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E a invisibilidade da natureza
À medida que a urbanização galopante afasta, cada vez mais, a humanidade do mundo vivo, o
naturalista Michael McCarthy explora as formas como a antropausa, despoletada pelo coronavírus,
conferiu, numa escala sem precedentes, uma nova visibilidade à natureza.
A crescente invisibilidade da natureza é um tópico de pouco interesse para o público
em geral, dado que a preocupação pública se centra, sobretudo e compreensivelmente, na
degradação e destruição da natureza. Ainda este ano, fomos confrontados com uma
estimativa profundamente drástica dos danos causados pela sociedade humana ao mundo
natural. O relatório bianual elaborado pelo Fundo Mundial para a Natureza e pela Sociedade
Zoológica de Londres, publicado em setembro, estimou que, entre 1970 e 2016, a
população global de mamíferos, aves, peixes, anfíbios e répteis decaiu em média 68%. Ou
seja, mais de dois terços da fauna vertebrada do mundo desapareceu em menos tempo do
que o equivalente a uma única vida humana.
Este panorama é tão dramático e merecedor da nossa atenção que não custa
compreender que, fora da área especializada da reflexão ecológica, a crescente invisibilidade
da natureza seja um assunto que merece pouca, ou nenhuma, atenção. Contudo, este
problema reveste-se de uma enorme importância, pois, à medida que o mundo natural está
a ser destruído, as suas heranças vitais estão a desaparecer das nossas vidas, das quais
fizeram parte durante longuíssimos períodos de tempo.
Existem duas grandes razões para isto. A primeira é a urbanização, que está a crescer
de forma exponencial por todo o globo, o que faz com que a maioria dos habitantes do
planeta viva em cidades em vez de viver no campo.
Como todos sabemos, é difícil encontrar natureza nas cidades. Uma vida urbana implica
um menor contacto com os ritmos dos ciclos naturais; com o silêncio; com a visibilidade das
estrelas; com o ar puro; com os rios não poluídos e as florestas naturais; e com a fauna e a
flora, desde as aves aos mamíferos, e desde os insetos às flores.
Pode não se tratar de uma perda total. Mesmo num mundo de arranha-céus, sabemos
que está mais calor no verão do que no inverno, e que a luz do sol também brilha mais no
tempo quente. Contudo, não deixa de ser verdade que desapareceram pequenos e subtis
sinais — facilmente abafados pelo ruído do trânsito, pelo barulho da música eletrónica e
pela poluição — que demonstram que há mudanças a ocorrer no seio da Terra, em particular
durante o grande renascer da primavera, que produzem um imenso prazer, e que despertam
mesmo uma profunda reverência, desde tempos imemoriais.
A segunda razão prende-se com a influência do ecrã eletrónico. Esta teve início com o
advento da televisão nos anos 50 e foi reforçada pelo aparecimento, nos anos 80, dos
computadores pessoais e dos jogos de computador. Todo este processo teve um enorme
incremento com a chegada da internet nos anos 90.
Na obra Last Child in the Woods [A última criança na floresta], o autor Richard Louv
documenta, de forma vívida, a forma como os jovens já não brincam nas florestas, nos
campos e nos parques onde os pais brincaram, preferindo passar os seus momentos de lazer
no interior da casa e no mundo dos ecrãs. Louv cita mesmo um rapaz de San Diego, que
afirmou: “Prefiro brincar dentro de casa, porque é lá que estão todas as tomadas elétricas.”
Por volta do virar do século XX, as consequências da alienação das crianças em relação
ao mundo natural incluíam, segundo Louv, uma diminuição do uso dos sentidos, dificuldades
de atenção, e uma maior quantidade de doenças físicas e emocionais. A esta síndrome, Louv
conferiu o nome de “défice de atenção natural.” Neste momento, a invisibilidade da natureza
intensificou-se muito para lá das observações feitas por Louv há cerca de quinze anos.
Não é fácil, e pode mesmo parecer inapropriado tirar conclusões positivas de um tão
trágico conjunto de circunstâncias, que se revelaram devastadoras para inúmeras famílias em
todo o mundo, e que totaliza já um milhão de óbitos. Contudo, o impacto do COVID-19 foi
construtivo para o ambiente, mesmo se de forma bizarra e incongruente.
A maior razão para isso foi a “antropausa”, como rapidamente se tornou conhecida. Ou
seja, o grande hiato na atividade humana causado pelos confinamentos a que a pandemia
obrigou na primeira metade do ano, e que envolveram cerca de quatro biliões de pessoas.
Em termos ambientais, a antropausa de 2020 é um acontecimento colossal, um dos maiores
e mais significativos eventos no contexto do mundo natural, sobretudo desde a exploração
de que este foi alvo após a Segunda Guerra Mundial. A antropausa gerou um espaço de
desafogo do tamanho do planeta.
Contudo, é a nova conexão entre pessoas e natureza que melhor ilustra o novo olhar
que a pandemia ajudou a lançar sobre aquela. Enquanto a vida laboral atingia um ponto de
não retorno no mundo humano, a vida no mundo natural florescia como nunca, o que
intensificou por certo o interesse renovado na natureza, por parte de pessoas que
procuravam algum tipo de distração durante o confinamento.
Mesmo num contexto tão traumático, a natureza continuava disponível. Não tinha
mudado de direção, nem tinha sido destruída pela pandemia, este imenso evento que estava
a destruir quase tudo, que estava a transformar o ano de 2020 num ano perdido para os
acontecimentos humanos. Neste tempo de caos no mundo das pessoas, a natureza
permaneceu uma constante, como sempre o foi. O COVID-19 tinha destruído, pelo menos
temporariamente, inúmeros artefactos humanos; tinha parado os negócios, o comércio, as
viagens, o desporto, a educação, o entretenimento, e todo o tipo de encontros sociais. Mas
não tinha parado a primavera. Para a natureza, o ano de 2020 não foi um ano perdido. Muito
pelo contrário.
Se tivermos tido consciência disto, teremos tido consciência do valor único do mundo
natural, que detém a chave das nossas origens e continua a ser o verdadeiro lar das nossas
psiques, tal como Robert Ulrich descobriu. Apesar das atitudes hostis de muitos de nós, a
natureza continua a providenciar ar, água e alimento, resiliência e maravilhamento. E creio
que todos nos demos conta da necessidade de partilhar os seus benefícios e de tornar a
questão do acesso equitativo à natureza uma prioridade da agenda política.
Em dezembro, com pandemia ou sem pandemia, o solstício de inverno virá até nós de
novo. Trata-se de um dia profundamente feliz, pois significa que haverá cada vez mais luz
nos nossos dias e que nada a poderá travar. A sensação de que a natureza é uma força
imparável tornou-se particularmente clara para mim, e sem dúvida para muitos outros, em
virtude do acontecimento mundial e histórico que é o coronavírus, por muito que se trate de
um paradoxo trágico. A natureza tornou-se visível de novo devido a essa circunstância
extraordinária que é a antropausa, e também devido à necessidade que as pessoas têm de
procurar na natureza o alívio para níveis de stresse sem precedentes.
O mundo natural não desapontou os que o procuraram, mercê da sua capacidade para
nos consolar, regenerar e recarregar de energia. Sobretudo mercê da sua simples presença,
tão frequentemente ignorada e subvalorizada, que continua a inundar de vida a nossa
existência, mesmo quando os artefactos humanos se desmoronam à nossa volta.
Michael McCarthy