Latina
Resumo
O presente artigo apresenta os ciganos descendentes, uma das Categorias Identitárias Ciganas
– CICs abordadas no livro Ser Cigano: a identidade em um acampamento Calon Itinerante
(SHIMURA, 2017). A expressão descendentes é uma categoria nativa e se refere a indivíduos
que possuem parentesco consanguíneo com ciganos étnicos, mas que estão conscientes de seu
distanciamento histórico e social dos coletivos e comunidades. São filhos, netos, bisnetos etc.
de ciganos que, por diferentes motivos, cresceram em meio a sociedade envolvente. Alguns
desses indivíduos tomaram consciência de sua origem e decidiram assumir uma identidade
cigana, buscando “reconstituir” uma ciganidade real ou imaginária, desenvolvendo um
processo gradativo de reaproximação. Esses que se assumem como ciganos são categorizados
neste trabalho como ciganos descendentes reidentificados, ao passo que os que, mesmo
possuindo laços de parentesco, negam essa alternativa identitária, são chamados de ciganos
descendentes distantes.
Abstract
This article presents the “Roma descendants”, one of the Roma Identity Categories (CICs) that
are discussed in the book “Being Roma: Ethnic Identity in a Traveling Calon Camp”
(SHIMURA, 2017). The expression descendants, as a native category, describes individuals
who trace blood relationship with Roma people, however they are aware of their historical and
social distance from the groups and communities. They are the children, grandchildren or great-
grandchildren of Roma who, for different reasons, grew up outside the community and were
raised as members of the majority society. Some have become aware of their origin and have
consider themselves Roma, seeking to “reconstitute” a real or imaginary Gypsyness
(ciganidade), through a gradual process of re-engagement. Those who assume themselves as a
Roma are categorized in this article as “re-identified descendant Roma”, while those who can
trace blood relatedness with Roma peopla but deny this alternative identity are called “distant
descendant Roma”.
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Trabalho apresentado no 45° Encontro Anual da ANPOCS, no SPG20, Experiências etnográficas entre povos
ciganos no Brasil e América Latina, coordenado por Edilma Nascimento (UFRN) e Juliana Miranda Soares
Campos (UFMG).
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Doutorando em antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia e Arqueologia, Setor de Ciências Humanas, da Universidade Federal do Paraná.
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Comecemos por uma informação comum ao ambiente dos estudos ciganos, mas
deveras surpreendente para os que deles não participam: no Brasil vivem diferentes etnias
ciganas. Ao escrever sobre a multietnicidade cigana brasileira Moonen (2000:1) falou sobre
“pelo menos três grandes grupos”, a saber, os Calon, os Rom e os Sinti. Moonen (ibid.) também
destacou que os Calon e os Rom contam com pesquisas que comprovam a sua presença em solo
nacional, mas nada se sabe sobre os Sinti, exceto que “com certeza devem ter migrado para o
Brasil, junto com os alemães e italianos, a partir do Século XIX”.
Em campo etnográfico ouvimos falar acerca da presença de outros grupos étnicos,
como os Banjaras, de origem indiana; os Romanichal, de origem inglesa, irlandesa etc.; os
Domari, oriundos do continente africano e do Oriente Médio; e os Lomani, vindos da Armênia
e Irã. Seja como for, cada um desses grupos representa um segmento com dimensões
macroscópicas que lhes confere o status de “povo”, que por sua vez possui suas próprias
subdivisões em grupos e subgrupos, organizados em acampamentos, famílias e comunidades.
Cada uma dessas subdivisões possui configurações socioculturais distintas,
particulares, resultantes de influências contextuais sobre diferentes aspectos, como a língua, a
música, a economia, a religião, a organização social etc. Essas diferenças entre ciganos fazem
com que cada coletivo tenha sua própria noção acerca de quem são, o que nem sempre é
sincrônico com outras noções, divergentes, de seus pares. Cada cigano tem um entendimento
autônomo de autodefinição.
Dessa forma o universo cigano é como um mosaico multiétnico, complexo, que
impede a elaboração de uma definição global, generalizada, homogênea e consensual sobre
quem são os ciganos. Essa pluralidade representa uma infinidade de traços diacríticos e
perspectivas entrelaçadas, uma espécie de “emaranhado de identidades ciganas” que coexistem
em meio a diferenças conflitantes, antagônicas, complementares e interdependentes, tal como
um multiverso étnico.
Todos são ciganos, às vezes compartilhando o mesmo etnônimo, no entanto cada qual
possui sua especificidade diferenciante que demarca a qual macrouniverso étnico interno e sua
respectiva subdivisão pertence. Rezende (2000, p. 49) diz “que a ‘unidade cigana’ se forma e
se alimenta a partir da própria diversidade, através de práticas e discursos variados”.
Para construirmos essa compreensão é importante que abordemos, mesmo que
brevemente, a origem do etnônimo cigano. Esse termo foi cunhado na Europa do século XV
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O uso do termo foi reivindicado pela primeira vez por organizações ciganas de etnia Rom europeias entre o final
da década de 1960 e o começo da década de 1970 (Cf. SOUZA, 2013, p. 60).
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Pensando aqui especialmente nos ciganos da etnia Calon português, imigrantes que vivem no Brasil.
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Cunha e Athias (In: GOLDBARB; TOYANSK; CHIANCA 2019, p. 142) apresentam o relato de ciganos Calon
que afirmam a associação fundante do elemento consanguíneo para definir a pessoa cigana. O cigano Joaquim,
por exemplo, afirma ser cigano baseado na consanguinidade ao dizer: “Somos ciganos porque já nascemos assim.
Tenho sangue, não adianta. Sou cigano de mãe e pai. Nossa origem, nosso sangue, nosso avô, nós nunca vai perder
isso”. Relato semelhante é da cigana Marcilânia, que afirma: “Agradeço todos os dias a Deus por em minhas veias
correr sangue cigano” (id. ibid., p. 143).
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De pai e de mãe
Mestiços
Públicos
Distantes
Anônimos
Ciganos descendentes
Reidentificados
Fonte: SHIMURA, 2017, p. 34.
Matrimônio
Ciganos adotados na família
Adoção
Espiritualistas
Ciganos de alma
Políticos
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Pessoas que foram introduzidas no universo cigano por meio de casamento e/ou adoção (Cf. SHIMURA, 2017,
p. 42-45).
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Os ciganos de alma são aqueles que a si mesmas se reconhecem como ciganos, no entanto são desprovidas de
credenciais genealógicas (laços de parentesco consanguíneo). Via de regra não são reconhecidas pelos ciganos do
segmento étnico-racial (Cf. id. ibid., p. 45-48).
8
Os espiritualistas são indivíduos que assumem uma “ciganidade espiritualizada”, associada à uma determinada
religiosidade, geralmente remetida à rituais espíritas ou espiritualistas (Cf. id. ibid., 2017, p. 45-46).
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Os políticos são indivíduos que assumem a ciganidade com fins políticos, atuando nas esferas do poder público,
exercendo algum tipo de ativismo pró-cigano (Cf. id. ibid., p. 47).
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Ciganidade reconstituída
Nos concentramos aqui na busca por entender quem são os ciganos descendentes.
Primeiramente é importante compreender que a “reconstituição de uma identidade”, no sentido
de assumir-se cigano baseando-se em seu histórico e parentesco consanguíneo não se compara
aos casos de falsificação identitária denunciados por Mio Vacite (Cf. SOUZA, 2013, p. 226-
227) quando menciona os “falsos ciganos” ou “ciganos genéricos”. Para Mio essas são pessoas
que não possuem vínculos familiares
com os ciganos, mas que se apresentam como tais no espaço público por motivos
religiosos (como os “ciganos espirituais”), construções identitárias e, especialmente,
para obtenção de vantagens; como, por exemplo, no contexto das políticas de
reconhecimento do estado brasileiro no qual recursos podem ser acessados, no
mercado de trabalho, onde o estereótipo dos ciganos como artistas e mágicos confere
um valor positivo a cartomantes, religiosos, músicos, dançarinos e artesãos: “Eles
querem nos representar, porque isso envolve recursos. Existem as políticas
governamentais e tem um mercado de festas ciganas”.
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a partir de outro momento de sua história, e seguiram uma vida integrados a sociedade ampla,
vivendo, no caso do Brasil, como “brasileiros comuns”.
Diferentes dos ciganos que vivem em comunidades, a ciganidade dos descendentes
não se constitui gradativa e naturalmente, desde a infância até a fase adulta, mas surge, a
princípio, a partir da informação sobre sua ligação consanguínea. Isso pode ocorrer em algum
evento, como a conversa com um parente ou a descoberta de uma foto de família, o que
certamente afeta, em maior ou menor intensidade, o senso identitário daquele que se descobre
descendente.
O saber de uma ligação consanguínea com ciganos pode ou não o levar o indivíduo a
buscar uma (re)aproximação com “seu povo”, seu “novo povo”. Os que decidiram ou foram
levados a se (re)aproximar geralmente empreendem sua (re)alocação junto à uma comunidade,
invariavelmente tentando vivenciar uma ciganidade, real ou imaginária. Quando não estão
espalhados pela sociedade ampla, como é o caso dos distantes, certamente estão em um lugar
intermediário, entre dois universos de identidade étnica, que seria o caso dos reidentificados,
como veremos.
A legitimidade da ciganidade do descendente reside, segundo afirma Mayall (2004, p.
229), na ideia de que o “principal critério adotado pelos ciganos é que pelo menos um dos pais
deve ser cigano”. Conforme Silva (2010, p. 79) a ciganidade é definida pelo grau de parentesco,
o que significa que os descendentes, tal como a descrição aqui, podem ser incluídos dentro do
universo cigano não importando necessariamente “o quanto”, ou “em que medida” são ciganos:
Distantes e reidentificados
Os distantes, como o nome já diz, são aqueles que estão definitivamente afastados dos
coletivos ciganos e, mesmo que tenham consciência de sua origem e vínculo de parentesco,
geralmente não se identificam e não se declaram ciganos, pelo menos não publicamente. Sua
indiferença em relação à ciganidade se justifica principalmente (não que não possa haver outros
fatores) pela sua já estabelecida identidade não cigana, construída ao longo dos anos, através
de processos formativos não ciganos.
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(...) a identidade cigana pode ser perdida, primeiro por opção individual, quando o
indivíduo se desliga consciente e voluntariamente do seu grupo e passa a viver no
mundo dos gadjé10, assimilando seu modo de vida; segundo, pelo casamento com
gadjé e posterior opção pela vida fora do grupo, no mundo gadjé, caso em que também
os filhos não serão mais considerados ciganos; e finalmente, por exclusão, quando o
indivíduo, por ter infringido certas normas grupais, deixa de ser considerado membro
da comunidade cigana.
10
Gadjé (masculino) e Gadji (feminino) em romanês (ou Gajon/Gajin, em idioma Calon) é um termo que designa
a “pessoa não cigana”, “estrangeiro”.
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Organization for Security and Co-operation in Europe.
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Tal como aconteceu com Gheorghe transformei as informações que recebi das muitas
fontes em uma “busca identitária”. Eu bem poderia tê-las ignorado, mas não o fiz. A
demarcação da minha ciganidade foi tardia, no entanto intensa e concreta,
principalmente quando em contato com as comunidades (id. ibid., p. 13).
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Em meu relato deixei claro que a ciganidade, uma vez identificada e/ou reconhecida
tardiamente, não era minha única “opção identitária”, já que, como brasileiro, sou o resultado
de mesclas étnico-raciais. No texto afirmei que
A partir da minha experiência decidi produzir e/ou fomentar a reflexão sobre a relação
dessa “ciganidade tardia” com uma identidade anterior, já construída e estabelecida. No meu
caso, sendo um brasileiro multiétnico, curitibano, mestiço, criado por um japonês e uma negra,
que descobriu, no período da juventude, que sequer nasceu na cidade que consta no registro de
nascimento, tenho uma “matéria-prima” riquíssima para essa reflexão.
Um dos caminhos para isso seria apresentar alguns casos, histórias de pessoas que
vivenciam algo semelhante. Ao longo dos anos conheci algumas pessoas que podem ser
reconhecidas, identificadas como descendentes. Apresentarei com mais detalhes apenas três
dessas histórias, mas somente para começar menciono o advogado Marcelo Almeida, que é
bisneto de um cigano Calon. Seu avô foi filho mestiço (na CICs um descendente distante
anônimo) que resultou de uma relação extraconjugal entre um homem cigano e uma mulher não
cigana, há muitas décadas.
Menciono também a dona Ester, que tive a oportunidade de encontrar poucas vezes,
sendo certa vez num evento no Rio de Janeiro, em que me chamou num canto e contou que,
numa reunião de família, descobriu que sua mãe, de origem italiana, era cigana da etnia Sinti.
Contou-me que os imigrantes de sua família, ao chegarem ao Brasil, no início do século XIX,
decidiram ocultar sua etnicidade, evitando perseguições. Esse caso nos lembra a mãe de Nicolae
Gheorghe. Ao conversar comigo a dona Ester não escondeu sua perplexidade diante da
informação, já que fazia pouco tempo que essa revelação familiar ocorrera. Ela confessou que
saber agora que “tinha sangue cigano”, um povo totalmente desconhecido para ela, era algo que
ainda precisava “assimilar”.
Um caso interessante e complexo é descrito por Florência Ferrari (2010) em sua
pesquisa de campo realizada entre os Calon em São Paulo. Ela fala de Maria, uma brasileira
que aos dezoito anos de idade se casou com um jovem cigano. Quando “fazia curso preparatório
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para prestar o vestibular para medicina (queria ser pediatra) anunciou o desejo de se casar com
um ‘cigano’” (ibid., p. 16). Segundo Ferrari alguns elementos de sua história parecem ter
contribuído para sua escolha, já que Maria afirmava que sua avó paterna, com quem não teve
muito contato, era cigana.
No seu imaginário infantil e na mitologia da família, seu avô vivia numa cidade do
interior, onde havia um acampamento “cigano” um pouco afastado da cidade. Um dia,
em uma ida de sua avó à cidade, eles se conheceram e, à noite, “ele foi até o bando e
a roubou”. Maria não tem certeza, mas acha que sua avó era [da etnia] Matchuaia (id.
ibid., p. 17).
O caso de Maria se torna bastante complexo com a revelação de que ela acredita que
“já foi cigana em outras encarnações”, o que poderia deslocá-la do segmento étnico-racial e
remetê-la ao sociocultural, como uma “cigana de alma espiritualista”. Segundo Ferrari (id.)
Maria “frequentou um centro de Umbanda, onde ‘recebia dois ciganos desencarnados’. Um dos
espíritos era uma ‘cigana’ que ‘descia’ nela: sua voz mudava, sabia ler as cartas, fazia tudo
como uma cigana’”.
O curioso caso de Maria pode revelar as estratégias de alguém que, uma vez assumindo
tardiamente a ciganidade, tenta se legitimar diante de algo até então desconhecido, buscando se
afirmar perante a comunidade, criando e/ou ampliando uma relação étnica e cultural com um
suposto “universo cigano”, as vezes ainda nebuloso, distanciado do próprio contexto em que
essa experiência é vivenciada. Para tanto ela lança mão de
duas relações com o passado para reivindicar sua aproximação com os ciganos: o
parentesco (a avó) e a encarnação passada. Curiosamente, nenhuma dessas duas
‘heranças’ é valorizada pelos Calon quando Maria se apresenta. Sua calonidade
[ciganidade] não deve ser buscada no passado, mas sim na capacidade de ela se
comportar como uma calin no presente (id., p. 18)
Quanto a esse processo Ferrari aborda as dinâmicas e desafios enfrentados por Maria
em sua produção de ciganidade, com seus sofrimentos, obstáculos e choques culturais. Trata-
se de um caso que sugere a oscilação categorial entre os segmentos étnico-racial e
sociocultural.
A história da Ully M., 37 anos, assistente jurídica, serve como um típico caso de cigana
descendente reidentificada. Sua história é espetacular, pois reencontrou sua família cigana aos
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33 anos de idade. Segundo conta, tudo começou em 1984, quando uma senhora passava pelo
município de Central de Minas, Minas Gerais e presenciou uma cigana idosa com um bebê nos
braços, oferecendo-o para as pessoas na rua. A cena incomodou aquela senhora de forma que
não parou de pensar no que vira, preocupando-se com o destino da criança.
Logo mais à noite, no mesmo dia, a referida senhora visitou um casal de amigos, em
outro município, que desejava adotar uma criança, contando o que tinha visto. O casal se
mobilizou imediatamente, dirigindo-se à Central de Minas. Chegando lá procuraram
informações sobre a presença de algum grupo de ciganos na região e, conseguindo um endereço,
se dirigiram para o local.
Ao chegar em frente à um acampamento pararam o veículo e aguardaram, até que um
homem cigano se aproximou, a quem perguntaram “se o bebê ainda estava para adoção”. Sem
falar nada o homem buscou a criança e a entregou ao casal. “Me entregaram para este casal
sem nenhum tipo de pergunta. Eu ainda estava suja de parto e no meu braço havia uma pulseira
escrita ‘ciganinha’, indício esse que eu havia nascido em um hospital”.
Passados alguns dias a mulher que havia recebido a criança, a “mãe adotiva”, retornou
ao acampamento com o objetivo de “conhecer mais um pouco” da história da criança. A única
informação que lhe foi concedida era a de que a bebê tinha outros dois irmãos mais velhos e
que o nome de sua mãe era Vânia. “Eu sempre soube que era adotiva e filha de ciganos e tal
fato nunca foi um peso na minha vida. Fui criada com muito amor pelos meus pais adotivos e
com a certeza que havia sido Deus a dirigir a minha história”.
O casal mudou-se para outro estado com a menina, que foi chamada de Ully, mas
quinze anos depois a família retornou ao município de Central de Minas e buscaram algumas
informações. “Por ser uma cidade pequena não foi difícil encontrar a maternidade. Contaram
a história no hospital e inclusive a enfermeira que fez meu parto ainda trabalhava no local”.
Nessa visita ao hospital Ully descobriu o sobrenome de sua mãe biológica12, o que lhe deu mais
uma pista que poderia ajudar a reencontrar a sua família de origem.
Anos mais tarde, em 2004, conheci Ully na cidade de Toledo, Paraná, que me contou
sua curiosa e surpreendente história. Não obstante afirmar ser cigana ela vivia uma vida como
qualquer jovem não cigana. Em nossa última conversa ela pediu minha ajuda para encontrar
seus pais biológicos, já que sabia de meu conhecimento e amplo contato com comunidades em
diversos lugares do Brasil, pelo que me comprometi a informá-la caso descobrisse algo.
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Em entrevista Ully pediu-me para não mencionar nem o sobrenome de seus pais adotivos nem o de sua mãe
biológica no artigo, preferindo não expor as famílias.
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Ao ouvir o sobrenome de sua mãe estranhei, já que nunca havia conhecido nenhum
cigano com aquele sobrenome. Passaram-se muitos anos até que no final do ano de 2017,
aproveitando uma tarde de folga em meio à um compromisso profissional no estado do Espírito
Santo, visitei um acampamento cigano, na companhia de um colega. A ideia era fazer uma
visita rápida, descompromissada, já que gosto de conhecer diferentes comunidades e realidades
em minhas viagens, quando possível.
Como de costume nas introduções de apresentação, eu e o chefe local trocamos
informações básicas como nome, ocupação, informações acerca da família etc. Admirei-me
quando ele mencionou seu sobrenome, pois era o mesmo sobrenome da mãe da Ully, o que me
despertou a curiosidade. Imediatamente mencionei o caso e perguntei se seria ele o pai de Ully,
ou se conhecia a família. Igualmente admirado, ele afirmou a história era verídica e que os pais
dela eram seus primos, que moravam a cerca de quarenta quilômetros dali. Aquilo foi
surpreendente.
No mesmo fiz contato com Ully, contando as boas notícias. Aproveitando outro
momento de folga me dirigi ao local indicado, conhecendo pessoalmente os pais de Ully,
intermediando o contato entre eles e sua filha. Dessa forma Ully teve seu primeiro contato com
sua família cigana, do povo Calon, que também se alegrou em reencontrá-la.
“No mês de Novembro de 2017 o Igor me ligou dizendo que havia encontrado meus
pais. Senti um misto de emoção ao saber que eu poderia ver ao menos uma foto deles.
Haviam passado 15 anos e ele não havia esquecido a minha história. O Igor
conheceu meus pais [biológicos], um dos meus irmãos e sua família. Recebi fotos e
vídeo, mas principalmente pude saber o motivo pela qual fui dada em adoção. Sinto
como se um ciclo tivesse se concluído”.
O caso de Ully chama minha atenção principalmente porque logo que a conheci ela se
identificava como “cigana”. Eu me perguntava como ela justificava e/ou sustentava sua
ciganidade, já que se baseava unicamente numa história oral, com pouco ou nenhum registro
material que comprovasse sua origem. O relato de que ela foi recebida com uma pulseira
hospitalar onde se encontrava escrito “ciganinha” certamente foi determinante para sua
autoidentificação.
Tratava-se de um senso de pertencimento provocado por uma história somada a alguns
escassos elementos repassados pelos seus pais adotivos, e/ou outros, como a senhora que contou
ao casal sobre a idosa cigana que oferecia um bebê a quem passava. A história da Ully é um
exemplo claro de uma cigana descendente reidentificada, que não cresceu dentro de uma
comunidade, não teve uma formação identitária como cigana desde sua tenra infância, falando
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um idioma étnico, vestindo roupas típicas, aprendendo comportamentos específicos etc. Ela
ouviu a história acerca de sua origem e disso se apropriou como elemento componente legítimo
de sua identidade.
Ela tinha as características de um povo cigano, assim. Então, ela tinha um, um olhar
bem marcado, um olho, âh, claro, azul, né! Uma mulher morena, assim, mas com o
olho bem claro, e um olhar marcado, e ela andava sempre de saia e, e tudo o mais
né?!. Nessas características assim das roupas né, então, a memória que eu tenho dela
é bem essa né?! Uma senhora que usava sempre umas saias compridas com flores né,
ela gostava de muitas flores assim.
Pelo distanciamento com a avó e com qualquer coletivo ou comunidade cigana, Luíza
possui uma visão essencializada de ciganidade, seja relacionando-a uma determinada cultura
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Nome fictício.
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ou elementos culturais, seja associando elementos biológicos. Ela afirma que, ainda que não se
identifique “como uma cigana”, “se identifica em alguma medida com uma ancestralidade”, no
sentido de que os ciganos “são um povo” e “uma identidade” com a qual ela “simpatiza”. A
relação que faz com elementos fenotípicos enfatiza “o olhar marcante” como expressão facial
ciganizada, remetendo-se à uma noção de identidade racial e/ou biologizada.
Então, quando eu vejo um cigano, ou uma foto, eu me identifico muito com o olhar
[...] então, não sei, o olho diz muito para mim. O modo de olhar... eu acho que o
formato do meu olho e dos meus primos e da minha... lembra muito a minha avó...
mais ainda né... que é um olhar marcado, e eu sinto que os ciganos também têm esse
olhar [...] nesse sentido eu me identifico.
Luíza admite “não conhecer nada da etnia [cigana]”, mas possui uma “identificação
forte” com “leituras de mão” (quiromancia) e cartomancia, tendo inclusive aprendido a exercer
a prática, que utiliza como “uma brincadeira”, não de forma profissional. Também tem apreço
pelo tarô e assuntos místicos, o que lhe remete à ideia de “cultura cigana”, no entanto está ciente
de isso não a torna “cigana”.
Como descendente distante anônima Luíza não manifesta interesse em aprofundar-se
em conhecer o “universo cigano”, mantendo discrição em relação a isso, característica que
define e a situa nas CICs. Podemos traçar um paralelo do caso de Luíza com o do ex-presidente
Juscelino Kubitscheck, já mencionado, que, diferentemente de Luíza, é um cigano descendente
distante público. Kubitscheck, por ser famoso se encaixa na subcategoria público, mas foi
alguém que em todo tempo omitiu publicamente a sua relação com ciganos.
Segundo Teixeira (2000:18) ele era neto do cigano Rom Jan Nepomuscky Kubitschek,
“imigrante vindo da Boêmia, então parte do Império Austro-Húngaro, que deve ter entrado no
Brasil por volta de 1830-1835, casando-se pouco depois com uma brasileira”. Sanches (2005)
cita Teixeira e Moonen, ambos especialistas em ciganidade, entendem que Juscelino
Kubitscheck ocultava sua origem cigana:
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nenhuma identificação com a ciganidade de forma pública. De qualquer forma são casos que
sinalizam para o fato de muitos filhos, netos, bisnetos etc. de ciganos se encontram espalhados
na sociedade envolvente, discretos ou descobertos (como foi o caso de Kubitscheck), sem ter a
ciganidade como elemento relevante a ponto de alterar seu curso de vida.
Para citar mais um caso, vejamos a história de Ivan M., 42 anos, inspetor de segurança,
pernambucano, um cigano descendente reidentificado, já que assumiu sua identidade cigana
somente aos 30 anos de idade. Ele conta que sua história “começa antes de seu nascimento”.
Seu pai, V.E.E.M., 77 anos, é um cigano puro ou autêntico, de “família cigana tradicional” no
Nordeste, e sua mãe, A.L.G., 65 anos, uma cigana descendente distante anônima, é neta de
ciganos. Segundo diz, seu pai casou-se muito jovem, conforme o costume de sua comunidade,
seguindo a tradição do “arranjo”, onde os pais escolhem a noiva. O casal teve duas filhas, no
entanto V.E.E.M. ficou viúvo durante o parto do terceiro filho, que também veio à óbito.
Com o passar do tempo, conheceu uma pessoa com quem decidiu casar-se. Essa
decisão encontrou grande resistência por parte de próprio pai, um dos chefes da comunidade,
“homem rígido nos costumes”, pois desejava que seu filho se casasse com outra pessoa. Esse
fato gerou a desistência do casamento, mas a situação se desdobrou em sérios conflitos entre
pai e filho, de forma que “mais ou menos em 1974” V.E.E.M. e um de seus irmãos deixaram a
comunidade, distanciando-se de seu pai, rumo à um município do interior onde seguiriam a
vida em meio à não ciganos.
Em meio a não ciganos trabalhou como operário em diferentes empregos, “com
carteira assinada”. Isso, segundo Ivan, contribuiu para que seu pai V.E.E.M. mantivesse o
distanciamento da comunidade: “se empregou numa fábrica de coro chamado Curtume...
também, na época meu avô já estava doente e criou-se um repúdio por ele [V.E.E.M.] trabalhar
de carteira assinada, trabalhar pra um Gajon [não cigano]”. Quando seu pai se desentendeu
com seu avô, V.E.E.M. foi amparado por outro cigano, pai de A.L.G., que viria a se casar com
V.E.E.M. logo em seguida, entre “1975 e 1976”.
Ivan conta que todos os seus tios preservam a “cultura cigana”, mas que seu pai
V.E.E.M. preferiu conduziu sua vida longe das tradições. Conhecendo essa história e
percebendo a repulsa de seu pai pela “vida de cigano” Ivan foi influenciado e nunca teve
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interesse em se identificar como cigano, pelo contrário, viveu completamente integrado à “vida
comum” de um “brasileiro não cigano”.
Outro fator determinante para que Ivan não se identificasse como cigano foi sua difícil
convivência no contexto familiar, marcado por episódios de violência doméstica por parte de
seu pai que era a sua referência mais próxima de “homem cigano” e de “cultura cigana”. “Cresci
muito revoltado... é, com meu pai, por essa sua atitude [...] mas também com minha própria
cultura”.
Ivan conta que num determinado período da adolescência se envolveu com “más
companhias” e se tornou usuário de drogas, o que levou seu pai a expulsá-lo de casa. Seguindo
uma trajetória difícil, passado por constantes dificuldades, Ivan diz que “amadureceu”, e anos
mais tarde, livre das drogas, casou-se, se estabeleceu profissionalmente e reatou o contato com
seu pai. Aos 30 anos de idade, quando participava de um evento profissional, ouviu seus colegas
conversando sobre “povos em situação de vulnerabilidade social” e nesse momento Ivan
mencionou a eles que tinha origem cigana, fato que o encorajou a assumir sua ciganidade e a
buscar conhecer mais sobre o assunto.
Eu sou um cigano Calon, mas eu sou um cigano urbano. Urbano porque diretamente
eu, eu trabalho secularmente, faço faculdade, eu frequento praias, eu frequento shows,
eu frequento igreja. É... eu não vivo próximo a... eu não vivo dentro de, de uma
comunidade cigana, eu moro num centro urbano... eu tenho atitudes urbanas, mas eu
sei quem eu sou. Eu sei que eu sou... que eu tenho uma etnia, que eu tenho um povo,
que eu tenho uma língua e que eu tenho uma tradição e uma cultura muito rica... é...
tradição essa que é passada hoje pro meu filho. É... diferentemente de como eu fui
criado, embora hoje ele tenha oportunidade de estudar em uma boa escola, mas ele já
fala... né... um pouco do seu próprio idioma, ele sabe o que é ser cigano.
Desde que decidiu assumir essa identidade étnica Ivan tem se aproximado de ciganos,
procurando resgatar certos elementos culturais, tendo como fonte principalmente seus parentes.
Esse resgate, essa reconstituição identitária, tem sido um processo lento e gradativo, que
representa um grande desafio, já que as exigências das comunidades de seu contexto são
relativamente rígidas para que um “cigano” que viveu afastado volte a realmente “fazer parte”
e ser tratado como um “igual”.
Considerações finais
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ANPOCS 2021 / SPG20: Experiências etnográficas entre povos ciganos no Brasil e América
Latina
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