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Luiz de França COSTA LIMA Filho (São Luís do Maranhão, 1937) é professor da

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduado em direito pela


Universidade Federal de Pernambuco, estudou posteriormente em Madri, no Instituto de
Cultura Hispânica, período em que também cursou disciplinas na Faculdade de Letras
da Universidade de Madri. De volta ao Brasil, foi admitido como professor de literatura
brasileira na Universidade Federal de Pernambuco, mas logo seria aposentado
compulsoriamente, em 1964, por determinação do governo militar de então.
Transferindo-se para o Rio de Janeiro, passou a exercer o magistério na Pontifícia
Universidade Católica, e conclui seus estudos acadêmicos formais na Universidade de
São Paulo, com a obtenção do grau de doutor em teoria da literatura e literatura
comparada. Reintegrado ao serviço público com a anistia, reassumiu seu cargo de
professor na Universidade Federal Fluminense, e posteriormente foi professor na
Universidade de Minnesota e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Do seu
labor teórico destacam-se o empenho na definição disciplinar da teoria da literatura,
bem como o redimensionamento da noção de mímesis e a proposição do conceito de
controle do imaginário.

QUEM TEM MEDO DE TEORIA?⃰


(1975)

Quando uma comunidade não tem a prática da discussão, o uso da linguagem


crítica sempre lhe parece ameaçador. Sendo, ademais, o discurso teórico produto do
desdobramento da reflexão crítica, é natural que, dentro daquela comunidade, o seu
praticante encontre, dentro de si mesmo e a seu redor, dificuldades maiores de
realização. Dificuldades internas maiores, pois, não sendo, em tal caso, a atividade
teórica uma prática usual, o seu agente se perguntará com mais frequência qual a sua
função, a quem poderá interessar, com quem poderá discuti-la, como saberá se está
aumentando a inteligência de seu objeto ou apenas o tornando “ilustrativo” de hipóteses
que sobrevoam o texto. Dificuldades externas, quanto a seu produto, pois seus pares
tenderão e encará-lo como alguém que joga areia em olhos até então descansados.

⃰⃰
LIMA, Luiz Costa. Quem tem medo de teoria? In: ______. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura
e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p. 193-198.

Texto originalmente publicado na Revista de Cultura Vozes (n. 9, nov. de 1975) e, em versão reduzida, no
jornal Opinião (21 de nov. de 1975).
Se aplicamos esta reflexão ao caso brasileiro, será óbvio que o teórico aqui
encontre a dupla dificuldade aludida. Nosso sistema intelectual sempre foi algo
extremamente rarefeito. Como já demonstrou Antônio Cândido, o escritor só teve entre
nós sua posição social reconhecida com o romantismo através de sua participação em
campanhas cívicas, no papel de tribuno ou jornalista (“O Escritor e o público”, in: A
Literatura no Brasil, vol. I, t. I, organiz. de A. Coutinho, Rio 1955). E o próprio
Antônio Cândido indicara que o caráter de leitura leve e fluente, do qual não se afastara
sequer Machado, resultava da faixa estreita de leitores com que o escritor contava. Preso
ao jornal e à tribuna, o escritor se obrigava a compor para si um ideal de estilo
apropriado: fácil e ligeiro, ainda quando também grandiloquente e oratório. A ideia do
“escrever difícil” que se enraizou entre nós resultou da fixação da tradição retórica e
nada tem a ver com um pensamento que fosse difícil porque profundo. (Em caso de
dúvida, lembremo-nos de Euclides.1) Enquanto, por conseguinte, não se mudassem as
bases sociais que empurravam o escritor para o jornal e para a tribuna, não poderia ser
esperada uma mudança sistemática deste perfil. Dentro deste meio haveria de continuar
válida a observação feita há pouco mais de um século por Sousândrade: 2 “Nossos
literatos são Barões, Comendadores, Deputados e Diplomatas, quando não se tornam
escritores puramente políticos e sobre que política!” (“Artes e letras no Brasil”, in O
Novo Mundo, 23.9.1874). Seria ingênuo supor, se então encaramos o momento atual,
que a situação tenha drasticamente mudado. De um lado, é verdade que relativamente se
modificaram as bases econômicas sobre as quais o escritor pode se apoiar. O
aparecimento da universidade, a ampliação do mercado, as exigências da indústria
quebraram o vínculo forçoso do escritor com o jornal e a tribuna, ao mesmo tempo que
terão aumentado o nível de interesse e exigência dos leitores. Por outro lado, contudo, o
incremento recente da censura3 não terá ajudado o convívio da palavra com o
pensamento. De todo modo, a ampliação da base econômica e o advento de um público
diversificado permitiram, desde fins da década de 50, o surgimento de uma prosa e uma
poesia diversificadas, desde a vertente literariamente mais revolucionária (Guimarães
Rosa, a poesia concreta, a valorização crescente da poesia de Cabral) até a mais

1
Euclides da Cunha (1866-1909), naturalmente.
2
Joaquim de Sousa Andrade – ou Joaquim de Sousândrade (1833-1902) –, poeta romântico natural do
Maranhão, cuja obra, sui generis para os padrões de sua época e por muito tempo quase esquecida,
tornou-se objeto de revisão crítica nos anos 1960, por parte de poetas e estudiosos ligados ao movimento
da poesia concretista.
3
O texto foi publicado durante o regime militar (1964-1985), período assinalado por escalada da censura
– a livros, filmes, canções populares, filmes, jornais, etc. –, especialmente ativa na década de 1970.
epigônica e previsível (a continuação da prosa “realista”, o sentimentalismo sonetizado).
Na frente propriamente crítica, o salto talvez tenha sido menor, pois, embora as obras de
Afrânio Coutinho, Antônio Cândido e Haroldo de Campos – com todas as suas
diferenças internas e de qualidade – apresentem resultados e preocupações
metodológicas sem paralelo com a crítica que se desenvolvera de Sílvio Romero a
Álvaro Lins,4 sua novidade está na frente metodológica que abrem, e não na discussão
especificamente teórica. Para que se entenda o argumento necessitamos ter bem
presente que metodologia não se confunde com teoria. Não há por certo uma sem a
outra, mas podemos desenvolver um argumento metodológico ou deixando implícito
seu embasamento teórico – como é frequente em Cândido –, ou o explicitando por
repetições do já escrito – o caso em A. Coutinho –, ou ainda por desenvolvimentos
assistemáticos – a exemplo do que sucede em Haroldo de Campos. Não dizemos,
portanto, que o pensamento crítico permaneceu parado, mas sim que, numa escala de
ruptura, ele se manteve mais próximo da situação tradicional que o todo da criação
literária. (Daí que um Mário ensaísta fosse mais “aceitável” que o poeta do Carro da
Miséria5 ou o prosador macunaímico.) Este salto maior apenas hoje se prepara. Ele
depende de, já não se confundindo crítica com apreciação de uma ou outra obra,
mediante tal ou qual posição ou combinação metodológica, desenvolver o pensamento
crítico até a dimensão da teorização sobre a própria literatura, como um discurso entre
outros muitos. Entre nós, tal passagem, quando tentada, sempre revelou a marca da
dependência cultural. Daí que as teorias, desde Sílvio Romero, quando se mostravam,
transpareciam como glosas, resumos ou comentários, normalmente ortodoxos, de algo
já estabelecido internacionalmente. Daí o vício, que até hoje nos acompanha, de
apresentar fulano como o representante local de tal pensador ou corrente estrangeira.
Quando queríamos (ou queremos) romper com esta situação, propunha-se a criação de
uma teoria fundada nas “raízes locais”, auge do chauvinismo ingênuo. Nunca nos passa
pela cabeça que a teoria seja alguma coisa que continue a ser fecundado, muito menos,
algo que esteja sendo aqui fecundado. Em virtude das dificuldades atrás referidas, é
claro que esta fecundação ainda é muito deficiente. O que não se pode negar é que ela
existe (do contrário, não seriam tantos os incomodados). Se então compreendemos a
possibilidade de maior ruptura que se tenta, entenderemos a irritação que acompanha
frequentes artigos, comentários, entrevistas e poemas contra o que se chama a excessiva
4
Álvaro de Barros Lins (1912-1970), destacado representante da crítica literária dita jornalística.
5
“O carro da miséria”, conjunto de poemas escritos entre 1930 e 1943, destinado por Mário de Andrade
(1893-1945) a integrar o volume de suas Poesias completas, publicadas pela primeira vez em 1966.
teorização a que a literatura estaria sendo sujeita. Para responder a ela de maneira não
igualmente irritada, procuremos estabelecer o elenco das acusações que hoje se
levantam contra a teoria, para, em seguida, discuti-lo.
1. Apreciação crítica alguma, muito menos nenhuma teoria, jamais substituirá o
prazer da própria leitura, o prazer estético.
2. A teoria põe em circulação uma linguagem cifrada, compreensível apenas
pelos iniciados. Ela é pois uma atividade esotérica que separa o leitor da literatura.
3. A teoria, como hoje concebida pelos “vanguardeiros” e “estruturalistas”, é
uma concessão ao cientificismo, que esquece, como Eliot dizia, nunca a ciência poder
dar conta da poesia.
4. A teoria incrementa o formalismo, a mera lógica, o método de espremer
limões, que mata o jogo livre da intuição, a emoção desinteressada, a leitura como uma
“aventura da personalidade”.
5. Toda interpretação é um ato de violência, quando nada porque o poema não
foi feito para ser estudado. A teoria consagra a violência contra o que há de mais
estranhamente humano, a arte, a poesia.
6. A teoria fragmenta a obra, leva à perda da organicidade do poema, a qual
substitui por um mundo caótico de peças, cada qual com um nome mais complicado.
7. A teoria é produto de incapazes e não humildes. Escritores frustrados, os
críticos hoje radicalizam sua impotência: já não se querem comentadores das obras, mas
se colocam no lugar delas.
Em suma, a teoria (caberia deixar um espaço vago para o adjetivo competente,
“vanguardeira” e/ou “estruturalista”) instaura o tecnocratismo nas letras, substituindo a
emoção criadora por equações abstrusas e vazias; mata o prazer do texto em nome de
monemas e arquissemas;6 introduz a ditadura do sentido sobre a pluralidade
significativa. Incapaz de construir, o teórico atualiza o que o crítico já trazia em
potência: a raiva demolidora do texto alheio. Descendente dos “chato boys” de que
Oswald falava,7 o teórico é o que escreve sobre o que não sabe fazer. Gritemos pois um
basta, antes que seja tarde! Como este libelo ainda não foi sistematizado, é provável que

6
Terminologia técnica da linguística estrutural – respectivamente, “unidade mínima de primeira
articulação” e “forma resultante da neutralização da oposição entre semas (isto é, traço semântico
mínimo)”. No texto, exemplos de nomenclatura tida por rebarbativa e pedante, constituída por vocábulos
cunhados por analogia ao termo tradicional fonema.
7
Segundo tradições orais dos círculos ligados ao modernismo paulista, termo irônico e depreciativo usado
por Oswald de Andrade em relação aos colaboradores da revista Clima (1941-1944) e aos jovens
intelectuais vinculados à USP.
sua síntese esteja incompleta. Fica a sugestão de que seja ampliada. Enquanto isso,
vejamos como responder aos argumentos há pouco formulados.
1. Quem presume que o conceito de fruta cítrica abole o sabor do limão? E o
conhecimento da astronomia substitui o prazer de uma noite estrelada? Daí deveremos
por acaso concluir que a química e a astronomia são inutilidades? “Se minha matéria
não é apreciada por todos é porque sua utilidade não salta à vista do atordoado” (Kepler,
Mysterium cosmographicum8). Mas qual era para Kepler a utilidade da astronomia
senão a de expandir o conhecimento e relativamente responder à sua necessidade? A
ciência, a reflexão teórica não substituem coisas e objetos, mas lhes acrescentam outras
dimensões. Ninguém está obrigado a interessar-se por elas. Mas por que tencionam
ridicularizá-las, se não mesmo sufocá-las? O processo contra Galileu poderá oferecer
um início de resposta.
2. A linguagem cotidiana nos faz esquecer que toda linguagem é cifrada.
Aparentemente, a comunicação indica que os parceiros se entendem. Se, entretanto, não
se limitarem à troca de cumprimentos banais, cedo perceberão que a informação mais
simples está cercada de equívocos. Não é a teoria que cria uma linguagem cifrada. Ela
assume sim o ciframento da linguagem, com o propósito de produzir informações
menos incertas. Isso não impedirá que muitos de nós se aproveitem da teoria como
maneira de esnobação. Mas isso não é privilégio da teoria; não tem a ver com ela, mas
com certo tipo de usuário seu. A procura de rigor na linguagem não é sinônimo de
elitismo, pois não há elite se não existir uma massa que a siga.
3. Devemos sim desconfiar da não cientificidade de nossos métodos. Afirmar,
contudo, que nunca o possam ser é no mínimo um ato de presunção ou, o que é mais
provável, uma prova de resistência à ciência, que precisaria ser pesquisada. Esta
resistência seria compreensível se desenvolvida no sentido de mostrar que a ciência,
como ainda hoje constituída, não permite a incorporação do desejo, ao contrário do que
sucede com o discurso poético. Tentar assim uma ciência pelo menos desejosa de
conhecer o desejo, a exemplo do que Freud tentou, é uma subversão do conceito
tradicional da ciência. O que teremos tão fortemente contra isso a ponto de negarmos a
priori a possibilidade de conhecimento científico da poesia? Outra vez nos lembramos
de Galileu.9
8
Obra de 1596, do matemático e astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630).
9
A continuação da reflexão sobre as relações entre análise da literatura e ciência, tal como o mostram os
artigos seguintes, levou-nos a negar a necessidade deste enlace com a ciência. A análise do discurso
literário afasta-se da atividade científica porque não lhe é possível fazer previsões sobre o comportamento
do objeto e verificá-las. (Nota do autor.)
4. Sem dúvida, a teoria da literatura, em seu ramo mais consequente, estimula e
exige a formalização – não a confundamos com formalismo ou mera descrição “neutra”
–, como toda e qualquer outra forma de conhecimento não impressionista. Se a
aprendizagem formalizante matasse necessariamente a emoção e a capacidade intuitiva,
seria o ouvinte de música e nunca o seu executante aquele que de fato a sentiria. A
formalização é um meio de que lançamos mão para conhecer realidades doutro modo
não captáveis. Por outro lado, se ela fosse contra a intuição, nunca teria sequer se
iniciado. Ou pensaremos que não existe criação em ciência? Ou que a criação científica
não tem nada a ver com a intuição? A formalização não é contra a intuição, mas sim um
meio de testá-la ou mesmo alimentá-la. É correto, entretanto, que a formalização se
opõe à aventura das personalidades. Ela exige a aventura porque supõe um risco, exige
uma personalidade que seja seu agente; ao mesmo tempo, porém, esquece o risco que
envolveu a pessoa que a realizou. Formalizamos para conhecer, e não para ficarmos
conhecidos.
5. A virgindade deixou de ser praticada para ser agora teoricamente valorizada.
Afinal, que propriedade estaríamos procurando defender quando acusamos a teorização
em literatura de violentadora dos textos? O argumento nos é conhecido doutra área.
(Quando não recorre às armas, a propriedade se defende com metáforas).
6. À primeira vista, o combate à teoria se faz a partir de uma não-teoria. Na
verdade, o é por outra teoria, que se escamoteia, que não se formula, que faz o elogio da
imprecisão para esconder melhor sua própria insuficiência. Ou será que a ideia de
unicidade ou organicidade do poema não faz parte de uma (não explicitada) teoria do
poema?
7. Talvez sejamos incapazes não porque teóricos, mas sim porque escritores, em
uma sociedade que de nós prescinde. Talvez sejamos não humildes não porque
esquecidos de nossa impotência, mas porque, bem ou mal, enfrentamos a decisão de
mostrar que a linguagem não é propriedade de ninguém, nem do autor do poema, nem
do leitor que o curtiu, nem muito menos do intérprete “não-teórico” que nos antecedeu.
Em suma, quem tanto acusa a teoria? Se queremos combater o bom combate – o
do estímulo ao conhecimento da literatura –, teremos de atacar a teorização presente
pelos defeitos que acusa: as ambiguidades que a perseguem, a falta de informação em
campos necessários, a dificuldade evidente em aprender a falar do texto e não sobre o

Explique-se: “artigos seguintes” do livro de 1981 em que figura o texto, inicialmente publicado em
novembro de 1975, na Revista Vozes e no jornal Opinião. (Nota do organizador.)
texto. Criticá-la ao fazê-la. Ou então demonstrar por que não mais fazê-la. Mas não é
bem isso o que atualmente temos visto. Ataca-se a teoria – ou o estruturalismo, ou a
vanguarda, termos curiosamente tomados como sinônimos – por teoria. Procura-se
exorcizá-la arrolando-se nomes complicados que lembram aos leitores a dificuldade de
sua leitura.10 O que estaremos assim na verdade defendendo: a propriedade da poesia
para o homem ou a poesia como propriedade de certos homens?

QUESTIONAMENTO DA CRÍTICA LITERÁRIA⃰


(1980)

Em um século da crítica, como o nosso já foi chamado, muito já se escreveu


sobre a função que a crítica deveria desempenhar. Confesso que esse tipo de leitura
nunca foi minha predileta, por me parecer que seu conteúdo ou é falso ou normativo ou
as duas coisas ao mesmo tempo. Falso porque, certo ou erradamente, sempre me
pareceu um modo particular de racionalização, destinado a prescrever ao leitor a
maneira como deveria interpretar as possíveis obras do crítico em questão. Normativo
porque dedicado a ensinar a outrem o caminho “correto” de abordagem do poético.
Ensaios de tal ordem serão úteis apenas como indicadores da concepção de poesia que
se faziam seus autores. Pois falar da função crítica é inevitavelmente falar do poético
que se privilegia e daquele que se desdenha. Talvez mesmo esta seja uma das razões
principais deste tipo de reflexão: sendo extremamente difícil dizer o que se entende por
poesia e, ao mesmo tempo, extremamente necessário fazê-lo por quem se julga crítico,
ensaísta ou escritor, a curva de menor resistência seria falar da poesia a pretexto de
justificar a função da crítica. Parto pois do princípio de que o que se declara sob o tema
“função da crítica” há de ser entendido de forma oblíqua: se o autor que escreve nos
parece de importância, Eliot por exemplo, para que melhor percebamos sua visão do
poético e de suas relações com o mundo; se o autor não merece nosso especial apreço,
como sintoma da maneira como em certa época se concebia a arte verbal e o modo de
10
Alusão ao poema “Exorcismo”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), sátira ao estruturalismo
e sua linguagem ultraespecializada e sibilina. Publicado inicialmente na sua coluna de crônica do Jornal
do Brasil, na edição de 12 de abril de 1974, o poema foi depois incluído no livro Discurso da primavera
e algumas sombras (1977).

⃰⃰
LIMA, Luiz Costa. Questionamento da crítica literária. In: ______. Dispersa demanda: ensaios sobre
literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p. 199-207.

Texto originalmente publicado na revista Tempo Brasileiro (n. 60, jan.-mar. de 1980).
apreciá-la. Mas para a aludida suspeita ante o tema outra razão ainda ocorre: ser crítico
da literatura supõe estar investido – por quem? – do papel de juiz da produção alheia.
Ora, se não duvidamos que não há sociedade sem leis, por outro lado com repugnância
sabemos os jogos de interesse, as manipulações e arbitrariedades que se aglutinam
àquela necessidade social. Já não nos basta sofrer os juízes aplicadores da prepotência,
para que ainda nos incorporemos às sua fileiras? Não se pense que essa sensação de
desconforto seja apenas contemporânea. Ainda no século XVIII, Fielding escrevia
irado: “Muitos destes cavalheiros, de desespero, talvez, por nunca chegarem à bancada
de Westminsterhall,11 puseram-se nos bancos dos teatros, onde exerceram sua
capacidade judicial, e proferiram julgamentos, i.e. condenaram sem misericórdia”
(Fielding, Henry: 1749, livro XI, cap. I, 53).
Nossa reserva ante a atividade do crítico não resulta do querer manter as mãos
limpas, mas da convicção de que a literatura exige menos o julgamento de suas obras ou
de seu próprio discurso do que a fundamentação do juízo que delas se faça. A política
das mãos limpas, o receio de se comprometer e/ou uma concepção mecanicamente
cientificista da atividade analítica leva o seu praticante a conceber sua tarefa como
meramente taxinômica ou descritiva. Ao nos desidentificarmos com essa postura,
passamos a saber que o caminho demonstrativo a privilegiar sempre termina em um
juízo de valor. Este é um caminho crítico, mas não o caminho do crítico. Aquele en-
caminha um juízo, este determina um julgamento. O juízo é o termo de chegada de uma
cadeia demonstrativa; o julgamento, a decisão tomada a partir de certa norma. Por certo
as cadeias demonstrativas não anulam por si a incidência de normas, tanto mais
poderosas quanto menos conscientes. Mas a prática da demonstração facilita que outro
olhar, seja o do leitor, seja o do próprio analista, beneficiado com a passagem do tempo,
descubra a norma que moveu sua demonstração e assim facilita sua tematização
explícita, sua recusa ou aceitação. Se, ao contrário, a prática privilegiada favorece o
ocultamento da norma que a rege, atua em favor de seu império enquanto fantasma. Sua
perduração se prolonga mesmo porque não se sabe onde ela se encontra, como ela se
formula. Dentro deste estado de coisas, cabe perguntar: que normas são estas? Se elas
não se demonstram – e quais os críticos que costumam ou costumaram demonstrar a
razão das normas aplicadas? –, é porque pertenceriam ao consenso de uma cultura, de
uma classe ou de um grupo social, ou porque se proferem como se fizessem parte da

11
Edifício que abrigava diversos órgãos do estado britânico: parlamento, cortes de justiça, escritórios do
governo.
natureza do que deve ser. Em qualquer dos casos, sua legitimidade é, quando nada,
questionável. Mas, pelo menos no primeiro caso, pode haver, por parte de quem
examina tal crítica, a presunção de que se fundava em alguma forma de consenso,
mesmo que restrita a um grupo ou classe. Noutras palavras, a crítica não precisaria de
maiores cadeias demonstrativas, já que ela estava “naturalmente” apoiada em normas
internalizadas pelo receptor. Ora, haveria em nossa contemporaneidade condições para
se legitimar o exercício da crítica sobre este modo de apoio? Para que a resposta não
seja puramente ética, precisamos recorrer a um retrospecto histórico, revendo a prática
da crítica desde o século XVIII.
Esquematicamente, podemos distinguir entre a situação que cobre aquele século
e se estende pela primeira metade do século XIX e a que se desenrola desde a sua
segunda metade até nossos dias. A primeira não é compreensível sem se considerar a
posição da burguesia. Ela era uma classe em ascensão e que, como dizia Habermas, não
pretendia participar do poder estabelecido, mas subverter as suas bases (Habermas,
Jürgen: 1962, 43). Ao passo que o poder da aristocracia se fundava no princípio da
hereditariedade, das virtudes superiores e em se tomar, a partir do ápice da hierarquia, o
rei, como ungida pela divindade para o comando da nação, a burguesia justificava sua
aspiração ao poder como porta-voz da vontade nacional, expressa através das
manifestações da opinião pública. O crítico das artes e da literatura participava deste
projeto de classe. A princípio, não passava de um “amador esclarecido” (Habermas),
que saía dos clubes paritários, os cafés, os salons,12 as Tischgesellschaften.13 Seu destino
eram os jornais, onde as colunas que assinavam tanto representavam as opiniões de seus
parceiros quanto formulavam as normas de gosto a serem seguidas pela opinião pública.
Nesta época, o julgamento do crítico aponta para um consenso de classe
progressivamente constituído. Sua tarefa é ademais facilitada pela relativa
homogeneidade dos produtores e de seus prováveis receptores. A crítica é uma
verdadeira correia de transmissão que mediatiza dois polos e põe em movimento o
sistema literário. A esta época não seria pois forçado chamar de período áureo da crítica
burguesa. Áureo não do ponto de vista da excelência de sua produção, mas de sua
funcionalidade social. Agente da classe a que pertence e a que serve, tal crítico é
fundamentalmente um ser pragmático. Isto é, malgrado desponte alguém do porte
teórico de um Coleridge, o papel do crítico basicamente consiste em valorar as obras a

12
Salões; nome por que se designavam na França dos séculos XVIII e XIX as exposições de pintura.
13
Sociedades de jantar.
seu alcance. Não há uma questão da literatura: o crítico já parte do pressuposto que o
poético é algo conhecido e que deve existir. Afirmado este direito, a questão é de sua
serventia e da serventia do crítico. Como, do ponto de vista deste, se trata de contribuir
para a formação da opinião pública, de homogeneizar os critérios de gosto do cidadão,
em contraste com os padrões preciosos da aristocracia, o crítico se justifica à medida
que bem desempenha este papel. Para tal justificativa, é preciso que tenha acesso aos
jornais nascentes e às revistas, e que empregue uma linguagem comum, passível de ser
compreendida pelo cidadão mediano, por sua vez habitado por valores homólogos aos
dos autores elogiados. (Assim não estranha que ao racionalismo burguês de Voltaire
Shakespeare fosse criticável por seu alegado barbarismo). Em suma, o caráter
pragmático e pouco especulativo desta crítica se fundava em os parceiros em pauta – o
escritor, o crítico e o leitor visado – serem homogeneizados pelos valores burgueses: o
culto do indivíduo, de sua razão e de sua privacidade.
Esta situação se modifica por completo quando a burguesia, recém-instalada no
poder, é obrigada, ao longo da primeira metade do século XIX, a reconhecer que seus
interesses são interesses de classe, isto é, quando a práxis desmente sua pretensão de
detentora dos interesses da humanidade. A esta reversão do pensamento burguês à
particularidade corresponde o aparecimento de uma produção poética que ora se
distancia da defesa dos valores vigentes e cria até um estilo da impessoalidade
impassível (Flaubert), ora agride aqueles valores pelo realce do que Benjamin viria a
chamar a “vivência de choque”.
Quebrada a harmonia de valores, como a crítica se comporta? Respaldada pelos
rodapés dos jornais, pelas contribuições nas revistas de prestígio, quando não pelas
cátedras universitárias, ela ou se recusa a defender os poetas “provocadores” (atitude de
Sainte-Beuve ante o amigo Baudelaire), ou os acusa de loucos, de desequilibrados que
destroem as tradições da língua e da poesia (atitude de Brunetière 14 face ao mesmo
Baudelaire). Cria-se um hiato entre a produção que mais tarde seria reconhecida como
de respeito e a prática do crítico, que permanece em sua rotina pragmática ante o que
não mais entende. O hiato não diminui, apenas é melhor camuflado, pela adoção dos
métodos da historiografia positivista. O ideal do crítico é tornar-se historiador, dentro da
concepção de história peculiar à segunda metade do século: acumular dados, reconstituir
biografias, mostrar a sucessão das escolas. O crítico camufla sua função judicativa na de
professor, juiz cujas sentenças serão menos amplamente divulgadas, mas nem por isso
14
Ferdinand Brunetière (1849-1906), crítico literário francês.
menos severas. Esta segunda etapa se modifica relativamente com a geração dos então
jovens no início deste século.15 Quer na Itália com Croce, quer na Alemanha com
Vossler,16 quer na União Soviética e a seguir na Europa Central com os hoje conhecidos
formalistas eslavos, reage-se contra o distanciamento entre produção poética e
julgamento acadêmico-jornalístico pela recusa comum dos métodos positivistas e o
desenvolvimento dos métodos de análise dos textos poéticos. Embora este
desenvolvimento seja desigual e nenhum legado daqueles anos tenha a importância dos
formalistas (com destaque especial para Tynianov e Mukarovsky), o fato é que todos
eles ressaltarem em comum a função estética do poético. A poesia não é mais vista
como um reconhecimento, mas como um ver novo, uma exigida demora. Na falta da
homogeneidade de valores, que marcara a conduta da crítica precedente, a nova geração
será formada menos por críticos que por analistas, isto é, menos interessada em julgar os
produtos poéticos que em fundamentar o significado poético. O poeta da modernidade
sai do gueto e é valorizado como um tipo de herói: o herói da linguagem, que, na
procura de purificá-la, chega até a conceber uma não falada (o transracionalismo de
Khlebnikov17). A danação do poeta passa a ser positivamente interpretada. Realiza-se,
de certa forma, uma conciliação com o leitor. Não com a sociedade, é claro, mas com a
parcela dos que seriam capazes de se “desautomatizar”, a ponto de captar o alcance das
vozes novas. Neste esforço de recuperar o poeta da modernidade – não por sua
normalização, mas pelo realce de sua ruptura da normalidade –, o analista das três
primeiras décadas do século XX antecipa a observação sociológica de um Erving
Goffman;18 o frame breaking,19 a quebra das expectativas do receptor, torna-se hoje em
dia um verdadeiro cânone do comportamento, que deixa de marcar a obra de vanguarda
de um Samuel Beckett, de um John Cage 20 ou de um Marcel Duchamp21 para se
apresentar mesmo nas estórias em quadrinho ou no comportamento dos presidentes:
“Por mais venerável que seja a tradição de explorar a quebra de molduras com fins de
divertimento ou de instrução, parece que hoje experimentamos uma tendência especial
neste sentido, a qual se reflete em toda uma série de práticas” (Goffman, Erving: 1974,
420). O desvio se institucionaliza. Ora, quando a subversão se canoniza é porque não é

15
Isto é, naturalmente, o século XX.
16
Karl Vossler (1872-1949), romanista alemão.
17
Velimir Khlebnikov (1885-1922), poeta russo.
18
Sociólogo norte-americano de origem canadense (1922-1982).
19
Quebra do quadro, ruptura do padrão.
20
Compositor e teorizador de música norte-americano (1912-1992).
21
Artista plástico francês (1887-1968).
mais subversiva. No caso específico da poesia, isso significa dizer que, embora a prática
dos analistas referidos permaneça de conhecimento imprescindível, ela mostra uma
falha que nos obriga a refazer seu caminho. Melhor dito, a repensar seu ponto de
partida. Acentuamos alguns dos aspectos de reflexão necessária: concentrando-se no
exame da produção poética, na desautomatização da linguagem aí visada, o analista,
descendente da reflexão seja dos formalistas eslavos, seja do new criticism, tende a
absolutizar o espaço do poético, a justificar sua experiência negativa – isto é, negadora
dos frames habituais – como a condição para escapar-se do que outros já fizeram e do
enfeitiçamento da sociedade de consumo (Adorno). Não vamos daí dizer, a exemplo de
algum candidato a líder populista, que assim o analista se torna porta-voz da arte de
elite, pois elite não se confunde com ter acesso a uma linguagem difícil. (Na verdade, no
mundo capitalista atual as elites nada têm com a arte, a não ser como compradora de
seus produtos.) Nossa crítica, portanto, tem outro alvo: prendendo-se ao elogio do
desvio, da obra que rompe com as normas, o analista ajuda uma forma de
institucionalização da arte e da poesia, ajuda assim a academizá-la e, deste modo, a
impedir a reflexão continuada sobre o que seja próprio ao discurso do poético. Isto é,
tanto sobre o que constitui o objeto poético quanto sobre a estranha necessidade que
impõe a presença deste objeto, quando nada de útil parece justificá-lo. Noutras palavras:
se é historicamente explicável o destaque de uma poética transgressora dos critérios
sociais de representação, insistir hoje em dia neste aspecto passa a ter a função de
preservar o poético como uma espécie de zoo ou de horto florestal, onde as pessoas
poderiam passear e se reencontrar consigo mesmas, apesar dos megatérios de cimento.
Preservá-lo e não se indagar por que afinal de contas tal tipo de produto existe nas
civilizações, como pôde perdurar quando, já na abertura da civilização ocidental, um
pensador do peso de Platão tão fortemente a condenava. Perguntar-se por sua
necessidade é perguntar-se, mais do que por sua construção, como se dá sua relação
com o leitor, ou seja, seu mergulho na historicidade. Mas esta recuperação do leitor e da
história, hoje realizada pelas estéticas do efeito (Wolfgang Iser) e da recepção (Hans
Robert Jauss), ainda não parece bastante para o ultrapasse da insuficiência teórica atrás
notada. Creio que para o possível entendimento mais agudo do poético é preciso, além
de romper-se com a hipertrofia da indagação da textualidade e do culto da violação da
norma, colocar-se em primeiro plano o estudo do relacionamento entre experiência
estética e juízo estético. Esse destaque não poderia se dar no que chamamos a primeira
etapa da crítica burguesa, pelo caráter pragmático que ela possuía. Não se deu com as
poéticas da ruptura, porque seu destaque da maquinação poética mantinha intacta a ideia
do relacionamento entre juízo e experiência da arte, no máximo desenvolvendo a
explicação kantiana sobre esta última. A entrada atual do leitor, a tentativa de desdobrá-
la em termos de definição das obras literárias como modalidades de jogo que
ultrapassam a própria experiência do jogo (Bruss, Elizabeth W.: 1977, 153-172), são
por certo extremamente férteis, mas talvez não deem o rendimento desejável se
continuarem bloqueando a indagação do relacionamento aludido. Argumentando de
forma provisória e esquemática: se o próprio da experiência estética é, como se sabe
desde Kant, operar sem conceitos diretores, este seu deficit, como diz Jauss, é por outro
lado sua qualidade, pois uma obra assim experimentada só será aceita mediante o
acordo de seu receptor (Jauss, H. R.: 1977, 60). Este acordo, concordamos, não se
realiza porque o receptor encontra seus valores na obra e os reconhece. Ao contrário, a
obra, principalmente a da modernidade, só pode ser acolhida se o leitor acatar a
“agressão” que dela recebe. A experiência estética não é reconhecedora, reafirmadora,
mas questionamento do antes aceito. Sem dúvida, esta visão mais rica da experiência
estética é possível ser hoje mais claramente formulada pela incorporação da tradição da
negatividade, aberta desde Baudelaire. Mas, de qualquer maneira, não sendo esta
experiência guiada por conceitos, é guiada por um estoque prévio de saber trazido pelo
receptor. Duas reações podem então suceder: a) O receptor se identifica com a obra.
Neste caso, seu pré-saber não é questionado, mas fruído; b) O receptor sente-se
agredido pela obra, mas, talvez já em uma segunda leitura, encontra o modo de absorver
a agressão e de usufruir esteticamente seu “contestador”. Neste caso, ele é obrigado a
repensar seu pré-saber e a modificá-lo. Ou seja, é obrigado a tomar consciência de uma
parcela dele. Em consequência, esta parcela perde o estatuto passivo de um pré-saber
constituído, de algo que o orienta sem que ele saiba por quê. Para este receptor, a
experiência estética se torna pois uma forma de abertura para o conhecimento. Ela não
provoca emoções esperadas ou confirma noções prévias, mas, ao contrário, permite ao
receptor entender por que algo antes não lhe agradava, e a converter em prazer estético
o que antes hostilizaria. Identifiquemos, mesmo que isso seja por otimismo arbitrário,
esse leitor excepcional com o analista. Que objeção haveria a fazer quanto a seu trânsito
da experiência estética para o juízo então também estético? Em primeiro lugar, assim
validaríamos apenas uma parcela dos juízos: aquela que se originou de uma resistência
anterior do objeto à apreciação. O que vale dizer, validaríamos apenas os juízos
derivados de uma experiência estética semelhante à experiência da negatividade das
obras modernas. Isto é, deixar-se-iam em suspeita as teorizações passadas e
privilegiaríamos a nossa. E assim repetiríamos o que em geral tem sido feito desde o
romantismo. Mas, mesmo que esta objeção não seja tomada por fundamental, a
aceitação do juízo estético por conta do desentendimento das pré-noções do receptor
com a obra em pauta e de seu posterior reajuste parte do suposto que aquele
desentendimento e seu ajuste posterior tenham sido suficientes para o ultrapasse do
campo das pré-noções. Ora, o questionamento de uma pré-noção pode ainda levar ao
surgimento doutra – toma-se consciência da anterior, ela é retificada em favor doutra
atitude, que, ao ser incorporada, tende a se tornar outra vez não consciente. A pré-noção
constituída passa a dar lugar a uma constituinte. Em poucas palavras: entre a
experiência estética e o juízo que se venha a fazer sobre ela não deveria haver, como se
postula até hoje, um espaço transparente, pois esta transparência torna o juízo sucursal
de uma área estabelecida sem conceitos, a qual vem a ditar o comportamento do juízo,
sendo em última instância a fundadora do valor ou não valor declarado dos objetos. Em
vez desta transparência, o que se propõe é criar obstáculos à passagem da experiência
para o juízo, através da ênfase na cadeia demonstrativa com a qual se construa o
argumento crítico. Claro que esta por si só não resolve a dificuldade: uma demonstração
pode ser sofismática, torcer, consciente ou inconscientemente, sua direção. Ou seja, não
suponho que as análises se tornem mais corretas pelas obstaculização proposta. Se isso
não é esperável, o é pelo menos que o analista assim se obrigue a atingir o máximo de
sua capacidade argumentativa. Com o que a sua iluminação pode-se tornar não só mais
pregnante – que não é sinônimo de mais correta – quanto mudar radicalmente sua
relação com o leitor: o leitor não procurará o que o analista escreveu para saber o que
ele acha de certas obras, mas como fundamenta seu juízo. Desta maneira, desenvolve-se
a criticidade do leitor e, eventualmente, forjam-se condições para o ultrapasse ou a
contestação do juízo do analista. Assim ainda este se confessa leitor entre leitores, leitor
para leitores, e não juiz que inocula seus julgamentos. Não se trata pois de procurar
outro caminho que nos desse a leitura verdadeira das obras. Pois, ao menos no circuito
estético, não há verdades, essências da obra, a serem encontradas. O tempo histórico
reage sobre as obras, não apenas as envolve, e ou as faz perder seu interesse ou revela
outra razão para elas. E, como o analista não escapa deste mesmo lugar histórico, não
poderá tampouco pretender que enuncie verdades. Mas a ausência de verdades a
descobrir não se confunde com o relativismo do vale-tudo; com a aceitação dos
enunciados desde que persuasivos (“bem escritos”, “fluentes”, “empáticos” são alguns
dos nomes vulgarizados para os textos persuasivos). É mesmo porque aceitamos que
inexiste um critério imanente de poeticidade, é mesmo porque sabemos que, sem a
entrada do leitor, a suprir os vazios da obra, esta não passa de um esquema incompleto
(Iser, Wolfgang: 1976, 83 ss.), que defendemos a não transparência entre experiência
estética e juízo sobre o poético. Ao fazê-lo, não pretendemos tomar a análise do poético
como uma ciência particular, ainda que imperfeita. Penso, ao contrário, que a reflexão
radical sobre o poético nos permite romper ou contribuir para que se rompa com um
lugar-comum do mundo pós-renascentista: só o discurso científico seria dotado de
lógica, enquanto os demais seriam apenas emotivos, fantasias, quando não meramente
inferiores. Por força disso, as objeções ao pragmatismo do crítico e o esforço em favor
de uma análise apoiada em demonstrações podem ser tomadas como uma forma de
cientificismo. Daí ainda outros, na linha de Barthes, conceberem que a crítica literária
deva ser um gênero literário. O cientificismo permanece servo da lógica da
previsibilidade científica, a qual é a própria negação da imprevisibilidade da experiência
estética. E a ficcionalização da crítica, a maneira de apresentar a renúncia da atividade
judicativa, ao mesmo tempo que se apresenta como julgamento. Quando defendemos
uma pesquisa que se esforce em descolar a experiência estética do juízo pronunciado
sobre os objetos que a suscitaram, visamos ao desenvolvimento de uma atividade capaz
de mostrar a lógica de um objeto, experimentado como estético. Esta atividade não é
científica porque sabe que não pode prever como se reagirá depois a seus objetos, e
porque tampouco se prende a revelar propriedades destes. Não há objetos estéticos, mas
objetos passíveis de engendrar uma experiência estética. Para isso, eles têm de ter certas
propriedades, mas elas não bastam para a sua caracterização como estéticos, pois ainda
faz falta a tematização de um leitor que os considere como tais. A teorização visualizada
como capaz de mostrá-lo não será estética, pois terá de guiar-se por conceitos ou por
cadeias passíveis de engendrar conceitos. Mas tampouco será científica, ao menos no
sentido ainda hoje vigente, porque ciência supõe previsão, enquanto a história não se
pode literalmente prever e o objeto estético se equilibra na corda da história.
O leitor que haja acompanhado essa breve reflexão poderá agora se perguntar: o
que então se propõe é uma análise ainda mais fria e ainda mais afastada da experiência
que em mim provoca um bom poema, o quadro que admiro, a música que aprendi a
amar? A única discordância seria quanto à ideia implícita de “frio”, como se o uso da
inteligência não pudesse ser um uso emocional. Acrescentaria mesmo: se não sei
precisamente o lugar que ocupará ou ocuparia um discurso que se sabe nem científico,
nem ficcional, sei, quando nada, que advogá-lo tem o propósito de tentar romper com a
ideia que toma a ciência como detentora da lógica. Mas, diria uma segunda voz, assim
não se anuncia outro ataque ao humanismo? Suponho que o arguidor não use o
humanismo apenas para encobrir sua incompetência profissional e sua preguiça mental,
diria como Girard:22 “Se supomos que as grandes obras da civilização ocidental se
encontram ameaçadas por estarem submetidas a um método de análise mais
investigador e impiedoso, revelamos inconscientemente a profundidade de nosso
niilismo” (Girard, René: 1970, 33).
A única maneira, em síntese, que encontro de justificar a função do crítico
consiste em convertê-la em função crítica, qualquer que seja o meio, universitário ou
jornalístico, onde se exerça. E isso contra os irracionalismos, seja o dos cientistas – o
que está fora da ciência é irrazão (quando o correto seria dizer mais prosaicamente: fora
dela esqueça os financiamentos) –, seja o dos humanistas, que parecem pensar que, mais
do que ideia, o homem é emoção. Contra eles, porque ambos terminam por justificar os
regimes “de segurança”, e as ditaduras “benfeitoras”.

Rio, outubro de 1979

Bibliografia citada

Bruss, Elizabeth W., 1977: The game of literature and some literary games”, in New
Literary history, vol. IX, 1.
Fielding, Henry, 1749: The history of Tom Jones. Ed. cit.: Everyman’s Library, Dent &
Sons, London, 1955.
Girard, René, 1970: “Tiresias y la critica”, in The languages of criticism and the
sciences of man: the structuralist controversy. Trad. cit.: Los lenguajes criticos y las
ciencias del hombre: controversia estructuralista. Barral Editores, Barcelona 1972.
Goffman, Erving, 1974: Frame analysis. Ed. cit.: Penguin Books, Harmondsworth
1975.
Habermas, Jürgen: 1962: Strukturwandel der Öffentlichkeit. Ed. cit.: Luchterhand,
Darmstadt, 1978.
Iser, Wolfang, 1976: Der Akt des Lesens. Theorie ästhetischer Wirkung. Trad. cit.: A
literatura e o leitor, op. cit.
22
René Girard (1923-2015), filósofo francês.
Jauss, Hans Robert, 1977: “Vorwort” a Ästhetische Erfahrung und literarische
Hermeneutik. Trad. cit: A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 1979.

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