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SUPRASUMO - OBRAS LITERÁRIAS - UEM 2020

POESIA ROMÂNTICA DE SEGUNDA GERAÇÃO – MELHORES POEMAS - 1853 (ÁLVARES DE


AZEVEDO, O “POETA DA DÚVIDA”)
Romantismo Brasileiro
No Brasil a Escola teve início em 1836, com a publicação do livro Suspiros Poéticos e Saudades, de
Gonçalves de Magalhães e de um artigo do mesmo autor na Revista Niterói-Brasiliense.
Na poesia, vários poetas que podem ser agrupados em três fases (ou gerações) de acordo com a
cronologia e com as características apresentadas pelos referidos autores em cada momento
histórico.
Assim, resumidamente, temos:
Gerações Nomes Principais poetas Principais temas
Exaltação da natureza, excesso de
Gonçalves de
sentimentalismo, indianismo - o índio é
1ª Nacionalista ou Magalhães, Araújo
um ser idealizado (nobre, valoroso, fiel),
Geração Indianista Porto-Alegre e
ufanismo nacionalista (exaltação da
Gonçalves Dias
pátria recém “conquistada” em 1822).
Egocentrismo, sentimentalismo
exagerado, morte, tristeza, solidão, tédio,
Ultra-Romântica, Álvares de Azevedo, melancolia, satanismo, subjetivismo,
2ª “Byronista”, Casimiro de Abreu, idealização da mulher. Esses poetas
Geração “spleen” ou Mal Junqueira Freire e expressaram em seus versos pessimistas
do Século Fagundes Varela um profundo desencanto pela vida.
Muitos contraíram tuberculose, mal que
deu nome à fase
Sentimentos liberais, republicanos e
Castro Alves,
3ª Condoreira ou abolicionistas. Influenciados pelos ideais
Sousândrade, Tobias
Geração Social da filosofia Positivista que pregava o
Barreto
progresso.

Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo SP, no ano de 1831 e faleceu no Rio de
Janeiro RJ, em 1852. Cursou Letras no Imperial Colégio de D. Pedro II, no Rio de Janeiro e, em 1848,
matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo. Nos anos seguintes, redigiu os contos de
Noite na Taverna, o drama Macário e ensaios literários sobre Bocage, George Sand e Musset. Em
1849, discursou na sessão acadêmica comemorativa do aniversário da criação dos cursos jurídicos
no Brasil. Três anos depois faleceria, sem chegar a concluir a faculdade.
A obra de Álvares de Azevedo apresenta linguagem inconfundível, em cujo vocabulário são
constantes as palavras que expressam seus estados de espírito, a fuga do poeta da realidade, sua
busca incessante pelo amor, a procura pela vida boêmia, o vício, a morte, a palidez, a noite, a
mulher... Em Lembranças de morrer, está o melhor retrato dos sentimentos que envolvem sua vida:
“Descansem o meu leito solitário/ Na floresta dos homens esquecida/ À sombra de uma cruz e
escrevam nela:/ - Foi poeta, sonhou e amou na vida.”
Para entender a extensa obra de Álvares de Azevedo, seria importante selecionar alguns dos
poemas mais representativos e agrupá-los em alguns conjuntos de características. Assim, é possível
encontrarmos quatro grandes grupos de temas recorrentes na poesia do autor. Seriam eles:

1º) Poesias em que a morbidez é a temática central. Nestes poemas fica clara a opção do autor pelo
“spleen”, sensação de desespero e abandono em face da morte. Essa característica também foi
chamada de “mal-do-século”. É importante perceber o tom de evasão de Álvares, que o faz buscar
a morte como refúgio de uma vida infeliz. Um passo além dessa poesia, mas ainda muito próxima
da temática acima, estariam os poemas satânicos, em que as cenas “demoníacas” fazem a diferença
e dão um tom mais “gótico”, como já foi analisado no vestibular da UEM.
Um Cadáver de Poeta
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões — no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!

Nos poemas deste grupo, a relação com a morte, característica marcante do Mal-do-Século é
constante, como se pode notar neste outro excerto onde a figura de uma criança morta é idealizada
como um anjo:
Anjinho
Não chorem! que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!

Pobre criança! dormia:


A beleza reluzia
No carmim da face dela!
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam!
Ai meu Deus! era tão bela!

Estas seriam as principais características do autor: a morbidez (apego à morte), característica


marcante do universo ultra-romântico de influência byronista. É interessante perceber como o
poeta (recém-saído da adolescência, visto ter morrido aos 20 anos) demonstra toda a angústia e o
sofrimento que o fazem desejar morrer:
Se eu morresse amanhã
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

(...)
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Meu Sonho
Eu
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta na mão?
Porque brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

(...)
Cavaleiro, quem és? — que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O fantasma
Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...

2º) Há também uma poesia amorosa na qual o autor se debate em atitude contraditória: se por um
lado a mulher é colocada em um pedestal (ou castelo) e idealizada nos princípios da vassalagem
amorosa; por outro ela é vista de maneira mais acessível. Ou seja, no mesmo poema ela pode
aparecer como a virgem intocável e pura e a mulher fatal e devassa.
C...
Sim — coroemos as noites
Com as rosas do himeneu;
Entre flores de laranja
Serás minha e serei teu!

Sim — quero em leito de flores


Tuas mãos dentro das minhas...
Mas os círios dos amores
Sejam só as estrelinhas.

Por incenso os teus perfumes,


Suspiros por oração,
E por lágrimas, somente
As lágrimas da paixão!

Dos véus da noiva só tenhas


Dos cílios o negro véu;
Basta do colo o cetim
Para as Madonas do céu!

Eu soltarei-te os cabelos...
Quero em teu colo sonhar!
Hei de embalar-te... do leito
Seja lâmpada o luar!

Sim — coroemos as noites


Da laranjeira co'a flor;
Adormeçamos num templo,
Mas seja o templo do amor.

É doce amar como os anjos


Da ventura no himeneu:
Minha noiva, ou minh'amante
Vem dormir no peito meu!

Dá-me um beijo — abre teus olhos


Por entre esse úmido véu:
Se na terra és minha amante,
És a minha alma no céu.

3º) Por último, mas não menos importante, estariam as poesias prosaicas, também chamadas de
irônicas. São poemas que fogem à idealização romântica do amor e da mulher amada. Neles, o autor
chega ao cômico por intermédio do grotesco e da vulgaridade
É ela! É ela! É ela! É ela!
É ela! É ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou - é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura -
A minha lavadeira na janela!

(....)
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela... que amanhã de certo


Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre!
Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela! - repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja! (...)

PROSA REALISTA - MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS – 1881 (MACHADO DE ASSIS)


Machado de Assis nasceu em 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro; filho de pai mulato
(neto de escravos) e mãe açoriana, ficou órfão dos dois antes dos 10 anos, sendo criado pela mulata
Maria Inês, sua madrasta. Na adolescência, a família mudou-se para a cidade, a partir de então, o
jovem iria superar, pelo talento e pelo mérito de um esforço constante, as barreiras da classe social
e do preconceito de cor. Trabalhou intensamente na crítica literária e no jornalismo, além de ter
sido funcionário público. Fundou a Academia Brasileira de Letras, tornando-se seu primeiro
presidente (“Casa Machado de Assis”). Morreu de câncer em 1908.
O que mais se destaca na obra literária de Machado de Assis são os contos e os romances. Por sua
cultura humanística e estilo peculiar, o autor foi uma exceção no Brasil do século XIX, tendo sido
influenciado, além da Bílblia, por: Shakespeare, Swift, Sterne, Dickens, Montaigne, Pascal, Xavier de
Maistre, Victor Hugo e Almeida Garrett.
Com um estilo claro e direto, Machado conseguiu analisar e criticar os aspectos da burguesia
hipócrita que se formava do Brasil (Memórias Póstumas de Brás Cubas); o jogo de interesses de
determinadas classes (Dom Casmurro); além da pífia e risível transição da Monarquia para a
República (Esaú e Jacó).
É comum encontrarmos em sua obra algumas características inusitadas: os capítulos curtos e em
profusão; a crítica social; a fina ironia; a análise psicológica que fez dele “o grande analista da alma
humana” e a “conversa com o leitor” (metalinguagem), recurso que consiste em o autor/narrador
dos romances, em determinados pontos, parar a narrativa para tecer comentários, ou fazer
reflexões – inclusive – fazendo críticas ao mundo, à sociedade e ao próprio leitor.
Fases: usualmente os romances de Machado de Assis são divididos em duas fases:
Na primeira fase (ou fase romântica), os personagens de suas obras possuem características mais
idealizadas, sendo o amor e os relacionamentos amorosos os principais temas de seus livros. Desta
fase podemos destacar as seguintes obras: Ressurreição (1872), seu primeiro livro; A Mão e a Luva
(1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).
Na segunda fase (ou fase realista – ou da maturidade), Machado de Assis abre espaço para as
questões psicológicas dos personagens. É a fase em que o autor retrata muito bem as características
do realismo literário. Machado de Assis faz uma análise profunda e realista do ser humano,
destacando suas vontades, necessidades, defeitos e qualidades. Nesta fase destacam-se as
seguintes obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892), Dom Casmurro
(1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).

A obra
Memórias Póstumas de Brás Cubas pode ser considerado um “divisor de águas” tanto da ficção de
seu autor, quanto da própria Literatura que, a partir dessa obra, torna-se mais madura e mais
voltada à análise humana. Organizado em 160 capítulos curtos que fluem segundo o ritmo do
pensamento de um narrador em 1ª pessoa (um “defunto-autor”), Memórias se utiliza da estrutura
de “flashback”, ou seja, escrito do final para o início da obra: Brás Cubas, depois de morto, resolve
contar a sua vida (a isso se dá também o nome de digressão).
No romance, Machado se utiliza da visão de um representante da burguesia brasileira para tecer
críticas às relações sociais: Brás Cubas nasceu em uma família burguesa que enriqueceu com o
comércio. Ao falecer, tinha 64 anos, era solteiro e seu enterro contou com 11 pessoas. Sua morte
foi assistida por três mulheres: a irmã Sabina, a sobrinha e Virgília, um de seus amores.
O narrador deixa claro o fato de que foi criado para o ócio e para os prazeres mundanos em uma
sociedade patriarcal. Se na infância o personagem fora uma criança abastada e protegida, a ponto
de usar um escravo da casa como montaria, tornou-se, como consequência disso, um jovem leviano
e fútil.
Jovem, relaciona-se com Marcela, uma cortesã que exige presentes caríssimos, a ponto de seu pai
ter que tomar uma atitude radical, impedindo o endividamento da família: mandá-lo à Europa
“estudar”: “...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.”
Sua conduta hipócrita continua se manifestando e fica explícita quando descreve sua “formação”
universitária na Europa: “Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu
decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto”.
Com a doença e a morte da mãe, ele retorna ao Brasil. Seu pai quer que ele se torne deputado e lhe
apresenta Virgília, filha do Conselheiro Dutra: um caminho para o ingresso na vida pública sem
muito esforço. Virgília é uma moça de cerca de 15 anos, atraente e voluntariosa: “uma jóia, uma
flor, uma estrela, uma coisa rara”. Virgília, no entanto, casa-se com Lobo Neves, um homem que lhe
pareceu mais promissor (prometeu a ela que seria marquês). O pai de Cubas, desgostoso, morreu,
inconformado.
Após algum tempo, Virgília e Lobo Neves regressam de São Paulo e Brás Cubas começa a frequentar-
lhes a casa até tornar-se amante de Virgília. É nesta época que encontra, na rua, Quincas Borba, um
colega de infância, que vivia como mendigo. Ajuda-o com cinco mil réis e este lhe rouba o relógio,
ao despedir-se.
Brás Cubas aluga uma casinha para se encontrar às escondidas com Virgília (a caseira era D. Plácida,
uma antiga agregada da casa de Virgília, muito religiosa, mas que fazia tudo por dinheiro, inclusive
acobertar o relacionamento extra-conjugal da esposa de Lobo Neves).
Ao chegar aos 50 anos, sua única companhia é Quincas Borba, com quem filosofa sobre a vida e a
existência humana através de observações da realidade.
Lobo Neves morre, na iminência de se tornar ministro. Brás Cubas vai-lhe ao enterro e vê que Virgília
chorava “lágrimas verdadeiras”.
O último capítulo, “Das negativas”, finaliza a obra com o tom cético e realista que atravessa toda a
obra: Brás Cubas não se torna famoso por seu emplastro, não foi ministro, nem califa, nem se casou.
Em compensação, não comprou o pão com o suor do rosto, pois nunca teve de trabalhar. Não
morreu como D. Plácida, Marcela, Eugênia e tantos outros, nem se tornou louco como Quincas
Borba.
Ao morrer, chega “ao outro lado”, sentindo-se um pouco credor, pois não teve filhos e, portanto,
não transmitiu “a nenhuma criatura o legado de sua miséria”.

POESIA - PRÉ-MODERNISMO - EU E OUTRAS POESIAS - 1912 (AUGUSTO DOS ANJOS, O


“POETA DA MORTE”)
Augusto dos Anjos nasceu em 1884, no Engenho do Pau D'Arco, no estado da Paraíba e faleceu
muito cedo, aos trinta anos, em 1914, na cidade de Leopoldina, em Minas Gerais, para onde a família
havia se mudado.
Augusto só publicou uma obra: o livro Eu, cuja singularidade e substância foram suficientes para
que este se tornasse um dos livros de poesia mais lidos no Brasil. No entanto a primeira edição do
Eu, publicada no Rio de Janeiro, foi recebida com indiferença e desprezo, tanto pela crítica quanto
pelo público leitor.
A popularidade do poeta se deve - em boa parte - ao caráter original e pouco ortodoxo de sua
poesia, que possui uma linguagem poética incomum, tecida com palavras e sonoridades no mínimo
exóticas pela utilização – muitas vezes - de um vocabulário escatológico e, na época, muitas vezes
considerado um sinal de “de mau gosto”, impróprio para a linguagem lírica (a poesia que
predominava no fim do século XIX seguia os moldes e os temas caros aos parnasianos).
O universo temático e lírico de Augusto dos Anjos é criado através de um pessimismo que não
encontra muitos ecos na literatura nacional (salvo alguns exemplos mais recentes influenciados pela
filosofia Existencialista e pelo movimento Punk), onde o homem está submetido à angústia de sua
fatalidade: toda a vida está fadada ao estágio final da decomposição e da destruição, destinados ao
Nada (o que se dá o nome de niilismo). Assim, as forças da matéria se encarregam de arrastar o
homem para a agonia inexorável de sua fatalidade: a morte.
Há em Augusto do Anjos uma angústia moral lancinante, expressa pela postura de um espectador
do processo de degeneração da vida através de palavras simbólicas como ‘verme’, ‘podre’, ‘escarro’,
‘diatomáceas’ e ‘carnificina’, por exemplo. Essa expressividade em Augusto dos Anjos é uma de suas
marcas de originalidade, pelas quais é admirado nos tempos atuais.
“Os primeiros” sendo muito influenciados pelo simbolismo e sem a originalidade que marcaria as
composições posteriores. A esta fase pertencem os poemas ‘Saudade’ e ‘Versos Íntimos’
“Os segundos” poemas possuem o caráter de sua visão de mundo peculiarmente pessimista e
escatológica. Neles é possível perceber a influência de termos retirados tanto da Biologia quanto da
Química, o que demonstra a influência Positivista e Cientificista do autor. Um exemplo dessa fase
são os sonetos ‘Psicologia de um Vencido’, ‘Mater Originalis’, ‘Natureza Íntima’ e ‘Budismo
Moderno’ por exemplo.
“O terceiro” grupo corresponde à produção mais complexa e madura do autor, que inclui “Ao Luar”.

Tendências Pré-Modernistas: Suas divagações metafísicas, vocabulário cientificamente calculado o


diferenciarem de qualquer outra tendência literária manifestada. Dois dos principais divulgadores
do evolucionismo no final do século XIX: Haeckel e Spencer chegam a ser citados nominalmente em
alguns poemas. Na filosofia evolucionista, encontrou uma visão de mundo que entrou em
ressonância com seu próprio pessimismo: uma doutrina que concebia a vida como originária de uma
combinação de moléculas por geração espontânea; que via o homem como um estágio na evolução
da vida, a partir de microrganismos simples e passando por plantas e animais sucessivamente mais
complexos.
Um poeta Expressionista: Na Europa do início do século XX, e principalmente da Alemanha, surgiu
um movimento artístico profundamente influenciado pelo pessimismo de um mundo cheio de
instabilidades que sentia surgir em suas entranhas o ambiente propício para as guerras que se
seguiriam. Este movimento estético ficou conhecido como Expressionismo e um dos grupos mais
atuantes foi o alemão “Die Brücke” (a ponte), de 1905. Os trabalhos dos artistas desse movimento
tinham um acentuado tom de crítica social e da angústia da condição humana, pois eles se sentiam
atormentados por obsessões políticas, religiosas e sexuais. Em 1913, o grupo se dissolve, mas o
fermento expressionista espalhara-se por toda a Alemanha. Em Munique, surgia um grupo
importante: O Cavaleiro Azul/Der Blaue Reiter. Alguns críticos consideram Augusto dos Anjos nosso
primeiro representante deste movimento, que viria a influenciar os primeiros modernistas, como
Lasar Segall e Anita Malfati.

Budismo Moderno
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!


Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida


Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades


Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Ao Luar
Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha táctil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos


E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,


Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado…

Transponho ousadamente o átomo rude


E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!

PROSA MODERNISTA – CONTOS NOVOS – 1946 (MÁRIO DE ANDRADE, O “PAPA DO


MODERNISMO”)
Mário Andrade nasceu em São Paulo no ano de 1893. Sua vida foi intensa, sempre oscilou entre
uma lucidez amarga e um encantamento profundo diante das coisas. Formou-se pelo Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, passando a lecionar neste mesmo local. Participou da Semana
de Arte Moderna de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Foi poeta, ficcionista, crítico,
historiador de Artes Plásticas, Música e Literatura. Estudou cinema, fotografia, viajou muito pelo
país e pesquisou o folclore e a cultura popular. Encantou-se com a psicanálise num tempo em que
os europeus a estavam estudando e, por aqui, ela ainda era algo muito sofisticado, ou seja, "para
poucos". Enquanto viveu, lutou pela arte com seu estilo de escrita puro e verdadeiro. Certo de que
a inteligência brasileira necessitava de atualização, este escritor modernista nunca abandonou suas
maiores virtudes: a consciência artística e a dignidade intelectual.
Desde a sua estréia, com Há uma Gota de Sangue em cada Poema (1917), Mário revelou a
preocupação de colocar sua inteligência e sua sensibilidade a serviço do próximo. Em 1922, além de
participar da Semana de Arte Moderna, publicou seu livro de poemas Paulicéia Desvairada que, com
Amar, Verbo Intransitivo (1927) e Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter (1928), é uma de suas
obras literárias mais conhecidas, além de marco do Modernismo. Morreu, vitimado por um ataque
cardíaco em 1945.

O gênero conto e os Contos Novos


É a obra de maturidade de Mário de Andrade, arejada dos ‘cacoetes modernosos’, sem perder o
frescor modernista. É provavelmente o livro que chega mais perto da imbatível produção contística
de Machado de Assis. Basta observar o “Frederico Paciência”, por exemplo, em que o autor levou
18 anos em sua confecção.
Contos de estrutura moderna, que acolhem as principais correntes ficcionistas que marcaram a
Literatura Brasileira das décadas de 30 e 40. Mais do que os fatos exteriores, os relatos procuram
registrar o fluxo de pensamento das personagens. Os contos destacam São Paulo, capital e interior,
nas décadas de 20 a 40; o processo de urbanização e industrialização (cidade); e o duelo
patriarcalismo X progressismo (ambiente rural).

PRINCIPAIS CONTOS – ENREDO MÍNIMO


Quatro contos são narrados em 1ª pessoa (‘Peru de Natal’, ‘Vestida de Preto’, ‘Frederico Paciência’
e ‘No Tempo da Camisolinha’), que se centram no eixo de individualidade de Juca/Carlos,
protagonista-narrador. Por meio de evocação memorialista, em profunda introspecção, ele
relembra a infância, a adolescência e o início da vida adulta.
No Tempo da Camisolinha (1ª pessoa) – Carlos lembra-se do período em que ele (muito pequeno)
morou ma praia com a tia, a mãe e a irmã recém-nascida. Ganhou três estrelas do mar de um
pescador e acreditou na boa sorte que as estrelas iriam trazer à mãe convalescente. Acabou dando
uma estrela a um operário que trabalhava na urbanização.
Vestida de Preto (1ª pessoa) – Juca soube do retorno de sua prima Maria à cidade de São Paulo após
muitos anos. Isso desencadeia nele uma série de reflexões e lembranças: um primeiro beijo seria
um primeiro amor? Vai à casa da prima e ela está vestida de preto! Seria uma insinuação? No final
não houve nada.
Frederico Paciência (1ª pessoa) – Juca lembra de um amigo que se tornou muito próximo. Tão
próximo que o narrador acaba se sentindo atraído pelo amigo. A relação não se concretiza, mas é
um conto que explora a possibilidade da relação homoafetiva.
Peru de Natal (1ª pessoa) - Natal simboliza esperança e renascimento. Por isso Juca quer um Natal
diferente dos anteriores após a morte do pai, figura “cinzenta” na vida da família. Aquele ano
haveria até peru. Mas a lembrança do pai invade a sala e toma conta do ambiente. Na dualidade
Peru versus Pai, Juca resolve o impasse dizendo que se o pai estivesse ali ele estaria feliz com aquela
mesa e aquele peru. Tudo termina bem para essa “nova” composição familiar.
São cinco os contos narrados em 3ª pessoa (‘O Ladrão’, ‘Primeiro de Maio’, ‘Atrás da Catedral de
Ruão’, ‘O Poço’ e ‘Nélson’), que centra-se num eixo de referência social, de inspiração neorrealista.
A denúncia de problemas sociais (Primeiro de Maio e O Poço) se alia à análise da problemática
existencial das personagens.
Primeiro de Maio (3ª pessoa) - O carregador de malas da estação da Luz que usa a “chapinha” de
número 35 diz ao amigo 22 que no dia seguinte (1º de maio), não irá trabalhar: é feriado do dia do
trabalhador. No dia seguinte veste-se com a melhor roupa para comemorar, mas não encontra
grandes motivos para tal. Retorna à estação e volta a trabalhar. O narrador explora o papel apolítico
dos trabalhadores.
O Poço (3ª pessoa) - Joaquim Prestes quer um poço em sua fazenda em Mogi das Cruzes. Os
trabalhadores arriscam a própria vida para cavar no frio e na chuva. Exaurido, Albino não consegue
mais trabalhar e o fazendeiro perde uma caneta que cai no poço. Após algumas tentativas de
recuperá-la, os trabalhadores enfrentam o patrão...que não precisava da caneta. Tinha três outras
guardadas da escrivaninha. O tema é a exploração.
Nélson (3ª pessoa) – O conto explora os múltiplos pontos de vista de quatro jovens sobre uma
personagem estranha que está em um bar: Nélson, que tem uma mão defeituosa. Lutou na Coluna
Prestes após perder a mulher e a fazenda no Mato Grosso.
O Ladrão (3ª pessoa) – Numa noite em uma vila operária ouvem-se gritos de “pega ladrão”. Ninguém
chega a sequer ver ladrão, mas o fortuito acontecimento faz com que as pessoas que ali estão
comecem a conversar e tecer opiniões sobre a vida e o comportamento de alguns vizinhos.
Atrás da Catedral de Ruão (3ª pessoa) – Um pouco em francês, um pouco em português o conto
explora os modelos estereotipados da sociedade paulistana: Mademoiselle (a professora virgem
balzaquiana) expõe suas apreensões a duas adolescentes, filhas de um casamento desfeito: Alba e
Lúcia. Falam sobre os perigos a que as jovens estão expostas nessa nova fase da vida, assim como a
menina que sofrera abuso “atrás da Catedral de Ruão”. Ao voltar para sua pensão, dois jovens
seguem a professora, que num misto de medo e desejo apressa o passo. Os homens passam, ela se
tranca no quarto e chora. Solidão ou recalque? Será um pouco de cada?

POESIA DA 2ª GERAÇÃO MODERNISTA – ANTOLOGIA POÉTICA – 1962 (CARLOS


DRUMMOND DE ANDRADE – “O GAUCHE”)
Carlos Drummond de Andrade (o “gauche”) nasceu em Itabira do Mato de Dentro (MG), em 1902.
Filho de uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os
jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo (RJ) em 1918, de onde foi expulso após uma discussão
com o professor de Português, acusado de "insubordinação mental". Formou-se em farmácia na
cidade de Ouro Preto em 1925. Em 1924 conheceu Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila
do Amaral. Por essa época, fundou com outros escritores um órgão de divulgação literária chamada
A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas.
Em 1928 publicou na Revista Antropofagia, de São Paulo, o poema “No meio do caminho”, que se
tornou um verdadeiro escândalo literário. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se
para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até
1945.
Faleceu em 17 de agosto de 1987, de mãos dadas com Lygia Fernandes, sua namorada com quem
manteve um romance paralelo ao casamento e que durou 35 anos (Drummond era 25 anos mais
velho e a conheceu quando ele tinha 49 anos).

As linhas temáticas
Em 1962, Drummond publicou a sua Antologia Poética. Ao organizar o volume, procurou, segundo
ele, “localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a
condicionam ou definem, em conjunto”. Agrupou, portanto, os seus poemas em diversas linhas
temáticas, ou segundo as diferentes “matérias de poesia”. Assim, dividiu a sua obra em nove grupos
temáticos básicos, que têm guiado as considerações críticas sobre a sua poesia até hoje.

1. UM EU TODO RETORCIDO - O Indivíduo: O eterno conflito entre o eu e o social


Nestes poemas, fica mais clara a face do “gauche”. O termo, que pode significar torto, ou de
esquerda, ou do contra, em termos mais populares, se mostra na influência crítica da análise
humana, do indivíduo, do próprio eu do poeta e do mundo que o cerca, uma análise social. Dentre
as inúmeras correntes filosóficas do século XX, com certeza a que mais influenciou o poeta Carlos
Drummond de Andrade foi o Existencialismo.
Essa sensação de desamparo pode ser vista também no poema “A flor e a náusea”, com um sentido
mais social, visto poder ser relacionado com a sensação do eu poético no absurdo do mundo
contemporâneo, tão desprovido de valores mais humanos e sentimentais. Além disso, pode-se fazer
referência também aos momentos de ditaduras (como as nazi-fascistas), em que a liberdade (a flor)
não podia brotar e crescer.
Poema de sete faces
Quando nasci um anjo torto
desses que vive na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens


Que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
Não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:


Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

2. UMA PROVÍNCIA: ESTA - A terra natal: Itabira, saudades e vivências.


Outro tema recorrente em Drummond é a sua relação com a infância e a vivência interiorana. Ora
com um profundo lirismo saudosista vazado em uma linguagem mais seca, menos adjetivada
(“Confidência do itabirano”); ora com ironia mordaz (Cidadezinha qualquer”), sempre o poeta se
refere a Itabira e a Minas Gerais. O enfoque central, porém, está na ironia que analisa de forma
crítica as relações sócias em Minas, metáfora do Brasil, fazendo do poeta um analista de postura
mais universalista.

Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.


Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus

3. A FAMÍLIA QUE ME DEI - A família: Itabira e vivências íntimas do menino.


Drummond viveu – como todos da sua geração – um período de transformações muito rápidas. O
mundo deixou o cavalo e subiu no carro e no avião; trocou o campo pelas cidades; conheceu a luz
elétrica, o telefone, o cinema. No Brasil, mesmo com atrasos, as coisas também aconteciam assim.
No final do século XIX e princípio dos anos vinte, o país deixa de ser um estado agrário semifeudal
para iniciar o processo de industrialização que exigia a formação de uma mão de obra urbana
especializada

4. CANTAR DE AMIGOS - Amigos: Homenagem aos amigos reais ou intelectuais.


Incorporado ao seu tempo, apesar de caladão, Drummond mantém farta correspondência com
muitos intelectuais do movimento modernista e de sua época. Assim, é possível ver as homenagens
feitas a alguns deles em suas obras: Mário de Andrade, Charles Chaplin... Com o último,
especialmente, Drummond se identificava muito, pela magreza, pela angústia expressa em seus
filmes, pela ironia e pela figura trágica do “clown” tão bem representada por carlitos, um verdadeiro
“pop star” das primeiras décadas do século XX.
5. NA PRAÇA DE CONVITES - O choque social: A violência humana
A “Geração de 30”, em que se localiza o poeta, foi uma geração marcada por transformações sociais
importantes: a Revolução Russa de 1917 toma fôlego sob a condução de Stalin (que mata e exila
milhões); na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal os governos fascistas cuidam de oprimir as
manifestações pró-liberdade. Os dois primeiros países começam a se estruturar e organizar seus
exércitos. O Brasil, Getúlio Vargas toma o poder mediante um golpe. Em 1932 há uma Revolução
Constitucionalista que explode em São Paulo, culminando com uma Constituição em 1934. Em 1935
explode uma Intentona Comunista, debelada pelas forças armadas. Em 1937 uma nova
Constituição, “A Polaca”, dá mais poderes ditatoriais a Vargas, iniciando o Estado Novo.
Assim, não era possível estar alheio às mudanças e não se podia deixar de ter um posicionamento.
Drummond, por sua orientação materialista, opta por defender as esquerdas, tornando-se um poeta
mais participativo, mais engajado. Sua poesia demonstra essa necessidade de estar incorporado ao
mundo e às transformações.
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,


e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra


e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas


sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota


e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

6. AMAR – AMARO - O conhecimento amoroso: O amor altruísta (como só ele poderia existir)
Apesar da luta com o lirismo, digamos, “derramado”, Drummond fez poesias sobre o amor e o amar.
Logicamente seguindo a linha do “gauche” e fugindo das idealizações, confessionalismos e exageros
românticos. Há na análise deste sentimento tão grandemente cantado por outros poetas um certo
tom de ironia. Como se o poeta não acreditasse, ou não se deixasse arrebatar facilmente pelo “bicho
instruído”.
7. POESIA CONTEMPLADA - A própria poesia: metalinguagem
Uma das mais importantes abordagens de Drummond é o próprio fazer poético. A rotina do poeta
mineiro o obrigava a acordar todo os dias no mesmo horário e ficar em frente à máquina de escrever
das 8 horas ao meio dia, somente sendo interrompido por sua esposa que lhe trazia queijo minas e
café fresco por volta das 10 e 30 da manhã. Muitas vezes a poesia “não saía” e ele escrevia sobre
isso.
O lutador (excerto)
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.

8. UMA, DUAS ARGOLINHAS – exercícios lúdicos


Áporo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,


em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto


(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
9. TENTATIVA DE EXPLORAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO ESTAR-NO MUNDO - Uma visão, ou
tentativa de, a existência: o estar no mundo.
Mais uma vez a temática é existencial, abordando a angústia de um homem crítico em uma
sociedade caótica. Entre os versos desta parte da antologia figura o famoso poema “No meio do
caminho”, um dos mais conhecidos do poeta, publicado inicialmente em 1928, na Revista de
Antropofagia de Antonio de Alcântara Machado e Oswald de Andrade.

TEATRO SOCIAL DA TERCEIRA GERAÇÃO – ELES NÃO USAM BLACK-TIE – 1958


(GIANFRANCESCO GUARNIERI)
Gianfrancesco Guarnieri nasceu na Itália em 1934 e faleceu em São Paulo em 2006. Nome
importante nos anos 1960 e 1970, ao lançar textos voltados à realidade nacional e discutindo, com
densidade dramática, problemas sociopolíticos de impacto. Eles Não Usam Black-Tie, escrito por
ele, abre o período da fase nacionalista do Teatro de Arena, do qual é integrante. Como ator, e
eventualmente diretor, distingue-se pela busca de uma expressividade brasileira nas
caracterizações.
Filho de imigrantes, chega ao Brasil com dois anos, vivendo no Rio de Janeiro. Muda-se para São
Paulo em 1954 e como ator integra, a partir do ano seguinte, o Teatro Paulista do Estudante, grupo
amador que se funde com o Teatro de Arena em 1956. Ali, nos elencos de Escola de Maridos e Dias
Felizes, sob a direção de José Renato; e Ratos e Homens, dirigido por Augusto Boal, ambas
encenadas em 1956, projeta-se como intérprete e ganha espaço no grupo.
No ano seguinte, o Arena encontra-se em crise e pensa em fechar as portas. Para fazê-lo, resolve
encenar um texto de Guarnieri - Eles Não Usam Black-Tie - que, contrariando todas as expectativas,
salva o conjunto da bancarrota e impõe-se como o primeiro texto nacional a abordar a vida de
operários em greve. Inicia-se, desse modo, a construção que faz o autor de um panorama sobre a
vida operária, continuado em Gimba, produzido pelo Teatro Maria Della Costa - TMDC, que revela
o talento de Flávio Rangel, em 1959; e A Semente, levada à cena pelo mesmo diretor no Teatro
Brasileiro de Comédia - TBC, em 1961.
Também ator de cinema e televisão, acumula nesses veículos grandes interpretações. Pelo sensível
acorde dramático alcançado como Otávio, o pai de Eles Não Usam Black-Tie, na versão
cinematográfica de Leon Hirszman, em 1982, recebe inúmeros prêmios.
Na avaliação do crítico Décio de Almeida Prado, "Guarnieri escreveu com facilidade e fecundidade
tanto na década de 1960 quanto na de 1970, antes e depois de 1964, porque tinha durante esse
tempo todo um claro projeto político em vista. Sabia a favor do que ou contra o que manifestar-se.
(...) Se na qualidade de escritor engajado Guarnieri nunca se recusou a tomar partido, na de poeta
dramático equilibrou sempre a sua obra entre dois pólos: a sedutora simplicidade das grandes
explicações históricas - no caso, o marxismo - e a extrema complexidade do mundo real e dos
homens. Daí o paradoxo (comum a toda boa literatura) desse teatro: não é preciso partir de suas
premissas ideológicas para admirá-lo enquanto lição humana e realização estética".

Eles Não Usam Black-Tie (1958)


Como toda peça de teatro, é importante destacar que as falas dos personagens são realizadas em
ordem direta e não há análise psicológica, pois tudo o que o público precisa saber tem que ser dito.
Assim, surgem as marcações (rubricas) ou diascálides que anunciam a voz da personagem em
questão. A linguagem usada é a mais simples e próxima do falar coloquial das pessoas do morro e
das classes menos favorecidas (operários). Há também uma música que permeia toda a peça.
A peça (dividida em três atos) tem como tema central a greve e a vida operária com preocupações
e reflexões universais do ser humano, apresenta como cenário uma favela carioca e aborda o
conflito entre pai e filho, causado por posições ideológicas diferentes. Tião, o filho, sonha com a
ascensão social e as regalias da vida burguesa, renegando a vida proletária. Otávio, o pai, acredita
que sua classe social é forte e que a luta por melhores salários é o caminho a ser seguido. Liderando
o movimento grevista, Otávio vê seu próprio filho trair sua gente, furando a greve e colaborando
com os patrões, na esperança de alcançar um novo status social. Otávio é preso e ao ser liberado,
tem que enfrentar nova prova: o filho abandona o barraco e o meio em que vive. Apesar disso,
Otávio continua acreditando que Tião voltará algum dia, compreenderá a posição dos operários e
se integrará a esse universo.
Apesar de existir um caráter político-ideológico que permeia toda a obra, o que se discute são as
relações de amor, solidariedade e esperança diante dos percalços de uma vida miserável. Assim, a
peça alia temas como greve e vida operária com preocupações e reflexões universais do ser
humano. Sob o olhar de Karl Marx, em um retrato iluminado por um feixe de luz na parede do
cenário, o debate entre a coletividade e o individualismo, simultaneamente cru e sensível, vai
crescendo.
Tendo a esperança como tônica, Eles não usam black-tie chamou a atenção não só pela presença
do proletariado como também pela coerência de suas personagens na expressão da linguagem.
Tendo aprendido o registro popular com uma cozinheira de sua casa, Guarnieri retrata a fala típica
das camadas sociais mais pobres da região urbana, sem nenhum artificialismo. O emprego de “tu tá
correndo”, “muié”, “os home”, “pruquê” revela um dado significativo para a compreensão do país:
a presença do caipira nessas camadas. Palavras e expressões pertencentes a outras regiões do Brasil,
tais como “bacuri”, “me adiscurpe”, “apurrinha” indicam outros integrantes dessa camada social e
o problema migratório na luta pela sobrevivência.
“Romana – Tião? Deixa disso... Tião é filho de Otávio, o maior greveiro carioca... Mas por quê?
Maria – Fala em greve, Tião emburra... Ontem ele tava meio tonto, disse uma porção de coisa, que
isso não é vida... Que fazê greve todo o ano não dá futuro pra ninguém... Que a gente nunca ia tê
sossego!... Ele tá com medo que a greve não dê certo e que seu Otávio ele e o resto da turma perca
o emprego...
Romana – Bobagem!... E depois, as greve que Otávio se meteu sempre deu certo... Tião tá é bêbado...
Mas fala com ele... melhó é franqueza... Se ele tivé com vontade de fazê bobagem tu pode até
aconselhá....”

Personagens
Guarnieri, por um lado, criou personagens marcantes e populares como Terezinha. Chiquinho,
Dalvinha e Jesuíno que nos revelam um mundo alegre, descontraído e aparentemente feliz. Já por
outro, a peça se apresenta forte e densa revelando de maneira real os conflitos que atormentam
personagens como Otávio, Romana, Tião, Maria e Braúlio. São tais encontros e são esses momentos
alegres e comoventes que nos provocam riso e dor, alegria e tristeza. Assim, se por um lado, mostra
um olhar profundo dentro da sociedade brasileira, por outro, esse olhar vem embalado por um valor
poético materializado na visão romântica de mundo de seus personagens.
OTÁVIO, o pai, é operário de carreira, sonhador, idealista, leitor de autores socialistas e, ao mesmo
tempo, revolucionário por convicção e consciente de suas lutas. Forte e corajoso entre os seus
companheiros, exerceu várias vezes a liderança nas reivindicações da classe operária (greves nos
anos 30 a 50, período Vargas e JK, portanto), experimentou algumas prisões, com isso ganhou
destaque entre os seus companheiros, tornando-se um dos cabeças do movimento grevista.
TIÃO, o filho, em razão das prisões do pai grevista, foi criado praticamente, na cidade, longe do
morro, com os padrinhos, sem conviver com esse mundo de luta e reivindicação da classe operária.
Hoje adulto e morando no morro com os pais, vive um dos maiores dilemas de
sua vida. Em primeiro lugar, não quer aderir à greve, pois acha que a greve é algo Nóis Não Usa Os Bleque
Tais
utópico, que essa é uma luta inglória, sem maiores resultados para a classe. Em
(Adoniran Barbosa)
segundo lugar, pretendendo casar-se com Maria, moça simples, porém
O nosso amor é mais
determinada e leal ao seu povo, e que está esperando um filho seu, não quer gostoso
arriscar sua segurança e seu emprego. Daí estar mais preocupado com o seu Nossa saudade dura mais
futuro do que com a luta de seus companheiros, que sonham com melhores O nosso abraço mais
salários. Ele não tem tempo para esperar, precisa resolver seus problemas de apertado
Nóis não usa as bleque tais
imediato, ou seja, casar. Corajoso quando se trata de enfrentar outros homens –
e o fato mesmo de furar deliberadamente a greve põe isso em evidência – o seu Minhas juras são mais juras
medo é de outra natureza: o grande medo da sociedade moderna, o medo de Meus carinho mais
ser pobre. carinhoso
Suas mão são mãos mais
ROMANA, a mãe, uma realista sem ilusões, é a figura dramaticamente mais bem
puras
desenhada da peça – ela desafia diariamente a miséria. Suas observações são Seu jeito é mais jeitoso
cruas, sem cinismo nem amargura ou desespero, francas e desabusadas, sem Nóis se gosta muito mais
circunlóquios mordazes, que chamam os homens para a realidade, e Nóis não usa as bleque tais
neutralizam, com uma nota levemente ácida, o falso sentimentalismo em que os
O nosso amor é mais
outros personagens ameaçam cair em determinadas cenas. Suas atitudes gostoso
revelam o choque entre o que é, e o que deveria ser, indo do otimismo algo Nossa saudade dura mais
sonhador e ingênuo do pai, sempre pronto a acreditar na perfeição moral da O nosso abraço mais
humanidade, até os sonhos de grandeza do filho que quer subir na vida e apertado
Nóis não usa as bleque tais
abandonar a condição difícil e miserável do morro, desafiada cotidianamente
pela coragem e bravura de Romana, sua mãe, mulher determinada e responsável OBS: Na peça esta é a
pelo equilíbrio da casa e da família. música composta pela
JESUÍNO - Amigo de Tião, ao contrário deste é malando, fraco e oportunista. personagem Juvêncio, que
MARIA – namorada de Tião, vive feliz no morro, no meio de sua gente. Grávida, foi “roubada” por um
compositor da cidade.
fica noiva e quer se casar logo para ninguém notar que está de barriga. Não apoia
a atitude do noivo de furar a greve, nem aceita ir com ele embora do morro. Vai ficar com o filho
esperando a volta de Tião para junto dela.
JOÃO – irmão de Maria, um homem ponderado e maduro capaz de compreender a situação
conflitante vivida pelo amigo Tião e, ainda, apoiar sua irmã neste momento difícil. É um dos poucos
moradores que continua amigo de Tião depois que a greve foi vitoriosa, contra as previsões de Tião.
BRAÚLIO, negro amigo e companheiro de Otávio, é outro líder dos operários na greve.
CHIQUINHO E TEREZINHA – ele irmão de Tião. Formam um casal de adolescentes com suas
mentirinhas, malandragens e expedientes (pequenos furtos e desvios) para conseguirem um
dinheirinho extra ou coisas que desejam. Apaixonados e erotizados, vivem pelos cantos escuros
fazendo “safadezas” que ninguém pode saber, e que todos sabem o que acontece porque já fizeram
também.
JUVÊNCIO, apenas citado por outros personagens, é um mulato sambista do morro. Manco de uma
perna, arredio e ensimesmado, é autor do samba “Nois não usa as bleque tais”, cantado no decorrer
de toda a peça. No final, fica deprimido ao saber que seu samba estava fazendo enorme sucesso,
tocando nas rádios, mas com o nome de outro compositor.

Enredo e tempo
Eles não usam black-tie compõe-se de três atos, cada qual dividido em dois quadros. É importante
mencionar que o modelo dos três atos remete ao modelo da dramaturgia clássica (grega). Chamava-
se “Lei dos Três Atos”. A maioria dos escritores de cunho engajado/social, escrevem respeitando
esta regra. Então, a peça é revolucionária na temática operária e por trazer ao teatro discussões
político-sociais em um período conturbado da história nacional (Governos Populistas que pregavam
o desenvolvimento às custas do árduo e pouco valorizado trabalho do povo), mas é tradicional na
estrutura. Outra coisa importante é o tempo da peça: ela ocorre de forma muito rápida entre uma
sexta e uma segunda-feira.

ATO I (Ambientado entre sexta e sábado)


(Barraco de Romana, mesa ao centro. Um pequeno fogareiro, cômoda, caixotes servem de bancos.
Há apenas uma cadeira. Dois colchões onde dormem Chiquinho e Tião).
QUADRO I
Tião e Maria, depois de irem ao cinema estão no barraco dele. Conversam enquanto ele espera a
chuva passar para levá-la para casa. Juvêncio, ali perto e desligado de tudo, olha para o céu e
parecendo não sentir nada, toca violão na chuva.
Os pés da moça se atolam na lama, a roupa do rapaz fica respingada de barro. Conversam em voz
baixa para não acordar D. Romana e Chiquinho. Os jovens trocam juras de amor. Maria, fazendo
ceninha de ciúmes, quer saber das namoradas que Tião tinha quando morava na cidade. Até que
Maria revela que está grávida.
Tião fica alegre, mas preocupado com o futuro. Maria quer casar-se antes que a barriga apareça e
planejam ficar noivos logo. Tião revela que não gostaria de viver com Maria no morro: seu sonho é
tirar Maria daquele ambiente de miséria e sem futuro ao qual ele não consegue se adaptar depois
de ter vivido na cidade.
Contam a decisão a Otávio que acaba de chegar. Romana acorda, repreende o marido que está se
molhando, reclama, pois quem vai ter que levantar cedo é ela.
A notícia do noivado de Tião com Maria e as conversas de Otávio sobre a greve preocupam e irritam
Romana.
QUADRO II
Sábado à tarde. Preparativos para a festa do noivado de Tião e Maria. Romana, naquela correria,
reclama da falta de tempo e de ajuda. Otávio conserta a vitrola emprestada.
Como o dinheiro era pouco, Romana teve de emprestar de Braúlio. Chiquinho não comprou o
champanhe porque comprou figurinhas e diz que perdeu o dinheiro. Otávio tenta pegar o filho para
dar-lhe uns cascudos. Terezinha defende o namoradinho.
Otávio e Romana relembram uma filha já morta. Ele reconhece a valentia, o espírito de luta e a
energia da mulher. Trocam carinhos, elogiam a futura nora. Mas é Tião quem mais lhes causa
preocupação.
Vão chegando outros personagens para a festa. Maria está lindona. Tião todo alinhado inventa uma
história de que foi convidado para fazer um teste para o cinema. Pai e filho discutem a respeito da
greve e discordam quanto à eficiência, adesão dos operários e a dignidade de quem fura a greve.
Os convidados vão entrando com estardalhaço, a cachacinha e o chope vão sendo servidos. As
conversas giram em torno de arruaceiros do morro, da mulher que vai ter nenê (mais uma boca
para comer), Romana é clara e objetiva sobre os problemas para se criarem filhos na pobreza.
Rola a bebida, a música da vitrola anima a festa, os convidados saem dançando, trocam de par,
surgem comentários e brincadeiras maliciosas e a dança continua no terreiro. A certa altura, Tião
faz o pedido oficial a João, irmão de Maria, e o noivado é oficializado com aplausos.
Tião e Jesuíno falam à parte sobre a mentira que inventaram de terem sido convidados para filmar.
Comentam também sobre a greve que está sendo preparada e lamentam as dificuldades da vida na
favela. Nenhum dos dois acredita muito no movimento.
A chegada de Braúlio vindo da assembleia do sindicato agita o ambiente. Pelo jeito a greve não vai
ser fácil, mas estão dispostos a lutar.

ATO II (Mesmo cenário. Domingo de manhã. Romana ocupa-se com a casa. Chiquinho zanzando
pelo barraco. Tião na porta do barraco absorto em seus pensamentos.)
QUADRO I
Domingo de manhã. Romana reclama dos homens que ficaram todos bêbados na festa da noite
anterior. O filho mais novo, Chiquinho, faz gracejos lembrando alguns lances da festa. Tião está
pensativo, distraído, imaginando sair pelo mundo com Maria. A mãe lembra a discussão dele com o
pai, ambos bêbados durante a festa. Tião, excitado pela bebida culpava o pai pela vida que ele
levava. Romana comenta que os padrinhos pouco tinham feito pela formação de Tião, queriam
apenas um pajem para os filhos. Tião sai para ver o pai que estava batendo boca com o português
dono do botequim, por causa da greve.
Chiquinho e Terezinha discutem porque o rapaz deu prejuízo no armazém onde trabalha, deixando
um bando de moleques roubarem mercadorias e aproveitando-se também. O patrão descontou o
prejuízo no salário de Chiquinho. Terezinha gosta dele apesar de achá-lo encrenqueiro, briguento e
de vida torta, mas quer se casar com ele na igreja. Chiquinho preferiria casar-se num terreiro de
umbanda. Estão se agarrando e se beijando, quando entram Romana e Maria e vêem os dois se
agarrando.
Romana e Maria comentam a esquisitice de Tião e a moça desconfia que o noivo é capaz de furar a
greve por causa das preocupações com o casamento e o filho que está chegando. A chegada de
Jesuíno descontrai o ambiente.
Tião volta e fica a sós com Jesuíno. Discutem sobre a forma de furar a greve, depois de combinarem
com o gerente da fábrica e acertarem a recompensa que receberiam. Jesuíno fica com medo, pois
se a greve der certo o pessoal vai xingá-los e marginalizá-los da comunidade. Tião está resolvido,
inclusive a enfrentar todas as broncas.
Otávio entra anunciando que alguns líderes do sindicato haviam sido presos numa tentativa dos
patrões de atemorizar os outros, mas a reação foi de mais revolta e disposição de enfrentar os
patrões. Chega um aviso de que a polícia está procurando pelo Braúlio que não se intimida. Tião se
desespera com a proposta dos trabalhadores de fazerem greve mesmo assim.
QUADRO II
Domingo à noite, o casal de noivos, Tião e Maria, de volta ao parque, conversam diante da casa da
moça. Trocam declarações e juras de amor. Falando do filho que esperam, escolhem o nome do
filho (Durval). Apontando a cidade lá embaixo, o rapaz pergunta à noiva se gostaria de morar lá e
recebe uma resposta negativa.

ATO III (segunda feira)


QUADRO I
Manhã de segunda-feira, Tião acorda mais cedo. Romana percebe sua agitação. Recomenda-lhe que
não se meta em confusão. Tião sai sem esperar pelo pai e Romana começa a pôr as cartas na mesa,
mas logo as esconde porque Otávio está levantando da cama.
O diálogo de Otávio com Romana é muito parecido com o que ela teve com o filho. Não vai se
meter em confusão. Otávio sai para o trabalho e Romana volta a botar as cartas na mesa.
Então chega a Maria. Com muitos rodeios, idas e vindas, a moça diz gostar muito de D. Romana
que é compreensiva, não quer esconder nada da sogra, que começa a ficar desconfiada: Tu tá
querendo me contar o quê? Maria afirma repetidas vezes que gosta muito do Tião, acaba, por fim,
revelando que está grávida. Romana é realmente uma mãezona, fica feliz com a notícia e imagina a
felicidade de Otávio quando souber. E as mulheres decidem que se for menino chamar-se-á, como
o avô, Otávio.
Tião chega trazendo notícias da greve que acabou sendo deflagrada, conta que dezoito furaram
a greve, mas não contou que era um deles. Entretanto, daí a pouco chega o Braúlio e o desmascara
diante da mãe, chama-o de covarde e traidor. Tião explica à Maria e à mãe por que tomara aquela
atitude: queria garantir o futuro.
Maria e principalmente Romana discordam dos argumentos de Tião que continua furioso e
ameaçando Braúlio. Este enaltece a coragem e a liderança de Otávio, afirmando que se não fosse
ele a greve teria gorado.
Sabendo que Otávio fora preso e levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social),
Romana resolve depressa ir até lá soltar o marido antes que ele comece a apanhar.
QUADRO II
Segunda-feira à noite. João e Tião comentam os acontecimentos. João, irmão de Maria, entende
a atitude de Tião, continua seu amigo, mas avisa-lhe que todo o pessoal da comunidade está contra
ele, desprezando-o, chamando-o de covarde para baixo, alguns até planejavam agarrá-lo para dar-
lhe uma surra. Tião será isolado, não tem mais ambiente na favela, é um peixe fora d’água. João
aconselha-o a ir embora porque as coisas vão ficar muito difíceis, principalmente entre ele e o pai.
Maria entra, avisa que Otávio fora liberado, já vinha subindo o morro festejando por todos e
aconselha Tião a não encontrar-se com o pai. Otávio, mais que os outros, levara um golpe duríssimo
com o que Tião fizera e estava furioso e decepcionado com o filho.
Maria, em conversa com o irmão, percebe que terá que decidir se vai ou não embora da favela
com o noivo. No meio da algazarra e da festa para Otávio, entra Tião. Faz-se um silêncio de morte.
Tião quer conversar com o pai. Otávio manda todos se retirem.
Otávio se declara culpado por não ter educado o filho com mais firmeza, mas Tião não concorda
e afirma que fizera tudo aquilo por amor à mulher e ao filho que está para nascer.
Em seguida, Tião despede-se carinhosamente da mãe, que o repreende indiretamente pelo que
fez, preocupada com o futuro dele: Tu vai vê que é melhó passa fome no meio de amigo, do que
passa fome no meio de estranho!... Dá um abraço! Vai com Deus! E deixa o endereço daqui no bolso,
qualquer coisa a gente sabe logo!
A conversa com Maria é tensa e triste, mesmo com a promessa de voltar logo para buscá-la. Ela
não aceita se todos não forem junto. Ele vai embora
O samba de Juvêncio está tocando na rádio com o nome de outro cara. Romana chora
mansamente. Depois de alguns instantes, vai até a mesa e começa a separar o feijão. Funga e enxuga
os olhos...

PROSA SOCIAL DA TERCEIRA GERAÇÃO – QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA


FAVELADA - 1960 (CAROLINA MARIA DE JESUS)
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento-MG, em 1914, filha de negros que migraram para a
cidade no início das atividades pecuárias na região. Oriunda de família muito humilde, a autora
estudou pouco. No início de 1923, foi matriculada no colégio Allan Kardec – primeira escola espírita
do Brasil –, na qual crianças pobres eram mantidas por pessoas influentes da sociedade. Lá estudou
por dois anos, sustentada pela Sra. Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina
trabalhava como lavadeira.
Mudou-se para São Paulo em 1947, quando a cidade iniciava seu processo de modernização e
assistia ao surgimento das primeiras favelas. Carolina e seus três filhos – João José de Jesus, José
Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus Lima – residiram por um bom tempo na favela do Canindé.
Sozinha, vivia de catar papéis, ferros e outros materiais recicláveis nas ruas da cidade, vindo desse
ofício a sua única fonte de renda. Leitora voraz de livros e de tudo o que lhe caía nas mãos, logo
tomou o hábito de escrever. E assim iniciou sua trajetória de memorialista passando a registrar o
cotidiano do “quarto de despejo” da capital nos cadernos que recolhia do lixo e que se
transformariam mais tarde nos “diários de uma favelada”.
A escritora foi "descoberta" pelo jornalista Audálio Dantas, na década de 1950. Carolina estava em
uma praça vizinha à comunidade,
quando percebeu que alguns 1 de novembro de 1958
Dêixei o lêito as 5 e 44. E fui carregar água. Não havia fila.
adultos estavam destruindo os Mandei o João comprar 10 de pão e Fiz café. O João e o José Carlos sairam
brinquedos ali instalados para as comigo. Fui no Frigorifico Incapre pegar os ossos. Depôis fui na Pedacha. Não
crianças. Sem pensar, ameaçou ganhei porque já havia acabado. Depôis fui no deposito de ferro vender uns
denunciar os infratores, fazendo ferros. Ganhei 23. Passei na padaria guine a Dona Madalena deu-me bananas pão
docê 15 paes docê. Pedaços de queijo presunto, e salame. Fiquei contente. Achei
deles personagens do seu livro de um saco de fuba no lixo e trouxe para dar ao porco. Eu ja estou tao habituada
memórias. Ao presenciar a cena, o com as latas de lixo que não sei passar por elas sem ver o que ha dentro.
jovem jornalista iniciou um diálogo Hoje eu não fui catar papel porquê sei que não vou encontrar nada. Tem um
velho que circula na minha frente. Hontem eu li aque fabula da rã e a vaca
com a mulher negra e favelada que Tenho a impressão que sou rã. Que queria crescer ate ficar do tamanho da vaca
possuía inúmeros cadernos nos – Eu desêjei varios empregos. Não acêitaram-me por causa da minha linguagem
quais narrava o drama de sua poetica. porisso eu não gosto de conversar com ninguém.
Hoje eu fu pidir esmola.
indigência e o dia a dia do Canindé.
Dantas de imediato se interessou
pelo “fenômeno” que tinha em mãos e se comprometeu em reunir e divulgar o material. A
publicação de “Quarto de despejo” deu-se em 1960, tendo o livro uma vendagem recorde de trinta
mil exemplares, na primeira edição, chegando ao total de cem mil exemplares vendidos, na segunda
e terceira edições. Além disso, foi traduzido para treze idiomas e distribuído em mais de quarenta
países. A publicação e a tiragem dos exemplares demonstram o interesse do público e da mídia pela
narrativa de denúncia, tão em voga nos anos 50 e 60. Carolina publicou ainda mais três livros: Casa
de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963). O volume Diário de Bitita (1982),
publicação póstuma também oriunda de manuscritos em poder da autora, foi editado
primeiramente em Paris, com o título Journal de Bitita, que teria recebido, a princípio, o título
de Um Brasil para brasileiros.
Em 13 de fevereiro de 1977, a autora faleceu em um pequeno sítio, na periferia de São Paulo,
quase esquecida pelo público e pela imprensa.
A obra
Quarto de despejo; diário de uma favelada (1960) é uma edição dos cadernos/diários de Carolina
Maria de Jesus. Como moradora da Favela do Canindé, ela relata a amarga realidade das/dos
faveladas/os no final da década de cinquenta. É nessa década, conhecida como “anos dourados”,
que a encontramos sofrendo a sina dos pobres e desvalidos. Percebe-se no estilo de Carolina a
linguagem das pessoas simples e com pouco estudo, mas que têm muito o que mostrar sobre suas
condições socioeconômicas.
Carolina catava papel para sobreviver, enquanto escrevia um diário. Faltava-lhe o feijão, faltava-
lhe o pão, mas não lhe faltavam palavras para jogar nas folhas de papel. Quando alguém perguntava
por que escrevia, a autora dizia que nos momentos em que não tinha nada para comer, ao invés de
xingar, ela escrevia. Também gostava muito de ler e relatava que, ao ler, o indivíduo adquiria boas
maneiras e isso formava o seu caráter.
Impulsionada pela leitura, Carolina percebeu que a sua vida poderia ser diferente, afinal, com
uma infância sofrida, ela poderia ter se rendido a uma vida marginal, uma vez que vivia rodeada de
exemplos que poderiam desviá-la para caminhos tortuosos.
A vida na favela era feita de muita luta, escrever o diário servia como forma de desabafo.
Contudo, Carolina sentia e queria que um dia sua história fosse ouvida, porque precisava denunciar
a “falta de tudo” que aqueles moradores tinham. Ao pensar no nome para o diário acaba criando
um novo sentido para a palavra favela. Quarto de despejo; diário de uma favelada recebe este nome
porque, segundo a autora, “em mil novecentos e quarenta e oito, quando começaram a demolir as
casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas,
fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela
é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres somos os trastes velhos.”
Fique atento: o livro Quarto de despejo pertence a uma vertente literária chamada de Literatura
Marginal, pois foge dos padrões clássicos de literatura, porém entende-se que por ser uma escrita
simples, com um linguajar que se aproxima da oralidade das/os alunas/os, pode contribuir para a
identificação da/o jovem com a sua realidade e com isso tornar o conteúdo social da obra mais
significativo.
A autora tenta expressar diversas vezes sua realidade marginal, reafirmando sua dura batalha
diária para conquista do dinheiro para comprar comida. A fome e a violência são vivenciados quase
que diariamente por Carolina. Com relação à fome, a autora chega a escrever no dia 22 de junho
que tem medo de morrer de fome.
A violência é frequente na favela, chega a aparecer no ato de escrita da autora por diversas vezes,
como por exemplo nesta passagem quando diz: “O que aborrece-me é elas vir na minha porta
perturbar a minha escassa tranquilidade interior [...] Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo.”
A violência é muitas vezes causada pelo álcool. Carolina não bebe, diz que beber é um gasto
desnecessário, que o vício no álcool gera violência e que prefere gastar seu dinheiro, conseguido
com tanto esforço, comprando alimentos para seus filhos. Pais e mães bebiam na favela, o que
acabava por causar mal aos seus filhos diretamente e indiretamente. Veja este relato: “Assustei
quando ouvi meus filhos gritar. Conheci a voz de Vera. Vim ver o que havia. Era Joãozinho, filho da
Deolinda, que estava com um chicote na mão e atirando pedra nas crianças. Corri e arrebatei-lhe o
chicote das mãos. Senti o cheiro de alcool. Pensei: ele está bêbado porque ele nunca fez isto. Um
menino de nove anos. O padrasto bebe, a mãe bebe e a avó bebe. E ele é quem vai comprar pinga.
E vem bebendo pelo caminho.
Quando chega, a mãe pergunta admirada:
— Só isto? Como os negociantes são ladrões!”
Como podemos observar no trecho acima, um menino de 9 anos, já é influenciado
pelo costume de seus familiares, isto é, desde cedo bebe pinga e já pratica atos de violência, algo
extremamente recorrente na favela, e ninguém se dá conta (ou não se importa), a não ser ela,
Carolina. Esta costumava sempre separar brigas na favela ou chamar a polícia, e por essa razão era
chamada de intrometida pelos vizinhos. Ela detestava violência e não queria aquelas cenas violentas
na favela, cenas que as crianças viam e aplaudiam. Contudo, a violência em Canindé era pública,
uma espécie de espetáculo ao ar livre que todos paravam para assistir.
“… Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu
sou sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo
isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguem. Para concluir, eu não
bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool.
Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer:
– Muito bem, Carolina!”
A moradora do Canindé dizia que não queria se casar, que preferia criar seus filhos sozinha, que
não precisava de homem para criá-los. Além disso, fazia uma comparação com as mulheres da favela
que apanhavam de seus homens/maridos: do quê adiantava não ser sozinha e apanhar de um
homem (principalmente quando bebem)?
Durante o período do diário, passam pela vida da escritora dois homens: Manoel e Raimundo.
Manoel um homem distinto, trabalhador e que insiste em casar com ela. Raimundo, um cigano, belo
e sedutor. Mas Carolina não fica com nenhum dos dois, tem alguns envolvimentos, nada além.
Sempre quis ficar sozinha, não queria um homem na casa em que vivia com seus filhos.
Questões políticas e sociais
A escritora sempre lia revistas e jornais, procurava sempre estar a par das questões políticas e
sociais do país. Lembrando que em 1950 vivia-se no governo Juscelino Kubitschek (1955-1960),
época do progresso, da expansão do país, período do “50 anos em 5”. Nesta época, Brasília era
construída, o símbolo do desenvolvimento do Brasil, que representava a ideologia da época.
E realmente foi um período de desenvolvimento no que fiz respeito a infraestrutura do país:
grandes obras foram construídas; avenidas foram alargadas; pontes foram construídas; túneis
foram feitos – tudo isto aumentou ainda mais a circulação de automóveis.
Em sua narrativa, Carolina dá um tom de sensibilidade ética no que diz respeito à política. Falava
das condições de vida das pessoas pobres, falava da miséria, da fome, da falta de educação e
instrução, da divisão de classes, exclusão social e ideologia da época. Carolina comparava a cidade
como uma espécie de sala de visitas e favela, por sua vez, era o quarto de despejo: “… as oito e meia
da noite eu ja estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre.
Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais,
seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenha a impressão que sou
um objeto fora do uso, digno de estar num quarto de despejo”.
Se de um lado o país crescia, sobretudo a cidade de São Paulo, por outro mais pessoas iam para
os quartos de despejo, repletos de miséria e violência. O motivo é: o governo e as grandes empresas,
visando o progresso e o lucro, tomavam conta das terras onde havia as favelas, o que gerava ainda
mais despejos, ainda mais exclusão social.

PROSA INTROSPECTIVA DA TERCEIRA GERAÇÃO MODERNISTA – A LEGIÃO ESTRANGEIRA


– 1964 (CLARICE LISPECTOR)
Clarice nasceu em Tchelchenik, na Ucrânia, em 1920. Chegou ao Brasil com os pais e as duas
irmãs aos dois meses de idade, instalando-se em Recife. A infância foi envolta em sérias dificuldades
financeiras. A mãe morreu quando ela tinha nove anos de idade. A família então se transferiu para
o Rio de Janeiro, onde Clarice começou a trabalhar como professora particular de português. A
relação professor/aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra - desde o
primeiro romance: Perto do Coração Selvagem. Estudou Direito por contingências econômicas, mas
em seguida, começou a trabalhar na Agência Nacional, como redatora.
No jornalismo, conheceu e se aproximou de escritores e jornalistas como Antônio Callado, Hélio
Pelegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines e Rubem Braga. Os passos
seguintes foram o jornal A Noite e o início do livro Perto do Coração Selvagem - segundo ela, um
processo cercado pela angústia. O romance a perseguia. As ideias surgiam a qualquer hora e em
qualquer lugar. Nascia aí uma das características do seu método de escrita - anotar as ideias a
qualquer hora, em qualquer pedaço de papel.
Em 1943, conheceu e casou-se com Maury Gurgel Valente, futuro diplomata. O casamento durou
15 anos. Dele nasceram Pedro e Paulo. No ano seguinte, ela publicou Perto do Coração Selvagem.
Em plena Segunda Guerra Mundial, o casal foi para a Europa. Perto do Coração Selvagem desnorteia
a crítica literária. Há os que pretendem não compreender o romance, os que procuram influências
- de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido - e ainda os que invocavam o
temperamento feminino. Em 1944, viajou para Nápoles, onde serviu num hospital durante os
últimos meses da Segunda Guerra. Depois de uma longa estada na Suíça e nos Estados Unidos,
voltou a morar no Rio de Janeiro.
Clarice Lispector, ao longo de toda a vida, nunca se desvinculou totalmente do jornalismo.
Trabalhou na Agência Nacional e nos jornais A Noite e Diário da Noite. Foi colunista do Correio da
Manhã e realizou diversas entrevistas para a revista Manchete. A autora também foi cronista do
Jornal do Brasil. Produzidos entre 1967 e 1973, esses textos estão reunidos no volume A Descoberta
do Mundo. Sobre Clarice, escreve a crítica francesa Hélène Cixous: "Se Kafka fosse mulher. Se Rilke
fosse uma brasileira judia nascida na Ucrânia. Se Rimbaud tivesse sido mãe, se tivesse chegado aos
cinquenta. (...). É nessa ambiência que Clarice Lispector escreve. Lá onde respiram as obras mais
exigentes, ela avança. Lá, mais à frente, onde o filósofo perde fôlego, ela continua, mais longe ainda,
mais longe do que todo o saber".
Características de sua produção literária:
Sondagem dos mecanismos mais profundos da mente humana; técnica “impressionista” de
apreensão dessa realidade interior (predominância de impressões, de sensações); ruptura com a
sequência linear da narrativa; predomínio do tempo psicológico e, portanto, subversão do tempo
cronológico; as ações passam a ter importância secundária, servindo principalmente como
ilustração de características psicológicas das personagens (introspecção psicológica); técnica do
fluxo da consciência - quebra os limites espaço-temporais e o conceito de verossimilhança,
fundindo presente e passado, realidade e desejo na mente dos personagens, cruzando vários eixos
e planos narrativos sem ordem ou lógica aparente; presença da epifania (“revelação”):
aparentemente equilibradas e bem ajustadas, subitamente as personagens sentem um
estranhamento frente a um fato banal da realidade. Nesse momento, mergulham num fluxo de
consciência, do qual emergem sentindo-se diferentes em relação a si mesmas e ao mundo que as
rodeia; esse desequilíbrio momentâneo por certo mudará sua vida definitivamente; suas principais
personagens são mulheres, mas não se limitam ao espaço do ambiente familiar: Clarice visa a atingir
valores essenciais humanos e universais tais como a falsidade das relações humanas, o jogo das
aparências, o esvaziamento do mundo familiar, as carências afetivas e as inseguranças delas
decorrentes, a alienação, a condição da mulher, a coexistência dos contrastes, das ambiguidades,
das contradições do ser, num processo meio “barroco”; fusão de prosa e poesia, com emprego de
figuras de linguagem: metáforas, antíteses (eu x não-eu, ser x não ser), paradoxos, símbolos e
alegorias, aliterações e sinestesias; uso de metalinguagem - “Algumas pessoas cosem para fora; eu
coso para dentro”- em associação com os processos intimistas e psicológicos, político-sociais,
filosóficos e existenciais (A Hora da Estrela, 1977).
Obras
Romances: Perto do Coração Selvagem (1944); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); A Maçã no
Escuro (1961); A Paixão segundo G. H. (1964); Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969);
Água Viva (1973); A Hora da Estrela (1977).
Contos: Alguns Contos (1952); Laços de Família (1960); A Legião Estrangeira (1964); Felicidade
Clandestina (1971), Imitação da Rosa (1973), A Via-Crúcis do Corpo (1974); A Bela e a Fera (1979).
Literatura infantil: Mistério do Coelhinho Pensante (1967); A Mulher que Matou os Peixes (1969); A
Vida Íntima de Laura (1974), Quase de Verdade (1978).

A Legião Estrangeira (1964)


Nos 13 contos de A legião estrangeira (todos narrados em tempo Pretérito Imperfeito dando a
sensação de que poderia ter acontecido para um e para todos, pois se não pertence a tempo
nenhum, não há tempo), com sua primeira edição datada de 1964, Clarice Lispector aborda o
cotidiano familiar, a perversidade/descoberta infantil e a solidão e o abandono. Como apontou o
escritor Affonso Romano de Sant’Anna na introdução de uma antiga edição do livro, para Clarice
Lispector importa mais a geografia interior. "Ao invés de tipos épicos e dramáticos, temos figuras
situadas numa aura de mistério, vivendo relações profundas dentro do mais ordinário cotidiano",
escreveu. "Mais do que as aventuras, interessa-se por descrever a solidão dos homens diante dos
animais e objetos."
Entre os contos destaca-se “Viagem a Petrópolis”, escrito quando Clarice tinha apenas 14 anos.
Neste, a precoce escritora narra a absurda solidão de uma velhinha que, sem lugar para morar, é
empurrada de uma casa para outra. E o leitor perceberá em Os desastres de Sofia uma história de
transparente sensibilidade, em que a autora aborda a perversidade infantil por meio do
relacionamento de uma aluna com seu professor. Mensagem fala sobre dois estudantes, que
tentam não se ver como homem e mulher. Só quando ela vai embora é que o rapaz percebe que já
é um homem e vê a colega como uma mulher.
A vulnerabilidade dos animais diante dos homens, e vice-versa, está presente em A quinta
história, Macacos e ainda em A legião estrangeira. Como também apontou Affonso Romano de
Sant’Anna, a tensão nos contos de Clarice surge da oposição Eu X Outro, que pode ser um animal,
uma criança ou uma coisa. "Dessa tensão é que surge a epifania, a revelação de certa verdade."
Contos: Enredo mínimo
Os desastres de Sofia (1ª pessoa) – A narradora gostava de seu professor de português, mas
incomodava-o como forma de chamar sua atenção. Um dia ele pediu para que a sala escrevesse
uma redação e a narradora diz que terminou rapidamente a fim de ir para o intervalo. Como havia
esquecido algo em sala, voltou e viu o professor corrigindo as redações. Ele disse que havia gostado
do texto dela e que a redação o havia intrigado. Ela sentiu-se desestabilizada com a revelação dele,
mas talvez tenha sido isso que motivou a narradora (Clarice?) a escrever. A transformação atinge a
ambos com inesperada violência. Enquanto a menina, num ‘insight’ precoce, percebe a sua missão
no mundo como escritora, “Mas se antes eu já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com
que se nasce e com que se rói a vida – só naquele instante de mel e flores descobri de que modo eu
curava: quem me amasse, assim eu curaria quem sofresse de mim”, o professor se revela
desamparadamente feliz “como um menino que dorme com os sapatos novos”
A repartição dos pães (1ª pessoa) – A narradora diz que teve que ir a contragosto a um almoço “de
sábado” e ninguém queria estar ali, No entanto a anfitriã preparou uma mesa tão farta e tão especial
que isso tornou todos, automaticamente, ligados, como se fosse algo religioso, como realmente
seria uma refeição especial, tanto é que ela termina com a frase: “Pão é amor entre estranhos”.
A mensagem (3ª pessoa) – Um rapaz e uma moça se aproximam, justamente por se acharem
diferentes de todo o resto das pessoas. Os dói têm uma sensação que lhes é comum: uma espécie
de angústia. Os dois compartilham segredos e essa sensação que os irmana, até o dia em que se
encontram em frente a uma casa velha e têm a epifania de se verem – pela primeira vez – como
homem e mulher. Isso acaba com a relação que se fez entre os dois e eles seguem caminhos
diferentes a partis daquele momento:
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse divertido: "será possível que
mulher possa realmente saber o que é angústia?" E a dúvida fez com que ele se sentisse muito forte.
"Não, mulher servia mesmo era para outra coisa, isso não se podia negar." E era de um amigo que
ele precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então limpo e franco, sem nada a esconder, leal
como um homem. De qualquer tremor de terra, ele saía com um movimento livre para a frente,
com a mesma orgulhosa inconsequência que faz o cavalo relinchar. Enquanto ela saiu costeando a
parede como uma intrusa, já quase mãe dos filhos que um dia teria, o corpo pressentindo a
submissão, corpo sagrado e impuro a carregar. O rapaz olhou-a, espantado de ter sido ludibriado
pela moça tanto tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que acabavam de crescer. Sou
homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De cada luta ou repouso, ele saía mais homem, ser
homem se alimentava mesmo daquele vento que agora arrastava poeira pelas ruas do Cemitério
São João Batista. O mesmo vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse
ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua nudez, esse vento das ruas.
O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com olhos pornográficos e curiosos que não pouparam
nenhum detalhe humilde da moça. A moça que de súbito pôs-se a correr desesperadamente para
não perder o ônibus...
Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como uma doida para não perder o ônibus,
intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco de saia curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...”
Macacos (1ª pessoa) – A narradora lembra que um dia ganhou um macacão e deu-o para uns
meninos. Mais tarde comprou um pequeno mico fêmea a quem deu o nome de Lisette. Mas a
pequena Lisette não sobreviveu muito tempo. O filho da narradora disse que ela (a narradora)
parecia com a Lisette e ela respondeu que também o amava.
O ovo e a galinha – Conto/crônica/catarse... O Ovo e a galinha é um dos grandes nós da Literatura
Brasileira. A prória autora diz não saber o que ele significa ou quer dizer. A dona de casa se depara
com um ovo na cesta sobre a mesa e faz uma verdadeira “viagem” sobre a fragilidade, o significado
e a função da vida. Como um algo tão frágil e tão puro pode ser a “semente” de uma nova vida, com
sua insignificância? Como um ovo pode dar origem a um ser, que dá origem a outro ser e assim
sucessivamente. Por quê disso tudo? Qual a função dessa coisa toda chamada vida?
Tentação (3ª pessoa) - Esse conto apresenta um enredo aparentemente banal: é a história de uma
menina ruiva que, num dia de muito sol, está com soluções e se encontra sentada na porta de sua
casa, segurando uma bolsa velha, quando, de repente, aparece um basset, também ruivo, com sua
dona. Os dois – a menina e o basset – olham-se detidamente, enamoram-se profundamente e, logo
depois, o cãozinho segue seu caminho, sem olhar para trás, “nem uma só vez”.
Viagem a Petrópolis (3ª pessoa) - Uma senhora chamada Margarida, viúva e com os filhos já tendo
morrido, vinda do Maranhão, mora “de favor” com uma família no Rio de Janeiro. Um dia a família
resolve levar Mocinha para um parente em Petrópolis (para abandoná-la lá. Na noite que antecede
a viagem, Mocinha não consegue dormir de ansiedade (não sabe que será “abandonada”) e sonha
com o passado. É deixada na casa de Arnaldo, que não a aceita, dá dinheiro e manda que volte para
a casa da mãe. Ela sai andando a esmo, encosta-se no tronco de uma árvore para descansar e morre.
A solução (3ª pessoa) - Almira e Alice trabalham juntas. A primeira é gorda e se esforça para ser
amiga de Alice, que é magra. Tentava sempre bajular a “amiga” magra que, calada, suportava a sua
presença. Até que num desses dias de trabalho, Almira chegando à empresa, topa com a mesa de
sua companheira vazia. Uma hora depois chega Alice, abatida e com os olhos vermelhos... As duas
saem para conversar e Almira quer saber o que aconteceu com Alice. Esta se exaspera e xinga a
amiga de gorda intrometida. Almira enfia o garfo no pescoço de Alice.
Evolução de uma miopia (3ª pessoa) – A história de um menino que queria parecer inteligente para
toda a família. Um dia comunicam que ele irá passar um dia inteiro na casa de uma prima mais velha.
A ansiedade é enorme e ele fica imaginando como será este dia, em que ele será o objeto de atenção
desta mulher. O menino só não contava com um, porém: a prima tinha um dente de ouro e isso
tirou-o do equilíbrio que tão duramente ele tinha construído nas semanas anteriores...e pior, a
prima não deu a atenção que ele esperava e deixou-o brincar como uma criança “normal” que era:
no quintal. Pela primeira vez na vida pode ser realmente o que era: um menino. Essa descoberta fez
com que ele passasse a ter um novo comportamento em face da sua miopia: “Lá pelas tantas,
limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da inteligência e fez uma observação
sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito
observador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu em resposta um "pois é", entre
vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar
de "não ser julgado": por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta
num safanão de liberdade.(...)”
A quinta história (1ª pessoa) - Este conto descreve com muito humor e certa dose de suspense,
experiências sobre o extermínio de baratas. Relata uma história, a de como matar baratas, em cinco
versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de narrar um fato, o que incluir, o
que excluir, e como um mesmo fato pode originar histórias muito diferentes.
“A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-
me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha
e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz.
Morreram.
A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de
baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que
só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo
e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se
tornaram minhas também.(...)
A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de
baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda
sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E
na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras:
dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora.
Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais.(...)
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai
até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por
onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então
renovar todas as noites o açúcar letal? - como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas
as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? - no vício de ir ao encontro das estátuas
que minha noite suada erguia.(...)
A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim:
queixei-me de baratas...”
Uma amizade sincera (1ª pessoa) – Dois rapazes (um de São Paulo e outro do Piauí) se conhecem
no último ano de escola e resolvem morar juntos. Aos poucos a relação começa a ficar monótona,
uma solidão a dois. As coisas melhoram um pouco quando um deles tem um problema com a
prefeitura e o outro o ajuda a resolver. Resolvida a questão com a Prefeitura, os dois arrumaram
falsas justificativas de viajarem sós para estar com as respectivas famílias. Sabiam que nunca mais
se reveriam. “Mais que isso", conclui o narrador, "que não queríamos nos rever. E sabíamos também
que éramos amigos. Amigos sinceros.”
Os Obedientes (3ª pessoa) – Um casal vive junto há anos, ela imaginando alguém que a salve do
casamento monótono e ele imaginando aventuras amorosas. Após os 50 anos a mulher – ao comer
uma maçã – tem um dente quebrado. Olha-se no espelho e pula do prédio. O marido continuou
existindo; “seco inesperadamente o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com
uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.”
A legião estrangeira (1ª pessoa/flashback) – Ao ver um pintinho em sua casa, narradora lembra-se
de uma menina que vinha às tardes à sua casa e se chamava Ofélia. Era uma menina um tanto
autoritária e cheia de razão sobre todos os assuntos e aquilo incomodava a narradora, pois a menina
parecia muito mais madura do que a narradora. Um dia, porém, a narradora comprou um pintinho
e Ofélia apareceu na sua casa. ao ouvir o piado, Ofélia fica atônita e perde seu equilíbrio tradicional.
A narradora percebe que Ofélia voltou a ser o que era: uma criança. Ela pede para ir brincar com o
pintinho e a narradora deixa. Um tempo depois a narradora diz que Ofélia foi embora sem se
despedir e ela não ouviu mais o pintinho, ao procurá-lo, encontrou-o morto (pela menina). A
narradora disse que teve vontade de dizer a ela que também é possível matar por amor.

ROMANCE CONTEMPORÂNEO – DOIS IRMÃOS – 2000 (MILTON HATOUM)


Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus, onde passou a infância e uma parte da juventude.
Em 1967 mudou-se para Brasília, onde estudou no Colégio de Aplicação da UnB. Morou durante a
década de 1970 em São Paulo, onde se diplomou em arquitetura na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP, trabalhou como jornalista cultural e foi professor universitário de História da
Arquitetura. Em 1980 viajou como bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona.
Depois passou três anos em Paris, onde estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III).
Autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em dez línguas e publicada em
catorze países. Foi professor de literatura francesa da Universidade Federal do Amazonas e
professor visitante da Universidade da California.
Em 1989 seu primeiro romance (Relato de um certo Oriente), ganhou o prêmio Jabuti de melhor
romance. Em 2000 publicou o romance Dois irmãos (prêmio Jabuti – 3º lugar na categoria romance),
eleito o melhor romance brasileiro no período 1990-2005 em pesquisa feita pelos jornais Correio
Braziliense e O Estado de Minas. Em 2005, seu terceiro romance (Cinzas do Norte), obteve
cinco prêmios: Prêmio Portugal Telecom, Grande Prêmio da Crítica/APCA-2005, Prêmio Jabuti/2006
de Melhor romance, Prêmio Livro do Ano da CBL, Prêmio BRAVO! de literatura).
Em 2008 publicou seu quarto romance (Órfãos do Eldorado), prêmio Jabuti – 2º lugar na categoria
romance. Em 2009 publicou o livro de contos A cidade ilhada. Sua obra já foi traduzida em 12
línguas e publicada em 14 países. Desde 1998 mora em São Paulo.
A obra
No livro Dois Irmãos, Milton Hatoum retoma os temas do drama familiar e da casa/família que se
desfaz. O enredo tem como centro a história de dois irmãos gêmeos - Yaqub e Omar - e suas relações
com a mãe, o pai e a irmã.
O romance cobre um período que vai da década de 1910 até os anos 1960, em uma Manaus que
vai se modernizando, progredindo social e tecnologicamente, ao passo em que a família vai se
desintegrando, caminhando vagarosa e indelevelmente para uma decadência que não encontra
caminho de retorno, como também é impossível estancar o progresso que toma conta da cidade
amazonense.
Tal jogo de contradições se mostra uma boa maneira de contar o drama que toma conta das vidas
dos gêmeos, Rânia, sua irmã, e os pais, Halim e Zana. O narrador, parte (ao mesmo tempo, excluído)
da família, narra todo o drama familiar buscando, na realidade, a identidade de seu pai. Por isso a
sua narrativa em verdade se mostra como uma busca, um exercício de reconstituição do passado
que não será possível sem uma observação criteriosa e de julgamento daquela família cujas
características parecem sob encomenda para uma vida repleta de percalços no sofrimento e na
angústia.
Assim, o narrador nos apresenta sem hesitar, ainda que os personagens existam para nós sob o
viés comprometido do seu olhar amargurado, os protagonistas de tal drama familiar: Halim, um
imigrante Libanês e pai omisso, desde o princípio, apaixonado pela mulher Zana, com quem não
queria filhos para viver a plenitude de uma paixão que o atormenta e lhe faz odiar o filho Omar, o
gêmeo mimado doentiamente pela mãe. Zana, a mãe que protege Omar, o “caçula”, personagem
que vive uma vida entregue somente aos prazeres e às irresponsabilidades, o que o torna cada vez
mais capaz de atrocidades e crises ilimitadas de ciúmes e egoísmo para com o irmão Yaqub,
introvertido e passivo, relegado pela mãe por não ter nascido tão “fraco e necessitado de tantos
cuidados” quanto seu irmão. Yaqub, no entanto, é o único a alçar vôos tão altos quanto o progresso
que se instala em Manaus, o que o faz, depois do retorno do Líbano, rumar para São Paulo, tentando
se livrar das amarras de ódio que o prendem a Omar.
Tentando atar estes nós, fingindo não ver o quanto são irreconciliáveis, está a filha caçula, Rânia,
cujas relações com os irmãos se apresenta em um crescendo de estranheza que nos insunua a
possibilidade de incesto, antes da total reclusão e negação a quaisquer pretendentes, vendo
somente os irmãos, juntos, como partes separadas de um “homem ideal” (desta maneira, Rânia
pode ser comparada com a personagem Flora Batista de “Esaú e Jacó”. No entanto aqui, Rânia não
é o objeto de disputa amorosa dos dois irmãos, como Flora é no livro de Machado. É só que, da
mesma maneira que Flora, Rânia por vezes parece delirar que os gêmeos se fundam em uma única
pessoa, como se um sem o outro não faça sentido.).
A outra personagem destacada do livro é Domingas, a empregada da casa, menina índia que não
pode fazer escolhas e cresce naquele cenário, agregando-se a família, sem outro destino que não
envolver-se por (e com) eles Quando o romance de Hatoum se faz tão cheio de dramas, de
desavenças, de carnalidade, tal qual o narrador nos demonstra, é no não-dito que parece repousar
a verdade, as razões que fizeram a família caminhar para tal degradação; é no não-dito que se apega
o narrador a fim de centrar-se na casa, uma vez tão corroído por dúvida e por amargura, para
encontrar-se ele mesmo, confiando somente em sua memória para buscar a verdade onde ela não
parece querer ser encontrada.
Nael - o filho da empregada - narra, trinta anos depois, os dramas que lhe foram contados e os
que testemunhou. Buscando a identidade de seu pai ele tenta remontar os ‘cacos do passado’, ora
como testemunha, ora como quem ouviu e guardou, mudo, as histórias dos outros. Do seu canto,
ele vê personagens que se entregam ao incesto, à vingança, à paixão desmesurada. O lugar da
família se estende ao espaço de Manaus, o porto à margem do rio Negro: a cidade e o rio, metáforas
das ruínas e da passagem do tempo, acompanham o andamento do drama familiar.
Este narrador aposta nos fatos que lhe vem à memória, ainda que não com absoluta precisão,
como é comum nas lembranças que afloram em detalhes desordenados e acabam resultando na
criação de cenas do passado não passível de total confiança (impressões que ele formou a partir de
relatos e de experiências). Por isso as narrativas se tornam circulares, elípticas. Sem qualquer pudor
em contar as memórias de um passado não muito claro, o narrador acaba retornando muitas vezes
à narrativa de um mesmo fato para tentar jogar mais luz sobre ele. Este é, aliás, o exercício ao qual
o narrador se propõe: voltar sua memória quantas vezes forem necessárias às lembranças não-
precisas, a fim de extrair o máximo possível de detalhes destituído de emoções, de vislumbres
irregulares que as primeiras análises lhe tinha oferecido
Da mesma maneira que Machado de Assis em “Esaú e Jacó” – que, aliás, Milton Hatoum em
oficina ministrada em Parati confessou ter utilizado como “romance base” –, o autor centra seu
drama na história dos dois irmãos gêmeos, descendentes de imigrantes libaneses, desde a infância
irreconciliáveis.

POESIA CONTEMPORÂNEA – A PALAVRA ALGO – 2016 (LUCI COLLIN)


Nascida em Curitiba, PR, em 1964, filha de mãe professora. Graduou-se no
Curso Superior de Piano/Performance (Escola de Música e Belas Artes do
Paraná, 1985), no Curso de Letras português/inglês (Universidade Federal do
Paraná, 1989), e no Bacharelado em Percussão clássica (Escola de Música e
Belas Artes do Paraná, 1990). Concluiu o Mestrado em Letras/Literaturas de
Língua Inglesa na UFPR (1993) com a dissertação "The quest motif in Snyder's
The Back Country", o Doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês na Universidade de São Paulo (2003) com a tese "A composição em
movimento: a dinâmica temporal e visual nos retratos literários de Gertrude Stein" e dois estágios
de Pós-doutoramento em Literatura Irlandesa na USP (2010 e 2017). É Professora Associada no
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR, onde trabalha desde 1999. É Membro da
Academia Paranaense de Letras ocupando a Cadeira n. 32.
Ao longo de mais de 30 anos de carreira, Luci Collin escreveu artigos e ensaios para diversos
jornais e revistas literárias, participou de antologias nacionais e internacionais (EUA, França,
Alemanha, México, Argentina, Peru, Uruguai), e recebeu prêmios de concursos de literatura no
Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no Projeto Literário no EXPO 2000 em Hannover, Alemanha.
Também traduziu autores como Gary Snyder, Gertrude Stein, E. E. Cummings, Eiléan Ní Chuilleanáin,
Vachel Lindsay, Jerome Rothenberg e Moya Cannon, entre outros.
Obras: Estarrecer (1984, editora Astarte); Espelhar (1991, editora SEEC); Esvazio (1991, editora Do
Autor); Ondas Azuis (1992, editora Do Autor); Poesia Reunida (1996, editora Alcance); Lição
Invisível (1997, editora SEEC); Todo Implicito (1997, editora Alcance); Precioso Impreciso (2001,
editora Ciência do Acidente); Inescritos (2004, editora Travessa dos Editores); Vozes num
Divertimento (2008,editora Travessa dos Editores); Acasos Pensados(2008, editora Kafka Edições)
e Com Que se Pode Jogar (2011, editora Kafka Edições.
CARACTERÍSTICAS MAIS MARCANTES DA AUTORA
"Luci não parodia explicitamente, mas cita diversos poetas como Fernando Pessoa, Mallarmé,
Casimiro de Abreu. Nessas citações, a poeta parece ter encontrado “a amenidade do velho e a
agitação de um menino ao repetir gestos que duplicam o pouso”. E Luci duplica o voo desses poetas.
Em “A Palavra Algo”, Autopsicografia, de Fernando Pessoa, se transforma em Deveras e assim inicia:
“O poeta finge/ e enquanto isso/ cigarras estouram/ pontes caem/ azaleias claudicam”.
"Luci se vale também de frases banais, provavelmente lidas em placas espalhadas pela cidade, e
com elas constrói o poema Orçamento Sem Compromisso, no melhor exemplo de “escrita não
criativa” contemporânea: “Compro ouro/ Cobrem-se botões/ Compro e vendo cabelo/ X-calabresa/
Porção e executivo/ Piso escorregadio”. A poeta não “se incomoda” em não ser criativa, parece
saber que, como se lê no poema Imortalha, “todos os termos foram inventados”."
Há, na poesia de Luci Collin, muito das influências da poesia concreta e da poesia marginal,
mesmo a autora não tendo participado destes movimentos. Luci é da geração dos escritores da
década de 90, portanto bem posterior aos poetas de “Campos e espaços” (décadas de 50/60) e da
Poesia “Undigrundi” (década de 70). No entanto há pontos de convergência: a metalinguagem, que
é a discussão do próprio fazer poético e de sua utilidade em um mundo cada vez mais voltado para
a tecnologia e – conseqüente – falta de inspiração e poesia; além da utilização de aspectos visuais
próprios do Concretismo.
Não se encontra em Collin a tendência ao chiste e à blague, típicos da poesia marginal, assim
como não há palavrões nem contestação político-iseológico marxista. A autora não toca nessas
questões, mas toca muito no sentido de ser e existir e nos dramas humanos. Sua poesia, portanto,
capta o que “de melhor” havia nos momentos anteriores para se tornar algo único. Contemporâneo
e universal.

Poemas escolhidos para análise (O livro é composto de 47 poemas e todos iniciam com minúsculas)
DEVERAS
o poeta finge
e enquanto isso
cigarras estouram
pontes caem
azaleia claudicam
édipos ressonam
vacinas vencem
a bolsa quebra e
o poeta finge
e enquanto isso
vagalhões explodem
o pão adoece
astros desviam-se
manadas inteiras se perdem
a noite range
o vento derruba ninhos e
o poeta finge
e enquanto isso
vozes racham
veias entopem
galeões afundam
medeias abatem crias
turvam-se as corredeiras
o sapato aperta e
o poeta finge
que as mãos cheias de súbitos
não são suas

Neste poema, o primeiro do livro, Luci usa como base o poema “Autopsicografia” de Fernando
Pessoa (poeta do primeiro modernismo português) para confessar que enquanto o “poeta finge”
sentir, amar, sofrer... O mundo continua acontecendo normalmente. Serve para
metalinguisticamente, contestar a necessidade/sentido do fazer poético e do próprio sentido da
poesia. Ao mesmo tempo em que “critica” em forma de poesia, ou seja, faz um poema para criticar
a poesia, caímos em um paradoxo: a poesia tem o dom de deixar que expressemos os nossos
sentimentos (fingidos ou não) e as nossas dúvidas (a respeito de tudo e dela própria). Leia os versos
de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é
dor/A dor que deveras sente.//E os que lêem o que escreve,/Na dor lida sentem bem,/Não as duas
que ele teve,/Mas só a que eles não têm.//E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão,/Esse
comboio de corda/Que se chama coração.”

DORMESMO (à Marina Kazumi)


dor mesmo nem tanto a incisiva
- surpresa da faca na pele –
intensa dor mas reversível
ferida que enfim cicatriza

dor mesmo é aquela miúda


dor sempre que não envelhece
lateja essa dor – a mais funda –
de um ontem que nunca se esquece

Lindo poema feito em dois quartetos usando rimas e versos medidos (octassílabos), coisa não
muito comum nos poetas modernos/contemporâneos. Segundo o eu-lírico, a dor da ferida feita com
lâmina é intensa, mas cessa (reversível). A verdadeira dor, a que nunca para de doer é aquela mais
funda, aquela que não envelhece, aquela “de um ontem que nunca se esquece”. Uma dor de algo
ocorrido m um passado que não pode ser olvidado.
LANCES
dado que nos poreja
cumprir o poema
sagrar sua sorte
de verbo em chamas
dado que nos decanta
mover o poema
provar sua forma
de fusão de rochas
dado que é sem doutrina
jogo de emblemas
ondulação das cortinas
que tudo a voragem do início
e os sons feito fosses azes
estilando
o âmago desimpedido
de um esplêndido
algo
Usando o trocadilho lance (de dados) com a palavra “dado” nos versos 1, 5 e 9, que da verdade
significa “já que”, “posto que”, o poema é metalingüístico e lembra um pouco a temática do poema
de Carlos Drummond de Andrade “A
procura da poesia” onde ele diz que o poeta precisa “penetrar no reino das palavras”. Cabe ao eu-
lírico “cumprir o poema”, fazê-lo nascer da “fusão das rochas”. Decantar o poema é a função deste
ser que se diz poeta, o trabalhador do verbo e do verso. O que dá sentido à palavra algo, ou o que
tenta dar sentido às coisas usando algumas palavras que simbolizam algo a quem quiser entendê-
las. Se assim o fizer, torna-se um esplêndido “algo”, pois que o poeta alcançou seu intento: traduziu
o intraduzível.

MEUS OITO ANOS


AURORA DA MINHA VIDA
ORA IDA
OS ANOS TRAZEM AIS

A autora contemporânea, estabelece muitas intertextualidades com autores diversos de outros


momentos da Literatura Brasileira e até internacional, como Casimiro de Abreu, Raimundo Correia,
Vinícius de Moraes e Fernando Pessoa (como vimos no primeiro poema). Neste poema “Meus oito
anos”, vemos uma relação direta entre ela e Casimiro de Abreu (poeta da 2ª geração romântica que
queria estabelecer uma evasão para a infância). No entanto, percebe-se na posição lírica da autora,
uma maior maturidade ao notar a passagem da vida do que a existente no poeta romântico que
quer voltar à infância. Luci, sabe que os anos trazem sofrimento e maturidade.
Usando a técnica concretista de dispor as palavras no branco da página de forma mais visual, Luci
“brinca” com as palavras “AURORA”, que vira ORA (tempo já passado ou uma simples exclamação?)
e “VIDA” que se transforma em IDA, algo que também já passou. Pulando um espaço onde haveria
um verso (no poema de Casimiro de Abreu seria “Da minha infância querida”), ela termina
afirmando de modo triste que os anos trazem sofrimento, ou seja, “AIS”. Leia os primeiros versos
do poema original “Meus oito anos” do “Poeta da Saudade”: Oh! que saudades que tenho/Da aurora
da minha vida,/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais!//Que amor, que sonhos,
que flores,/Naquelas tardes fagueiras/À sombra das bananeiras,/Debaixo dos laranjais!”.

INSONETO
De amor, ora direis, rever promessas
Que as chamas de uma voz não voltam mais
E sempre é de hora alguma esse momento
E nunca em face a mais meu bem secreto

Quisera revivê-lo em vão tormento


E em seu rosto esconder meu riso
Se se pudesse perder senso e siso
O meu pesar ao ver o seu espanto

Certo é que o infinito nunca dure


(Vai-se a primeira estrela descoberta)
Quem sabe a espuma o fim de quem desperta

Na fresca madrugada eu encontrasse


O amor (que tive) – eu vos direi, no entanto
Que só se ama a ilusão que nasce

Mais um magnífico trocadilho com o neologismo INSONETO (várias referências intertextuais a


sonetos famosos) e insônia. No poema “Ora (direis) ouvir estrelas!” Olavo Bilac explica que para
conversar com as estrelas ele fica a noite inteira acordado. O soneto de Luci é feito de versos
decassílabos, bem ao molde das poesias formalistas parnasianas. No entanto, num sentido mais
amplo, o poema tem significação de verso a verso.
Seguem abaixo os poemas nos quais Luci se baseou para escrever o seu INSONETO (uma dupla
referência neologística a SONETO Intertextual ou feito em um momento de INSÔNIA, uma
brincadeira com as palavras). Lendo fica mais fácil entender o que Luci quis escrever.

CICLORAMA
o infinito
daquela mulher
era um espelho
daquele animal
era um disparo
daquela menininha
era um coelho
daquele mendicante
era um retalho
daquele ancião
era um xarope
daquele temporal
era um compasso
daquele imperador
era um decálogo
daquele especialista
era um lapso
daquela meretriz
era um suspiro
daquele marinheiro
era um rio
daquele vendaval
era o abandono
daquela mulher
o infinito

Linda poesia que pode ser lida tanto de cima para baixo, como de baixo para cima (daí o título
CICLORAMA). O infinito de cada coisa que termina em uma mulher. A relação espelho (ver-
se/velhice) e abandono são pungentes. Infinito como metáfora da morte para cada uma das pessoas
referidas. O erre do especialista, o amor para a prostituta, as margens do rio para o marinheiro
acostumado a grandes espaços marítimos, as leis (decálogo) para o imperador, as regras para a
tempestade... Mas também a vida e a esperança: o coelho para a menina (Alice?), o retalho pra o
mendigo e o xarope para o idoso.

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