Eu suspeitava muito, senhora, que o cego de nascença, a quem o Sr. de Réaumur acaba de operar a
catarata, não nos ensinasse aquilo que queríeis saber; mas estava longe de adivinhar que não seria
nem culpa dele nem vossa. Solicitei o seu benfeitor por mim mesmo, por seus melhores amigos, pelos
cumprimentos que lhe fiz; não conseguimos obter nada, e o primeiro aparelho será levantado sem
vós. Pessoas da mais alta distinção tiveram a honra de partilhar esta recusa com os filósofos; em
uma palavra, ele não quis deixar cair o véu a não ser diante de alguns olhos sem consequência. Se
estais curiosa de saber por que esse hábil acadêmico fez tão secretamente experiências que não
podem ter, segundo vós, um número demasiado grande de testemunhas esclarecidas, responder-vos-ei
que as observações de um homem tão célebre necessitam menos de espectadores, quando se fazem, do
que de ouvintes, quando estão feitas. Retornei, pois, senhora, a meu primeiro desígnio, e, forçado
a privar-me de uma experiência em que não via quase nada a ganhar para a minha instrução, nem para
vossa, mas de que o Sr. de Réaumur tirará sem dúvida melhor proveito, pus-me a filosofar com meus
amigos sobre a importante matéria que constitui seu objeto. Como eu seria feliz, se o relato de um
de nossos colóquios pudesse fazer-me as vezes, junto de vós, do espetáculo que eu demasiado
levianamente vos havia prometido.
No próprio dia em que o prussiano efetuava a operação da catarata na filha de Simoneau, fomos
interrogar o cego de nascença de Puisaux: é um homem que não carece de bom senso; que muitas
pessoas conhecem; que sabe um pouco de química, e que acompanhou, com algum êxito, os cursos de
botânica no Jardim do Rei. Nasceu de um pai que professou com aplauso a filosofia na Universidade
de Paris. Desfrutava de uma fortuna honesta, com a qual teria facilmente satisfeito os sentidos
que lhe restam; mas o gosto pelo prazer arrastou-o na mocidade: abusaram de seus pendores; seus
assuntos domésticos atrapalharam-se, e ele se retirou para uma cidadezinha da província, de onde
faz todos os anos uma viagem a Paris. Traz então licores que destila, e com os quais a gente fica
muito contente. Eis, senhora, circunstâncias assaz pouco filosóficas; mas, por essa razão mesma,
são elas mais próprias para vos levar a julgar que a personagem da qual vos falo não é
absolutamente imaginária.
Chegamos à casa de nosso cego por volta das cinco horas da tarde, e encontramo-lo ocupado em fazer
o filho ler com caracteres em relevo: não havia mais de uma hora que se levantara; pois deveis
saber que o dia começa para ele quando termina para nós. Seu costume é dedicar-se a seus negócios
domésticos, e trabalhar enquanto os outros descansam. À meia-noite, nada o perturba; e ele não
constitui incômodo a ninguém. Seu primeiro cuidado é pôr no lugar tudo quanto foi posto fora do
lugar durante o dia; e quando sua mulher acorda, encontra comumente a casa arrumada de novo. A
dificuldade que os cegos têm em recuperar as coisas perdidas torna-os amigos da ordem; e eu me
apercebi que os que deles se aproximam familiarmente partilham dessa qualidade, seja por efeito do
bom exemplo que proporcionam, seja por um sentimento de humanidade que alimentam para com eles.
Como seriam infelizes os cegos sem as pequenas atenções dos que os rodeiam. Nós próprios, como
seríamos de lastimar sem elas! Os grandes serviços são como grandes peças de ouro ou de prata que
a gente raramente tem ocasião de empregar; mas as pequenas atenções são moeda corrente que se tem
sempre à mão.
Nosso cego julga muito bem quanto às simetrias. A simetria, que é talvez um problema de pura
convenção entre nós, é certamente assim, em muitos aspectos, entre um cego e os que veem. À força
de estudar pelo tato a disposição que exigimos entre as partes componentes de um todo, para chamá-
lo belo, um cego consegue efetuar justa aplicação do termo. Mas quando diz: isto é belo, ele não
julga; refere somente o julgamento dos que veem: e que outra coisa fazem três quartos daqueles que
decidem de uma peça de teatro, após ouvi-la, ou de um livro, após lê-lo? A beleza, para um cego,
não é senão uma palavra, quando separada da utilidade; e, com um órgão a menos, quanta coisa há
cuja utilidade lhe escapa! Os cegos não são realmente dignos de lástima por não considerarem belo
senão o que é bom? Quanta coisa admirável perdida para eles! O único bem que os ressarce de
semelhante perda é o de ter ideias do belo, na verdade menos extensas, porém mais nítidas que
filosóficas clarividentes que dele trataram mui extensamente.
O nosso cego fala de espelho a todo momento. Acreditais realmente que ele não sabe o que significa
a palavra espelho; entretanto, ele nunca colocará um espelho à contraluz. Ele se exprime tão
sensatamente como nós sobre as qualidades e os defeitos do órgão que lhe falta: se não liga
qualquer ideia aos termos que emprega, leva, pelo menos sobre a maioria dos outros homens, a
vantagem de jamais pronunciá-los fora de propósitos. Discorre tão bem e de maneira tão justa
acerca de tantas coisas que lhe são absolutamente desconhecidas que seu comércio tiraria muito da
força a essa indução que todos nós fazemos, sem saber por quê, daquilo que se passa em nós para
aquilo que se passa dentro dos outros.
Perguntei-lhe o que entendia por espelho: “Certa máquina, respondeu-me, que põe as coisas em
relevo longe de si mesmas, se se encontram situadas convenientemente em relação a ela. É como a
minha mão, que não preciso pousar ao lado de um objeto a fim de senti-la”. Descartes, cego de
nascença, teria que, parece-me, felicitar se com semelhante definição. Com efeito, considerai, eu
vos peço, a finura com a qual foi mister combinar certas ideias para chegar a ela. Nosso cego só
tem conhecimento dos objetos pelo tato. Sabe, pelo relato dos outros homens, que por meio da vista
se conhecem os objetos, assim como eles lhe são conhecidos pelo tato; ao menos é a única noção que
pode formar deles. Sabe, ademais, que não se pode ver o próprio rosto, conquanto se possa tocá-lo.
A vista, deve ele concluir, é portanto uma espécie de tato que se estende apenas aos objetos
diferentes de nosso rosto, e afastados de nós. Aliás, o tato lhe dá ideia apenas do relevo.
Portanto, acrescenta, um espelho é uma máquina que nos põe em relevo fora de nós mesmos. Quantos
filósofos renomados empregaram menos sutileza, para chegar a noções tão falsas! Mas quão
surpreendente deve ser um espelho para o nosso cego? Como deve ter aumentado seu espanto quando
lhe informamos que há dessas espécies máquinas que engrandecem os objetos; que outras há que, sem
os duplicar, os deslocam, os aproximam, os afastam, os fazem perceptíveis, revelando as menores
partes aos olhos dos naturalistas; que há algumas que os multiplicam milhares de vezes; que há
algumas enfim que os desfiguram totalmente? Ele nos formulou centenas de questões singulares sobre
esses fenômenos. Perguntou-nos, por exemplo, se apenas os que se chamam naturalistas é que viam
com o microscópio; e se os astrônomos eram os únicos que viam com o telescópio; se a máquina que
aumenta os objetos era maior que aquela que os apequena; se aquela que os aproxima era mais curta
que a máquina que os afasta; e não compreendo de modo algum como esse outro nós mesmos, que,
segundo ele, o espelho repete em relevo, escapa ao sentido do tato: “Eis, dizia, dois sentidos que
uma pequena máquina põe em contradição: outra máquina mais perfeita pô-los-ia talvez de acordo,
sem que, por isso, os objetos fossem nela mais reais; talvez uma terceira mais perfeita ainda, e
menos pérfida, os faria desaparecer, e nos advertiria do erro”.
E o que são, em vosso parecer, os olhos? Disse-lhe o Sr. de... “São, respondeu-lhe o cego, um
órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala sobre minha mão.” Esta resposta nos fez
cair das nuvens, e enquanto nos entreolhávamos com admiração. “Isso é tão certo, continuou, que,
quando coloco minha mão entre vossos olhos e um objeto, minha mão vos está presente, porém o
objeto vos está ausente. A mesma coisa me acontece, quando procuro uma coisa com minha bengala e
encontro outra.”
Senhora, abri a Dióptrica de Descartes, e vereis aí os fenômenos da vista referidos aos do tato, e
as pranchas de óptica cheias de figuras de homens ocupados em ver com bengalas. Descartes, e todos
os que vieram depois, não puderam nos dar ideias mais nítidas da visão; e esse grande filósofo não
teve a respeito disto mais vantagem sobre nosso cego do que as pessoas que têm olhos.
Nenhum de nós lembrou-se de interrogá-lo acerca da pintura e da escrita: mas é evidente que não há
questões às quais sua comparação não pudesse satisfazer; e não duvido de maneira nenhuma que ele
não nos dissesse que tentar ler ou ver sem ter olhos era procurar um alfinete com uma grande
bengala. Nós lhe falamos somente dessas espécies de perspectivas, que dão relevo aos objetos, e
que têm com nossos espelhos tanta analogia e tanta diferença, ao mesmo tempo; e nós nos
apercebemos que elas prejudicavam tanto quanto concorriam à ideia que formara de um espelho e que
estava tentado a crer que, pintando o espelho ou objetos, o pintor, para representá-los, pintava
quiçá um espelho.
Nós o vimos enfiar linha em agulhas muito miúdas. Poder-se-ia, senhora, pedir-vos para suspender
aqui vossa leitura e procurar saber como havíeis de vos arranjar em seu lugar? No caso de não
encontrardes expediente nenhum vou contar-vos o de nosso cego. Ele dispõe a abertura da agulha
transversalmente entre os lábios e na mesma direção que a da boca; depois, com ajuda da língua e
da sucção, atrai o fio que lhe segue o alento, a menos que seja grosso demais para a abertura mas,
neste caso, quem vê não fica menos atrapalhado do que aquele que está privado da vista.
Ele tem memória dos sons em grau surpreendente; e os rostos não nos oferecem diversidade maior do
que a que ele observa nas vozes. Elas têm para ele uma infinidade de matizes delicados que nos
escapam, porque não temos, ao observá-las, o mesmo interesse que o cego. De todos os homens que
vimos, aquele de quem menos nos lembraríamos é nós mesmos. Estudamos os rostos apenas para
reconhecer as pessoas; e se não retemos o nosso, é que nunca estaremos expostos a nos tomar por
outro, nem outro por nós. Aliás, o auxílio que nossos sentidos se prestam mutuamente os impede de
aperfeiçoar-se. Esta não será a única ocasião em que terei de fazer este reparo.
Nosso cego nos disse, a este respeito, que se acharia digno de muita lástima por estar privado das
mesmas vantagens que nós, e que ficaria tentado a nos olhar como inteligências superiores, se não
houvesse verificado centenas de vezes o quanto lhe éramos inferiores em outros aspectos. Tal
reflexão nos levou a fazer outra. Este cego, dissemos nós, se estima tanto e mais talvez do que
nós que enxergamos: por que então, se o animal raciocina, como é quase indubitável, pesando suas
vantagens sobre o homem, que lhe são melhor conhecidas que as do homem sobre ele não pronunciaria
semelhante julgamento? Ele tem braços, diz talvez o mosquito, mas eu tenho asas. Se ele tem armas,
diz o leão, não temos nós unhas? O elefante vos verá como insetos: e todos os animais, concedendo-
nos de bom grado uma razão pela qual teríamos grande necessidade de seu instinto, pretender-se-ão
dotados de um instinto pelo qual dispensam muito bem nossa razão. Temos tão violento pendor a
encarecer nossas qualidades e diminuir nossos defeitos, que pareceria quase caber ao homem efetuar
o tratado da força, e ao animal, o da razão.
Um de nós lembrou-se de indagar ao nosso cego se ficaria contente em ter olhos: “Se a curiosidade
não me dominasse, disse ele, eu preferiria muito mais ter longos braços: parece-me que minhas mãos
me instruiriam melhor do que se passa na lua do que vossos olhos ou vossos telescópios; além
disso, os olhos cessam de ver mais do que as mãos de tocar. Valeria pois muito mais que me fosse
aperfeiçoado o órgão que possuo do que me conceder o que me falta”.
O nosso cego se dirige pelo ruído e pela voz tão seguramente que não duvido que um tal exercício
tornasse os cegos muito destros e muito perigosos. Vou contar-vos a propósito um episódio que vos
persuadirá de como seria errôneo esperar uma pedrada, ou expor-se a um tiro de pistola por ele
desfechado, por pouco habituado que estivesse a servir-se dessa arma. Ele teve na juventude uma
querela com um de seus irmãos, que se desgostou muito com ele. Impacientado com as palavras
desagradáveis que teve de suportar de parte do outro, agarrou o primeiro objeto que lhe caiu
debaixo da mão, lançou-o contra ele, atingiu-o no meio da testa, e o estendeu por terra.
Esta aventura e algumas outras levaram-no a ser chamado pela polícia. Os signos externos do poder
que nos afetam tão vivamente não enganam de modo algum os cegos. O nosso compareceu perante o
magistrado como perante seu semelhante. As ameaças não o intimidaram. “O que me fareis?, disse ao
Sr. Hérault. — Eu vos jogarei numa enxovia, respondeu lhe o magistrado. — Oh!, senhor, replicou-
lhe o cego, há vinte e cinco anos que já estou nela.” Que resposta, senhora! E que texto para um
homem que gosta tanto de moralizar como eu! Nós saímos da vida como de um espetáculo encantador; o
cego sai dela como de uma masmorra: se nós temos em viver mais prazer do que ele, convinde que ele
tem muito menos pesar em morrer.
O cego de Puisaux avalia a proximidade do fogo pelos graus de calor; a plenitude dos vasos, pelo
rumor que fazem ao cair os líquidos que transvasa; e a vizinhança dos corpos, pela ação do ar
sobre o seu rosto. É tão sensível às menores vicissitudes que sucedem na atmosfera que pode
distinguir uma rua de um beco. Aprecia com perfeição os pesos dos corpos e a capacidade dos vasos;
e converteu os braços em balanças tão justas, e os dedos em compassos tão experimentados, que, nas
ocasiões em que essa espécie de estática se realiza, eu apostaria por nosso cego contra vinte
pessoas que enxergam. O polido dos corpos quase não oferece menos matizes ao nosso cego do que o
som da voz, e ele não precisaria ter medo de tomar sua mulher por outra, a menos que ganhasse na
troca. Tudo indica entretanto que as mulheres seriam comuns, em um povo de cegos, ou que suas leis
contra o adultério seriam muito rigorosas. Seria tão fácil às mulheres enganar os maridos,
convencionando um sinal com seus amantes!
Ele julga da beleza pelo tato; isto se compreende: mas o que não é fácil perceber é que faça
entrar nesse juízo a pronunciação e o som de voz. Compete aos anatomistas ensinar-nos se há alguma
relação entre as partes da boca e do palato, e a forma exterior do rosto. Faz pequenos trabalhos
no torno e na agulha; nivela a esquadro; monta e desmonta máquinas ordinárias; sabe bastante
música para executar um trecho cujas notas e seus valores se lhe diz. Avalia com muito maior
precisão do que nós a duração do tempo, pela sucessão das ações e dos pensamentos. A beleza da
pele, o bom aspecto, a firmeza da carne, as vantagens da conformação, a doçura do hálito, os
encantos da voz e os da pronúncia são qualidades das quais faz mais caso nos outros.
Casou-se para possuir olhos que lhe pertencessem. Antes, alimentara o intento de associar-se a um
surdo que lhe emprestasse olhos, e ao qual daria, em troca, orelhas. Nada me espantou tanto como
sua singular aptidão para um grande número de coisas; e quando lhe manifestamos nossa surpresa:
“Percebo bem, senhores, nos disse ele, que não sois cegos: estais surpresos com o que faço; e por
que não vos espantais também pelo fato de que falo?” Há, creio, mais filosofia nessa resposta do
que ele próprio pretendia inserir-lhe. E uma coisa assaz surpreendente a facilidade com que se
aprende a falar. Nós não chegamos a ligar uma ideia a uma porção de termos que não podem ser
representados por objetos sensíveis, e que, por assim dizer, não possuem corpo, a não ser por uma
série de combinações sutis e profundas das analogias que notamos entre esses objetos não sensíveis
e as ideias que eles excitam; e cumpre confessar consequentemente que um cego de nascença deve
aprender a falar mais dificilmente do que outro, porquanto, sendo muito maior para ele o número de
objetos não sensíveis, dispõe de muito menos campo do que nós para comparar e combinar. Como se há
de querer, por exemplo, que a palavra fisionomia se fixe em sua memória. E uma espécie de agrado
que consiste em objetos tão pouco sensíveis para um cego que, se não o fossem suficientemente para
nós que vemos, ficaríamos muito atrapalhados para dizer com precisão o que é ter fisionomia. Se é
principalmente nos olhos que ela reside, o tato nada pode fazer no caso; além disso, o que são
para um cego olhos mortos, olhos vivos, do espírito, etc.
Concluo daí que tiramos sem dúvida do concurso de nossos sentidos e de nossos órgãos grandes
serviços. Mas seria de todo diferente ainda se nós os exercêssemos separadamente, e se nunca
empregássemos dois nas ocasiões em que o auxílio de um só nos bastaria. Juntar o tato à vista,
quando os olhos são suficientes, é atrelar a dois cavalos, que já são muito vivos, um terceiro na
dianteira, o qual puxa de um lado, enquanto os outros puxam do outro.
Como jamais duvidei de que o estado de nossos órgãos e de nossos sentidos tem muita influência
sobre nossa metafísica e sobre nossa moral, e que nossas ideias mais puramente intelectuais, se
posso assim exprimir-me, dependem muito de perto da conformação de nosso corpo, comecei a
questionar o nosso cego acerca dos vícios e das virtudes. Percebi primeiro que sentia prodigiosa
aversão ao roubo; esta nascia nele de duas causas: da facilidade que havia em roubá-lo sem que ele
o percebesse; e mais ainda, talvez, da que havia em percebê-lo quando ele roubava. Não é que não
saiba muito bem ficar em guarda contra o sentido que ele reconhece termos a mais do que ele, e que
ignore a maneira de esconder bem um roubo. Não faz grande caso do pudor: sem as injúrias do ar, de
que as vestimentas o protegem, quase não compreenderia o uso destas; e confessa francamente que
não chega a adivinhar por que se cobre mais uma parte do corpo do que outra, e menos ainda por
qual extravagância se dá entre essas partes a preferência a algumas determinadas, que o uso e as
indisposições a que se acham sujeitas exigiriam que se mantivessem livres. Conquanto estejamos em
um século em que o espírito filosófico nos desembaraçou de grande número de preconceitos, não
creio que venhamos um dia desconhecer as prerrogativas do pudor tão perfeitamente como nosso cego.
Diógenes não seria para ele de modo algum um filósofo.
Como de todas as demonstrações externas que despertam em nós a comiseração e as ideias da dor, os
cegos são afetados apenas pela queixa, eu os suspeito, em geral, de desumanidade. Que diferença
existe, para um cego, entre um homem que urina e um homem que, sem se queixar, derrama seu sangue?
Nós mesmos não cessamos de condoer-nos quando a distância, ou a pequenez dos objetos, produz o
mesmo efeito em nós que a privação da vista nos cegos? Tanto nossas virtudes dependem de nossa
maneira de sentir e do grau com o qual as coisas externas nos afetam! Por isso não duvido que, sem
o temor do castigo, muita gente teria menos dificuldade em matar um homem a uma distância em que o
vissem grande como uma andorinha, do que em abater um boi com as próprias mãos. Se sentimos
compaixão por um cavalo que sofre, e se esmagamos uma formiga sem qualquer escrúpulo, não é o
mesmo princípio que nos determina? Ah, senhora! Como a moral dos cegos é diferente da nossa! Como
a de um surdo diferiria ainda da de um cego!, e como um ser que contasse um sentido a mais que nós
acharia nossa moral imperfeita, para não dizer coisa pior!
Nossa metafísica não combina melhor com a deles. Quantos princípios existem para eles, que não
passam de absurdos para nós, e reciprocamente! Eu poderia entrar a respeito num pormenor que vos
divertiria sem dúvida, mas que certas pessoas, que enxergam crime em tudo, não deixariam de acusar
de irreligião; como se dependesse de mim levar os cegos a perceber as coisas de modo diferente do
que as percebem. Contentar-me-ei em observar algo com que, creio eu, todo mundo deve convir: é que
esse grande raciocínio, que da natureza se tiram maravilhas, é muito fraco para cegos. A
facilidade que temos de criar, por assim dizer, novos objetos por meio de um pequeno espelho para
eles é algo mais incompreensível que os astros que estão condenados a jamais ver. Esse globo
luminoso que avança do oriente ao ocidente os espanta menos do que um foguinho que eles têm a
comodidade de aumentar ou diminuir: como veem a matéria de maneira muito mais abstrata do que nós,
encontram-se menos distantes de crer que ela pensa.
Se um homem que só enxergou durante um dia ou dois se visse confundido entre um povo de cegos,
deveria tomar o alvitre de calar-se, ou de passar por louco. Anunciar-lhe-ia todos os dias algum
novo mistério, que seria mistério apenas para eles, e no qual os espíritos fortes poderiam de bom
grado não crer. Os defensores da religião não poderiam tirar grande proveito de uma incredulidade
tão obstinada, tão justa mesmo, em certos aspectos, e entretanto tão pouco fundada? Se vos
prestardes por um instante a tal suposição, ela vos lembrará, sob traços supostos, a história e as
perseguições dos que tiveram a desgraça de encontrar a verdade em séculos de trevas, e a
imprudência de revelá-la aos cegos contemporâneos, entre os quais não deparavam inimigos mais
cruéis do que aqueles que, por sua condição e sua educação, pareciam dever estar menos afastados
de seus sentimentos.
Deixo portanto a moral e a metafísica dos cegos, e passo a coisas que são menos importantes, mas
que se prendem mais de perto ao alvo das observações que se efetuam aqui, de todas as partes,
desde a chegada do prussiano. Primeira questão. Como é que um cego de nascença forma ideias das
figuras? Creio que os movimentos de seu corpo, a existência sucessiva de sua mão em vários
lugares, a sensação não interrompida de um corpo que passa entre seus dedos, fornecem-lhe a noção
de direção. Se ele os desliza ao longo de um fio bem esticado, adquire a ideia de uma linha reta;
se segue a curva de um fio frouxo, adquire a de uma linha curva. Mais geralmente, ele tem, por
experiências reiteradas do tato, a memória de sensações experimentadas em diferentes pontos:
depende dele combinar essas sensações ou pontos, e formar com elas figuras. Uma linha reta, para
um cego que não é geômetra, não é mais que a memória de uma série de sensações do tato, situadas
na direção de um fio tenso; uma linha curva, a memória de uma série de sensações do tato referidas
à superfície de algum corpo sólido, côncavo ou convexo. O estudo retifica no geômetra a noção
dessas linhas pelas propriedades que lhes descobre. Mas, geômetra ou não, o cego de nascença
refere tudo à extremidade dos dedos. Nós combinamos pontos coloridos; ele, de seu lado, combina
apenas pontos palpáveis ou, para falar mais exatamente, apenas sensações do tato de que tem
memória. Não se passa nada em sua cabeça que seja análogo ao que se passa na nossa: ele não
imagina; pois, para imaginar, é preciso colorir um fundo e destacar este fundo dos pontos,
atribuindo-se-lhes uma cor diferente da do fundo. Restituí esses pontos a mesma cor que ao fundo,
no mesmo instante eles se confundem com este, e a figura desaparece; pelo menos, é assim que as
coisas se executam em minhas imaginações, e presumo que os outros não imaginam de modo diferente
do meu. Quando, pois, eu me proponho a perceber em minha cabeça uma linha reta, de outra maneira
que não por suas propriedades, começo por atapetá-la por dentro de um tecido branco, do qual
saliento uma série de pontos negros dispostos na mesma direção. Quanto mais vivas as cores do
fundo e dos pontos mais distintamente percebo os pontos, e, no caso de uma figura de uma cor muito
vizinha da do fundo, não me fatiga menos considerá-la na minha imaginação do que fora de mim, e
sobre um tecido.
Vedes portanto, senhora, que se poderia dar leis para imaginar facilmente ao mesmo tempo vários
objetos diversamente coloridos; mas que estas leis não seriam certamente para o uso de um cego de
nascença. O cego de nascença, não podendo colorir, nem por conseguinte figurar como nós o
entendemos, só tem memória de sensações apreendidas pelo tato, que ele refere a diferentes pontos,
lugares ou distâncias, e com os quais compõe figuras. É tão constante o fato de que ninguém
configura na imaginação sem colorir que, se nos dessem a tocar nas trevas pequenos glóbulos cuja
matéria e cor não conhecêssemos, supo-los-íamos de pontos brancos ou pretos, ou de qualquer outra
cor; ou que, se não lhe atribuíssemos nenhuma cor, teríamos, assim como o cego de nascença, apenas
a memória de pequenas sensações excitadas na extremidade dos dedos, e tais como pequenos corpos
redondos podem ocasioná-los. Se esta memória é muito fugaz em nós; se não temos quase ideia da
maneira pela qual um cego de nascença fixa, lembra e combina as sensações do tato, trata-se de uma
consequência do hábito que adotamos através dos olhos, de tudo executar em nossa imaginação com as
cores. Aconteceu-me entretanto a mim mesmo, nas agitações de uma paixão violenta, experimentar um
frêmito em toda uma mão; de sentir a impressão de corpos que eu tocara havia muito tempo despertar
nela tão vivamente como se ainda estivessem presentes a meu contato, e me aperceber muito
distintamente que os limites da sensação coincidiam precisamente com os desses corpos ausentes.
Conquanto a sensação seja indivisível por si mesma, ela ocupa, se se pode utilizar o termo, um
espaço extenso ao qual o cego de nascença tem a faculdade de acrescentar ou de diminuir pelo
pensamento, aumentando ou diminuindo a parte afetada. Ele compõe, por esse meio, pontos,
superfícies, sólidos; obterá mesmo um sólido grande como o globo terrestre, se supõe a ponta de
seu dedo grande como o globo, e ocupado pela sensação em comprimento, largura e profundidade.
Não conheço nada que demonstre tão bem a realidade do sentido interno quanto esta faculdade fraca
em nós, porém forte nos cegos de nascença — de sentir ou de recordar a sensação dos corpos, mesmo
quando eles se acham ausentes e não mais atuam por si. Não podemos explicar a um cego de nascença
a maneira pela qual a imaginação nos pinta os objetos ausentes como se estivessem presentes; mas
podemos muito bem reconhecer em nós a faculdade de sentir na extremidade de um dedo um corpo que
não está mais aí, tal como ela existe no cego de nascença. Para esse efeito, apertai o índex
contra o polegar; fechai os olhos; separai vossos dedos; examinai imediatamente após a separação o
que se passa em vós, e dizei-me se a sensação não perdura muito tempo depois que a compressão
cessou; se, enquanto a compressão perdura, vossa alma parece estar mais em vossa cabeça do que na
extremidade de vossos dedos; e se essa compressão não vos dá a noção de uma superfície, pelo
espaço que a sensação ocupa. Nós não distinguimos a presença de seres fora de nós, de sua
representação em nossa imaginação, a não ser pela força e pela fraqueza da impressão:
similarmente, o cego de nascença não discerne a sensação da presença real de um objeto na
extremidade de seu dedo, a não ser pela força ou pela fraqueza da própria sensação.
Se alguma vez um filósofo cego e surdo de nascença fizer um homem à imitação do de Descartes, ouso
assegurar-vos, senhora, que colocará a alma na ponta dos dedos; pois é dali que lhe vêm as
principais sensações, e todos os conhecimentos. E quem o advertiria de que a cabeça deste é a sede
de seus pensamentos? Se os trabalhos da imaginação esgotam a nossa, é que o esforço que envidamos
para imaginar é assaz semelhante ao que envidamos para perceber objetos muito próximos ou muito
pequenos. Mas não sucederá o mesmo com o cego e surdo de nascença; as sensações que houver
apreendido pelo tato serão, por assim dizer, o molde de todas as suas ideias; e eu não ficaria
surpreso se, após uma profunda meditação, sentisse os dedos tão fatigados como nós sentimos a
cabeça. Eu não temeria de modo algum que um filósofo lhe objetasse que os nervos são as causas de
nossas sensações, e que todos eles partem do cérebro: ainda que as duas proposições estivessem tão
demonstradas quanto estão pouco, sobretudo a primeira, bastar-lhe-ia fazer com que lhe explicassem
tudo quanto os físicos sonharam a respeito, para persistir em seu sentimento.
Mas se a imaginação de um cego não é mais do que a faculdade de recordar e combinar sensações de
pontos palpáveis, e a de um homem que vê, a faculdade de recordar e combinar pontos visíveis ou
coloridos, segue-se que o cego de nascença percebe as coisas de uma forma muito mais abstrata que
nós; e que, nas questões de pura especulação, está talvez menos sujeito a enganar-se; pois a
abstração consiste apenas em separar pelo pensamento as qualidades sensíveis dos corpos, ou uma
das outras, ou do corpo mesmo que lhes serve de base; e o erro nasce da separação malfeita, ou
feita fora de propósito: malfeita, nas questões metafísicas; e feita fora de propósito, nas
questões físicas-matemáticas. Um meio quase seguro de enganar-se em metafísica é não simplificar
bastante os objetos de que nos ocupamos; e um segredo infalível para chegar em física-matemática a
resultados defeituosos é supô-los menos compostos do que o são.
Há uma espécie de abstração de que tão poucos homens são capazes que parece reservada às
inteligências puras; é aquela pela qual tudo se reduziria a unidades numéricas. Deve-se convir que
os resultados dessa geometria seriam muito exatos, e suas fórmulas muito gerais; pois não há
objetos, seja na natureza, seja no possível, que estas unidades simples não possam representar
pontos, linhas, superfícies, sólidos, pensamentos, ideias, sensações e... se, porventura, fosse o
fundamento da doutrina de Pitágoras, poder-se-ia dizer a seu respeito que ele malogrou em seu
projeto, porque tal maneira de filosofar está muito acima de nós, e muito próxima da do Ser
Supremo, que, segundo a engenhosa expressão de um geômetra inglês, geometriza perpetuamente no
universo.
A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago e demasiado geral para nós. Nossos sentidos
nos reconduzem a signos mais análogos à extensão de nosso espírito e à conformação de nossos
órgãos. Fizemos mesmo as coisas de maneira que esses signos pudessem ser comuns entre nós, e que
servissem, por assim dizer, de entreposto ao comércio mútuo de nossas ideias. Instituímos alguns
para os olhos, são os caracteres; para o ouvido, são os sons articulados; mas não possuímos nenhum
deles para o tato, embora haja maneira peculiar de falar a esse sentido, e de obter dele
respostas. A falta desta língua, a comunicação fica inteiramente rompida entre nós e os que nascem
surdos, cegos e mudos. Eles crescem; mas permanecem em estado de imbecilidade. Talvez adquirissem
ideias, se nos fizéssemos entender por eles desde a infância, de maneira fixa, determinada,
constante e uniforme, em suma, se traçássemos sobre a mão deles os mesmos caracteres que traçamos
sobre o papel, e se a mesma significação lhes permanecesse invariavelmente vinculada.
Esta linguagem, senhora, não vos parece tão cômoda quanto outra? Não é do mesmo modo toda
inventada? E ousaríeis assegurar-nos que nunca vos foi dado algo a entender dessa maneira? Não se
trata portanto senão de fixá-la e compor-lhe uma gramática e dicionários, se se acha que a
expressão, pelos caracteres ordinários da escrita, é lenta demais para este sentido.
Os conhecimentos têm três portas para entrar em nossa alma, e nós mantemos uma trancada por falta
de sinais. Se se houvesse negligenciado as duas outras, estaríamos reduzidos à condição dos
animais. Do mesmo modo que só dispomos do apertar para nos fazer entender pelo sentido do tato,
teríamos apenas o gritar para falar ao ouvido. Senhora, é preciso carecer de um sentido a fim de
conhecer as vantagens dos símbolos destinados aos que restam; e pessoas que tivessem a desgraça de
ser surdas, cegas e mudas, ou que viessem a perder esses três sentidos por qualquer acidente,
ficariam muito encantadas se existisse uma língua nítida e precisa para o tato.
É bem melhor usar símbolos totalmente inventados do que ser seu inventor, como se é forçado a
fazer quando se é tomado de imprevisto. Que vantagem não teria sido para Saunderson encontrar uma
aritmética palpável totalmente pronta na idade de cinco anos, em vez de precisar imaginá-la na
idade de vinte e cinco! Este Saunderson, senhora, é outro cego sobre o qual não será fora de
propósito conversar convosco. Contam-se a seu respeito prodígios; e não há nenhum que seus
progressos nas belas-letras, e sua habilidade nas ciências matemáticas, não possam tornar crível.
A mesma máquina lhe servia para os cálculos algébricos e para a descrição das figuras retilíneas.
Não ficaríeis enfadada se vos fizessem a explicação dela, desde que estivésseis em condição de
entendê-la; e ides verificar que ela não supõe qualquer conhecimento que não tenhais, e que vos
seria muito útil, se vos der jamais a vontade de efetuar longos cálculos às cegas.
Imaginai um quadrado, tal como o vedes nas figs. 1 e 2, dividido em quatro partes iguais por meio
das linhas perpendiculares aos lados, de modo que ele vos ofereça os nove pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6,
7, 8, 9. Supondo esse quadrado perfurado por nove orifícios capazes de receber alfinetes de duas
espécies, todos do mesmo comprimento e da mesma grossura, mas uns com a cabeça um pouco mais
grossa do que outros.
Os alfinetes de cabeça grande situam-se sempre no centro do quadrado; os de cabeça pequena, sempre
nos lados, exceto em um único caso, o do zero. O zero é assinalado por um alfinete de cabeça
grande, colocado no centro do pequeno quadrado, sem que haja qualquer outro alfinete nos lados. O
algarismo 1 é representado por um alfinete de cabeça pequena, colocado no centro do quadrado, sem
que haja qualquer outro alfinete nos lados. O algarismo 2, por um alfinete de cabeça grande,
situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado em um dos lados do
ponto 1. O algarismo 3, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um
alfinete de cabeça pequena, situado num dos lados do ponto 2. O algarismo 4, por um alfinete de
cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado no
centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado num dos lados do ponto 3. O
algarismo 5, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de
cabeça pequena, colocado em um dos lados do ponto 4. O algarismo 6, por um alfinete de cabeça
grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado num dos lados
do ponto 5. O algarismo 7, por um alfinete de cabeça grande, colocado no centro do quadrado, e por
um alfinete de cabeça pequena, colocado num dos lados do ponto 6. O algarismo 8, por um alfinete
de cabeça grande, colocado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, colocado
num dos lados do ponto 7. O algarismo 9, por um alfinete de cabeça grande, colocado no centro do
quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, colocado num dos lados do quadrado do ponto 8.
Eis de fato dez expressões diferentes para o tato, cada uma das quais corresponde a um de nossos
dez caracteres aritméticos. Imaginai agora uma tabela tão grande quanto quiserdes, dividida em
pequenos quadrados dispostos horizontalmente, e separados uns dos outros pela mesma distância, tal
como vedes na fig. 3, e tereis a máquina de Saunderson.
Concebeis facilmente que não há número que não se possa escrever nessa tabela, e por conseguinte
nenhuma operação aritmética que nela não se possa executar.
Seja proposto, por exemplo, encontrar a soma, ou efetuar a adição dos nove seguintes números:
1 2 3 4 5
2 3 4 5 6
3 4 5 6 7
4 5 6 7 8
5 6 7 8 9
6 7 8 9 0
7 8 9 0 1
8 9 0 1 2
9 0 1 2 3
0 1 2 3 4
Eu os escrevo na tabela, à medida que me são nomeados; o primeiro algarismo, à esquerda do
primeiro número, no primeiro quadrado à esquerda da primeira linha; o segundo algarismo, à
esquerda do primeiro número, no segundo quadrado à esquerda da mesma linha. E assim
sucessivamente.
Disponho o segundo número na segunda linha de quadrados; as unidades debaixo das unidades; as
dezenas debaixo das dezenas, etc.
Disponho o terceiro número na terceira linha de quadrados, e assim por diante, como vedes na fig.
3. Depois, percorrendo com os dedos cada linha vertical de baixo para cima, começando por aquela
que está mais à minha esquerda, efetuo a adição dos números aí expressos; e escrevo o excedente
das dezenas embaixo desta coluna. Passo à segunda coluna avançando para a esquerda, na qual opero
da mesma maneira; daí à terceira, e termino assim sucessivamente minha adição.
Eis como a mesma tabela lhe servia para demonstrar as propriedades das figuras retilíneas.
Suponhamos que precisasse demonstrar que os paralelogramos, com a mesma base e a mesma altura, são
iguais em superfície: ele dispunha seus alfinetes como vedes na fig. 4. Atribuía nomes aos
vértices e concluía a demonstração com os dedos.
Supondo que Saunderson empregasse apenas alfinetes de cabeça grande, para designar os limites das
figuras; poderia dispor em torno delas alfinetes de cabeça pequena de nove modos diferentes, dos
quais todos lhe eram familiares. Assim, quase não ficava atrapalhado, a não ser nos casos em que o
grande número de vértices que era obrigado a nomear em sua demonstração o forçava a recorrer às
letras do alfabeto. Não estamos informados como ele as empregava.
Sabemos apenas que percorria sua tabela com uma assombrosa agilidade de dedos; que se empenhava
com êxito nos cálculos mais longos; que podia interrompê-los, e reconhecer quando se enganava; que
os verificava com facilidade; e que este trabalho não lhe requeria, bem longe disso, tanto tempo
como se poderia imaginar, pela facilidade que tinha em preparar a tabela.
Tal preparação consistia em colocar alfinetes de cabeça grande no centro de todos os quadrados.
Isso feito, restava-lhe apenas determinar seu valor pelos alfinetes de cabeça pequena, exceto nos
casos em que era preciso escrever uma unidade. Então metia no centro do quadrado um alfinete de
cabeça pequena, em lugar do alfinete de cabeça grande que o ocupava.
Às vezes, em vez de formar uma linha inteira com os alfinetes, contentava-se em dispô-los em todos
os pontos angulares ou de intersecção, em torno dos quais fixava fios de seda que terminavam de
formar os limites de suas figuras. Vede a fig. 5.
Ele deixou algumas outras máquinas que lhe facilitavam o estudo da geometria: ignorava-se o
verdadeiro uso que delas fazia; e haveria talvez mais sagacidade em redescobri-lo do que em
resolver este ou aquele problema de cálculo integral. Que algum geômetra tente nos informar para
que lhe serviam quatro pedaços de madeira, sólidos, da forma de paralelepípedos retangulares, cada
qual com doze polegadas de comprimento sobre cinco e meia de largura, e com um pouco mais de meia
polegada de espessura, cujas duas grandes superfícies opostas eram divididas em pequenos quadrados
parecidos aos do ábaco que acabo de descrever; com a diferença de serem perfurados apenas em
alguns pontos onde os alfinetes eram metidos até a cabeça. Cada superfície representava nove
pequenas tabelas aritméticas de dez números cada uma, e cada um desses dez números compunha-se de
dez algarismos. A fig. 6 representa uma dessas pequenas tabelas e eis os números que ela continha:
9 4 0 8 4
2 4 1 8 6
4 1 7 9 2
5 4 2 8 4
6 3 9 6 8
7 1 8 8 0
7 8 5 6 8
8 4 3 5 8
8 9 4 6 4
9 4 0 3 0
Ele é o autor de uma obra das mais perfeitas em seu gênero. São os Elementos de Álgebra onde só se
percebe que ele era cego pela singularidade de certas demonstrações, as quais um homem que vê
talvez não encontrasse. E de sua autoria a divisão do cubo em seis pirâmides iguais que têm os
vértices no centro do cubo, e como base, cada uma de suas faces. Ela serviu para demonstrar de
maneira muito simples que toda pirâmide é o terço de um prisma de mesma base e de mesma altura.
Ele foi arrastado pelo gosto ao estudo das matemáticas, e determinado, pela mediocridade de sua
fortuna e pelos conselhos dos amigos, a ministrar lições públicas. Eles não duvidaram de modo
algum que ele se saísse melhor do que esperava devido à prodigiosa facilidade que tinha para
fazer-se entender. Com efeito, Saunderson falava aos alunos como se estivessem privados da vista:
mas um cego que se exprime claramente para cegos deve ganhar muito com pessoas que enxergam; eles
possuem um telescópio a mais.
Os que escreveram sua vida dizem que era fecundo em expressões felizes; e isso é muito verossímil.
Mas o que entendeis por expressões felizes? Me perguntareis quiçá. Eu vos responderei, senhora,
que são aquelas que são próprias a um sentido, ao tato, por exemplo, e que são metafóricas ao
mesmo tempo a outro sentido, como aos olhos; daí resulta dupla luz para aquele a quem se fala, a
luz verídica e direta da expressão, e a luz reflexa da metáfora. E evidente que nessas ocasiões
Saunderson, com todo o espírito de que dispunha, não se entendia a si mesmo senão pela metade,
pois percebia apenas a metade das ideias ligadas aos termos que empregava. Mas quem não se vê de
tempos no mesmo caso? É um acidente comum aos idiotas, que fazem às vezes excelentes gracejos, e
às pessoas que têm o maior espírito, a quem escapa uma tolice, sem que uns e outros se apercebam
disso.
Reparai que a escassez de palavras produz também o mesmo efeito nos estrangeiros a quem a língua
ainda não é familiar: são forçados a dizer tudo com pequeníssima quantidade de termos, o que os
obriga a colocar alguns de maneira muito feliz. Mas sendo toda língua em geral pobre de palavras
adequadas aos escritores que possuem imaginações vivas, eles se encontram no mesmo caso que
estrangeiros dotados de muito espírito: as situações que inventam, os matizes delicados que
percebem nos caracteres, a ingenuidade das pinturas que têm a fazer, os apartam a todo momento dos
modos de falar comuns, e os levam a adotar giros de frase que são admiráveis sempre que não sejam
preciosos nem obscuros; defeitos que se lhes perdoa mais ou menos dificilmente, conforme se tenha
mais espírito e menos conhecimento da língua. Eis por que o Sr. de M... é de todos os autores
franceses o que mais agrada aos ingleses; e Tácito é de todos os autores latinos o que os
pensadores mais estimam. As licenças de linguagem nos escapam, e só a verdade dos termos nos
impressiona.
Saunderson professou as matemáticas na universidade de Cambridge com um êxito espantoso. Deu
lições de óptica; pronunciou discursos sobre a natureza da luz e das cores; explicou a teoria da
visão; tratou dos efeitos das lentes, dos fenômenos do arco-íris e de várias matérias relativas à
vista e a seu órgão.
Estes fatos perderão muito de seu caráter maravilhoso, se considerardes, senhora, que há três
coisas a distinguir em toda questão mista de física e de geometria: o fenômeno a explicar, as
suposições do geômetra e o cálculo que resulta das suposições. Ora, é evidente que, qualquer que
seja a penetração de um cego, os fenômenos da luz e das cores lhe são desconhecidos. Ele entenderá
as suposições, porque são todas relativas a causas palpáveis, mas de modo nenhum a razão que o
geômetra tinha de preferi-las a outras: pois seria mister que pudesse comparar as suposições
mesmas com os fenômenos. O cego aceita portanto as suposições pelo que lhe são dadas; um raio de
luz por um fio elástico e delgado, ou por uma série de pequenos corpos que vêm atingir nossos
olhos com uma velocidade incrível; e calculada em consequência. A passagem da física à geometria
está transposta, e a questão torna-se puramente matemática.
Mas que devemos pensar dos resultados do cálculo? 1.° Que é às vezes a última dificuldade obtê-
los, e que em vão ficaria um físico muito feliz em imaginar as hipóteses mais conformes à
natureza, se não soubesse validá-las pela geometria: por isso os maiores físicos, Galileu,
Descartes, Newton, foram grandes geômetras. 2.° Que esses resultados são mais ou menos certos,
conforme as hipóteses de partida sejam mais ou menos complicadas. Quando o cálculo é baseado em
uma hipótese simples, então as conclusões adquirem força de demonstrações geométricas. Quando há
grande número de suposições, a possibilidade de que cada hipótese seja verdadeira diminui na razão
do número das hipóteses, mas aumenta de outro lado pela pouca verossimilhança que tantas hipóteses
falsas se possam corrigir exatamente uma a outra, e que se obtenha delas um resultado confirmado
pelos fenômenos. Aconteceria neste caso como em uma adição cujo resultado fosse exato, embora as
somas parciais dos números acrescentados tivessem sido todas tomadas falsamente. Não se pode
desconvir que uma tal operação não seja possível; mas vedes ao mesmo tempo que é muito rara.
Quanto mais números houver a juntar, mais provável será que tenha havido engano na adição de cada
um; mas também, menor será esta possibilidade se o resultado da operação for justo. Há portanto um
número de hipóteses tal que a certeza que daí resultasse seria a menor possível. Se faço A, mais
B, mais C iguais a 50, concluirei do fato de que 50 é com efeito a quantidade do fenômeno que as
suposições representadas pelas letras A, B, C, são verdadeiras? Nunca; pois há uma infinidade de
maneiras de subtrair a uma dessas letras e de juntar às duas outras, segundo as quais eu obteria
sempre 50 como resultado; mas o caso de três hipóteses combinadas é talvez um dos mais
desfavoráveis.
Uma vantagem do cálculo que não devo omitir é a de excluir as hipóteses falsas, pela contradição
que se verifica entre o resultado e o fenômeno. Se um físico se propõe a encontrar a curva que
segue um raio de luz ao atravessar a atmosfera, é obrigado a decidir-se sobre a densidade das
camadas de ar, sobre a lei da refração, sobre a natureza e a figura dos corpúsculos luminosos, e
talvez sobre outros elementos essenciais que ele não leva em conta, seja porque os despreza
voluntariamente, seja porque lhe são desconhecidos. Determina em seguida a curva do raio. Será ela
diferente na natureza do que o cálculo o fornece? Suas suposições são incompletas ou falsas. O
raio assume a curva determinada? Decorre de duas coisas uma: ou que as suposições se retificaram,
ou que são exatas, mas qual das duas? Ele o ignora: entretanto, eis toda a certeza à qual pode
chegar.
Percorri os Elementos de Álgebra de Saunderson, na esperança de encontrar o que eu desejava saber
dos que o viram familiarmente, e que nos instruíram sobre algumas particularidades de sua vida;
mas minha curiosidade foi desenganada; e compreendi que elementos de geometria de sua feitura
teriam constituído uma obra muito mais singular em si mesma e muito mais útil para nós Acharíamos
aí as definições de ponto, de linha, de superfície, de sólido, de ângulo, de intersecção das
linhas e dos planos, onde não duvido que ele empregasse princípios de metafísica muito abstrata e
muito próxima da dos idealistas. Chamam-se idealistas os filósofos que, tendo consciência apenas
de sua própria existência e das sensações que se sucedem dentro deles, não admitem outra coisa:
sistema extravagante que só podia, segundo me parece, dever seu nascimento a cegos; sistema que,
para a vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de combater, embora seja o
mais absurdo de todos. Está exposto com tanta franqueza quanto clareza em três diálogos do doutor
Berkeley, bispo de Cloyne: cumpriria convidar o autor do Ensaio sobre nossos conhecimentos a
examinar esta obra; encontraria matéria para observações úteis, agradáveis, finas, e tais, numa
palavra, como ele as sabe fazer. O seu idealismo bem merece ser denunciado; e esta hipótese tem
com o que incitá-lo, menos por sua singularidade do que pela dificuldade de refutá-la em seus
princípios; pois são precisamente os mesmos que os de Berkeley. Segundo um e outro, e segundo a
razão, os termos essência, matéria, substância, suposto, etc. não trazem quase por si mesmos luzes
do nosso espírito; aliás, observa judiciosamente o autor do Ensaio Sobre a Origem dos
Conhecimentos Humanos, quer nos elevemos até os céus, quer desçamos até os abismos, nunca saímos
de nós mesmos; e só percebemos nosso próprio pensamento: ora, este é o resultado do primeiro
diálogo de Berkeley, e o fundamento de todo seu sistema. Não vos sentiríeis curiosa de assistir o
embate de dois inimigos, cujas armas se assemelham tão fortemente? Se a vitória coubesse a um
deles, só poderia ser àquele que delas melhor se servisse; mas o autor do Ensaio Sobre a Origem
dos Conhecimentos Humanos acaba de dar, num Tratado dos Sistemas, novas provas da perícia com que
sabe manejar as suas, e demonstrar quão temível é para os sistemáticos.
Eis-nos bem longe de nossos cegos, direis; mas deveis ter a bondade, senhora, de me desculpar
todas essas digressões: eu vos prometi um colóquio, e não posso vos manter a palavra sem esta
indulgência.
Li, com toda a atenção de que sou capaz, o que Saunderson falou do infinito; posso assegurar-vos
que possuía sobre o assunto ideias muito justas e muito claras, e que a maioria de nossos
infinitários não passariam para ele de cegos. Dependerá apenas de vós julgar o caso por vós mesma:
embora a matéria seja assaz difícil e se estenda um pouco além de vossos conhecimentos
matemáticos, não desesperarei, preparando-me de pô-la ao vosso alcance e de vos iniciar nesta
lógica infinitesimal.
O exemplo do ilustre cego prova que o tato pode tornar-se mais delicado que a vista, quando
aperfeiçoado pelo exercício; pois, percorrendo com as mãos uma série de medalhas, ele discernia as
verdadeiras das falsas, embora as últimas fossem tão bem contrafeitas a ponto de enganar um
conhecedor dotado de bons olhos; e ele julgava da exatidão de um instrumento de matemática,
fazendo passar a extremidade dos dedos sobre suas divisões. Eis certamente algo mais difícil de
fazer do que apreciar pelo tato a semelhança de um busto com a pessoa representada; de onde se vê
que um povo de cegos poderia ter estatuários, e tirar das estátuas a mesma vantagem que nós, a de
perpetuar a memória das belas ações e das pessoas que lhes fossem caras. Não duvido mesmo que o
sentimento que experimentariam, ao tocar as estátuas, fosse muito mais vivo do que o experimentado
por nós ao vê-las. Que doçura para um amante que houvesse mui ternamente amado, a de passear as
mãos sobre encantos que reconheceria, quando a ilusão, que deve atuar mais fortemente nos cegos do
que nos que enxergam, viesse a reanimá-los! Mas pode ser também que, quanto mais prazer sentisse
nessa lembrança, menos pesares sentiria.
Saunderson tinha de comum com o cego do Puisaux o fato de ser afetado pela menor vicissitude que
sobreviesse na atmosfera, e de perceber, sobretudo nos tempos calmos, a presença dos objetos dos
quais estava distante apenas alguns passos. Conta-se que um dia, quando assistia a observações
astronômicas, que se efetuavam em um jardim, as nuvens que subtraíam de quando em quando aos
observadores o disco do sol ocasionavam uma alteração bastante sensível na ação dos raios sobre
seu rosto, para; lhe assinalar os momentos favoráveis ou contrários às observações. Acreditareis
talvez que se produzisse em seus olhos algum abalo capaz de adverti-lo da presença da luz, mas não
da dos objetos; e eu teria acreditado nisso como vós, se não fosse certo que Saunderson estava
desprovido não só da vista, mas também do órgão.
Saunderson via portanto através da pele; este invólucro era portanto nele de uma sensibilidade tão
apurada que se pode assegurar que, com um pouco de hábito, teria conseguido reconhecer um de seus
amigos cujo retrato um desenhista lhe teria traçado sobre a mão, e que teria declarado, quanto à
sucessão das sensações provocadas pelo lápis: É o senhor fulano. Há pois também uma pintura para
os cegos, a que a própria pele deles serviria de tela. Tais ideias são tão pouco quiméricas que
não duvido de modo algum que, se alguém vos traçasse sobre a mão a boquinha do Sr...., vós a
reconheceríeis imediatamente. Convinde entretanto que isso seria mais fácil ainda a um cego de
nascença do que a vós, apesar do hábito que tendes de vê-la e achá-la encantadora, pois entram em
vosso julgamento duas ou três coisas: a comparação da pintura que se faria sobre vossa mão com
aquela que se fez no fundo de vosso olho; a memória da maneira pela qual se é afetado por coisas
que se sente, e da maneira pela qual se é afetado pelas coisas que a gente se contenta em ver e
admitir; enfim, a explicação desses dados à questão que vos é proposta por um desenhista que vos
pergunta, traçando uma boca sobre a pele de vossa mão com a ponta de seu lápis: A quem pertence a
boca que estou desenhando?, Ao passo que a soma das sensações excitadas por uma boca sobre a mão
de um cego é a mesma que a soma das sensações sucessivas despertadas pelo lápis do desenhista,que
lha representa.
Eu poderia acrescentar à história do cego do Puisaux e de Saunderson a de Dídimo de Alexandria, de
Eusébio, o Asiático, de Nicásio de Méchlin, e alguns outros que pareceram elevados tão mais acima
do resto dos homens, com um senso a menos, que os poetas poderiam fingir, sem exagero, que os
deuses ciosos os privaram dele, com medo de ter iguais entre os mortais. Pois o que era esse
Tirésias, que lera nos segredos dos deuses, e que possuía o dom de predizer o futuro, senão um
filósofo cego cuja memória a Fábula nos conservou? Mas não nos afastemos mais de Saunderson, e
sigamos este homem extraordinário até o túmulo.
Quando estava a ponto de morrer chamaram para junto dele um ministro muito hábil, o Sr. Gervásio
Holmes; os dois mantiveram um diálogo sobre a existência de Deus, de que nos restam alguns
fragmentos que eu vos traduzirei o melhor que posso; pois valem realmente a pena. O ministro
começou por objetar-lhe as maravilhas da natureza: “Ah, senhor!, dizia-lhe o filósofo cego, deixai
de lado todo esse belo espetáculo que nunca foi feito para mim! Fui condenado a passar minha vida
nas trevas; e vós me citais prodígios que não entendo, e que só provam para vós e para os que veem
como vós. Se quereis que eu creia em Deus, cumpre que me façais tocá-lo.
— Senhor, recomeçou habilmente o ministro, levai as mãos sobre vós mesmo, e reencontra-reis a
divindade no admirável mecanismo de vossos órgãos.
— Senhor Holmes, replicou Saunderson, eu vos repito, tudo isso não é tão belo para mim quanto o é
para vós. Mas se o mecanismo animal fosse tão perfeito como vós o pretendeis, e eu quero de fato
acreditar, pois sois um homem honesto incapaz de me iludir, o que tem ele de comum com um ser
soberanamente inteligente? Se ele vos espanta, é talvez porque tendes o hábito de tratar por
prodígio tudo o que vos pareça acima de vossas forças. Fui tão amiúde objeto de admiração para vós
que alimento uma opinião bastante má do que vos surpreende. Atraí do fundo da Inglaterra pessoas
que não conseguiam compreender como eu fazia geometria: deveis convir que essa gente não dispunha
de noções muito exatas da possibilidade das coisas. Um fenômeno está, a nosso ver, acima do homem?
Então dizemos de pronto: é obra de um Deus; nossa vaidade não se contenta com menos. Não
poderíamos pôr em nossos discursos um pouco menos de orgulho e um pouco mais de filosofia? Se a
natureza nos oferece um nó difícil de desatar, deixemo-lo pelo que ele é; e não empreguemos para
cortá-lo a mão de um ser que se torna em seguida para nós um novo nó mais indissolúvel que o
primeiro. Perguntai a um indiano por que o mundo permanece suspenso nos ares e ele vos responderá
que é transportado sobre o dorso de um elefante; e o elefante sobre o que se apoiará? Sobre uma
tartaruga; e a tartaruga, quem a sustentará? Este indiano vos causa dó e poder-se-ia dizer-vos
como a ele: Senhor Holmes meu amigo, confessai primeiro vossa ignorância, e dispensai-me a graça
do elefante e da tartaruga”.
Saunderson se deteve por um momento: esperava aparentemente que o ministro lhe respondesse; mas
por onde atacar um cego? O Sr. Holmes se prevaleceu da boa opinião que Saunderson concebera de sua
probidade, e das luzes de Newton, de Leibniz, de Clarke e de alguns de seus compatriotas, os
primeiros gênios do mundo, os quais todos haviam ficado impressionados com as maravilhas da
natureza, e reconheciam um ser inteligente como seu autor. Era sem contradita o que o ministro
podia objetar de mais forte a Saunderson. Por isso o bom cego conveio que seria temeridade negar o
que um homem como Newton não desdenhara admitir: representou todavia ao ministro que o testemunho
de Newton não era tão forte para ele como o da natureza inteira, para Newton; e que Newton
acreditava sobre a palavra de Deus, ao passo que ele estava reduzido a crer sobre a palavra de
Newton.
“Considerai, senhor Holmes, acrescentou, quanto é preciso para que eu tenha confiança em vossa
palavra e na de Newton. Eu não vejo nada, entretanto admito em tudo uma ordem admirável; mas conto
que não exigireis mais do que isso. Eu vos concebo quanto ao estado atual do universo, para obter
de vós em compensação a liberdade de pensar o que me aprouver sobre o seu antigo e primeiro
estado, a cujo respeito não sois menos cego do que eu. Vós não tendes aqui testemunho a opor-me; e
vossos olhos não vos são de nenhum auxílio. Imaginai, pois, se quiserdes, que a ordem que vos
impressiona sempre subsistiu; mas deixai-me crer que não é assim; e que se remontássemos ao
nascimento das coisas e dos tempos, e se sentíssemos a matéria mover-se e o caos desembrulhar-se,
reencontraríamos uma multidão de seres informes para alguns seres bem organizados. Se nada tenho a
objetar-vos sobre a condição presente das coisas, posso ao menos interrogar-vos sobre sua condição
passada. Posso perguntar-vos, por exemplo, quem disse a vós, a Leibniz, a Clarke e a Newton, que
nos primeiros instantes da formação dos animais uns se apresentavam sem cabeça e outros sem pés?
Posso sustentar-vos que estes não possuíam estômago e aqueles, intestinos; que alguns, a quem um
estômago, um palato e dentes pareciam prometer a duração, acabaram-se por algum vício do coração
ou dos pulmões; que os monstros se aniquilaram sucessivamente; que todas as combinações viciosas
da matéria desapareceram, e que restaram apenas aquelas onde o mecanismo não implicava nenhuma
contradição importante, e que podiam subsistir por si mesmas e se perpetuar.
“Isso suposto, se o primeiro homem tivesse tido a laringe fechada, tivesse falta de alimentos
convenientes, tivesse pecado pelas partes da geração, não tivesse encontrado sua companheira, ou
se tivesse espalhado em outra espécie, senhor Holmes, o que se tornaria o gênero humano? Ficaria
envolvido na depuração geral do universo; e o ser orgulhoso que se chama homem, dissolvido e
disperso entre as moléculas da matéria, teria restado, talvez para sempre no número dos possíveis.
“Se nunca houvesse existido seres informes, não deixaríeis de pretender que jamais os haverá, e
que eu me lanço nas hipóteses quiméricas, mas a ordem não é tão perfeita, continuou Saunderson,
que não surjam ainda de vez em quando produções monstruosas.” Depois, virando-se de face para o
ministro, ajuntou: “Olhai-me bem, senhor Holmes, eu não tenho olhos. O que fizemos a Deus, vós e
eu, um para possuir este órgão e outro para dele estar privado?”
Saunderson apresentava um ar tão sincero e tão compenetrado, ao pronunciar essas palavras, que o
ministro e o resto da assembleia não puderam impedir-se de partilhar de sua dor, e puseram-se a
chorar amargamente sobre ele. O cego percebeu. “Senhor Holmes, disse ao ministro, a bondade de
vosso coração me era bem conhecida, e sou muito sensível à prova que dela me dais nestes
derradeiros momentos: mas se eu vos sou caro, não me recuseis ao morrer o consolo de nunca ter
afligido ninguém.”
Depois, retomando um tom um pouco mais firme, acrescentou: “Conjeturo pois que, no começo, quando
a matéria em fermentação chocava o universo, meus semelhantes eram muito comuns. Mas por que não
asseguraria eu a respeito dos mundos o que eu creio a respeito dos animais? Quantos mundos
estropiados, falhados dissiparam-se, reformam-se e dissipam-se talvez a cada instante em espaços
longínquos, em que eu não consigo tocar, e vós não conseguis ver, mas em que o movimento continua
e continuará a combinar aglomerados de matéria, até que obtenham algum arranjo no qual possam
perseverar? Ó filósofos! transportai-vos, pois, comigo para os confins deste universo, para além
do ponto em que eu toco, e em que vós vedes seres organizados; passeai sobre este novo oceano, e
procurai através de suas agitações irregulares alguns vestígios do ser inteligível cuja sabedoria
admirais aqui.
“Mas de que serve tirar-vos de vosso elemento? O que é o mundo, senhor Holmes? Um composto sujeito
a revoluções, das quais todas indicam uma tendência contínua para a destruição; uma sucessão
rápida de seres que se seguem, se impelem e desaparecem; uma simetria passageira; uma ordem
momentânea. Eu vos censurava há pouco por avaliardes a perfeição das coisas pela vossa capacidade;
e eu poderia acusar-vos aqui de medir-lhes a duração pela de vossos dias. Julgais a existência
sucessiva do mundo, como a mosca efêmera, a vossa. O mundo é eterno para vós, como vós sois eterno
para o ser que vive apenas um instante: ainda assim, o inseto é mais razoável do que vós. Que
sequência prodigiosa de gerações de efêmeros atesta vossa eternidade? Que tradição imensa?
Entretanto nós passaremos todos, sem que se possa consignar nem a extensão real que ocupamos, nem
o tempo preciso que teremos durado. O tempo, a matéria e o espaço não são talvez senão um ponto.”
Saunderson agitou-se neste colóquio um pouco mais que seu estado lhe permitia; sobreveio-lhe um
acesso de delírio que durou algumas horas, e do qual só saiu para exclamar: “Ó Deus de Clarke e de
Newton, compadece-te de mim!” e morreu.
Assim findou Saunderson. Vedes, senhora, que todos os argumentos que acabava de objetar ao
ministro não eram sequer capazes de tranquilizar um cego. Que vergonha para pessoas que não têm
melhores razões que ele, que veem, e a quem o espetáculo espantoso da natureza anuncia, desde o
nascer do sol até o pôr das menores estrelas, a existência e a glória de seu autor! Eles têm
olhos, de que Saunderson estava privado; mas Saunderson tinha uma pureza de costumes e uma
ingenuidade de caráter que lhes falta. Por isso vivem como cegos, e Saunderson morre como se
houvesse visto. A voz da natureza se lhe faz ouvir suficientemente através dos órgãos que lhe
restam, e seu testemunho será tanto mais forte contra os que se tapam teimosamente os ouvidos e os
olhos. Eu perguntaria de bom grado se o verdadeiro Deus não se apresentava a Sócrates ainda mais
velado pelas trevas do paganismo, do que a Saunderson pela privação da vista e do espetáculo da
natureza.
Estou realmente penalizado, senhora, que, para a vossa satisfação e a minha, não nos tenham
transmitido desse ilustre cego outras particularidades interessantes. Havia talvez mais luzes a
tirar de suas respostas que de todas as experiências que são propostas. Os que viviam com ele
deviam ser muito pouco filósofos! Excetuo entretanto seu discípulo, Sr. William Inchlif, que só
viu Saunderson em seus derradeiros momentos, e que nos recolheu suas últimas palavras, que eu
aconselharia a todos que entendem um pouco o inglês a ler no original em uma obra impressa em
Dublin em 1747, e que tem por título: The Life and Character of Dr. Nicholas Saunderson late
Lucasian Professor of the Mathematics in the University of Cambridge; by his Disciple and Friend
William Inchlif Esq. Hão de notar nela um agrado, uma força, uma verdade, uma doçura que não se
encontra em nenhum outro escrito, e que não me gabo de vos haver apresentado, apesar de todos os
esforços que envidei a fim de conservá-los em minha tradução.
Ele desposou em 1713 a filha do Sr. Dickons, reitor de Boxworth, na região de Cambridge; teve um
filho e uma filha que ainda vivem. Os últimos adeuses que deu à família são muito comoventes.
“Vou, disse-lhes, aonde todos nós iremos; poupai-me os lamentos que me enternecem. Os testemunhos
de dor que me rendeis me tornam muito sensível aos que me escapam. Renuncio sem pena a uma vida
que não foi para mim senão um longo desejo e uma privação contínua. Vivei tão virtuosos e mais
felizes, e aprendei a morrer tão tranquilos.” Tomou em seguida a mão de sua mulher, que manteve
por um momento cerrada entre as suas: voltou o rosto para seu lado, como se procurasse vê-la;
abençoou os filhos, abraçou-os a todos, e pediu-lhes que se retirassem, porque assentavam-lhe na
alma golpes mais cruéis do que as proximidades da morte.
A Inglaterra é o país dos filósofos, dos curiosos, dos sistemáticos; entretanto, sem o Sr.
Inchlif, não saberíamos de Saunderson senão o que os homens mais comuns nos teriam informado; por
exemplo, que reconhecia os lugares onde fora introduzido uma vez pelo ruído das paredes e da
calçada, quando o faziam, e cem outras coisas da mesma natureza que lhe eram comuns com quase
todos os cegos. Mas como!, encontram-se tão frequentemente na Inglaterra cegos do mérito de
Saunderson? E acham-se lá todos os dias pessoas que nunca enxergaram, e que ministrem lições de
óptica?
Procurou-se restituir a vista a cegos de nascença; mas se se olhasse o fato mais de perto,
verificar-se-ia, creio, que se pode realmente aproveitar outro tanto para filosofia questionando
um cego de bom senso. Saber-se-ia como as coisas se passam nele, poder-se-ia compará-las com a
maneira pela qual elas se passam em nós, tirar-se-ia talvez desta comparação a solução das
dificuldades que tornam a teoria da visão e dos sentidos tão confusa e tão incerta; mas não
concebo, confesso, o que se espera de um homem a quem se acaba de fazer uma operação dolorosa em
um órgão muito delicado que o mais ligeiro incidente põe a perder, e que engana muitas vezes
aqueles nos quais ele é são e que desfrutam desde muito tempo suas vantagens. Quanto a mim, eu
escutaria com mais satisfação acerca da teoria dos sentidos um metafísico a quem os princípios da
metafísica, os elementos das matemáticas e a conformação das partes fossem familiares, do que um
homem sem educação e sem conhecimentos, a quem se restituiu a vista pela operação da catarata. Eu
depositaria menos confiança nas respostas de uma pessoa que enxerga pela primeira vez do que nas
descobertas de um filósofo que houvesse bem meditado seu tema na obscuridade; ou, para falar-vos a
linguagem dos poetas, que houvesse vazado os próprios olhos para conhecer mais facilmente como se
efetua a visão.
Se se pretendia dar alguma certeza às experiências, seria preciso pelo menos que o indivíduo fosse
preparado de longa data, que o educassem e talvez que o tornassem filósofo: mas não é obra de um
momento tornar-se filósofo, mesmo quando a gente o é; o que dizer então quando a gente não o é? É
muito pior, quando se julga sê-lo. Seria muito conveniente que as observações só começassem longo
tempo depois da operação. Para tal efeito, seria preciso tratar o doente na obscuridade e
certificar-se realmente de que seu ferimento está curado e que seus olhos estão sãos. Eu não
gostaria que o expusessem primeiro à luz do dia; o brilho de uma luz viva nos impede de ver; e o
que não há de provocar em um órgão, que deve ser de extrema sensibilidade, que não experimentou
ainda nenhuma impressão que o tenha embotado!
Mas não é tudo: constituiria ainda um ponto muito delicado, o de tirar proveito de um indivíduo
assim preparado; e o de interrogá-lo com bastante sutileza para que dissesse precisamente apenas o
que se passa nele. Seria mister que o interrogatório se fizesse em plena academia; ou melhor, a
fim de não haver espectadores supérfluos, convidar à reunião apenas os que o merecessem por seus
conhecimentos filosóficos, anatômicos etc.... As mais hábeis pessoas e os melhores espíritos não
seriam bons demais para tanto. Preparar e interrogar um cego de nascença não teria sido de modo
algum ocupação indigna dos talentos reunidos de Newton, Descartes, Locke e Leibniz.
Terminarei esta carta, que já é demasiado longa, por uma questão que me propus há tempo. Algumas
reflexões sobre o estado singular de Saunderson me fizeram ver que ela nunca foi inteiramente
resolvida. Supõe-se um cego de nascença que se tenha tornado homem feito, e a quem se ensina a
distinguir, pelo contato, um cubo e um globo de mesmo metal e quase de mesma grandeza, de modo
que, ao tocar em um ou em outro, possa dizer qual é o cubo e qual é o globo. Supõe-se que, estando
o cubo e o globo colocados sobre uma mesa, o referido cego venha a usufruir da vista; e se lhe
pergunta se, vendo-os sem tocá-los, poderá discerni-los e dizer qual é o cubo e qual é o globo.
Foi o Sr. Molineaux quem propôs primeiro essa questão, e quem tentou resolvê-la. Ele declarou que
o cego não distinguiria o globo do cubo; “pois, diz ele, embora tenha aprendido por experiência de
que maneira o globo e o cubo afetam seu tato, ainda não sabe no entanto que aquilo que lhe afeta o
tato desta ou daquela maneira deve impressionar-lhe os olhos desta ou daquela maneira; nem que o
ângulo avançado do cubo que lhe pressiona a mão de maneira desigual deve parecer a seus olhos tal
como parece no cubo”.
Locke, consultado sobre a questão, disse: “Sou inteiramente da opinião do Sr. Molineaux. Creio que
o cego não seria capaz, à primeira vista, de assegurar com alguma confiança qual seria o cubo e
qual seria o globo, se se contentasse em olhá-los, embora, tocando-os, pudesse especificá-los e
distingui-los seguramente pela diferença de suas figuras, que o tato levá-lo-ia a reconhecer”,
O Sr. Abade de Condillac, cujo Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos lestes com tanto
prazer e utilidade, e cujo excelente Tratado dos Sistemas eu vos remeto com a presente carta, tem
a respeito uma opinião particular. E inútil referir-vos as razões nas quais se apoia; seria
recusar-vos o prazer de reler uma obra onde elas se acham expostas de maneira tão agradável e tão
filosófica que de meu lado eu me arriscaria demais a deslocá-las. Contentar-me-ei em observar que
todas tendem a demonstrar que o cego de nascença nada vê, ou que vê a esfera e o cubo diferentes;
e que as condições de que os dois corpos sejam do mesmo metal e quase da mesma grossura, que se
julgou oportuno inserir no enunciado da questão, são no caso supérfluas, o que não pode ser
contestado; pois, poderia ele dizer, se não há qualquer ligação essencial entre a sensação da
vista e a do tato, como os Srs. Locke e Molineaux pretendem, eles devem convir que se poderia ver
dois pés de diâmetro em um corpo que desaparecesse sob a mão. O Sr. de Condillac acrescenta,
entretanto, que se o cego de nascença enxerga os corpos, discerne-lhes as figuras e se hesita
sobre o julgamento que a respeito deles deve proferir, é talvez apenas por razões metafísicas
bastante sutis, que eu vos explicarei daqui a pouco.
Eis portanto dois pareceres diferentes sobre a mesma questão, e entre filósofos de primeira força.
Pareceria que, depois de manejada por pessoas tais como os Srs. Molineaux, Locke e o Abade de
Condillac, ela não deve deixar nada mais a dizer; mas há tantas faces pelas quais a mesma coisa
pode ser considerada que não seria espantoso que eles não tivessem esgotado todas.
Os que declararam que o cego de nascença distinguiria o cubo da esfera começaram por supor um fato
que importava talvez examinar; saber se um cego de nascença, a quem se eliminassem as cataratas,
estaria em condição de servir-se dos olhos nos primeiros momentos que sucederiam à operação.
Disseram apenas: “O cego de nascença, comparando as ideias de esfera e de cubo que recebeu pelo
tato com as que obtém pela vista, conhecerá necessariamente que são as mesmas; e haveria nele
muita extravagância em declarar que é o cubo que lhe dá, à vista, a ideia de esfera e que é da
esfera que lhe vem a ideia do cubo. Ele chamara pois esfera e cubo, à vista, o que chamava esfera
e cubo ao tato”.
Mas qual foi a resposta e o raciocínio de seus antagonistas? Supuseram similarmente que o cego de
nascença veria tão logo dispusesse do órgão são; imaginaram que ocorria ao olho ao qual se abaixa
a catarata como ao braço que cessa de ser paralítico: não é preciso exercício a este para sentir,
dizem eles, nem por conseguinte ao outro para ver; e acrescentaram: “Concedamos ao cego de
nascença um pouco mais de filosofia que vós lhe concedeis, e depois de levar o raciocínio até onde
vós o deixastes, ele continuará: mas, entretanto, quem me assegura que, aproximando-me desses
corpos e aplicando as mãos sobre estes, eles não desenganarão subitamente minha expectativa, e que
o cubo não me enviará a sensação da esfera, e a esfera a do cubo? Não há como a experiência que
possa me ensinar se existe conformidade de relação entre a vista e o tato: estes dois sentidos
poderiam estar em contradição em suas relações, sem que eu nada soubesse; talvez mesmo eu
acreditasse que aquilo que se apresenta atualmente à minha vista é apenas pura aparência, se não
me houvessem informado que se trata dos mesmos corpos que se tocam. Este me parece, na verdade,
dever ser o corpo que eu denominava cubo e aquele o corpo que eu denominava esfera; mas ninguém me
pergunta o que ele me parece, porém o que ele é; e eu não estou de modo algum em condições de
satisfazer à última indagação”.
Este raciocínio, diz o autor do Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, seria muito
embaraçoso para o cego de nascença; e não vejo outra coisa exceto a experiência que possa fornecer
no caso uma resposta. Tudo indica que o Sr. Abade de Condillac não quer falar aqui senão da
experiência que o cego de nascença reiteraria sozinho com os corpos por um segundo contato.
Sentireis logo mais por que faço essa observação. De resto, este hábil metafísico poderia ter
acrescentado que um cego de nascença devia achar tanto menos absurdo supor que dois sentidos
possam estar em contradição quanto imagina que um espelho os coloca de fato assim, como já notei
mais acima.
O Sr. de Condillac observa em seguida que o Sr. Molineaux dificultou a questão com várias
condições que não podem nem prevenir nem levantar as dificuldades que a metafísica suscitaria ao
cego de nascença. Esta observação é tanto mais justa quanto a metafísica que se supõe no cego de
nascença não está deslocada; posto que, nessas questões filosóficas, a experiência deve sempre ser
sensatamente feita com um filósofo, isto é, com uma pessoa que apreenda, nas questões que se lhe
propõem, tudo o que o raciocínio e a condição de seus órgãos lhe permitam perceber.
Eis, senhora, em resumo, o que se disse pró e contra nesta questão; e ireis ver, pelo exame que
vos farei, como aqueles que anunciaram que o cego de nascença veria as figuras e discerniria os
corpos estavam longe de perceber que tinham razão, e como aqueles que o negavam possuíam razões de
pensar que não estavam de modo algum errados.
A questão do cego de nascença, tomada um pouco mais geralmente do que o Sr. Molineaux a propôs,
abrange duas outras que iremos considerar separadamente. Cabe perguntar: 1.º se o cego de nascença
verá tão logo esteja feita a operação da catarata; 2° caso veja, se ele verá o suficiente para
discernir as figuras; se estará em condições de lhes aplicar seguramente, ao vê-las, os mesmos
nomes que lhes atribuía ao tocá-las; e se terá demonstração de que os referidos nomes lhes convêm.
O cego de nascença verá imediatamente após a cura do órgão? Os que pretendem que ele não enxergará
nada dizem: “Tão logo o cego de nascença desfruta da faculdade de servir-se dos olhos, toda a cena
que se lhe apresente em perspectiva virá pintar-se no fundo do olho. Esta imagem, composta de uma
infinidade de objetos reunidos em pequeníssimo espaço, não passa de um conglomerado confuso de
figuras que ele não terá condições de distinguir umas das outras. Todo mundo está quase de acordo
que só a experiência pode ensinar-lhe a julgar a distância dos objetos, e que ele se encontra
mesmo na necessidade de se lhes aproximar, de tocá-los, de se afastar, de se reaproximar, e de
tocá-los de novo, a fim de se certificar de que não fazem parte dele mesmo, que são estranhos a
seu ser, e que ele está ora próximo, ora distante dos mesmos: por que a experiência não lhe seria
ainda necessária para percebê-los? Sem a experiência, aquele que percebe objetos pela primeira vez
deveria imaginar, quando se distanciam dele, ou ele dos objetos além do alcance de sua vista, que
estes cessaram de existir; pois não há como a experiência que realizamos com os objetos
permanentes, e que reencontramos no mesmo lugar onde os deixamos, para nos constatar a sua
existência contínua no distanciamento. E talvez por isso que as crianças se consolam tão
prontamente quanto aos brinquedos de que as privamos. Não se pode afirmar que os esqueçam
prontamente: pois se se considera haver crianças de dois anos e meio que conhecem parte ponderável
das palavras de uma língua, e que lhes custa mais pronunciá-las do que retê-las, ficar-se-á
convencido de que o tempo da infância é o da memória. Não seria mais natural supor que então as
crianças imaginam que aquilo que cessam de ver cessou de existir, tanto mais que sua alegria
parece mesclada de admiração, quando os objetos que perderam de vista acabam por reaparecer? As
amas ajudam-nas a adquirir a noção dos seres ausentes, exercitando-as num pequeno jogo que
consiste em cobrir e descobrir subitamente o rosto. Elas têm, desta maneira, cem vezes em um
quarto de hora, a experiência de que o que deixa de aparecer não deixa de existir. Daí se segue
que é à experiência que devemos a noção da existência continuada dos objetos; que é pelo tato que
adquirimos a de sua distância; que é preciso talvez que o olho aprenda a ver, como a língua a
falar; que não seria espantoso que o auxílio de um dos sentidos fosse necessário ao outro, e que o
tato, que nos assegura da existência dos objetos fora de nós quando se acham presentes aos nossos
olhos, é talvez ainda o sentido a que está reservado nos constatar, não digo as figuras e outras
modificações dos objetos, mas até sua presença.
Acrescentam-se aos raciocínios acima as famosas experiências de Cheselden. O jovem a quem este
hábil cirurgião abaixou as cataratas não distinguiu, por muito tempo, nem distâncias, nem
situações, nem sequer figuras. Um objeto de uma polegada colocado diante de seu olho, e que lhe
escondia uma casa, parecia-lhe tão grande quanto a casa. Todos os objetos ficavam sobre os seus
olhos; e eles lhe pareciam aplicados a este órgão, como os objetos de tato o são à pele. Não
conseguia distinguir o que julgara redondo, por meio das mãos, do que julgara angular; nem
discernir com os olhos se o que sentira estar em cima ou embaixo, estava com efeito em cima ou
embaixo. Chegou, mas não foi sem dificuldade, a perceber que sua casa era maior do que seu quarto,
mas nunca a conceber como o olho podia dar-lhe semelhante ideia. Precisou de grande número de
experiências reiteradas para certificar-se de que a pintura representava corpos sólidos: e quando
ficou realmente convencido, à força de mirar quadros, que não eram de modo algum apenas
superfícies que ele via, pôs-lhes a mão, e sentiu-se muito espantado por não encontrar senão um
plano unido e sem qualquer saliência: perguntou então qual era o enganador, o sentido do tato, ou
o sentido da vista. Aliás, a pintura causou o mesmo efeito nos selvagens, a primeira vez que a
viram: tomaram as figuras pintadas por homens vivos, interrogaram-nas, e ficaram inteiramente
surpresos por não receberem resposta alguma. O erro não lhes vinha certamente do pouco hábito de
ver.
Mas o que responder às outras dificuldades? Que, de fato, o olho experimentado de um homem faz ver
melhor os objetos do que o órgão imbecil e inteiramente novo de uma criança ou de um cego de
nascença a quem se acaba de abaixar as cataratas. Vede, senhora, todas as provas que a respeito
apresenta o Sr. Abade de Condillac, ao fim de seu Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos,
onde ele se propõe como objeção as experiências efetuadas por Cheselden, e relatadas pelo Sr. de
Voltaire. Os efeitos da luz sobre um olho que é afetado pela primeira vez, e as condições
requeridas nos humores desse órgão, a córnea, o cristalino etc.... são aí expostos com muita
nitidez e vigor, e quase não permitem duvidar que a visão não se faça mui imperfeitamente na
criança que abre os olhos pela primeira vez, ou no cego ao qual se acaba de fazer a operação.
É preciso portanto convir que devemos perceber nos objetos uma infinidade de coisas que nem a
criança nem o cego de nascença percebem, embora elas se pintem igualmente no fundo de seus olhos;
que não basta que os objetos nos atinjam, que é preciso ainda que estejamos atentos às suas
impressões; que, por conseguinte, nada se vê da primeira vez que nos servimos dos olhos; que somos
afetados, nos primeiros instantes da visão, apenas por uma multidão de sensações confusas que se
desenredam apenas com o tempo e pela reflexão habitual sobre o que se passa em nós; que é a
experiência unicamente que nos ensina a comparar as sensações com o que as ocasiona; que, não
tendo as sensações nada que se assemelhe essencialmente aos objetos, cabe à experiência instruir-
nos sobre analogias que parecem ser de pura instituição em uma palavra, é indubitável que o tato
não serve muito para fornecer ao olho um conhecimento preciso da conformidade do objeto com a
representação que este recebe dele; e penso que, se tudo não se executasse na natureza por meio de
leis infinitamente gerais; se, por exemplo, a picada de certos corpos duros fosse dolorosa, e a de
outros corpos, acompanhada de prazer, morreríamos sem haver recolhido a centésima milionésima
parte das experiências necessárias à conservação de nosso corpo e ao nosso bem-estar.
Entretanto, não penso absolutamente que o olho não possa instruir-se, ou, se é permitido falar
assim, experimentar-se por si próprio. Para certificar-se, pelo tato, da existência e da figura
dos objetos, não é indispensável ver; por que seria preciso tatear, para certificar-se das mesmas
coisas pela vista? Conheço todas as vantagens do tato; e não as disfarcei, quando se tratou de
Saunderson ou do cego de Puisaux; mas não lhe reconheci de modo algum aquela outra. Concebe-se sem
dificuldade que o uso de um dos sentidos pode ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do
outro; mas de modo algum que haja entre suas funções uma dependência essencial. Há seguramente nos
corpos qualidades que jamais perceberíamos sem o toque: é o tato que nos instrui acerca da
presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as percebem quando foram advertidos
por este sentido; mas tais serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina do
que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da existência de objetos e das
modificações que lhe escapariam devido à sua pequeneza. Se alguém vos colocasse sem o saberdes,
entre o polegar e o índice, um papel ou qualquer outra substância unida, delgada e flexível, nada
exceto vosso olho poderia informar-vos de que o contato desses dedos não se efetuaria
imediatamente. Observarei, de passagem, que seria infinitamente mais difícil enganar neste
particular um cego do que uma pessoa que tem o hábito de ver.
Um olho vivo e animado teria sem dúvida dificuldade em certificar-se de que os objetos externos
não fazem parte dele próprio; que está ora próximo, ora distante deles; que são figurados; que são
maiores uns que os outros; que possuem profundidade etc, mas não duvido que os visse, com o tempo,
e que não os visse assaz distintamente para discernir neles ao menos os limites grosseiros. Negá-
lo, seria perder de vista a destinação dos órgãos; seria esquecer os principais fenômenos da
visão; seria dissimular-se que não há pintor bastante hábil a ponto de se acercar da beleza e da
exatidão das miniaturas que se pintam no fundo de nossos olhos; que nada há de mais preciso do que
a semelhança da representação com o objeto representado; que a tela deste quadro não é tão
pequena; que nela não há qualquer confusão entre as figuras; que estas ocupam quase meia polegada
quadrada; e que nada é mais fácil, aliás, do que explicar como o tato se arrumaria para ensinar o
olho a perceber, se o uso deste último órgão fosse absolutamente impossível sem o auxílio do
primeiro.
Mas não me aterei a simples presunções; e perguntarei se é o tato que ensina ao olho distinguir as
cores. Não penso que se conceda ao tato um privilégio tão extraordinário; isto suposto, segue-se
que, se se apresenta a um cego, a quem se acaba de restituir a vista, um cubo negro, com uma
esfera vermelha, sobre um grande fundo branco, ele não tardará em discernir os limites dessas
figuras.
Ele tardará, poderia alguém responder, todo o tempo necessário aos humores do olho, para se
disporem convenientemente: à córnea, para assumir a convexidade requerida pela visão; à pupila,
para ser suscetível da dilatação e da contração que lhe são próprias; aos filetes da retina, para
não ser nem muito nem pouco sensível à ação da luz; ao cristalino, para se exercitar nos
movimentos para frente e para trás que se lhe suspeita; ou aos músculos, para preencherem suas
funções; aos nervos ópticos, para se acostumarem a transmitir a sensação; ao globo inteiro do
olho, para se prestar a todas as disposições necessárias, e a todas as partes que o compõem, para
concorrerem à execução dessa miniatura da qual se tira tão bom proveito, quando se trata de
demonstrar que o olho se experimentará por si mesmo.
Confesso que, por mais simples que seja o quadro que acabo de apresentar ao olha de um cego de
nascença, ele não distinguirá bem suas partes a não ser quando o órgão reunir todas as condições
precedentes; mas é talvez obra de um momento; e não seria difícil, aplicando-se o raciocínio que
acabam de me objetar quanto a uma máquina um tanto complexa, a um relógio, por exemplo,
demonstrar, pelo pormenor de todos os movimentos que se passem no tambor, no fuso, nas rodas, nas
palhetas, no balancim etc, que a agulha precisará de quinze dias a fim de percorrer o espaço de um
segundo. Se se responder que tais movimentos são simultâneos, replicarei que sucede talvez o mesmo
com os que se passam no olho, quando ele se abre pela primeira vez, e com a maioria dos
julgamentos que se fazem, em consequência. Sejam quais forem as condições exigidas ao olho para
que seja capaz da visão, cumpre convir que não compete ao tato fornecer-lhas, que o referido órgão
as adquire por si mesmo; e que, por conseguinte, chegará a distinguir as figuras que nele hão de
se pintar, sem o auxílio de um outro sentido.
Mas, uma vez mais, dir-se-á, quando é que se chegará a isso? Talvez mais depressa do que se pensa.
Quando fomos visitar juntos o gabinete do Jardim Real, vós vos lembrais, senhora, da experiência
do espelho côncavo, e do susto que tomastes quando vistes vir a vós a ponta de uma espada com a
mesma velocidade que a ponta daquela que estava em vossa mão avançava para a superfície do
espelho? Entretanto tínheis o hábito de referir além dos espelhos todos os objetos que neles se
pintam. A experiência não é, pois, nem tão necessária nem mesmo tão infalível quanto se pensa,
para perceber os objetos ou suas imagens onde elas estão. Não há nada, inclusive o vosso papagaio,
que não me forneça prova disso. A primeira vez que ele se viu em um espelho, aproximou o bico e,
encontrando apenas a si próprio que tomou por seu semelhante, fez a volta do espelho. Não quero de
modo algum atribuir ao testemunho do papagaio mais força do que tem; mas é uma experiência animal
onde o preconceito não pode ter parte.
Entretanto, se me assegurassem que um cego de nascença nada distinguiu durante dois meses, não
ficaria espantado. Concluiria daí somente a necessidade da experiência do órgão, mas de nenhum
modo a necessidade do contato para experimentá-lo. Eu não compreenderia senão melhor o quanto
importa deixar um cego de nascença passar algum tempo na obscuridade, quando o destinamos a
observações; dar a seus olhos a liberdade de se exercitarem, o que ele fará mais comodamente nas
trevas do que em pleno dia; e não lhe conceder, nas experiências, senão uma espécie de crepúsculo,
ou aproveitar pelo menos no local onde elas se efetuarem a vantagem de aumentar a diminuir à
discrição a claridade. Encontrar-me-ão ainda mais disposto a convir que essas espécies de
experiências serão sempre muito difíceis e muito incertas; e que o mais curto com efeito, embora
na aparência o mais longo, é premunir o indivíduo de conhecimentos filosóficos que o capacitem a
comparar as duas condições pelas quais passou, e a nos informar da diferença entre o estado de um
cego e o de um homem que enxerga. Ainda uma vez, o que se pode esperar de preciso de quem não tem
o menor hábito de refletir e mudar de opinião e que, como o cego de Cheselden, ignora as vantagens
da vista, a ponto de ser insensível à sua própria desgraça, e não imaginar que a perda deste
sentido prejudica muito a seus prazeres? Saunderson, a quem não se recusará o título de filósofo,
não alimentava certamente a mesma indiferença; e duvido muito que fosse do mesmo parecer que o
autor do excelente Tratado dos Sistemas. Eu suspeitaria de bom grado o último desses filósofos de
haver dado ele mesmo num pequeno sistema, quando pretendeu “que, se a vida do homem fosse apenas
uma sensação não interrompida de prazer ou de dor, feliz em um caso sem qualquer ideia de
desventura e infeliz no outro sem qualquer ideia de ventura, ele teria gozado ou sofrido; e que,
como se tal fosse a sua natureza, o homem não teria olhado em redor de si para descobrir se algum
ser velava por sua conservação, ou trabalhava para prejudicá-lo; que é a passagem alternada de um
a outro desses estados, que o fez refletir etc....”
Acreditais, senhora, que, descendo de percepções claras em percepções claras (pois é a maneira de
filosofar do autor, e a boa maneira), jamais chegasse a semelhante conclusão? Não sucede à ventura
e à desventura o mesmo que às trevas e à luz: uma não consiste na pura e simples privação da
outra. Talvez nos assegurássemos de que a felicidade não nos é menos essencial que a existência e
o pensamento, se a fruíssemos sem nenhuma alteração; mas não posso dizer outro tanto da
infelicidade. Seria muito natural encará-la como um estado forçado, sentir-se inocente, crer-se no
entanto culpado, e acusar ou escusar a natureza, como se faz.
O Sr. Abade de Condillac pensa que uma criança não se queixa quando sofre, somente porque não
sofreu sem trégua desde que veio ao mundo? Se ele me responder “que existir e sofrer seria a mesma
coisa para quem sempre houvesse sofrido; e que este não imaginaria que se pudesse suspender sua
dor sem destruir sua existência”; talvez, eu lhe replicaria, o homem infeliz sem interrupção não
dissesse: O que fiz, para sofrer? Mas quem o impediria de dizer: O que fiz, para existir?
Entretanto não vejo por que não teria ele os dois verbos sinônimos, existo e sofro, um para a
prosa e outro para a poesia, tal como temos as duas expressões, vivo e respiro. De resto, notareis
melhor do que eu, senhora, que esta passagem do Sr. Abade de Condillac está mui perfeitamente
escrita; e receio muito que não digais, comparando minha crítica à reflexão dele, que preferis
ainda um erro de Montaigne e uma verdade de Charron.
E sempre digressões, dir-me-eis vós. Sim, senhora, é a condição de nosso tratado. Eis agora minha
opinião acerca das duas questões precedentes. Penso que a primeira vez que os olhos do cego de
nascença se abrirem à luz, ele não perceberá nada absolutamente; que será preciso algum tempo a
seu olho para que se experimente: mas que este se experimentará por si próprio, e sem a ajuda do
tato; e que conseguirá não só distinguir as cores, mas discenir ao menos os limites grosseiros dos
objetos. Vejamos presentemente se, na suposição de que adquira tal aptidão em um tempo muito
breve, ou que a obtenha agitando os olhos nas trevas onde se teria tomado o cuidado de encerrá-lo
e de exortá-lo a esse exercício por algum tempo após a operação e antes das experiências; vejamos,
digo, se ele reconheceria, à vista, os corpos que houvesse tocado, e se estaria em condições de
lhes dar os nomes que lhes convêm. É a última questão que me resta a resolver.
Para me desincumbir dela de uma forma que vos apraza, posto que amais o método, distinguiria
várias espécies de pessoas, com as quais se podem tentar as experiências. Caso sejam pessoas
grosseiras, sem educação, sem conhecimentos, e não preparadas, penso que, quando a operação da
catarata houver destruído perfeitamente o vício do órgão, e quando o olho estiver são, os objetos
se pintarão nele muito distintamente; mas, que essas pessoas não estando habituadas a nenhuma
espécie de raciocínio, não sabendo o que é sensação, ideia; não estando em condição de comparar as
representações que receberam pelo tato com as que lhes vêm pelos olhos, essas pessoas irão
declarar: Eis um círculo, eis um quadrado, sem que se possa depositar confiança em seu julgamento;
ou mesmo hão de convir ingenuamente que nada percebem nos objetos, que se lhes apresentem à vista,
que se pareça com o que elas tocaram.
Há outras pessoas que, comparando as figuras que hão de perceber nos corpos com aquelas que
produziam impressão em suas mãos, e aplicando pelo pensamento o tato a tais corpos que se
encontram a distância, dirão de um que é um quadrado, e de outro que é um círculo, mas sem saber
muito bem por quê; pois a comparação das ideias que obtiveram pelo tato com as que recebem pela
vista não se efetua nelas assaz distintamente a ponto de convencê-las da verdade de seus juízos.
Passarei, senhora, sem digressão, a um metafísico com o qual se tentasse a experiência. Não duvido
de modo algum que raciocinasse desde o instante em que começasse a perceber distintamente os
objetos, como se os tivesse visto toda a sua vida; é que depois de comparar as ideias que lhe vêm
pelos olhos com as que apreendeu pelo tato dissesse, com a mesma segurança que vós e eu: “Eu
estaria muito tentado a crer que este é o corpo que sempre chamei quadrado; mas vou me abster
realmente de declarar que isso é assim. Quem me provou que, se eu me aproximasse, eles não
desapareceriam debaixo de minhas mãos? O que sei eu se os objetos de minha vista não se destinam a
ser também os objetos de meu tato? Ignoro se o que me é visível é palpável; mas ainda não
estivesse nessa incerteza, e que acreditasse na palavra das pessoas que me rodeiam, que o que vejo
é realmente o que toco, eu não teria avançado muito mais. Os referidos objetos poderiam muito bem
transformar-se em minhas mãos, e enviar-me, pelo tato, sensações totalmente contrárias às que
experimentei pela vista. Senhores, acrescentaria, esse corpo me parece o quadrado e aquele, o
círculo; mas não tenho nenhuma ciência de que sejam tais ao tato assim como à vista”.
Se substituirmos um geômetra ao metafísico, Saunderson a Locke, ele nos dirá como o outro que, a
crer em seus olhos, de duas figuras que enxerga, aquela é a que denominava quadrado é esta a que
denominava círculo: “pois me apercebo, acrescentaria, que não há outra além da primeira onde eu
possa arranjar os fios e colocar os alfinetes de cabeça grande, que marcavam os pontos angulares
do quadrado; e que não há outra além da segunda à qual eu possa inscrever ou circunscrever os fios
que me eram necessários para demonstrar as propriedades do círculo. Eis portanto um círculo! Eis
portanto um quadrado! Mas, continuaria ele, com Locke, pode Ser que, quando eu aplicasse minhas
mãos sobre essas figuras, elas se transformariam uma na outra de maneira que a mesma figura
poderia servir-me para demonstrar aos cegos as propriedades do círculo, e aos que veem, as
propriedades do quadrado. Pode ser que eu visse um quadrado e que ao mesmo tempo sentisse um
círculo. Não, teria prosseguido; estou enganado. Aqueles a quem eu demonstrava as propriedades do
círculo e do quadrado não estavam com as mãos sobre o meu ábaco e não tocavam os fios que eu
estendera e que limitavam minhas figuras; entretanto eles me compreendiam. Não viam portanto um
quadrado, quando eu sentia um círculo; sem o que nunca estaríamos entendidos; eu lhes teria
traçado uma figura, e demonstrado as propriedades de outra; eu lhes teria dado uma linha reta por
um arco de círculo, e um arco de círculo por uma linha reta. Mas, visto que todos me entendiam,
todos os homens veem uns como os outros: eu vejo portanto quadrado o que eles viam quadrado, e
circular o que eles viam circular. Assim, aí está o que sempre denominei quadrado, e aí está o que
sempre denominei círculo”.
Substituí o círculo à esfera, e o quadrado ao cubo, porque tudo indica que nós julgamos das
distâncias apenas pela experiência; e, consequentemente, que aquele que se serve dos olhos pela
primeira vez vê apenas superfícies e que ele não sabe o que vem a ser saliência; pois a saliência
de um corpo à vista consiste no fato de alguns de seus pontos parecerem mais próximos de nós do
que os outros.
Mas ainda que o cego de nascença julgasse, desde a primeira vez que vê, da saliência e da solidez
dos corpos, e que estivesse em condição de discernir, não só o círculo do quadrado, mas também a
esfera do cubo, nem por isso creio que acontecesse o mesmo com todo outro objeto mais composto. É
muito provável que a cega de nascença do Sr. Réaumur discernisse as cores umas das outras, mas
pode-se apostar trinta contra um que ela se pronunciou ao acaso sobre a esfera e sobre o cubo; e
considero como certo que, a não ser por uma revelação, não lhe foi possível reconhecer suas luvas,
seu roupão e seu calçado. Estes objetos estão carregados de tão grande número de modificações; há
tão poucas relações entre sua forma total e a dos membros que são destinados a ornar ou a cobrir
que constituiria um problema cem vezes mais embaraçoso para Saunderson, o de determinar o uso de
seu barrete, do que para o Sr. d’Alembert ou o Sr. Clairaut, o de redescobrir o uso de suas
tábuas.
Saunderson não deixaria de supor que reina uma relação geométrica entre as coisas e seu uso; e
consequentemente perceberia, em duas ou três analogias, que seu barrete era feito para sua cabeça:
não há aí nenhuma forma arbitrária que tendesse a perdê-lo. Mas que pensaria dos ângulos e da
borla de seu barrete? De que serve esse tufo? Por que de preferência quatro ângulos e não seis?,
ter-se-ia perguntado; e essas duas modificações, que são para nós uma questão de ornamento, teriam
sido para ele a fonte de uma multidão de raciocínios absurdos ou, antes, a ocasião para uma
excelente sátira do que chamamos o bom gosto.
Pensando maduramente as coisas, confessar-se-á que a diferença existente entre uma pessoa que
sempre enxergou, mas a quem o uso de um objeto é desconhecido, e a que conhece o uso de um objeto,
mas que nunca enxergou, não é em vantagem desta: entretanto, acreditais, senhora, que se alguém
vos mostrasse hoje, pela primeira vez, um adereço, jamais chegaríeis a adivinhar que é um adorno,
e que é um adorno de cabeça? Mas, se é tanto mais difícil a um cego de nascença, que vê pela
primeira vez, julgar bem os objetos conforme tenham um maior número de formas, quem o impediria de
tomar um observador inteiramente vestido e imóvel em uma poltrona colocada diante dele, por móvel
ou por máquina, e uma árvore com as folhas e os ramos agitados pelo ar, por um ser que se move,
animado e pensante? Senhora, quantas coisas nossos sentidos nos sugerem; e como nos seria difícil,
sem os nossos olhos, supor que um bloco de mármore não pensa nem sente!
Resta pois a demonstrar que Saunderson estaria certo de que não se enganava no julgamento que
acabava de pronunciar sobre o círculo e o quadrado somente; e que há casos onde o raciocínio e a
experiência dos outros podem esclarecer a vista acerca da relação do tato, e instruí-la de que
aquilo que é assim para o olho é assim também para o tato.
Não seria entretanto menos essencial, quando alguém se propusesse a demonstrar alguma proposição
de eterna verdade, como é chamada, comprovar sua demonstração, privando-a do testemunho dos
sentidos; pois percebeis bem, senhora, que, se alguém pretendesse provar-vos que a projeção de
duas linhas paralelas sobre um quadrado deve efetuar-se por duas linhas convergentes, porque duas
alamedas parecem tais, esqueceria que a proposição é verdadeira para um cego tanto para ele.
Mas a suposição anterior do cego de nascença sugere duas outras, uma de um homem que enxergasse
desde o nascimento, e que não possuísse o sentido do tato, e outra de um homem em quem o sentido
da vista e do tato estivessem perpetuamente em contradição. Poder-se-ia perguntar ao primeiro se,
restituindo-lhe o sentido que lhe falta, e tirando-lhe o sentido da vista mediante uma venda, ele
reconhecia os corpos ao tocá-los. É evidente que a geometria, caso fosse nela instruído, lhe
forneceria um meio infalível de certificar-se se o testemunho dos dois sentidos são contraditórios
ou não. Precisaria apenas tomar o cubo ou a esfera entre as mãos, demonstrar a alguém suas
propriedades, e declarar, se o estiverem compreendendo, que a gente vê cubo o que ele sente cubo,
e que é portanto o cubo que ele está segurando. Quanto àquele que ignorasse essa ciência, penso
que não lhe seria mais fácil discenir, pelo tato, o cubo da esfera do que ao cego do Sr. Molineux
distingui-los pela vista.
Com respeito àquele em quem as sensações da vista e do tato fossem perpetuamente contraditórias,
não sei o que pensaria das formas, da ordem, da simetria, da beleza, da feiura etc... Segundo tudo
indica, ficaria, com referência a essas coisas, como nós ficamos relativamente à extensão e à
duração reais dos seres. Declararia, em geral, que um corpo tem uma forma; mas deveria inclinar-se
a acreditar que esta não é nem a que ele vê nem a que ele sente. Tal homem poderia muito bem estar
descontente com seus sentidos; mas seus sentidos não estariam nem contentes nem descontentes com
os objetos. Se fosse tentado a acusar um deles de falsidade, creio que seria do tato que se
queixaria. Cem circunstâncias o inclinariam a pensar que a feiura dos objetos muda mais pela ação
de suas mãos sobre eles do que pela dos objetos sobre seus olhos. Mas, em consequência desses
prejulgamentos, a diferença entre a dureza e a moleza, que observaria nos corpos, seria muito
embaraçosa para ele.
Mas do fato de nossos sentidos não estarem em contradição quanto às formas, decorre que elas nos
são melhor conhecidas? Quem nos disse que não temos a haver-nos com falsas testemunhas? No
entanto, nós julgamos. Infelizmente! Senhora, quando alguém pôs os conhecimentos humanos na
balança de Montaigne, não está longe de adotar sua divisa. Pois, o que sabemos nós? O que é
matéria? Coisa nenhuma; o que são o espírito e o pensamento? Menos ainda; o que é o movimento, o
espaço e a duração? Absolutamente nada; as verdades geométricas? Interrogai matemáticos de boa fé,
e eles hão de vos confessar que suas proposições são todas idênticas, e que tantos volumes sobre o
círculo, por exemplo, se reduzem a nos repetir de cem mil maneiras diferentes que é uma figura
onde todas as linhas tiradas do centro à circunferência são iguais. Nós não sabemos portanto quase
nada; entretanto, quantos escritos cujos autores pretenderam todos saber algo! Não chego a
adivinhar por que o mundo não se enfastia de ler e de nada aprender, a menos que seja pela mesma
razão pela qual há duas horas tenho a honra de vos entreter, sem me enfastiar e sem nada vos
dizer.
ADIÇÃO
À CARTA PRECEDENTE
Vou atirar sem ordem, sobre o papel, fenômenos que não me eram conhecidos, e que servirão de
provas ou de refutação a alguns parágrafos de minha Carta Sobre os Cegos. Há trinta e três ou
trinta e quatro anos que a escrevi; reli-a sem parcialidade, e não estou muito descontente. Embora
a primeira parte me parecesse mais interessante que a segunda, e embora eu sentisse que aquela
podia ser um pouco mais extensa e esta muito mais curta, deixaria uma e outra tais como as fiz, de
medo de que a página do moço não se tornasse melhor pelo retoque do velho. O que há de suportável
nas ideias e na expressão, creio que eu o buscaria inutilmente hoje em dia, e temo ser igualmente
incapaz de corrigir o que há de repreensível. Um pintor célebre de nossos dias emprega os
derradeiros anos de sua vida em estragar as obras-primas que produziu no vigor da idade. Não sei
se os defeitos que repara são reais; mas o talento que os retificaria, ou jamais ele o teve se
levou as imitações da natureza aos derradeiros limites da arte, ou, se o possuiu, ele o perdeu,
porque tudo o que é do homem perece com o homem. Vem um tempo em que o gosto dá conselhos cuja
justeza se reconhece, mas que não se tem mais a força de seguir.
É a pusilanimidade que nasce da consciência da fraqueza, ou a preguiça, que é uma das
consequências da fraqueza e da pusilanimidade, que me desgosta de um trabalho que iria prejudicar
mais do que servir à melhoria de minha obra.
Solve senescentem mature sanus equum, ne
Peccet ad extremum ridentus, et ili ducat.
(Horácio, Epistolário, liv. I, Epist. I, v. 8, 94)
Fenômenos
I. Um artista que domina a fundo a teoria de sua arte, e que não perde para nenhum outro na
prática, assegurou-me que era pelo tato e não pela vista que julgava da redondeza dos pinhões; que
os fazia rolar lentamente entre o polegar e o índice, e que era pela impressão sucessiva que
discernia ligeiras desigualdades que escapariam a seu olho.
II. Falaram-me de um cego que conhecia pelo tato qual era a cor dos tecidos.
III. Eu poderia citar um que matiza ramalhetes com essa delicadeza de que J. J. Rousseau se gabava
quando confiava a seus amigos, seriamente ou por gracejo, o intento de abrir uma escola onde
administraria lições aos floristas de Paris.
IV. A cidade de Amiens viu um aparelhador cego dirigir uma oficina numerosa com tanta inteligência
como se estivesse no uso de seus olhos.
V. O uso dos olhos tirava a uma clarividente a segurança da mão; para rapar a cabeça, afastava o
espelho e se postava diante de uma parede nua. O cego que não percebe o perigo torna-se tanto mais
intrépido, e não duvido de modo algum que caminhasse com um passo mais firme sobre tábuas
estreitas e elásticas que formassem uma ponte por cima de um precipício. Há poucas pessoas às
quais o aspecto das grandes profundidades não obscureça a vista.
VI. Quem não conheceu ou ouviu falar do famoso Daviel? Assisti várias vezes às suas operações.
Eliminou a catarata de um ferreiro que contraíra a moléstia no fogo contínuo de seu forno; e
durante os vinte e cinco anos em que cessara de enxergar, adquirira tal hábito de se referir ao
tato, que foi preciso maltratá-lo a fim de obrigá-lo a servir-se do sentido que lhe fora
restituído; Daviel dizia-lhe ao batê-lo: Queres olhar, carrasco!... Ele andava, agia; tudo o que
fazemos com os nossos olhos abertos, ele fazia com os olhos fechados.
Poder-se ia concluir daí que o olho não é tão útil às nossas necessidades, nem tão essencial à
nossa felicidade, quanto estaríamos tentados a crer. Qual é a coisa do mundo à qual uma longa
privação que não é acompanhada de nenhuma dor não nos tornaria a perda indiferente, se o
espetáculo da natureza não oferecesse mais encanto ao cego de Daviel? A vista de uma mulher que
nos fosse cara? Não creio, qualquer que seja a consequência do fato que vou contar. A gente
imagina que se passasse muito tempo sem ver, depois a gente não se cansaria de olhar; isso não é
verdade. Que diferença entre a cegueira momentânea e a cegueira habitual!
VII. A beneficência de Daviel trazia, de todas as províncias do reino para seu laboratório,
enfermos indigentes que vinham implorar-lhe auxílio, e sua reputação atraía uma assembléia
curiosa, instruída e numerosa; creio que fazíamos parte dela no mesmo dia, o Sr. Marmontel e eu. O
paciente estava sentado; eis a catarata retirada; Daviel pousa a mão sobre os olhos que acabava de
reabrir para a luz. Uma mulher idosa, em pé ao lado dele, mostrava o mais vivo interesse pelo
êxito da operação; tremia com todos os membros a cada movimento do operador. Este faz-lhe sinal
para se aproximar, e a coloca de joelhos diante do operador; afasta as mãos, o doente abre os
olhos, vê, exclama: Ah!, é minha mãe!... Nunca ouvi um grito tão patético; parece-me que ainda o
ouço agora. A velha desmaia, as lágrimas correm dos olhos da assistência, e as esmolas caem de
suas bolsas.
VIII. De todas as pessoas que foram privadas da vista quase ao nascer, a mais surpreendente que
jamais existiu e que existirá é a Srta. Mélanie de Salignac, parenta do Sr. de La Farque, tenente-
general dos exércitos do rei, ancião que acaba de morrer com a idade de noventa e um anos, coberto
de ferimentos e cumulado de honras; ela é filha da Sra. de Blacy, que ainda vive e que não passa
um dia sem lamentar uma criança que constituía a ventura de sua existência e a admiração de todos
os seus conhecidos. A Sra. de Blacy é uma mulher distinta, pela eminência de suas qualidades
morais, e a quem se pode interrogar sobre a verdade do meu relato. Foi de sua boca que recolhi,
sobre a vida da Srta. de Salignac, as particularidades que puderam escapar-me durante um comércio
de intimidade que começou com ela e com sua família em 1760, e que durou até 1763, ano de sua
morte.
Possuía uma razão muito sólida, uma doçura encantadora, uma finura não muito comum nas ideias, e
ingenuidade. Uma de suas tias convidou sua mãe a vir ajudar-lhe a agradar a dezenove ostrogodos
que tinha para o almoço, e sua sobrinha disse: Não compreendo nem um pouco minha querida tia; por
que agradar a dezenove ostrogodos? Por mim, só quero agradar àqueles que eu amo.
O som da voz exercia sobre ela a mesma sedução ou a mesma repugnância que a fisionomia sobre
aquele que vê. Um de seus parentes, recebedor geral das finanças, teve com a família um mau
procedimento que ela não esperava, e ela observou com surpresa: Quem iria crê-lo em uma voz tão
doce? Quando ouvia cantar, distinguia vozes morenas e vozes louras.
Quando lhe falavam, julgava da estatura pela direção do som que a atingia do alto para baixo, se a
pessoa fosse alta, ou de baixo para cima, se a pessoa fosse baixa.
Ela não se preocupava em enxergar; e um dia em que lhe perguntei a razão: “É, respondeu-me, que eu
teria apenas meus olhos, ao passo que assim desfruto dos olhos de todos; é que, por esta privação,
torno-me objeto contínuo de interesse e de comiseração; a todo momento me fazem favores, e a todo
momento sou grata; se eu enxergasse, infelizmente!, logo ninguém mais se ocuparia de mim.”
Os erros da vista diminuíram para ela o valor desta. “Estou, dizia, à entrada de uma longa
alameda; em sua extremidade há um objeto: um de vós o vê em movimento; o outro o vê em repouso; um
diz tratar-se de um animal, outro diz tratar-se de um homem, e verifica-se, quando se chega perto,
que é um tronco. Todos ignoram se a torre que percebem ao longe é redonda ou quadrada. Eu desafio
os turbilhões de pó, enquanto os que me cercam fecham os olhos e ficam infelizes, às vezes durante
um dia inteiro, por não os terem fechado a tempo. Não é preciso mais do que um átomo imperceptível
para atormentá-los cruelmente...” À aproximação da noite, dizia que nosso reino ia findar, e que o
dela ia começar. Concebe-se que, vivendo nas trevas com o hábito de agir e pensar durante uma
noite eterna, a insônia, que nos é tão irritante, não lhe fosse sequer importuna.
Não me perdoava por haver escrito que os cegos, privados dos sintomas do sofrimento, deviam ser
cruéis. “E vós credes, dizia-me, que ouvis o lamento como eu? — Há infelizes que sabem sofrer sem
lamentar-se. — Creio, acrescentava, que eu logo os perceberia, e que eu os lamentaria ainda mais.”
Era apaixonada pela leitura e louca por música. “Creio, dizia, que nunca me cansaria de ouvir
cantar ou tocar superiormente um instrumento, e se esta ventura constituísse, no céu, a única a
ser desfrutada, eu não ficaria zangada por me encontrar lá. Pensais certo quando assegurais a
respeito da música que é a mais violenta das belas-artes, sem excetuar nem a poesia, nem a
eloquência; que Racine mesmo não se exprimia com a delicadeza de uma harpa; que sua melodia era
pesada e monótona em comparação com a de um instrumento, e que amiúde desejastes infundir a vosso
estilo a força e a ligeireza dos tons de Bach. Quanto a mim, é a mais bela das línguas que
conheço. Nas línguas faladas, quanto melhor as pronunciarmos, mais articulamos suas sílabas, ao
passo que na linguagem musical, os sons mais distantes, do grave ao agudo e do agudo ao grave, se
urdem e se seguem imperceptivelmente; são por assim dizer uma única e longa sílaba, que a cada
instante varia de inflexão e de expressão. Enquanto a melodia traz esta sílaba a meu ouvido, a
harmonia executa sem confusão, em uma multidão de instrumentos diversos, outras duas, três, quatro
ou cinco, que concorrem todas para fortificar a expressão da primeira, e as partes cantantes são
outros tantos intérpretes que eu dispensaria realmente, quando o sinfonista é homem de gênio e
sabe dar caráter a seu canto.
“É sobretudo no silêncio da noite que a música é expressiva e deliciosa.
“Eu me persuado de que, distraídos por seus olhos, os que enxergam não podem nem ouvi-la, nem
entendê-la, como eu a ouço e a entendo. Por que me parece pobre e fraco o elogio que me fizeram
dela? Por que jamais pude falar dela como a sinto? Por que me detinha eu no meio de meu discurso,
procurando palavras que pintassem minha sensação sem encontrá-las? Acaso não foram ainda
inventadas? Eu não poderia comparar o feito da música senão à embriaguez que experimento quando,
após longa ausência, me precipito entre os braços de minha mãe, quando a voz me falta, quando os
membros me tremem, quando as lágrimas correm, quando os joelhos vacilam; sinto como se fosse
morrer de prazer.”
Tinha o mais delicado sentimento do pudor; e quando lhe perguntei a razão: “E, dizia-me, o efeito
dos discursos de minha mãe, ela me repetiu tantas vezes que a vista de certas partes do corpo
convidava ao vício: e eu vos confessaria, se ousasse, que faz só pouco tempo que eu o compreendi,
e que foi talvez preciso que eu cessasse de ser inocente”.
Morreu de um tumor nas partes naturais interiores, que ela nunca teve a coragem de declarar.
Era, em suas vestimentas, em sua roupa branca, em sua pessoa, de um asseio tanto mais requintado
quanto, não enxergando nada, nunca estava bastante segura de ter feito o que era mister para
poupar aos que a viam o desgosto do vício oposto.
Se lhe vertiam para beber, ela conhecia, pelo ruído do líquido que caía, quando seu copo estava
bastante cheio. Tomava os alimentos com uma circunspecção e uma perícia surpreendentes.
Fazia às vezes o gracejo de postar-se diante de um espelho para enfeitar-se e de imitar todos os
trejeitos de uma coquete que toma as armas. Esta pequena macaquice era de uma verdade capaz de
fazer estourar de rir.
Haviam-se esforçado, desde sua mais tenra juventude, a aperfeiçoar os sentidos que lhe restavam, e
é incrível até onde foram bem-sucedidos. O tato lhe ensinara, sobre as formas dos corpos,
singularidades amiúde ignoradas dos que possuíam os melhores olhos.
Tinha o ouvido e o olfato refinados; julgava, pela impressão do ar, do estado da atmosfera, se o
tempo era nebuloso ou sereno, se caminhava em uma praça ou em uma rua, em uma rua ou em um beco,
em um lugar aberto ou em um lugar fechado, em um amplo apartamento ou em um aposento estreito.
Media o espaço circunscrito pelo rumor de seus pés ou pela repercussão de sua voz. Quando
percorria uma casa, a sua topografia permanecia-lhe na cabeça, a ponto de prevenir os outros sobre
os pequenos perigos a que se expunham: Tomai cuidado, dizia, aqui a porta é muito baixa, ali
encontrareis um degrau.
Notava na voz uma variedade que nos é desconhecida, e quando ouvia uma pessoa falar uma vez, era
para sempre.
Era pouco sensível aos encantos da mocidade e ficava pouco chocada com as rugas da velhice. Dizia
que nada lhe era tão temível como as qualidades do coração e do espírito. Era ainda uma das
vantagens da privação da vista, sobretudo para as mulheres. Nunca, dizia, um belo homem vai me
virar a cabeça.
Era confiante! Era tão fácil, e teria sido tão vergonhoso enganá-la! Era uma perfídia inescusável
induzi-la a crer que estava só em um apartamento.
Não tinha nenhuma sorte de terror pânico; raramente sentia tédio; a solidão ensinara-lhe a bastar-
se a si mesma. Observava que nas viaturas públicas, em viagem, ao cair do dia, todo mundo tornava-
se silencioso. Quanto a mim, dizia, não tenho necessidade de ver aqueles com os quais gosto de
conversar.
De todas as qualidades, o julgamento sadio, a doçura e a jovialidade eram as que mais prezava.
Falava pouco e escutava muito: Eu me pareço aos pássaros, dizia, aprendo a cantar nas trevas.
Comparando o que ouvira de um dia a outro, ficava revoltada com a contradição de nossos
julgamentos: parecia-lhe quase indiferente ser louvada ou censurada por seres tão inconsequentes.
Haviam-lhe ensinado a ler com caracteres talhados. Tinha a voz agradável, cantava com gosto;
passaria de bom grado a vida nos concertos ou na Ópera; não havia quase música barulhenta que a
enfastiasse. Dançava maravilhosamente; tocava, além do mais, muito bem a viola, e tirara desse
talento um meio de fazer-se procurada por jovens de sua idade e aprender as danças e as
contradanças da moda.
Era a mais amada de seus irmãos e irmãs. “E eis, dizia, o que ainda devo às minhas enfermidades:
ligam-se a mim pelos cuidados que me dispensaram e pelos esforços que fiz para reconhecê-los e
para merecê-los. Acrescentai que meus irmãos e minhas irmãs não se sentem de modo algum
enciumados. Se eu tivesse olhos, seria às custas de meu espírito e de meu coração. Tenho tantas
razões para ser boa!, o que seria de mim se eu perdesse o interesse que inspiro?”
Na mudança da fortuna de seus pais, a perda dos mestres foi a única coisa que lastimou; mas estes
lhe dedicavam tanto apego e estima, que o geômetra e o músico suplicaram-lhe com insistência para
que aceitasse suas aulas gratuitamente, e ela dizia à mãe: Mamãe, o que fazer? Eles não são ricos,
e precisam de todo o seu tempo.
Haviam-lhe ensinado música por meio de caracteres em relevo que eram colocados sobre linhas
eminentes à superfície de uma grande mesa. Lia os caracteres com a mão; executava-os em seu
instrumento, e em pouquíssimo tempo de estudo aprendera a tocar com partitura a mais longa e mais
complicada peça.
Possuía os elementos de astronomia, de álgebra e de geometria. Sua mãe, que lhe lia o livro do
Abade de La Gaille, perguntava-lhe às vezes se entendia aquilo: Correntemente, respondia-lhe ela.
Pretendia que a geometria era a verdadeira ciência dos cegos porque exigia forte aplicação e
porque não havia necessidade de nenhum auxílio para aperfeiçoar-se nela. O geômetra, acrescentava,
passa quase a vida toda com os olhos fechados.
Vi os mapas sobre os quais estudara geografia. As paralelas e os meridianos são fios de latão; os
limites dos reinos e das províncias são distinguidos por bordado em linha, em seda e em lã mais ou
menos forte; os rios, os cursos d’água e as montanhas, por meio de cabeças de alfinetes maiores ou
menores; e as cidades mais ou menos importantes por meio de gotas de cera desiguais.
Eu lhe dizia um dia: “Senhorita, figurai um cubo. — Eu o vejo. — Imaginai no centro do cubo um
ponto. — Está feito. — Deste ponto, tirai linhas retas aos ângulos; pois bem, assim tereis
dividido o cubo. — Em seis pirâmides iguais, adicionou por si mesma, cada uma com as mesmas faces,
com as bases do cubo e a metade de sua altura. — Isso é verdade; mas onde vedes isso? — Em minha
cabeça, como vós”.
Confesso que nunca concebi nitidamente como ela figurava na cabeça sem colorir. Este cubo ter-se-
ia formado pela memória das sensações do tato? Seu cérebro tornara-se uma espécie de mão, debaixo
da qual as substâncias se realizavam? Estabelecera-se com o tempo uma espécie de correspondência
entre dois sentidos diversos? Por que não existe esse comércio em mim, e nada vejo em minha cabeça
sem colorir? O que é a imaginação de um cego? Este fenômeno não é tão fácil de explicar como se
poderia crer.
Escrevia com um alfinete com o qual picava a folha de papel estendida sobre um quadro atravessado
por duas lâminas paralelas e móveis, que conservavam entre si espaço vazio, exceto o intervalo de
uma linha a outra. A mesma escrita servia para a resposta, que ela lia passeando a ponta do dedo
sobre as pequenas desigualdades que o alfinete ou agulha haviam praticado no verso do papel.
Lia um livro que fora impresso apenas de um lado. Prault o imprimira desta maneira para o uso
dela.
Inseriu-se no Mercure da época uma de suas cartas.
Tivera a paciência de copiar à agulha o Abrégé Historique do Presidente Hénault, e obtive da
Senhora de Blacy, mãe dela, esse singular manuscrito.
Eis um fato em que dificilmente se acreditará, apesar do testemunho de toda a sua família, o meu e
o de vinte pessoas ainda vivas; é que, de uma peça de doze a quinze versos, se lhe dava a primeira
letra e o número de letras que compunham cada palavra, ela reencontrava a peça proposta, por mais
extravagante que fosse. Fiz a experiência com anfiguris de Collé. Ela obtinha às vezes uma
expressão mais feliz que a do poeta.
Enfiava com rapidez a linha na mais delgada agulha, esticando o fio ou a seda sobre o índex da mão
esquerda, e puxando, pelo buraco da agulha colocada perpendicularmente, o fio ou a seda com uma
ponta muito fina.
Não havia nenhuma espécie de pequenos trabalhos que não executasse; debruns, bolsas cheias ou
simetrizadas, à jour, com diferentes desenhos em diversas cores; ligas, pulseiras, colares com
pequenos grãos de vidro, como caracteres tipográficos. Não duvido tampouco que não teria sido bom
compositor de tipografia: quem faz o mais difícil faz o mais fácil.
Jogava perfeitamente o reversivo, o mediador e a quadrilha; dispunha sozinha suas cartas, que
distinguia por pequenos traços que reconhecia ao toque; e que os outros não reconheciam nem ao
toque nem à vista. No reversivo, mudava de sinais nos ases, sobretudo no ás de ouros e no valete
de copas. A única atenção que se lhe dava era nomear a carta ao jogá-la. Se acontecia que o valete
de copas estivesse ameaçado, espalhava-se sobre o lábio dela um ligeiro sorriso que não conseguia
conter, embora conhecesse a sua indiscrição.
Era fatalista; pensava que os esforços que efetuamos para escapar ao nosso destino servem apenas
para nos conduzir a ele. Quais eram suas opiniões religiosas? Ignora-as; era um segredo que
guardava por respeito à mãe piedosa.
Só me resta expor-vos as ideias que tinha sobre a escrita, o desenho e a pintura; não creio que se
possa ter outras mais próximas da verdade; é assim, espero, que se julgará pela conversação que se
segue, e da qual sou um dos interlocutores. Foi ela quem falou primeiro.
— Se houvésseis traçado sobre minha mão, com um estilete, um nariz, uma boca, um homem, uma
mulher, uma árvore, certamente eu não me enganaria; eu não desesperaria mesmo, se o traço fosse
exato, de reconhecer a pessoa cuja imagem me tivésseis feito: minha mão tornar-se-ia para mim um
espelho sensível; mas grande é a diferença de sensibilidade entre essa tela e o órgão da vista.
Suponho portanto que o olho seja uma tela viva de uma delicadeza infinita; o ar atinge o objeto,
do objeto ele é refletido para o olho, que recebe dele uma infinidade de impressões diversas
conforme à natureza, à forma, à cor do objeto e talvez às qualidades do ar que me são
desconhecidas e que vós também não conheceis melhor do que eu; é pela variedade dessas sensações
que ele vos é pintado.
Se a pele de minha mão igualasse a delicadeza de vossos olhos, eu veria por minha mão como vós
vedes por vossos olhos, e imagino às vezes que existem animais que são cegos, e que nem por isso
são menos clarividentes.
— E o espelho?
— Se todos os corpos não são outros tantos espelhos, é por algum defeito em sua contextura, que
extingue a reflexão do ar. Apego-me tanto mais a esta ideia, quanto o ouro, a prata, o ferro, o
cobre polido tornam-se próprios para refletir o ar, e quanto a água agitada e o espelho riscado
perdem esta propriedade.
É a variedade da sensação e, por conseguinte, da propriedade de refletir o ar nos materiais que
empregais, que distingue a escrita do desenho, o desenho da estampa, a estampa do quadro.
A escrita, o desenho, a estampa e o quadro de uma só cor são outros tantos camafeus.
— Mas quando não há senão uma cor, não se deveria discernir senão esta cor.
— É aparentemente o fundo da tela, a espessura da cor e a maneira de empregá-la que introduzem na
reflexão do ar uma variedade correspondente à das formas. De resto, não me pergunteis mais nada,
não sei mais do que isso.
— E eu me daria muito trabalho inútil para vos ensinar algo mais a respeito.
Eu não vos contei, sobre esta jovem cega, tudo o que poderia ter observado frequentando-a mais e
interrogando-a com mais talento; mas eu vos dou minha palavra de honra que não vos contei nada que
não fosse de minha experiência.
Ela morreu, com vinte e dois anos de idade. Dotada de uma memória imensa e de penetração igual a
sua memória, que caminho não teria percorrido nas ciências, se dias mais longos lhe houvessem sido
concedidos! A mãe lia-lhe a história, e era uma função igualmente útil e agradável para uma e para
outra.