu seu reino de morte, assim também a graça, fonte de justiça, devia
estabelecer seu reino para dar a vida eterna por Jesus Cristo nosso Senhor.

Essa lógica da superabundância não é a contraparte conceitual do ele-


mento de surpresa e de extravagância na parábola que acentuamos antes?
Nos dois casos, é arruinada uma lógica ordinária, e surge a lógica de Deus-
que não é uma lógica de identidade mas a lógica do "algo mais". Ora, como
diz Funk (141) nos dois casos, "a ruptura da tradição permite a aparição de
um outro mundo através das fissuras".

3. Limite: expressões, experiências e conceitos. A terceira etapa de uma


pesquisa sobre a relação entre o discurso "figurativo" e o "conceitual" leva-
nos a discutir o papel dos conceitos-limite em nosso quadro conceitual.
Esta expressão, "conceito limite", e "conceito de linha fronteira", é su-
gerida por nossa discussão anterior das duas expressões paralelas: expres-
sões-limite e experiências-limite. Com essas duas categorias eu desejava su-
blinhar a correspondência entre o papel dos "qualífícadores" (no sentido de
1an Ramsey) que operam na linguagem "estranha" dos dizeres parabólicos,
proverbiais e proclamatórios, e as experiências de vida "fronteiras" - no
sentido de Karl Jaspers. O problema é então determinar se não há um certo
uso de pensamento que preserve a tensão entre figura e significação, porque
prolonga o papel dos qualíficadores no nível conceitual.
Como já disse no "Esboço", essa proposição leva mais em direção a
Kant do que a Hegel. Ou, se ouso assim falar, exige um retomo pós-hegelia-
no a Kant. Expliquemos essa afirmação um tanto quanto obscura.
). A primeira leitura - que não é uma leitura errônea - Kant não
parece dar às "representações" (Vorstelungen) religiosas um estatuto episte-
mológico distinto daquele dos enunciados éticos. (a) A dialética recusa à
teologia especulativa toda pretensão a uma aplicação cognitiva. A doutrina
da "ilusão transcendental" implica o abandono das "provas", e a morte de
ILti:__PAULRICQEUR_LA__ IiERM ENÊUncABJRlICA- _

Deus no sentido sobrenaturalista. (b) Quanto aos "postulados" (Deus, imor-


talidade, liberdade) da Segunda Crítica, são proposições existenciais (propo-
sições sobre existentes) mas seu valor de verdade depende da validade do
conjunto das proposições concernentes à síntese a priori da liberdade e do
dever. (c) Quanto às "representações" propriamente ditas da religião, elas sim-
plesmente "pintam" a vitória do Princípio do Bem sobre o Princípio do Mal.
Nesse sentido, pertencem ao que pode chamar-se a imaginação transcenden-
tal da esperança na medida em que dão um conteúdo à terceira questão que
pode ser formulada pela filosofia "Que podemos saber? Que devemos fazer?
Que temos o direito de esperar?" Mas essa esperança é inteiramente prática,
no sentido que concerne as condições históricas da atualização da liberdade.
A esse propósito, essas representações partilham do destino dos "postulados"
da Razão prática.
Essa estreiteza de Kant, e a "falsidade prática" que parece induzir em
relação a toda linguagem simbólica religiosa, é o motivo principal que me
leva a fazer o movimento "de Kant a Hegel" (para parafrasear o famoso livro
de Krõner]. A reivindicação especulatiua da religião nunca foi tão formal-
mente reconhecida em nenhuma outra filosofia como o foi na filosofia de
Hegel. A religião e a filosofia são o único e mesmo discurso do "espírito
absoluto", além daquele do "espírito subjetivo" (a consciência individual) e
daquele do espírito objetivo (as realizações culturais, éticas e políticas do
Volksgeist). A religião e a filosofia dizem a mesma coisa porque exprimem
ambas o retorno do espírito a si mesmo como consciência de si. Enquanto
Kant lê no evangelho uma ilustração de um ensinamento moral, Hegel lê na
teologia cristã o desenvolvimento especulativo da doutrina da Trindade e da
cristologia. A religião é assim reconhecida em sua intenção potencialmente
especulativa. A kenõsis de FI 2,6-11 ("mas ele se esvaziou a si mesmo" -
ekenõsen) tem a mesma significação especulativa que o silogismo especulati-
vo pelo qual a natureza serve de mediação entre a Lógica e o Espírito. O
Absoluto deve negar-se a si mesmo como Espírito.
O valor positivo e permanente da fenomenologia da religião de Hegel
é ter tentado determinar as etapas pelas quais as "representações" religiosas
tendem para seu acabamento especulativo. A idéia geral de Hegel é que o
mundo da representação tem sua própria autonomia e sua própria dialética,
que produz a dimensão conceitual. O mundo da religião é o processo per-
pétuo que costuma engendrar forma e abolir formas. Toda a hermenêutica
hegeliana gíra em torno do problema central da auto-superação da repre-

I sentação no conceito. Primeiro, o Espírito deve tomar-se seu "outro": uma

t
218 . ......T UTOS..TRADUZJDOS

coisa, uma pedra, um idolo. Devido a essa substancialização do Absoluto,


sabemos que o espírito não está longe de nós. Tem a energia para dar-se a si
mesmo a conhecer. Na realidade ele mesmo se fez conhecer. Mas ao mesmo
tempo, é a tarefa da filosofia mostrar que essa "alienação" (no sentido posi-
tivo de tornar-se um outro) é o ponto de partida do processo de superação
de si. Nesse sentido, a morte dos ídolos traça a via da representação ao con-
ceito: morte dos símbolos naturais na religião "estética" dos gregos e na her-
menêutica ética dessa religião estética na tragédia e na filosofia grega; morte
das figuras helênicas do absoluto na ironia da comédia e na racionalização
da política. Um poderoso sentimento de angústia e de vazio prepara a vinda
do cristianismo (não devemos esquecer que é nessa ocasião que Hegel pro-
nuncia seu famoso dito "Deus está morto" [Gott ist tot] que provém de um
hino luterano para a sexta-feira santa ... ). É sobre esse pano de fundo que o
cristianismo é a "religião manifestada". Com ele, "o Espírito está aí" (der Geist
ist da). O Espírito está aí não como uma coisa, uma pedra, um animal, uma
estátua ou um herói, mas como o Si. Isso implica que sua manifestação
histórica deve também morrer, e que a comunidade deve tornar-se o verda-
deiro "corpo de Cristo". Dessa maneira, as duas dimensões da representação
no cristianismo - a historicidade e a comunidade - devem também ser
"substancialízadas" e superadas. Assim, a religião é o lugar em que a mani-
festação do Espírito e a morte de sua representação podem ser vistas.
Se a dimensão especulativa do simbolismo religioso é reconhecida em
maior medida em Hegel do que em Kant, a total absorção do figurativo no
conceitual parece ser o preço a pagar por seu pleno reconhecimento. Donde
o julgamento de Karl Barth sobre Hegel: a maior "tentativa" (Versuch) e a
maior "tentação" (Versuchung). Devo dizer que eu mesmo sinto profunda-
mente tanto a fascinação como a repugnância a que Karl Barth alude em sua
afirmação paradoxal.
Mas não poderiamos dizer que a queda do sistema hegeliano - enten-
do com isso a ausência de credibilidade da noção do saber absoluto numa
época da hermenêutica da suspeita - permite-nos olhar Kant e Hegel a
igual distância? É só agora que esses dois pensadores começam a dialogar no
meio de nós, por assim dizer, além de sua morte e além da morte de suas
filosofias. É dessa maneira que posso reivindicar - de maneira irônica -
ser um kantiano pós-hegeliano. Com isso quero dizer que tento uma segun-
da leitura de Kant, menos fiel historicamente que a primeira, mas (talvez)
mais frutuosa e mais apropriada para o tipo de pensamento requerido pela
conexão entre as expressões-limite e as experiências-limite.
IL6:PAULRICOEUR.EA.HERMENÊUIJCA B.ÍBUCA . ..._ _ .. ...... 219

Voltemos aos três temas principais que sublinhei na filosofia da reli-


gião e na especulação religiosa de Kant.
> A teologia especulativa está morta, dizíamos. E é essa a conclusão
negativa da primeira crítica em relação à noção de "ilusão transcendental".
Mas essa destruição da teologia especulativa como ciência dos "objetos" não
implica que o próprio saber objetivo seja absoluto. Ao contrário, saber obje-
tivo é o trabalho do "entendimento" (Verstand) e o "entendimento" não es-
gota o poder da "razão" (Vernunft) que permanece a função do Incondiciona-
do. Essa distância, essa tensão entre a "razão" como função do Incondicionado
e o "entendimento" como a função do saber condicionado encontra sua ex-
pressão na noção de "limite" (Grenze) que Kant não identifica com a da
"fronteira" (Schranke). O conceito de "limite" não implica só - nem mesmo
originariamente - que nosso saber seja limitado, tenha fronteiras, mas que
a busca do incondicionado ponha limites à reivindicação do saber objetivo
de tornar-se absoluto. O limite não é um fato, mas um ato.
Ora, seria possível dar aos conceitos-limite de Kant uma função menos
negativa do que os interditos lançados pela razão à reivindicação do saber
absoluto de absolutizar-se ele mesmo? Não poderíamos dizer que a exigên-
cia "vazia" de um Incondicionado encontra um certo acabamento nas apre-
sentações indiretas da linguagem metafórica, que, como dissemos, não diz o
que as coisas são, mas com que elas parecem? É porque Kant não tinha
nenhuma idéia de uma linguagem que não fosse empírica que devia substi-
tuir a metafísica por conceitos vazios. Mas se damos à linguagem poética a
função de re-descrição por ficções, então não podemos dizer que o espaço
lógico aberto por Kant entre Denken e Erkennen, entre "pensamento" e "sa-
ber", é o lugar do discurso indireto, dos símbolos, das parábolas e dos mitos
como apresentação indireta do Incondicionado.
Alguém dirá: "Por que não separar-se da linguagem kantiana e adotar
diretamente, com Heidegger, uma nova linguagem, a linguagem de uma nova
ontologia, a linguagem de uma nova "historícidade", mais apropriada a arti-
cular conceptualmente a experiência temporal apresentada pelas parábolas,
como faz Crossan, aplicando-lhes as noções heideggerianas de advento, de
conversão e de decisão?"
Gostaria de responder que a criação de uma nova linguagem e a
emergência de uma nova ontologia são exatamente o gênero de coisas que
uma interpretação positiva da noção kantiana de "limite" requer. Há, po-
rém, uma reserva. Somos livres para citar termos tais como advento, resta-
belecimento, resolução etc., mas devemos manter a consciência filosófica de
220 ..... . . .TE.XTOS.TRADUZJDOS

que esse tipo de linguagem é indireto, figurativo, que tira sua força de seu
potencial hermenêutico, e que, por conseguinte, não é objetivo. O "limite"
funciona aqui como uma advertência contra uma nova escolástica. Lembra-
nos que "é como" implica "não é". Por isso não abandono o vocabulário
kantiano do limite imposto pela razão às reivindicações do saber objetivo.
Da mesma maneira que a "tensão" entre as interpretações literal e metafóri-
ca é essencial à significação da metáfora, uma tensão entre a reivindicação
objetiva do saber e a apresentação poética do Incondicionado deve ser pre-
servada na nova linguagem de advento, restauração e resolução. Essa lingua-
gem é ao mesmo tempo a dos conceitos-limite e das apresentações figurati-
vas do Incondicionado.
> Conforme a Segunda Crítica, a única "extensão" (Ausweitung) de
nosso conhecimento é prática, isso é, concerne à relação entre a liberdade
e a lei. Este contraste entre limitação teórica e extensão prática pode tor-
nar-se mais frutuoso se damos um alcance à estreíteza da moral. Espinoza
chamou sua filosofia de Ética sem ligar o destino da ética às idéias do dever
e da obrigação. Se a ética cobre todo o percurso da escravidão à liberdade,
ou, como diz o filósofo francês Jean Nabert em sua Introduction à la Éthique,
se a ética é uma teoria das mediações pelas quais cumprimos nosso desejo
de ser, nosso esforço para existir, então uma interpretação ética do discurso
poético e religioso não tem efeitos redutores. Abre, ao contrário, um diálo-
go frutuoso entre ética e hermenêutica. O conceito, uma vez mais, encon-
tra-se do lado de uma ética filosófica, seja que concebamos a ética em ter-
mos de normas, de valores, de instituição, ou em termos de criatividade, de
livre expressão, de revolução permanente etc. Ora, esses conceitos são va-
zios sem sua apresentação indireta em símbolos, parábolas e mitos. É a ta-
refa da hermenêutica destacar do "mundo" dos textos seu "projeto" implíci-
to de existência, sua "proposição" indireta de novos modos de ser. As intui-
ções são cegas na medida em que os conceitos éticos são vazios. A herme-
nêutica terminou seu trabalho quando abriu os olhos e os ouvidos, i.é.,
quando apresentou diante de nossa imaginação as figuras da existência au-
têntica. É a tarefa da ética articular seu discurso coerente, entendendo o
que dizem os poetas.
> Na Religião nos limites da simples razão, Kant estabeleceu as regras
de uma hermenêutica filosófica que pode colocar-se sob o título de uma
pesquisa transcendental sobre a imaginação e a esperança. A tarefa atribuída
por Kant a essa pesquisa transcendental poderia aparecer menos estreita,
não só se damos à ética um alcance mais vasto do que Kant lhe designava,
IL6;_PAUl_..RlC DE.URIõ..A_H ERMENÊUIICA_~iBUCA. ._. ._- 221

mas se damos à terceira questão - Que tenho o direito de esperar? - uma


real autonomia em relação á segunda questão: Que devemos fazer?
O próprio Kant dá duas sugestões importantes nessa direção.
1. Na Segunda Crítica há uma discordância importante entre a princi-
pal questão da Dialética e a principal questão da Analítica. Esta última con-
cerne ao "princípio da razão prática", i.é., o laço formal entre liberdade e lei.
A primeira concerne ao que Kant chama a possibilidade do "pleno e com-
pleto" objeto da vontade. A essa questão, de todo diferente, está ligada a
reconciliação entre liberdade e natureza, i.é., a realização da liberdade como
um todo. O problema concreto da atualização da liberdade pertence a essa
nova esfera de pesquisa. Com ela, a terceira questão começa a obter uma
certa forma de autonomia.
2. A segunda sugestão do que poderia ser uma pesquisa transcendental
sobre a imaginação da esperança deve ser encontrada na Religião nos limites
da simples razão, na medida em que isso não está contido na Segunda Criti-
ca, nem mesmo na Dialética. A Relígião nos limites da simples razão obtém
sua autonomia do exame do mal radical. Por causa do mal, as condições
existenciais da "regeneração" da vontade podem deduzir-se da condição for-
mal da liberdade. Pela mesma razão, as narrativas e símbolos que "represen-
tam" a vitória do Princípio do Bem sobre o Princípio do Mal não podem ser
esgotadas. De fato, não estão nem além nem no interior dos limites da sim-
ples razão. Estariam além se pretendessem acrescentar algo a nosso conheci-
mento objetivo. Estariam no interior se pudessem ser reduzidos a alegorias
morais. Seu estatuto é antes o de um "esquematismo" da esperança. Não
estão nem "no interior" de uma filosofia racional nem "sem" ela. Encontram-
se na linha fronteira. Só a tomada de consciência de seu estatuto paradoxal
pode impedir os símbolos de tornarem-se ídolos.

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l
TI7

À escuta das parábolas:


mais uma vez atônitos'

TEXTO COMENTADO: (MT 13,31-33;45-46)

(31) Propôs-lhes uma outra parábola: "O Reino dos céus é semelhante a um
grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo.
Embora seja a menor de todas as sementes, quando cresce é maior do
que qualquer hortaliça e torna-se árvore, a tal ponto que as aves do
céu se abrigam nos seus ramos".
(33) Contou-lhes outra parábola: "O Reino dos céus é semelhante ao fer-
mento que uma mulher tomou e pôs em três medidas de farinha, até
que tudo ficasse fermentado".
(44) "O Reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo:
um homem o acha e torna a esconder, e na sua alegria vai e vende
tudo o que possui e compra aquele campo".
(45) Ou ainda: "O Reino dos céus é ainda semelhante a um negociante que
anda em busca de pérolas fmas. (46) Ao achar uma pérola de grande
valor, vai, vende tudo o que possui, e compra a pérola".

1. Homilia originalmente publicada com o titulo: "Listening to the Parables: Once


More Atoníshed", em Criterion, da Divinity School da Universidade de Chicago 13 (1974)
18-22, e Christianity and Crisis 34 (1975) 304-308, republicada posteriormente na anto-
logia editada por C REAGAN-D. STEWART, ThePhilosophy of Paul Ricoeur. An Anthology of
his Work, Boston, 1978,238-245. Este sermão foi pronunciado na Capela Rockefeller da
Universidade de Chicago.
226 ..... . .. ...TEJlTOSTRADUZID05

Pregar hoje sobre as parábolas de Jesus parece uma causa perdida. Não
já ouvimos essas histórias na escola dominical? Não são histórias infantis
indignas de nossa pretensão ao conhecimento científico, em particular em
uma capela universitária? As situações que evocam não são típicas da vida
rural, que nossa civilização urbana tornou praticamente incompreensível? E
os símbolos que outrora despertavam a imaginação da gente simples, esses
símbolos não se tornaram metáforas mortas, tão mortas como o pé da cadei-
ra? Ainda mais: o desgaste dessas imagens, herdeiras da vida agrícola, não é
a prova mais convincente da erosão geral dos símbolos cristãos em nossa
cultura moderna?
Pregar hoje sobre as parábolas de Jesus ou, melhor, pregar as parábolas,
com efeito é um desafio: desafio de que, apesar de todos os argumentos
contrários, é sempre possível escutar as parábolas de Jesus de tal maneira
que fiquemos atônitos uma vez mais, impressionados, renovados e postos
em movimento. Foi esse desafio que me levou a tentar pregar as parábolas e
não só estudá-las de maneira erudita, como um texto entre outros.
A primeira coisa que pode impressionar-nos é que as parábolas são
narrativas radicalmente profanas. Não há deuses, nem demônios, nem anjos
nem milagres, nem tempo antes do tempo, como nas narrativas da criação,
nem mesmo acontecimentos fundadores como na narrativa do Êxodo. Nada,
mas precisamente gente como nós: proprietários palestinos partindo em via-
gem e alugando seus campos, intendentes e obreiros, semeadores e pescado-
res, pais e filhos; em uma palavra, pessoas comuns fazendo coisas comuns:
vendendo e comprando, lançando a rede ao mar e assim por diante. Encon-
tra-se aqui o paradoxo inicial: por um lado as histórias são - como disse
um crítico - narrativas da normalidade, mas, por outro, é o Reino de Deus
que se diz ser assim. O extraordinário é como o ordinário.
Outras palavras de Jesus falam do Reino dos Céus, notadamente nos
provérbios escatológicos, e parecem sinalizar para algo de Todo Outro, para
algo além, tão diferente de nossa história como o céu é da terra. É por isso
que a primeira coisa que pode surpreender-nos é que, no momento mesmo
em que esperávamos a linguagem do mito, a linguagem do sagrado, a lingua-
gem dos mistérios, recebemos a linguagem de nossa história, a linguagem
profana, a do drama aberto.
É esse contraste entre o tipo das coisas de que se fala, o Reino dos Céus,
e o tipo das coisas a que é comparado que pode pôr em movimento nossa
pesquisa. Não é a pessoa religiosa em nós, não é a pessoa sagrada em nós,
mas é precisamente a pessoa profana, a pessoa secular que é interpelada.
TI. .7~..k .. E5CUTA...DAS PARÁBOLAS.: ..MAl.LUMA..VEZ...ATÔNITOS ....

o segundo passo, além desse primeiro choque, será perguntar o que


faz sentido na parábola. Se é verdade, como mostra a exegese contemporâ-
nea, que o Reino de Deus não é comparado ao homem que... à mulher
que... ao fermento que ... mas ao que se passa na narrativa, devemos exami-
nar mais de perto essa breve narração mesma, a fim de identificar o que
nela pode ser paradigmático.
É aqui que corremos o risco de chegar perto demais dos elementos
sociológicos que eu evocava no começo, quando dizia que as situações des-
critas pelas parábolas são as da atividade agricola e da vida rural. O que faz
sentido, não são as situações enquanto tais, mas como um exegeta mostrou
recentemente, a intriga, a estrutura do drama.

ACONTECIMENTO, CONVERSÃO, DECISÃO

Se seguimos essa sugestão, somos levados imediatamente a considerar


os momentos criticos, as viradas decisivas nessas breves narrações. Leiamos
ainda uma vez a mais breve, a mais condensada de todas as parábolas: Mt
13,44. Os três momentos críticos emergem nitidamente: descoberta do te-
souro, venda de todo o resto e compra do campo. A mesma divisão triparti-
da pode encontrar-se em Mateus, 13,45-46.47-48.
Deixando agora que se desdobrem - por assim dizer - esses três mo-
mentos criticos em nossa imaginação, em nossa sensação e nosso pensamento,
começam a significar bem mais que as aparentes transações práticas, profissio-
nais, econômicas e comerciais de que fala a história. Encontrar alguma coisa...
Essa simples expressão recobre todas as espécies de encontros que fazem de
nossa vida o contrário de uma aquisição feita por ingenuidade ou por violência,
pelo trabalho ou pela astúcia: encontro de pessoas, encontro da morte, encon-
tro de situações trágicas, encontro de acontecimentos felizes, descoberta do outro,
descoberta de nós mesmos, descoberta do mundo, reconhecimento daqueles
que não tinhamos sequer notado, e daqueles que não conhecíamos tão bem, e
dos que não conhecíamos de modo algum. Se reunimos todas essas formas de
descobertas, a parábola não designaria certa relação fundamental ao tempo?
Um certo modo fundamental de ser no tempo? Quero dizer, esse modo que
merece chamar-se o acontecimento por excelência. Alguma coisa se produz.
Preparamo-nos para a novidade do que é novo. Então poderemos "descobrir".
Mas a arte da parábola é ligar dialeticamente o ato da descoberta aos dois
outros pontos cruciais. O homem que encontrou o tesouro foi vender tudo o
que tinha e o comprou: dois novos pontos criticos que poderiamos chamar,
228_ ....

seguindo um comentador moderno, por sua vez inspirado em Heidegger, con-


versão e decisão. A decisãonão vem sequer em segundo lugar: antes da dedsão
é a conversão. E todos os que leram outros textos religiosos que não os da
Bíblia, e mesmo alguns textos não religiosos, sabem que força está investida
nesse termo de "conversão" que significa bem mais do que fazer uma escolha
nova, mas implica uma mudança na direção do olhar, um virar da visão, da
imaginação, do coração antes de toda forma de boas intenções, de boas deci-
sões e de boas ações. O agir é como o ato conclusivo produzido pelo aconte-
cimento e pela conversão. Em primeiro lugar, vem o encontro com o aconteci-
mento, depois a mudança de direção do coração e, depois, o agir em função
disso. Essasucessão é cheia de sentido. O Reino de Deus é comparado ao enca-
deamento desses três atos: deixar o acontedmento desenvolver-se; olhar em
outra direção; e agir com todas as suas forças de acordo com essa nova visão.
Certamente, não são todas as parábolas construídas mecanicamente se-
gundo o mesmo modelo. Se assim fosse, perderiam por essa razão mesma
seu poder de surpresa. Mas cada uma delas desenvolve e, por assim dizer,
dramatiza, um ou outro desses três termos cruciais.
Examinemos as parábolas ditas de crescimento, Mt 13,31-33. Esse cres-
cimento inesperado do grão de mostarda, esse crescimento além de toda
proporção, atrai nossa atenção na mesma direção que a descoberta. O cres-
cimento natural do grão e a dimensão inabitual do crescimento falam de
algo que nos acontece, que nos invade, que nos recobre além de nosso con-
trole e de nosso domínio, além de nossa vontade de planificação. Uma vez
mais, o acontecimento vem como um dom.
Outras parábolas tendem a sublinhar a conversão. Assim o filho pródi-
go muda sua visão das coisas, volta os olhos, reorienta seu olhar, enquanto é
o pai que o aguarda, que espera, que acolhe, e o acontecimento do encontro
nasce da conjunção dessa reversão e dessa espera.
Há ainda certas parábolas que acentuam a dedsão, o fazer, mesmo a
boa ação, como na parábola do bom samaritano. Reduzida, porém, a esse
último momento chave, a parábola parece não passar de uma fábula moral,
de um simples apelo a "fazer a mesma coisa". Reduzida assim a um ensina-
mento moral, deixa de ser parábola do Reino para tomar-se uma alegoria da
ação caridosa. Devemos recolocá-la no quadro das parábolas do aconteci-
mento, da conversão e da decisão, se a fábula moral deve ser dita ainda uma
vez como parábola.
Tendo feito desse modo o segundo passo, e tendo reconhecido a estru-
tura dramática, a articulação da intriga que faz sentido, estamos prontos para
T.LZ;_À.._ES.CUIA..DAS...PARÁB.OLAS~.MAI5..UMA...V-ELAIÓ NIIQS...

uma nova descoberta, para uma nova surpresa. E se perguntamos: "E final-
mente, que é o Reino dos céus?", devemos preparar-nos para esta resposta: o
evangelho nada diz sobre o Reino dos céus senão que é semelhante a... Não
diz o que é, mas a que se assemelha. Isso é difícil de entender. Porque toda a
nossa prática científica tende a utilizar as imagens só como meios provisó-
rios e a substituir as imagens por conceitos. Somos convidados a seguir um
outro caminho. E a pensar segundo um modo de pensamento que não é
metafórico por razões retóricas, mas por causa do que deve dizer. Só a ana-
logia é que se aproxima do que é totalmente prático. O evangelho não é o
único a falar dessa maneira. Em outro lugar ouvimos Oséias falar de Javé
como esposo, de Israel como a esposa e dos ídolos, como amantes (Os 2,4-
25). Nenhuma tradução em linguagem abstrata é oferecida, mas somente a
violência de uma linguagem que do começo ao fim pensa através da metá-
fora, e nunca além dela. O poder dessa linguagem é que ela se mantém até
o fim completamente na tensão criada pelas imagens.
Quais as implicações dessa descoberta inquietante, a saber, que as pa-
rábolas nunca permitem uma tradução em linguagem conceitual? Primeiro,
que esse estado de fato revela a fraqueza desse modo de discurso. Mas, olhan-
do mais de perto, revela a força única desse modo. Como é possível? Consi-
deremos que com as palavras não lidamos com uma narrativa única apre-
sentada em um longo discurso, mas com uma multidão de pequenas pará-
bolas reunidas na forma unifícante do evangelho. Esse fato significa alguma
coisa. Significa que as parábolas formam um todo, que devemos apreendê-
las como um todo e compreender cada uma à luz das outras. Constituem
uma rede de intersignificações, se ouso assim falar.
Se retemos essa hipótese, então nossa decepção - a decepção de um
espírito científico quando não chega a tirar uma idéia coerente, um conceito
unívoco desse conjunto de metáforas - nossa decepção pode tomar-se uma
grande surpresa. Porque há agora mais nas parábolas tomadas em conjunto
do que em qualquer sistema conceitual sobre Deus e sobre a ação de Deus
entre nós. Há mais a pensar através da riqueza das imagens do que na coe-
rência de um simples conceito. O que confirma essa impressão é que pode-
mos tirar das parábolas quase todas as teologias que dividiram a cristandade
durante séculos. Isolando a parábola da moeda perdida, quebrando o dina-
mismo da narração e extraindo dali um conceito engessado, então se obtém
o tipo de doutrina da predestinação que o calvinismo rigoroso defendia. Mas
tomando a parábola do filho pródigo, extraindo o conceito engessado da
conversão pessoal, obtém-se então uma teologia baseada na vontade absolu-
230

tamente livre dos homens, como os jesuítas opuseram aos calvinistas e os


protestantes liberais aos protestantes ortodoxos.
Por isso é que não basta afirmar que as parábolas nada dizem direta-
mente sobre o Reino de Deus. Devemos dizer em termos mais positivos que,
tomadas juntamente, dizem mais do que qualquer teologia racional. No mo-
mento mesmo em que pedem uma explicação teológica, começam a des-
truir as simplificações teológicas que tentamos pôr em seu lugar.
Esse desafio à teologia racional em nenhuma parte é mais evidente do
que na parábola da boa semente sufocada pela cizânia semeada no meio do
trigo. Os servos do granjeiro vêm falar com o dono e lhe dizem: "Senhor, foi
má semente que semeaste no campo? Ou então, donde vem a cizânia?" Tal
é a questão do filósofo quando discute teoricamente o problema do mal,
como se o chama. Mas a única resposta que obtemos é também metafórica:
"É o golpe de um inimigo". Pode-se chegar a diferentes tipos de teologias de
acordo com essa resposta enigmática. Porque há mais a pensar na resposta
dada de maneira parabólica do que em qualquer sorte de teoria.

REORIENTAÇÃO PELA DESORIENTAÇÃO

Seja-me permitido propor ainda um passo - um passo que, espero, vai


aumentar nossa surpresa, nossa estupefação. Muita gente será tentada a di-
zer: "Bom, não temos nenhuma dificuldade em renunciar a todas as teolo-
gias". Mas se todas as teologias são falsas, consideramos então as parábolas
como um ensinamento puramente prático, como um ensinamento moral ou
talvez político. Se as parábolas não são peças de teologia dogmática, consi-
deremo-las como elementos de teologia prática. Essa proposição, à primeira
vista, soa melhor do que a primeira. Não se diz que escutar a parábola é pô-
la em prática? Isso é evidentemente verdadeiro. Mas que significa pôr as
parábolas em prática?
Temo que uma tentativa muito zelosa de tirar uma aplicação imediata
das parábolas para a ética privada ou para a moral política possa entornar o
caldo. Podemos imediatamente supor que tal zelo desmedido transporá as
parábolas para conselhos triviais, ou banalidades morais. E então matamos
as parábolas mais seguramente por receitas moralizadoras banais do que por
conceitos teológicos transcendentes.
Decerto, as parábolas ensinam, mas não ensinam do modo comum. Há
pura e simplesmente nas parábolas algo que até agora negligenciamos e que
elas têm em comum com os provérbios utilizados por Jesus segundo os Si-
ILZ;__ Á_ESCUIADAS __PARÁB_OLAS: _MAIS __UMAVf.LAIÔNlIOS _ _____ 231

nópticos. Esse traço é fácil de identificar nos provérbios. É o uso do parado-


xo ou da hipérbole, nos aforismos ou fórmulas antitéticas como "Quem bus-
ca ganhar sua vida perdê-la-á, mas quem perde sua vida a salvará". Como
diz um comentador, o paradoxo é tão agudo nessa reversão de destinos que
arranca a imaginação de sua visão de uma seqüência contínua entre uma
situação e a outra. Nosso projeto de fazer de nossa própria existência uma
totalidade contínua é rompido. Pois quem pode planificar o futuro segundo
o projeto de "perder para ganhar?"
E, no entanto, não são palavras de sabedoria irônicas ou céticas. Apesar
de tudo, a vida é assegurada através desse caminho paradoxal. Há que dizer
o mesmo de exortações hiperbólicas como: "Amai vossos inimigos, fazei o
bem aos que vos odeiam". Como o paradoxo, a hipérbole tem por fim ar-
rancar o ouvinte do projeto de fazer de sua vida algo linear. Mas enquanto o
humor e o desprendimento tenderiam a afastar-nos totalmente da realidade,
a hipérbole, ao contrário, nos faz retornar ao coração da existência. O desa-
fio lançado à sabedoria convencional é, ao mesmo tempo, um modo de vida.
Somos primeiro desorientados antes de ser reorientados.
Não é o mesmo que sucede com as parábolas? Sua maneira de ensinar
seria diferente dessa reorientação pela desorientação? Não tomamos bastan-
te consciência dos paradoxos e da hipérbole contidos nessas breves narrati-
vas. Na maioria deles há um elemento de extravagância que nos alerta e
atrai nossa atenção.
Consideremos a extravagância do Senhor, na parábola dos maus vinha-
teiros, que depois de ter enviado seus servos envia seu filho. Que proprietá-
rio palestino vivendo no estrangeiro seria bastante louco para agir da manei-
ra desse dono? Ou que dizer do anfitrião na parábola do grande festim que
manda procurar na rua convivas de substituição? Não diríamos que é estra-
nho? E na parábola do filho pródigo, o pai não passou todos os limites aco-
lhendo seu filho? Que empregador daria a empregados da undécima hora a
mesma retribuição que aos da primeira hora?
As parábolas de crescimento não são mais plausíveis, Aqui o que opera
é a hipérbole do provérbio. Que sementinha produziria uma árvore imensa
em que os pássaros podem fazer seus ninhos? O contraste é apenas menor
na parábola do fermento. Como a parábola do semeador, é construída sobre
o mesmo contraste. Se designa a plenitude escatológica, é porque o produto
da semente da narrativa supera, de longe, toda realidade.
As parábolas mais paradoxais e mais estranhas são as que Jeremias agru-
pou sob os títulos "a iminência da catástrofe" e "É talvez tarde demais". O
232____. ________._... . .. . . ._. ..... . .__...._..__.... ._...I.EXJ.OS._UAD.UZID_05

esquema da ocasião que só se apresenta uma vez, depois do que é tarde de-
mais, comporta uma dramatização do que na experiência ordinária chama-
mos "aproveitar a ocasião"; mas essa dramatização é, a um tempo, paradoxal
e hiperbólica. Paradoxal porque se opõe à experiência efetiva de que há
sempre uma outra chance, e hiperbólica porque exagera a experiência do
caráter único das decisões importantes da existência.
Em que bodas de aldeia se fechou alguma vez a porta na cara das vir-
gens loucas que não se preocupam com o futuro (e que, afinal, são tão des-
cuidadas como os lírios dos campos)? Diz-se que são "parábolas de crise".
Certamente, mas a hora da prova e a escolha seletiva são significadas por
uma crise na narração que intensifica a surpresa, o escândalo e às vezes pro-
voca a desaprovação, como quando o desfecho é inevitavelmente trágico.
Tiremos a conclusão que parece emergir dessa estratégia de discurso
surpreendente de que Jesus faz uso quando propõe parábolas aos discípulos
e à multidão. Escutar as parábolas de Jesus, parece-me, é deixar a imagina-
ção aberta às novas possibilidades apresentadas pela extravagância desses
curtos dramas. Se olhamos as parábolas como uma palavra dirigida antes à
nossa imaginação do que à nossa vontade, não seremos tentados a reduzi-las
a simples conselhos didáticos, a alegorias moralizadoras. Deixaremos sua pró-
pria potência poética desenvolver-se em nós.
Mas essa discussão poética não estava já em curso quando líamos a
parábola da pérola e a parábola do acontecimento, da conversão e da deci-
são? A decisão, dizíamos, a decisão moral vem em terceiro lugar. A conver-
são a precede. Mas o acontecimento abre o caminho. A potência poética da
parábola é a potência do acontecimento. Poética significa mais do que poe-
sia no sentido de gênero literário. Significa o criativo. E é no mais intimo de
nossa imaginação que deixamos o acontecimento advir antes que possamos
converter nosso coração e endireitar nossa vontade
Escutai, por isso, as parábolas de Jesus:
(31) E ele lhes propôs uma outra parábola: "O Reino dos Céus é seme-
lhante a um grão de mostarda que um homem semeou em um campo.
(32) É a menor das sementes, mas quando germina supera as outras horta-
liças e torna-se uma árvore a ponto dos pássaros do céu fazerem ninho em
seus ramos. "
(45) Ou ainda "O Reino dos Céus é comparável a um negociante que
procura pérolas finas. (46) Tendo encontrado uma pérola de grande valor
vai vender tudo o que possui, e compra a pérola".
TI8

':L\quele que perde sua vida


por causa de mim a encontrara"

E m Mt 16,25 lemos: "Quem quer salvar sua vida a perderá, mas aquele
que perde sua vida por causa de mim a encontrará". Se queremos com-
preender esse versículo é importante notar o fato de que a perícope a que
pertence foi colocada em todos os evangelhos sinópticos imediatamente de-
pois da confissão de Pedro. À questão de Jesus: "Mas vós, quem dizeis que
eu sou?", Simão Pedro respondeu: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". É
o mesmo Pedro que imediatamente depois escandalizou-se com o anúncio
feito por Jesus de seus sofrimentos iminentes e de sua Paixão."Deus te livre,
Senhor", exclama Pedro. "Isso nunca deve te acontecer", uma resposta que
chama a réplica surpreendente, quase violentá, de Jesus: "Retira-te Satanás.
És um escândalo para mim, porque não estás do lado de Deus mas dos
homens". Que essas duas pericopes sejam colocadas uma ao lado da outra
não é fortuito, mas deliberadamente desejado por três evangelistas sinópti-
cos, porque esse encadeamento sugere que o preço que temos de pagar para
seguir a Jesus não é independente da questão de sua identidade. Pedro pro-
cura um Cristo glorioso e não pode aceitar o fato de que o Cristo seja o
Servo sofredor, que seja o Servo sofredor cantado pelo segundo Isaías.

1. Concebido originalmente como sermão para ser pronunciado na Capela Rockefeller


da Univ. de Chicago, 25 de novembro de 1984, foi depois publicado por M. I. WALLACE
em sua antologia Figuring the Sacred, Minneapolis, 1991, 284-288 com o titulo "Whoever
LosesTheír Life for My Sake Will Find It".
234 . TEXIO.LTRADUZIDOS

Contudo, se isolamos o versículo de seu contexto cristológíco, é tenta-


dor tomá-lo por um provérbio paradoxal, um daqueles que pertencem à fa-
mília dos paradoxos típicos das palavras de sabedoria do antigo Oriente Pró-
ximo, ou talvez, trata-se mesmo de um provérbio universal que os evangelis-
tas às vezes contam que o próprio Jesus utilizava. Por exemplo: "Os primei-
ros serão os últimos" ou "Muitos são os chamados, poucos os escolhidos".
Gostaria de abordar nosso texto desse ponto de vista da sabedoria, de
modo a ver melhor que tipo de radical re-orientação nosso texto, no seio de
seu contexto mais amplo, impõe a uma leitura não cristológica e orientada
em um sentido sapiencial.
Essa maneira de abordar o texto que chamo "orientada em um sentido
sapíencíal" é de fato instrutiva e o resto da passagem convida-nos a tirar
dele algumas lições: "Que vantagem com efeito teria um homem em ganhar
o mundo inteiro se tem de pagar com sua vida"? Que soma poderá dar em
troca de sua vida?" Podemos agora perguntar o que está em jogo nesse jogo
em que se perde o que se ganha e em que se ganha o que se perde. Aqui a
sabedoria parece, para além de costumes ou de más compreensões locais ou
ligadas ao tempo, visar a uma forma fundamental de um falso cálculo que
orienta o conjunto da vida até o ponto que constitui nossa existência coti-
diana. Não é preciso estender-se aqui sobre as duas manifestações principais
desse erro de cálculo, que são as mais freqüentemente citadas e as mais
próximas uma da outra, sem ser contudo de modo algum superficiais. Que-
ro dizer com isso que "ganhar o mundo" significa ter bens materiais e poder.
Com efeito, é difícil não ficar transtornado pelo círculo vicioso provocado
pela exploração desbragada da terra e o consumo sem freios dos países in-
dustrializados. Aliás, "tomar-se o senhor e o proprietário da natureza" é a
verdadeira divisa da modernidade anunciada por Descartes. É também igual-
mente difícil não inquietar-se com outra espiral, a das armas nucleares. Ga-
nhar o mundo parece aqui implicar um domínio sem limite, com o risco de
destruir fisicamente o mundo. Não basta contentar-se com maldizer as su-
perpotências diante desse estado de coisas. Devemos admitir que o drama
do exercício do poder é o drama secreto de cada um de nós, mas simples-
mente carecemos de poder para pô-lo em execução.
Não quero demorar-me nesses dois casos de vontade de domínio sobre
o mundo, porque tenho em mente uma terceira forma de vontade de poder,
uma forma que concerne àqueles dentre nós que não estão tão apaixonados
pela posse ou pelo poder como estão pelo conhecimento. Como universitários,
cientistas, humanistas e filósofos, não procuramos pôr em prática o que se
IL&~_I/AQUHLQUL.I'ERDLSUA_.V1DA ..J'OR__ CAU.SA._DE_..MIM_.AEN.CQNTRARÁ'~ 235

encontra escrito em bronze na entrada de nossa magnífica biblioteca: "Onde


cresce o conhecimento, a vida mesma é ampliada, clarificada, melhorada".
De que maneira uma leitura de nosso texto, orientada em um sentido sa-
piencial, põe em questão essa divisa, nossa divisa? Certamente não em vista
do obscurantismo, da ignorância ou da inércia. A maneira como todo nosso
conhecimento é posto em questão pelo paradoxo desse provérbio é ao mes-
mo tempo mais oculta e mais profunda do que isso. Nosso conhecimento é
antes posto em causa logo que abandona '3 humildade por sua própria von-
tade de poder, uma vontade de poder que é provocada pela própria força
das idéias e de conhecimento objetivo. Há um só dentre nós que seja ino-
cente desse sonho de dominar o mundo pela ciência? Assim, pois, aquilo
que o provérbio traz à luz é a elevação da humanidade, como portadora de
conhecimento, além de qualquer outra realidade, situada enquanto sujeito
desse conhecimento, no mundo dos objetos materiais, dos seres vivos e das
forças sociais supra-individuais.
Se levamos a seu limite essa suspeita de que uma forma sutil de vontade
de poder está dissimulada na forma mais sincera de humildade que chama-
mos amor da verdade, aonde vamos chegar? Minha própria sugestão é que
não somente o conhecimento profano está questionado, mas também - e
talvez ainda mais - o conhecimento religioso. Se a cristandade buscou tão
obstinadamente elaborar provas rigorosas da existência de Deus, não seria
por buscar em Deus a garantia suprema em que fundar nossa aspiração de
dominar o mundo, um domínio baseado no conhecimento apoiado pela ga-
rantia de provas científicas? O sumo do dominio do conhecimento pode bem
ser a vontade de incluir Deus no nosso empreendimento de domínio intelec-
tual, pedindo a Deus que Deus garantisse nossa busca obstinada de garantia.
Terei ido longe demais em minha interpretação do que quer dizer a
sabedoria quando afirma que "quem quer salvar sua vida a perderá"? O pe-
rigo seria não ir bastante longe Porque quanto mais longe vamos no cami-
nho da sabedoria profana, mais somos penetrados pelo convite de Jesus na
parte seguinte do versículo 25: "E aquele que perde sua vida por causa de
mim, a ganhará".
Esse convite do evangelho a perder sua própria vida por causa de Jesus
foi interpretado de várias maneiras diferentes ao longo dos séculos, é certo, e
todas as formas são válidas para nós, porque constituem o tesouro da tradi-
ção da Igreja universal.

2. A frase refere-se à Biblioteca Regenstein na Universidade de Chicago.


236 ... ...... TEXT05...:IRADUZlDO.s

A Igreja primitiva, por exemplo, acentuou as tribulações que acompa-


nhavam o ato do testemunho prestado durante a época da perseguição. A
passagem paralela no evangelho de Marcos estabelece uma relação direta
entre o apelo ao estado de discípulo e a questão de dar testemunho: "Por-
que se alguém se envergonha de mim e de minhas palavras nessa geração
adúltera e pecadora, o Filho do Homem também se envergonhará dele quan-
do vier na glória de seu Pai com os santos anjos" (Mc 8,38). E não foi Pedro
o primeiro a fazer isso no Getsêmani? "Simão, estás dormindo? Não tiveste
a força de velar por uma hora?" (Mc 14,37), depois de novo no pátio quan-
do ousa declarar à serva: "Não conheço o homem de que falas" (Mc 14,71V
As narrativas da paixão dão à negação de Pedro um lugar tão importante,
entre outras razões, precisamente para sublinhar como é difícil, e mesmo
quase impossível, seguir Jesus até o fim.
A primeira interpretação da palavra ''Aquele que perde sua vida por
causa de mim, a encontrará" não é a única possível, mas tampouco perdeu
sua pertinência nos dias de hoje. Em várias partes do mundo, homens e
mulheres perdem efetivamente sua vida porque não se envergonham de Jesus
nem de suas palavras diante de outros homens. Mas que podemos fazer des-
sa frase em uma sociedade pluralista em que a perseguição já não sucede?
Em uma sociedade como a nossa, ter vergonha de Jesus e de suas palavras
toma formas mais sutis de abstenção e de silêncio. Admito que a resposta à
questão do testemunho cristão em uma sociedade liberal é extremamente
difícil de formular. A maioria de nós, inclusive eu, sentimos aversão quando
confrontados com o estilo publicitário de que muitos testemunhos cristãos
se revestiram na mídia. Entre a arrogância, a falta de discrição e a vulgarida-
de desses testemunhos, de um lado, e, do outro lado, a fuga em um silêncio
bem educado e prudente, em nome do caráter privado da crença e do res-
peito pelo outro, não é fácil de descrever nem de formular a forma mais
honesta e mais corajosa do testemunho onde se tornou necessário e reque-
rido tanto pela situação como por nossos irmãos humanos. No plano indivi-
dual, e igualmente no plano comunitário, permanece aberta a questão de
saber com que se deveria assemelhar esse testemunho honesto e corajoso
em uma sociedade liberal.
No entanto, a questão do testemunho verbal não poderia esgotar a ques-
tão do estado de discípulo. Não devemos esquecer essas interpretações do

3. Na verdade, no texto de Marcos, Pedro não responde somente à serva do sumo


sacerdote, mas também aos que ali se encontram presentes.
IL8~..--"AQUELE...QUE....P.ERDE...SUAYIDAJ>QR..(AUSA...nE...M1M..A..EN.(ONIRARÁII..... 237

apelo de Jesus para segui-lo, que podemos chamar "práticas", nem as que
podemos chamar "espirituais". Se voltamos à questão dos bens materiais e
do poder, de que falei antes, refletindo uma interpretação de matiz sapien-
cial, podemos evocar a lembrança daqueles que como S. Francisco de Assis
efetivamente se separaram de todos os seus bens. Nada temos a temer por
ter recorrido a Francisco como o exemplo de todos os "loucos de Deus" atra-
vés dos séculos, de concerto também com seus irmãos e irmãs na fé (ou fora
dessa fé) hoje. O caráter anti-econômico de suas experiências pode parecer-
nos irrisório do único ponto de vista de "ganhar o mundo inteiro". Contudo
seu testemunho não pode ser ignorado - nem recusado. É porque eles sub-
vertem a hipótese de base do mundo moderno que nos intrigam - e nos
fazem medo - a esse ponto. Todavia, a nós que permanecemos no mundo
- como dizemos - fica-nos por determinar que lições devemos tirar de
seu testemunho, que limites internos devemos pôr a nossos desejos, dada a
ausência de um limite quantitativo que nos constrangeria do exterior.
Quanto às interpretações espirituais, só posso aqui evocá-las rapida-
mente, mas, colocadas sob o signo da "Imitaria Christi" (Imitação de Cristo),
todas elas visam, de uma maneira ou de outra, a fazer-nos participar, en-
quanto crentes, dos sofrimentos de Cristo, por uma vida de sacrifício e de
renúncia a nós mesmos. Só posso tocá-las de leve, mas não posso ignorá-las,
dada a maneira como na tradição reformada nos sentimos repelidos por tudo
o que cheira a misticismo. O que devemos fazer é recordar que a tradição
da Igreja universal é mais ampla do que a experiência limitada no tempo e
no espaço de nossas denominações atuais.
Assim, para concluir, voltemos à condição particular do intelectual, do
universitário a quem dediquei a parte mais problemática de minha medita-
ção na perspectiva da sabedoria, contida no texto do evangelho de hoje.
Ganhar o mundo, disse eu, para uma pessoa instruída, é buscar o domínio
absoluto por intermédio do conhecimento e das técnicas acadêmicas. É tam-
bém, acrescentei, para quem faz obra de teologia dentro de sua fé, apegar-se
a que Deus seja a garantia suprema da solidez de nosso conhecimento.
É precisamente essa tentativa de utilizar Deus como garantia de nosso
desejo dé ter uma garantia que me parece mais posta em questão pela ex-
pressão "renunciar a si mesmo". Como disse Eberhard Jüngel, um teólogo
de Tübingen, a fé é a reversão da garantia, é o risco de uma vida colocada
sob o signo do Cristo sofredor. Nossa passagem acrescenta a essa "renúncia a
si mesmo" o fato de "tomar a sua cruz". Essa poderosa expressão leva-nos ao
contexto deliberadamente escolhido pelos autores sinópticos para os versí-
238 .... TEXTOS..TRADUZID.OS

culos que estamos considerando, a saber, o anúncio feito por Jesus de sua
Paixão iminente. Que laço existe entre o convite dirigido aos cristãos, de
tomar a sua cruz, e o anúncio por Jesus da necessidade da Paixão? Que
vínculo há para a pessoa crente que adota a divisa de Anselmo, "Fides quae-
rens intellectum" (a fé que busca compreender)? Tomar uma cruz, é renun-
ciar à representação de Deus como o lugar do conhecimento absoluto como
a garantia de todo meu conhecimento. É aceitar não saber senão uma coi-
sa a respeito de Deus: é que Deus estava presente em Jesus crucificado, e
deve ser identificado com Jesus crucificado. Deus tomou a cruz. Tal é a sig-
nificação do hino cristológico aos filípenses: "esvaziou-se a si mesmo, toman-
do a condição de escravo, tornado semelhante aos homens... Humilhou-se a
si mesmo e fez-se obediente até a morte e à morte em uma cruz (FI 2,7-8).
Tomar a cruz de Jesus, para mim, membro da Universidade, dessa co-
munidade de saber, significa não supervalorizar um conhecimento, prisio-
neiro como é de questões de provas e de garantias, diante da necessidade
seguinte - mais elevada do que toda necessidade lógica - "Era necessário
que o Filho do Homem sofresse e fosse crucificado". Como único poder
divino Deus só dá aos cristãos o sinal da fraqueza divina, que é o sinal do
amor de Deus. Deixar-me ajudar pela fraqueza desse amor é, para a questão
de dar sentido à minha fé, aceitar que Deus só pode ser pensado por meio
do símbolo do servo sofredor e pela encarnação desse símbolo no aconteci-
mento eminentemente contingente da cruz de Jesus.
TT9

A memória do sofrimento'

O rabino Joseph A. Edelheit convidou-me há alguns meses a juntar-me


à vossa assembléia comemorando "os seis milhões" nesta tarde de sabá.
Desejo ardentemente exprimir minha profunda gratidão por esse convite
tão comovente. Recebo-o como um testemunho de que, além de uma ami-
zade autêntica, vosso rabino sabia perfeitamente que me considero como
um dos inúmeros beneficiários da promessa feita a Abraão: "Abençoarei os
que te abençoarem e a quem te maldisser, maldirei; em ti serão abençoadas
todas as famílias da terra" (Gn 12,3).
É a um memorial que me reúno esta tarde. Qual a significação desse
nome que, não esqueçamos, nos reúne neste lugar?
Habitualmente a Bíblia faz memória de um acontecimento completa-
mente diferente, o do dom da Lei ao povo por intermédio de Moisés. O
Deuteronômio, com uma insistência impressionante, não cessa de alertar con-
tra o perigo de esquecer. "Mas fica atento, guarda bem tua vida, guarda-te
de nunca esquecer as coísas que teus olhos viram nem deixá-las sair de teu
coração em nenhum dia de tua vida; ao contrário, ensina-as a teus filhos e
aos filhos de teus filhos" (Dt 4,9). Afinal, o que não devia ser esquecido era

1. Alocução pronunciada no Yom Ha-Shoah, (dia comemorativo do Holocausto) de


1989, em uma celebração interconfessional realizada cada ano na reunião Emmanue1 de
Chicago. Reimpressa na obra citada por M. L W ALLACE, Figuríng theSacred, Minneapolis,
1995,289-292, sob o titulo "The memory of suffering",com a permissão da revista Críteríon
28 (1989) 2-4, em que foi publicado pela primeira vez.
240 ........ TEXIDS...IRADUZID.OS

a libertação"do país do Egito, da casa da escravidão" (Dt 6,12) - essa liber-


tação de que se faz memória durante a semana da Páscoa. É com a mesma
memória que queremos lembrar-nos dos seis milhões? O tipo de memória
que Moisés exigia não era a gloriosa memória de uma libertação e de um
dom? Que é da memória do Holocausto e de suas vítimas? Essa memória
tem algo a ver com a memória exigida por Moisés?
Seja-me permitido elaborar passo a passo os elementos de uma respos-
ta, uma resposta que certamente ficará aquém da resposta esperada.
A questão das razões pelas quais deveríamos lembrar-nos das vítimas
pelo menos tanto como das antigas bênçãos, uma primeira resposta parece
dirigir-se a todo o mundo. Ou, ao menos, a quase todo o mundo, na medida
em que existem sempre, universo afora, alguns amigos dos carrascos, decla-
rados ou não, que esperam que nos esqueçamos. Essa resposta é simples e
transparente: devemos lembrar-nos porque lembrar-se é um devermoral. Te-
mos uma dívida em relação às vítimas. E a forma mínima de pagar nossa
divida é dizer e redizer o que se passou em Auschwitz. É o que o grande
escrítor Elie Wiesel, prêmio Nobel da paz, não cessa de proclamar: A mais
elementar compensação que possamos oferecer-lhes é dar-lhes uma voz, a
voz que lhes tinha sido recusada. Em um de seus últimos livros, um dos
personagens procurando um dos sobreviventes perdidos em uma instituição
psiquiátrica de New York declara: "Talvez não seja dado aos humanos apa-
gar o mal, mas podem tomar-se a tomada de consciência do mal". Lembrar-
se, contar, são meios de tomar-se essa tomada de consciência, uma tal cons-
ciência. Aprendemos dos contistas e dos historiadores gregos que as palavras
admiráveis dos heróis precisavam ser rememoradas, e assim se recorría à
narração. Aprendemos de um narrador judeu como Wiesel que o honivel-
a imagem invertida do admirável - tem necessidade ainda maior de ser
salvo do esquecimento por meio da memória e da narração.
Vamos além: rememorando e dizendo, não só evitamos que o esqueci-
mento mate as vítimas uma segunda vez; evitamos que a história de suas
vidas se tome banal. Esse perigo da banalidade pode hoje ser maior do que
o simples esquecimento. Os historiadores, os sociólogos e os economistas
podem pretender explicar a tragédia de maneira tão exaustiva que se toma
simplesmente um caso de barbárie entre outros. Pior ainda, uma explicação
que se pretenda completa, pode fazer aparecer o acontecimento como ne-
cessário, na medida em que as causas - sejam econômicas, políticas, psico-
lógicas ou religiosas - seriam consideradas como esgotando a significação
do acontecimento. A tarefa da memória consiste em preservar a dimensão
TT_9=-__.LMEMÓRIA_UQ.SOf.1UMEl\lI0-. .. 241

escandalosa do acontecimento, a manter o que é monstruoso como inesgo-


tável pela explicação. Graças à memória e às narrativas que preservam essa
memória, a unicidade do horrivel- unicidade única, se ouso dizer assim -
é preservada de um nivelamento pela explicação.
Essa última observação convida-nos a tentar um passo a mais, um
passo talvez mais audacioso, por tocar em algumas das convicções enraiza-
das mais profundamente em nossos ancestrais. Além das explicações que
nivelam e banalizam o acontecimento criminoso ao qual está dedicado este
memorial, há explicações que justificam e fazem aparecer os sofrimentos
das vítimas como se fossem merecidas. À primeira vista, esse cuidado de
justificar o sofrimento não parece aplicar-se à fé bíblica, mas somente ao
fundo arcaico e mítico de outras religiões. Não é o objetivo desses mitos
explicar como o todo da realidade foi levado à existência e, entre outras
coisas, como o mal começou? Não é a orientação de base de todos esses
mitos remontar para o passado em direção ao momento imemorial do co-
meço, em direção ao tempo de origem? Não é uma das tarefas desses mi-
tos explicar por que os homens estão em uma condição tão miserável,
explicar por que sofrem? Sob esse aspecto, a Bíblia hebraica não cessa de
lutar contra essa tendência regressiva do pensamento mítico, na medida
em que a Torah é acima de tudo uma instrução orientada para o futuro,
um convite ético voltado para a ação a fazer amanhã ou logo em seguida.
Isso está fora de dúvida. Contudo, o conflito não é só entre a fé bíblica e a
religião mítica, mas em certa medida no interior dessa mesma fé, da fé
comum aos judeus e aos cristãos. Não é um fato confirmado que certos
profetas de Israel - e, em conformidade com eles, toda uma escola de
historiografia hebraica - não hesitavam em interpretar o exílio na Babilô-
nia e a destruição do primeiro Templo como uma punição ínfligída aos
filhos por causa dos pecados de seus pais? Com essa teoria dita da retribui-
ção, uma explicação teológica corre o risco de enfraquecer uma certa qua-
lidade da memória dos sofrimentos passados. Mas é também um fato que
certas vozes se fazem ouvir como um contraponto às precedentes. Escute-
mos a proclamação de Jeremias: "De pé, os dias vêm, diz o Senhor, em que
não mais se dirá: 'Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos
ficaram embotados'! Mas cada um morrerá por sua própria culpa: o ho-
mem que comer uvasverdes terá seus próprios dentes embotados" (Jr 31,29-
30). Mais vigorosa ainda é a voz dos sábios que, como o autor do livro de
Jó desmantelam pedra após pedra o piedoso edífícío da teologia da retri-
buição ou da teodicéia.
____________________________________________________I.E1lT.D-LIRAO_ULI_OD.s

Pode-se perguntar de que modo essa discussão teológica afeta nosso


dever de memória? Da maneira seguinte: quando a queixa das vítimas ino-
centes não é mais coberta por argumentos de justificação, essa queixa nua é
levada ao estado de puro grito. Uma vez mais, o movimento de ida e volta,
da lamentação ao louvor, do louvor à lamentação - essa alternância dramá-
tica subentendida no livro dos salmos - é reativada. Enquanto a teoria da
retribuição toma igualmente culpáveis vítimas e algozes, a lamentação reve-
la os algozes como algozes e as vítimas como vítimas. Assim podemos fazer
memória das vítimas pelo que elas são: a saber, os portadores de uma la-
mentação que nenhuma explicação é capaz de abrandar.
Ousaríamos dar ainda mais um passo? Isso pode ser feito sem temor
nem tremor. É possível que uma lamentação, agora irredutivel à explicação,
deixe de perguntar: Por que o meu povo? Porque meus pais? Por que meu
filho? Um grito, na medida em que é humano, não é já uma interrogação?
Uma interrogação a respeito do mal não é já um protesto - se não for uma
acusação - não mais dos homens por Deus, mas de Deus pelos homens?
Afinal, a aliança entre o Senhor e o povo do Senhor era capaz de engendrar
um processo movido por Deus contra seu povo. Essa mesma aliança não
fornece a possibilidade de uma reversão do processo? Esse passo, bem sei,
foi dado por muitos pensadores respeitáveis. Elie Wiese1, para evocá-lo mais
uma vez, é um desses acusadores. Não tenho nenhuma autoridade para cen-
surar igual audácia.
Permitiam-se somente dizer duas coisas. Prímeiro, os sobreviventes que
a dor e a angústia jogaram no coração desse terrível combate - que lembra
o combate de Jacó com o anjo - podem ser cobertos de qualquer nome,
mas não o de "ateus". Aquele que acusa a Deus é de longe menos ateu do
que quem não se preocupa de modo algum com Deus. Tal desafio exprime,
à sua maneira particular, a impaciência da esperança, cujo protótipo pode
encontrar-se no grito do salmista: "Por quanto tempo, ó Senhor!" Segundo,
não deveríamos ir até dizer que o sofrimento injusto é um escândalo só para
aqueles que esperam de Deus que Deus seja a única fonte de todo bem?
Nesse sentido, é a própría fé em Deus que gera a indignação, Por conseguin-
te, é apesar do mal que cremos em Deus, antes de afirmamos que cremos
em Deus a fim de explicar o mal. O mal - e por esse termo entendo pre-
cisamente o sofrimento injusto e não merecido - permanece o que é e que
devería não ser. E o que diz que não deveria ser senão a Torah?
Perguntávamos no começo se o apelo de Moisés à lembrança - que
está ligado ao dom da Torah e à libertação "da casa de escravidão" e nossa
IL_9~_.A.._ME.MÓRlA __DQ 5_QIRJMf.NI.Q . _ _ 243

comemoração fervorosa das vítimas do Holocausto eram duas expressões


radicalmente deferentes da memória. A resposta, parece-me, é não. A lamen-
tação tem necessidade de memória tanto como o louvor. Lembrar-nos-ernos
dos seis milhões, com tanto mais devoção se reconhecermos que Deus, de
cuja benção nós recordamos por ocasião da Páscoa, não é a causa do sofri-
mento, mas antes o autor da Torah que diz "Não matarás".
Terceira seção

Tempo e narrativa em hermenêutica


bíblica e teológica

I
TI 10

Mito e história 1

" primeira vista, o mito e a história parecem ser perfeitos contrários.


A Sem dúvida são ambos narrativas, i.é., arranjos de acontecimentos reu-
nidos em histórias unificadas que podem, em seguida, ser contadas de novo.
Mas o mito é uma narrativa das origens, situado em um tempo primordial,
um tempo diferente da realidade cotidiana; enquanto a história é uma nar-
rativa de acontecimentos recentes, estendendo-se progressivamente para in-
cluir os acontecimentos que estão mais longe no passado, porém que se si-
tuam no tempo humano. ~
Contudo, essa definição inicial requer uma série de observações pre-
liminares que apresentam uma série de relações mais complexas em lugar
dessa forte oposição. Comecemos por considerar o fato de que nosso mo-
delo mesmo de mito nos chegou das histórias dos deuses na antiga Grécia.
Além disso, a passagem do mito à história deixa-se perceber nos próprios
mitos gregos, na medida em que tendem a incluir a história dos heróis na
história dos ancestrais. Merecem mais exatamente a denominação de nar-
rativas lendárias, desenvolvendo-se em um tempo situado entre o tempo
das origens e o dos acontecimentos recentes. A história vai sobrepor-se a
esse tempo lendário, estendendo seu domínio até incluir um passado mais
distante.

1. Publicado originalmente sob o título "Myth and Hístory", em The Encyclopedia 01


Religions, New York-London, 1987, 273-282, t. X.
248 .. ~.. . ~ T.EXIQ.LI.RAnUzlD.o.S

Uma interseção ainda mais significativa entre o mito e a história foi


posta à luz pela extensão, familiar depois da antropologia contemporânea,
da noção do mito aos tipos de narrativas que são extremamente difundidos
nas sociedades arcaicas. Essas narrativas são caracterizadas pelo fato de se-
rem anônimas e, portanto, sem origem determinante. São recebidas pela tra-
dição e aceitas como dignas de fé por todos os membros do grupo sem
outra garantia de autenticidade que a crença dos que as transmitiram. A
história marcará uma "ruptura epistemológica" com esse modo de transmis-
são e de recepção, mas só depois de uma evolução que engloba muitas eta-
pas intermediárias, como veremos mais tarde. Uma fonte de conflitos ainda
mais sérios entre o mito e a história e, portanto também uma ocasião de
formas mais complexas de transições ou de compromisso, refere-se ao pró-
prio mito, que designamos provisoriamente como narrativa das origens. O
interesse pelas origens estende-se bem além da história dos deuses, dos he-
róis e dos antepassados. As questões que tocam a origem das coisas esten-
dem-se ao conjunto das entidades da vida individual e social. Assim, os mi-
tos podem responder a cada um dos tipos de questões seguintes: Como uma
sociedade particular veio à existência? Qual o sentido dessa instituição? Por
que esse acontecimento e esse rito existem? Por que algumas coisas são proi-
bidas? Que é que legitima uma autoridade particular? Por que a condição
humana é tão miserável? Por que sofremos e morremos? O mito responde a
essas questões contando como as coisas começaram. Conta a criação do
mundo e a aparição dos humanos em sua condição presente, física, moral e
social. Por conseguinte, com o mito, tratamos com um tipo particular de
explicação que manterá uma relação complexa com a história. Esse tipo de
explicação consiste essencialmente em uma função fundadora dos mitos: o
mito relata acontecimentos fundadores. Seu laço com a história e o conflito
que daí decorre resultam dessa função. De uma parte, o mito só existe quando
o acontecimento fundador não tem lugar na história, mas situa-se num tem-
po antes de toda história: in illo tempere, para usar a expressão agora clássica
de Mircea Eliade. De outra parte o que está em jogo em cada uma dessa
fundações é ligar nosso próprio tempo àquele outro tempo, seja sob a forma
de participação, imitação, decadência ou abandono. É precisamente essa re-
lação entre nosso tempo e o tempo do mito que é o fator constitutivo do
mito, mais do que os tipos de coisas fundadas por ele, seja que essas últimas
incluam a totalidade da realidade - o mundo - ou um fragmento da rea-
lidade - uma regra ética, uma instituição política, ou mesmo a existência
do homem em uma condição particular, culposa ou inocente.
.... _....__ ....._...._ .._ ... ..__c ....._._... _._ 249

À luz dessa breve fenomenologia do mito, aparece que a relação do


mito para com a história pode situar-se em três níveis díferentes. Em um
sentido limitado e estreito, mito e história são dois diferentes tipos de nar-
rativas. O mito é uma narrativa a respeito de tudo o que nos pode ator-
mentar, espantar ou surpreender. De outro lado, a história é um gênero
literário preciso, a saber, a escrita da história ou a historiografia. Tomada no
sentido estrito, a história pode entrar em uma variedade de relações com o
mito. Que a história tira sua origem do mito não é a única dessas relações.
O ponto de vista genético não nos deve esconder outros pontos de vista
possíveis. Se, como veremos, a história não toma necessariamente o lugar
do mito, mas pode existir em paralelo com ele na mesma cultura, ao mes-
mo tempo que outros tipos de narrativas, então a questão da relação do
mito com a historiografia pode ser abordada na perspectiva de uma classi-
ficação dos díferentes tipos de narrativas que foram produzidos por uma
sociedade em um momento dado. As perspectivas genética e taxonômica
devem ser consideradas, para cada uma completar e limitar as pretensões
de exclusividade da outra.
Como pano de fundo desse problema bem definido surge outro mais
amplo, ligado a um segundo sentido da palavra história. A história não é
unicamente um produto literário: é também o que o homem faz ou sofre.
Muitas línguas mantêm essas duas significações no termo empregado "histó-
ria": a história (ou narrativa) como narração de acontecimentos do passado,
e a história como o conjunto desses mesmos acontecimentos, tais como os
seres humanos os fazem ou são por eles afetados. Além da questão da escri-
ta da história coloca-se a questão de determinar como uma cultura dada
interpreta seu modo histórico de existência. Numerosos problemas surgem
nesse contexto. Como, por exemplo, a estabilidade ou a mudança que afe-
tam os costumes ou instituições de uma cultura são percebidas? Que valor
lhes é atribuído? A mudança mesma tem uma significação? Quer dizer, a
mudança é ao mesmo tempo significante e voltada para um fim, ou é in-
coerente, entregue à desordem, à sorte e à insignificância? E se a mudança
tem um sentido, é melhora, forma de progresso ou uma degenerescência, e
não uma decadência'?
Passar do primeiro sentido de história para o segundo não é dífícíl. A
escrita da história como atividade essencialmente literária é afinal um dos
meios pelos quais a sociedade dá conta de seu próprio passado. Isso leva

* As últimas palavras parecem indevidamente acrescentadas [NdT].

l
.......... __ _ _._ ..TEXIQ.LTRADUZJOQS

inevitavelmente à questão mais geral, do sentido que essa sociedade atribui


a seu próprio desenvolvimento histórico. Essa inter-relação entre a história
como atividade literária e a história como experiência vivida dá uma nova
significação à relação entre história e mito. O mito, na medida em que é
definido por seu papel fundador, pode funcionar para atribuir um valor po-
sitivo ou negativo para a história em geral, na medida em que ela é com-
preendida como uma modalidade da existência humana.
Quando tratamos do mito e da história nesse nível, devemos evitar a
tentação de adotar oposições simplistas entre os tipos de civilizações ou a
de empregar interpretações genéticas exageradamente lineares. Uma mesma
sociedade pode de fato ter mitos de decadência e mitos de progresso, seja
em épocas diferentes, seja no mesmo periodo. Essa concorrência de mitos
pode exprimir a incerteza que uma sociedade experimenta diante da signi-
ficação das mudanças que sofre. Além disso, em uma cultura dada, a histo-
riografia pode ser concebida para só fornecer explicações parciais sem pre-
tensão de serem exaustivas, enquanto a questão mais ampla da significação
da história é deixada às lendas e aos mitos. Daí resulta que duas culturas
podem diferir quanto a seus mitos mais fundamentais e, no entanto, apre-
sentar semelhanças impressionantes, tanto nas técnicas quanto no objetivo
de sua historiografia. Isso era verdade quanto ao gregos e aos hebreus, como
veremos mais longe.
Enfim, sobre o pano de fundo da significação da história, encontramos
a questão da interpretação que uma sociedade dá ao tempo em que sua
história - e toda história - se desenvolve. Essa terceira questão está implí-
cita nas duas precedentes. Em primeiro lugar, a historiografia pode definir-se
como a narrativa das ações humanas do passado. Já que esse interesse pelo
passado é inseparável de um interesse pelo presente e expectativas pelo fu-
turo, a historiografia inclui necessariamente em sua definição uma referên-
cia ao tempo. É a consciência que têm as sociedades e as pessoas do tempo.
Essa referência ao tempo não pode deixar de afetar os dois primeiros
sentidos da história: tanto a significação que uma classificação dos tipos lite-
rários dá ao ato de escrever a história quanto a significação que uma socie-
dade determinada dá à sua história por sua atividade narrativa implicam
uma concepção específica do tempo. A valorização do tempo pode mesmo
tomar-se objeto da reflexão, ou permanecer implícita, para estabelecer em
que medida, mais ou menos a mesma, essa mudança pode ser valorizada
positiva ou negativamente. É nesse nível que as concepções do tempo, cha-
madas cíclica e linear, opõem-se uma à outra.
IL.10:-..MIIO.LHl5IÓRIA....

A questão da suposta oposição entre as concepções cíclica e linear do


tempo é uma questão espinhosa. Para começar, não é certo que a noção do
tempo cíclico tenha uma só significação. Além do caso paradigmático da
regeneração periódica do tempo por narrativas específicas, há muitas manei-
ras de conceber o retomo periódico das mesmas situações e dos mesmos
acontecimentos: muitas formas de periodicidade devem aqui distinguir-se.
Tampouco é certo que a noção do tempo linear era claramente percebida
como uma alternativa global à do tempo cíclico, antes da astronomia ou da
cosmologia modernas, ou mesmo antes de recentes ideologias do progresso.
"Last but not least", uma mesma cultura pode dar nascimento a mitos con-
trários relativos ao caráter cíclico ou linear do tempo. É uma parte da incer-
teza que uma sociedade dada pode cultivar quanto à sua própria situação
histórica e à da raça dos homens em seu conjunto. Assim, de novo, a cultura
que produz mitos do tempo cíclico ou do tempo linear, pode igualmente
desenvolver uma historiografia que deliberadamente se desenvolve fora des-
se quadro, limitando seu objetivo a segmentos de tempo restritos, que po-
dem inserir-se em cada uma das versões do tempo. Por essas razões, o pro-
blema da aparente cisão entre tempo cíclico e linear não deveria ser liquida-
do de modo simplista. Em vez disso, o debate deveria prosseguir no quadro
das duas precedentes investigações.

A GRÉCIA ANTIGA

Para guiar-nos nesse problema, será útil tomar como referência as rela-
ções entre mito e história na Grécia antiga. Na esfera cultural do Oriente
Próximo e da Mesopotâmia só ela - em companhia do antigo Israel -
produziu uma historiografia digna desse nome. Além disso, a diversidade de
relações que essa produção manteve com o mito (um termo grego, se há
alguml] permite-nos verificar a extrema complexidade do problema e a va-
lidade do modelo nos três níveis que acima propusemos.
Se aceitamos a definição de história como historiografia, então a rela-
ção da história com o mito é determinada em seus traços principais pelo
nascimento de um tipo de conhecimento e por um tipo de discurso (a nar-
rativa em prosa) que marca uma série de rupturas decisivas com o modo
mítico de pensar e com sua modalidade privilegiada de expressão literária, a
poesia versificada. O primeiro testemunho que temos da ruptura da história
com o mito foi fornecido por Heródoto, no meio do século V antes de Cris-
to. Sua obra constitui uma etapa literária decisiva. E seu título - Historie,
252 _ .. .... TUI.OS...T RADUZJDQS

em dialeto jônico -, a partir de então determinou não só o nome da disci-


plina que Heródoto inaugurava, mas também a principal significação desse
termo, a saber, a investigação. Essas "histórias" são de fato investigações so-
bre as causas das guerras travadas entre gregos e persas. A diferença dos
mitos das origens e dos contos heróicos situados em épocas longínquas, as
histórias de Heródoto ocupam-se de acontecimentos recentes. Heródoto
interessa-se pelo papel de causa exercido pelos acontecimentos anteriores e
pelo papel dos atores responsáveis nos acontecimentos que ele explorava.
Seus escritos são bem mais do que simples descrições. São expressões de
um modo de pensamento caracterizado pelo que se chamou de "iluminismo
jônico", e que assim toma lugar em um conjunto mais vasto de investiga-
ções em cosmologia, geografia e etnografia. Encontram seu equivalente es-
peculativo na filosofia enquanto tal, em que a physis, termo que traduzimos
por "natureza", constitui imediatamente o campo de exploração e a palavra-
chave. Na filosofia jônica, a noção de arkhé no sentido de "princípio" distin-
gue-se de maneira decisiva da arkhé no sentido de "começo". Essa bifurca-
ção na noção de origem é de grande importância para a compreensão da
separação entre a história e o mito.
A ruptura epistemológica com o mito, que marca a emergência da his-
tória, da geografia, etnologia, da cosmologia e da filosofia da natureza, nem
por isso nos deve autorizar a representar esse processo como simplesmente
genético e linear. Isso seria omitir as etapas intermediárias que existem na
transição do mito para a história, como também que continua a dependên-
cia do novo mundo de pensamento para com o antigo modo mítico. Além
disso, desse modo passaríamos em branco a existência de muitos tipos dife-
rentes de narrativas no seio da mesma cultura.
Em contraste com uma representação simplista do "milagre grego", de-
veriamos em vez disso estar atentos a esse fenômeno de transição que reser-
va um sentido para os diversos elementos que contribuíram para promover
o "acontecimento" do iluminismo jônico. De fato, Heródoto foi precedido
por toda uma série de prosadores que lhe prepararam o caminho. O mais
importante deles foi sem dúvida Hecateu de Mileto, que só conhecemos
por um pequeno número de citações que nos chegaram. Já na segunda me-
tade do século VI, esse prosador foi autor de uma periégésis, um relatório
realista de uma viagem ao redor do mundo, que associa história e geografia,
cartografia e etnologia, e das Genealogias que reconstroem a grande árvore
genealógica da idade heróica. A ruptura entre mito e história, por conse-
guinte, não se produziu de uma só vez, mas só gradualmente. As próprias
________________ 253

Histórias de Heródoto não cortavam todo elo com as narrativas da idade


heróica, como se pode ver em suas tentativas de uma cronologia geral re-
montando à guerra de Tróia. E se Heródoto interessava-se tão particular-
mente pelas guerras persas, era porque, na sua opinião, mereciam ser conta-
da tanto como o tinha sido a guerra de Tróia. Enfim, a dimensão épica da
obra de Heródoto, que lhe permite manter os elos cronológicos e analógicos
entre as épocas heróica e histórica, deve ser atribuída à influência da epo-
péia versificada de Homero.
A dupla relação de ruptura e de filiação entre mito e história, no nível
da forma narrativa, toma-se mais clara se consideramos o fim ou a meta
atribuídos a esse gênero de literatura. Aqui passamos do primeiro ao segun-
do sentido de história. O fim que Heródoto atribuía a suas investigações
pode encontrar-se no prólogo das Histórias: "Eis o começo das pesquisas
(historie) de Heródoto de Halicamasso a fim de que as ações humanas não
possam ser esquecidas, nem as coisas grandes e admiráveis, quer fossem rea-
lizadas pelos gregos quer pelos bárbaros, fiquem sem relato, nem especial-
mente as causas (aitie) das guerras entre uns e outros".
Três traços dessas observações preliminares merecem ser sublinhados.
O combate contra o esquecimento é citado em primeiro lugar: mais longe
discutiremos a concepção do tempo que aqui está implicada. A noção mes-
ma das grandes façanhas estabelece um elo com a epopéia da idade dos
heróis, mesmo se aqui é aplicada a uma época recente. Mas, em particular,
esse culto da memória liga a história à autocompreensão que um povo ad-
quire entregando uma narrativa de seu passado. A memória que a história
cultiva é a de um povo tomado como um corpo único. Desse modo, a histó-
ria toma lugar no corpo das tradições que em conjunto constituem o que
podia chamar-se a identidade narrativa de uma cultura. Sem dúvida a histó-
ria faz isso segundo um modo crítico que é inteiramente diferente das tradi-
ções místicas, pois essas tiram sua autoridade do ato mesmo de transmissão
do imemorial. Mas a oposição entre o modo critico da historiografia, intro-
duzido aqui por Heródoto, e o modo de autoridade da recepção do mito em
Homero, situa-se no quadro do fenômeno mais amplo da tradição: o poeta e
o homem de letras são postos em um único grande cadinho cultural.
O terceiro traço do projeto de Heródoto aponta na mesma direção: o
objeto de sua pesquisa é descobrir a causa de um acontecimento essencial-
mente conflituoso, a saber as guerras persas. Essas guerras não só levaram a
opor os gregos aos bárbaros, mas fundamentalmente puseram em perigo toda
uma configuração de povos, exatamente como a guerra de Tróia fizera nos
254_ __ _._. ._.. . .TEXTOS-_TRADUZIDOS

tempos heróicos. É a maior crise para a qual a história agora busca uma
causa. Atribuindo essa causa a um ator responsável, as Histórias dão uma
coloração ética ao conjunto do curso dos acontecimentos, que ao mesmo
tempo manifesta um parentesco impressionante entre história e tragédia.
Foi a hybris de Creso que pôs em perigo a harmonia de uma nação, e mes-
mo a vitória dos gregos aparece como uma recompensa (tisis) que restabele-
ce essa harmonia. Dessa maneira, uma certa justiça divina é cumprida pelo
curso dos acontecimentos. Não se pode aqui deixar de pensar em um frag-
mento de Anaximandro: "pois [as coisas existentes] pagam tributo e recom-
pensa umas às outras por sua injustiça conforme ao julgamento do Tempo".
Esse fragmento desenvolve uma maneira de pensar a meio-caminho entre o
mito e o que os sofistas, Sócrates e Platão chamarão a sophia (sabedoria).
Dessa triplice análise podemos constatar que a passagem do mito à
história não se pode reduzir à pura substituição do primeiro pela segunda.
No caso, com essa evolução linear devemos dar lugar a uma acumulação de
gêneros literários e de modos de pensar ligados entre eles: os mitos teogôni-
cos escritos no estilo da mitologia escolar e literária, os mitos da época he-
róica moldados no modo literário da epopéia e da tragédia e, finalmente, a
história. A história substituiu tão pouco o mito, que Platão faz ainda guerra
aos mitos nos seus diálogos, não sem incluir porém aqui e ali algum palaios
logos recebido da tradição órfica ou da sabedoria atribuída ao Egito. E até
ele mesmo cria certos mitos sob a forma de contos fílosôficos, Resta agora
um terceiro problema. É o problema da representação do tempo que
subtende a história, problema que constitui o pano de fundo do debate en-
tre história e mito. Se a historiografia grega é de uma certa importância
nesse domínio, é menos em relação à pretensa oposição entre tempo cíclico
e tempo linear do que em união com a linha que separa o tempo dos deuses
do tempo dos homens.
Quanto ao debate sobre a oposição presumida nos gregos entre as con-
cepções cíclica e linear do tempo, debate aberto por Thorlief Boman em
1960, com o seu Hebrew Thought Compared with Greek ("O pensamento
hebraico comparado com o grego"), é claro que a historiografia não fornece
nenhuma confirmação da tese que sustenta que o helenismo era maciça-
mente a favor de uma concepção cíclica do tempo, mas que de fato se recu-
sa a se alinhar de um lado ou de outro. Como sublinha Arnaldo Momiglía-
no, na medida em que Heródoto concentra sua atenção em um segmento
limitado da história, ignora inteiramente todo ciclo histórico e ainda mais o
eterno retomo. Evidentemente, ele crê que há forças que agem na história,
forças ordinariamente ligadas à intervenção dos deuses na vida humana e
que se tornam visíveis somente no termo de uma longa cadeia de aconteci-
mentos. Tal era a hybris contra a qual 5010n alertava. Todavia nada indica
que essas intervenções testemunhem um tempo cíclico. Heródoto "atribuía
à guerra persa uma significação única não cíclica, antes de tudo como um
conflito de homens livres e escravos" (MOMIGLIANO, 1977, p. 187).
É neste segundo problema, o da divisão entre o tempo dos deuses e o
tempo dos homens, que a antiga historiografia grega traz a contribuição mais
decisiva. A comparação com Homero, Hesíodo e os autores trágicos é aqui
instrutiva. Em Homero a ínfima substância que reveste o tempo humano é
sempre devida ao elo de família que une a maior parte dos heróis aos deu-
ses. Para evocar esses tempos heróicos, a memória ordinária não basta: não é
pura convenção literária se no livro 11 da Ilíada [linhas 484-487) o poeta
pede às Musas, as filhas de Mnemosine (mnemo.ryné = memória) para guiá-lo
através da confusão do tempo e do espaço humanos: "E agora dizeí-me, Musas
que residis no Olimpo, porque sois na verdade deusas: presentes sobretudo,
sabeis de todas as coisas; nós só ouvimos ruídos, nós mesmos nada sabemos.
Dizei-nos quais foram os guias, os condutores das Danaides?". É porque o
tempo é uma confusão total para o observador humano, que o poeta apela à
Musa para uni-lo à mais alta visão dos deuses. Nos mitos de Hesíodo, as
idades e as raças que nele evoluem estão inseridos entre o tempo dos deuses
e o tempo dos homens, servindo tanto para separá-los como para pô-los em
relação. É uma história de decadência, interrompida somente pela quarta
raça, a dos heróis. O destino da raça da última idade, a idade de ferro, é
sofrer a fadiga e as tribulações e, portanto, viver sofridamente no tempo. O
único remédio para isso é a repetição monótona do trabalho nos campos.
Contudo, o ciclo do tempo já é o do tempo humano.
Nas obras dos autores trágicos o homem é definido como "efêmero".
Não é porque a vida do homem é curta, mas porque sua condição está
ligada aos acidentes do tempo. O "tempo soberano" cantado pelo coro, pode
ser também o "tempo vingador" que restabelecerá a justiça. De outra parte,
a historiografia, devido à tarefa que assume para si mesma, introduz uma
certa consistência no tempo dos homens, ligando ao tempo humano o pri-
meiro inventor (prõtos euretêsi. De um lado, Heródotoreconhece esses
primeiros inventores naqueles que ofenderam primeiro os gregos e por isso
mesmo levaram às guerras persas. De outro lado o historiador, nomeando-se
a si próprio, dando as razões que há para relatar o passado, procurando o
sentido dos acontecimentos passados, estabelece-se a si mesmo como o pri-
256 __ ___ TEXI.Q.LTRAD-UZmOS

meiro inventor. É dessa dupla maneira que dá ao tempo humano sua consis-
tência. Contudo, apesar desse quadro linear, esse tempo humano deixa sem-
pre lugar para essas analogias e correspondências que elevam os persona-
gens acima e além do tempo.
É só com Tucídídes que um tempo lógico' vai guiar a desordem do
tempo histórico, provinda da repetição das mesmas dissensões entre cidades,
o que provoca a "ocorrência e a recorrência sem fim" das desgraças inume-
ráveis e terríveis. O segundo grande historiador grego está então pronto para
definir sua obra como um meio de "penetrar claramente nos acontecimen-
tos do passado e nos que devem ainda vir, em razão do caráter humano que
possuem, oferecendo semelhanças e analogias" (História da guerra do Pelopo-
neso, 1.22). É o sentido da famosa expressão ktéma eis aiei (aquisição para
sempre): o tempo humano só toma consistência perante o tempo dos deu-
ses quando a narrativa é ancorada em uma espécie de lógica da ação.

ISRAEL ANTIGO

Seguindo a maioria dos exegetas e dos historiadores da cultura, adota-


mos a hipótese de trabalho de que só os gregos e os hebreus desenvolveram
uma historiografia comparável à dos modernos. É, pois, em referência ao
nascimento da história na Grécia que podemos discutir o fenômeno seme-
lhante no Israel antigo. Contudo os obstáculos a esse tipo de empreendi-
mento comparativo não faltam, de modo algum.
A primeira fonte de dificuldade reside em uma diferença de gênero li-
terário. Gêneros literários como a epopéia, a tragédia, a poesia lirica e a his-
tória, que são representados na Grécia por obras e autores distintos, encon-
tram-se agrupados em conjunto e enlaçados na Bíblia hebraica, um livro que
é na realidade uma coleção de livros. Por conseguinte, se queremos encontrar
nas Escrituras hebraicas uma coleção de textos comparáveis às Histórias de
Heródoto, temos de ignorar a importante questão do contexto com o risco
de sérias distorções. É o caso, por exemplo, da história da ascensão de Davi
(ISm 16,14 - 2Sm 5,25) e da história de sua sucessão (2S 7,9-20; lRs 1-2).
A segunda dificuldade reside na complexidade da narrativa enquanto
gênero. O gênero narrativo é representado por uma tal variedade de formas,
que não podemos limitar nossa classificação unicamente a uma oposição
entre história e mito. É necessário elaborar uma tipologia de formas narrati-
vas, embora rudimentar e puramente provisória, antes de poder indagar so-
bre as possíveis filiações entre as formas, umas em relação às outras.
TT..IO:.M1T<L.LHJ5TÓRIA ". 257

Há ainda uma outra dificuldade. Além da variedade dos gêneros literá-


rios rodeando o núcleo narrativo, e da própria diversidade das formas narra-
tivas, as Escrituras hebraicas apresentam uma hierarquia de textos diferen-
tes. Unidades de primeira ordem, que representam toda a gama das formas
narrativas, são incorporadas a conjuntos mais vastos, tais como as composi-
ções do Javísta, que apresentam traços narrativos diferentes daqueles das
unidades da primeira ordem. Para dar conta da diferença de nível e de es-
trutura entre as narrativas mais vastas e seus segmentos propriamente hísto-
ríográficos mais curtos, é judicioso referir-se aos primeiros como "narrativas
quase históricas".
Enfim, quanto ao problema específico do mito e da história, devemos
preparar-nos para enfrentar uma situação paradoxal segundo a qual, diferente
da evolução que levou na Grécia do mito à história, os quase mitos ou frag-
mentos míticos emprestados das culturas vizinhas foram incorporados em Is-
rael aos grandes conjuntos narrativos acima mencionados sob a forma de mi-
tos historicizados, como é o caso de Gn 1-11. Essa reinterpretação do mito na
base da história aparece como totalmente característica da esfera literária do
antigo Israel.
Podemos pilotar nossa investigação através dos arrecifes dessas dificul-
dades, avançando ao longo de três níveis definidos no primeiro parágrafo, a
saber uma tipologia das formas narrativas, uma análise do modo histórico de
compreensão da comunidade que produz as narrativas e, finalmente, um
'''f
breve olhar sobre a concepção do tempo que pode estar implícita, tanto nas
formas literárias quanto na autocompreensão revelada no antigo Israel.
No que diz respeito à tipologia das formas narrativas, em que a história
e o mito encontram seu lugar nos dois pólos extremos do espectro, é impor-
tante notar que as investigações genéticas, tiradas principalmente da obra de
Hermann Gunkel e da obra de Hugo Gressmann, empregaram uma análise
estrutural para estabelecer critérios de identificação das formas narrativas e
em seguida prosseguiram elaborando sua filiação. Gunkel (1928) argumen-
tava que a historiografia, ilustrada pelas duas narrativas sobre Davi acima
mencionadas, tinham saído de lendas (Sagen) antes que de mitos do Oriente
Médio, ou das listas, anais e crônicas que eram difundidos entre os vizinhos
de Israel. Para estabelecer essa tese, Gunkel precisou elaborar uma breve
.tipologia que lhe permite distinguir as lendas de outros tipos de histórias.
Primeiro, distinguiu as lendas (Sagen) que se referem a personagens do mundo
real, mas vivendo nos tempos passados, dos mitos, que são narrativas de
origem que aconteceram em um tempo diferente do tempo da experiência
258 . .... . .....UltIOS-TRAD.UZID.O.s

ordinária, e dos contos (Mãrchen), que são puras ficções concebidas como
distrações. Depois, entre as próprias Sagen, distinguiu entre as lendas dos
pais (Vatersagen) e as lendas dos heróis (Heldensagen). As lendas dos pais
estão ligadas aos chefes de família que são representativos de seu grupo
social. Estão muitas vezes encadeadas em uma série como as histórias de
José: Gunkel as chama de "novelas" (Novellen). As lendas dos heróis
(Heldensagen), na medida em que concernem a figuras públicas como Moi-
sés, Josué, Saul e Davi, podem conter um elemento autenticamente históri-
co. Segundo Gunkel, é nesse sub-grupo que podemos seguir a evolução des-
de a pura lenda heróica ilustrada por Gedeão, até a história em um sentido
semelhante à de Heródoto, como nas duas narrativas de Davi acima men-
cionadas. Depois Gressmann (1910) continua essa abordagem, chamando a
atenção para as lendas proféticas cuja finalidade é piedosa e edíficante,
Todavia, a contribuição mais importante de Gressmann consistiu em
sua divisão tripartida da história. Há, primeiro, a história que se refere a
acontecimentos recentes (admite-se que as narrativas sobre Davi foram es-
critas pouco tempo depois dos acontecimentos contados). Em seguida, vêm
as lendas sobre acontecimentos distantes, finalmente os mitos relativos aos
tempos primordiais. A vantagem dessa divisão tripartida é pôr entre parên-
teses a questão do grau presumido de veracidade, tal como é medido pela
noção moderna de prova documental. Contudo, em Gunkel e Gressmann o
cuidado pela tipologia é imediatamente eclipsado pelo interesse pela gêne-
se: seu maior interesse consiste em determinar como o gênero cientifico [da
história] nasceu da lenda.
A mesma questão é examinada por Gerhard von Rad (1962), mas na
base de preocupações diferentes. Também indaga sobre as condições preli-
minares da emergência da história, mas, enquanto Gunkel sublinha o papel
decisivo da emergência do estado monárquico, von Rad concentra-se no pe-
dido de explicação presente na função etiológica das lendas, sobre a forma-
ção de uma literatura em prosa e especialmente no papel organizador de-
sempenhado pela visão teológica da história. É sob a influência desse tercei-
ro fator decisivo que a organização narrativa prevalece sobre a apresentação
paratáxica das lendas heróicas. Considerada sob o mesmo ângulo, a relação
de filiação entre a lenda e o mito parece mesmo mais fraca. E é um iluminis-
mo semelhante ao de Jônia que permite a passagem da novela - que por
sua vez já é relativamente complexa - a conjuntos mesmo mais simples
tais como as histórias de Davi ou o documento javista, que são assim colo-
cados no mesmo nível que o núcleo hístoríográfíco, ao menos no que toca à
TL10;MlIOEI:I1STÓRIA__ __ _ __ _ 259

sua organização. Armada desses critérios tipológicos sumários para distin-


guir entre os gêneros, a exegese hebraica empregou-se em examinar a ques-
tão de sua filiação, uma questão tida por fundamental. É nesse quadro que a
hipótese de Gunkel de uma continuidade entre os gêneros foi posta à prova
por seus sucessores (Gerhard von Rad, Martin Noth, William F. Albright,
Umberto Cassuto, Claus Westermann e John van Seters). Essa hipótese pode
incluir um certo número de enfoques diferentes. O enfoque pode pôr-se no
fator político, no espírito esclarecido da época reconhecida como próxima
aos acontecimentos relatados, ou no grau de organização das próprias lendas
antes de sua fase literária. Pode-se acentuar a possível existência de epo-
péias israelitas antigas, influenciadas pela epopéia mesopotâmica ou cana-
néia, a constituição de arquivos de corte, de listas, de anais e de outros do-
cumentos semelhantes aos encontrados entre os vizinhos de Israel e, enfim e
mais particularmente, o poder de organização exercido pelo motivo teológi-
co. De fato, essas hipóteses genéticas mostram-se inverificáveís pela ausên-
cia de fontes israelitas distintas dos textos canônicos das Escrituras hebrai-
cas. Nem é mesmo certo que os textos que parecem mais próximos da his-
toriografia grega tenham sido verdadeiramente escritos durante o período
próximo aos acontecimentos narrados, ou mesmo que houve uma literatura
israelita anterior à escrita do Deuteronômio.
As respostas dos cientistas a essas dúvidas tomaram três formas. Al-
guns procuraram renovar as investigações genéticas, na base de novas hipó-
teses. Outros concederam prioridade a uma análise estrutural mais detalha-
da das formas narrativas e, finalmente, outros empreenderam um estudo
literário propriamente dito da arte narrativa que se encontra em todas as
formas narrativas.
A primeira orientação é ilustrada em particular pelas obras de John
van Seters e Hans H. Schrnid, que datam os primeiros escritos israelitas de
cinco ou seis séculos mais tarde do que tinha feito a ciência anterior e, desse
modo, derrubam todas as hipóteses precedentes quanto à filiação.
A segunda orientação é ilustrada pelo interesse taxonômico que presi-
de as obras de George W. Coats sobre o Gênesis. Coats reparte os principais
gêneros narrativos entre a saga, o conto, as novelas, as histórias, os relatórios,
as fábulas, as narrativas etiológicas e, finalmente, os mitos. O termo saga
(não deve confundir-se com o alemão Sage, que significa lenda) refere-se às
sagas islandesas e nórdicas da Idade Média, que são longos escritos tradicio-
nais em prosa, subdivididos em sagas familiares e sagas heróicas. O conto é
caracterizado pelo fato de que há poucos personagens, tem composição e
260 ... _ TEXTOS.TRAD.UZI.D05

trama simples. Ao contrário, a novela é um conto complexo com uma intri-


ga que comporta uma tensão e sua resolução. As lendas são narrativas está-
ticas sem intriga, destinadas a fazer o elogio das virtudes de um herói. Uma
história supõe contar acontecimentos que realmente sucederam; um relató-
rio descreve um acontecimento isolado. As fábulas descrevem um mundo
de ficção, enquanto as narrativas etiológicas propõem-se a explicar uma si-
tuação, nomear um local ou um personagem. Finalmente, os mitos ficam
reduzidos à esfera restante, a saber, ao domínio imagínário ligado à atividade
dos deuses no mundo divino (assim no Gn 6,1-4).
Um exemplo notório da terceíra orientação é dado por Robert Alter e
Adele Berlin. Esses autores, livres de preocupações tipológicas, estudaram a
arte da composição narrativa, baseando seus estudos no modelo poético apli-
cado à novela moderna. Narrativas supostamente primitivas e ingênuas apa-
recem de repente como obras de refinamento consumado, pelo uso do diá-
logo e pelo tratamento dos acontecimentos com reticência e eufemísmo. Ao
mesmo tempo, a análise literária intensifica o alcance teológico desses tex-
tos e sugere que o conflito entre a inevítabilidade do plano divino e a recal-
citrância humana são por sua vez, fonte de desenvolvimentos narrativos.
O desenvolvimento da análise estrutural levou a fazer passar o proble-
ma das relações entre mito e história para trás de suas tipologias mais decla-
radas. Contudo, o problema ressurge em outro nível, sob forma de proble-
ma de auto-compreensão de uma cultura tal como se exprime através de
suas tradições. Essa nova linha de questionamento é requerida pela própria
tipologia, na medida em que a finalidade de toda forma narrativa é contri-
buir à compreensão de si. Aqui, no contexto das Escrituras hebraicas, somos
confrontados com o segundo sentido de história: a história como se refere
ao espírito histórico do Israel antigo, a sua maneira de dirigir-se historica-
mente. Nesse ponto, a maioria dos exegetas está de acordo para caracterizar
a auto-compreensão do antigo Israel como globalmente histórica, algo que
não pode ser dito dos gregos. Se os gregos de fato produziram uma historio-
grafia, que é mais claramente manifestada no nível de suas obras e mais
deliberadamente crítica em relação às tradições recebidas, contudo eles bus-
caram sua identidade - sem talvez nunca encontrá-la - mais na esfera
política de sua existência. Ao mesmo tempo, seus filósofos desenvolveram
uma filosofia cosmológica e não histórica, da realidade tomada como um
todo. Só Israel compreendeu-se a si mesmo principalmente através das tra-
dições de que era ao mesmo tempo o autor e o beneficiário. Foi isso essen-
cialmente que von Rad quis sublinhar em sua "Theologia das tradições hís-
TLIO:...MlTO..E.HJSTÓRlA ............ 261

tóricas de Israel" (1962), o primeiro volume de sua Theologie des Alten


Testaments. Com Israel, o ato de narração tinha desde o começo um valor
teológico, e a intenção teológica era instilada na coleção das tradições, o que
o teólogo não podia evitar de repetir.
a segundo nível de investigação não deve ser confundido com o pri-
meiro: a compreensão "histórica" de um povo através de sua literatura não é
exclusivamente, nem mesmo principalmente, expressa em seus escritos his-
toriogrâficos, Em vez desses, pode exprimir-se através de toda uma série de
formas narrativas e mesmo, pouco a pouco, por todos os outros gêneros lite-
rários, na medida em que são historicizados, ou melhor, "narrativizados". Essa
expansão do espírito histórico para além da forma narrativa característica da
historiografia encontra sua expressão na hierarquia interna característica
da literatura narrativa das Escrituras hebraicas, segundo a qual as unidades
narrativas definidas pela tipologia são subordinadas a conjuntos mais am-
plos, de que o documento javista é um bom modelo. Não só essa vasta compo-
sição remonta a antes da monarquia, antes da instalação na terra, antes dos
patriarcas, à própria criação do mundo. Engloba também as unidades que
representam toda a gama de formas narrativas acima definidas, como tam-
bém vastos textos não narrativos tais como as leis, os trechos sapienciais, os
louvores, as maldições e as bênçãos - em suma, uma ampla variedade de
formas literárias e de "jogos de linguagem". Como foi notado acima, para
preservar essa variedade interna e essa diferença de níveis, é oportuno reser-
var o termo de História a essas unidades que revelam um parentesco es-
trutural e temático com a antiga historiografia grega e fazer referências às
outras narrativas como "quase históricas" seguindo Hans W Frei em The Eclipse
of Biblical Narrative (1974).
É no nível dessa ampla narrativa quase histórica, e das diferentes narra-
tivas acrescentadas à grande narrativa javista, que o desígnio teológico de
uma literatura narrativa se manifesta. Quanto a isso, houve notável evolução
na interpretação desde que Gunkel buscava salvaguardar a antiga historio-
grafia, que considerava como contemporânea da época de Salomão, da in-
fluência lamentada dos profetas. Von Rad retrabalhou consideravelmente o
problema, vendo na grande construção javista a expansão da narrativa con-
fessional que se pode ler no Deuteronômio 26,5-9 e Josué 24,2-13. Segun-
do Rad, esse "credo histórico", com suas próprias raízes litúrgicas específicas,
regeu a história da instalação que levou o povo desde o Egito até à Terra
prometida. Em seguida, incorporou-se às tradições do Sinai que, enquanto
lenda cultural distinta com seus mandamentos revelados e sua teologia da
262 .. . I.EXIOS...TRADUZmOS

Aliança, tinha tido antes uma existência autônoma. Em torno desse núcleo
enxertou-se a história dos patriarcas, prefaciada pela majestosa história da
criação do mundo e da origem da humanidade. O Javista teria sido em se-
guida o escritor de gênio que, pelo fato do deslocamento dos mitos para
fora de sua matriz original utilizou o motivo teológico contido na tradição
da instalação para dar coerência a essa coleção de narrativas heterogêneas.
Com o Javista não falamos mais de um autor, mas de um narrador-teólogo
que exprime sua visão das relações entre Deus e seu povo, por meio de uma
história contínua, na qual a história do povo escolhido está ligada à história
universal da humanidade e à própria história do mundo.
Partindo do pólo historiográfico, os sucessores de von Rad indagaram
como a narrativa histórica da instalação se liga às narrativas da sucessão e às
do acesso de Davi ao poder. Que trocas teria havido entre a visão sagrada e
política da soberania de Deus sobre a história e a idéia de uma condução
divina operando de um lado ao outro da migração e da instalação? Teria
servido a primeira de modelo estrutural da segunda, e a segunda de modelo
teológico da primeira? É nesse contexto que a proposição de Robert Alter
toma toda a sua importância: indaga se o paradoxo da inevitabilidade do
plano divino e da recalcitrância humana não se manifestou mesmo nas me-
nores unidades narrativas, quando examinadas à luz da arte da narrativa
bíblica. As narrativas mais significativas são aquelas em que a intenção divi-
na é realizada não por uma intervenção divina, mas pelo jogo mesmo das
paixões humanas, de alguma forma, por uma nemesis inerente ao compor-
tamento humano.
Voltamos do pólo historio gráfico ao pólo mítico indagando sobre a teo-
logia da história que se manifesta nas grandes unidades narrativas ou mesmo
nas menores. De fato, devíamos falar de teologia da história, porque não é
certo que o que foi chamado história da salvação (Heilsgeschichte) recobre
todas as intenções dos escritores bíblicos. Devemos estar atentos para não
projetar a teologia bíblica de hoje sobre as Escrituras hebraicas. A interseção
de um bom número de temas teológicos diferentes deve ser salvaguardada:
a aliança, a promessa e seu cumprimento, a instrução ética pela narrativa e
assim por diante. Ao lado dessa pluralidade de teologias da história, põe-se a
questão da função de um plano teológico tomado como um todo. À guisa
de contrapartida à historicização dos mitos das origens, não poderia ele mes-
mo funcionar como um mito, no sentido do transcendente fundando a his-
tória presente sobre a base de uma história mais fundamental? Mais precisa-
mente, parece que a teologia das tradições foi assemelhada a um mito etio-
TLIO:.. MITO.LHJSTÓR IA _....._...__.... _..__...__... _.263

lógico da instalação em um país estrangeiro, com o dom da terra. Depois da


catástrofe do exílio, esse mesmo mito foi capaz de transformar-se em um
mito etiológico da perda do país. Esse segundo uso etiológico do mito resul-
ta em uma nova teologia da história, centrada no tema da retribuição - ou
seja, em uma teodicéia. Na narrativa do Deuteronômio, essa nova teodicéia
encontra uma expressão que pode ser fraca no plano historiográfico, mas
que é forte por seus recursos morais. Contudo, devemos admitir que cha-
mando de mito a própria história da salvação, estendemos a noção de mito
além do sentido estrito de uma história das origens in illo tempere. A história
da salvação desenrola-se mais no tempo dos homens do que no tempo dos
deuses. Essa diferença fundamental deve nos tomar mais prudentes no uso
do termo mito para qualificar as interpretações teológicas como as da histó-
ria da salvação.
Devemos reservar para um terceiro nível de análise a questão contro-
vertida de saber se a concepção do tempo no antigo Israel era explícita ou
puramente .ímplícita. James Barr, no Biblical Words for Time (As palavras
bíblicas para o tempo) (2ª ed. revista, 1969) nos alerta contra a tentação de
buscar as informações sobre a concepção hebraica do tempo no próprio ní-
vel da linguagem, em seu vocabulário e em sua semântica, ou na etimologia
de termos individuais. A significação das palavras, observa Barr, resulta de
seu uso nos contextos determinados. Por conseguinte, em nossa tentativa
para descobrir a concepção hebraica do tempo, somos remetidos aos con-
textos fornecidos pelas formas narrativas acima examinadas e à mentalidade
histórica discutida precedentemente.
Uma questão inicial se coloca: uma concepção específica do tempo
está implícita nas formas narrativas utilizadas pela Bíblia hebraica? A res-
posta pareceria antes negativa. Os diversos tipos de narrativas tomados se-
paradamente comportam implicações temporais muito diferentes. Nenhu-
ma vista geral do tempo pode ser extraída da historiografia dos livros de
Samuel e dos Reis: concerne a um segmento do tempo que não permite
extrapolação alguma. Sem dúvida, podemos admitir que a historiografia da
Bíblia hebraica - como a dos gregos - comporta certa familiaridade com
a sucessão temporal e a cronologia. Mas essa relação com o tempo é pura-
mente pragmática. Além disso - e é o ponto mais importante - outras
formas narrativas como a saga e a lenda de uma parte, o mito das origens
de outra, desenrolam-se em tempos qualitativamente diferentes que po-
dem ser utilmente descritos como "recentes", "distantes" ou "primordiais".
Assim, os "dias" da criação não são comparáveis aos anos de reinado dos
264 . _. .TEXIOSIRADUZlDOS

monarcas. O mesmo é verdadeiro para os patriarcas, que são situados, por


assim dizer, entre os tempos primordiais e o tempo histórico. Por conse-
guinte, é judicioso respeitar as qualidades temporais específicas relativas às
diversas classes de narrativas.
Se agora consideramos as grandes composições narrativas, como a do
Javista, em que se exprime o espírito histórico do antigo Israel, é inegável
que as tradições diversas, com suas durações heterogêneas, são submetidas a
uma única ordem temporal, que devíamos provavelmente representar como
um tempo retilíneo e irreversível, subentendendo uma história universal que
se estende da criação ao fim da monarquia e ao período do retomo do exílio
na Babilônia. Contudo, além do fato de que essa representação nunca é feita
explicitamente pelo brilhante compositor do documento javista, isso seria
gravemente inadequado em relação ao estilo narrativo desse relato quase
histórico, mesmo se tivesse sido explicitado. E isso por várias razões.
Antes de tudo, o tempo desenvolvido pela grande narrativa permanece
uma criação da própria arte narrativa. Esse tempo imanente à configuração
da grande narrativa não vem abolir de modo algum as diferenças entre os
espaços temporais heterogêneos que engloba. Assim, não podemos dizer que
a escolha de Abraão se produz depois dos sete dias da criação. A pura suces-
são das narrativas não nos permite projetar ao longo de uma mesma escala
temporal o tempo das origens, o dos patriarcas, o do estabelecimento em
Canaã e o do período monárquico. A idéia de uma única escala narrativa
comum a todos os elementos temporais é uma idéia moderna, estranha ao
pensamento de Israel antigo, e mesmo ao da Grécia antiga.
Além do que, uma série de correspondências e de analogias é acrescen-
tada à sucessão temporal segundo a qual cada acontecimento segue a outro,
como, por exemplo, entre as diferentes alianças e as diferentes leis, ou mes-
mo entre as diferentes teofanias. Quanto a isso pode-se falar mais de um
aspecto cumulativo do tempo na Bíblia hebraica do que de uma dimensão
puramente sucessiva.
Enfim, e é o mais importante, a relação entre a fidelidade de Deus e a
recalcitrância do homem, que é ilustrada de tantas diferentes maneiras pela
arte narrativa particular dos contadores, narradores e historiadores hebreus,
não se presta a uma interpretação nos termos das categorias herdadas do
platonismo ou no neo-platonismo, segundo a qual a imutabilidade divina é
diametralmente oposta à mutabilidade de todas as coisas humanas. A fideli-
dade de Deus, que marca a história dos homens, sugere a idéia de uma oni-
temporalidade antes do que uma supratemporalidade. Além disso, essa
ILJO~MlTO __ E __ HJ.STÓRIA ____________ 265

onitemporalidade está em perfeito acordo com a espécie de história cumu-


lativa que acabamos de mencionar. A fim de ser apto a falar de um tempo
bíblico, devíamos levar em conta todos os gêneros literários e não só o gêne-
ro narrativo: há um tempo imemorial das leis, um tempo proléptico da pro-
fecia, um tempo cotidiano da sabedoria, um "agora" da lamentação e do
louvor do hino. O tempo bíblico - se é que essa expressão tem algum
significado - é feito do entrelaçamento de todos os valores temporais que
se acrescentam às numerosas qualidades temporais preservadas pela diversi-
dade das formas narrativas. A representação de um tempo linear e irreversí-
vel é de todo inapropriada a um tal coro de vozes.
Teríamos então razão de falar de um retorno ao tempo mítico através
de uma narração quase narrativa, na base de teologias que presidem à pró-
pria composição narrativa, como na concepção da história como história da
salvação? Isso poderia fazer-se unicamente atribuindo ao termo mito o sen-
tido extremamente amplo de narrativa fundadora ligada à existência coti-
diana. De fato é exatamente tão importante insistir na historicização do mito
como sublinhar a mitologização da história. A posição do mito das origens
em Gênesis 1-11 atesta essa subordinação decisiva do mito à história. É
somente enquanto mito quebrado que o mito arcaico é reafirmado no inte-
rior do espaço de gravitação apresentado pela historiografia do período
monárquico e pela narrativa da conquista e da instalação.
Talvez seja nisso que reside o parentesco oculto entre o pensamento
grego e o pensamento hebraico. Cada um deles, à sua própria maneira, rom-
pe com o mito, cada um, igualmente, reencontra o mito, um como conto
filosófico, como vimos em Platão, outro como um mito quebrado e
historicizado, a exemplo da narrativa javista da criação.

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TI 11

Da proclamação à narrativa 1

N o seu prefácio à edição em brochura de Rediscouering the Teaching of


Jesus, escrito em 1975, Norman Perrin coloca sua obra sob o patrocí-
nio de dois mestres, Bultrnann e Jeremias, que situa "nas extremidades opos-
tas de um espectro teológico dado". E acrescenta: "Contudo eles iam junto,
no sentido em que tinham possibilitado uma nova etapa no desenvolvimen-
to da pesquisa sobre Jesus. Por conseguinte, eu que os conheci a ambos, dei
o passo audacioso de tentar interpretar seus pontos de vista segundo uma
síntese de minha própria iniciativa'".
Neste artigo dedicado à memória de Norman (com quem mantive es-
treita amizade, desenvolvida graças ao trabalho que juntos prosseguíamos
no campo da hermenêutica), gostaria de mostrar a necessidade, a coerência
e a pertinência de uma síntese como essa.
Vou tentar defender o empreendimento de Norman Perrin colocando-o
no contexto de um problema que pessoalmente estou explorando, a saber, a
necessidade, para o querigma cristão, de desenvolver-se em uma forma narra-
tiva - a dos evangelhos. Para muitas gerações, o querigma cristão limitava-se
a uma proclamação que só continha o núcleo de uma narrativa, concentrado
em um acontecimento quase pontual como se apresenta nas antigas formula-

1. A primeira versão deste texto foi publicada com o titulo de "Frorn proclamation to
narrative" no The Journalof Religíon 64 (1984) 501-502.
2. N. PERRIN, Rediscovering theTeaching ofJesus, New Testament Library, Londres, SeM
Press; New York, Harper and Row, 1967, 11-12.

L
268 .. . __ T.E.XTOS.TRAD.UZJOOS

ções tais como 1Cor 15,3-8: "Cristo morreu ... foi sepultado ... foi ressusci-
tado ... e apareceu a Cefas e a outros". Podemos falar do núcleo de uma
narrativa no sentido em que a pressuposição que está na base de toda a
pregação cristã é a continuidade e a identidade entre o Jesus terrestre e o
Cristo que fala pelas linguas dos profetas, na comunidade de fé. Ora, o acon-
tecimento mínimo contido no querigma primitivo foi, durante muito tem-
po, bastante para ligar o acontecimento escatológico com a história factual,
portanto com a contingência do tempo.
Até esse ponto Bultmann e Jeremias estão de acordo. Bultmann sem-
pre afirmou que o Dass da morte na cruz era o mínimo requerido pelo Was
da fé pós-pascal. Vemos por que: o querigma deve incluir o passado de Jesus
no presente de Cristo, porque, de outro modo, corre-se o risco de interpre-
tar esse último em um sentido gnóstico ou no de um mito grego.
A questão, então, é saber se o desenvolvimento narrativo desse núcleo
na forma de um novo modo literário, o evangelho, provém da mesma neces-
sidade ou se exprime a contingência de uma situação histórica e mesmo um
desvio perigoso que requeria, precisamente, a volta ao querigma que possuísse
somente o componente narrativo mais restrito. É na resposta a essa questão
que os caminhos divergem.
Devemos primeiro ouvir o que Bultmann tem a dizer: referindo-nos à
tradição sobre Jesus não assumimos a tarefa impossível de reconstruir uma
"vida de Jesus"? A história da redação e a crítica das formas não mostraram
que essa via tinha fracassado e tinha de fracassar? A teologia liberal, subesti-
mando os obstáculos estritamente exegéticos a esse empreendimento, bus-
cou tratar as interpretações cristológicas como uma superestrutura acres-
centada que podia ser esvaziada de modo que se pudesse escrever uma vida
de Jesus livre de todo preconceito dogmático ou eclesiológico. Contudo, como
Albert Schweitzer demonstrou em sua história dessas vidas de Jesus, cada
uma, em última análise, refletia a própria visão do historiador sobre o mun-
do e sobre sua época, e revelava-se assim, paradoxalmente, tão fundada teo-
logicamente quanto as narrativas que buscava precisamente substituir.
Devemos ter presente ao espírito esse fracasso das tentativas liberais
em vista de escrever uma vida de Jesus, se queremos entender as reações da
escola bultmaniana e seus excessos na direção oposta. Era o programa mes-
mo da Leben-Jesu Forschung que era derrubado pela crítica das formas. A
narrativização, paralelamente, aparecia como um fenômeno secundário, pro-
vindo da influência dos mitos e das lendas sobre uma base essencialmente
querigmática não-narrativa.
TI...1.1: ..DA.. PROCLAMAÇÃO ..À_.NARRATJVA....

Para o próprio Bultmann, essa conclusão representava ao mesmo tem-


po uma exigência moderna da cíentíficídade, e uma outra, muito mais tradi-
cional e luterana, segundo a qual a fé não se devia apoiar nas obras. A pri-
meira exigência o levava a descrever como vã toda tentativa de separar o
Jesus histórico do quadro querigmático. A segunda o persuadiu de que isso
era ao mesmo tempo inútil e perigoso. Se, de uma maneira ou de outra, essa
tentativa tivesse êxito, isso equivalia a substituir a decisão da fé pela certeza
carnal e, por conseguinte, a buscar a salvação por alguma obra humana an-
tes do que pela fé, compreendida como pura graça.
No que conceme à primeira exigência, a da cíentíficidade, é de importân-
cia fundamental sublinhar que a obra exegética de Jeremias e de Perrin proce-
de da mesma exigência de integridade intelectual que a de Bultmann. Embora
pretendendo ser tão absolutamente radicais como Bultmann, estabeleceram
que a tradição a respeito de Jesus transmitiu, de fato, algumas lembranças de
certas palavras e ações de Jesus, que podemos considerar como autênticas no
sentido estabelecido pela critica radical. Sem ser suficiente para permitir-nos
escrever uma história de Jesus distinta do querigma sobre Cristo - tal como
tentou a exegese liberal - a identificação dessas palavras e ações autoriza-nos
a isolar o que eu chamaria mais tarde de "ocasiões" da composição narrativa
dos evangelhos. Jeremias e Perrin identificam-nas por meio de um método de
"dissimilaridade" que pode resumir-se como segue. Quando uma palavra ou
ação atribuída a Jesus é duplamente discordante com o que conhecemos do
judaísmo desse periodo e com o que a história da redação nos obriga a ver
como criação da comunidade pós-pascal, então essa palavra ou essa ação pode
ser tida por autêntica, i.é., pode ser atribuída ao Jesus histórico'.
Neste ponto, surge a questão: se não se é um exegeta profissional por
que seguir uma escola em vez de outra? Quanto a mim, a resposta é clara:
porque a tentativa de reconstruir ou de redescobrir o ensinamento e o mi-
nistério de Jesus é coerente com outras exigências, que lhe são parcialmente
opostas, ou ao menos que a completam de maneira decisiva, a saber, as ou-
tras exigências de Bultmann que não são tão diretamente exegéticas quanto
teológicas ou filosóficas.
Bultmann nos diz que a procura do Jesus histórico é não somente vã,
mas inútil e perigosa. Que não é vã está provado pelos resultados obtidos

3. Completando esse critério da dissimilaridade, Perrin acrescenta o da coerência entre


o que é atribuído a Jesus e o que recebe múltipla atestação em diversos documentos que
não devem ser todos canônícos (Rediscovering, 15-40).
270 ..... . _.___ _ TEXI'O.LTRADUZ1D.OS

por Jeremias e Perrin, que concernem diretamente à pesquisa na orientação


para o futuro na pregação de Jesus. Que seja inútil e perigosa, por levar o
crente a uma forma moderna de salvação pelas obras, isso pode ser recusado
por muitas importantes razões teológicas.
Primeiro} pode-se mostrar que a redescoberta do ensinamento de Jesus
funda a possibilidade de exercer um controle critico em relação ao trabalho
de pensamento suscitado pela sutil discordância entre o querigma da Ressur-
reição e a espera apocalíptica da parusia: ou seja, um controle crítico da es-
trutura da esperança cristã. Segundo: ligando, por sua vez, esse ensinamento
a tudo o que sabemos sobre a atitude de Jesus nas situações de crises, de
conflitos e de controvérsias, podemos escolher uma configuração ou um esti-
lo que possui não só um valor critico, mas também um valor exemplar para
justificar a grande e autêntica tradição da "imitação de Cristo". Enfim, as
convergências que podemos discernir entre essa configuração e morte de Je-
sus, autorizam-nos a entrever o que pode tomar-se uma história do sofrimen-
to, oposta a todas as formas de história dos vencedores que se espalham na
escrita das crônicas, das narrativas autorizadas ou da história oficial. Será que
essa critica, essa exemplaridade, essa ruptura em direção a uma outra história
são inúteis ou mesmo ultrajantes para a fé? Não pertencem antes ao coração
mesmo do que é crido, do que é confessado (homologia) no ponto mais vul-
nerável em que o que é crido e o que é confessado estão articulados?
É sob o signo dessas três funções da tradição de Jesus em relação com
a fé em Cristo que eu queria agora situar o empreendimento de Norman
Perrin em Rediscovering e no Jesus and the Language of the Kingdom". Ao
"Redescobrir o ensinamento de Jesus", Norman Perrin junta a contribuição
de Jeremias à de Bultmann, sem cair na armadilha das vidas de Jesus. O que
é efetivamente "reconstruído" não é, propriamente falando, uma narrativa, o
que corresponderia de fato à crítica de Bultmann, mas o que eu chamaria,
para utilizar o vocabulário de Whitehead, as "ocasiões" da narração",
Essas ocasiões são de três tipos: anúncios, controvérsias e sofrimentos.
Sem formar contudo uma "intriga" narrativa, funcionam como pontos de
ancoragem para uma atividade narrativa, que se desenrola nas narrativas dos

4. N. PERRIN, Jesus and the Language of the Kingdom: Symbol and Metaphor in New
Testament lnierpretation, Filadélfia, Fortress Press, 1976.
5. Ver A. N. WHITEHEAD, Process and realíty. An essay in cosmology, edição de D. R.
GRIFFER e D. W SHERBURNE, New York, Free Press, 1978, especialmente as páginas 18,
187 e 287s.Ver também D. W SHERBURNE, A key toWhítehead's process and realíty, New
York, MacMillan, 1966,6-9,205-207.
TI .Jl=-D~PROLlAMAÇÃO
.. À.NARRATBIA ......._.. . _ 271

evangelhos. Gostaria de mostrar, baseando minhas observações na obra de


Norrnan Perrin, que essas três espécie de ocasiões, como foram reconstrui-
das ou redescobertas (considero que vem dar no mesmo) exercem uma trí-
plice função critica-exemplar-inaugural. Mostrando a relação entre esses três
tipos de ocasiões e as três funções, a necessidade interna da passagem da
proclamação à narrativa será estabelecida. E, com isso, o esforço de Norman
Perrin para juntar a herança de Bultrnann à de Jeremias será legitimado.

o ANÚNCIO DO REINO DE DEUS


A contribuição mais importante de Norman Perrin é sobre o sentido
mesmo que devemos dar à proclamação por Jesus da proximidade do Rei-
no. Nesse ponto, sua obra passa com segurança da análise histórica, no
sentido da crítica das formas, à obra de interpretação, no sentido da her-
menêutica dos símbolos.
A ruptura decisiva foi realizada por Jeremias, que procurava responder
a essa questão nas parábolas e nos outros provérbios e comparações que se
referiam ao Reino, tentando despojar as palavras de Jesus de tudo o que
traísse uma alteração ulterior no sentido de um estilo judaizante ou heleni-
zante. Dois traços, próximos um do outro, que trazem a marca das pesquisas
pessoais de Norman Perrin nos interessam aqui. Primeiro, Jesus interpretou
seu ministério como a antecipação decisiva do Reino. Em seguida, proibiu
toda especulação sobre o espaço e o tempo restante e significou o fim, dan-
do à "proximidade" uma significação não quantitativa, não cronológica. É
fácil ver como esses dois traços estão ligados um ao outro. Se o Reino anun-
ciado na pregação de Jesus é acompanhado da resposta que suscita (um
ponto a que voltarei na seção seguinte; "controvérsias"), então a proximida-
de do Reino repousa inteiramente na capacidade de antecipação ligada à
proclamação de Jesus e à crise que provoca. Como diz Norman Perrin, para
Jesus o Reino está sempre e sem cessar aproximando-se, cada vez que a
experiência humana é desafiada pelo ensinamento que o anuncia".

6. Não faltam argumentos exegéticos para apoiar essa posição: por exemplo, Jesus in-
terpretou os exorcismos como antecipação do Reino, Como estabelece Perrin, "a palavra
interpreta os exorcismos" (Rediscovering, 65). São sem significação, exceto pela interpreta-
ção que os liga ao futuro Reino de Deus. Eis um exemplo tirado das parábolas escatológicas
em Me 2,18s. O núcleo deve ter sido, segundo JEREMIAS, "Os convidados das bodas podem
jejuar durante as bodas?" (trad. S. H. Hooker, Parables of Jesus, ed. rev. New York, Charles
Scríbner's Sons, 1963,52, n. 4 [citado em PERRIN, Rediscovering, 79, n. 3]). Ao contrário,

l
......................... ~_TEXIQS.. TRADUZIDOS

Por conseguinte, na medida em que o ministério do próprio Jesus é


significado nas parábolas, a situação de alegria, a crise, o desafio e a extrava-
gância que constituem a "ponta" de tantas parábolas, descrevem indireta-
mente o ministério de Jesus como sendo uma parte do Reino. Aqui Norman
Perrin está de acordo com Conzelmann quando se arrisca a dizer que as
parábolas pertencem à autocompreensão de Jesus'.
Se, então, as parábolas falam não só do Reino, mas também do vínculo
entre o Reino e a pessoa de Jesus, então o problema da orientação da esca-
tologia para o futuro encontra a chave de sua solução em um mesmo víncu-
lo. Uma linha é traçada entre o presente da pessoa de Jesus e o futuro, de
modo que o espaço aberto entre os dois perde toda a sua significação crono-
lógica e resolve-se na tensão entre o presente e aquele futuro".

isso sugere que havia algo de festivo no anúncio do Reino, na sua dimensão presente. A
mesma tonalidade alegre atravessa as parábolas do tesouro escondido e da pérola (Mt
13,44-45). Por que essa alegria? Porque o perdão dos pecados é anunciado não só com
certeza e generosidade, mas também com extravagância. Como diz PERRIN: "E, sem som-
bra de dúvida, essa extravagância é querida" (Rediscovering, 96). Eu também desenvolvi o
tema da extravagância no meu estudo sobre as parábolas como ficções narrativas. Aqui eu
vou diretamente ao que a exegese considera como a ponta da parábola, sem levar em
conta sua forma literária. Quer se trate da parábola da ovelha extraviada, ou da dracma
perdida, ou do retomo do filho pródigo, algo acontece que ultrapassa toda expectativa.
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Tradition", Zeitschrift für Theologie und Kirche 54 (1957) 277-296.
8. Mesmo nas parábolas de julgamento, como a do joio no meio do trigo (Mt 13,24-
30), a separação anunciada entre grão bom e o grão mau referem-se a algum futuro não
datado, que exclui toda especulação sobre -,
a duração do intervalo. Mesmo quando essa
duração parece estar em discussão, como na parábola dos talentos, não é tanto seu tama-
nho que está em questão, quanto a sua utilização como um periodo extenso de respon-
sabilidade. Como para as comparações que parecem encorajar a especulação sobre os
sinais (o homem forte em Mc 3,27, a figueira em Mc 13,28 parecem antes pôr o acento
na presença entre nós do Reino futuro. O mesmo laço entre o presente e a existência
futura pode ser percebido nas parábolas de crescimento, sem que a questão da duração do
tempo seja apropriada. Em poucas palavras, não há outros sinais além dos que são dados
aqui e agora. Nenhuma "imagem" do futuro doravante tem sentido. Uma vez mais, é
porque a existência de Jesus e sua auto-compreensão são uma parte da substância do que
é significado nas parábolas: "A interpretação daquele que vem e da pessoa de Jesus for-
mam uma unidade (CONZELMANN, 37). Como nota Conzelmann, Rudolf Bultmann ti-
nha razão em dizer que "Jesus não dá importância ao tempo", se esse desinteressamento
recebe uma significação positiva, a saber, que os sinais que anunciam o Reino estão pre-
sentes na pessoa de Jesus.
TLl1:.._DA.._PRO_CLAMAÇÃOÀ.NARRAUVA-._ ...__ .... . . _... .._. .. ... ..... . . ......

Situo, pois, a primeira função da redescoberta do ensinamento de Je-


sus, no fato de ser um instrumento critico em relação à interpretação
querigmática que a Igreja enxertou nas parábolas e em todas as palavras de
Jesus, na medida em que essa interpretação leva a marca da Apocalíptica,
com seu dualismo de eons, seu sentido cronológico da iminência e seus cál-
culos de sinais. O método da dupla diferenciação que Jeremias e seu suces-
sor aplicam às palavras de Jesus revela primeiramente que Jesus esperava a
vinda do Reino com uma extrema confiança, como o crescimento certo da
messe". Isso é sugerido pelas parábolas do semeador, do grão de mostarda e
do fermento". "Pequenos começos, grandes fins", diz Norman Perrin. O mes-
mo método revela igualmente que Jesus esperava a justificação de seu mi-
nistério como o resultado de sua vinda, sem que nada fosse dito sobre a
forma e a maneira dessa justificação". Nesse sentido, a dialética do "já" e do
"ainda não" encontra-se na pregação de Jesus já antes das palavras que insti-
tuem a eucaristia. Jesus colocou sua pregação sob o sinal da espera do Reino
que não viera ainda e, contudo, já faz desse ensinamento mesmo o sinal da
dimensão do "já" dessa espera. É só na pregação de Jesus que esse paradoxo
está completamente intacto. Ele podia dizer que "o Reino está no meio de
vós" (Lc 17,20) e contudo não enfraquecer de maneira alguma a força dessa
esperança. Contudo, em princípio, ele rompe com a especulação apocalípti-
ca sobre o espaço que nos separa do fim.
O trabalho difícil para reconstruir a mensagem de Jesus não se reali-
zou em vão. Sugere que a interpretação escatológica (apocalíptica) do que-
rigma, por dominante que seja, não é a única possível, e que a Igreja podia

9. Perrin não hesita em intitular o quarto capítulo de Rediscovering"Jesus e o futuro".


Ali admite que "nenhuma parte do ensinamento de Jesus é mais difícil de interpretar que
a que diz respeito ao futuro" (p. 154). Na verdade, as declarações apocalípticas sobre o
Filho do Homem servem como uma tela, e se requer um esforço enorme para as decifrar,
a fim de entender o verdadeiro núcleo. Perrin vê nesses textos as interpretações da comu-
nidade primitiva baseadas em Dn -7,13 e destinadas a apoiar o tema da parusia. Jesus
voltando como o Filho do Homem, ou o da ressurreição, Jesus sendo ressuscitado para
subir aos céus como o Filho do Homem, ou aquele da crucifixão em ligação com Za 12,10,
que une desgosto (kopsomai) e a visão (opsomai). Em última análise, a imagerie do Filho
do homem, segundo Perrín, pertence à apologética da Paixão.
10. PERRIN, Rediscovering, p. 158.
11. É verdade que os evangelhos atribuem a Jesus declarações sobre uma quantidade
limitada de tempo restante (Mc 9,1 ou 13,30). Para a exegese pós-bultmaniana isso é
produto da primeira apocaliptica cristã, que datava da época em que estava no auge a
espera de um fím imediato (PERRIN, 202).
274 TEX TOS. .TRADUZIDO.s

sempre apelar para essa interpretação do ensinamento de Jesus para melhor


captar o paradoxo da esperança 12.

CONTROVÉRSIA

o anúncio do Reino é narrado somente em relação às situações dos in-


terlocutores que enquadram as parábolas, as comparações escatológicas e os
provérbios escatológicos. Tomados por eles mesmos, esses provérbios, sozi-
nhos, constituem os logia, cuja coleção deve ter circulado nas Igrejas antes de
serem colocados em algum quadro narrativo (escrito) como o evangelho de
Tomé permite verificar. Devemos a Dodd e a Jeremias, e também a Perrin, o
fato de terem restituído para nós as situações de crise, marcadas por desafios
e controvérsias, às quais as parábolas replicam sob a forma de enigmas". Essas
réplicas são um desafio lançado ao interlocutor - a parábola pertence pois a
alguma coisa como uma viva troca de palavras, próxima de uma altercação".

12. Nesse sentido Perrin fala de uma "ambigüidade de referência" (Rediscovering, 202).
Comparar com W. G. KÜMMEL, "Die Naherwartung in der Verkündigung Jesus", em Zeit
und Geschichte, Dankesgabe an RudolfBultmann zum 80. Geburtstag, ed. E. DINKLER, Tü-
bingen.J, C. B.Mohr (Paul Siebeck), 1964, 31-46 (também em Heilsgeschehen und Geschichte:
Gesammehe Auisãtze, 1933-1964, éd. par E. GRAsSER, Otto et Adolf FRITz, Marburg, Elwert,
1965,457-470; "Eschatologícal Expectation in the Proc1amation of Jesus", em The Future
of Our Religions Past, ed. James M. ROBINSON, New York, Harper and Row, 1971, 29-48;
et Promise and Fulfillment, Studies in Biblical Theology 23, London, SCM Press, 1957 (pu-
blicado originalmente como: Verheissungund ErfüUung [Zürich, Zwingli Verlag, 1953]). Ver
também E. KASEMANN, "The problem of the Historical Jesus". Essays on New Testament
Themes, Studiesof Biblical Theology 41 (1964) reimpresso em Philadelphia Fortress Press,
1982, 15-4 7 (discutido parcialmente em pormenores abaixo). Kâsemann é de opinião que
Jesus percebeu o início da vinda do Reino nos confrontos que situam a humanidade diante
da situação atual e diante de sua responsabilidade em tomar uma decisão Nesse sentido, o
Reino não é tanto próximo quanto a ponto de se aproximar.
13. Uma vez mais, as parábolas são consideradas aqui não por seus conteúdos indivi-
duais, enquanto ficções narrativas autônomas, mas como discurso dirigido a alguém, como
proc1amante antes que proclamado; ou em outros termos, como atos de palavra. Amos
Wilder, preocupado em ficar tão perto quanto possível da "nova enunciação" da "irrupção
da palavra" começa sua pesquisa sobre a retórica cristã primitiva pelo diálogo antes de
considerar a narrativa ou a parábola. Ver A. WILDER, The Language of the Gospel: Early
Christian rhetoric, New York, Harper and Row, 1964, capo 1: "The new utterance" (O novo
enunciado): "A palavra oral é onde tudo começou" (p. 48). Jesus nada escreveu, ele falou.
E o diálogo é a primeira matéria de suas palavras. Tem sempre um interlocutor - Pedro,
os discípulos, a multidão, Jerusalém - e a tomada da palavra chama sempre uma resposta.
14. Comparar Wilder: O evangelho é sempre mais do que uma instrução, é um desafio
rigorosamente pessoal (p. 61). Também Norrnan Perrin coloca todo um segmento do ensi-
rr.u t: DA PROClAMAÇÃO À. NARRATIVA 275

A fim de encontrar essa dimensão das parábolas como controvérsias,


era necessário cavar por baixo das interpretações parenéticas e alegorizantes
com as quais os escritores do Novo Testamento amalgamaram as palavras de
Jesus. Ao fim desse procedimento, ficou claro que cada parábola tinha sido
pronunciada em uma situação única. Não só dizia algo sobre a irrupção do
Reino que começa aqui e agora, como eu disse acima, mas revelava a situa-
ção de crise na qual essa irrupção criava uma nova situação, caracterizada
pelo desafio e o confronto em que o interlocutor estava situado. Nesse sen-
tido, o Reino só vem "em parábolas" para aquele que em retorno responde à
situação de confronto que a pregação cria. Assim as parábolas devem ser
vistas como enunciações que justificam, defendem, atacam e provocam. São
armas de combate e requerem uma réplica imediata".
Essa interpretação das parábolas como um desafio, uma justificação,
uma provocação permite-nos captar um dos traços gerais de todo o ministé-
rio de Jesus, tanto mais que as palavras assim colocadas em uma situação de
crise, aparecem por isso como ações. "Como fazer as coisas com palavras?",
perguntava 1. L. Austín". Sim, as palavras de Jesus fazem alguma coisa. Criam

namento de Jesus sob o titulo: "Recognition and Response" (pp. 109-153). Uma pessoa
reconhece o sentido de sua existência e responde a esse reconhecimento. Portanto, antes
de engendrar uma ética no sentido de um modelo de conduta, as parábolas constituem
"um urgente apelo a reconhecer o desafio da proclamação e a responder-lhe" (p. 109).
15. Assim, na parábola dos trabalhadores enviados à vinha (Mt 20,1-16), o anúncio da
louca generosidade do Senhor, ocultado sob o paradoxo de um generoso capricho, nos
interroga: "Sois ciumentos porque sou bom?" A mesma justificação e intenção provocado-
ra pode ser percebida na parábola da ovelha perdida (Lc 15,4-7; Mt 18,12-14): tal é a
alegria de Deus quando somente um "desses pequenos" é salvo. "E vós, que dizeis?" Na
parábola do grande banquete (Mt 22,1-10; Lc 14,16-24) a "ponta" diz respeito à relação
entre convidados e o anfitrião: sugere que ninguém é convidado de direito. Cada pessoa
deve responder a um convite que é lançado como um desafio. As maldições são lançadas
sobre os que foram convidados primeiro e se recusaram a vir. De outro lado o intendente
desonesto oferece o exemplo chocante de um malandro que, confrontado com uma crise,
sabe o que responder (Lc 16,1-8). A ironia é forte e, de maneira totalmente evidente,
concebida de maneira provocadora. A parábola dos vinhateiros contratados na última hora
não é menos irritante. Deus admite alguns na base de seus méritos e outros na base do
perdão (Mt 20,11-16). Aqui, de novo, Jesus responde a um ataque lançado contra a sua
conduta por uma parábola que diz o que Deus faz. Nas parábolas, cada elemento é um
desafio: a alegria da entrada dos pagãos no Reino na hora escatológica (a parábola do
grande banquete); o horror constituído pela recusa daqueles a que o Reino chegará como
uma catástrofe, imprevista como um ladrão (Mt 24,42-44), devastadora como a tempes-
tade (Mt 7,26-27); a paciência na espera do momento da triagem (a parábola da rede do
pescador) (Mt 13,47-50); a confiança em que o pobre ouvirá a boa nova (Lc 14,7-21;
16,19-31); a espera de que a vinha seja dada a outros (Mc 12,9), e assim por diante.
16.1. L. AUSTIN, How to Do Things wíthWards, Londres, Oxford University Press, 1962.
276 ...... IEXTOS.IRAD.UZI.D.05

a crise que leva da proclamação à história do sofrimento. As controvérsias


fornecem a ocasião da mediação que leva de uma a outra.
Já dissemos que Jesus deve ter interpretado seus exorcismos como an-
tecipação da chegada do Reino. Isso implica que a doença e o sofrimento
eram compreendidos, nos termos de Perrin, como "situações de conflito es-
catológico" que farão descer a crise dos últimos dias do alto dos céus, onde
os exércitos do bem e do mal já se enfrentam mutuamente, para situações
humanas essencialmente caracterizadas pelo conflito.
Porém, mais do que qualquer outra coisa, foi a associação de Jesus com
os "publicanos e pecadores" que deve ter sido percebida como o principal
desafio de seu ministério. Perrin caracteriza esse comportamento de Jesus
como uma "parábola em ato", a da "comunidade de mesa do Reino de Deus"
(Mt 11,16-19; 18-11). O Reino é anunciado na medida em que o próprio
Jesus interpreta seu companheirismo de então como antecipando o banque-
te escatológico da grande tradição, comum tanto aos profetas quanto aos
apocalípticos. Portanto, ao mesmo tempo, esse anúncio é um desafio. A par-
tilha da mesa, por Jesus, com os "publicanos e pecadores" deve ter sido per-
cebida como a principal afronta contra as distinções fundamentais que esta-
vam na base das estruturas sociais e religiosas da comunidade judaica. En-
contramos um eco disso em Mt 11,19: "O Filho do Homem veio: come e
bebe, e dizem: 'É um guloso e um beberrão, um amigo das publicanos e dos
pecadores!' Essa acusação põe claramente em relação a maleabilidade de Je-
sus a respeito do jejum (em contraste com os apocalípticos em tomo de João
Batista) e sua confraternização com gente fora da lei. Para Jesus, o Reino está
presente onde quer que uma nova relação for estabelecida pela aceitação do
desafio. Para seus adversários, a comunidade de mesa selou seu destino.
Daí vem, na minha opinião, a segunda função atribuída à redescoberta
do ensinamento e do ministério de Jesus, a saber, o esboço de um paradigma
para o estado de discípulo, Esse paradigma dá origem a uma certa perplexi-
dade, até mesmo ao medo e ao espanto. O anúncio festivo muda-se em um
arresto que leva à morte daquele que o proclamou. A salvação está entre vós,
diz ele. O tempo das núpcias chegou. Contudo, captar a significação disso
exige superar uma montanha de hostilidades. Significa compreender que pre-
gar a alegria de Deus só pode produzir o escândalo, a cólera, a violência.

RUMO À HISTÓRIA DO SOFRIMENTO

Assim a proclamação produz o confronto que, por sua vez, leva à cruz.
Não temos aqui senão uma intriga já articulada, pelo menos uma cadeia de
TLll;.DkPROCLAMAÇÃOÀ..NARRATIVA... 277

ocasiões que oferecem pontos de ancoragem para uma eventual narração?


Formando uma cadeia dessa maneira, essas ocasiões não sugerem ao mesmo
tempo o estilo em que a história deve ser narrada? Em contraste com a
história oficial, que celebra as grandes façanhas, ou os soberanos e senhores,
esta será uma história de sofrimento. Será a profecia do servo sofredor pos-
ta em narrativa.
Isso está também significado nas parábolas. Já nos referimos aos maus
vinhateiros. Mais impressionante é o fato de que essa parábola enigmática
em Mt 11,12 toma aqui sua plena dimensão trágica: "Desde o tempo de
João Batista até ao presente, o Reino dos céus sofreu a violência, e os violen-
tos buscam a apoderar-se dele".
Como sublinha Norrnan Perrin, o sinal do exorcismo está Invertido".
Não é mais o reino de Satã que é maltratado pelo de Deus. Outros exegetas
dizem o mesmo: "O Reino dos céus sofre a violência e é entravado pelos
violentos". Já traçamos a linha dessa violência desde a proclamação festiva
até o desafio, depois à recusa. Essa linha passa pela comunidade de mesa de
Jesus com "os publicanos e os pecadores?", Tal é o núcleo trágico que liga a
pregação do Reino de Deus e a cruz e que, sem isso, ficaria ininteligível.
Com o tema de uma história do sofrimento, alcançamos assim, o ponto
em que a necessidade da passagem da proclamação à narrativa constitui uma
exigência interna. O que é requerido, de fato, é uma narrativa que não seja
uma narrativa de ação, mas uma narrativa de paixão.
Em conclusão, gostaria de apoiar as conclusões de Norman Perrin nas
de Ulrich Simon. No magnífico livrinho intitulado Story anf Faith, Ulrich
Simon inclui um importante capítulo, intitulado "The Story of Stories'?",
Antes de considerar a diversidade dos evangelhos, ele detém-se também para

17. Perrin, Rediscouering, 77.


18. Seguindo uma sugestão de Nils A. DAHAL, The problem of the historical Jesus, em
C. E. BRAATEN, R.A. HARRlSVILLE, Kerygma and history, NewYork,Agingdon, 1962, 138-
171, que liga a comunidade de mesa à cruz, Perrin escreve: "Um tal ato, da parte de Jesus,
é necessário, pretendemos nós, para dar sentido ao fato da cruz" (Rediscovering, p. 103); e
sugere que o companheirismo de Jesus foi prolongado pelas refeições de comunidade dos
primeiros cristãos: "É o vigor da memória desse companheirismo pré-pascal que forneceu
o modelo para o desenvolvimento desse notável sentido da comunhão entre os cristãos e
o Senhor ressuscitado" (p. 107). Se essa continuidade pudesse ser atestada, teriamos a
confirmação de uma prática regular de Jesus em seu ministério e, por conseguinte, a con-
firmação do papel decisivo que essa prática desempenhou no antagonismo que suscitou.
19. U. SIMON, Storyand Faith, London, SPCK, 1975, 53-58, obra da qual provêm todas
as citações dos parágrafos posteriores.
278 ___.. _. TEXIO.LTRADUZmOS

meditar na unicidade de uma história que termina em uma narrativa da


Paixão. Essa história, diz ele, faz detonar o mundo das narrativas heróicas e
fantásticas. Nem mesmo a lamentável história da miséria secular da huma-
nidade produziu tal narrativa. "O fato é que o conjunto da narrativa da Pai-
xão encontra-se em violento contraste com os relatos hebraicos e não
hebraicos de mortes heróicas e de martírios ... O louvor do herói, como o
apiedar-se dele, estão ambos igualmente excluídos da narrativa". Nesse sen-
tido, a história a contar não pertence ao gênero trágico: ''A inevitabilidade da
morte de Jesus pode parecer originar-se da tragédia, mas não o tom da his-
tória. Há um demais de morte factual em sua substância". Em seguida, que
tipo de reação se supunha que a história original ia produzir? "A resposta à
nossa questão não é difícil: o primeiro objetivo do memorial é suscitar medo
e indignação". Ora, essa narrativa é a história de sofrimento porque assim o
exige a afirmação de que "o salário do pecado é a morte". "A narrativa da
Paixão", continua Simon, "vê a morte como a resposta final à culpabilidade.
Jesus entregue, preso, negado, torturado, acusado condenado, executado, aban-
donado, torna-se através da narrativa a norma de nosso triste destino".
Sem dúvida, a ressurreição dá um horizonte radicalmente diferente a
essa morte. Mas não faz parte da narrativa. É o ponto de vista a partir do
qual a história é contada e, antes de ser contada, exigida. Essa história termi-
na verdadeiramente com a morte, porque sua significação própria serve de
acreditação, atesta que não há nunca um relato da morte de Jesus que seja
situada fora dessa significação, a saber: "Ele morreu por nossos pecados". "Essa
significação tinha modelado os fatos bem antes que os evangelhos fossem
escritos". Simon pode então escrever que "a narrativa da paixão é pois inse-
parável de uma história longa e complexa, que não é dita, mas assumida".
Em um sentido um tanto semelhante falei de uma exigência de narra-
ção interna à própria proclamação. A história do sofrimento é "uma história
que não é dita, mas assumida".
Essa ruptura em direção a uma história do sofrimento atesta mais do
que qualquer outra coisa que a redescoberta do ministério de Jesus não é vã
nem inútil. De fato, algo no querigma exigiu modelar "o material no seio de
uma tradição transmitida, remontando aquém da morte de Jesus para des-
crever sua vida".
TI 12

o texto "sagrado' e a comunidade'

I nteresso-me pela questão da resposta dada pela comunidade cujo texto


foi "publicado em edição critica". Bem entendido, quando isso foi feito
não é mais um texto sagrado, porque não é mais o texto que a comunidade
sempre considerou como sagrado: é um texto de estudo acadêmico. Assim,
em certo sentido, pode não existir algo como a edição crítica de textos sa-
grados. É verdade que na história antiga da Igreja havia certo número de
comunidades, cada uma com seu próprio texto sagrado, e a Igreja tentou
reuni-los para produzir um só texto sagrado. Assim, existe uma história do
cânon, e contudo "o" texto sagrado não existe. Mas o ato crítico de que
tratamos é totalmente diferente dessa reunião de textos, da versão copta e
assim por diante, quando a comunidade constituiu seu cânon. O tipo de
crítica bíblica que começou nos séculos XIX e XX era de uma natureza
completamente diferente, porque agora podemos ter textos que não são de
nenhuma comunidade, exceto talvez da comunidade do mundo acadêmico.
No caso do cristianismo, talvez não existam textos sagrados, porque
não é o texto que é sagrado, mas Aquele de quem se fala. Por exemplo, não
há privilégio para a língua em que o texto foi escrito pela primeira vez: não
há nenhuma importância em lê-lo em grego, hebraico ou aramaico etc. Aí já

1. Publicado originalmente como "Épílogue", em W. D. ü'FLAHERTY (ed.), The critical


study of sacred texts, Berkeley, 1979, 271-276. Foi ainda reeditado, agora sob o titulo "The
'Sacred' text and the cornmunity", em M. I. WALLACE (ed.), Figuring the sacred,
Minneapolis, 1995,68-72.
280 .. ........ _ __ __ _...TEXID.S lRAOUZlD.05

há algo que permite o ato crítico: o ato crítico não é proibido pela natureza
do texto, porque não é um texto sagrado no sentido em que o Alcorão é
sagrado (pois um muçulmano diria que ler o Alcorão em inglês não é ler o
Alcorão: tem de ser lido em árabe). Mas para o cristianismo, a tradução é
totalmente possível, porque a tradução dos Setenta é uma espécie de dessa-
cralização da língua original, do momento em que se admitiu que a Bíblia
podia ser posta em grego. E uma certa atividade crítica estava implicada
nesse ato de tradução. Para seu tempo, Jerônimo era um espírito crítico.
Dessa maneira, a natureza do texto, ao menos no cristianismo, não é
completamente refratária à abordagem crítica. Há também o fato de que
temos quatro evangelhos: poderíamos imaginar uma Igreja que dissesse: "Há
um só evangelho". Mas no cristianismo todas as discordâncias eram preser-
vadas e uma certa eqüivocidade do texto era admitida desde o começo. Nin-
guém disse quantos dias durou a Paixão, ninguém disse quantos dias se pas-
saram entre a crucifixão e a ressurreição, e assim por diante. Talvez a noção
opaca do sagrado seja arruinada por essa atividade crítica; é realmente o
conceito de "sagrado" que muda. O texto torna-se fundamental, mas não é
mais sagrado no sentido de não se ter o direito de tocar ou de modificar.
Mas o que faz que a Bíblia seja sagrada nesse sentido? E para quem ela é
sagrada? Porque nem todos os textos religiosos são sagrados no mesmo sen-
tido. Temos de modular a noção de sagrado, não só em função das diferentes
religiões, mas ainda no curso da história dessas religiões.
Talvez a noção de textos que têm autoridade seja diferente da dos tex-
tos sagrados, porque "que tem autoridade" significa que há uma diferencia-
ção entre o texto que constitui o ato fundador da comunidade e os que são
excluídos dessa função fundadora. Mesmo se têm uma espécie de parentes-
co, podem ser excluídos dessa maneira: o evangelho de Tomé é muito próxi-
mo, mas não pertence à história da maneira como a comunidade se inter-
pretou a si mesma nos termos desses textos. É o que eu chamaria de texto
que tem autoridade, mas não necessariamente de texto sagrado, porque há
um ato hermenêutico em se reconhecer como fundado por um texto e em
ler esse texto como fundador. Há uma reciprocidade entre a leitura e o auto-
reconhecimento existente da identidade da comunidade. Há um tipo de re-
ciprocidade entre a comunidade e o texto. Aqui vem ao espírito a distinção
que faz Agostinho no De christiana doctrina entre signum e res: estamos cons-
cientes de que o signum não é a res, e assim uma história de abordagens
críticas do signum tomou-se possível. Questiono se isso implica de fato uma
certa distância entre o texto e sua realidade, da qual ele trata.
IL.12:_QTUTQ.-".sAG.RADOII...LA.. COMUNlDADL.____.

É realmente importante dizer se a atividade critica é aceita pela comu-


nidade que aprende a ler seu texto de outra maneira do que como um re-
sultado. Que sucede com o leitor e com a comunidade quando a atividade
crítica é aplicada ao texto? Poderíamos dizer que algo de arbitrário e de
inutilmente coercitivo é afastado. Penso que três acontecimentos de impor-
tância ocorreram no cristianismo, que eram claramente distorções da situa-
ção original. Primeiro, o texto foi engessado e o processo de interpretação
estacionado por causa do combate contra as heresias: penso que isso foi
uma atividade muito destrutiva. Esse ímpeto de ortodoxia anti-herética pode
ter começado pela tendência antignóstica da grande Igreja, depois prosse-
guiu pelo movimento antimaniqueu e assim por diante. Depois, na Idade
Média, uma interpretação de autoridade foi enxertada no texto: uma única
filosofia interpretava o texto. Mas a seguir, os protestantes agravaram as coi-
sas de tal sorte que, como o texto era interpretado per se, tomou-se sagrado
e como oposto ao conjunto da tradição. O texto foi então engessado, e se vê
o protestante carregando sua Bíblia, e sua Bíblia é imutável e se opõe

I
~
à tradição. Assim, o texto é engessado pela tradição, e é engessado contra a
tradição depois de ter sido engessado contra as heresias. Isso pode ser consi-
derado o terceiro acontecimento de importância. Em seguida, nós descons-
truimos essas adulterações progressivas, essas sedimentações, para voltar à
fluidez hermenêutica do período pré-canônico. O problema é saber se há
uma comunidade para assumir isso, ou se vai ficar unicamente uma espécie
de atividade acadêmica. É, pois, uma situação critica: isso matará a comuni-
dade ou a renovará? Ou, então, dir-se-á: "Vós não tendes nenhum direito de
tocar em nosso livro"?
A noção de sagrado toma-se totalmente contestável. Uma des-homo-
geneização tem dois efeitos, pois um texto sagrado tem dois contrários: ou-
tros textos sagrados e textos não sagrados. E as duas fronteiras são mais frouxas
hoje em dia; por exemplo, sabemos melhor que certos textos não se encon-
travam sempre no cânon, que outros podiam nele estar e não estiveram por
algum acidente histórico, e assim temos uma continuidade graduada em
muitos graus entre o profano e o sagrado, e não somente uma oposição ma-
ciça. E, de outro lado, nossa tradição é mais ambígua, mais complicada e
constatamos que as outras tradições são igualmente mais complexas e assim
existem mais imbricações mútuas. Trata-se de uma situação muito comple-
xa, em que não é fácil oríentar-se como indivíduo e como comunidade.
Há um ato que continua a preservar essa dupla linha de demarcação,
pelo menos no cristianismo: é o ato de pregação. Prega-se sobre textos canô-
282 TEXTOS TRADUZIDOS

nicos, não sobre textos profanos: a comunidade seria completamente muda-


da se fosse escolhido um texto de poeta moderno para se fazer um sermão,
ou se a homilia fosse sobre o Bhagavad Gítá na Igreja. Isso seria uma crise
da comunidade, porque sua própria identidade está ligada à identidade do
texto, enquanto distinto tanto dos textos não sagrados, como dos outros tex-
tos sagrados. Se essas duas linhas de fronteira viessem a desaparecer, então a
identidade da comunidade desapareceria também, e foi o que se produziu:
há mais casos intermediários entre a pertença à Igreja e a não pertença à
Igreja. Em certo sentido têm-se vários núcleos, mas não fronteiras: a comu-
nidade eclesial é uma espécie de séries de centros sem círculos.
A pregação é a re-interpretação permanente do texto que se considera
como fundando a comunidade: por conseguinte, dirigir-se a um outro texto
seria para a comunidade tomar uma decisão a respeito de sua identidade
social. Não digo que seja impossível, que isso nunca acontecerá, mas consti-
tuiria uma importante mudança na continuidade. Porque, na noção de identi-
dade tem-se a capacidade da comunidade de situar-se a si mesma como isto
e não aquilo, mas também como tendo este passado e não aquele. É um
reconhecimento de si no desenrolar da história.
Há uma forma de magistério no protestantismo que reside no poder
de excluir os textos não canônicos, mas ela funciona (ao contrário do magis-
tério católico) dizendo que o texto se interpreta a si mesmo: só se pode
criticar a Bíblia citando outro texto da Bíblia. Isso leva ao reinado dos teó-
logos. A Igreja católica não foi governada por teólogos como foi a Igreja
protestante: chamar-se luterano é algo muito estranho do ponto de vista
católico. Mas esse magistério protestante consolidou o texto e, em certo sen-
tido, é por isso que para os protestantes a Bíblia é mais sagrada e, finalmen-
te, mais fundamental.
No cristianismo há uma polaridade entre proclamação e manifestação,
que Mircea Eliade não reconhece em seu conceito homogêneo de manifes-
tação, epifania etc. Questiono se não há igualmente nas tradições hebraica e
cristã uma polaridade de outro tipo, uma polaridade carismática ligada à
linguagem. Para nós, a manifestação não é necessariamente ligada à lingua-
gem. O termo sagrado pertence à vertente da manifestação, não à vertente
da proclamação, porque muitas coisas podem ser sagradas sem ser um texto:
uma árvore pode ser sagrada, a água pode ser sagrada, e lemos em Mircea
Eliade que é o cosmos que é sagrado. E, portanto, se só a palavra pode me-
diar esse sagrado, é que ela medeia qualquer coisa; o sagrado não é da natu-
reza da palavra mas da natureza da aparência. A manifestação não é verbal
TL12:.0. TEXTO "SAGRADO" LA COMUNIDADE . 283

originariamente. Mas penso que há algo de específico nas tradições hebraica


e cristã, que dá uma espécie de preeminência à palavra. Tem-se a tradição
de que a palavra foi criada pela palavra. Na passagem da primeira à segunda
narrativa da criação, Deus não somente faz, mas diz. A noção de texto sagra-
do pôde ser estranha à tradição hebraica e pré-cristã. Aplicamos uma cate-
goria que pertence a essa sacralidade que é cósmica e que, em seguida, por
assim dizer, condensou-se em um livro, e que portanto muda sua função
pelo fato que se tornar fundadora sem ser sagrada. O que mostra Eliade é
que a polaridade sagrado/profano é absolutamente anterior a isso: esta água
é sagrada, mas aquela, não; esta árvore é, e não aquela.
Questiono se não pertence à natureza da proclamação ser sempre re-
conduzida do escrito ao oral: e é a função da pregação inverter a relação do
escrito ao oral. Nesse sentido, a pregação é mais fundamental para a tradi-
ção hebraica e cristã, em contraste com a escritura, por causa da natureza
do texto que deve ser reconvertido em palavra. Há, pois, uma certa dessa-
cralização do escrito, enquanto tal, pelo retorno à palavra falada. É o im-
pacto da fixação da liturgia, porque no cristianismo o coração da liturgia é
constituído pela eucaristia como uma forma de texto que conta a históría
da última ceia; e que se torna um texto sagrado porque funda um ato sagra-
do que é a eucaristía. Qual foi influência da eucaristia na sacralização do
texto? Com efeito, a palavra "sacrifício" utilizada nesse contexto refere-se .
ao ato sagrado.
Eu era bastante reticente quanto a utilizar a palavra "sagrado" em meu
ensaio sobre a revelação'. Tive de lutar muito duramente até dizer enfim
em que eu creio, o que eu penso quando me sirvo da palavra "revelação".
Mas até um certo ponto estou pronto a dizer que reconheço algo de revela-
dor que não está fixado em todo texto absoluto e imutável. Porque o pro-
cesso de revelação é um movimento permanente de abertura de alguma
coisa que está fechada, a manifestação de alguma coisa que estava oculta. A
revelação é um processo histórico, mas a noção de texto sagrado é algo anti-
histórico. Sinto-me aterrorizado por esta palavra: "sagrado".

2.Ver P. RICOEUR, "Toward a Hermeneutic ofthe Idea of Revelation", em L. S.MUDGE


(ed.), Essays on Biblical Interpretation, Filadélfia, 1980, 73-118; publicado em francês
com o título de La Révélation, Bruxelles, 1977, 15-54.
TI 13

Rumo a uma teologia narrativa:


sua necessidade, seus recursos,
suas dtücutoades'

M eu ensaio é consagrado principalmente às dificuldades que uma teolo-


gia narrativa está condenada a enfrentar. Mas eu não embarcaria em
uma tarefa aparentemente contrária ao fim procurado se não estivesse con-
vencido de que vale a pena reconstruir a teologia sobre uma base narrativa.

A NECESSIDADE DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA

Fundamentalmente, partilho de suas recusas e de suas suspeitas: a re-


cusa de uma teologia puramente especulatiua, que esvaziaria de seu discurso
toda referência às narrativas sobre Israel, Jesus e a Igreja primitiva; a recusa
de uma teologia de orientação moral, que só reteria os ensinamentos atem-
porais de um monoteísmo ético; além disso (e desses três pontos este é o
mais delicado), uma antipatia por uma teologia existencial indiferente à di-
mensão histórica, que estaria exclusivamente atenta à irrupção da palavra
no instante da decisão de fé. Aceito igualmente as afirmações que subenten-
dem essas recusas. Primeiro, o discurso teológico, por conceitual que possa e
deva ser, só pode elaborar o horizonte de significação implícito às narrações

1. Texto inédito em língua inglesa. Foi apresentado no Simpósio de Teologia narrativa,


na faculdade de Haverford em 1982. Publicado sob o titulo "De moeilijke weg naar een
narratieve theologie: Noodzaak, bronnen, problemen", em H. HÃRING, Meedenken met

l
Edward Schillebeeckx, Baam, H. Nielissen, 1983,80-92.
286 TEXT05TRADUZI DOS

e símbolos constitutivos das tradições judaica e cristã. Segundo, se o discur-


so teológico não consiste em extrair generalidades sem substância das narra-
ções relatadas pelas Escrituras, deve destacar a ínteligíbílídade imanente às
narrativas contadas, a partir de nossas próprias histórias e narrativas indivi-
duais e comunitárias. Finalmente, em contraste com uma teologia existen-
cial que exalta o instante da decisão, uma teologia narrativa leva em conta a
longa duração de uma história de muitos milênios, tal como está concentra-
da nos dois Testamentos.
A esse acordo geral com o projeto mesmo de uma teologia narrativa,
quero acrescentar uma afirmação introdutória mais específica, que dará uma
orientação ao conjunto deste ensaio. Na minha opinião, o projeto de uma
teologia narrativa não é idêntico ao de uma teologia da história - se enten-
demos por teologia da história uma tentativa de construir uma história uni-
versal no sentido hegeliano, sob a condução de uma "Heilsgeschichte" indo do
Gênesis ao Apocalipse, e pontuada por acontecimentos salvíficos tais como
o Êxodo e a Ressurreição. A propósito, defendo que "o eclipse da narrativa
bíblica", que Hans Frei descreve em seu livro magistral, aplica-se a um es-
quema de pensamento proveniente da confusão de uma teologia que leva
em conta a dimensão narrativa da fé bíblica e uma teologia da história mais
ou menos sofístícada'. Essa confusão apareceu muito cedo. De fato, a teolo-
gia narrativa atingiu os confins de nossa cultura como uma narração unidi-
mensional, grandiosa mas quebrada, na qual todas as variedades de discurso
encontram-se niveladas. As narrativas da criação, da culpa e dos patriarcas,
são aí tomados por narrativas tão autênticas como, digamos, a narrativa da
sucessão do trono de Davi ou a narrativa do encontro dramático de Jesus
com seus adversários. A narração bíblica que desmoronou foi, de fato, esse
relato uniformemente linear que se aproxima de uma história universal e
que rivalizava com as histórias universais novamente concebidas desde a época
da Renascença até Hegel',
Nesse sentido, não devíamos falar da "narração bíblica" mas, com Ulrich
Simon - na segunda parte de seu maravilhoso livro Story and Faith - do
"esquema cristão". Ê importante notar que esse esquema cristão tomou for-

2. Ver H. FREI, The Eclipse of Biblical Narrative: A Study in Eighteenth and Nineteenth
Century Hermeneutics, New Haven, Yale University Press, 1974.
3. Podemos questionar se a origem da reivindicação de universalidade da teologia nar-
rativa deve ser atribuída à composição javista ou à escatologia dos profetas ou ao movi-
mento apocalíptico ou ao primeiro esboço de uma história da salvação cristã em Lucas.
4. U. SIMON, Story and Faith in the Biblical Narrative, Londres, SPCK, 1975,81 s.
TI n:RUMOA UMA TEOLOGIA NARRATIVA 287

ma quando a criação narrativa já se havia interrompido: é tipicamente pós-


canônico. Esbarramos aqui em um fenômeno paradoxal, a saber, que o mes-
mo processo que preservou as narrações bíblicas que agora lemos, ao selecioná-
las, reuni-las e colocá-las sob o selo da autoridade, o mesmo processo que as
tomou inalteráveis, trans-históricas e capazes de receber reinterpretações sem
fim em contextos culturais sempre novos - esse mesmo processo velou e
dissimulou "a natureza multiforme" (Barr) das tradições, tanto do Antigo
como do Novo Testamento. Desde então, o "esquema cristão" pretende ser o
esquema cronológico universal da "história da salvação" na qual nós mesmos
estamos incluídos.
Além disso, esse "esquema cristão" tende a abolir as peripécias, perigos,
fracassos, rupturas e horrores da história na busca de uma visão de conjunto
tranqüilizante fornecida pelo esquema providencial dessa grandiosa narra-
ção. Finalmente, a concordância supera a discordância. Ao dizer isso não
pretendo silenciar sobre as ambigüidades ligadas a esse "esquema cristão", o
equilíbrio frágil entre a manifestação de Deus e a ocultação de Deus, entre
o governo divino e a responsabilidade humana, entre os acontecimentos cor-
porativos e as decisões individuais; em suma, entre a racionalidade de uma
concepção providencial do mundo e os paradoxos da historicidade da hu-
manidade. A concordância triunfante entre o começo e o fim não suprime,
mas intensifica a ativa discordância do meio. Contudo, a concordância pre-
valece visivelmente.
j A questão é, pois, saber se a pretensa narração bíblica não é uma redu-
ção culturalmente motivada da rica interação das qualidades temporais que

I
I,
~-
são apresentadas pelos diferentes gêneros literários contidos nas Escrituras
canônicas. Se esse diagnóstico é verdadeiro, uma das tarefas da teologia nar-
rativa seria libertar as narrativas bíblicas das coerções do esquema cristão, e
finalmente a rede multiforme das narrativas bíblicas do esquema cronológi-
co unívoco da história da salvação. Então a memória e a esperança seriam
libertadas da narração visível que esconde o que podemos chamar, com Johann
Baptist Metz, as "memórias perigosas" e as expectativas contestatárias que
juntas constituem a dialética não resolvida da memória e da esperanças.
Essa tarefa é tanto mais imperiosa agora que a época posterior às Lu-
zes mostrou inquietantes sintomas que convergem para o desaparecimento
da capacidade mesma de contar histórias e de ouvir histórias. A verdadeira

5.1. B. METI, "A Short Apology of Narrative", em I B. METZ, I-P. JOSSUA, Concilium

I
9: The Crisis 01Religious Language, New York, Herder and Herder, 1973,84-96.
288 . . TEXI05...TRADUZlD'OS

destruição de todo sentido autêntico da tradição e da autoridade, unida à


prevalência abusiva da vontade de dominar, de explorar e de manipular o
ambiente natural da humanidade - e por conseguinte dos próprios seres
humanos - corresponde a um crescimento do olvido, especialmente dos so-
frimentos passados pela humanidade, que é a causa última do desapareci-
mento da capacidade de contar histórias", Nesse sentido, o combate por um
"renascimento da narrativa", a que aspira Ulrich Simon - um renascimento
da narrativa em geral e não só da narrativa bíblica -, é, enquanto tal, uma
tarefa especificamente cristã.

OS RECURSOS DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA

Os principais recursos da teologia narrativa são as prodigiosas aquisi-


ções que podemos constatar no campo da narratologia. Essas aquisições po-
dem ser colocadas sob quatro rubricas:
1. Primeiro, encontramos na arte de tecer a intriga o paradigma de to-
dos os estratagemas literários empregados pelos narradores de maneira a obter
uma narrativa inteligível de uma série de acontecimentos ou peripécias ou,
reciprocamente, de modo a fazer que esses eventos ou peripécias entrem na
narrativa. Dessa maneira, o tecer da intriga junta traços tão heterogêneos
quanto circunstâncias, agentes, interações, conseqüências, meios e resultados
fortuitos. Ele fornece assim, aos elementos heterogêneos, o estatuto ambí-
guo de um todo concordante-discordante, para empregar uma das expres-
sões de Frank Kermode. Esse primeiro traço comporta um corolário impor-
tante referente à temporalidade própria à composição poética da narrativa.
Essa temporalidade mistura os dois componentes temporais: de um lado,
a pura sucessão abstrata e interminável que podemos chamar de peripécias
da narrativa, e que constitui a face episódica da narrativa; de outro lado, o
aspecto de integração,de culminação e de fechamento trazido pelo que Louis
o. Mink chama "o ato configuracional da narração". Esse ato consiste em
agrupar as peripécias da narrativa e criar a configuração de uma sucessão.
Esse traço tem a ver com a estrutura dupla do tempo humano. O tempo é
ao mesmo tempo o que passa e o que dura. A criação de um todo temporal
é precisamente o meio poético de mediação entre o tempo como passagem

6. "É como se alguma coisa que nos parecia inalienável, a mais segura entre nossas
posses, nos fosse retirada: a capacidade de trocar experiências" ('N. BENJAMIN, "The
Storyteller", em H. ARENDT (ed.), Illuminations, New York, Schocken Books, 1969,83.
TL13: ..RUMO.A.UMATEOLOG1A. NARRATIVA

e o tempo como duração. O que tentamos designar é a identidade temporal


do que dura no meio daquilo que passa.
2. O segundo campo de investigação aberto pela narratologia refere-se
ao estatuto epistemológico da inteiigibiiidade apresentado pelo ato configura-
cional do tecer da intriga. O que defendo aqui é que a inteligíbilidade nar-
rativa mostra mais afinidade com a sabedoria prática ou o julgamento moral
do que com a razão teórica. Essa tese comporta um importante corolário
sobre a relação entre a narratologia contemporânea e a inteligibilidade pró-
pria do pôr em intriga. Vejo a narratologia como a simulação da inteligência
narrativa por meio de um discurso de segunda ordem, pertencente ao mes-
mo grau de racionalidade que as outras ciências da linguagem.
Aristóteles foi o primeiro que sublinhou a capacidade da poesia de
"ensinar", de transmitir significações revestidas de uma certa forma de uni-
versalidade. O ato mesmo de configuração da intriga a toma típica e com-
preensível apesar da - ou devido à - singularidade de seus "heróis" desig-
nados por "nomes próprios". Essa tipificação da narrativa permite à poesia
ser aproximada dessa outra forma de íntelígíbílídade, a da ética, que Aristó-
teles chama phronêsis. A phronêsis nos diz que a felicidade é a coroação da
excelência na vida e na práxis, mas não nos diz por que caminhos esse estado
de fato pode ser levado a instalar-se. É a poesia que nos mostra como as
mudanças de fortuna - principalmente as reversões de fortuna em infortú-
nio - são alimentadas pela atividade prática efetiva. Mas ela o mostra sob o
modo hipotético da ficção. Contudo, é por nossa familiaridade com as formas
de tecer a intriga que aprendemos como ligar a excelência com a felicidade.
Esse parentesco entre a intelígibílidade narrativa e a phronêsis - en-
quanto oposta à theõria - sugere que as noções universais destacadas pelas
intrigas não são as do conhecimento teórico da ciência. São noções univer-
sais de uma ordem "inferior" adaptadas ao ato configuracional que opera na
composição poética.
3. O terceiro traço que uma teologia narrativa pode reter do estado
atual da discussão corrente no campo literário diz respeito ao papel da tradi-
ção, não só na transmissão, mas igualmente na recepção e na interpretação
das narrativas recebidas. Esse fenômeno de tradicionalidade é muito com-
plexo porque repousa na dialética maleável entre inovação e sedimentação.
É a sedimentação que atribuímos aos paradigmas que permite que uma ti-
pologia do tecer a intriga surja e se estabilize. Mas o fenômeno oposto da
inovação não é menos importante. Por quê? Porque os paradigmas gerados
por uma precedente inovação servem de guias para uma experimentação
290 ..... _UX.TOSIRAD.ULID05

ulterior, no campo narrativo. Nessa dialética entre inovação e sedimentação,


toda uma panóplia de soluções desenvolveu-se entre os dois pólos da repe-
tição servil e do desvio calculado, potencialmente através de todos os graus
da defonnação regulada.
4. O quarto traço que quero reter para nossa discussão ulterior da teo-
logia narrativa conceme à "significação de uma narração". Esse tipo de "signi-
ficação" não está confinada em um suposto interior do texto. Ela advém na
interseção entre o mundo do texto e o mundo dos leitores. É sobretudo na
recepção do texto pelos leitores que a capacidade da intriga de transfigurar a
experiência é atualizada.
Por mundo do texto, entendo o mundo desdobrado diante dele, por
assim dizer, como o horizonte da experiência possível no qual a obra des-
loca seus leitores. Por mundo do leitor, entendo o mundo efetivo em que
a ação real é desenvolvida no meio de uma "rede de relações", para empre-
gar uma expressão de Hannah Arendt em The Human Condition [A condi-
ção humana).
Para a critica literária, esse mundo da ação é um "exterior" do texto,
enquanto oposto ao "interior" do texto. Enquanto "exterior" do texto não
releva de seu modo de investigação. Mas o mundo "exterior" só é exterior
para um tratamento da linguagem que a põe como um conjunto de entida-
des fechado sobre si mesmo e cujas relações são todas imanentes. Mas é a
decisão metodológica, constitutiva da lingüística como ciência, tratar a lin-
guagem como um "interior" sem um "exterior" que toma impertinente toda
consideração desse "exterior". Para uma hermenêutica que não tem como
estabelecida essa separação não dialética entre o interior e o exterior do
texto, o problema é, antes, compreender como a linguagem continua a ope-
rar a mediação entre a humanidade e o mundo, entre os próprios seres hu-
manos e entre o ser humano individual e ele mesmo mesmo quando a fun-
ção poética, como sublinha Roman Jakobson, aumenta o fosso entre os sig-
nos e o mundo. Essa tríplice mediação de referencialidade (humanidade e
mundo), de comunicabilidade (ser humano e ser humano) e de compreen-
são de si (ser humano e ele mesmo) constitui o problema mais importante
de uma hermenêutica dos textos poéticos.
As narrações bíblicas podem ser vístas como mantendo um jogo com-
plexo de relações com as narrações em geral. No primeiro nível, elas ilus-
tram, de um modo que não é muito discordante, os principais traços co-
muns ao conjunto da família das narrações. A aplicação exitosa da narratolo-
gía às narrações bíblicas atesta essa continuidade entre narrações religiosas e
não-religiosas. Vou agora considerar esse ponto de acordo para apontar ou-
tras duas formas de relação que se tomam progressivamente embaraçosas.
Em um segundo nível, as narrações bíblicas intensificam alguns traços
por cima dos quais passamos na precedente caracterização das narrações em
geral. Essa intensificação é sempre coerente com o tratamento usual das nar-
rações na narratologia contemporânea. Por intensificação entendo o seguinte:
em certo sentido as narrações religiosas e, mais especificamente, as narra-
ções bíblicas, fazem de sua própria maneira o que todas as narrações fazem
- constituem a identidade da comunidade que conta e toma a contar a
narrativa, e a constituem em sua identidade narrativa.
Harald Weinrich não tem nenhuma dificuldade em nos lembrar que
Jesus contou e tomou a contar as narrativas, e que ele é uma pessoa a res-
peito da qual as narrativas são contadas e é o sujeito da atividade narrativa
pela qual as narrativas são contadas. No que se refere à Bíblia como um
todo, "os textos mais importantes, os que convêm melhor à religião, são nar-
>y. rativas". Isso determina o estatuto da tradição cristã. "Nós também nos tor-
namos parte de uma tradição ininterrupta de narrações de histórias. A cris-
tandade é uma comunidade de contadores de história (e também uma co-
munidade reunida à mesma mesa, acrescenta o autor, em termos que lem-
bram os de Norman Perrin, falando da comunidade de mesa de Jesus com
os publicanos e pecadores r.
Isso é particularmente verdadeiro quanto às narrativas de grande di-
mensão, que englobam narrativas fragmentárias. A obra do javista foi descri-
ta muitas vezes como a composição da grande narrativa indo da criação ao
estabelecimento na Terra Prometida. Além disso, a obra de Lucas, acrescen-
tando os Atos dos Apóstolos ao Evangelho, pode ser vista, segundo Hans
Conzelmann, como a fundação da Heilsgeschichte cristã, desenvolvendo-se
desde os profetas da antiga aliança, através de Jesus até à parusia, colocando
a Igreja "no meio do tempo". Isso é o começo do processo que, por um
endurecimento progressivo, levou a hipostasiar o "esquema cristão" de que
uma teologia narrativa pode ter de separar-se. Mas antes de produzir efeitos
potencialmente desastrosos, a narrativa englobante gera uma parceria, fa-
zendo convergir nossas histórias parciais com a narrativa englobante. Em
um belo artigo intitulado "My Story and 'The Story'", Robert Mac Afee Brown
mostra de quantas maneiras essa convergência se realiza, desde a etapa da

7. Harald WEINRICH, "NarrativeTheology", Concilium 9: TheCrísisofReligious Language,


ed. por 1. B. METZ e 1.-P. JOSSUA, New York, Herder and Herder 1973,45-56.
292 . ......................_....IEXTOS....IRADUZ!'oOS

relação de conflito que pode funcionar nos dois sentidos - a história da


libertação do êxodo contestando meu próprio estatuto enquanto semelhan-
te ao Faraó, ou a história de Auschwitz contestando a história da salvação
bíblica - até à etapa da reconciliação quando a narrativa é reatualizada na
celebração litúrgica. Então "a históría e nossa história tornam-se uma só e a
mesma história".
Dietrich Ritschl resume esse papel desempenhado pela narrativa en-
globante de produzir uma parceria descrevendo a própria parceria como a
convergência das narrativas (Zusammenfliessen von storiesi". Esse papel en-
contra seu eco na cristologia, na medida em que ela funda a comunidade
dos pecadores pela iniciativa do amor de Cristo, que assume o pecado do
mundo e, por conseguinte, inclui nossas histórias em sua história.
Mas a capacidade da narrativa bíblica de intensificar a função habitual
das narrativas pode ser percebida em um traço mais oculto da narrativa bí-
blica. Nós o chamamos de narrativa que engloba tudo. E tínhamos razão, na
medida em que ficávamos na superfície do texto e tínhamos por certo o
arranjo linear da grandiosa narração que se estendia do Gênesis ao Apoca-
lipse. Mas é ela uma narrativa no sentido de uma narrativa fechada que tem
um começo e um fim no tempo? Se é verdade que foi lida desse modo
depois que o cânon foi fechado, e que se tentou sem cessar aplicar uma
datação a essa exposição linear e cronológica de intervalos e de periodos
entre o começo e o fim, podemos duvidar que a narrativa englobante seja
homogênea às narrativas parciais. Ritschl reconhece esse caráter enigmático
da narrativa englobante chamando-a metanarrativa. Por esse termo entende
duas coisas: primeiro, não há a estrutura das narrativas fechadas sobre elas
mesmas que nós contamos porque é uma narrativa aberta e inacabada; se-
gundo, somente pode ser contada por intermédio das narrativas coletadas e
reunidas no interior de seu campo. Nesse sentido, ao lado das narrativas de
detalhe, é enquanto tal uma narrativa que não se pode contar. Há as narra-
tivas do Êxodo, da Paixão, e mesmo narrativas mais fragmentárias como as
de José ou da traição de Pedro. Mas a narrativa da parceria entre Deus e
Israel é, enquanto tal, não só aberta e inacabada, mas insondável e indizível.
Nesse ponto, o caráter da metanarrativa como o que não pode ser contado,

8. R. M. BROWN, "My Story and 'The Story'", Theology Today 32 (1975) 171.
9. D. RrrsCHL e H. o. JONES, "Story als Rohmaterial derTheologie", Theologísche Existenz
Heute 192, Munique, Christian Kaiser, 1976. Ver também H. o. JONES, "The concept of
Story and Theological Discours, Scottisch Joumal ofTheology 29 (1976) 415-433.
TT.13:.. RUMO.. A.UMA.TEOlOGJA...NARRATJVA.... ................................. 293

coincide com o tema teológico da inefabilidade de Deus. Ou melhor, a


inefabilidade do Nome é o mesmo que o caráter inesgotável da rnetanarra-
tiva. Essa estreita conexão é claramente afirmada no episódio da sarça ar-
dente que proclama ao mesmo tempo a retirada de Javé no incógnito do
"Eu sou o que sou" e a parceria de Javé junto à caminhada de Israel "Tam-
bém dirás aos israelitas: Javé, o Deus de vossos Pais, o Deus de Abraão, o
Deus de Isaac e o Deus de Jacó me enviou até vós" (Ex 3,14-15) 10.

A DIFICULDADE DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA

Tal é o sentido em que se pode dizer que as narrações bíblicas intensi-


ficam a qualidade narrativa da experiência. Mas há fortes razões para expri-
mir dúvidas sobre a continuidade entre as narrativas bíblicas e as narrativas
em geral. Mencionarei quatro delas.
Primeiro, essas narrações pertencem à classe das narrativas "sagradas"
enquanto opostas às narrativas "projanas'", Não é que façam uso de uma
linguagem diferente da linguagem de todos os dias: ao contrário, essas narra-
tivas enraízam o discurso teológico na linguagem ordinária. Não é sua lin-
guagem que é sagrada, mas sua função. Partamos do que acabamos de dizer
sobre a metanarrativa. Só falta acrescentar alguns traços decisivos de modo
a compreender a diferença entre narrativas sagradas e profanas. Primeiro,
essas narrativas são tradicionais no sentido em que o fato de terem sido no
passado narradas dessa maneira constitui uma razão para contá-las de novo.
Segundo, elas fazem autoridade, no sentido em que consistem em seleções e
coleções que separam os textos canônicos dos apócrifos. Terceiro, são litúrgi-
cas no sentido em que alcançam sua plena significação quando são reativadas
em um contexto cultuaI.
Em contraste, as narrativas profanas são obras de inovação que levan-
tam uma questão específica de autoridade. Não têm a autoridade institucio-
nal ao lado da que geram pelo fato de que são recebidas, aprovadas e postas

10. Essa nota exegética apóia-se no tratamento que Frank Kermode dá ao segredo no
evangelho de Marcos, e em sua afirmação geral de que as afirmações mais intrigantes são
as que dissimulam tanto quanto revelam. Há pois uma oculta afinidade entre a idéia de
que as metanarrações não podem ser ditas e a idéia de que as narrações engendram o
segredo. Ver F. KERMODE, The Genesis of Secrecy: On the lnterpretation of Narrative,
Cambrídge, Mass., Harvard University Press, 1979.
11. S. CRlTES, "The Narrative Quality ofExperience", Ioumal of AmericanAcademy of
Religion 39 (1971) 291-311.
294 . .....IEXTOS.. lRADUZlD.O.S

em circulação - donde sua caracterização de profanas, Uma vez mais essa


distinção já estava esboçada pela que foi estabelecida entre narrativas "fe-
chadas" e "abertas" ("não-fechadas" ou "não susceptíveis de serem ditas").
Mas o estado de consciência tal como aparece em cada classe de narrativas
diz algo mais. "Porque a narrativa sagrada não surge no seio de um mundo
consciente. Constitui a consciência mesma que projeta um horizonte com-
pleto do mundo e por conseguinte marca as intenções segundo as quais as
ações são projetadas nesse mundo?". Em outros termos, a narrativa sagrada
cria um mundo de consciência no qual o si que é orientado para ele, cria
por sua vez obras de arte sujeitas a mudança pela reflexão consciente.
O primeiro conjunto de observações refere-se, sem dúvida, ao funcio-
namento da narração bíblica nas sociedades em que as narrativas tradicio-
nais - que fazem autoridade e são reatualizadas liturgicamente - conser-
varam seu papel formativo. O que em nossa parte introdutória chamamos
"o eclipse da narração bíblica" diz respeito, entre outras coisas, a esse estatu-
to da narração bíblica como narrativa sagrada.
O segundo tipo de discordância entre as narrações bíblicas e as ordiná-
rias conceme à relação complexa entre narrativa e história nas narrações bí-
blicas. Defensores da teologia narrativa tentam descartar esse problema co-
locando simplesmente as narrações bíblicas entre aquelas para as quais a
questão da verdade factual não é pertinente. Mas essa posição, na aparência
puramente descritiva, é uma espécie de petição de princípio. Por exemplo,
Harald Weinrich, falando das narrativas contadas por Jesus (manifestamen-
te, suas parábolas), escreve: "Não há traço de um interesse histórico na ver-
dade da narrativa, no sentido da fórmula de Ranke - 'como isso é realmen-
te' -, nem na questão dos discípulos, nem nas respostas do Mestre". E o
mesmo autor continua: "Por essa razão, não posso evitar a suspeita de que a
questão da história em teologia pode ser uma falsa questão?".
A sugestão então seria substituir a verdade pela pertinência, no sentido
de verdade factual. E pertinência significaria capacidade de suscitar um cer-
to tipo de ação, de convidar os ouvintes a "imitar as ações da narrativa".
Mas o uso prático das narrativas bíblicas não substitui a indagação so-
bre a relação entre narrativa e história. É um traço indiscutível das narrati-

12. lbid., 298. Esse estado de consciência entre as narrativas sagradas e as profanas
explica por que Crites pode atribuir o papel de mediação à forma de consciência mesma
que faz a experiência e à narrativa inicial que a modela.
13. WEINRICH, "Narrative Theology", 50.
TL.13~.RUMo..A.UMATEO.LOGJA.NARRATJVA ... 295

vas fundamentais da Bíblia que elas são quase históricas, exceto as ficções
intencionais como as parábolas e talvez algumas narrativas do Antigo Tes-
tamento, Jonas e outros. O problema embaraçoso é que esse traço de quase-
historicidade, para aqueles que vivem na narrativa, para usar a expressão
acima empregada, ignora nossa distinção entre ficção e história. Não é fic-
ção porque não tem esse clima de invenção que Aristóteles atribui à escrita
poética. Não é história, pois o objetivo da história escrita em função da
evidência documental não é tampouco uma parte da intenção do escritor.
Assim, pois, o problema é somente nosso, precisamente como resultado de
uma crise produzida pelo caráter quase histórico das narrativas bíblicas.
Por essa razão encontramo-nos diante da quadratura do círculo: não
podemos nem contentar-nos com um conceito de narrativa que esvaziasse a
dialética da narrativa e da história, nem podemos utilizar um conceito de
história que não levasse em conta essa curva variável das relações entre nar-
rativa e história.
Um terceiro elemento se acrescenta à estranheza das narrações bíblicas
em suas relações com as histórias profanas ou mundanas. Trata-se, penso eu,
de um traço distintivo com o qual toda teologia narrativa deve confrontar-
se. Nenhuma narração bíblica funciona simplesmente como narração. Rece-
be não só sua significação, mas mesmo sua significação religiosa original, de
sua composição com outros modos de discurso. Sublinhei em outro lugar a
conjunção infrangível entre as narrações e as leis no seio da Torah l 4 • As leis
transformam as narrações em instrução, e as narrações transformam a lei em
dom. Da mesma maneira, somos também levados a reconhecer que a tradi-
ção hebraica foi impedida de tomar-se uma ideologia místifícadora devido à
sua relação dialética com a profecia. A profecia, de outra parte, revela no
seio das próprias narrações o potencial das promessas não cumpridas que
reorienta a narrativa do passado para o futuro: por outro lado, as narrações
fornecem à antecipação escatológica da era "nova" as imagens e modelos.
Esse uso tipológico das narrativas do passado com o fim de projetar o futu-
ro, dá às próprias narrações uma significação que é totalmente estranha à
arte de contar ordinária. Além do que, devemos levar em conta o impacto
profundo da literatura de sabedoria sobre as próprias narrações, impacto que
imprime sua marca de permanência dos escritos sapienciais. Essa transfígu-

14. P. RICOEUR, "Toward a Hermeneutíc of the Idea of Revelatíon", em L. S. MUOGE


[ed.], Essays on Biblical lnterpretatum, Phíladelphía, Fortress Press, 1980, 73-118 e Id.,
"Naming God" - Union Seminary Quarterly Review 34 (1979) 215-227.
296 ........... TEXIOSIRADUZmOS 1
ração das narrações pela sabedoria, unida ao uso tipológico das narrativas do
passado com o fim de antecipar a era por vir, coloca as narrações biblicas
fora da corrente da arte narrativa popular. Finalmente, a reatualização das
narrações no contexto cultual e sua reativação pelos salmos de louvor, de
lamentação e de penitência, completam o complexo entrelaçamento entre
os modos de discurso narrativos e não narrativos. A série completa dos mo-
dos pode portanto ser considerada como repartindo-se entre os dois pólos
da narração e do louvor".
Essa dialética entre expressões de fé narrativas e não-narrativas não está
enfraquecida nem simplificada nos escritos do Novo Testamento. Ao contrá-
rio, a "nova enunciação", para usar uma expressão de Amos Wilder, gera novas
polaridades como a do novo e do antigo, do "já" e do "ainda não", cujas
tensões dão às narrações do Novo Testamento um estilo especial. Essas ten-
sões tornam-se notáveis quando comparamos as narrações mínimas das ex-
pressões puramente querigmáticas da fé e as narrações desenvolvidas da tra-
dição sinóptica. Nessa tradição, a relação entre proclamação e narração pode
aparecer como uma retomada, no seio do Novo Testamento, da polaridade
veterotestamentária entre louvor e narração.
Essa complexa interação entre modos narrativos e não narrativos suge-
re que as narrações não recobrem toda a panóplia das estruturas temporais
que subtendem as narrações bíblicas. O tempo humano é configurado de
muitas maneiras, pelo jogo de trocas entre todos os modos temporais apre-
sentados por todas as expressões da fé bíblica. Uma teologia narrativa deve
também levar em conta essa inclusão do tempo narrativo no seio da rede
complexa das qualidades temporais correspondentes à gama completa das
expressões religiosas.
Essa vista de relance dos modos não-narrativos do discurso bíblico leva-
nos ao limiar da quarta questão, a mais critica - a saber, a transição do dis-
curso narrativo ao discurso explicitamente teológico. Em certo sentido, os modos
não-narrativos já fazem parte desse processo de mediação: as leis, as profe-
cias, os ditos sapienciais, os hinos, contribuindo para a plena significação das

15. RITSCHL, em "Story als Rohmateríal" distingue entre berichtende Sprache (relatório)
e anredende Sprache (interpelação) e sublinha a correspondência entre essa polaridade
geral e a da narrativa e do louvor (ao qual acrescenta a doxologia). Mas a narrativa em si,
na medida em que não é simplesmente do tipo informativo-descritivq mas cria, de fato,
história e realidade, passa a ser um discurso dirigido. Em conseqüência, na medida em que
a narrativa for a mim dirigida, a identidade narrativa não é somente uma identidade "ex-
pressada" mas também "dirigida".
TL13:RUMO A UMA TEOLOGIA NARRATIVA 297

narrações bíblicas, inauguram a transferência do simples ato narrativo para


captação do significado durável das próprias narrativas. Mas, ao indagar as
condições da transferência, devemos reconhecer que algo ainda falta nesse
processo em curso, i.é., o reconhecimento do princípio da significação mesma.
O problema já estava aparente na obra que pode ser considerada como
o primeiro ensaio em vista de uma teologia narrativa: aludo à obra de H.
Richard Niebuhr, The Meaning of Revelation", O autor desse livro, que é tão
válido hoje como era na época de sua publicação, não fala de teologia narra-
tiva, mas de fé "histórica", ou de "revelação em nossa história". É esse con-
ceito mesmo que suscita a questão que estamos abordando. Como o sentido
do relato narrado pode ser transferido ao relato de nossa vida? Uma questão
inteligente é levantada, que o autor põe em termos emprestados de
Whitehead: ''A religião racional - diz o autor de Religion in the Making [A
religião em ação] - apela para a intuição direta de ocasiões particulares, e
para o poder de elucidação de seus conceitos para todas as ocasiões".
Niebuhr continua e assume como sua essa referência à conceptualidade
da fé cristã: ''A revelação significa para nós essa parte de nossa história ante-
rior que ilumina o resto da história e que é, ela mesma, inteligível. A reve-
lação significa esse acontecimento inteligível que torna todos os outros acon-
tecimentos íntelígíveís'":
Com o reconhecimento dessa dimensão de intelígíbílídade passamos
da "história de nossa vida" para "as razões do coração". Essa passagem, infe-
lizmente, levanta mais questões do que resolve, na medida em que procede
de imagens paradigmáticas puramente narrativas (as "razões do coração").
Não é que levar em conta a imaginação não seja apropriado. Ao contrário,
Niebuhr dá um passo decisivo ao reconhecer a unidade profunda da razão e
da imaginação na razão prática e, portanto, localizando essa ação comum da
razão e da imaginação na esfera das disposições do sujeito (dor e prazer,
alegria e preocupação, cólera e compaixão). A imaginação desempenha aqui
o papel de intérprete: "Nenhuma dessas disposições fica sem interpretação?".
Essa súbita introdução da imaginação no curso de uma análise consa-
grada à narração, oferece-nos o indício decisivo, ou ao menos o justo reco-

16. H. R. NIEBUHR, TheMeaning of Revelation, New York, MacmilIan, 1941.


17. Ibíd., 68-69.
18. lbid., 67. Isso explica que a fé é, em larga medida, um combate contra as "imagi-
nações demoníacas do coração" evocadas no Gênesis, a saber, as imaginações "resultantes
de um conflito perpétuo no empobrecimento e na destruição dos sujeitos, ao mesmo
tempo enquanto agentes e pacientes".
298 TEXT.05TRADUZJDOS 1i
nhecimento da dificuldade contida aqui, se não a justa solução. O desliza-
1
mento de um vocabulário narrativo para um vocabulário imaginoso ajuda-
nos a levantar a questão do caráter paradigmático da imagem em si e, por
implicação, da narrativa que suscitou a imagem. A questão está implicada
na afirmação seguinte: "Por revelação em nossa história queremos pois dizer
essa ocasião especial que nos fornece uma imagem por meio da qual todas
as ocasiões da vida pessoal e comum tornam-se inteligíveis".
Niebuhr continua, afirmando que a inteligibilidade própria a tal tipo
de "imagem" difere "dos esquemas conceituais da razão do observador": não
é outra coisa senão a tarefa de tornar o passado inteligível, de interpretar
nosso presente segundo a analogia da vida e da morte de Cristo, e descobrir
as potencialidades de nosso futuro. Em outros termos, a revelação "fornece à
razão prática um ponto de partida para a interpretação da história passada,
presente e futura":".
A questão é saber se as oposições demasiado simples entre as "razões
do coração" e os "esquemas conceituais da razão do observador" não dissi-
mulam as condições de ínteligibilídade do processo prático de interpretação
aplicada ao passado, ao presente e ao futuro. Essa busca de inteligibilidade
pode parecer inútil às preocupações pastorais (embora essa concessão possa
ser contestada pela dignidade da própria ação pastoral) mas não pode ser
eludida no pensamento teológico. Quanto a isso, estou inteiramente de acordo
com a forte afirmação de Dietrich Ritschl sobre o dever conceitual da teo-
logia, que define pelas tarefas seguintes: uma tarefa de clarificação (em vista
da comunicação); uma tarefa de coerência (em vista tanto da étíca quanto
da lógica); uma tarefa de reflexão sobre os limites de flexibilidade das cren-
ças tradicionais (em relação às novas formulações e articulações modernas; e
uma tarefa de estimulação (em vista de novas concepções e de novas desco-
bertas). Somente a última dessas tarefas pode fundamentar-se em um puro
"ré-contar". As outras três exigem resumos, proposições reguladoras e mo-
delos sistemáticos.
Que esse discurso de segunda ordem tenha suas raízes no discurso de
primeira ordem não pode ser recusado. O caráter cumulativo das narrações
bíblicas [juntamente com o uso da tipologia na interpretação da história)
destaca um modelo, um estilo de coerência narrativa que prepara o caminho
para sumários que escolhem as fórmulas de confissão da fé e as doxologias
(como o credo do Êxodo ou o credo da Ressurreição). Essas fórmulas con-
I

19. Ibid., 80, 81, 97.

j
TL 13: RUMO A UMA. TEOLOGIA. NARRATIVA 299

fessionais, por sua vez, são regidas por proposições reguladoras que presi-
dem a seleção e a coleção dos documentos narrativos, prescritivos, proféti-
cos, sapienciais e hinicos. Não é improvável que a sabedoria seja o fator mais
decisivo na elaboração de tais proposições reguladoras. Isso significaria, con-
siderando a idade antiga da sabedoria, que a narração bíblica nunca esteve
privada de alguns princípios reguladores da interpretação da obra na narra-
ção - em suma, que o narrativo nunca existiu sem um pensamento teológi-
co embrionário, exatamente como esse jamais existiu sem o seu pólo corres-
pondente, o louvor. O louvor, a doxologia e as proposições reguladoras cons-
tituem uma série progressiva donde emerge a teologia. Por conseguinte, não
podemos acentuar nem a descontinuidade entre o puro "re-contar" e o pen-
samento teológico, nem a continuidade assegurada por fontes de mediação
desde o prescritivo até ao hínico, e pelos sumários confessionais e as doxolo-
gias enxertadas principalmente sobre a expressão sapiencial e hínica da fé.
Mas a questão da origem dos conceitos reguladores permanece aberta".

20. Compreendo, mesmo se não assumo sem reservas, a conclusão negativa de Ritschl:
''A expressão de teologia narrativa, estritamente falando, é designação falsa por trás da qual
se oculta uma disposição legítima ... As narrativas, em sua forma lingüistica típica da
narração, não são as formas de expressão, mas o material bruto da teologia". ("Story aIs
Rohmaterial", 41).
Referências bibliográficas
rél'
,:,

Principais escritos de Paul Ricoeur


em hermenêutica bíblica

U ma bibliografia completa dos escritos de Paul Ricoeur encontra-se na


obra de D. V ANSINA, Paul Ricoeur. Bibliographie sistématique de ses écrits
e despublications consacrées à sa pensée (1935-1984),Louvaín-la-Neuve, 1985,
seguida do artigo do mesmo autor: Biblíographíe de Paul Ricoeur. Complé-
ments [jusqu'en 1990), Revue philosophique de Louvain 89 (1991), 243-288.
Tudo foi reeditado, em síntese, ainda na contribuição de VANSINA, Biblío-
graphy of Paul Ricoeur. A primary and secondary systematic bibliography;
em L. E. HAHN, The philosophy of Paul Ricoeur (The Library of Living Phílo-
sopher, XXII), Chicago-La Salle, 1995, 605-815 e em sua mais recente Bi-
bliographie primaire et secondaire de Paul Ricoeur (1935-2000), Louvaín-la-
Neuve, 2000. As contribuições precedidas de asterisco (*) têm um alcance
diretamente bíblico.

LIVROS, CURSOS (CLASSIFICADOS POR ORDEM CRONOLÓGICA)

Com DUFRENNE, M. Karl Jaspers et la philosophie de l'existence (Esprit-La condition


humaine). Paris, Seuil, 1947.
Philosophie de Iavolonté. Le Volontaire et l'lnvolontaire [T. I]. Paris, Aubier, 1950;
21956.
Histoire et vérité. Paris, Seuil, 1955; 21964; 31967.
Philosophie de la volonté. Finitude et culpabilité [T. Il], L' Homme faillible [vol. 1);
"La Symbolique du mal [vol. 2). Paris, Aubier, 1960.
De L'interprétation. Essai sur Freud [L'ordre philosophique}. Paris, Seuil, 1965.
304 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁfiCAS

* Le Conflit eles interprétations. Essais d'herméneutique (L'ordre philosophíque]. Pa-


ris, Seuil, 1969.
Cours sur l'herméneuuque [mimeo]. Louvain, lnstitut supérieur de philosophíe,
1971-1972.
* Les lncidences théologiques des recherches aetuelles concernant le langage [cours
polycopié lSEO]. Paris, 1972.
La Métaphore vive. Paris, Seuil, 1975.
* Ricoeur on Biblical Hermeneutics. Semeia 4 (1975) ["Biblical hermeneutics. 29-
36; "The narrative form", 37-73; "The metaphorical process", 75-106; "The spe-
cificíty of religious language. 107-148.
lnierpretation. Theory: Discourse and the surplus of meaning. Fort Worth, The Texas
Christian University Press, 1976.
* REAGAN, C. STEWART, D. (eds.). The philosophy of Paul Ricoeur. An anthology of
his work. Boston-Toronto, Beacon Press, 1978.
* MUDGE, L. (ed.). Essays on biblicallnterpretation. Filadélfia, Fortress Press, 1980.
THOMPSON, 1. B. (ed. et trad.). Hermeneutics and the human sciences. Essays on
language, action and interpretation. CambridgelLondon/New YorkJNova Rochelle/
Melbourne/Sydney/Paris, Cambrídge University Press/Éd. de la Maison des sciences
de l'hornme, 1981.
Temps et récit. Paris, Seuil, 1983 [t. 1, Temps et récit]; 1984 [t. II, La configuration
dans le récit de fiction]; 1985 [t. I1I, Le temps raconté].
Du texte à l'action. Essais d'herméneutique [to II (Esprit)]. Paris, Seuíl, 1986.
* Le mal. Un défi à la philosophie et à la théologie. Genebra, Labor et Fídes, 1986
(reeditado em: Lectures 3. Paris, 1994,211-233).
À l'école de la phénoménologie [Bibliotheque d'histoíre de la phílosophíe]. Paris,
Vrin, 1986.
TAYLOR, George (ed.). Leetures on ideology and utopia. New York, Columbia
University Press, 1986.
Soi-même comme un autre [L'ordre philosophique]. Paris, Seuil, 1990.
* Amour et justice. Liebe und Gerichtigkeit. Tübingen, 1. C. B. Mohr (Paul Siebeck),
1990.
VALDES, M. 1. (ed.) A Ricoeurreader. Reflection and lmagination. Toronto/Buffalo,
University of Toronto Press, 1991.
Lectures 1. Auiourdu politique [La couleur des ídées]. Paris, Seuil, 1991.
Lectures 2. La contrée eles philosophes [La couleur des idées]. Paris, Seuíl, 1992.
JERVOLINO, D. (ed.). Filosofia e linguaggio. Milan, Guerini e Associati, 1994.
* Lectures 3. Aux frontÍi!res de la philosophie [La couleur des idées], Paris, Seuil,
1994.
1
:-4
PRINClPAlSESCRITOSDLPAUL RICOEUREM H.ERMENEUTlCABíBlICA 30S

* DANESE, A. (ed.). Persona, eomunità e istituzioni. Dialettica tra giustizia e amore.


S. Domenico di Fiesole, Culture delle Pace, 1994.
Réflexion faite. Autobiographie intelleetuelle [Philosophie]. Paris, Esprit, 1995.
* La Critique et la Conviction. Entretien avee François Azouvi et Mare de Launay.
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Le Juste [Philosophíe]. Paris, Esprit, 1995.
* WALLACE, M. L (ed.). Figuring the sacred. Religion, narrative and imagination.
Filadélfia, Fortress Press, 1995.
Autrement. Lecture d"'Autrement qu'être ou au-delã de l'essence" d'Emmanuel
Levinas. Paris, PUF, 1997.
L'ldéologie et l'Utopie [La couleur des idées]. Paris, Seuíl, 1997.
Com CHANGEUX, I-P. La nature et la re1!Je. Ce qui nous fait penser. Paris, Odile
Jacob, 1998.
* Com LACOCQUE, A. Penser la Bible [La couleur des ídées], Paris, Seuil, 1998.
* La mémoire, l'histoire, l'oubli [L'ordre philosophíque]. Paris,Seuíl, 2000.

ARTIGOS, CONTRIBUIÇÕES, PREFÁCIOS


(CLASSIFICADOS POR ORDEM ALFABÉTICA)

Listamos somente as principais contribuições de Ricoeur no campo da her-


menêutica bíblica como também alguns grandes artigos em hermenêutica
filosófica.
* Accomplír les Écritures selon Paul Beauchamp, L 'Un et l'Autre Testament, t. lI.
Em: BOVATI, P., MEYNET, R. (présentation). Hommage à Paul Beauehamp (Média-
sevres). Paris, 1996, 7-23.
* Antwort an Josef Blank. Em: KÜNG, H., TRACY, D. (eds). Das neue Paradigma
von Theologie [Okumenische Theologie 13]. Colônia-Zurique, 1986, 53-56.
* La Bible et l'imagination. Revue d'histoire et de philosophie religieuses 66 (1982)
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* R. Bultmann. Foi-Éducation (Foi et Langage 37 [1967]) 17-35.
* Bultmann: une théologie sans mythologie, Cahiers d'Orgemont 72 (1969) 21-40.
* El caracter herméneutico comun a la fe bíblica y a la filosofia. Epilogo. Em: Fe y
filosofia. Problemas dellenguaje religioso. Buenos Aires, 1990, 221-229.
* "Comme si la Bíble n'existait que lue ... ". Exorde. Em: BOVATI, P., MEYNET, R.
(dirs.). "Ouvrir les Écritures", Mélanges offerts à Paul Beauchamp (Lectio Divina
162). Paris, 1995,21-28.
* Considérations éthiques et théologiques sur la Regle d'or, Em: NADEAU, 1. G.
(éd.]. L'Interprétation, un défi de l'action pastorale. Montreal, 1989, 125-134.
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Genebra, 1991, 299-309 (reeditado em: Leetures 3. Paris, 1994, 355-364).
De I'ínterprétation. Em: Du texte à l'action. Paris, 1986, 11-35 (=Ce qui me préo-
ccupe depuis trente ans. Esprit 8-9 [1986] 227-243).
* Démythiser l'accusation. Em: CASTELLI, E. (dir.). Démythisation et morale. Ar-
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* Le Dieu crucífié de 1. Moltmann. Les Quatre Fleuves 4 (1975) 109-114.
* "Dieu n'est pas tout-puissant... ". Conversation avec Bertrand RévilIon. Panorama
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Discours et communication. Em: La Communication. Actes du Xlls congres de
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* Discussion d' ensemble. Em: La Révélation (Publications des facultés universitaires
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* Ou conílit à la convergence des méthodes en exégese biblique. Conférence d'intro-
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* L'econornia dei done, amore e giustizia. Protestantesimo 49 (1984) 13-24.
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Entretien. Paul Ricoeur. Em: Entretiens avec "Le Monde". Philosophes. Paris, 1984,
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* Entretien avec Paul Ricoeur (25 mar. 1994). Em: THOMASSET, A. Poétique de
l'existence et agir moral en société. La contribution de Paul Ricoeur au fondement
PRINCIPAIS ..ISCRITOS.OLPAULRlCOEUR ..EM . HERMEN~UnCA ..BIBucA .. 307

d'une éthique herméneutique et narrative, dans une perspective chrétienne. [Thêse.


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• L'événement de la parole chez Ebeling. Les Cahiers du Centre protestant de l'Guest
9 (1968) 23-31.
Événement et senso Em: CASTELLI, E. (dir.). Révélation et histoire. Paris, 1971, 15-34.
Événement et sens dans le discours. Em: PHILIBERT, M. Paul Ricoeur ou La Liberté
selon l'espérance. Paris, 1971, 177-190.
• Evil. Em: The Encyclopedia of Religion. New YorkJLondon, 1987, t. V, 199-208.
• Expérience et langage dans le discours religieux. Em: COURTINE, 1. F. (dir.). Phéno-
ménologie et Théologie. Paris, 1992, 15-39 (reeditado sob o título Phénornénologie
de la religion. Em: Lectures 3. Paris, 1994,263-271).
Expliquer et comprendre. Sur quelques connexíons remarquables entre la théorie
du texte, la théoríe de I' actíon et la théorie de l'hístoire. Revue philosophique
de Louvain 75 (1977) 126-147 (reeditado em: Du texte à l'action, Paris, 1986,
161-182).
• Fides quaerens intelleetum: antécédents bibliques? Archivio di filosofia 68 (1990)
19-42 (reeditado em: Lectures 3. Paris, 1994,327-354).
• Foi et langage, Bultmann, Ebelíng. Poi-Éducation 37 (1967) 17-35; 36-53; 53-57.
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Du texte à l'action. Paris, 1986, 101-117).
La fonction narrative et l'expérience humaine du temps. Em: Existenza, mito, enne-
neutica. Scritti per Enrico Castelli. Pádua, 1980, t. I, 343-367.
• From Proclamation to N arrative. The Ioumal of Religion 64 (1984) 501-512.
The Function of Fiction in Shaping Reality, Man and World 12 (1979) 123-141.
• The Golden Rule. Exegetical and theological perplexities. New Testament Studies
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Heidegger et la question du sujet. Em: Le Conflit des interprétations. Paris, 1969,
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• Herméneutique. Les finalítés de I'exégese bíbliqne. Em: Centre Thornas-More,
La Bible en philosophie. Approches contemporaines. Paris, 1983, 27-51.
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Paul Ricoeur in Copenhagen. Philosophy Today 29 [1985] 213-222).
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• Le "péché origineI": étude de sígnificatíon. Église et Théologie 23 (1960) 11-30
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• La phílosophíe et la spécíficíté du langage religieux. Revue d'histoire et de philoso-


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• Poétique et symbolique. Em: LAURET, B., REFOULÉ, F. (eds.). Initiation à la prati-
que de la théologie [to I, Introduction]. Paris, 1982,37-61.
• Préface à BULTMANN, R. fésus, mythologie et démythologisation. Paris, 1968 (reedi-
tado em: Le Conflit des interprétations. Paris, 1969, 373-392).
• Préface à LACOQUE, A. Le Livre de Daniel. Neuchâtel, 1976, 5-11.
• Problemes actuels de l'interprétation [Dossier "Nouvelles Théologies]. Centre pro-
testant d'études et de documentation 148 (1970) 51/163-70/182.
Qu'est-ce qu'un texte", Em: BUBNER, R., CRAMER, K., WIEHL, R. (eds.). Her-
meneutik und Dialektik, Aufsiitze lI. Sprache und Logik. Theorie der Auslegung
und Probleme der Einzelwissenschaften, Festschrift Gadamer. Tübingen, 1970,
181-200 (reeditado em: Du texte à l'action. Paris, 1986, 137-159).
• Le récit interprétatif. Exegese et théologie dans les récits de la Passion. Recherches
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• La Regle d'Or en question: entre philosophie et théologie r. Revue d'histoire et
de philosophie religieuses 69 (1989) 3-10 (reeditado em: Lectures 3. Paris, 1994,
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• Reply to Don Ihde. Em: HAHN, L. E. (ed.). The Philosophy of Paul Ricoeur. Chica-
go-La Salle [Illinois], 1995, 71-73.
• Reply to Lewis S. Mudge. Em: MUDGE, L. S. (ed.)., Paul Ricoeur. Essays on biblícal
interpretation. London, 1981, 41-46.
• Reply to David Stewart. Em: HAHN, L. E. (ed.). The Philosophy of Paul Ricoeur,
Chicago-La Salle [Illinois], 1995,443-449.
Réponses à mes critiques. Em: BOUCHINDHOMME, c., ROCHLITZ, R. (eds.).
"Temps et récit" de Paul Ricoeuren débat (Procope). Paris, 1990, 187-218.
• Le "Royaume" dans les paraboles de Jesus. Études théologiques et religieuses 51
(1976) 15-19.
• The "Sacred" Text and the community. Epilogue. Em: O'FLAHERTY, W. D. (ed.).
The criticai study of sacred texts. Berkeley, 1979,271-276.
• Le scandale du mal. Esprit 140-141 (1980) 57-63.
• Le sujet convoqué. À l'école des récits de vocation prophétique. Revue de l'lnstitut
catholique de Paris 28 (1988) 83-99.
• Sur l'exégese de Cenese 1, 1-2, 4a. Em: Exégêse et herméneutique, Paris, 1971,67-
68; 85-96.
• Le symbole dorme à penser. Espru 27 (1959) 60-76 (reeditado em: La symboli-
que du mal. Paris, 1960, 323-332).
• La tâche de l'herrnéneutique. Em: BOVON, F., ROUILLER, G. (eds.). Exegesis. Neu-
châtel-Paris, 1975, 179-200 (reeditado em: Du texte à l'aaion. Paris, 1986, 75-100).
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• Toward a narrative theology: Its necessity, its resources, its díffícultíes. Em:
WALLACE, M. 1. (ed.). Figuring the sacred. Religion, narrative and imagination.
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* "Whoever loses their life for my sake will find it". Em: WALLACE, M.I. (ed.). Figu-
ring the sacred. Religíon, narrative and imagination. Minneapolis, 1995, 284-288.
Principais escritos consagrados à
hermenêutica bíblica de Paul Ricoeur

I .

U m a bibliografia completa dos escritos consagrados a Paul Ricoeur encon-


tra-se nas contribuições de D. VANSINA já mencionadas acima, como
também nos artigos de F. H. LAPOINTE, A bibliography of Paul Ricoeur. Phi-
losophy Today 16 (1972) 28-33; 17 (1973) 76-82, e, do mesmo autor, "Paul
Ricoeur und seine Kritiker. Eine Biblíographíe. Philosophisches Jahrbuch 86
(1979) 340-356. As obras marcadas com asterisco tratam explicitamente da
hermenêutica bíblica e teológica de Paul Ricoeur, as outras contribuem para
sua compreensão. Os escritos de um mesmo autor estão classificados por
ordem cronológica.

LIVROS, TESES, CURSOS, NÚMEROS DE REVISTA


• BARTHEL, P. Interprétation du langage mythique et théologie biblique. Étude de
quelques étapes de l'évolution du problême de l'interprétation des représentations d'ori-
gine et de structure mythiques de la foí chrétienne. Leyde, 1963, 21967 (sobretudo
286-381).
• BOEHNKE, M. Konkrete Reilexion. Philosophische und theologische Hermeneutik. Ein
lnterpretatíonsversuch über Paul Rícoeur (Disputationes theologicae 15). Berne -
Frankfurt - New York, 1983.
BOUCHINDHOMME, c., ROCHLITZ, R. (dirs.). "Temps et récit" de Paul Rícoeur en
débat (Procope). Paris, 1990.
• BOURGEOIS, H., GIBERT, P., JOURJON, M. L'Expérience chrétíenne du temps (Co-
gitatio Fidei 142). Paris, 1987.
314 _ ____________ . . .__.__ . RHERtNCJASJJB1.JOGRÁ HCAS

CALVO MARTINEZ, E, AVILA CRESPO, R. (eds.). Paul Ricoeur: Los caminos de la


interpretación (Autores, Textos y Temas, Filosofia 37). Barcelona, 1991.
CLARK, S. H. Paul Ricoeur (Critics of the Twentieth Century). Routledge, 1990.
• DELORME,1. (ed.). Les Paraboles évangéliques. Perspectives nouvelles, XII' Congrês
de l'ACFEB (Lectio Divina 135). Paris, 1989.
• DORNISCH, L. Faith and philosophy in the writings of Paul Ricoeur. Lampeter Dyfeld,
1990.
• DOSSE, F. Paul Ricoeur. Les sens d'une vie. Paris, La Découverte, 1997.
• FREI, H. The eclipse of biblical narrative: A study in Eighteenth and Nineteenth
Century hermeneutics. New Haven, Vale University Press, 1974.
• GERHART, M. The question of belief in Íiterary criticism. An introduction to the
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• GERVASONI, M. La «poetica» nell'ermeneutica teologica di Paul Ricoeur (Ricerche
di Scienze Teologiche 25). Brescia, 1985.
• GREISCH, 1., KEARNEY, R. (dirs.). Paul Ricoeur. Les métamorphoses de la raison
herméneutique (Passages). Paris, 1991.
• HAHN, L. E. (ed.). The philosophy of Paul Ricoeur (The Library of Living
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• HARNISCH, W. Die Gleichnis-erzãhlungen. Jesu (Uní-Taschen-bücher 1343).
Gôttingen, 1985.
• JEANROND, W. G. Te:xt und lnterpretation ais Kategorien theologischen Denkens. Tü-
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• o Introduction à l'herméneutique théologique. Développement et sígníficatíon,
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JERVOLINO, D. Il cogito e l'ermeneutica. La questione dei soggetto in Ricoeur. Nápo-
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• STEVENS, B. L'Apprentissage des signes. Lecture de Paul Ricoeur (Phaenomenologica
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• THOMASSET, A. Paul Ricoeur. Une poétique de la morale. Aux fondements d'une
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• VAN DEN HENGEL, 1. W. The home of meaning. The hermeneutics of the subject
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• VAN ESBROECK, M. Herméneutique, strueturalisme et exegese. Essai de logique
kérygmatíque (L'athéísme interroge). Paris, 1968.
VAN LEEUWEN, T. M. The surplus of meaning. Ontology and eschatology in the
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• VANHOOZER, K. 1. Biblical narrative in thephilnsophy of Paul Ricoeur. Cambridge, 1990.
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• ALEXANDRE, 1. Notes sur l'esprit des paraboles. Une réponse à Ricoeur. Études
théologiques et religieuses 51 (1976) 367-372.
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• BAYER, o. Was die Theologie von Paul Ricoeur lemen kann. Evangelische Kommen-
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