Coias, Rui - A Função Do Geógrafo2000

Você também pode gostar

Você está na página 1de 19
Rui Coias ACAMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE FAMALIGIO APOIA AS QUASI EDICOES ADQUIRINDO 100 EXEMPLARES DE CADA OBRA PUBLICADA POR ESTA EDITORA A Fungao do Geégrafo PUBLICAGAO PATROCINADa PELO INSITUTO POTRUGUES DO LIVRO E DAS BIBLIOTECAS Se quiseres que eu me perca buscarei outra ilha. Esperarei a sombra diante dos olhos, co milhafre na ravina de crisintemos. Ao longe, correndo para a primeira luz do dia, estarei & tua espera, acenando com a mio esquerda, avangando sobre 0 mar. Nio te esquecas, aprendi um dia como deus nos traz um sono eve que nos cega. Poderds afirmar, passageiro ha muito conhecido, que o decorrer dos anos te nao enganou? No reparaste nas zonas extintas por que passdmos, com suas estatuas serenissimas, e os casais fingindo-se a dormitar ao sol? Vé como jé nao falam e balangam os bracos como quando davam passeios nos parques, decifrando a boténica, regressando depois a casa demoradamente. Sera simples e calada assim a morte ~ e que s6 € ordenado que afaguemos, apés o labor, 08 cabelos escortidos de nés mesmos como a nossos pais? E assim nos amemos nas cidades desfeitas arrependidos de nao ouvirmos quem nos avisou? Sabias set 0 augiirio a adivinhagao do futuro pelo voo das aves? Sob que promessa faremos entao discorrer as nossas penas? Acalentaras 0 adulto milhafre, serpejando a vazante, ou pretendes me detenha na veneravel contemplagao do corvo? Minuciosa é a travessia para o coragio sereno, sem Iéstima; pois anda ¢ comigo reparte o oficio do condutor de cotovias. Pelos quintais seguiremos o seu trilho na erva molhada, também com ele formaremos um cortejo, pobres aprendizes por chegarem os anos eo que vivemos, um dia, indiferentes, sem perguntarmos que sé isso podia importar. Julgavas esse o derramado corpo da melancolia, descendo is incertas varandas com a chuva de uma noite de inverno atravessada pelos fardis dos carros. Confesso que 0 seu corpo & antes 0 horizonte, © traco imével das confidéncias do mundo. Lembra-te ser o horizonte a sepultar os instantes, a revoada dos nomes e das margens. Haverds assim de temer a simples ave acertando 0 rumo, © remador sinalizando as éguas © rosto de quem conheceste tantos anos a teu lado. Estreita 0 passo ao avistares a encosta dos rios. Da nascente ao vale nunca saberds 0 que acontece. Louva os rios inertes subindo um a um aos afluentes ~alastra os teus lamentos pela margem. Recordaras os cisnes na esta¢ao da lama fria, © seu despovoado rumo sobre os campos. E se o segredo dos rios te fizer chorar regressards por fim pelos campos inundados como 0s cisnes tao solitariamente rumando rio abaixo. Cautela com as peregrinas viajando pelos campos: trazem no peito ondulante as escarpas do ardor. Caminha ainda uma vintena de horas no bosque limpido, no ouses escutar a fragdncia das cangées. E ao afastares o passo por entre as folhas de ciprestes vers os formosos terrores nos nds mais 4ridos do corpo. Foi a noite em que provémos as plantas da loucura, O visitante bebia égua no tanque e molhava a fronte & passagem da coruja. Disse que subiriam como névoa pelos bragos quentes as cangées de outras Iinguas que cantémos. Tao lentas eram que inclinavam ao relento, tal a brisa do tanque por detras da roupa. ‘Toda a meméria havia pasado em um corpo estranho, nunea os olhos ficaram tao vagos antes de sorrirmos. Quando partiu visitante deixou o tiltimo recado distribuido nos beirais. Nio provocou rasto nas veredas e nos remoinhos de gua ‘mas dizem que aparece soterrado pela noite. E.ao amanhecer, sem que os galos ja cantassem, des- cobrimos uma a uma nos beirais as flores do esquecimento. Pensaram que o inverno traria este céu de tempestade. A levante, na nascente, esperam a vinda das mulheres pela encosta, guiando os rebanhos. Cortaram a madeira nos alpendres, aqueceram-na em redor do santo encravado na rocha, tal 0 faziam os ancidos, cuidadosamente, em sintonia. Se a noite descer — como a hist6ria terrivel da infancia, juntardo as cinzas dos fogachos e espalhardo as sobras pelas casas ¢ a entrada dos quintais, como ensinara o milagre. Quando a noite descer ¢ os lagartos revirarem os olhos afugentardo os lobos com coroas de urze na lapela, expulsardo a bruxa até os péssaros sossegarem na cira. E no tiltimo dia, ao levantar da alba e com as mulheres tornando aos campos, em siléncio, sentar-se-do no atrio da serra ¢ contardo aos filhos os mistérios, os dons encantados das palavras aprendidas mais a norte na montanha. Sio os olhos que aproximam os lugares ao coragio, Agora que regressamos é nisto que penso enquanto fazemos sinais uns para os outros com as luzes dos carros, na répida estrada, a0 anoitecer, Olha-se devagar para a vida e sobretudo assim damos conta dos léncios, dos nomes devolvidos ao tao leve siléncio, A casa vineada pela névoa, a aldeia imobilizada ao passearmos em grupos, ‘0 café que me conforta quando o recebo entre as maos. Como dizer que sio estas as mais secretas regides da alma a que voltamos sempre nos maiores frios de dezembro? Se de repente dizem que estamos a uma eternidade fragil dos dias inquietos, cruzas uma palma da mao sobre a outra e olhas para as unhas, rindo de quando em vez para mim, que fico tio feliz. E no regresso, quando os sobressaltos se repetem € anoitece nas estradas vazias e o mundo adormece, hha uma solidao que estremece as bermas ¢ nos aflige debaixo da lingua, como uma chuva miudinha, Como falar depois da tua inclinada cara a meu lado edo recanto mais longinquo dos pinhais? Como acreditar que o tempo nao traré aos olhos a maior solidao em que ficémos? 10. Lembro a tua voz quando disseste tenho medo, nao quero voltar. Ao pé do automével estavas parada contra o rio da estrada cinzenta de penacova. Eu sei que nunca morrerd essa tua voz, essa tua vor ld longe e abandonada, a yoz tio triste contra o rio cinzento. Seria mesmo assim o final mais doce? Haveria assim de bater sempre 0 coracdo, tio 86 pela curva da estrada? Aceno-the de longe, hoje ainda, como a um instante indecifrado da infancia, como a chuva nao parasse de cair nas Arvores frias junto a curva, e a tua voz parada, tao parada ¢ triste quando disseste nao quero voltar, tenho medo fosse a sombra de uma coruja empalhada, a sombra empalhada contra 0 rio, a tua voz cinzenta, to Jonge na estrada de penacova Nao é dificil um homem apaixonar-se. Zerit a sua paisagem, inzas de um passado cafdo, fluente. Ao fim de vidas partilhadas pode ser que figa “esteemeci furante anos sem te abragar”. Agora é tarde, \gora é tarde sobre a terra cercada. Yor planicies ficou o desespero, dor lilés dos homens socobrados 1a paciéncia nocturna {6 depois do terror os ces ladram fielmente ‘0s portais da manha, s6 ipés o gume das vidas partilhadas. ‘Passei a vida a fugir para a tua boca”, e confundo jé 0 teu rosto ‘om um qualquer. 12. ‘As vozes partiram. Voaram para fora do terraco deixando-os s6s, Os homens tm medo de chorar sozinhos. Por isso escutam as histérias prodigiosas uns dos outros. Assim toleram 0 amor falhado, © amor flectindo na face como cachos de uvas. Os homens perderam-se, ficaram desamparados ¢ retidos com medo da noite. Nio voltardo a estender-se no cansago branco da juventude. Apertam nas mios rosarios de oiro sob os alpendres ¢ deixam-se fitar pelas mulheres que passam altivamente, Ao fim da noite adoecem no calor dos terragos, escutam em siléncio os poemas de kavafis. Ao fim da noite, as mulheres apaixonam-se perdidamente por eles ce dao-lhes as almas para que as protejam. 13. Nao temas sem mim, nao chores mais, ndo queiras que levem os olhos a essa noite va. HA que suster © passo em segredo, colher uma sé semente do centeio, deixar que 0 dia nos assombre com uma palavra s6. Acredita que mesmo longe guardamos a solidez em que nos esperdvamos como se soubéssemos ainda toda a esperanca. Acredita que com trés passos s6 retomaremos a candura eum anjo ainda tornard discretamente longa a nossa auséncia, 20 14. Cubro toda a terra daqui Dizem que € efeito das ilhas, j4 0 pressinto. ‘As nuvens enegrecem no canal enquanto te digo isto. Ha também algo de nocivo nisso, eu sei. Tu sabes. Talvez venha a tornar-se a voz numa sombra ~ é 0 que dizem, ao chegar a estagdo das beladonas. Foi apés embarcares que senti tudo isto, que comecei a confundir a nogio dos dias, © tempo que trazemos nos relégios. ‘Chego a tremer com 0 siléncio no planalto, com o cheiro a cainhamo das furnas ¢ da neblina limosa formando-se em torno delas. Acontece-me ter perdido alguns nomes, outros lugares parecem-me vagos, ausentes noutro corpo talvez. esquecido, em extingio, Mas descansa nao é por vontade, é mesmo assim, jé tinha dito. E talvez porque o que fomos se apagasse ¢ 86 pudéssemos esperar € uma sombra nos cresca na vor, cada vex mais. Tu dirds isso por af A tua maneira, se quiseres - j4 agora nfo o esquegas. ‘Vou ficando semanas seguidas c4 em cima, sem descer & costa. 2 Aqui aguardo me tragam as cartas, as tuas, nao julgues que nao dei conta dessa angiistia, Se soubesses como me parecem sempre um eco, 0 pressdgio de um mal que est para acontecer, Mas nfo so sempre elas isso mesmo, uma vor sustendo-nos, um medo na parte mais desconhecida da meméria? Agora enquanto te digo isto as nuvens enegrecem no canal, a tarde ficou mais bela, como s6 aqui pode ficar com 0 vento que sopra do norte, da graciosa. Tu sabes como sempre estas coisas me impressionaram: a ressondncia do ar cé em cima, o mar escuro longe da costa, além de todo o possivel, a rebentagio das ondas nos baixios para depois invadir as praias. Mas além de tudo este silencio oferecido no caule das horténsias, esse siléncio impedindo a aproximagio do mar a toda a volta, JA te disse como aprendi a desconfiar do mar, Da sua deriva invisivel de um ao outro lado da itha como um perigo, ¢ fosse preciso agarrarmo-nos ao cais para nao cairmos. Ji te disse que nfo hé outro lugar para se saber isso, outro lugar de onde se cubra assim toda a terra. Tenho cuidado do viveiro, tal ¢ qual ensinaste, ld vou escrevendo uma ou outra coisa devagar, se a isso leva. O licio passa de quando em vez de caminho para o norte grande, Vai ficando por um ou dois dias, quando insisto. Fala-me muito das ilhas e das pequenas histérias, das araucdrias que chegaste a ver, da urzelina e da vila que ficou submersa com a lava, menos a torre, das pequenas baleias que se passeiam ao longo da costa como no belissimo livro do tabucchi, que te contei. Tudo est aqui ligado, no fundo ~ mas isso jé nés sabemos. Por isso cubro toda a terra daqui. Olha, ‘um barco vem descrevendo agora a sua rota no canal. Conheso-o daqui to bem no seu siléncio. Foi nele que chegémos. Foi nele que partiste, E sabes, no que mais tenho pensado € nisso, no significado das rotas, no que elas tém a ver com tudo isto que te conto, com 0 que nos conduz na vida ¢ nao sabemos. ‘Ha um mistério nisso. Tu também sabes. £ o maior mistério e nao podemos persegui-lo, ‘Como se nos afastassemos e s6 pudéssemos esperar € fosse mesmo isso o que esté certo. Sim, cubro toda a terra daqui. Outro dia abri a semente vermelha do café raro e percebi que nao quero sair nunca mais. “Talvez te custe saber isto, nao sei. Se calhar custa-me mais a mim. Por isso quero dizer-te que nfo posso partir. Acho que a vida encontrou-me na tranquilidade certa, a verdadeira, a que nos cerca como um nevoeiro. E podia contar-te mais, se quisesses. Agora entendo como deviamos contar a nossa vida sabias? Contar que ela tem a ver com tudo isto, deambular por toda a nossa vida até aportarmos aqui, vigiados pelas horténsias, cobrindo toda a terra. Agora eu amo este planalto como nfo te amo a ti. Porque amo-te apenas quando partiste. Quando me deixaste na mao a certeza de te esperar ¢ 0 dom de vigiar os navios ¢ os cagarros. Agora o vento cresce do mar pelo lado norte e espero-te. As nuvens enegrecem no canal, jé tinha dito, Assim ficarei até que chegues. Até reconhecer o teu léncio na inquietagao das rotas, Disseste que vinhas quando no esperasse a tua carta, E cr@ mais nao ires pressentir do que a minha sombra 1é pelo tempo das beladonas. Esta é a terra nocturna. A do liquene azul do poente. Receberemos nos ombros a incandescéncia dos cedros. A noite tem um chacal que vem comer os viajantes, insinua-Ihes sigilosamente na nuca o ocidente acabado, O coragio espera o tiltimo lugar do mundo, 0 inevitavel press4gio dos meses costeiros. Que mistério sobe ao planalto cultivando o liquene? Que segredo abengoa os campos onde pastam hirtos os cavalos? O nosso siléncio reacende a morte na terra nocturna. Em cada bengio s6 lembramos os rostos que um dia amamos. Os mortos levitam na urze, enchem os ar das ilhas, ‘0s cavalos retinem-se sob 0s cedros abatidos. (O mar invadiu as outras costas, chegou ao centro da ilha. Nao [sinto. Subiu no nevoeiro pelo lado do vulcdo, mas nao o sentimos, perto [da urze. ‘A chuva vem caindo semanas inteiras enquanto mordemos 0 [mentastro. Posso agora atenuar a voz, deixa-la junto a ti, para que te [acompanhe. Vai depressa. Vai, e se quiseres, perdoa-me. Mas simplesmente vai e recua apenas o tempo de colher as framboesas. Entaio [perdoa-me ‘A verdade é que recomegarei a fuga, tracarei nos mapas o claraio [nocturno © 0 perigo do arquipélago visvel. E tudo o que me resta é sossegar. Farei da memoria a funcao do gedgrafo, E adormecerei, [despercebido. ‘A minha companhia levar-me-é de porto em porto, até sinal teu jé [nao haver. Hei-de regressar as cidades, mas quando ficarem cobertas de um [p6 fino, Ena enseada do ouvidor, dirdio um dia poder encontrar-te em certa [ilha entoando sapateias aos amantes que vieram ouvir a nossa historia, 26 Nao temo 0 meu anjo, aguardarei que me chame, até ficar ferido. E haverio de procurar-me no outono e na bagacina, meu amor ... 7 Olha, lembra-me melhor como era hé muitos anos, em san andrés. Quando érion recuava a leste, de cintura invertida, apontando ao {mar, € me esperavas junto a cruz, como se pudesses ficar comigo. Mas tenho a certeza poder ir encontrar-te um dia onde © vento langou as juntas de madeira dos pesqueiros € 0s vendedores de amuletos de pao diziam que um cargueiro te esperava, nas rias altas, sob luzes brancas de holofotes. Olha, se calhar sempre voltarei pela mesma estrada dos pinhais, se calhar 8 mesma hora em que desabei todas as penas ao jurar ver-te sentada, nos degraus da cruz, em teixido. Jamais desculpei a galiza por nao entender porque partias, também ela me reteve por repeticios anos sem que pudesse voltar, Euma ¢ outra noite quis escrever, falar-te, partir e deixar-me, adivinhar-te para sempre como se pudesses ficar comigo, Sltima morte que consinto na minha vida. 18. Pouco me lembro de ti. Embora evite lugares, continue os teus gestos a certas horas. Outras estradas tém vindo a tornar-se familiares, embora jé as no conhecas. Assim como 0 novo outono que se aproxima nos estalidos da casa, nos amigos que me visitam, e nas suas vidas, que desconhego. Por isso, agora neste vale acostado no atlantico norte, em gleann cholm cille, onde viajo na linha encapelada dos penhascos, foi com dificuldade que recordei o costume de te abragar por cima dos ombros. Talver.sejas, no fim de contas, jé tao incerta como o gacltacht desta quase peninsula, esta vila, de casas ¢ jardins inclina- e com que se nom: dos, iluminada, para quem chega de malin beg, nas estrias da visibilidade ocea Mas levo de ti a mesma vitalidade destes sitios, e destes nomes soprados, a. como se das cinzas azuladas que o litoral alteia aparecesses, na curva da abadia, alheadamente esguia ¢ agoitada como as bailadoras do cla. E é certamente na tua sombra, a mesma das raparigas alvas perfilando as bermas, 29 que a noite desce no fim das casas onde a estrada segue no interior dos dias e das lagoas, para tio longe dos teus ombros, tao longe que rogam uma harpa fem que a luz margina, 19. Em dias de viajem, pensamos poder seguir para norte ou se viramos a poente, para longe da costa. AAs vezes depende da transigio na fachada das casas, da forma como pronunciamos os nomes nas placas locais ou simplesmente porque o céu rodou a sul, na traseira do carro. Entdo a imaginagdo retoma-nos como um pinheiro manso: atravessamos a vida nos mapas e deixamos o corpo em todos os [lugares. ‘Onde as estradas sio a tinica verdade intensa, © lado que acompanha no mundo a devastacao da luz, haveremos de viajar juntos para sempre. Depois perguntamos que percursos fizémos, que curva de pé é aquela no sopé da montanha, porque terd a floresta to crescido perto do mar, “Em que direcgao passdmos a fronteira onde pelo rio fora o incéndio cercava os montes?” E dificil passar. Tio dificil como, anos depois, ver chegar 0 inverno ainda com 0 cheiro das fogueiras nos eucaliptais de lorvao. Pudéssemos voltar, Pudéssemos, nos olhos pretos e liquidos de quem olha indiferente. Ficamos a crescer, Como os lugares Ié longe, nas curvas da estrada. E viajamos. Nada atraigoa ou nos descobre Onde caminhémos, para norte ou nascente, & beira das terras, juntos ficémos para sempre. 20. Hoje, 4 hora em que o sol descai nas hastes secas dos ulmeiros, william sentou-se comigo no paredao do cais. Ajeitou os éculos, virou-se para o prolongamento da costa, mais vistvel, do ponto em que estévamos, na direcgio de rosses point, € [falou: “e se e disser que as amamos ¢ clas ndo sabem?” Deteve-se nos montes, na sua erva rasa que da escarpa acomete a0 [oceano, e permaneceu a seguir-Ihes as sombras, a completé-las com [fantasias déceis, como nas manhas em que, cabisbaixo, seguia os nevoeiros de [drumcliff. “B se te disser que nao entregues 0 cora¢Zo completamente; aquele que todo o coragao ofereceu tudo acabaré por perder”. Inclinow-se, a madeixa caiu-lhe na testa, tal a tragara o pai para 0 [retrato, 08 seus vinte ¢ poucos anos escoaram, o rosto desuniu-se, perdew [o angulo para revelar-se como 0 ventre ruinoso de uma casa sob a fachada [colorida. EA hora em que os quintais se abriam a vizinhanga, em sligo, onde por acaso s6 ao redor:da baia 0 mar adensa as casas, de resto {nitidas, william confessou que nada descobrira, que em tudo se enganara e tudo era um logro, por muito que nelas os suaves labios 0 [desmentissem, Depois estendeu-me a mio ¢ levantou-se, Pedi para caminhar com [ele. Levou-se a clareira onde na infancia esgravatava a terra A procura [de raizes € sentira, sem ninguém ver, um empurrdo nas costas, num domingo [de tempestade. Conhego quem todo o coragao deu e perdeu tudo. Mas elas nio [sabem, elas nao sonham que de beijo em beijo se iro sempre consumindo. ‘Mais tarde, soube-o, partiu, Tal como ele havia partido, a0 [chegarem as primeiras chuvas de setembro quando por um pat de vezes passou [no canal e expulsou os quatro passaros, os quatro beijos dos seus ombros. Soube-o que jamais seguiu os muros de pedra e a arquitectura das Itorres, contornou os afluentes ¢ os fortins das ilhas desvastadas, sem por um dia deixar para trés, por entre as cangdes € os [prenaincios, 68 seus olhos bronzeadores dos ulmeiros, os seus passaros nos [ombros. E william, que com os anos se foi tornando distintamente leve, [harmonisoso, nas vésperas de flanquear a branca porta quadrada sob os gonzos, [ao entardecer, voltou a sentar-se comigo como a vinte € poucos anos na bafa de [sligo, a hora em que do outro mundo de além mar, de sete em sete anos, ela aparecia sob as ondas das ilhas fabulosas, nos areais da terra [encantada, ¢ Ihe entregava 0 coragio para que nele poisassem os quatro [passaros € 08 dois pudessem despedir-se com quatro beijos. ‘Vejo com os olhos de deus. Adormego como ele sobre as paisagens. Dispus cuidadosamente o sangue pelas arcias, a0 dobrar 0 cabo dos anos, calei-me. Ficarei de fora olhando a vida em horas mortas como as crisdlidas que abrem nos fios de agua. © tempo vai esmorecendo nas pobres vozes, 6 uma terra parada a que nos deixa a descobrie. E deus cala-se a meu lado, adormecido como o melro docemente tranquilo. 22. Dizia que viajar é poder partir-se para o lugar em frente, que cada lugar sé impressiona porque sugere a visibilidade do proximo. E que no fim, quando abandonamos tudo ¢ j& nao ouvimos seniio o repique dos sinos, as paisagens deixam de existir para ndo passar do que a respiragao liberta, “0 que nos conduz é podermos sepultar 0 corpo noutro lugars porque em todos 0s sitios passados deixamos 0 corpo a vista do lugar mais proximo”. Percebi, sem que mostrasse algum temor, que havia descoberto a transparéncia do mundo, que fora auxiliado pela face suspensa dos viajantes. E lembrei-me como o tempo havia de ensinas, desde a juventude a velhice, que onde a beleza assola habituamo-nos a uma pausa nos olhos, nas maos e nos olhos que sao 0 que nos diz. do pouco do que nos fica sempre. Nio hé lugares, nunca houve, nem mesmo antigos. HA 0 que olhamos neles, a sua marca de pé de lo que os faz [sumir. $6 assim conseguimos chegar. S6 brandamente, para lembrarmos. Nao para tocar as colunas liléses ou fazer a travessia no veleiro das [tangerinas. Sé6 vagamente andamos. Nao caminhamos, debaixo do so Os pés dos ndmadas nao enegrecem com as areias ¢ as éguas de [pequenos porto: Sao os ulmeiros que nos protegem e ndo os seus terracos. A marca de pé fere-nos numa gota desmaiada, podemos entreté-la mesmo entre os dedos que nao petrefica. Nada mudou desde o primeiro queixume, foi com os olhos que partimos na linha do mediterraneo € so as oliveiras o seu diurno limite. 24. is importa. Nio distinguimos com clareza o que m: ‘Vemos apenas 0 que podemos ver claramente, Nada descobrimos. ‘Mas 0 mundo simula 0 seu desconhecimento ¢ 0s mundos Igravitam, Por imensos invernos foram obrigados a permanecer a norte, em vinte dias e noites de tempestades, os povoadores, jé [descrentes, viram-se para o mar ¢ clamam, juntando aos cantos as voxes [continuas. Nao temem pelo que cantam mas pelo que est4 audivel no silencio do que os possui de cima na paisagem. E orando As previsdes futuras, como o fizeram os antepassados, ateiam as fogueiras no alto das ravinas e receiam pelas familias, s mulheres que os esperam nos altares de velas, igando os netos, escondendo as trangas sob os xa Onde 0 vento nto passar acendei as velas e raspai os cobres; trancai os eabelos onde o azeite vos cheirar, uni as maios, pois é dezembro 0 més em que deveis ter medo. F-nos anos que passam, de um deles nasceré aquele que espelhe na ranhura dos marmores e os areais do ocidente; { do sentido de se olhar para outro mundo do mais préximo, pelos herdeiros as propriedades ¢ as planicies centrais e cada um deles exguer-se-A ligeira- mente na salvagio, 25. Este é um recado de amor, do possivel esquecimento. ‘Agora os olhos nao creem mais na certeza de chegarem a0 fim, 20 mar esfumado dos bordos da ilha, © imperecivel canto da alma, Como 0 estrangeiro vigiando do rochedo a ondulagiio das marés, sabendo chegado na espuma o fim da procura, cis chegado 0 momento de recostar as mios esituar o timulo.

Você também pode gostar