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Resumo: Este trabalho tem como objetivo realizar em uma investigação inicial acerca das
principais características que conformam o que pode ser chamado de processo de "ongnização" no
Brasil e sua relação com os feminismos durante a década de 1990. Buscarei analisar as principais
contribuições teóricas de pesquisadoras(es) que estudaram esse processo. A partir de uma revisão
bibliográfica, abordarei algumas análises a respeito do que é uma Organização Não
Governamental (ONG), do conceito de sociedade civil, das relações entre ONGs, sociedade civil e
Estado, bem como a noção de "terceiro setor" e suas críticas. Esses aspectos serão desenvolvidos
com o intuito de verificar as possibilidades de enfoque no estudo da relação entre movimentos
sociais e ONGs, e particularmente no interior dos feminismos. Irei me restringir à discussão de
questões teóricas, sem perder de vista a potencialidade de reflexões que outros estudos empíricos
sobre os mais diversos tipos de ONGs poderiam trazer. Palavras-chave: Feminismos, ONGs,
Redemocratização.
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Mestranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). E-mail: nathaliacadore@gmail.com
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"Ongnização" é um termo que se refere a um momento de proliferação de ONGs nos anos 1990, caracterizado pela
mobilização através dessa forma jurídica de organização e atuação política. Esse conceito será discutido nas páginas
seguintes.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
Essa problemática surgiu como parte de uma pesquisa mais ampla, referente ao meu
projeto de dissertação de mestrado, na qual busco compreender aspectos da trajetória da ONG
Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero3 e algumas de suas estratégias de atuação
no campo jurídico e social que visam ampliar as condições de acesso à justiça por mulheres,
sendo interpretadas a partir de dois eixos: a) o desenvolvimento de teorias sobre direitos
humanos e sobre direitos das mulheres enquanto direitos humanos, e suas relações com as
questões de gênero e com a história dos feminismos no Brasil; b) as particularidades
históricas da atuação de setores do movimento feminista no período da redemocratização do
país.
Dessa forma, a proposta do projeto de mestrado envolve pensar a trajetória dessa ONG
não enquanto um objeto limitado em si, mas como uma via para mapear e selecionar questões
de maior abrangência e que contribuam para compreender o referido problema de pesquisa.
No caso específico deste artigo, partindo do fato de a Themis ser uma ONG, busco elementos
para aprofundar a compreensão do que significou no contexto dos anos 1990 a expansão das
ONGs em geral e sua relação com os movimentos sociais e particularmente o movimento
feminista.4
Como expõe bell hooks logo na introdução de seu livro Feminism is for everybody
(2010, p. VIII), é possível definir “feminismo” (ou feminismos) como um movimento que
almeja o fim do sexismo e das opressões - de classe, de raça, de etnia, entre outras. A
amplitude dessa definição é interessante, pois, dessa maneira, pode abarcar a complexidade e
diversidade teórica subjacente no conceito de “feminismos”. É preciso esclarecer que partilho
da visão de que o uso do plural para se referir a esses fenômenos é fundamental, visto que a
diversidade das propostas, teorizações e ações feministas precisa ser expressa e não pode ser
reduzida. O pluralismo dos feminismos comporta diferentes perspectivas políticas construídas
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A Themis foi fundada em Porto Alegre por três mulheres em 1993, com o objetivo de promover maior acesso à justiça por
mulheres e de divulgar informações a respeito do campo jurídico de forma acessível, principalmente em relação a direitos
humanos e direitos das mulheres. A Themis compõe movimentos feministas em âmbito nacional e internacional, bem como
diferentes movimentos de promoção de direitos humanos, tendo recebido diversos prêmios ao longo de sua trajetória. A
maioria de suas participantes possui experiência profissional na área jurídica, e diferentes formas de identificação e de
militância nos feminismos. Desde sua fundação até o momento, as principais ações da Themis podem ser agrupadas em três
focos: 1) assessoria jurídica feminista para mulheres, através do acompanhamento e da difusão de informações em casos
referentes aos direitos das mulheres; 2) formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), enquanto instrumento de educação
popular e de multiplicação de informações sobre os direitos das mulheres; e 3) estudos de gênero, principalmente através da
realização de seminários e de publicações. Ao longo da existência da Themis, em determinados momentos cada um desses
três focos foram mais desenvolvidos ou foram realizados sob determinadas especificidades, dependendo da atuação das
participantes da ONG e do contexto em questão.
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Entretanto, não irei entrar no caso específico da Themis - nem de nenhuma ONG, como foi mencionado - porque isso
extrapolaria a proposta inicial deste texto.
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
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As lutas feministas não começam no Brasil na década de 1980, mas remontam a períodos históricos anteriores. Céli Pinto
(2003) realizou uma síntese sobre os movimentos feministas no Brasil desde o século XIX, destacando suas principais
características e pautas em cada momento. Além disso, é preciso ressaltar que nesta pesquisa a história dos feminismos não é
pensada em etapas, mas como processos complexos e, muitas vezes, descontínuos, sendo necessária a análise de cada
contexto e problemática particular, como abordou Clare Hemmings (2009).
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A década de 1970 também havia sido marcante para o desenrolar desses processos. Joana Pedro (2006) evidenciou, em seu
estudo de narrativas sobre a história dos feminismos no Brasil, uma grande importância relegada ao Ano Internacional da
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
Nesse sentido, a autora considera em seu artigo questões teóricas relacionadas com os
conceitos de “igualdade” e “diferença” e de “identidade de grupo” e “identidade individual”,
com o objetivo de avaliar as ações afirmativas nos Estados Unidos. Scott demonstra como,
visando formas de “justiça social” através de estratégias que visam “preencher a lacuna entre
o legal e o social” (SCOTT, 2005, p. 24), algumas linhas de ação afirmativa valem-se de
políticas baseadas na identidade. A identidade é vista como uma categoria instável, não eterna
ou natural, mas como uma construção social produzida a partir de processos históricos e
complexos de constituição da diferença.
A partir dessas problematizações, relacionadas com a idéia de que a igualdade jurídica
não é equivalente à igualdade de fato, ou à igualdade como almejam diferentes grupos sociais
que evidenciam formas de opressão particulares, é possível interpretar a atuação da ONG
Themis no campo jurídico, e talvez de outras organizações que podem possuir semelhanças.
Por ser uma ONG, essa atuação não é formalmente uma ação afirmativa de Estado, apesar de,
muitas vezes, receber diferentes subsídios de financiamento e apoio estatal. Mas pode ser
vista como uma forma, a partir de uma mobilização da sociedade civil de cunho feminista e de
política baseada na identidade, de realizar uma tentativa de promover maior acesso à justiça
por mulheres, que socialmente possuem obstáculos para ter acesso plenamente aos seus
direitos.
A busca por outras formas de igualdade que sejam mais concretas e não apenas a
igualdade liberal nos termos da lei, caracterizou e caracteriza muitas formas de mobilização
por identidades subalternizadas, bem como diferentes tipos de movimentos sociais. Em um
contexto internacional marcado pela crise dos regimes socialistas do Leste Europeu, bem
como do crescimento de projetos políticos associados com os ideais do neoliberalismo, se
delinearam especificidades na forma como os movimentos sociais em diversos países da
Mulher, em 1975, bem como a dois acontecimentos no Rio de Janeiro nesse ano: a realização de uma reunião na Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), e a formação do Centro da Mulher Brasileira (CMB).
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
América Latina passaram a se mobilizar. Durante a década de 1990 no Brasil, bem como em
outros países da América Latina, houve um fenômeno de proliferação de ONGs, das mais
diversas áreas e atuações. Temáticas e eixos de ação se estruturaram a partir de questões
ligadas ao meio-ambiente, cidadania, solidariedade, entre outras. É impossível analisar de
forma homogênea esses processos, pois as ONGs têm muitas diferenças entre si, sob diversos
aspectos (tamanho, objetivos, participantes, concepções políticas, formas de atuação e de
financiamento, entre outros). Contudo, muitas(os) estudiosas(os) evidenciam a expansão
desse tipo de instituição no período referido.
A historiadora e cientista política Céli Pinto (2006) estudou a importância das ONGs
no processo de defesa de interesses e de direitos no Brasil a partir dos anos 1990. A autora
sublinha como a presença dessas instituições de organização da sociedade civil permite
refletir sobre as possibilidades e limites de representação política diante do Estado. Um dos
problemas evidenciados é a descontinuidade que caracteriza maneira como as ONGs operam,
muitas vezes vinculadas a programas sociais de governos ou a diferentes formas de
financiamento que podem ser instáveis. Não é tarefa das ONGs substituir os deveres do
Estado, porém seu papel na esfera pública conquistou espaço durante os anos 1990, tendo
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mobilizações, de organizações das forças sociais que estão fora do poder institucional do
Estado, mas que também são um lugar de disputa. Por outro lado, a segunda tendência de
interpretação da sociedade civil seria marcada por uma visão tripartite entre sociedade civil,
mercado e Estado, na qual a sociedade civil é relegada para o chamado "terceiro setor", que
não seria nem o mercado nem o Estado. Segundo a autora, a própria noção de ONGs
inicialmente buscou se referir à esse terceiro setor. Nessa segunda tendência, alguns autores
trabalham com noções formuladas a partir de Jürgen Habermas, desenvolvidas sob a ótica de
caracterizar a sociedade civil como um espaço de associações voluntárias que seriam
autônomas do mercado e do Estado (SCHERER-WARREN, 1994, p. 6-7).
Quanto à tal perspectiva, Scherer-Warren assinala uma ressalva, afirmando que não é
possível entender um fenômeno social sem compreender as relações com o Estado e com o
mercado. Pensando nessa questão, Joana Coutinho realiza uma profunda crítica ao processo
de ongnização dos movimentos sociais na década de 1990, a partir de pesquisas realizadas
com entrevistas com dirigentes de grandes ONGs brasileiras e também de discussões teóricas
articuladas com o marxismo. O termo "terceiro setor" é abordado de forma crítica por
Coutinho, que após retomar e analisar diferentes perspectivas de definição desse conceito,
afirma que
O "terceiro setor" foi apresentado como a forma encontrada pela "sociedade civil"
para preencher a lacuna deixada pelo Estado no atendimento das demandas sociais.
Essa concepção adquiriu grande popularidade e tem sido repetida no meio
acadêmico amplamente e difundida pelos meios de comunicação. Mas vários
aspectos a que faz alusão podem ser questionados: relação com o Estado, com
empresas privadas ou, especialmente, com as lutas populares. (COUTINHO, 2011,
p. 33).
Assim, a autora problematiza a noção de terceiro setor enquanto sua definição sobre
corresponder à esfera pública ou à esfera privada, definição variável de acordo com a
perspectiva teórica e política em questão. Passando por diversas autoras e autores, realiza uma
interessante discussão sobre o conceito na ciência política. Além disso, ressalta que, para além
de teorizar sobre o lugar do terceiro setor no que é público ou no que é privado, é de suma
importância pensar as relações de classe que estão colocadas, buscando analisar qual é o
posicionamento dessas organizações na luta de classes. Ao longo de seu livro, o argumento
centra-se na idéia de que a atuação das ONGs é equivalente, em termos de função ideológica,
a formas de amortecimento dos conflitos sociais, não enfrentando diretamente o capitalismo
ou almejando uma transformação profunda das relações de produção, enquanto as ONGs -
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A relação das ONGs com os movimentos sociais também é discutida por Céli Pinto,
que diferencia essas duas formas de mobilização e também aponta aproximações. Muitas
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Alvarez (1999) também indica que seria necessário a realização de mais pesquisas de cunho etnográfico para aprofundar o
conhecimento sobre a forma como as ONGs feministas realizam seus projetos, sobre os usos, apropriações e formulações de
conceitos, bem como buscar elucidar seus efeitos políticos e sociais de acordo com o que cada ONG se propõe em suas
relações com outras instituições.
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quanto ao seu funcionamento, objetivos, ações e posturas políticas. Não é meu objetivo
defender, recusar ou julgar essa forma de organização do feminismo, mas, enquanto
historiadora e feminista, analisar as particularidades desse tipo de mobilização, que possui
seus limites e problemas, mas também e suas experiências importantes na luta contra a
opressão sexista, racista e de classe. Nesse sentido, esse foi um estudo inicial com o intuito de
aproximação desses temas, mas que possui muitos pontos a serem aprofundados e que será
desenvolvido em uma pesquisa mais ampla, como foi exposto no início do texto. Ainda
existem muitas lacunas na análise de ONGs feministas e suas práticas, que são multifacetadas
e possuem uma grande diversidade conforme o período e condições na qual trabalham, e
estudá-las pode trazer contribuições importantes para pensar diferentes formas de ação dos
feminismos na busca por transformar as relações de gênero, de hierarquias e opressões.
Referências
HOOKS, Bell. Feminism is for everybody: passionate politics. Cambridge, MA: South End
Press, 2010.
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
PEDRO, Joana Maria. Narrativas do feminismo em países do Cone Sul (1960-1989). In:
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