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OBSERVATÓRIO DA ECONOMIA CONTEMPORÂNEA

O Teto de Gastos,
Indiana Jones e a Arca
do Tesouro
Observatório da Economia Contemporânea | Brasil
por Luiz Gonzaga Belluzzo
8 de setembro de 2021

Amparado nas certezas dos modelos Dinâmicos


Estocásticos de Equilíbrio Geral, o Indiana Jones do
mercado vai à caça da Arca Perdida, certamente
enterrada em algum escaninho abaixo do Teto de
Gastos, sob o olhar vigilante do guardião Paulo
Guedes. Novo artigo do Observatório da Economia
Contemporânea
Vejo e ouço as sabedorias da turma da Globonews e da CNN a
ruminar as perplexidades com o pagamento dos precatórios. O
espanto dos sábios da telinha foi provocado pela dificuldade de o
governo Bolsonaro encontrar os recursos necessários para
financiar a Renda Brasil prometida por Paulo Guedes.

Nas falas de uns e nas conjeturas de outros está homiziado o Teto


de Gastos, em sua inexpugnável, mas sempre ameaçada, solidez.
Uma vez trincada a cobertura, dizem eles, a economia se
precipitaria nos abismos da hiperinflação e da desgraça dos
pobres e paupérrimos.

Quando aponto os controles para os dois canais de notícias fico


empolgado, na esperança de fruir os ensinamentos do “nosso

bro 2021
timaço de comentaristas”, solenemente anunciados pelas âncoras
ou pelos âncoras da variada programação. Isso para não falar do
deleite em observar o desfile de elegância protagonizado por
senhoras e senhores da notícia.

Devo admitir: quando ouço perplexidades travestidas em


expressões do tipo “não sei de onde vão tirar o dinheiro”, sou
tomado pela tentação de invadir o terreno da ficção econômica.
Sugiro aos simpáticos jornalistas pedir emprestado a Steven
Spilberg o uniforme do Indiana Jones e estimular um ilustre
economista de mercado a vestir a fatiota de Indiana Jones, além
de instigar no Farialimer o destemor de Harrison Ford em seu
de instigar no Farialimer o destemor de Harrison Ford em seu
enfrentamento com múmias e demônios.

Há que cuidar da escolha da companheira de proezas de Indiana.


Dúvidas não me acodem sobre o acerto de se recrutar a heroína
entre as simpáticas e elegantes comentaristas da CNN, também
devotas fiéis dos “especialistas do mercado”.

Assim paramentado e acompanhado, o sábio da Crematística vai


se sentir em condições de resolver a encrenca da falta de
dinheiro. Amparado nas certezas dos modelos Dinâmicos
Estocásticos de Equilíbrio Geral, o Indiana Jones do mercado vai à

caça da Arca Perdida, certamente enterrada em algum escaninho


abaixo do Teto de Gastos, sob o olhar vigilante do guardião Paulo
Guedes.

Uma vez encontrada a Arca da Fortuna, é só mandar brasa no


gasto com o dinheiro redescoberto. Imagino que Arquimedes
cederia de bom grado a expressão Eureka! à proeza de tal calibre
e impetuosa criatividade. Tira a dinheirama metálica da Arca
Perdida e paga, indistintamente, pobres e paupérrimos com
moedas de ouro.

No auge da Grande Depressão dos anos 1930, o sistema


monetário-financeiro do padrão-ouro em colapso, Ludwig von
Mises, economista da confraria austríaca recomendou a defesa
das reservas metálicas. Isso com mais de 25% de desemprego nos
Estados Unidos e mais de 30% na Alemanha. Dizia que isso iria
garantir que ricos e pobres vivessem em uma economia saudável.

Nesse momento de penúria e sofrimento não foram poucos os


que invocaram O Livro do Eclesiástico, versículo 31, 5, para
demonizar a moeda que os economistas austríacos consideravam
verdadeira: “Aquele que ama o ouro dificilmente escapa do
pecado”. Na Eneida, o poeta Virgílio, em versos contundentes
proclamou “A que não obrigas os corações humanos, ó execranda
fome do ouro!”

John Maynard Keynes não deixou barato e escreveu uma diatribe


contra o padrão-ouro intitulado Auri Sacra Fames, a Execranda
Fome do Ouro. Não faltou, no Brasil Varonil, quem traduzisse o
verso de Virgílio como “A Sagrada Fome do Ouro”. Devemos
admitir que os esgares e piripaques dos mercados e de seus
economistas diante das ameaças de violação do Teto permitem
compreender a troca semântica: sai Execranda entra Sagrada.

Tantas e tais foram as imprecações contra o padrão ouro que,


agarrado à sua natureza inquieta e criativa, o capitalismo
libertou-se dos incômodos e inconveniências das amarras
auríferas. Assim, sistemas monetários modernos ultrapassaram as
limitações impostas pela consubstanciação das funções
monetárias em uma mercadoria particular (caso do ouro ou dos
sistemas monetários que prevaleceram até o início do século XX).
sistemas monetários que prevaleceram até o início do século XX).

Hoje esses sistemas são fundados exclusivamente na confiança e


não em automatismos relacionados a uma imaginária escassez do
metal ou ao caráter “natural” da moeda- mercadoria. “E o lastro?”,
perguntam os saudosos do padrão-ouro. Ah sim, a âncora,
retrucam os contemporâneos. Diria Hegel que a moeda realiza o
seu conceito: é uma instituição social ancorada nas areias
movediças da confiança. Fiducia, Credere.

Em um Boletim de 2014, “Money Creation in the Modern


Economy”, o Banco da Inglaterra ensina que nos sistemas
monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em
primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder
de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção
e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra
si próprios, ou seja, depósitos à vista, o meio de pagamento
dominante. A criação monetária depende da avaliação dos bancos
a respeito do risco de cada aposta privada.

O dinheiro ingressa na circulação com a benção do Estado, o


cobrador de impostos, e a unção das relações de propriedade,
isto é, decorre das relações estabelecidas entre credores e
devedores, mediante a cobrança de uma taxa de juros. No circuito
da renda monetária, os gastos privados e públicos precedem a
coleta de impostos. As razões são óbvias. Não há como recolher
impostos, se a renda não circula.

O banco credor empresta exercendo a função de agente privado


O banco credor empresta exercendo a função de agente privado
do valor universal. O devedor exercita seus anseios de
enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a
potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial,
promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se
o devedor não servir a dívida, o banco, agente privado do valor
universal, deve expropriar o inadimplente. A política monetária
do Estado é incumbida, em cada momento do ciclo de crédito, de
estabelecer as condições que devem regrar e disciplinar as
expectativas de credores e devedores. Faz isso mediante a taxa de
juros que remunera as reservas bancárias.

No livro First Responders, organizado por Ben Bernanke, Henry


Paulson e Timothy Geithner, assessores do Federal Reserve e do
Tesouro registram as características dos mercados
contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma
fundamental nas décadas que antecederam à crise de 2008: mais
crédito e precificação de risco foram intermediados nos
mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não
bancárias. Muitas dessas instituições dependem de
financiamento de curto prazo nos mercados monetários
atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis;
assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos
investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio
do mercado”.

Nos tempos de “normalidade”, esses mercados financeiros


Nos tempos de “normalidade”, esses mercados financeiros
ocupam-se de diversificar a riqueza de cada grupo, empresa ou
indivíduo, distribuí-la por vários ativos na esperança de assegurar
o máximo de ganhos patrimoniais. Os agentes dessas operações,
bancos e demais instituições não bancárias, procuram antecipar
provimentos de preços e administrar os instrumentos de hedge e
os riscos de contraparte.

Em um clima de convenções “otimistas”, bancos e demais


instituições financeiras cuidam de antecipar o “estado de
confiança” e estimar as condições de liquidez dos mercados, em
conformidade com a evolução dos balanços de empresas,
famílias, governos e países.

Sim, países, porque, na era da finança global, a integração dos


mercados submeteu o processo de “precificação” dos ativos
privados e públicos denominados em moedas distintas às
antecipações acerca dos rendimentos dos ativos “de última
instância”, líquidos e seguros, emitidos pelo Estado gestor da
moeda-reserva. Esses títulos são o fundamento do sistema de
criação de moeda fiduciária à escala global, o último refúgio da
confiança. Há, portanto, uma hierarquia de moedas – conversíveis
e não conversíveis – que denominam ativos de “última instância”
em cada jurisdição monetária.

A crise financeira de 2008 ofereceu a oportunidade de se


examinar a resposta da política econômica à desorganização e ao
pânico dos mercados. O Quantitative Easing (QE) trouxe à tona o
pânico dos mercados. O Quantitative Easing (QE) trouxe à tona o
que se movia nos subterrâneos: a articulação estrutural entre o
sistema de crédito, a acumulação financeira-produtiva das
empresas e a gestão monetária do Estado.

O QE ressaltou, ademais, a importância da expansão da dívida


pública para o saneamento e recuperação dos balanços das
instituições financeiras. Salvos da desvalorização dos ativos
podres que carregavam e agora empanturram o balanço dos
bancos centrais, os bancos privados e outros intermediários
financeiros garantiram a qualidade de suas carteiras e
salvaguardaram seus patrimônios, carregando títulos públicos
com rendimentos reduzidos, mas valor assegurado. Os títulos dos
tesouros com rendimentos pífios não cessavam de atrair a volúpia
dos investidores apavorados.

Seria interessante observar as relações entre a dívida pública e a


dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da
atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias se
expande nos períodos de crescimento e “confiança”. A dívida
pública se expande nos períodos de depressão e recessão. O
Gráfico abaixo ilustra as relações entre endividamento público e
privado, desde os anos 1870 até 2010. Os dois picos protuberantes
do endividamento público refletem as finanças durante as duas
guerras mundiais.
Os bancos, sob a supervisão dos bancos centrais, emprestam às
empresas e às famílias. As instituições financeiras não bancárias
emitem títulos que, abrigados nos portfólios, próprios e de outras
instituições, amparam as “poupanças” das empresas e das
famílias, poupanças acumuladas ao longo dos sucessivos circuitos
de gasto-emprego-renda. Títulos públicos e privados são
emitidos nos mercados primários, abrigados nos portfólios das
instituições e negociados nos mercados secundários. Nos bons
tempos, a precificação dos ativos gerados no processo de
endividamento define uma curva de juros ascendente conforme a
duration.

Na pandemia econômica, os nexos monetários foram rompidos e


os proprietários privados, aí incluídos os proprietários da força
de trabalho, foram excluídos do circuito da renda. A propriedade
perdeu sua função crucial de legitimar a apropriação da renda e a
valorização da riqueza. O mercado vira uma mixórdia: não é capaz
de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto
de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto
risco. Trata-se do fenômeno da indiferenciação. A precificação
dos ativos só aponta para baixo, jogando os juros longos para
cima. Incumbe ao Banco Central achatar a curva, comprando os
longos e vendendo os curtos.

A fuga desesperada para a liquidez atesta que, na derrocada, não


há ativos melhores ou piores. Todos são fâmulos desprezíveis
perante o dinheiro. A crise desvela o segredo que o sodalício dos
Crentes da Sabedoria Informacional dos Mercados – uma seita
poderosa – pretende abafar: em sua dimensão monetária, o
capitalismo revela o indissociável contubérnio entre o Universal e
o Particular, entre o Estado e o Mercado, entre a Comunidade e o
Indivíduo.

No pandemônio econômico os mercados gritam: “O Dinheiro


acima de Todos, o Estado acima de Tudo”. A restauração das
relações de propriedade e de apropriação só pode ser efetuada
pela ação discricionária do Estado – Banco Central e Tesouro

Nacional. É o paradoxo da livre-iniciativa. A iniciativa é livre


enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto
protetor da moeda, instituição social administrada pelo Estado.

O banco credor empresta exercendo a função de agente privado


do valor universal. Aí está implícita a tensão constitutiva entre o
caráter público e a dimensão privada do Dinheiro Capitalista, ou
caráter público e a dimensão privada do Dinheiro Capitalista, ou
se quiserem, da Economia Monetária da Produção.

Somente uma forma de riqueza dotada de reconhecimento


diretamente social, garantido pelo Estado, é capaz de assegurar a
validade das decisões e dos critérios de enriquecimento privado
nas economias capitalistas. As políticas monetária e fiscal do
Estado soberano estabelecem, em cada momento do ciclo de
crédito, as condições que devem regrar e disciplinar as
expectativas de credores e devedores.

Nos momentos de crise, como hoje, a ruptura dos circuitos


monetários fomentados pelo crédito e pelo gasto entrega ao
gestor público da moeda um poder extraordinário.

Essa forma de criação monetária está submetida às relações


indissociáveis e conflituosas entre os poderes da propriedade
privada e da soberania estatal. À pretexto de se cingir às regras
da “ciência”, a teoria econômica dita ortodoxa expurga as relações
de poder de uma disciplina que, supõe-se, cuida da sociedade dos
homens e de seus poderes.

Em entrevista do atual presidente do Federal Reserve Jerome


Powell ao programa 60 minutes, disponível na internet, é possível
assistir ao seguinte diálogo:

“Entrevistador: Você simplesmente inundou o sistema com


dinheiro?
Jerome Powell: Sim, nós fizemos. É uma outra forma de pensar
nisso. Nós fizemos.

Entrevistador: De onde ele vem? Você simplesmente imprimiu?

Jerome Powell: Nós imprimimos digitalmente. Como Banco


Central nós temos a habilidade de criar dinheiro, digitalmente, e
nós fazemos isso comprando títulos do tesouro ou bonds, o que
na realidade amplia a oferta de dinheiro. Nós também
imprimimos moeda efetivamente e distribuímos pelos bancos do
Federal Reserve.”

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor da Unicamp e fundador da


Facamp.

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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a
discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e
conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua
ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento
aprofundado da conjuntura internacional e da economia
brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório,
economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de
diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre
Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio,
Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio,
Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar,
Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz
Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis
Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy,
Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano,
Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de
Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso
Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga
Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa
Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo
Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia
Bacelar e William Nozaki.

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