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Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Análise do Discurso

2020-2021

O sistema da referência: dêixis e cadeias


referenciais
Parte I: Elementos teóricos-descritivos sobre dêixis e cadeias referenciais
1. Aspectos preliminares
• SINTAGMAS NOMINAIS E REFERÊNCIA
Os Sintagmas Nominais (SN) podem ter uma função (predominantemente) referencial,
como, e.g., a FLUL ou os estudantes da turma A, uma função (predominantemente)
quantificacional, como, e.g., todos os deputados ou a maioria dos jogadores de râguebi, ou uma
função predicativa, como, e.g., o SN sublinhado em ele é médico (cf. Peres 2013). Atente-se
nos SN com valor (predominantemente) referencial: i.e., SN que são expressões
referenciais.

A interpretação de alguns destes SN é independente do contexto em que são enunciados,


enquanto que a interpretação de outras depende de elementos do contexto, situacional ou
textual, pelo que podemos subdividir as expressões referenciais entre:
Parte I. (cont.)

2. Expressões dêiticas ou dêiticos – dêixis


A interpretação das expressões dêiticas depende de elementos do contexto de
enunciação.
Tradicionalmente, identificam-se diferentes tipos de dêiticos tendo em conta o
tipo de entidades identificadas:

• Dêixis pessoal

− indivíduos (enunciador, interlocutor(es), outros indivíduos presentes no espaço


da enunciação)

(1) Nós estamos no Anfiteatro I Sala 9. Eu vou falar-vos de expressões dêiticas.


Parte I. | 2. Expressões dêiticas ou dêiticos – dêixis (cont.)

• Dêixis espacial

− lugares (o lugar em que ocorre a enunciação e os espaços sinalizáveis a partir


dele) [“dêiticos espaciais”]
(1) Já estamos todos aqui?
(2) Tira essa cadeira daqui e põe-na ali ou além.
(3) O ruído vinha daquela zona.
(4) Como é que está o tempo aí?

• Dêixis temporal

− tempos (o momento da enunciação e os momentos do tempo referíveis a partir


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«The traditional categories of deixis are person, place and time. (…) To these
traditional categories, we should also add (following Lyons, 1968, 1977a, and
Fillmore, 1971b, 1975) discourse (or text) deixis and social deixis»
(Levinson 1983, 62)

• Dêixis textual

− Textos ou partes de um texto


(1) Como se verá no próximo capítulo, …
(1) Aposto que ainda não conheces esta anedota: (…)
(3) Esse assunto não será aprofundado neste texto.
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− situações ou eventos (acessíveis a partir do lugar da enunciação)


(1) Não estou a gostar disto!
(2) Isto está a dar muito trabalho.
(CENÁRIO: enunciador tenta remover graffiti de uma parede)
(3) Que viagem tão calma! Não costuma ser assim...

− modos (associados a acções ou objectos sinalizáveis a partir do lugar da


enunciação)
(4) Tens de dar o nó {assim / desta maneira / como eu estou a fazer}.
(5) Vou deixar o livro {assim / nesta posição}.
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• Expressões dêiticas e discurso indireto


Por um lado, as expressões dêiticas, só podem ser interpretadas em contextos
concretos, porque apontam para elementos desse mesmo contexto; por outro
lado, o seu referente varia em função do contexto (da enunciação).
Esta dependência referencial implica que as expressões dêiticas tenham
frequentemente de ser alteradas na passagem do discurso direto ao discurso indireto
(sempre que há mudanças relevantes no tempo/espaço da enunciação):

(1) A mãe [] pediu-me para te dizer que [] a vás ajudar.


⇒ O Pedro disse à Ana que… [a mãe [] lhe tinha pedido para lhe
dizer que [ela] a fosse ajudar].
Parte I. (cont.)

3. Expressões anafóricas ou anáforas – cadeias anafóricas


A interpretação das expressões anafóricas depende de elementos linguísticos que
as precedem no texto em que se integram. Excecionalmente, pode depender de
elementos que se lhes seguem, caso em que se pode usar o termo “expressões
catafóricas” – cf. (5). As expressões anafóricas lato sensu incluem as expressões
anafóricas stricto sensu e as expressões catafóricas. Peres (2009: 14-15) usa os
termos “cadeias (referenciais) retrospectivas” e “cadeias (referenciais)
prospectivas” para distinguir os dois casos.

(1) [O Paulo]i já chegou, mas ainda ninguém [o]i viu.

(2) [O Cairo] é uma cidade enorme. Vivem [lá] milhões de pessoas.


Parte I. | 3. Expressões anafóricas ou anáforas – cadeias anafóricas (cont.)

A interpretação destas expressões depende do contexto textual. O elemento que


as precede no discurso e lhes permite fixar o referente é chamado o seu
antecedente.

Nos casos já apresentados, a relação entre anáfora e antecedente é de


correferência, mas existem outros tipos de relações possíveis.

A anáfora e o seu antecedente formam uma cadeia referencial (ou cadeia anafórica);
nos casos mais simples, a cadeia só tem dois elos, mas obviamente pode ter
mais:
Parte I. | 3. Expressões anafóricas ou anáforas – cadeias anafóricas (cont.)

• Expressões ambivalentes dêiticas ou anafóricas


Algumas expressões referencialmente dependentes são sempre dêiticas ou
sempre anafóricas. Outras são ambivalentes, podendo assumir qualquer um dos
dois valores.
– Expressões exclusivamente dêiticas: eu, tu, meu, teu, hoje, esta semana, ...
– Expressões exclusivamente anafóricas: no dia seguinte, na semana seguinte, ...
– Expressões ambivalentes: ele, esse livro, ali, agora, ...
(1) a. Sabes que ele vai hoje para o Brasil? (indivíduo presente no
contexto da enunciação)
Parte I. | 3. Expressões anafóricas ou anáforas – cadeias anafóricas (cont.)

• Dependências referenciais vs. relações referenciais (e.g. sinonímia)


Nos estudos sobre texto, é habitual tratar conjuntamente dois tipos diversos de
cadeias de valores semânticos: as cadeias de dependências referenciais e as cadeias de
relações referenciais (cf. Peres 2009: 14-15). Convém separá-las: nas cadeias de
dependências referenciais (como nos exemplos dados até aqui), um ou mais dos
elos que formam a cadeia não têm valor semântico independente, obtendo-o a
partir de outros elos colocados antes ou depois deles; nas cadeias de relações
referenciais, diferentemente, as expressões que formam a cadeia têm valor
semântico por si próprias (i.e. são referencialmente autónomas), ainda que os
seus valores estejam relacionados entre si. Os elos são sempre constituintes
lexicais. Interessa destacar as
Parte I. (cont.)

4. Subclassificação das expressões anafóricas/cadeias referenciais


As cadeias referenciais – e, por extensão, as expressões anafóricas nelas
contidas – podem ser subclassificadas de acordo com diferentes parâmetros
gramaticais (morfossintáticos ou semânticos). Destaquemos alguns:
• Parâmetro 1: realização morfossintática das anáforas
As expressões anafóricas podem ser muito diversificadas do ponto de vista da
sua realização morfossintática.
I. Anáforas pronominais (em sentido lato)
São realizadas tipicamente através de pró-formas, unidades lexicais
tradicionalmente classificadas como pronomes (pessoais, demonstrativos,
possessivos, relativos) – e.g. ele, isso, seu, o qual – ou advérbios (de lugar, de
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• Parâmetro 1: realização morfossintática das anáforas (cont.)
I. Anáforas pronominais (em sentido lato) [cont.]

Nota 2: o verbo fazer acompanhado de uma expressão como o mesmo, o, isso (ou
afim) funciona, segundo alguns autores, como uma anáfora pronominal de tipo
verbal (e.g. pró-SV ou pró-[V+complementos]), em contextos em que o antecedente
é accional:
(1) O Paulo [emigrou para França]i em 1965 e o Nuno [fez o mesmo]i um ano
depois.
(2) O chefe [deu uma reprimenda]i à Ana e ela [fez o mesmo]i à sua equipa.
(3) O Paulo [respondeu a tempo]i, mas a Ana não [o fez]i: respondeu já fora do
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• Parâmetro 1: realização morfossintática das anáforas (cont.)
II. Anáforas nulas
As expressões anafóricas podem não ter realização morfológica, correspondendo
a elementos nulos ou categorias vazias.
(1) [O Paulo]i entrou na sala. []i Olhou em redor e []i sentou-se.
[SUJEITOS NULOS, em justaposição e coordenação]
(2) [O Paulo]i vai trabalhar até mais tarde, se []i chegar atrasado, para []i não
ser criticado por ninguém, porque []i detesta situações de conflito
no trabalho. [SUJEITOS NULOS, em subordinação]
(3) [Os pais da Ana]i perguntaram-lhe o que é que ela queria que [eles]i lhe
oferecessem no Natal. Ela pediu uma boneca [] . [cf. Ela pediu-
Parte I. | 4. Subclassificação das expressões anafóricas/cadeias referenciais (cont.)
• Parâmetro 1: realização morfossintática das anáforas (cont.)
II. Anáforas nulas (cont.)

Exemplo notável de anáfora nulas – sujeito de orações infinitivas associadas a


estruturas de controlo. Nas estruturas de controlo, o sujeito nulo de uma frase
infinitiva encaixada é obrigatoriamente correferente com o sujeito da frase
matriz (controlo de sujeito) ou do complemento direto da frase matriz (controlo
de objecto). Existem em inglês estruturas semelhantes.
− estruturas de controlo de sujeito
(1) [O Pedro]i quer []i saltar o muro.
(2) [O Pedro]i não conseguiu []i saltar o muro.
(3) [O Pedro]i tentou []i saltar o muro.
(4) [O Pedro] gostava de [] conseguir [] saltar o muro.
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• Parâmetro 1: realização morfossintática das anáforas (cont.)

Os verbos da frase matriz nas estruturas de controlo de sujeito do slide anterior


podem também ter como complemento uma oração finita (i.e., com o verbo
flexionado no indicativo ou no conjuntivo). Nesse caso, com alguns desses
verbos, mas não com todos, o sujeito da oração encaixada não pode ter a
mesma referência que o da frase matriz, a não ser que a entidade identificada
pelo sujeito não seja o agente/controlador da situação descrita na oração
completiva:

(1) [O Pedro]i quer que []*i/j venha de comboio.


(2) [O Pedro]i não conseguiu que []*i/j adiasse a reunião.
(3) [O Pedro] tentou [] que [] adiasse a reunião.
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• Parâmetro 1: realização morfossintática das anáforas (cont.)

III. Anáforas lexicais


As expressões anafóricas podem ter realização lexical (e.g. sintagmas com núcleos
nominais sem demonstrativos).

(1) Tentei convencer [o Paulo]i a mudar de atitude mas [o teimoso]i não me quis

dar ouvidos e agora []i está em maus lençóis.

(2) A Ana encontrou [um gato]i na rua e trouxe-o para casa. [A (infeliz da)

criatura]i estava uma lástima!


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• Parâmetro 2: categoria dos antecedentes das anáforas


As anáforas podem ter como antecedentes constituintes de diferentes categorias
sintáticas (e, portanto, com diferentes valores referenciais).

I. pró-SN (anáforas nominais)

(1) A Ana chamou [o Pedro]i, mas [ele]i estava distraído e []i não ouviu.

II. pró-SA (anáforas adjetivais)

(1) Previa-se que o debate ia ser [aguerrido]i e foi-[o]i sem dúvida.

(2) A bactéria revelou-se resistente aos principais antibióticos conhecidos. Bactérias assim
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• Parâmetro 2: categoria dos antecedentes das anáforas (cont.)

IV. pró-SP
(1) O Pedro gosta [da Ana]i e eu também gosto []i.
(2) Nem se pode dizer que eu concordo [com a tua opinião] i nem que não
concordo []i. Estou com algumas dúvidas...

V. pró-SV
(3) O Pedro já [esteve no Brasil]i, mas o Manuel não []i.

VI. pró-expressão participial


(4) O muro foi [pintado (com tinta amarela)]i. Foi-[o]i em menos de duas horas.
Parte I. | 4. Subclassificação das expressões anafóricas/cadeias referenciais (cont.)

• Parâmetro 3: posição do antecedente


I. Anáforas em sentido estrito (i.e. retrospectivas)
II. Catáforas
Normalmente, a expressão referencialmente dependente vem depois da
expressão que lhe fixa o referente (i.e. o seu antecedente). Porém, em certos
contextos, é possível o “antecedente” ocorrer depois da expressão
referencialmente dependente, que recebe nesse caso o nome de catáfora. As
catáforas frásicas são relativamente comuns em português; as nominais –
especialmente se não nulas – são menos frequentes.
Parte I. (cont.)

5. Alguns subtipos especiais de expressões anafóricas


• anáforas ligadas (anáforas sem correferência) [“bound variable anaphora”]
Nem sempre é possível interpretar uma expressão anafórica (e.g. uma pró-forma
ou um elemento nulo) como sendo substituível sem mais pelo constituinte lexical
com o qual forma uma cadeia referencial. Tal só acontece quando há correferência,
como em (1), que tem um comportamento diferente de (2):
(1) O jornalista entrevistou [o líder da oposição]i e perguntou-[lhe]i qual era a
[sua]i opinião sobre o aumento do Salário Mínimo Nacional.
≡ “o jornalista entrevistou o líder da oposição e perguntou ao líder da
oposição qual era a opinião do líder da oposição sobre o aumento do
Parte I. | 5. Alguns subtipos especiais de expressões anafóricas (cont.)
• anáforas ligadas (anáforas sem correferência) [“bound variable anaphora”] (cont.)

− Outro exemplo de anáfora ligada :


(1) [Todos os estudantes] [se] inscreveram num curso de cinema. (Peres 2009:
17)
≠ “Todos os estudantes inscreveram todos os estudantes num curso de
cinema.”
≡ “para todos os x membros do conjunto dos estudantes, é verdade
que: x INSCREVEU x (i.e. x inscreveu-se) num curso de cinema”
Contraste-se ainda:
(2) a. [a Ana]i acha que os [seus]i filhos são os mais bonitos. [ANÁFORA COM
Parte I. | 5. Alguns subtipos especiais de expressões anafóricas (cont.)

• anáforas com antecedentes descontínuos [“split antecedents”]

– Reconstituição de antecedentes (de plurais) através de soma individual

(1) [O Pedro]i casou com [a Ana]j. [Eles]i+j conhecem-se desde 2005.

(2) [O Pedro]i combinou com [a Ana]i que seriam [eles]i+j a dar a notícia.

• anáforas seccionantes [“subsectional anaphora”]

(3) [Um casal]X entrou na sala. [Ela]x1∈X trazia um chapéu vermelho.

[Ele] x2∈X uma boina amarela.


Parte I. | 5. Alguns subtipos especiais de expressões anafóricas (cont.)

• outras anáforas reconstrutivas

Por exemplo: reconstrução de antecedentes (de plurais) através de abstracção (cf.


Kamp & Reyle 1993: 342ss.) – exemplo (1) – ou reconstrução de informação
temporal – exemplo (2) [“anáfora temporal reconstrutiva”].

Nestes casos, não há uma única expressão linguística que represente


diretamente o antecedente; a informação relevante é reconstituída a partir do
material presente

(1) A Ana devolveu à Rita muitos livros que ela lhe tinha emprestado. Deixou-
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas(1)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente
Principais problemas: a expressão referencialmente dependente (ou anáfora)
falta (secções A-B), está a mais (secção C) ou tem uma forma inadequada
(secção D).
A. Repetição de expressão lexical em vez de uso de pró-forma

764 “Bastante pior que o anterior, este programa segue, todavia, os moldes do
anterior.” (Diário de Lisboa, 06-06-1990, p. 32, apud Peres 2009: 28)

Repetição da expressão lexical o anterior (com elipse nominal: o anterior [programa]),


em vez de uso de expressão de tipo anafórico. Alternativas:
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)

B. Ausência de pró-forma e outros problemas associados

933 “Existe agora uma lista familiar de queixas europeias contra a política
americana que inclui, embora não se limite, a retirada da administração Bush do
Protocolo de Kyoto (…).” (Tradução de texto de Francis Fukuyama, Público, 20-
08-2002, p. 9, apud Peres 2009: 28)

Inadequação entre o “antecedente” – SN a retirada da administração Bush do Protocolo de


Kyoto – e a posição com anáfora (prospectiva, i.e. catáfora) – SP complemento do
verbo limitar-se (não se limite [SP]). A expressão elíptica não é adequada ao
predicado utilizado.
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)
B. Ausência de pró-forma e outros problemas associados (cont.)

673 “Diversos deputados (...) referiram que a reacção do ministro foi pouco clara
quanto à defesa do seu secretário de Estado. Mas que, possivelmente, porque
não ouvira os ataques dos populares.” (Público, 11-07-1997, p. 5, apud Peres
2009: 28)

(1) A ponte caiu. Sabemos que isso aconteceu {em 1910 / porque houve um
terramoto}.
(2) A ponte caiu. Sabemos que [] {?em 1910 / ??porque houve um terramoto}.
Anáfora nula em posição de oração principal, realizando-se apenas o adjunto
adverbial de valor causal porque não ouvira os ataques dos populares. O antecedente é a
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)
C. Adição de pró-forma
C1. Adição simples de pró-forma em estruturas tipicamente elípticas
124 “Finalmente, as jovens de hoje são mais realistas e cínicas do que nós o
éramos na juventude.” (Público, 03-08-2001, p. 9, apud Peres 2009: 28)

Em certas construções, como as conformativas (cf. Peres e Móia 1995) – cf. (1)
– e as comparativas (cf. Móia 2015) – cf. (2) –, os falantes tendem a evitar o
uso de anáforas pronominais.
(1) a. O presidente decidiu recandidatar-se, como eu {supunha / disse}.
b. ??O presidente decidiu recandidatar-se, como eu o {supunha /
disse}.
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)
C. Adição de pró-forma (cont.)
C2. Adição de pró-forma associada a redundância de argumentos

«Factura Electrónica / quarta-feira, 20 de Abril de 2005


A PT acaba de lançar o novo Serviço de Factura Electrónica. Um serviço inovador
que lhe permite controlar (…) as suas contas com toda a comodidade e
segurança. Encontrar novas soluções tecnológicas que lhe facilitem e melhorem a
vida dos clientes é e sempre foi o papel da PT.» (www.telecom.pt, 23-05-2005,
apud Peres 2009: 28)

(1) a. O Pedro cortou um ramo {à árvore / da árvore}.


b. O Pedro {cortou-lhe um ramo / cortou um ramo dela}.
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)
C. Adição de pró-forma | C2. Adição de pró-forma associada a redundância de argumentos (cont.)

1136 «Tanto bastou que o Governo anunciasse o lançamento de alguns grandes


projectos de infra-estruturas para que surgissem, como cogumelos após as
primeiras chuvas de Outono, os artigos de opinião contra aquilo que já se tornou
comum apelidar política do betão.» (Expresso, ECONOMIA, 24-05-2008, p. 29, apud
Peres 2009: 29)

(1) BASTAR (X, para Y)


a. Bastou [{o Governo anunciar / que o Governo anunciasse} uma
subida de impostos]X para [{as bolsas entrarem / que as bolsas
entrassem} em colapso]Y.
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)

D. Problemas com a forma da anáfora – problemas de estrutura argumental ou de caso de


pronomes pessoais

495 “A pouca simpatia que os da situação lhe nutriam impediu-lhe uma carreira
clínica normal e foi assim que ele entrou no mundo dos negócios (...).” (O Jornal,
02-08-1991, p. 21, apud Peres 2009: 28)

A forma dos pronomes pessoais depende do predicado que os seleciona (e da


função que desempenham na frase):

(1) a. o general telefonar ⇒ ele telefonar [SUJEITO (NOMINATIVO)]


Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)
D. Problemas com a forma da anáfora – problemas de estrutura argumental ou de caso de pronomes pessoais (cont.)

493 “O caso mais insólito que conhecemos é o de um homem de 52 anos que


recentemente encontrou uma carta de um amigo, escrita em 1961, desde então
esquecida no fundo de uma gaveta. E apressou-se a respondê-la, dando-lhe as
informações que o amigo pedia, sobre o paradeiro de algumas namoradas.” (O
Jornal Ilustrado, 23-08-1991, p. 20, apud Peres 2009: 28)

(1) responder a uma carta ⇒ responder-lhe / *respondê-la


Note-se ainda que na interpretação em que lhe (em dando-lhe) e o amigo (em o amigo
pedia) formam uma cadeia referencial, a ordem anáfora pronominal / anáfora
lexical é também fonte de alguma estranheza.
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
1. Problemas com a expressão referencialmente dependente (cont.)
D. Problemas com a forma da anáfora – problemas de estrutura argumental ou de caso de pronomes pessoais (cont.)

126 “Mas em qualquer dos casos, só tem de ligar para lá – se for necessário
registo, sê-lo-á pedido no momento da sua ligação.” (Público, 19-12-1994, p.
XVIII, apud Peres 2009: 28)

Uso indevido de clítico acusativo (lo) em construções passivas, que não possuem
nunca complemento direto.
(1) O funcionário pedirá um registo ao Pedro. [FRASE ACTIVA]
(2) a. Será pedido um registo (ao Pedro) (pelo funcionário). [FRASE
PASSIVA]
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)

2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão


referencialmente dependente)
Principais problemas: o antecedente não existe (secção A) ou é categorialmente
incompatível com a anáfora (secção B).
A. Ausência (simples) de antecedente
− elemento anáforico lexical sem antecedente

“Nos últimos dias, (...) a falta de sentido de Estado tomou conta de vários
políticos. Fragilizar o supervisor do sistema financeiro na situação atual é a pior
coisa que se pode fazer. Mas fazê-lo deixando a pairar a ideia de que a culpa é
do supervisor e não de quem cometeu actos lesivos é errar completamente o
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
A. Ausência (simples) de antecedente | elemento anáforico lexical sem antecedente (cont.)

O SN definido o facto (no excerto do slide anterior) é anafórico. Para ser


interpretado, o texto tem de conter referência a algo que tenha sido apresentado
como um facto, o que não acontece no excerto transcrito.

Alternativa (assumindo um dada intepretação):

(3) [Fragilizar o supervisor do sistema financeiro na situação actual] i é a pior

coisa que se pode fazer. Mas [fazê-lo]i deixando a pairar a ideia de


que a culpa é do supervisor e não de quem cometeu actos
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
A. Ausência (simples) de antecedente (cont.)

− elemento nominal aposto sem antecedente

245 “O Governo filipino apresentou ontem queixa contra Imelda Marcos, mulher
do exditador Ferdinando Marcos, por fraude fiscal, preparando assim o
julgamento da viúva do falecido presidente para quando esta regressar ao país,
autorização que lhe acaba de ser concedida e que vai ao encontro dos seus
reiterados pedidos nesse sentido.” (Público, 02-08-1991, p. 21, apud Peres 2009:
29)
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
A. Ausência (simples) de antecedente | elemento nominal aposto sem antecedente (cont.)

Porém, no excerto dado acima, o nome aposto autorização ocorre numa posição
em que ainda não tinha sido mencionada qualquer autorização.
Alternativas:

(1) ... preparando assim o julgamento da viúva (...) para quando [esta
regressar ao país]i. A autorização para [esse regresso]i acaba, aliás, de ser-lhe

concedida, {indo / o que vai} ao encontro... [JUSTAPOSIÇÃO DE FRASES]


Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]

B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (ou ausência de antecedente


adequado, dependendo da análise)

Cada frase da primeira coluna de (1) só pode ser seguida por uma das frases da
segunda coluna e nenhuma destas últimas é adequada como continuação da
frase (2), o que mostra que há restrições combinatórias fortes (de natureza
morfológica, sintática e semântica) à formação de cadeias referenciais.

(1) A Ana deitou-se no sofá. Fez isso porque estava cansada.


Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (ou ausência de antecedente adequado) [cont.]

B1. Antecedente proposicional e pró-forma nominal

616 “A partir de hoje, se é um dos 200 milhões de falantes do português que


existem em todo o mundo, vai poder ter a sua página na WWW sem pagar nada
por isso. Quem o oferece é a Iniciativa Mosaico, (...) através do projecto
Terràvista (...).” (apud Peres 2009: 30)

O verbo oferecer – ao contrário de permitir, por exemplo – admite complementos


nominais, mas não frásicos (cf. *quem oferece {que você possa ter / você poder ter} é...).
Logo é necessário mudar algo na estrutura. Alternativas:
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial | B1. Antecedente proposicional e pró-forma nominal (cont.)

768 “Eis um recado para os PALOP: se quiserem dialogar na língua portuguesa (o


que não existe), urge fazer com que a alfabetização – alargada a toda a
população – se torne num exercício do mesmo (refiro-me ao diálogo), pelo qual a
realidade social é descodificada com o fim de revelar, claramente, o
empenhamento da palavra na infra-estrutura do poder político.” (Público, 29-09-
1991, p. 23, apud Peres 2009: 30)

O verbo existir admite sujeitos nominais, mas não frásicos (cf. o diálogo não existe vs.
*dialogar não existe). Logo é necessário mudar a estrutura. Alternativas:
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (cont.)

B2. Antecedente nominal e pró-forma de tipo verbal ou proposicional

Expressões com propriedades anafóricas do tipo de fazer isso, fazê-lo ou fazer o


mesmo requerem um antecedente com duas propriedades:

(i) sintacticamente, tipo verbal/proposicional (não e.g. nominal)

(1) O Paulo pensou reformar-se, mas não o fez ainda.


(2) *O Paulo pensou na reforma, mas não o fez ainda.
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (cont.)B2. Antecedente nominal e pró-forma de tipo verbal ou
proposicional (cont.)

765 “O Governo regional da Madeira apreciou ontem uma proposta de decreto


legislativo regional que possibilita a reforma antecipada aos agentes e
funcionários da administração pública que o pretendam fazer.” (Público, 09-07-
1994, p. 24, apud Peres 2009: 30)

A sequência (descontínua) o... fazer requer um antecedente frásico, que não está
presente no texto. Alternativas:
− manter antecedente nominal (a reforma antecipada), usar anáfora pró-SN (a), que
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (cont.)B2. Antecedente nominal e pró-forma de tipo verbal ou
proposicional (cont.)

1145 “Estas são as questões essenciais a que José Sócrates tem de responder e
que, salvo melhor opinião, ainda não vi que tenha feito satisfatoriamente.”
(Expresso, PRIMEIRO CADERNO, 30-01-2009, p. 33, apud Peres 2009: 30)
− antecedente nominal (questões essenciais), anáfora pró-SN
(1) ... as questões essenciais a que José Sócrates tem de responder e a que,
salvo melhor opinião, ainda não vi que tenha respondido
satisfatoriamente
− antecedente verbal/proposicional (responder), anáfora com fazer (+ o que)
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]

B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (cont.) B3. Antecedente não participial (verbal ou
nominal) e pró-forma participial
O clítico demonstrativo (invariável) o pode formar cadeias com expressões
participiais em construções passivas:
(1) O trabalho já foi feito. Foi-o em menos de quatro horas.
(2) O trânsito na ponte foi interrompido no sábado. Foi-o para que pudesse
passar a comitiva presidencial.
Para o seu uso regular, tem de haver um antecedente verbal participial, que não
existe nos três textos seguintes.

654 “José Afonso Pimentel pensa que trabalho infantil está conotado com
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (cont.)B3. Antecedente não participial (verbal ou nominal) e pró-
forma participial (cont.)

772 “É possível que a SIC ou Albarran, ou os dois tenham infringido regras de


decência. Se assim foi, espera-se que corrijam o que deve sê-lo.” (Público, 23-02-
1997, p. 9 apud Peres 2009: 29)

Há uma cadeia anómala com um antecedente verbal/frásico não participial (frase


activa não passiva – cf. uso da forma corrijam). Alternativas:
Parte II: Análise de textos com cadeias referenciais problemáticas (cont.)
2. Problemas com o antecedente (ou com a ligação entre o antecedente e a expressão referencialmente dependente) [cont.]
B. Incompatibilidade entre elementos da cadeia referencial (cont.)B3. Antecedente não participial (verbal ou nominal) e pró-
forma participial (cont.)

354 “Ministro alega segredo de justiça


Tal tese não foi acolhida pelos parlamentares, que consideram estar-se (...)
perante uma tentativa de sonegar informações aos parlamentares, informações
estas que não podem cair sobre a alçada da figura do segredo de justiça, pois se
o fossem também o ministro não poderia ter acesso a essas.” (Diário de Notícias,
16-05-1991, p. 3, apud Peres 2009: 29)

Há uma cadeia anómala com um antecedente verbal/frásico não participial (frase


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Exercício (5 casos adicionais para análise)


(i) “A fissão nuclear pode também libertar (...) energia muito (...) rapidamente se
forem criadas as condições para uma reacção em cadeia. Nesse caso, a energia que a
radioactividade natural do urânio levaria milhares de milhões de anos a libertar é-o
numa fracção de segundo.” (in Átomo, Isaac Asimov, tradução do inglês, Campo das
Letras, Porto, 2004, p. 171)
(ii) “O Supremo Tribunal Administrativo determinou que a Câmara Municipal do
Montijo terá de pagar um subsídio de reintegração profissional ao ex-vereador da
CDU, Serra da Graça, na ordem dos 15 mil euros. A sentença, datada do passado mês
de Dezembro, não é passível de recurso e confirma a decisão de primeira instância,
reconhecendo esse direito (...).” (A Capital, 14.01.2004, p. 9)
Referência bibliográficas
Alves, Ana Teresa: 2001, Sobre a anáfora temporal reconstrutiva, Actas do XVI Encontro Nacional da
Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa: APL, pp. 79-90.
Kamp, Hans & Uwe Reyle: 1993, From Discourse to Logic – Introduction to Modeltheoretic Semantics of
Natural Language, Formal Logic and Discourse Representation Theory, Kluwer, Dordrecht.
Lobo, Maria: 2013, “Dependências Referenciais” in Eduardo B. P. Raposo et al. (orgs.),
Gramática do Português, Lisboa: F. Calouste Gulbenkian, pp. 2175-2227.
Móia, Telmo: 2015, “Variação e Desvio em Estruturas Comparativas do Português”, in XXX
Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Textos Selecionados 2014. Porto, 22, 23 e
24 de outubro de 2014. Porto: APL, pp. 403-417. Disponível em:
http://www.clul.ulisboa.pt/files/telmo_moia/tmoia_APL2014.pdf
Payne, John, Geoffrey Pullum, Barbara Scholz & Eva Berlage: 2013, “Anaphoric One and its

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