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A VISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SOBRE O

EXERCÍCIO DA MATERNAGEM POR MULHERES USUÁRIAS DE DROGAS

Peter Gabriel Molinari Schweikert


Mestrando em Direito Constitucional (PUC-SP). Especialista em Direitos Fundamentais
(IBCCRIM-FDUC) e em Psicossociologia da Juventude e Políticas Públicas (FESPSP).
Pesquisador convidado do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre crianças e adolescentes
(NCA-PUCSP). Defensor Público do Estado de São Paulo.

Resumo: O presente artigo pretende analisar criticamente decisões do Tribunal de Justiça do


Estado de São Paulo que confirmaram decretos de destituição do poder familiar
fundamentados no uso de substâncias psicoativas ilícitas pelas mães de crianças e
adolescentes.
Palavras-chave: direitos da criança e do adolescente; maternagem; uso de drogas;
convivência familiar

INTRODUÇÃO

No campo do Direito da Criança e do Adolescente, um dos temais mais sensíveis


e complexos se refere ao direito à convivência familiar e, mais especificamente, às
consequências jurídicas do descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar1. Para
esses casos, o microssistema de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do
adolescente2 prevê a possibilidade de intervenção do Estado no seio das famílias com o

1
De acordo com Elisa Costa Cruz, “da filiação decorre o poder familiar, a partir do qual emerge um complexo
de situações jurídicas que atribuem aos pais a responsabilidade sobre a pessoa e os bens do filho até a maioridade
civil”. A Autora, contudo, reputa mais adequado o uso da expressão “responsabilidades parentais”, por, segundo
ela, “enfatizar o conjunto de atribuições conferidas pelo ordenamento aos pais para desenvolverem e cuidarem
de seus filhos” (in Guarda Parental: releitura a partir do cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2021, p.
51-65.
2
Entende-se por microssistema de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente o
conjunto de referenciais normativos internacionais e nacionais, assim como Comentários Gerais do Comitê
sobre os Direitos da Criança nas Nações Unidas, as Opiniões Consultivas da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e a jurisprudência, tanto da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto dos tribunais nacionais.
A compreensão de que a base jurídica dos direitos da criança e do adolescente é significativamente maior do

1
objetivo de garantir a proteção integral, com prioridade absoluta, das pessoas em
desenvolvimento. Essa intervenção ocorre por meio de medidas especiais de proteção, que
podem consistir desde uma advertência aos pais, o referenciamento do grupo familiar em
uma ou mais políticas públicas setoriais (como os serviços e equipamentos do Sistema Único
de Saúde, do Sistema de Ensino ou do Sistema Único de Assistência Social) e até a suspensão
ou perda do poder familiar3.
Embora as hipóteses legais que possibilitam o decreto judicial de perda do poder
familiar estejam expressamente previstas, em rol taxativo, no Código Civil (art. 1.638), sua
redação apresenta baixíssima densidade semântica, ocasionando, por conseguinte, intensas
controvérsias interpretativas. Talvez o exemplo mais ilustrativo esteja no inciso III do art.
1.638 do Código Civil, que autoriza a destituição do poder familiar em decorrência da prática
de “atos contrários à moral e aos bons costumes”.
Afinal, quais são os atos contrários à moral e aos bons costumes que, uma vez
praticados, autorizam medida de tão drástica natureza quanto a perda da chance de conviver
com o próprio filho e vê-lo encaminhado a outra família?
A pesquisa que se apresenta pretende analisar a forma como o Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo vem interpretando tal dispositivo, mais especificamente em relação
ao consumo de substâncias psicoativas por parte da mãe. Esse recorte se justifica na medida
em que, de acordo com o levantamento nacional sobre os acolhimentos institucionais de
crianças e adolescentes realizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP),
mais de 80% das separações entre crianças, adolescentes e seus pais ocorrem em virtude do
uso de drogas ilícitas pelos genitores, sendo, em 2012, o segundo maior fundamento para as
separações familiares e, em 2013, o principal fundamento para os acolhimentos de crianças
e adolescentes4.
O principal objetivo da pesquisa é, portanto, buscar compreender o arranjo
argumentativo e a arquitetura discursiva utilizada por Desembargadores/as do Tribunal de

que o conjunto de previsões contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente é salutar para a compreensão
holística desse específico ramo do direito.
3
Cf. Arts. 101, 129 e 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
4
BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público, Relatório da Infância e Juventude – Resolução nº
71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no País. Brasília:
CNMP, 2013, p. 45-46.

2
Justiça Paulista para a confirmação de decretos de perda do poder familiar em razão do uso
de substâncias psicoativas ilícitas pela mãe.
O âmbito de amostragem das decisões estudadas foi delineado a partir de uma
série de filtros seletores. A ferramenta de busca utilizada foi o próprio banco eletrônico de
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1), no qual foram consultadas as
seguintes palavras-chave: “destituição do poder familiar”, “genitora”, “usuária”, “drogas”.
De todos os resultados encontrados, fez-se um primeiro recorte em relação ao
recurso que originou a decisão colegiada. Optou-se pela seleção de apelações que versassem
sobre os dos seguintes assuntos previamente estabelecidos na taxonomia do sistema: “11986
- suspensão ou extinção do poder familiar”; “12155 - suspensão do poder familiar”; “12156
- extinção do poder familiar”; “50091 – descumprimento deveres poder familiar”; “50103 –
destituição de poder familiar”; “50161 – suspensão do poder familiar”. A preferência pelo
julgamento de apelações (e não de agravos de instrumento, por exemplo) se justifica tanto
pela extensão quanto pela profundidade do efeito devolutivo deste recurso, o que permite,
por consequência, maior liberdade discursiva aos/às Desembargadores/as na análise e
julgamento dos casos.
Diante desse universo mais reduzido de resultados – mas, ainda assim, bastante
amplo – optou-se pela aplicação de outros dois filtros, iniciando-se pela restrição geográfica
das amostras (foram selecionados apenas casos julgados originariamente pelas Varas da
Infância e Juventude da Capital do Estado). Por fim, foram selecionados apenas os acórdãos
proferidos pela Câmara Especial5 entre 01/01/2020 e 31/12/2020, chegando-se, ao final, a 30
casos.
A metodologia de pesquisa adotada será a análise de discursos e terá como
referencial teórico as lições de Michel Foucault contidas em sua aula inaugural no Collège
de France, de 02 de dezembro de 1970, intitulada A Ordem do Discurso (2004) e em sua obra
A arqueologia do Saber (1969). As indagações propostas, portanto, buscarão compreender

5
De acordo com o art. 33 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Câmara
Especial, presidida pelo Vice-Presidente do Tribunal, é integrada pelos Presidentes das Seções e pelo Decano,
a ela competindo processar e julgar, dentre outros, os processos originários e os recursos em matéria de Infância
e Juventude (inciso IV).

3
as formas pelas quais o poder se liga a determinados discursos a fim de produzir específicas
subjetividades e regimes de verdade6.
Em síntese, pode-se conceituar a análise de discurso7 como a ferramenta
metodológica que busca evidenciar a relação entre a língua, o discurso e a ideologia8; parte
de narrativas que são aceitas como naturais do mundo social e, a partir de reflexões críticas
e interdisciplinares (procedimento de “escavação vertical de camadas descontínuas dos
discursos pronunciados”9), passa a compreendê-las como resultado de uma complexa trama
de poderes.
Para atingir o objetivo proposto, serão inicialmente apresentados temas
transversais a todos os 30 julgados, extraindo-se de acórdãos representativos excertos
argumentativos que apresentem a forma pela qual o Tribunal trabalha discursivamente cada
tema. Após, serão apresentados estudos interdisciplinares e pesquisas empíricas que tratem
dos mesmos temas, com o objetivo de se estabelecer o cotejo analítico entre o discurso do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e os demais saberes, com vistas à confirmação
ou não das conclusões trazidas pelos/as julgadores/as.
Ao final, já em sede de conclusão, serão apresentadas algumas hipóteses
explicativas de eventuais antagonismos identificados entre os fundamentos de decisão
trazidos pelo Poder Judiciário e o saber científico produzido pelos demais campos do
conhecimento.

1. A SEPARAÇÃO ENTRE MÃES E SEUS/SUAS FILHOS/AS EM VIRTUDE DO


USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS: UMA BREVE APRESENTAÇÃO.

6
FERREIRA, Maurício dos Santos; TRAVERSINI, Clarice Salete. A análise foucaultiana do discurso como
ferramenta metodológica de pesquisa. Revista Educação & Realidade, v. 38, n. 1, jan/mar, Porto Alegre,
2013, p. 209-210. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade. Acesso em 22/06/2021.
7
A análise de discurso não possui uma metodologia pronta; em análise do discurso, “teoria e metodologia
caminham juntas, lado a lado, uma dando suporte à outra, não podendo separá-las” (SILVA, Jonathan Chasko
da; ARAÚJO, Alcemar Dionet de. A metodologia de pesquisa em análise do discurso. Grau Zero – Revista
de Crítica Cultural, v. 5, n.1, 2017, p. 20)
8
SILVA, Jonathan Chasko da; ARAÚJO, Alcemar Dionet de. A metodologia de pesquisa em análise do
discurso. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 5, n.1, 2017.
9
AZEVEDO, Sara Dionízia Rodrigues de. Formação discursiva e discurso em Michel Foucault. Revista
Filogenese/UNESP, vol. 6, n. 2, 2013, p. 149

4
Conforme visto acima, são inúmeros os casos de separação familiares
fundamentados em uma narrativa que pressupõe como inconciliáveis o exercício da
parentalidade e o uso de substâncias psicoativas ilícitas.
Em matéria publicada no ano de 2017, por exemplo, a Vara da Infância e
Juventude do Foro Central da Capital Paulista noticiou que 90% das adoções de bebês são
justificadas pelo uso de crack pelas mães10.
A situação ganhou ainda mais destaque no debate público após a edição de duas
recomendações pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, que orientavam a
comunicação, pelas maternidades públicas às Varas da Infância e Juventude de todos os
partos de mulheres usuárias de drogas. Só nesse Estado, aliás, de 2014 a 2017, 359 bebês
foram retirados do convívio com suas mães e familiares diretamente nas maternidades
públicas11.
O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, até 2016, estabelecia que toda
criança ou adolescente teria direito a ser criado e educado no seio de sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária,
em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
Embora a locução final do dispositivo (acima destacada) tenha sido substituída
pela expressão “em ambiente que garanta o seu desenvolvimento integral”, boa parte da
doutrina especializada continuou sustentando que o convívio de crianças e adolescentes com
pessoas que fazem uso de substâncias ilícitas lhes seria inevitavelmente prejudicial e,
portanto, inaceitável. Nesse sentido, de acordo com as lições de Katia Regina Ferreira Lobo
Andrade Maciel
Não há como negar a forte influência do comportamento parental no
desenvolvimento da personalidade dos filhos e o impacto que pode causar em sua
formação moral, já que é natural que a prole se espelhe nos pais e repita o mesmo
modelo de vida e valores. Sendo assim, a prática de atos contrários à moral e aos
bons costumes também poderá ensejar a penalidade máxima de retirada da
autoridade familiar. Deste modo, poderão ser destituídos do poder parental os pais,
por exemplo, que utilizam substâncias entorpecentes ou ingiram bebidas alcóolicas
usualmente, a ponto de tornarem-se drogados ou alcoólatras; permitem que os

10
“Dependência de crack é responsável por 90% dos bebês adotados na região central de SP”. In: Rede Brasil
Atual, 23.07.17. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/07/crack-e-responsavel-
por-cerca-de-90-dos-bebes-colocados-para-adocao-em-sao-paulo/>. Acesso em 02/11/19
11
Os intensos debates sobre as Recomendações, posteriormente revogadas, podem ser encontrados na
compilação feita pela página online “De quem é este bebê? Por mais Saúde e menos abrigamentos em BH”,
disponível em: < https://dequemeestebebe.wordpress.com/entenda-o-caso/>. Acesso em 02/11/19

5
filhos convivam ou sejam entregues a pessoas violentas, drogadas ou mentalmente
doentes (art. 245 do Código Penal)12

Em sentido semelhante, Helen Crystine Corrêa Sanches e Josiane Rose Petry


Veronese sustentam a possibilidade de intervenções estatais para a proteção de crianças e
adolescentes em decorrência do uso de substâncias por seus genitores mesmo após as
alterações promovidas pela Lei nº 13.257/16

A nova redação, portanto, é mais ampla, mais densa e apropriada que a redação
anterior, que se limitava a apontar como impróprios os ambientes que tivessem
‘pessoas dependentes de substâncias entorpecentes’. Sinaliza o novo texto que não
somente os toxicômanos podem afetar o pleno desenvolvimento de crianças e
adolescentes, como também situações outras, como ambientes violentos –
violência, esta, compreendida em suas mais variadas formas13

Uma rápida análise dos fundamentos doutrinários apresentados pressupõe que o


uso de substâncias pelos pais (qualquer que seja a intensidade do uso e qualquer que seja a
substância psicoativa) corresponderia a um “mal em si mesmo” e, portanto, inevitavelmente
– e, quiçá, irreversivelmente – prejudicial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Feita a breve contextualização, passaremos a analisar a forma pela qual o
Tribunal de Justiça vem confirmando decisões de destituição do poder familiar em virtude
do uso de substâncias psicoativas pelas mães de crianças e adolescentes.

2. OS ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Conforme mencionado na introdução, o âmbito de amostragem para a produção


da presente pesquisa consistiu na análise de 30 acórdãos proferidos pela Câmara Especial do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao longo do ano de 2020, relativamente a crianças
e adolescentes residentes na Capital do Estado que foram separadas de suas famílias em
virtude do uso de drogas pelas respectivas genitoras. Eis os casos destacados:

12
MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos
teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Jur, 2019, p. 270.
13
SANCHES, Helen Crystine Corrêa; VERONESE, Josiane Rose Petry. Comentários ao art. 19 do Estatuto da
Criança e do Adolescente. In: Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e
sociais. VERONESE, Josiane Rose Petry, SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir. 13ª ed, São Paulo: Malheiros,
2018, p. 221

6
TJSP; Apelação Cível 1012110-66.2018.8.26.0007; Relator (a): Guilherme G. Strenger (Pres. Seção
1 de Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da
Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 18/12/2020; Data de Registro: 18/12/2020
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
2 Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
27/11/2020; Data de Registro: 27/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1023775-34.2017.8.26.0001; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
3 Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 18/11/2020;
Data de Registro: 18/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1009131-12.2019.8.26.0003; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
4 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1022388-47.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
5 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1014245-69.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
6 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020
TJSP; Apelação Cível 1013231-95.2019.8.26.0007; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
7 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020
TJSP; Apelação Cível 1033887-62.2017.8.26.0001; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
8 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 27/10/2020; Data de Registro: 27/10/2020
TJSP; Apelação Cível 1012714-11.2019.8.26.0001; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
9 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 30/09/2020; Data de Registro: 30/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1011957-51.2018.8.26.0001; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
10 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 27/09/2020; Data de Registro: 27/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1033329-19.2019.8.26.0002; Relator (a): Renato Genzani Filho; Órgão
11 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional II - Santo Amaro - Vara da Infância e da Juventude; Data
do Julgamento: 25/09/2020; Data de Registro: 25/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1014685-13.2019.8.26.0007; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
12 Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
11/09/2020; Data de Registro: 11/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1004457-79.2019.8.26.0006; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
13 Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 11/09/2020; Data de Registro: 11/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1002482-07.2019.8.26.0011; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
14 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional XI - Pinheiros - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 09/09/2020; Data de Registro: 09/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1010280-05.2017.8.26.0006; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
15 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 03/09/2020; Data de Registro: 03/09/2020
TJSP; Apelação Cível 1004580-14.2018.8.26.0006; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
16 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 17/08/2020; Data de Registro: 17/08/2020
TJSP; Apelação Cível 1013705-74.2016.8.26.0006; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
17 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 20/07/2020; Data de Registro: 20/07/2020
TJSP; Apelação Cível 1115502-05.2016.8.26.0100; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
18 Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
30/06/2020; Data de Registro: 30/06/2020

7
TJSP; Apelação Cível 1030339-92.2018.8.26.0001; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
19 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do
Julgamento: 30/06/2020; Data de Registro: 30/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1112725-13.2017.8.26.0100; Relator (a): Renato Genzani Filho; Órgão
20 Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
08/06/2020; Data de Registro: 09/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1002968-44.2018.8.26.0005; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Pres. Seção
21 de Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara
da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador:
22 Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
TJSP; Apelação Cível 1000814-19.2019.8.26.0005; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
23 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara da Infância e da Juventude;
Data do Julgamento: 22/05/2020; Data de Registro: 22/05/2020
TJSP; Apelação Cível 1018690-33.2018.8.26.0001; Relator (a): Luis Soares de Mello (Vice
24 Presidente); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e
Juventude; Data do Julgamento: 10/05/2020; Data de Registro: 10/05/2020
TJSP; Apelação Cível 1101906-80.2018.8.26.0100; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão
25 Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
27/04/2020; Data de Registro: 27/04/2020
TJSP; Apelação Cível 1013733-91.2015.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
26 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
19/03/2020; Data de Registro: 19/03/2020
TJSP; Apelação Cível 1031924-82.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
27 Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento:
12/03/2020; Data de Registro: 12/03/2020
TJSP; Apelação Cível 1010808-11.2018.8.26.0004; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão
28 Julgador: Câmara Especial; Foro Regional IV - Lapa - Vara da Infância e da Juventude; Data do
Julgamento: 02/03/2020; Data de Registro: 02/03/2020
TJSP; Apelação Cível 1009211-16.2018.8.26.0001; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
29 Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 27/02/2020;
Data de Registro: 27/02/2020
TJSP; Apelação Cível 1028507-92.2016.8.26.0001; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca (Pres. da
30 Seção de Direito Privado); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da
Infância e Juventude; Data do Julgamento: 13/02/2020; Data de Registro: 13/02/2020

A análise do discurso, enquanto ferramenta metodológica de pesquisa científica,


tem como um de seus objetivos identificar de que forma o imaginário é retratado. Em relação
ao imaginário que prevalece na Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, é relevante ter em mente que “as palavras mudam de sentido segundo as posições
daqueles que as empregam”, pois elas “tiram seu sentido das formações ideológicas nas quais
essas posições se inscrevem” 14
Para a análise ora pretendida, foram lidos os votos de todos os/as
Desembargadores/as Relatores/as e, a partir deles, identificados subtemas que se repetiam

14
SILVA, Jonathan Chasko da; ARAÚJO, Alcemar Dionet de. A metodologia de pesquisa em análise do
discurso. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 5, n.1, 2017, p. 19

8
nas respectivas fundamentações. Foram três os principais subtemas identificados: “uso de
drogas, pobreza e força de vontade”, “presunção da inaptidão para a parentalidade em virtude
do uso de drogas” e “expectativas sociais em torno do papel da mulher”.
Veremos, em seguida, cada um deles de forma mais detida.

2.1. Uso de drogas, pobreza e força de vontade

O primeiro subtema identificado como recorrente nos acórdãos analisados foi a


argumentação no sentido de que a violação do poder familiar decorreria da falta de força de
vontade da genitora para abandonar o uso de substâncias psicoativas e, portanto, tornar-se
abstêmia. Pressupõe-se que, sendo livre para fazer escolhas, ao invés de interromper
definitivamente o uso de substâncias para, assim, poder exercer adequadamente a
maternagem, teria optado pela continuidade do uso e, por consequência, violado dolosamente
os deveres inerentes ao poder familiar, seja pelo abandono, seja pela prática de atos contrários
à moral e aos bons costumes15.
No julgamento do recurso de apelação nº 1012110-66.2018.8.26.0007, por
exemplo, afirmou-se que, embora a mãe-apelante vivenciasse um contexto de
vulnerabilidade social, com recursos limitados para sua sobrevivência e dos filhos, “nada fez
de concreto para reassumir os cuidados com o filho”, o que evidenciaria seu “intento de
desligar-se completamente do filho”16.
Também ilustrativa é a fundamentação adotada no julgamento da apelação nº
1013231-95.2019.8.26.0007 no sentido de que “a demandada vivia em situação de rua, fazia
uso abusivo de drogas, deixando a filha à mercê de sua própria sorte, privada de alimentos e
de higiene adequada, demonstrando completa falta de responsabilidade, interesse e
preocupação com relação à menor”17
Outras fundamentações foram apresentadas em sentido semelhante e merecem
transcrição

15
Art. 1.638 do CC: Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que (...) II - deixar o filho em
abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes (...).
16
TJSP; Apelação Cível 1012110-66.2018.8.26.0007; Relator (a): Guilherme G. Strenger (Pres. Seção de
Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da
Juventude; Data do Julgamento: 18/12/2020; Data de Registro: 18/12/2020
17
TJSP; Apelação Cível 1013231-95.2019.8.26.0007; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020

9
(...) A família apresenta o desejo de ter a guarda da criança, e sobretudo, não
gostariam de perdê-la de vista. No entanto, vivem em condições precárias, não só
do ponto de vista socioeconômico: encontram-se, eles mesmos, em situação
vulnerável, sob relações pautadas na violência e sem apresentar movimentos no
sentido de sua solução (...)18 – grifo meu

(...)Tais circunstâncias tiveram origem anterior, pois viviam as crianças na


companhia da mãe, usuária severa de drogas, sem que se mostrem provas de
quaisquer atitudes do Recorrente para melhorar a situação (...)19 – grifo meu

(...) Desde então, os genitores, sem o necessário respaldo familiar, não se


empenharam suficientemente na reversão a situação fática consolidada, não
demonstrando senso crítico quanto aos deveres e obrigações inerentes ao
exercício responsável do poder familiar, muito menos adotaram eventuais atitudes
positivas no sentido de afastarem as crianças da carência socioeconômica,
educacional, moral e afetiva a qual submetidas, em razão da própria conduta (...)20
– grifo meu

(...) Com efeito, vários são os fatos que ensejaram o acolhimento e a destituição,
que consistem na (i) desídia absoluta dos cuidados mínimos dispensados às
crianças; (ii) insalubridade do ambiente familiar (disfuncional), agravado pela
instabilidade emocional da genitora; (iii) consumo abusivo de drogas, sem adesão
efetiva aos tratamentos dispensados pelas entidades de atendimento locais, (iv)
recalcitrância dos genitores às orientações da rede protetiva local para
reestruturação de suas condições pessoais e socioeconômicas; (v) ausência de
vínculos afetivos significativos e sem perspectiva de modificação das condições
para exercer os cuidados dos infantes, ou seja, condutas incompatíveis com a
pretendida reinserção das crianças ao convívio no ambiente familiar biológico ou
extenso onde foram submetidas anteriormente a grave situação de risco à sua
saúde e incolumidade física e psicológica (...)21 – grifo meu

(...)Vale ressaltar que desconhecemos a maneira como Miriam se sustenta, não


tendo qualquer comprovação de atividade laborativa e nem comprovação de
moradia onde possa acolher as filhas, sem uma retaguarda familiar. Não temos
garantia de quanto tempo Miriam se sustentará 'abstinente', devido ao seu
histórico, conforme descrito em relatório. Além disso, os indícios de precariedade
social não garantem aos filhos o acesso às necessidades básicas como
alimentação, educação, moradia e saúde (...)22

18
TJSP; Apelação Cível 1013231-95.2019.8.26.0007; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional VII - Itaquera - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020
19
TJSP; Apelação Cível 1002968-44.2018.8.26.0005; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Pres. Seção de
Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara da Infância
e da Juventude; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
20
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
21
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
22
TJSP; Apelação Cível 1010808-11.2018.8.26.0004; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional IV - Lapa - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 02/03/2020;
Data de Registro: 02/03/2020

10
Nesse ponto, imperioso recordar que o Estatuto da Criança e do Adolescente
proíbe que o decreto de destituição do poder familiar seja fundamentado na carência de
recursos materiais da família (art. 23, caput). Tal regra, apesar das conclusões apresentadas,
não passou desapercebida pelos/as Desembargadores/as, que buscaram enfatizar que, nos
casos em análise, a destituição do poder familiar não decorreria da situação de pobreza
enfrentada pelo grupo familiar, mas sim do descumprimento doloso e voluntário dos deveres
inerentes ao poder familiar pela genitora. Nesse sentido, bastante ilustrativo é o seguinte
fragmento de decisão

(...) Finalmente, se reconhece – é importante destacar - que a destituição do poder


familiar não emerge da carência de recursos financeiros dos genitores, mas,
conforme visto, da evidente situação de risco que, em virtude de sua função
parental apática, impuseram a si mesmos e aos filhos menores, submetidos a
abandono, maus tratos físicos e psicológicos durante lapso temporal mais do que
suficiente para que pudessem construir um alicerce mínimo para propiciar as
crianças o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, com liberdade
e dignidade. Não o fizeram, e sequer compreenderam a necessidade premente de
fazê-lo. Necessário sopesar e priorizar o interesse e direito dos infantes a uma vida
digna no seio da família natural, ou, na impossibilidade, naquela que vier a cumprir
este papel, permitindo a eles, saudável desenvolvimento (...) 23

Saliente-se, por fim, que a grande maioria das razões de apelação apreciadas pelo
Tribunal sustentava justamente a violação da regra contida no art. 23 do Estatuto da Criança
e do Adolescente, argumentando que a verdadeira omissão verificada não foi da família em
relação aos cuidados da criança, mas sim do Estado, que possui a obrigação primária e
solidária de garantir as famílias a satisfação de todas as condições necessárias a uma vida
digna (art. 226 da Constituição Federal e art. 100, parágrafo único, inciso III, do Estatuto da
Criança e do Adolescente).
A Câmara Especial, no entanto, reiteradamente rechaçou tal linha argumentativa
asseverando que
(...) não há razão para que o Estado (em sentido amplo) fique o tempo todo no
auxílio das pessoas, especialmente quando não desejam, não se interessam e/ou
não querem esse auxílio. Se omissão houve, foi pela apelante, resistente a todo e

23
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020

11
qualquer tipo de intervenção o que torna vazia de sentido qualquer alegação de
falta de ação positiva do Estado24.

2.2. A presunção da inaptidão para a parentalidade em virtude do uso de drogas

O segundo subtema identificado nas decisões da Câmara Especial pode ser


sintetizado como “a presunção da inaptidão para a maternagem em virtude do uso de drogas
pela mãe”. Nesse sentido, parte-se da premissa de que o consumo (qualquer que seja o padrão
de uso: leve, moderado, intenso) de uma substância psicoativa ilícita (qualquer que seja ela)
pela mãe (ou pelo pai) é fatalmente prejudicial ao desenvolvimento da criança ou do
adolescente e, portanto, não pode ser tolerado. Com isso, torna-se despicienda qualquer
análise sobre a dinâmica concreta da vida familiar, o modo concreto e efetivo como tal uso
interfere no exercício do cuidado e proteção dos filhos e, em especial, eventuais arranjos que
possibilitariam a conciliação de algum padrão de uso com práticas de cuidado e proteção.
Em muitos casos, a presunção do nexo de causalidade entre o uso de drogas
ilícitas e a inaptidão para o exercício da maternagem é apresentada por meio de frases
singelas, como, por exemplo: “por ser a genitora, ora apelante, usuária de drogas e [portanto]
não reunir condições para assumir os cuidados dos filhos”. Ou, ainda: “indicando que a
apelante apresenta histórico de uso de drogas, podendo [portanto] expor a filha a essa
realidade, nega-lhe os devidos cuidados”.
Em outros casos, a construção é mais detalhada, como se depreende dos seguintes
trechos

(...) ademais, de se destacar que o consumo abusivo de drogas é moléstia que agrava
a situação dos genitores, que compromete a própria saúde e a das crianças, expostas
à instabilidade do apelante em seus cuidados, bem como ao seu bem-estar,
decorrente da somatória das situações narradas. Além disso, a resistência ou
incapacidade dos genitores de submissão ao efetivo tratamento de drogadição, bem
como no que concerne a reestruturação das condições pessoais e socioeconômicas
dos apelantes, não obstante os esforços e as intervenções da rede protetiva local e
do setor técnico do Juízo, não justifica que os infantes permaneçam em situação de
abandono, caracterizado pelo prolongado período de institucionalização - situação
inadmissível à luz da legislação protetiva da infância e juventude (...) Como é
cediço, são notórias as dificuldades enfrentadas pelos adictos que, sob supervisão
médica e terapêutica adequadas, se submetem a efetivo e prolongado tratamento
disponibilizado pela rede protetiva local. E, in casu, a despeito dos comprovantes

24
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020

12
e relatórios encartados às fls. 86/88, 111 e 224/225, não há nos autos quaisquer
documentos que apontem eventual êxito no tratamento contra drogadição. O fato
objetivo, e independentemente do acompanhamento terapêutico ao qual submetido
o apelante, é que ambos os genitores, em nenhum momento, demonstraram que
apresentam condições mínimas a propiciar às crianças um desenvolvimento
saudável, com dignidade, e que permitiria seu regresso ao ambiente familiar natural
ou extenso. Aliás, sequer há perspectiva de que isto venha a acontecer em tempo
hábil, tendo em vista a inércia e o desinteresse demonstrado pelos genitores -
condutas que, à evidência e consoante as provas coligidas, tiveram como
consequência o arrefecimento dos vínculos familiares biológicos (...) Nesse passo,
é absolutamente impertinente postergar às crianças, durante a infância e
adolescência época em que mais necessitam de amor, apoio, e segurança de uma
família - a espera que seus genitores reúnam condições mínimas essenciais para o
provimento das condições necessárias ao seu bem-estar e o desenvolvimento
saudável (...)25

(...) a genitora faz uso de substâncias psicoativas, expõe o filho V. a situações de


risco (usa maconha em companhia do filho), não amadurece ou reconhece a sua
situação de usuária de drogas e não consegue sair deste ciclo para ter autonomia de
sua vida (...)26

(...) [os pais] são usuários contumazes de drogas e sempre foram negligentes em
relação aos cuidados com a prole, não reunindo aptidão física ou psíquica para ter
a criança sob seus cuidados. De fato, a genitora faz uso de maconha e cocaína desde
a adolescência e continuou a consumi-las durante a gestação, demonstrando
completa falta de preocupação com a saúde do nascituro. No momento em que deu
à luz ao infante, estava muito agitada e agressiva e findo o parto a equipe médica
concluiu que a apelante não estava em condições de zelar pelo recém-nascido, que
teve de ser transferido para a unidade neonatal do serviço (...)27

(...) Por outro lado, observou-se que a genitora realizava visitas diárias à filha,
começou a fazer curso profissionalizante de manicure (...), e estava abstinente,
ressaltando-se, no entanto, a insuficiente estrutura para reassumir os cuidados com
a filha. Além disso, observou-se que M. não deu início a tratamento contra a
drogadição no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), apresentando justificativas
frágeis para suas faltas em consultas agendadas (fls. 133/135). Em estudo
psicossocial subsequente, realizado em 30 de março de 2015, atestou-se que “a
genitora demonstra estar se esforçando para realizar as visitas à filha, mostra ser
mãe dedicada e amorosa, dedicando-se aos cuidados da criança”. Não obstante,
também se notou a grande resistência quanto à adesão ao tratamento contra a
drogadição no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) (...) Embora afirme que se
esforçou para se reabilitar e se livrar do vício, já foram realizados diversos
trabalhos com M., e não foram observadas melhorias significativas. Dessa forma,
não se pode concluir que a realização de novas intervenções por médicos,
psicólogos e assistentes sociais serão frutíferos (...) No mais, as provas trazidas
aos autos demonstram que a genitora tem histórico de consumo excessivo de

25
TJSP; Apelação Cível 1010280-68.2018.8.26.0006; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020
26
TJSP; Apelação Cível 1009131-12.2019.8.26.0003; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020
27
TJSP; Apelação Cível 1013705-74.2016.8.26.0006; Relator (a): Daniela Cilento Morsello; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional VI - Penha de França - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
20/07/2020; Data de Registro: 20/07/2020

13
substâncias ilícitas, e, além disso, negligenciou os cuidados com a saúde da filha,
ao não realizar os exames do pré-natal e consumir drogas durante toda a gestação
(...)28

Assim como no tópico anterior, verificou-se que, ao se defrontar com razões de


apelação no sentido de que as destituições teriam sido fundamentadas em uma situação de
vulnerabilidade da genitora (como a dependência química), muitos/as Desembargadores/as
buscaram uma adequação argumentativa no sentido de

(...) não ser a dependência química da apelante a justificativa para a destituição de


sua autoridade parental, mas sim seu comportamento desidioso e
descompromissado em relação às necessidades dos filhos, a ponto de resistir
realizar qualquer esforço no sentido de promover alterações positivas em seu estilo
de vida, a fim de compatibilizá-la com a guarda natural dos meninos29.

A presunção da inaptidão para a maternagem em virtude do uso de droga também


está presente na (suposta) busca por “prognósticos de cuidado” por parte dos Juizados da
Infância e Juventude.
Em parte dos julgados30, afirmou-se que compete ao Juízo da Infância e
Juventude, amparado pela equipe multidisciplinar que o assessora, avaliar o núcleo familiar
e realizar um “prognóstico sobre a capacidade futura da genitora apelante em assumir os
cuidados dos filhos”. Na sequência, afirma-se que, em razão na “insistência no uso de drogas,
a projeção não é positiva” sem, contudo, especificar minimamente, com o devido respaldo
científico, as razões que fundamentam o cenário pessimista.
As seguintes passagens são ainda mais ilustrativas da forma como o Tribunal
vem realizando tais prognósticos:
(...) sabe-se que o tempo corre em prejuízo do menor, fazendo com que as chances
de integração na família substituta sejam frustradas, pois, com o avanço da idade,
as oportunidades do sucesso de possível adoção são sensivelmente reduzidas. E
uma busca insistente pelo restabelecimento da família biológica em nome do
melhor interesse da criança e do adolescente deve ser utilizada com moderação e
equilíbrio, pois os menores estão em constante desenvolvimento, não podendo

28
TJSP; Apelação Cível 1028507-92.2016.8.26.0001; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca (Pres. da Seção de
Direito Privado); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude;
Data do Julgamento: 13/02/2020; Data de Registro: 13/02/2020
29
Por todos, TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento:
27/11/2020; Data de Registro: 27/11/2020
30
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020

14
esperar que floresça a regeneração, a qualquer tempo, nos detentores da
responsabilidade pelo exercício do seu dever com responsabilidade31 - grifo meu.

(...) e nem se diga poder debitar a questão na vulnerabilidade social ou na ausência


de condições econômico-financeiras, como mencionam os apelantes, pois é
evidente o descumprimento voluntário dos deveres inerentes ao poder familiar, de
forma objetiva, além da dificuldade dos genitores suportarem os encargos naturais
da maternidade/paternidade tanto no passado, quanto no presente e futuro.32 –
grifo meu

Interessante também registrar que mesmo em relação aos genitores que


efetivamente conseguem perseguir com algum êxito as metas a eles impostas para que
possam reassumir os cuidados dos próprios filhos, como, por exemplo, frequentando
atendimento psicossocial para “tratamento contra o” uso de substâncias psicoativas, há
excessivo rigor quanto às dificuldades enfrentadas para o atingimento da abstinência, a
autorizar, inclusive, a desconsideração de eventuais evoluções e conquistas

E embora se fale em atualidade das causas para a destituição em relação ao


momento da sentença, não se pode deixar de ter em mente que seu fundamento
principal são os fatos passados, ou seja, o comportamento adotado ou omitido pelo
genitor a demonstrar o abandono ou não exercício regular do poder familiar, não
se comprova a partir de sua situação carcerária atual. O que justifica a destituição
do poder familiar é a conduta pretérita do apelante, não demonstrando qualquer
afeto ou preocupação com os filhos (...) A infância é a fase mais rápida da vida, em
que se constroem, em poucos anos, os valores e ideais que irão nortear o futuro
adulto. A demora na solução de questões envolvendo o correto exercício do poder
familiar, além de diminuir sobremaneira a chance de adoção, retira das crianças
algo que não será devolvido: o direito de crescer amparadas por uma figura paterna
saudável. Não se pode tolher da criança tal direito, sob uma falsa tutela à
convivência com um pai biológico que sequer tem certeza do dia que terminará de
cumprir sua pena, nem de que, após tal fato, deixará de usar drogas e terá
condições de cuidar dos filhos33

2.2. O ideal materno

31
Por todos, TJSP; Apelação Cível 1014245-69.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 06/11/2020;
Data de Registro: 06/11/2020
32
TJSP; Apelação Cível 1031924-82.2018.8.26.0001; Relator (a): Sulaiman Miguel; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional I - Santana - Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 12/03/2020; Data de
Registro: 12/03/2020
33
TJSP; Apelação Cível 1002968-44.2018.8.26.0005; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Pres. Seção de
Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional V - São Miguel Paulista - Vara da Infância
e da Juventude; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 05/06/2020

15
Por fim, o terceiro subtema identificado sugere uma clara expectativa por parte
do Poder Judiciário em relação ao exercício não apenas da função materna, mas de um
específico papel social atribuído às mulheres: a dedicação completa ao cuidado dos filhos.
Afirma-se em uma das decisões, por exemplo, que “é cumprindo o dever de preparar
integralmente os filhos para a vida que os pais satisfazem um dos mais elevados valores de
sua personalidade que têm o direito de realizar”34.
Daí porque vista com excessiva reserva a prática de condutas voltadas ao próprio
prazer pela mulher que exerce, também, a função materna, muitas das quais reputadas
“vicissitudes”

“A intervenção judicial deve atender prioritariamente os interesses da criança e do


adolescente. Nesse caso, há de ser garantido direito previsto em norma
constitucional9 e na legislação ordinária, liberando os infantes da sujeição à
autoridade parental e, também, das vicissitudes da vida da mãe35”

Praticamente todos os trechos colacionados nos itens anteriores (2.1 e 2.2), direta
ou indiretamente, apresentam a visão do Poder Judiciário em relação a quais condutas são
“permitidas” e quais condutas são interditadas às mulheres em geral e, em especial, às mães.
Para se evitar repetições, remetemos o/a leitor/a àqueles trechos para uma nova reflexão,
agora sob a perspectiva ora colocada.
A mulher, portanto, quando se comporta de forma diversa daquela esperada (e
socialmente imposta) é vista como fraca, impulsiva, dissimulada e incapaz para o exercício
do cuidado. Exemplo bastante representativo dessa conclusão pode ser encontrado no
seguinte excerto:

(...) Além disso, percebe-se um empobrecimento nas discriminações que lhe


permitam avaliar que sua conduta, seja nos estilos parentais, seja na promiscuidade
das relações interpessoais que constantemente se envolve traz como consequência
a dificuldades para emissão de outros comportamentos mais adequado (...) De fato,
pode-se observar melhor controle da impulsividade durante as avaliações,
provavelmente em decorrência do uso de medicação, porém, do mesmo modo
destaca-se a atitude e discurso com caráter dissimulador (...) Tal atitude reforça

34
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020
35
TJSP; Apelação Cível 1023346-90.2019.8.26.0003; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara
Especial; Foro Regional III - Jabaquara - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 27/11/2020;
Data de Registro: 27/11/2020

16
mais uma vez a inconstância habitacional e rotatividade de relacionamentos, sem
qualquer critério de seleção36

A partir da análise das decisões reunidas na amostragem, portanto, surge como


hipótese conclusiva que os principais argumentos para a manutenção do decreto de
destituição do poder familiar, mais do que a subsunção entre determinada conduta e as
hipóteses taxativas previstas no Código Civil para a destituição do poder familiar37, como
impõe o princípio da legalidade estrita, estariam consubstanciados na inadequação (inclusive
moral) em relação aos referenciais maternos construídos na sociedade patriarcal.
Entretanto, para sustentar tal hipótese, necessário, antes, compreender como
pesquisadores/as têm interpretado (i) os efeitos do uso de drogas no exercício do cuidado (de
si mesmo e dos filhos) e (ii) como é feita a seleção por parte dos mecanismos formais de
controle social das formas legítimas e ilegítimas de existência da mulher a partir dos
referenciais impostos socialmente.

3. PROTEÇÃO INTEGRAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES E USO DE


DROGAS PELAS MÃES: UMA DINÂMICA INCONCILIÁVEL?

Em 2016, o Ministério da Saúde e o (então chamado) Ministério do


Desenvolvimento Social e Combate à Fome editaram a Nota Técnica Conjunta nº 01, que
estabelece “Diretrizes e fluxograma para a atenção integral à saúde das mulheres e das
adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-
nascidos”38.
A nota técnica, em suma, reconhece que as necessidades decorrentes do uso de
álcool e outras drogas requerem uma abordagem multisetorial e interdisciplinar, diante da

36
TJSP; Apelação Cível 1010808-11.2018.8.26.0004; Relator (a): Xavier de Aquino (Decano); Órgão Julgador:
Câmara Especial; Foro Regional IV - Lapa - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 02/03/2020;
Data de Registro: 02/03/2020
37
Interessante salientar que nenhum dos casos apresentou robusta argumentação teórica sobre o enquadramento
das condutas nas hipóteses taxativamente previstas no rol do art. 1.638 do Código Civil. Muitas das decisões,
aliás, sequer mencionaram o dispositivo e outras apenas citaram o suposto inciso incorrido, sem maior
desenvolvimento.
38
BRASIL. Ministério da Saúde; Ministério do Desenvolvimento Social. Nota Técnica Conjunta nº 01/2016.
Diretrizes e fluxograma para a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de
rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/nota_tecnica/nt_conjunta_01_MDS_msaude.pd
f. Acesso em 23/06/2021

17
complexidade das situações apresentadas, que envolvem tanto aspectos relacionados à saúde
quanto à exclusão social. Por outro lado, enfrentam diretamente a prática de separações
compulsórias entre mães e seus filhos, afirmando que “decisões imediatistas de afastamento
de crianças de suas mães, sem o devido apoio e acompanhamento antes, durante e após o
nascimento, bem como uma avaliação minuciosa de cada situação, violam direitos básicos,
tais como a autonomia das mulheres e a convivência familiar”. E conclui

Nesse sentido, o Estado deve assegurar os cuidados que contemplem as escolhas


das pessoas envolvidas, dentre elas a manutenção do convívio entre mãe e filho,
sempre que isso represente o melhor interesse da criança (...) ao mesmo tempo, é
preciso garantir os direitos das mulheres que decidirem manterem ou não a guarda
da criança, não cabendo aos profissionais qualquer julgamento, mas propiciar o
apoio necessário para uma escolha consciente, desde que seja garantida a segurança
e o bem estar da criança (...) é importante que os gestores propiciem espaços de
acolhida e escuta qualificada para as mulheres e seus(suas) filhos(as) onde estes
estejam cuidados nos momentos de vulnerabilidade durante a gravidez e após a alta
da maternidade. Estes espaços não devem ser cerceadores de direitos ou punitivos.
Devem ser espaços que podem transitar entre a Saúde e a Assistência Social,
promovendo o cuidado compartilhado da criança com a mulher, caso seja
necessário, e assegurando ações que garantam a proteção desses sujeitos, assim
como a possibilidade das mulheres vivenciarem outras formas de sociabilidade,
caso desejem39.

No mesmo sentido, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (6ª Região)


emitiu nota técnica sobre o exercício da maternidade por mães que fazem uso de crack e
outras drogas, preconizando que

A retirada de recém-nascidos de suas mães ainda na maternidade revela


desconhecimento quando associa o uso de substâncias psicoativas
necessariamente à ocorrência de violências/violações de direito. Supõe-se, no
hospital, que a mãe será incapaz de cuidar do bebê decido ao uso de drogas, não
tendo havido até então nenhuma violação de direitos por parte dela (...). Além
disso há carência de avaliação adequada sobre as formas de uso de drogas, sendo
fácil haver uma avaliação superficial e possivelmente moralizante deste contexto.
A partir de tais argumentos sem fundamentação legal, viola-se o direito básico,
garantido por lei, da criança e da mulher à convivência familiar e comunitária40
(grifos meus).

39
Idem, p. 8
40
SÃO PAULO. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (6ª Região). Nota Técnica sobre o exercício
da maternidade por mães que fazem uso de crack e outras drogas. 2016, p. 1. Disponível em:
https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/33/Documentos/Nota%20t%c3%a9cnica%20sobre%20o
%20exerc%c3%adcio%20da%20maternidade%20por%20m%c3%a3es%20que%20fazem%20uso%20de%20
crack%20-%20CRPSP%20-%20Ago16%20(1).pdf . Acesso em 23/06/2021.

18
E arremata

Dessa forma, é indispensável que se realize a devida avaliação dos casos


individuais pelas equipes dos serviços de saúde e assistência social de referência,
não sendo eticamente possível tomar encaminhamentos com base em
generalizações, preconceitos e estigmas, quando se entende de antemão que a mãe
não tem condições de cuidar do bebê. Observa-se também que há a penalização da
mãe que muitas vezes não teve direitos garantidos relativos à sua condição de
vulnerabilidade e é novamente prejudicada com a perda do direito de exercer a
maternidade (...) tendo em vista o exposto, vimos alertar para a necessidade de um
olhar fundamentado na promoção de laços sociais e na garantia de direitos da mãe,
da criança e da família, em casos envolvendo mães usuárias de crack, outras
substâncias, e/ou em situação de rua e seus bebês. Assim, a/o psicóloga/o baseará
seu trabalho na promoção da saúde e qualidade de vida das pessoas, estando
impedido de participar ou ser conivente com violações de direitos, seja por meio
de avaliações sem fundamentação ou produção de documentos decorrentes destas41
(grifo meu).

Em consonância com os posicionamentos exarados, constata-se a existência de


relevantes evidências científicas no sentido da inexistência de nexo causal ou relação de
causalidade entre toda e qualquer forma de consumo de substâncias psicoativas (lícitas ou
ilícitas) e a aptidão ou inaptidão à parentalidade. Nessa linha, Paola de Oliveira Camargo
afirma que

(...) cada mulher é única, tem a sua personalidade e a sua maneira de ser mãe e
vivenciar essa realidade, não cabendo à sociedade o ato errôneo de julgar e
acreditar que todas devem agir de forma igual e que se tratando de uma mulher
usuária de drogas o seu papel materno ficará comprometido, pois durante a
pesquisa percebe-se que a todo instante e de alguma maneira, essas mulheres estão
se relacionando com os seus filhos e assumindo o seu papel como mãe na
sociedade42 (grifo meu)
O estudo realizado por Hallam Hurt, por sua vez, desmistifica a conexão
necessária e invariável entre o uso de cocaína pelas mães na gestação e os supostos prejuízos
para os filhos. A pesquisa aponta que o desenvolvimento de filhos de mulheres que fizeram
uso de cocaína durante a gestação não é diferente do desenvolvimento de crianças que foram
criadas em ambientes semelhantes (com acesso aos mesmos recursos
econômicos/sociais/emocionais) aos das crianças filhas de usuárias de cocaína. Conclui que,

41
Ibidem.
42
CAMARGO, Paola de Oliveira. A visão da mulher usuária de cocaína/cracks obre a experiência da
maternidade: vivência entre mãe e filho. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação da Faculdade
de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014, p. 74

19
na realidade, uma discrepância que pode ser crucial ao desenvolvimento reside nas situações
de vulnerabilidade social. Para Hurt

(...) os efeitos da droga não são tão graves se comparados à pobreza, que pode
prejudicar muito mais o desenvolvimento infantil do que o consumo de alguma
substância por parte da mãe na gestação, ou seja, o ambiente familiar, as condições
sociais, o acesso a um bom pré-natal são fundamentais para que a criança possa se
desenvolver. O real problema é a pobreza e a falta de acesso a um bom pré-natal,
medicamentos, alimentação, e não apenas o uso da cocaína43
Todos estes condicionantes contextuais, referentes ao ambiente em que a mulher
está inserida, sua história e as adversidades socioeconômicas enfrentadas devem ser
considerados não apenas para se aferir a capacidade imediata de assumir os cuidados de
seu/sua filho/a, após o nascimento, caso assim deseje, como também para se pensar as
estratégias intersetoriais necessárias ao seu fortalecimento. Afinal, muitas pesquisas ainda
constatam a possibilidade de um cuidado materno satisfatório e o desenvolvimento de
vínculos funcionais da dupla mãe-bebê mesmo diante de um ambiente social precário.

4. O BIOPODER EXERCIDO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE


SÃO PAULO SOBRE AS MULHERES CONSUMIDORAS DE PSICOATIVOS
ILÍCITOS

Foucault identifica nos discursos uma vontade de verdade, assim compreendida


como uma “prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto,
em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão
contra a verdade”44. O saber, portanto, nessa perspectiva, é apresentado como construção
histórica e, como tal, produz verdades que se instalam e se revelam nas práticas discursivas.
Ao analisar os discursos produzidos pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo é possível identificar uma vontade de verdade na construção e
consolidação de uma narrativa em formato silogístico que pressupõe como verdadeira,
invariável e inevitável a constatação de que todo e qualquer uso de substâncias psicoativas

43
HURT, Hallam apud CAMARGO, Paola de Oliveira, Op. Cit, p. 166
44
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, 5ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 20.

20
ilícitas é nocivo e, portanto, não pode coexistir com o dever de cuidado e proteção para com
os filhos45.
Mas não é só. Também provoca uma descontextualização do consumo de
psicoativos, pressupondo a liberdade (e, portanto, a responsabilidade) de quem opta pelo uso.
Por conseguinte, de acordo com tal discurso, (i) se o uso de drogas é sempre nocivo ao
cuidado de crianças e adolescentes e (ii) se a “opção” pelo uso é feita no gozo da plena
liberdade da mulher, (iii) portanto, há um descumprimento voluntário e doloso dos deveres
inerentes ao poder familiar, o que enseja, finalmente, a admissibilidade do decreto de
destituição deste poder.
A presunção de correção absoluta das premissas apresentadas, no entanto, não
encontra respaldo científico, como visto acima. Cumpre-nos, portanto, investigar quais as
relações de poder que subjazem as práticas discursivas empregadas pela Câmara Especial do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

4.1. O exercício do biopoder nas perspectivas de gênero e classe

Para Michel Foucault, o poder encontra-se sempre associado a alguma forma de


saber. O exercício do poder, portanto, torna-se possível mediante práticas discursivas que lhe
servem de instrumento e justificação. Como explicam Rafael Nogueira Furtado e Juliana
Aparecida de Oliveira Camilo, “em nome da verdade, legitimam-se e viabilizam-se práticas
autoritárias de segregação, monitoramento, gestão dos corpos e do desejo” 46.
Nesse contexto, o filósofo trabalha com o conceito de biopoder, assim
compreendido como “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana,

45
A propósito, importante registrar que a constatação de uso de drogas nas ações que tramitam perante a Justiça
da Infância e Juventude é feita única e exclusivamente através de entrevistas com assistentes sociais, psicólogos,
conselheiros tutelares ou outros agentes do Sistema de Garantia de Direitos, sem qualquer exame clínico/médico
confirmativo. Ou seja, basta que um desses atores ou uma dessas atrizes afirme que “ouviu dizer que a mãe faz
uso de drogas” ou que “a mãe aparentou ter feito uso de drogas” que tais informações são incorporadas no
processo como elementos de verdade, provas do consumo e, portanto, prova do descumprimento dos deveres
inerentes ao poder familiar.
46
FURTADO; Rafael Nogueira; CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O conceito de biopoder no
pensamento de Michel Foucault. Revista Subjetividades, v. 16, n. 3, dez, Fortaleza, 2016, p. 35

21
constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral do poder”47
Há diversas formas de abordar as relações de dominação, igualdade ou desigualdade
entre homens e mulheres na sociedade. O conceito de gênero, nesse sentido, é construído
para demonstrar que a diferença homem e mulher é uma diferença culturalmente construída,
fundada nos lugares ocupados e papeis exercidos por cada qual na sociedade. Mas não é só.
Esse ideal de feminilidade, construído pela cultura, consolida mais do que apenas uma
expectativa social em torno do lugar da mulher; verdadeiramente, define o que seria sua
verdadeira natureza48.
A partir das diversas representações de feminilidade, são deduzidas as posições de
poder, submissão, complementariedade ou exclusão das mulheres no seio da sociedade 49. A
propósito, a psicanalista Maria Rita Kehl sustenta que

A cultura ocidental, ao longo dos séculos, produziu uma quantidade inédita de


discursos cujo sentido geral foi promover uma perfeita adequação entre as
mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado
feminilidade. Esta feminilidade aparece como um conjunto de atributos próprios a
todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua
capacidade procriadora; a partir daí, atribui-se às mulheres um pendor definido
para ocupar um único lugar social – a família e o espaço doméstico -,a partir do
qual se traça um único destino para todas: a maternidade. A fim de melhor
corresponder ao que se espera delas (que é, ao mesmo tempo, sua única vocação
natural), pode-se que ostentem as virtudes próprias da feminilidade: o recato, a
docilidade, uma receptividade passiva em relação aos desejos e às necessidades dos
homens e, a seguir, dos filhos50 (grifos meus)

O ideal de feminilidade, portanto, corresponderia ao lugar que a cultura


historicamente confere às mulheres, inclusive influenciando diretamente o processo de
construção de sua subjetividade a partir do “discurso do Outro”51. Daí porque podemos

47
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: Curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 3.
48
MOUNTIAN, Ilana. Mujeres Bajo Control In: MARTIN, Barbara Biglia y Conchi (Coord). Estado de
Wonderbra: entretejiendo narraciones feministas sobre las violências de género, Barcelona: Virus
Editorial, 2007.
49
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em Desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003
50
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade,
2ª ed, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 40
51
“Há duas dimensões indissociáveis do inconsciente: a que se constitui a partir da história de vida e das
respostas singulares produzidas pelo sujeito (...) e a que faz parte do campo social, o campo dos discursos do
Outro, no qual o sujeito ocupa uma posição que ele mesmo ignora e a partir da qual produz respostas subjetivas
cujo alcance desconhece” (KEHL, Op Cit, p. 123).

22
afirmar que a mulher, na sociedade, é antes falada – pelo Outro, pela estrutura em que se
encontra – do que fala.
Reconhecer a imposição de determinados papeis sociais às mulheres não implica
negar a importância da maternidade nem negar que a organização da vida doméstica
correspondeu historicamente a uma conquista de poder por parte das mulheres, outrora
submetidas ao modelo de familiar patriarcal que se apropriava de toda a sua liberdade e
autonomia. Trata-se, na realidade, de apontar para o fracasso de uma posição subjetiva que
não produz discurso e em relação à qual só se espera que corresponda ao que já está designado
no discurso do Outro52.
Por outro lado, deve-se também reconhecer que a construção cultural em torno do
ideal de feminilidade não preconiza apenas a maternidade como objetivo final de todas as
mulheres, mas sim uma específica forma – a única legítima – de ser mãe: a mãe “de tempo
inteiro, com capacidades enormes de auto sacrifício, completamente devotada não só à
criança, como ao papel de mãe”53, que garanta, a toda evidência, a correta transmissão dos
valores concebidos pela ideologia dominante. Toda e qualquer outra experiência de
maternagem deve ser evitada, não apenas pela pseudoincapacidade de prover amor, cuidado
e responsabilidade, mas também por corresponder a um problema social e de saúde pública.
Sucede que a única forma socialmente legítima(da) de maternar acaba por excluir
praticamente todas as mulheres que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade e
marginalização social, quer em razão da pobreza vivida, quer em razão da ausência de
referência familiar e comunitária, já que a dedicação exclusiva da mulher à criança pressupõe
a existência de uma fortalecida rede de apoio, familiar ou comunitária, que a permita abster-
se do trabalho e de outros deveres.
Insurgindo-se contra esse imaginário, Michele Carmona Aching observa em sua
pesquisa que, mesmo vivenciando situações de precariedade generalizada, as mulheres
logram desenvolver o estado de preocupação materna primária quando garantidas condições
mínimas para tal. Estas mulheres, “mesmo em situação de desamparo são capazes de

52
KEHL, Maria Rita. Op Cit, p. 57
53
MACEDO, Fernanda dos Santos de; ROSO, Adriane; LARA, Michele Pivetta de. Mulheres, saúde e uso de
crack: a reprodução do novo racismo na/pela mídia televisiva. In Saúde Soc, v. 24, n. 4, São Paulo, 2015,
p. 1293

23
identificar as necessidades dos filhos, principalmente as físicas, pelas quais batalham
diariamente por sua satisfação. É a mãe possível diante de tantas adversidades”54.
No entanto, é de se questionar: por que o referencial do ideal de maternidade exclui
prima facie as mulheres em situação de vulnerabilidade? Ou seja, por que ainda hoje vige a
ideia (inclusive no âmbito do próprio Poder Judiciário) de que as mulheres pobres não
reúnem condições de cuidar de seus próprios filhos?
A resposta a tal indagação é dada por Ana Paula Motta Costa, para quem “a
intervenção estatal nos contextos familiares, desde o ponto de vista histórico, sempre esteve
a serviço da manutenção dos padrões de moralidade vigentes”55. De acordo com as lições da
Autora
Toda a tradição histórica de intervenção familiar está fundada na ideia de que as
famílias pobres não são capazes de cuidar de seus filhos, seja pela condição de
pobreza, seja pelo grau de irresponsabilidade que possuem. Trata-se do argumento
ideológico que possibilitou ao Poder Público o desenvolvimento de políticas
paternalistas voltadas para o controle e a contenção social principalmente da
população mais pobre, com total descaso para a preservação de vínculos familiares.
Nesse sentido, observa-se que ocorre a manifestação de um mecanismo cultural de
desconstituição das pessoas desde sua condição social, não reconhecendo suas
possibilidades e potencialidades56

Atualmente, tal interpretação não mais se sustenta e, ao revés, desvela o verdadeiro


intento discriminatório, preconceituoso e higienista de seus defensores.
A partir da conjugação dos saberes críticos das ciências sociais, do serviço social,
da antropologia e da psicologia, compreende-se que as famílias em situação de
vulnerabilidade socioeconômica, assim como qualquer agrupamento familiar, merecem
também especial proteção por parte do Poder Público; a pobreza deixa de ser vista como uma
ameaça ou violação, em si, dos direitos de crianças e adolescentes e passa a ser compreendida
como verdadeira omissão na garantia de direitos e condições sociais básicas por parte do
Estado, que, se superadas, podem favorecer a capacidade de proteção e cuidado por parte das
famílias.

54
ACHING, Michele Carmona; GRANATO, Tania Mara Marques. A mãe suficientemente boa em situação
de vulnerabilidade social. Estudos de Psicologia, Campinas, 33(1), jan-mar/2016, p. 102
55
COSTA, Ana Paula Motta. Os adolescentes e seus direitos fundamentais: da invisibilidade à indiferença.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 176-179
56
COSTA, Ana Paula Motta. Op. Cit, p. 178

24
4.2. O exercício do biopoder a partir do estigma da “usuária de drogas”

As políticas proibicionistas57 relacionadas ao uso, cultivo e venda de substâncias


psicoativas tem como um de seus objetivos a construção de um discurso que, pautado na
moral e nas ciências médicas, legitime o controle, repressão e exclusão de todas as pessoas
indesejadas e inservíveis ao modelo de sociedade preconizado pelas elites simbólicas 58.
Tal controle é feito primordialmente por meio da construção de estigmas, frutos do
desajuste entre os atributos que a sociedade (a partir da ideologia transmitida pelas elites
simbólicas) considera como comuns e naturais para seus membros e os atributos apresentados
pelo grupo desviante, ou seja, o grupo que deixa de observar àqueles atributos normativos.
O simples fato de assumir uma conduta ou um modo de vida à margem da legalidade,
portanto, faz com que as pessoas deixem de ser consideradas propriamente humanas e
autoriza intervenções de toda sorte sobre suas vidas, sem que tais intervenções sejam
consideradas violadoras de seus direitos humanos.
Desse modo, uma vez atribuído à mulher que consome psicoativos ilícitos o estigma
de viciada ou usuária, esta passa a ser enxergada como detentora de uma patologia que a
responsabiliza pela própria situação de vulnerabilidade e, assim, é inserida em uma categoria
sub-humana, de modo que as intervenções judiciais deixam de ser interpretadas como
violadoras de direitos da mulher para serem consideradas, exclusivamente, garantidoras dos
direitos da criança.
Sucede que a questão das drogas, como bem adverte Claude Olievenstein, “não
existe em si, mas é o resultado do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo

57
O modelo proibicionista nasce no século XIX a partir dos chamados movimentos pela temperança
capitaneados por entidades religiosas e moralistas norte-americanas. O movimento utiliza uma metodologia
amedrontadora, partindo do princípio de que o medo ou a estratégia de pânico moral tem o condão de fazer com
que as pessoas não tenham coragem de experimentar drogas. Preconiza, ainda, a partir da dicotomia lícito/ilícito
a interdição de toda a qualquer substância psicoativa ilícita, considerando-se como tais aquelas não encampadas
pelos saberes médicos. Pauta-se, ainda, na crença de que é possível um mundo livre das drogas, razão pela qual
brada a bandeira de uma “Guerra às Drogas”, visando sua completa eliminação do seio social.
58
Fernanda Macedo, Lara Pivetta e Adriane Roso chamam de “elites simbólicas” os fabricantes de
conhecimento e dos padrões morais, além das crenças, atitudes, normas, ideologias e valores públicos.
Correspondem, portanto, às elites política, educacional, escolar e midiática, que controlam o acesso à maioria
dos discursos públicos respeitados pela sociedade. Devido a esse poder, elas possuem um papel específico na
(re)produção de conceitos, valores, isto é, na transmissão dessa dimensão do simbólico, que circula e se enraíza
no tecido social, sendo assim, é responsável pela influência suscitada pelas formas discursivas de racismo
(MACEDO, Fernanda dos Santos de ROSO, Adriane; LARA, Michele Pivetta de. Op. Cit, p. 1287)

25
sociocultural”59. Ou seja, trata-se de fenômeno tridimensional que congrega três importantes
variáveis: a substância, a relação colocada entre o sujeito e a substância consumida e o
contexto social em que esta relação se apresenta.
Em sentido semelhante, Marcelo Sodelli, ao analisar o uso de drogas sob a
perspectiva da Fenomenologia Existencial, ensina que

Explicar a experiência do Homem com as drogas por meio das reações


neuroquímicas que ocorrem no cérebro é assumir o ser humano como um ente sem
mundo, como se ele fosse um ente natural amputado da sua abertura ontológica
fundamental. O encontro do Homem com as drogas nunca se dá de modo neutro,
fora de um horizonte de mundo, a margem do sentido de uma época60

Assim, a pura responsabilização pessoal das mulheres unicamente em razão das


propriedades específicas das substâncias consumidas, descolada da história de vida e
singularidades daquelas e do contexto em que se encontram, acaba por isentar a participação
de toda a sociedade e do Estado pela situação vivenciada (via de regra, situação de
vulnerabilidade, discriminação e marginalização). Não por outro motivo que o contexto de
pobreza material em que estas mulheres estão inseridas, aliás, muitas vezes é traduzido pelo
mainstream também como pobreza moral, funcional e subjetiva61.
Por outro lado, importante enfatizar que não existe um único padrão de uso de
drogas – que deve ser necessariamente combatido como recorrentemente afirmado pelas
diversas instâncias de controle influenciadas pela política proibicionista – mas diversos:
experimental, ocasional, habitual ou mesmo problemático.
Em outras palavras, ao contrário do que afirmam as correntes proibicionistas no
sentido da existência de uma única forma de uso de drogas, problemática e patologizada,
fatalmente desencadeadora da dependência química, existe, na realidade fenomenológica, um
universo de possibilidades de o sujeito de se relacionar com as drogas, sem que, com isso,
haja inevitáveis prejuízos irreparáveis a sua vida.

59
OLIEVENSTEIN, Claude apud KARAM, Maria Lucia. Legalização das Drogas. São Paulo: Estúdio
Editores.com, 2015, p. 20
60
SODELLI, Marcelo. Uso de Drogas e Prevenção: da desconstrução da postura proibicionista às ações
redutoras de vulnerabilidade, 2ª ed, Rio de Janeiro: Via Verita, 2016, p. 71
61
TIBURI, Marcia; DIAS, Andréa Costa. Sociedade fissurada: para pensar as drogas e a banalidade do
vício. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013

26
Portanto, a depender da relação mantida entre o sujeito e a substância consumida, e,
portanto, dos diversos padrões e modos de uso, poderão derivar diferentes consequências
para sua vida. Dizemos, nesse sentido, que apenas o uso problemático ou nocivo de drogas,
assim compreendido aquele que passa a afetar negativamente os diferentes aspectos da vida
do sujeito (vida familiar, vida profissional, lazer) é que merece uma maior atenção pelos
profissionais da saúde, sem prejuízo de intervenções de outras naturezas, a depender das
singularidades do caso concreto.
Especificamente em relação às mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas,
Mathias Glens sustenta que

o abuso de drogas, assim como os problemas mentais do pai ou da mãe (...) não
podem ser considerados motivos de abrigamento por si só. É preciso perceber se
essas condições estão colocando a criança ou o adolescente em risco ou não, o que
nem sempre é fácil de se fazer. Apesar da maioria dessas situações se constituírem
em violações contra a criança ou adolescente, esses são momentos nos quais não
se pode simplesmente ter por base as estatísticas, pois é possível que um usuário
de drogas ou alguém com problemas mentais seja extremamente carinhoso e
atencioso com seus filhos, cuidando deles da melhor maneira que consegue. Nesse
caso, é preciso que essa pessoa seja ajudada a cuidar de seus filhos e não separada
deles.62

Note-se, por fim, que a grande maioria dos padrões e modos de relacionamento do
sujeito com as substâncias psicoativas que consome não geram interferência em outros
aspectos de sua vida, de modo que, nada obstante o uso de drogas, o sujeito pode conquistar
sucesso profissional, pode possuir outras formas de lazer, pode possuir vínculos familiares
fortalecidos e, para efeitos deste estudo, pode exercer satisfatoriamente a parentalidade, com
o incremento progressivo de sua capacidade protetiva.

CONCLUSÃO

A presente pesquisa procurou compreender o modo como Poder Judiciário e,


mais especificamente, os/as Desembargadores/as da Câmara Especial do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo enxergam o exercício da maternagem por mulheres usuárias de

62
GLENS, Mathias. Órfãos de pais vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil.
Dissertação apresentada à Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo para a obtenção do Título de
Mestre. São Paulo: 2010.

27
substâncias psicoativas e, em especial, quais os argumentos utilizados para fundamentar a
manutenção de decretos de destituição do poder familiar em razão do consumo dessas
substâncias ilícitas por essas mulheres.
Verificou-se, a partir das decisões analisadas, a compreensão generalizada de que
o uso de drogas ilícitas pelos pais (seja qual for o padrão de uso, seja qual for a droga
consumida) é invariavelmente prejudicial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes e,
portanto, o pai ou a mãe que insiste nessa prática incorre, inevitavelmente, no
descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, a ensejar o decreto de destituição.
Tal arquitetura discursiva é organizada por afirmativas categóricas e
supostamente autoevidentes, como se os argumentos fossem válidos em si mesmos, ainda
que desprovidos de base científica. Em nenhuma das decisões verificou-se qualquer
problematização teórica ou mesmo empírica em relação aos efetivos comprometimentos do
uso de substâncias ao exercício da maternagem.
Diz-se, portanto, que a mulher que faz uso de drogas é incapaz de assumir
responsabilidade por seus próprios atos e, assim, jamais poderia ser uma boa-mãe, inclusive
por ter colocado a saúde do feto em risco em razão de seus espúrios e nefastos hábitos. Essas
mulheres são colocadas em um lugar de “descontrole total de seu corpo, tanto por
engravidarem, quando por não conseguirem deixar o crack durante a gestação”63 e, desse
modo, podem ser culpadas pelos problemas sociais vivenciados, isentando o Estado de seu
papel primário de garantir de condições mínimas para uma vida digna.
A análise dos julgados, portanto, acaba por sugerir que muito mais importante do
que se aferir o vínculo afetivo existente ou as condições psicossociais para o efetivo exercício
do cuidado é a adequação moral da conduta das pessoas aos padrões e papeis sociais
construídos historicamente e impostos indiscriminadamente à totalidade das mulheres; um
verdadeiro exercício do biopoder, pois.
O Poder Judiciário, ao que parece, insiste em permanecer completamente alheio
aos estudos que, a cada dia, acumulam novas evidências sobre a capacidade e aptidão para o
cuidado, inclusive por mulheres em situação de marginalização social. Ao invés de se buscar
compreender as circunstâncias de vida dessas mulheres e a potencialidade que possuem para,

63
MACEDO, Fernanda dos Santos de; ROSO, Adriane; LARA, Michele Pivetta de. Op. Cit, p. 1293

28
a partir da maternagem e com o apoio da rede de proteção, aprimorar suas habilidades de
cuidado, opta-se pela via reducionista, discriminatória e violadora de direitos do estigma.
Portanto, para que se inicie o processo de desconstrução e deslegitimação do
estigma da mulher usuária ou da mulher adicta, incapaz de cuidar dos próprios filhos, faz-se
necessário, inicialmente, provocar tanto no Poder Judiciário quanto no âmbito mais amplo
do Sistema de Garantia de Direitos a desconstrução o próprio ideal de feminilidade inscrito
em nossa sociedade, que determina posições, deveres e traços identificatórios.
Para tanto, devemos assumir que os significantes ‘homem’, ‘mulher’ e ‘sujeito’
são construções datadas, contingentes; portanto, mutantes. É preciso que se saiba que não
estamos lidando com conceitos transcendentais. Nas palavras de Maria Rita Kehl, “não existe
A mulher, universal transcendente ao conjunto de todas as mulheres, mas diversas mulheres,
imersas, cada uma, em sua singularidade e próprio processo de subjetivação”64.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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mar/2016, p. 15-24
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BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público, Relatório da Infância e Juventude –
Resolução nº 71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e
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BRASIL. Ministério da Saúde; Ministério do Desenvolvimento Social. Nota Técnica
Conjunta nº 01/16. Diretrizes e fluxograma para a atenção integral à saúde das mulheres
e das adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos
recém-nascidos, 2016
BRASIL, Presidência da República. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção e Defesa

64
KEHL, Maria Rita. Op Cit, p. 96.

29
do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília:
2006
CAMARGO, Paola de Oliveira. A visão da mulher usuária de cocaína/cracks obre a
experiência da maternidade: vivência entre mãe e filho. Dissertação (Mestrado) –
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CRUZ, Elisa Costa. Guarda Parental: releitura a partir do cuidado. Rio de Janeiro: Ed.
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