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INTRODUÇÃO
1
De acordo com Elisa Costa Cruz, “da filiação decorre o poder familiar, a partir do qual emerge um complexo
de situações jurídicas que atribuem aos pais a responsabilidade sobre a pessoa e os bens do filho até a maioridade
civil”. A Autora, contudo, reputa mais adequado o uso da expressão “responsabilidades parentais”, por, segundo
ela, “enfatizar o conjunto de atribuições conferidas pelo ordenamento aos pais para desenvolverem e cuidarem
de seus filhos” (in Guarda Parental: releitura a partir do cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2021, p.
51-65.
2
Entende-se por microssistema de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente o
conjunto de referenciais normativos internacionais e nacionais, assim como Comentários Gerais do Comitê
sobre os Direitos da Criança nas Nações Unidas, as Opiniões Consultivas da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e a jurisprudência, tanto da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto dos tribunais nacionais.
A compreensão de que a base jurídica dos direitos da criança e do adolescente é significativamente maior do
1
objetivo de garantir a proteção integral, com prioridade absoluta, das pessoas em
desenvolvimento. Essa intervenção ocorre por meio de medidas especiais de proteção, que
podem consistir desde uma advertência aos pais, o referenciamento do grupo familiar em
uma ou mais políticas públicas setoriais (como os serviços e equipamentos do Sistema Único
de Saúde, do Sistema de Ensino ou do Sistema Único de Assistência Social) e até a suspensão
ou perda do poder familiar3.
Embora as hipóteses legais que possibilitam o decreto judicial de perda do poder
familiar estejam expressamente previstas, em rol taxativo, no Código Civil (art. 1.638), sua
redação apresenta baixíssima densidade semântica, ocasionando, por conseguinte, intensas
controvérsias interpretativas. Talvez o exemplo mais ilustrativo esteja no inciso III do art.
1.638 do Código Civil, que autoriza a destituição do poder familiar em decorrência da prática
de “atos contrários à moral e aos bons costumes”.
Afinal, quais são os atos contrários à moral e aos bons costumes que, uma vez
praticados, autorizam medida de tão drástica natureza quanto a perda da chance de conviver
com o próprio filho e vê-lo encaminhado a outra família?
A pesquisa que se apresenta pretende analisar a forma como o Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo vem interpretando tal dispositivo, mais especificamente em relação
ao consumo de substâncias psicoativas por parte da mãe. Esse recorte se justifica na medida
em que, de acordo com o levantamento nacional sobre os acolhimentos institucionais de
crianças e adolescentes realizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP),
mais de 80% das separações entre crianças, adolescentes e seus pais ocorrem em virtude do
uso de drogas ilícitas pelos genitores, sendo, em 2012, o segundo maior fundamento para as
separações familiares e, em 2013, o principal fundamento para os acolhimentos de crianças
e adolescentes4.
O principal objetivo da pesquisa é, portanto, buscar compreender o arranjo
argumentativo e a arquitetura discursiva utilizada por Desembargadores/as do Tribunal de
que o conjunto de previsões contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente é salutar para a compreensão
holística desse específico ramo do direito.
3
Cf. Arts. 101, 129 e 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
4
BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público, Relatório da Infância e Juventude – Resolução nº
71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no País. Brasília:
CNMP, 2013, p. 45-46.
2
Justiça Paulista para a confirmação de decretos de perda do poder familiar em razão do uso
de substâncias psicoativas ilícitas pela mãe.
O âmbito de amostragem das decisões estudadas foi delineado a partir de uma
série de filtros seletores. A ferramenta de busca utilizada foi o próprio banco eletrônico de
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1), no qual foram consultadas as
seguintes palavras-chave: “destituição do poder familiar”, “genitora”, “usuária”, “drogas”.
De todos os resultados encontrados, fez-se um primeiro recorte em relação ao
recurso que originou a decisão colegiada. Optou-se pela seleção de apelações que versassem
sobre os dos seguintes assuntos previamente estabelecidos na taxonomia do sistema: “11986
- suspensão ou extinção do poder familiar”; “12155 - suspensão do poder familiar”; “12156
- extinção do poder familiar”; “50091 – descumprimento deveres poder familiar”; “50103 –
destituição de poder familiar”; “50161 – suspensão do poder familiar”. A preferência pelo
julgamento de apelações (e não de agravos de instrumento, por exemplo) se justifica tanto
pela extensão quanto pela profundidade do efeito devolutivo deste recurso, o que permite,
por consequência, maior liberdade discursiva aos/às Desembargadores/as na análise e
julgamento dos casos.
Diante desse universo mais reduzido de resultados – mas, ainda assim, bastante
amplo – optou-se pela aplicação de outros dois filtros, iniciando-se pela restrição geográfica
das amostras (foram selecionados apenas casos julgados originariamente pelas Varas da
Infância e Juventude da Capital do Estado). Por fim, foram selecionados apenas os acórdãos
proferidos pela Câmara Especial5 entre 01/01/2020 e 31/12/2020, chegando-se, ao final, a 30
casos.
A metodologia de pesquisa adotada será a análise de discursos e terá como
referencial teórico as lições de Michel Foucault contidas em sua aula inaugural no Collège
de France, de 02 de dezembro de 1970, intitulada A Ordem do Discurso (2004) e em sua obra
A arqueologia do Saber (1969). As indagações propostas, portanto, buscarão compreender
5
De acordo com o art. 33 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Câmara
Especial, presidida pelo Vice-Presidente do Tribunal, é integrada pelos Presidentes das Seções e pelo Decano,
a ela competindo processar e julgar, dentre outros, os processos originários e os recursos em matéria de Infância
e Juventude (inciso IV).
3
as formas pelas quais o poder se liga a determinados discursos a fim de produzir específicas
subjetividades e regimes de verdade6.
Em síntese, pode-se conceituar a análise de discurso7 como a ferramenta
metodológica que busca evidenciar a relação entre a língua, o discurso e a ideologia8; parte
de narrativas que são aceitas como naturais do mundo social e, a partir de reflexões críticas
e interdisciplinares (procedimento de “escavação vertical de camadas descontínuas dos
discursos pronunciados”9), passa a compreendê-las como resultado de uma complexa trama
de poderes.
Para atingir o objetivo proposto, serão inicialmente apresentados temas
transversais a todos os 30 julgados, extraindo-se de acórdãos representativos excertos
argumentativos que apresentem a forma pela qual o Tribunal trabalha discursivamente cada
tema. Após, serão apresentados estudos interdisciplinares e pesquisas empíricas que tratem
dos mesmos temas, com o objetivo de se estabelecer o cotejo analítico entre o discurso do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e os demais saberes, com vistas à confirmação
ou não das conclusões trazidas pelos/as julgadores/as.
Ao final, já em sede de conclusão, serão apresentadas algumas hipóteses
explicativas de eventuais antagonismos identificados entre os fundamentos de decisão
trazidos pelo Poder Judiciário e o saber científico produzido pelos demais campos do
conhecimento.
6
FERREIRA, Maurício dos Santos; TRAVERSINI, Clarice Salete. A análise foucaultiana do discurso como
ferramenta metodológica de pesquisa. Revista Educação & Realidade, v. 38, n. 1, jan/mar, Porto Alegre,
2013, p. 209-210. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade. Acesso em 22/06/2021.
7
A análise de discurso não possui uma metodologia pronta; em análise do discurso, “teoria e metodologia
caminham juntas, lado a lado, uma dando suporte à outra, não podendo separá-las” (SILVA, Jonathan Chasko
da; ARAÚJO, Alcemar Dionet de. A metodologia de pesquisa em análise do discurso. Grau Zero – Revista
de Crítica Cultural, v. 5, n.1, 2017, p. 20)
8
SILVA, Jonathan Chasko da; ARAÚJO, Alcemar Dionet de. A metodologia de pesquisa em análise do
discurso. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 5, n.1, 2017.
9
AZEVEDO, Sara Dionízia Rodrigues de. Formação discursiva e discurso em Michel Foucault. Revista
Filogenese/UNESP, vol. 6, n. 2, 2013, p. 149
4
Conforme visto acima, são inúmeros os casos de separação familiares
fundamentados em uma narrativa que pressupõe como inconciliáveis o exercício da
parentalidade e o uso de substâncias psicoativas ilícitas.
Em matéria publicada no ano de 2017, por exemplo, a Vara da Infância e
Juventude do Foro Central da Capital Paulista noticiou que 90% das adoções de bebês são
justificadas pelo uso de crack pelas mães10.
A situação ganhou ainda mais destaque no debate público após a edição de duas
recomendações pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, que orientavam a
comunicação, pelas maternidades públicas às Varas da Infância e Juventude de todos os
partos de mulheres usuárias de drogas. Só nesse Estado, aliás, de 2014 a 2017, 359 bebês
foram retirados do convívio com suas mães e familiares diretamente nas maternidades
públicas11.
O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, até 2016, estabelecia que toda
criança ou adolescente teria direito a ser criado e educado no seio de sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária,
em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
Embora a locução final do dispositivo (acima destacada) tenha sido substituída
pela expressão “em ambiente que garanta o seu desenvolvimento integral”, boa parte da
doutrina especializada continuou sustentando que o convívio de crianças e adolescentes com
pessoas que fazem uso de substâncias ilícitas lhes seria inevitavelmente prejudicial e,
portanto, inaceitável. Nesse sentido, de acordo com as lições de Katia Regina Ferreira Lobo
Andrade Maciel
Não há como negar a forte influência do comportamento parental no
desenvolvimento da personalidade dos filhos e o impacto que pode causar em sua
formação moral, já que é natural que a prole se espelhe nos pais e repita o mesmo
modelo de vida e valores. Sendo assim, a prática de atos contrários à moral e aos
bons costumes também poderá ensejar a penalidade máxima de retirada da
autoridade familiar. Deste modo, poderão ser destituídos do poder parental os pais,
por exemplo, que utilizam substâncias entorpecentes ou ingiram bebidas alcóolicas
usualmente, a ponto de tornarem-se drogados ou alcoólatras; permitem que os
10
“Dependência de crack é responsável por 90% dos bebês adotados na região central de SP”. In: Rede Brasil
Atual, 23.07.17. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/07/crack-e-responsavel-
por-cerca-de-90-dos-bebes-colocados-para-adocao-em-sao-paulo/>. Acesso em 02/11/19
11
Os intensos debates sobre as Recomendações, posteriormente revogadas, podem ser encontrados na
compilação feita pela página online “De quem é este bebê? Por mais Saúde e menos abrigamentos em BH”,
disponível em: < https://dequemeestebebe.wordpress.com/entenda-o-caso/>. Acesso em 02/11/19
5
filhos convivam ou sejam entregues a pessoas violentas, drogadas ou mentalmente
doentes (art. 245 do Código Penal)12
A nova redação, portanto, é mais ampla, mais densa e apropriada que a redação
anterior, que se limitava a apontar como impróprios os ambientes que tivessem
‘pessoas dependentes de substâncias entorpecentes’. Sinaliza o novo texto que não
somente os toxicômanos podem afetar o pleno desenvolvimento de crianças e
adolescentes, como também situações outras, como ambientes violentos –
violência, esta, compreendida em suas mais variadas formas13
12
MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos
teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Jur, 2019, p. 270.
13
SANCHES, Helen Crystine Corrêa; VERONESE, Josiane Rose Petry. Comentários ao art. 19 do Estatuto da
Criança e do Adolescente. In: Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e
sociais. VERONESE, Josiane Rose Petry, SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir. 13ª ed, São Paulo: Malheiros,
2018, p. 221
6
TJSP; Apelação Cível 1012110-66.2018.8.26.0007; Relator (a): Guilherme G. Strenger (Pres. Seção
1 de Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da
Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 18/12/2020; Data de Registro: 18/12/2020
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
2 Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
27/11/2020; Data de Registro: 27/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1023775-34.2017.8.26.0001; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
3 Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 18/11/2020;
Data de Registro: 18/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1009131-12.2019.8.26.0003; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
4 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1022388-47.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
5 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1014245-69.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
6 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1013231-95.2019.8.26.0007; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
7 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020
TJSP; Apelação Cível 1033887-62.2017.8.26.0001; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
8 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 27/10/2020; Data de Registro: 27/10/2020
TJSP; Apelação Cível 1012714-11.2019.8.26.0001; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
9 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 30/09/2020; Data de Registro: 30/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1011957-51.2018.8.26.0001; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
10 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 27/09/2020; Data de Registro: 27/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1033329-19.2019.8.26.0002; Relator (a): Renato Genzani Filho; Órgão
11 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional II - Santo Amaro - Vara da Infância e da Juventude; Data
do Julgamento: 25/09/2020; Data de Registro: 25/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1014685-13.2019.8.26.0007; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
12 Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
11/09/2020; Data de Registro: 11/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1004457-79.2019.8.26.0006; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
13 Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 11/09/2020; Data de Registro: 11/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1002482-07.2019.8.26.0011; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
14 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional XI - Pinheiros - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 09/09/2020; Data de Registro: 09/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1010280-05.2017.8.26.0006; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
15 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 03/09/2020; Data de Registro: 03/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1004580-14.2018.8.26.0006; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
16 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 17/08/2020; Data de Registro: 17/08/2020
TJSP; Apelação Cível 1013705-74.2016.8.26.0006; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
17 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 20/07/2020; Data de Registro: 20/07/2020
TJSP; Apelação Cível 1115502-05.2016.8.26.0100; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
18 Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
30/06/2020; Data de Registro: 30/06/2020
7
TJSP; Apelação Cível 1030339-92.2018.8.26.0001; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
19 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 30/06/2020; Data de Registro: 30/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1112725-13.2017.8.26.0100; Relator (a): Renato Genzani Filho; Órgão
20 Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
08/06/2020; Data de Registro: 09/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1002968-44.2018.8.26.0005; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Pres. Seção
21 de Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara
da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador:
22 Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1000814-19.2019.8.26.0005; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
23 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 22/05/2020; Data de Registro: 22/05/2020
TJSP; Apelação Cível 1018690-33.2018.8.26.0001; Relator (a): Luis Soares de Mello (Vice
24 Presidente); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e
Juventude; Data do Julgamento: 10/05/2020; Data de Registro: 10/05/2020
TJSP; Apelação Cível 1101906-80.2018.8.26.0100; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
25 Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
27/04/2020; Data de Registro: 27/04/2020
TJSP; Apelação Cível 1013733-91.2015.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
26 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
19/03/2020; Data de Registro: 19/03/2020
TJSP; Apelação Cível 1031924-82.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
27 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
12/03/2020; Data de Registro: 12/03/2020
TJSP; Apelação Cível 1010808-11.2018.8.26.0004; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
28 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional IV - Lapa - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 02/03/2020; Data de Registro: 02/03/2020
TJSP; Apelação Cível 1009211-16.2018.8.26.0001; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
29 Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 27/02/2020;
Data de Registro: 27/02/2020
TJSP; Apelação Cível 1028507-92.2016.8.26.0001; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca (Pres. da
30 Seção de Direito Privado); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da
Infância e Juventude; Data do Julgamento: 13/02/2020; Data de Registro: 13/02/2020
14
SILVA, Jonathan Chasko da; ARAÚJO, Alcemar Dionet de. A metodologia de pesquisa em análise do
discurso. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 5, n.1, 2017, p. 19
8
nas respectivas fundamentações. Foram três os principais subtemas identificados: “uso de
drogas, pobreza e força de vontade”, “presunção da inaptidão para a parentalidade em virtude
do uso de drogas” e “expectativas sociais em torno do papel da mulher”.
Veremos, em seguida, cada um deles de forma mais detida.
15
Art. 1.638 do CC: Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que (...) II - deixar o filho em
abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes (...).
16
TJSP; Apelação Cível 1012110-66.2018.8.26.0007; Relator (a): Guilherme G. Strenger (Pres. Seção de
Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da
Juventude; Data do Julgamento: 18/12/2020; Data de Registro: 18/12/2020
17
TJSP; Apelação Cível 1013231-95.2019.8.26.0007; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020
9
(...) A família apresenta o desejo de ter a guarda da criança, e sobretudo, não
gostariam de perdê-la de vista. No entanto, vivem em condições precárias, não só
do ponto de vista socioeconômico: encontram-se, eles mesmos, em situação
vulnerável, sob relações pautadas na violência e sem apresentar movimentos no
sentido de sua solução (...)18 – grifo meu
(...) Com efeito, vários são os fatos que ensejaram o acolhimento e a destituição,
que consistem na (i) desídia absoluta dos cuidados mínimos dispensados às
crianças; (ii) insalubridade do ambiente familiar (disfuncional), agravado pela
instabilidade emocional da genitora; (iii) consumo abusivo de drogas, sem adesão
efetiva aos tratamentos dispensados pelas entidades de atendimento locais, (iv)
recalcitrância dos genitores às orientações da rede protetiva local para
reestruturação de suas condições pessoais e socioeconômicas; (v) ausência de
vínculos afetivos significativos e sem perspectiva de modificação das condições
para exercer os cuidados dos infantes, ou seja, condutas incompatíveis com a
pretendida reinserção das crianças ao convívio no ambiente familiar biológico ou
extenso onde foram submetidas anteriormente a grave situação de risco à sua
saúde e incolumidade física e psicológica (...)21 – grifo meu
18
TJSP; Apelação Cível 1013231-95.2019.8.26.0007; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020
19
TJSP; Apelação Cível 1002968-44.2018.8.26.0005; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Pres. Seção de
Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara da Infância
e da Juventude; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
20
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
21
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
22
TJSP; Apelação Cível 1010808-11.2018.8.26.0004; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional IV - Lapa - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 02/03/2020;
Data de Registro: 02/03/2020
10
Nesse ponto, imperioso recordar que o Estatuto da Criança e do Adolescente
proíbe que o decreto de destituição do poder familiar seja fundamentado na carência de
recursos materiais da família (art. 23, caput). Tal regra, apesar das conclusões apresentadas,
não passou desapercebida pelos/as Desembargadores/as, que buscaram enfatizar que, nos
casos em análise, a destituição do poder familiar não decorreria da situação de pobreza
enfrentada pelo grupo familiar, mas sim do descumprimento doloso e voluntário dos deveres
inerentes ao poder familiar pela genitora. Nesse sentido, bastante ilustrativo é o seguinte
fragmento de decisão
Saliente-se, por fim, que a grande maioria das razões de apelação apreciadas pelo
Tribunal sustentava justamente a violação da regra contida no art. 23 do Estatuto da Criança
e do Adolescente, argumentando que a verdadeira omissão verificada não foi da família em
relação aos cuidados da criança, mas sim do Estado, que possui a obrigação primária e
solidária de garantir as famílias a satisfação de todas as condições necessárias a uma vida
digna (art. 226 da Constituição Federal e art. 100, parágrafo único, inciso III, do Estatuto da
Criança e do Adolescente).
A Câmara Especial, no entanto, reiteradamente rechaçou tal linha argumentativa
asseverando que
(...) não há razão para que o Estado (em sentido amplo) fique o tempo todo no
auxílio das pessoas, especialmente quando não desejam, não se interessam e/ou
não querem esse auxílio. Se omissão houve, foi pela apelante, resistente a todo e
23
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
11
qualquer tipo de intervenção o que torna vazia de sentido qualquer alegação de
falta de ação positiva do Estado24.
(...) ademais, de se destacar que o consumo abusivo de drogas é moléstia que agrava
a situação dos genitores, que compromete a própria saúde e a das crianças, expostas
à instabilidade do apelante em seus cuidados, bem como ao seu bem-estar,
decorrente da somatória das situações narradas. Além disso, a resistência ou
incapacidade dos genitores de submissão ao efetivo tratamento de drogadição, bem
como no que concerne a reestruturação das condições pessoais e socioeconômicas
dos apelantes, não obstante os esforços e as intervenções da rede protetiva local e
do setor técnico do Juízo, não justifica que os infantes permaneçam em situação de
abandono, caracterizado pelo prolongado período de institucionalização - situação
inadmissível à luz da legislação protetiva da infância e juventude (...) Como é
cediço, são notórias as dificuldades enfrentadas pelos adictos que, sob supervisão
médica e terapêutica adequadas, se submetem a efetivo e prolongado tratamento
disponibilizado pela rede protetiva local. E, in casu, a despeito dos comprovantes
24
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020
12
e relatórios encartados às fls. 86/88, 111 e 224/225, não há nos autos quaisquer
documentos que apontem eventual êxito no tratamento contra drogadição. O fato
objetivo, e independentemente do acompanhamento terapêutico ao qual submetido
o apelante, é que ambos os genitores, em nenhum momento, demonstraram que
apresentam condições mínimas a propiciar às crianças um desenvolvimento
saudável, com dignidade, e que permitiria seu regresso ao ambiente familiar natural
ou extenso. Aliás, sequer há perspectiva de que isto venha a acontecer em tempo
hábil, tendo em vista a inércia e o desinteresse demonstrado pelos genitores -
condutas que, à evidência e consoante as provas coligidas, tiveram como
consequência o arrefecimento dos vínculos familiares biológicos (...) Nesse passo,
é absolutamente impertinente postergar às crianças, durante a infância e
adolescência época em que mais necessitam de amor, apoio, e segurança de uma
família - a espera que seus genitores reúnam condições mínimas essenciais para o
provimento das condições necessárias ao seu bem-estar e o desenvolvimento
saudável (...)25
(...) [os pais] são usuários contumazes de drogas e sempre foram negligentes em
relação aos cuidados com a prole, não reunindo aptidão física ou psíquica para ter
a criança sob seus cuidados. De fato, a genitora faz uso de maconha e cocaína desde
a adolescência e continuou a consumi-las durante a gestação, demonstrando
completa falta de preocupação com a saúde do nascituro. No momento em que deu
à luz ao infante, estava muito agitada e agressiva e findo o parto a equipe médica
concluiu que a apelante não estava em condições de zelar pelo recém-nascido, que
teve de ser transferido para a unidade neonatal do serviço (...)27
(...) Por outro lado, observou-se que a genitora realizava visitas diárias à filha,
começou a fazer curso profissionalizante de manicure (...), e estava abstinente,
ressaltando-se, no entanto, a insuficiente estrutura para reassumir os cuidados com
a filha. Além disso, observou-se que M. não deu início a tratamento contra a
drogadição no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), apresentando justificativas
frágeis para suas faltas em consultas agendadas (fls. 133/135). Em estudo
psicossocial subsequente, realizado em 30 de março de 2015, atestou-se que “a
genitora demonstra estar se esforçando para realizar as visitas à filha, mostra ser
mãe dedicada e amorosa, dedicando-se aos cuidados da criança”. Não obstante,
também se notou a grande resistência quanto à adesão ao tratamento contra a
drogadição no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) (...) Embora afirme que se
esforçou para se reabilitar e se livrar do vício, já foram realizados diversos
trabalhos com M., e não foram observadas melhorias significativas. Dessa forma,
não se pode concluir que a realização de novas intervenções por médicos,
psicólogos e assistentes sociais serão frutíferos (...) No mais, as provas trazidas
aos autos demonstram que a genitora tem histórico de consumo excessivo de
25
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
26
TJSP; Apelação Cível 1009131-12.2019.8.26.0003; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020
27
TJSP; Apelação Cível 1013705-74.2016.8.26.0006; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
20/07/2020; Data de Registro: 20/07/2020
13
substâncias ilícitas, e, além disso, negligenciou os cuidados com a saúde da filha,
ao não realizar os exames do pré-natal e consumir drogas durante toda a gestação
(...)28
28
TJSP; Apelação Cível 1028507-92.2016.8.26.0001; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca (Pres. da Seção de
Direito Privado); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude;
Data do Julgamento: 13/02/2020; Data de Registro: 13/02/2020
29
Por todos, TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
27/11/2020; Data de Registro: 27/11/2020
30
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020
14
esperar que floresça a regeneração, a qualquer tempo, nos detentores da
responsabilidade pelo exercício do seu dever com responsabilidade31 - grifo meu.
31
Por todos, TJSP; Apelação Cível 1014245-69.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 06/11/2020;
Data de Registro: 06/11/2020
32
TJSP; Apelação Cível 1031924-82.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 12/03/2020; Data de
Registro: 12/03/2020
33
TJSP; Apelação Cível 1002968-44.2018.8.26.0005; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Pres. Seção de
Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara da Infância
e da Juventude; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
15
Por fim, o terceiro subtema identificado sugere uma clara expectativa por parte
do Poder Judiciário em relação ao exercício não apenas da função materna, mas de um
específico papel social atribuído às mulheres: a dedicação completa ao cuidado dos filhos.
Afirma-se em uma das decisões, por exemplo, que “é cumprindo o dever de preparar
integralmente os filhos para a vida que os pais satisfazem um dos mais elevados valores de
sua personalidade que têm o direito de realizar”34.
Daí porque vista com excessiva reserva a prática de condutas voltadas ao próprio
prazer pela mulher que exerce, também, a função materna, muitas das quais reputadas
“vicissitudes”
Praticamente todos os trechos colacionados nos itens anteriores (2.1 e 2.2), direta
ou indiretamente, apresentam a visão do Poder Judiciário em relação a quais condutas são
“permitidas” e quais condutas são interditadas às mulheres em geral e, em especial, às mães.
Para se evitar repetições, remetemos o/a leitor/a àqueles trechos para uma nova reflexão,
agora sob a perspectiva ora colocada.
A mulher, portanto, quando se comporta de forma diversa daquela esperada (e
socialmente imposta) é vista como fraca, impulsiva, dissimulada e incapaz para o exercício
do cuidado. Exemplo bastante representativo dessa conclusão pode ser encontrado no
seguinte excerto:
34
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020
35
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020
16
mais uma vez a inconstância habitacional e rotatividade de relacionamentos, sem
qualquer critério de seleção36
36
TJSP; Apelação Cível 1010808-11.2018.8.26.0004; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional IV - Lapa - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 02/03/2020;
Data de Registro: 02/03/2020
37
Interessante salientar que nenhum dos casos apresentou robusta argumentação teórica sobre o enquadramento
das condutas nas hipóteses taxativamente previstas no rol do art. 1.638 do Código Civil. Muitas das decisões,
aliás, sequer mencionaram o dispositivo e outras apenas citaram o suposto inciso incorrido, sem maior
desenvolvimento.
38
BRASIL. Ministério da Saúde; Ministério do Desenvolvimento Social. Nota Técnica Conjunta nº 01/2016.
Diretrizes e fluxograma para a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de
rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/nota_tecnica/nt_conjunta_01_MDS_msaude.pd
f. Acesso em 23/06/2021
17
complexidade das situações apresentadas, que envolvem tanto aspectos relacionados à saúde
quanto à exclusão social. Por outro lado, enfrentam diretamente a prática de separações
compulsórias entre mães e seus filhos, afirmando que “decisões imediatistas de afastamento
de crianças de suas mães, sem o devido apoio e acompanhamento antes, durante e após o
nascimento, bem como uma avaliação minuciosa de cada situação, violam direitos básicos,
tais como a autonomia das mulheres e a convivência familiar”. E conclui
39
Idem, p. 8
40
SÃO PAULO. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (6ª Região). Nota Técnica sobre o exercício
da maternidade por mães que fazem uso de crack e outras drogas. 2016, p. 1. Disponível em:
https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/33/Documentos/Nota%20t%c3%a9cnica%20sobre%20o
%20exerc%c3%adcio%20da%20maternidade%20por%20m%c3%a3es%20que%20fazem%20uso%20de%20
crack%20-%20CRPSP%20-%20Ago16%20(1).pdf . Acesso em 23/06/2021.
18
E arremata
(...) cada mulher é única, tem a sua personalidade e a sua maneira de ser mãe e
vivenciar essa realidade, não cabendo à sociedade o ato errôneo de julgar e
acreditar que todas devem agir de forma igual e que se tratando de uma mulher
usuária de drogas o seu papel materno ficará comprometido, pois durante a
pesquisa percebe-se que a todo instante e de alguma maneira, essas mulheres estão
se relacionando com os seus filhos e assumindo o seu papel como mãe na
sociedade42 (grifo meu)
O estudo realizado por Hallam Hurt, por sua vez, desmistifica a conexão
necessária e invariável entre o uso de cocaína pelas mães na gestação e os supostos prejuízos
para os filhos. A pesquisa aponta que o desenvolvimento de filhos de mulheres que fizeram
uso de cocaína durante a gestação não é diferente do desenvolvimento de crianças que foram
criadas em ambientes semelhantes (com acesso aos mesmos recursos
econômicos/sociais/emocionais) aos das crianças filhas de usuárias de cocaína. Conclui que,
41
Ibidem.
42
CAMARGO, Paola de Oliveira. A visão da mulher usuária de cocaína/cracks obre a experiência da
maternidade: vivência entre mãe e filho. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação da Faculdade
de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014, p. 74
19
na realidade, uma discrepância que pode ser crucial ao desenvolvimento reside nas situações
de vulnerabilidade social. Para Hurt
(...) os efeitos da droga não são tão graves se comparados à pobreza, que pode
prejudicar muito mais o desenvolvimento infantil do que o consumo de alguma
substância por parte da mãe na gestação, ou seja, o ambiente familiar, as condições
sociais, o acesso a um bom pré-natal são fundamentais para que a criança possa se
desenvolver. O real problema é a pobreza e a falta de acesso a um bom pré-natal,
medicamentos, alimentação, e não apenas o uso da cocaína43
Todos estes condicionantes contextuais, referentes ao ambiente em que a mulher
está inserida, sua história e as adversidades socioeconômicas enfrentadas devem ser
considerados não apenas para se aferir a capacidade imediata de assumir os cuidados de
seu/sua filho/a, após o nascimento, caso assim deseje, como também para se pensar as
estratégias intersetoriais necessárias ao seu fortalecimento. Afinal, muitas pesquisas ainda
constatam a possibilidade de um cuidado materno satisfatório e o desenvolvimento de
vínculos funcionais da dupla mãe-bebê mesmo diante de um ambiente social precário.
43
HURT, Hallam apud CAMARGO, Paola de Oliveira, Op. Cit, p. 166
44
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, 5ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 20.
20
ilícitas é nocivo e, portanto, não pode coexistir com o dever de cuidado e proteção para com
os filhos45.
Mas não é só. Também provoca uma descontextualização do consumo de
psicoativos, pressupondo a liberdade (e, portanto, a responsabilidade) de quem opta pelo uso.
Por conseguinte, de acordo com tal discurso, (i) se o uso de drogas é sempre nocivo ao
cuidado de crianças e adolescentes e (ii) se a “opção” pelo uso é feita no gozo da plena
liberdade da mulher, (iii) portanto, há um descumprimento voluntário e doloso dos deveres
inerentes ao poder familiar, o que enseja, finalmente, a admissibilidade do decreto de
destituição deste poder.
A presunção de correção absoluta das premissas apresentadas, no entanto, não
encontra respaldo científico, como visto acima. Cumpre-nos, portanto, investigar quais as
relações de poder que subjazem as práticas discursivas empregadas pela Câmara Especial do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
45
A propósito, importante registrar que a constatação de uso de drogas nas ações que tramitam perante a Justiça
da Infância e Juventude é feita única e exclusivamente através de entrevistas com assistentes sociais, psicólogos,
conselheiros tutelares ou outros agentes do Sistema de Garantia de Direitos, sem qualquer exame clínico/médico
confirmativo. Ou seja, basta que um desses atores ou uma dessas atrizes afirme que “ouviu dizer que a mãe faz
uso de drogas” ou que “a mãe aparentou ter feito uso de drogas” que tais informações são incorporadas no
processo como elementos de verdade, provas do consumo e, portanto, prova do descumprimento dos deveres
inerentes ao poder familiar.
46
FURTADO; Rafael Nogueira; CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O conceito de biopoder no
pensamento de Michel Foucault. Revista Subjetividades, v. 16, n. 3, dez, Fortaleza, 2016, p. 35
21
constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral do poder”47
Há diversas formas de abordar as relações de dominação, igualdade ou desigualdade
entre homens e mulheres na sociedade. O conceito de gênero, nesse sentido, é construído
para demonstrar que a diferença homem e mulher é uma diferença culturalmente construída,
fundada nos lugares ocupados e papeis exercidos por cada qual na sociedade. Mas não é só.
Esse ideal de feminilidade, construído pela cultura, consolida mais do que apenas uma
expectativa social em torno do lugar da mulher; verdadeiramente, define o que seria sua
verdadeira natureza48.
A partir das diversas representações de feminilidade, são deduzidas as posições de
poder, submissão, complementariedade ou exclusão das mulheres no seio da sociedade 49. A
propósito, a psicanalista Maria Rita Kehl sustenta que
47
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: Curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 3.
48
MOUNTIAN, Ilana. Mujeres Bajo Control In: MARTIN, Barbara Biglia y Conchi (Coord). Estado de
Wonderbra: entretejiendo narraciones feministas sobre las violências de género, Barcelona: Virus
Editorial, 2007.
49
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em Desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003
50
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade,
2ª ed, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 40
51
“Há duas dimensões indissociáveis do inconsciente: a que se constitui a partir da história de vida e das
respostas singulares produzidas pelo sujeito (...) e a que faz parte do campo social, o campo dos discursos do
Outro, no qual o sujeito ocupa uma posição que ele mesmo ignora e a partir da qual produz respostas subjetivas
cujo alcance desconhece” (KEHL, Op Cit, p. 123).
22
afirmar que a mulher, na sociedade, é antes falada – pelo Outro, pela estrutura em que se
encontra – do que fala.
Reconhecer a imposição de determinados papeis sociais às mulheres não implica
negar a importância da maternidade nem negar que a organização da vida doméstica
correspondeu historicamente a uma conquista de poder por parte das mulheres, outrora
submetidas ao modelo de familiar patriarcal que se apropriava de toda a sua liberdade e
autonomia. Trata-se, na realidade, de apontar para o fracasso de uma posição subjetiva que
não produz discurso e em relação à qual só se espera que corresponda ao que já está designado
no discurso do Outro52.
Por outro lado, deve-se também reconhecer que a construção cultural em torno do
ideal de feminilidade não preconiza apenas a maternidade como objetivo final de todas as
mulheres, mas sim uma específica forma – a única legítima – de ser mãe: a mãe “de tempo
inteiro, com capacidades enormes de auto sacrifício, completamente devotada não só à
criança, como ao papel de mãe”53, que garanta, a toda evidência, a correta transmissão dos
valores concebidos pela ideologia dominante. Toda e qualquer outra experiência de
maternagem deve ser evitada, não apenas pela pseudoincapacidade de prover amor, cuidado
e responsabilidade, mas também por corresponder a um problema social e de saúde pública.
Sucede que a única forma socialmente legítima(da) de maternar acaba por excluir
praticamente todas as mulheres que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade e
marginalização social, quer em razão da pobreza vivida, quer em razão da ausência de
referência familiar e comunitária, já que a dedicação exclusiva da mulher à criança pressupõe
a existência de uma fortalecida rede de apoio, familiar ou comunitária, que a permita abster-
se do trabalho e de outros deveres.
Insurgindo-se contra esse imaginário, Michele Carmona Aching observa em sua
pesquisa que, mesmo vivenciando situações de precariedade generalizada, as mulheres
logram desenvolver o estado de preocupação materna primária quando garantidas condições
mínimas para tal. Estas mulheres, “mesmo em situação de desamparo são capazes de
52
KEHL, Maria Rita. Op Cit, p. 57
53
MACEDO, Fernanda dos Santos de; ROSO, Adriane; LARA, Michele Pivetta de. Mulheres, saúde e uso de
crack: a reprodução do novo racismo na/pela mídia televisiva. In Saúde Soc, v. 24, n. 4, São Paulo, 2015,
p. 1293
23
identificar as necessidades dos filhos, principalmente as físicas, pelas quais batalham
diariamente por sua satisfação. É a mãe possível diante de tantas adversidades”54.
No entanto, é de se questionar: por que o referencial do ideal de maternidade exclui
prima facie as mulheres em situação de vulnerabilidade? Ou seja, por que ainda hoje vige a
ideia (inclusive no âmbito do próprio Poder Judiciário) de que as mulheres pobres não
reúnem condições de cuidar de seus próprios filhos?
A resposta a tal indagação é dada por Ana Paula Motta Costa, para quem “a
intervenção estatal nos contextos familiares, desde o ponto de vista histórico, sempre esteve
a serviço da manutenção dos padrões de moralidade vigentes”55. De acordo com as lições da
Autora
Toda a tradição histórica de intervenção familiar está fundada na ideia de que as
famílias pobres não são capazes de cuidar de seus filhos, seja pela condição de
pobreza, seja pelo grau de irresponsabilidade que possuem. Trata-se do argumento
ideológico que possibilitou ao Poder Público o desenvolvimento de políticas
paternalistas voltadas para o controle e a contenção social principalmente da
população mais pobre, com total descaso para a preservação de vínculos familiares.
Nesse sentido, observa-se que ocorre a manifestação de um mecanismo cultural de
desconstituição das pessoas desde sua condição social, não reconhecendo suas
possibilidades e potencialidades56
54
ACHING, Michele Carmona; GRANATO, Tania Mara Marques. A mãe suficientemente boa em situação
de vulnerabilidade social. Estudos de Psicologia, Campinas, 33(1), jan-mar/2016, p. 102
55
COSTA, Ana Paula Motta. Os adolescentes e seus direitos fundamentais: da invisibilidade à indiferença.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 176-179
56
COSTA, Ana Paula Motta. Op. Cit, p. 178
24
4.2. O exercício do biopoder a partir do estigma da “usuária de drogas”
57
O modelo proibicionista nasce no século XIX a partir dos chamados movimentos pela temperança
capitaneados por entidades religiosas e moralistas norte-americanas. O movimento utiliza uma metodologia
amedrontadora, partindo do princípio de que o medo ou a estratégia de pânico moral tem o condão de fazer com
que as pessoas não tenham coragem de experimentar drogas. Preconiza, ainda, a partir da dicotomia lícito/ilícito
a interdição de toda a qualquer substância psicoativa ilícita, considerando-se como tais aquelas não encampadas
pelos saberes médicos. Pauta-se, ainda, na crença de que é possível um mundo livre das drogas, razão pela qual
brada a bandeira de uma “Guerra às Drogas”, visando sua completa eliminação do seio social.
58
Fernanda Macedo, Lara Pivetta e Adriane Roso chamam de “elites simbólicas” os fabricantes de
conhecimento e dos padrões morais, além das crenças, atitudes, normas, ideologias e valores públicos.
Correspondem, portanto, às elites política, educacional, escolar e midiática, que controlam o acesso à maioria
dos discursos públicos respeitados pela sociedade. Devido a esse poder, elas possuem um papel específico na
(re)produção de conceitos, valores, isto é, na transmissão dessa dimensão do simbólico, que circula e se enraíza
no tecido social, sendo assim, é responsável pela influência suscitada pelas formas discursivas de racismo
(MACEDO, Fernanda dos Santos de ROSO, Adriane; LARA, Michele Pivetta de. Op. Cit, p. 1287)
25
sociocultural”59. Ou seja, trata-se de fenômeno tridimensional que congrega três importantes
variáveis: a substância, a relação colocada entre o sujeito e a substância consumida e o
contexto social em que esta relação se apresenta.
Em sentido semelhante, Marcelo Sodelli, ao analisar o uso de drogas sob a
perspectiva da Fenomenologia Existencial, ensina que
59
OLIEVENSTEIN, Claude apud KARAM, Maria Lucia. Legalização das Drogas. São Paulo: Estúdio
Editores.com, 2015, p. 20
60
SODELLI, Marcelo. Uso de Drogas e Prevenção: da desconstrução da postura proibicionista às ações
redutoras de vulnerabilidade, 2ª ed, Rio de Janeiro: Via Verita, 2016, p. 71
61
TIBURI, Marcia; DIAS, Andréa Costa. Sociedade fissurada: para pensar as drogas e a banalidade do
vício. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013
26
Portanto, a depender da relação mantida entre o sujeito e a substância consumida, e,
portanto, dos diversos padrões e modos de uso, poderão derivar diferentes consequências
para sua vida. Dizemos, nesse sentido, que apenas o uso problemático ou nocivo de drogas,
assim compreendido aquele que passa a afetar negativamente os diferentes aspectos da vida
do sujeito (vida familiar, vida profissional, lazer) é que merece uma maior atenção pelos
profissionais da saúde, sem prejuízo de intervenções de outras naturezas, a depender das
singularidades do caso concreto.
Especificamente em relação às mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas,
Mathias Glens sustenta que
o abuso de drogas, assim como os problemas mentais do pai ou da mãe (...) não
podem ser considerados motivos de abrigamento por si só. É preciso perceber se
essas condições estão colocando a criança ou o adolescente em risco ou não, o que
nem sempre é fácil de se fazer. Apesar da maioria dessas situações se constituírem
em violações contra a criança ou adolescente, esses são momentos nos quais não
se pode simplesmente ter por base as estatísticas, pois é possível que um usuário
de drogas ou alguém com problemas mentais seja extremamente carinhoso e
atencioso com seus filhos, cuidando deles da melhor maneira que consegue. Nesse
caso, é preciso que essa pessoa seja ajudada a cuidar de seus filhos e não separada
deles.62
Note-se, por fim, que a grande maioria dos padrões e modos de relacionamento do
sujeito com as substâncias psicoativas que consome não geram interferência em outros
aspectos de sua vida, de modo que, nada obstante o uso de drogas, o sujeito pode conquistar
sucesso profissional, pode possuir outras formas de lazer, pode possuir vínculos familiares
fortalecidos e, para efeitos deste estudo, pode exercer satisfatoriamente a parentalidade, com
o incremento progressivo de sua capacidade protetiva.
CONCLUSÃO
62
GLENS, Mathias. Órfãos de pais vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil.
Dissertação apresentada à Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo para a obtenção do Título de
Mestre. São Paulo: 2010.
27
substâncias psicoativas e, em especial, quais os argumentos utilizados para fundamentar a
manutenção de decretos de destituição do poder familiar em razão do consumo dessas
substâncias ilícitas por essas mulheres.
Verificou-se, a partir das decisões analisadas, a compreensão generalizada de que
o uso de drogas ilícitas pelos pais (seja qual for o padrão de uso, seja qual for a droga
consumida) é invariavelmente prejudicial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes e,
portanto, o pai ou a mãe que insiste nessa prática incorre, inevitavelmente, no
descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, a ensejar o decreto de destituição.
Tal arquitetura discursiva é organizada por afirmativas categóricas e
supostamente autoevidentes, como se os argumentos fossem válidos em si mesmos, ainda
que desprovidos de base científica. Em nenhuma das decisões verificou-se qualquer
problematização teórica ou mesmo empírica em relação aos efetivos comprometimentos do
uso de substâncias ao exercício da maternagem.
Diz-se, portanto, que a mulher que faz uso de drogas é incapaz de assumir
responsabilidade por seus próprios atos e, assim, jamais poderia ser uma boa-mãe, inclusive
por ter colocado a saúde do feto em risco em razão de seus espúrios e nefastos hábitos. Essas
mulheres são colocadas em um lugar de “descontrole total de seu corpo, tanto por
engravidarem, quando por não conseguirem deixar o crack durante a gestação”63 e, desse
modo, podem ser culpadas pelos problemas sociais vivenciados, isentando o Estado de seu
papel primário de garantir de condições mínimas para uma vida digna.
A análise dos julgados, portanto, acaba por sugerir que muito mais importante do
que se aferir o vínculo afetivo existente ou as condições psicossociais para o efetivo exercício
do cuidado é a adequação moral da conduta das pessoas aos padrões e papeis sociais
construídos historicamente e impostos indiscriminadamente à totalidade das mulheres; um
verdadeiro exercício do biopoder, pois.
O Poder Judiciário, ao que parece, insiste em permanecer completamente alheio
aos estudos que, a cada dia, acumulam novas evidências sobre a capacidade e aptidão para o
cuidado, inclusive por mulheres em situação de marginalização social. Ao invés de se buscar
compreender as circunstâncias de vida dessas mulheres e a potencialidade que possuem para,
63
MACEDO, Fernanda dos Santos de; ROSO, Adriane; LARA, Michele Pivetta de. Op. Cit, p. 1293
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a partir da maternagem e com o apoio da rede de proteção, aprimorar suas habilidades de
cuidado, opta-se pela via reducionista, discriminatória e violadora de direitos do estigma.
Portanto, para que se inicie o processo de desconstrução e deslegitimação do
estigma da mulher usuária ou da mulher adicta, incapaz de cuidar dos próprios filhos, faz-se
necessário, inicialmente, provocar tanto no Poder Judiciário quanto no âmbito mais amplo
do Sistema de Garantia de Direitos a desconstrução o próprio ideal de feminilidade inscrito
em nossa sociedade, que determina posições, deveres e traços identificatórios.
Para tanto, devemos assumir que os significantes ‘homem’, ‘mulher’ e ‘sujeito’
são construções datadas, contingentes; portanto, mutantes. É preciso que se saiba que não
estamos lidando com conceitos transcendentais. Nas palavras de Maria Rita Kehl, “não existe
A mulher, universal transcendente ao conjunto de todas as mulheres, mas diversas mulheres,
imersas, cada uma, em sua singularidade e próprio processo de subjetivação”64.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
64
KEHL, Maria Rita. Op Cit, p. 96.
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