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Paixdo foi o primeiro de uma série de romances com o titulo goral de Tetralogia Lusitana, que inclui Cortes (1978), Lusi- tania (1981) e Cavaleiro An- dante (1983). Recorrendo a uma linguagem rica em imagens ¢ ‘metéforas, o autor transporta- nos para um mundo fntimo complexo: «{..] A salvagio nao est sendo em mim, no mew sexo, no prazet, ou mum filho, talvez; se fui talhado para per- tencer ao medo, se um panico me come ¢ me alimenta, seja eu enfim eu mesmo, ¢ néo sem desespero; seja eu para mim um homem, e um Deus que se ergue do seu leito nas trevas; so horas de levantarme, horas de tentar ser; ser, endo.» SEVER (Cen ALMEIDA FARIA A Paixdo ALMEIDA FARIA, de nome completo Benigno José de Almeida Faria, nasceu em 1943, em Monte- mor-o-Novo. Frequentou as Faculdades de Direi- to € de Letras de Lisboa, tendo-se licenciado em Filosofia. Foi bolseiro nos Estados Unidos da ‘América € na Alemanha Federal em 1968-1969. seu primeiro romance, Rumor Branco, publica- do em 1962, constituiu uma auspiciosa revelacao de vanguarda nos anos 60. Esta obra viria a ganhar 0 Prémio Revelacéo de Romance da Socie- dade Portuguesa de Escritores. Seguiu-se a Tetra- logia Lusitana constituida por: A Paixdo (1965), Cortes (1978), que ganhou o Prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciéncias de Lisboa), Lusitinia (1981), vencedor do Prémio Dom Dinis da Fundagao da Casa de Serralves, ¢ Cavaleiro Andante (1983), vencedor do Prémio de Ficgo da Associagao Portuguesa de Escritores. Escreveu ainda Os Passeios do Sonhador Solitério (1982), Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta (1988) € 0 Conquistador (1990). ALMEIDA FARIA A Paixdo NARRATIVA ACTUAL © Almeida Faria e Editorial Caminho, S.A., Lisboa 1986 Editores Reunidos, Lda.. Lishoa 1994. para a presente edicio Projecto grifico ¢ execugdo da capa: Enric Satué Esta obra poderd ser distribuida e comercializada tunicamente em Portugal, ISBN: 972-747-053-X Depésito legal: 76974/94 Depésito legal: M. 4530/1995 Impressao ¢ encademagao: Mateu Cromo Antes Grificas, S.A, Carretera de Fuenlabrada, Pinto (Madrid) Impresso em Espanha ~ Printed in Spain in Manha ® Piedade De madrugada ainda levantar-se, descer para a cozi- nha ¢ enregar o trabalho reacendendo lume no fogio, lavar a louga que ficou da véspera, com sobejos de comida, em monte sobre a pia (durante o inverno a gua gela, corta 0s ossos da gente, faz doer as vezes até pelo braco acima — deve ser reumético — mesmo ao cotovelo) e 86 depois sair para o quintal cm que 0s par- dais j4 cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reco avondo (de manhi as capoeiras tém sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem) ¢ também ao pintassilgo mudar a agua para beber, por a tina do banho, dar-Ihe ou alpista ou uma folha de al- face ou atéo ambas, retirar o papel que, ao fundo da gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de al- pista, voltar depois ao quarto, a em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele a espera, pOr arrelicas € aparelhar-se do casaco comprido, cinzento e desbotado de dez anos, meter a carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha, botar a égua 7 ao lume jé pegado, pegar na alcofa dentre cestos ¢ ca~ banejos, bilhas, tarefas, potes grandes de azeite ou azeitona e alguidares com todos os tamanhos, verme- Ihos e vidrados, largos para a matanga ¢ para o sangue, tachos de cobre, fulvos, em pé contra a parede de fumo nunca escura, branca, branca, caiada e mais caiada, em seguida descer segunda vez os degraus do quintal, abrir © pesado portao fechado A chave, soltar os cdes esquen- tados da noite para a rua, ir pela rua velha e 4rida derétura caminho da praca do mercado, comprar 0 que de véspera a senhora, a cuja obediéncia ela esté, com letra grossa na lista de papel pardo assentara: carne de vaca ou vitela para bifes, hortaliga, pescados 0 que houver, etc., 0 costume, comprar sem muito ou sequer nada refilar, porque nao vale a pena, néo Ihe pagam palavras (trabalho tao-somente), meter dois dedos de paleio com esta e com aquela, mais apaniguadas, com © conversado se o tem pela altura (nos dois wltimos anos teve varios, a frescura j4 foge) ou com outro al- gum pretendente que por acaso aparega a cheiré-la, cheira-lhe a carne forte, mamas fortes, voltar ao fim de meia hora, 0 maximo uma hora para casa, pousar as compras no poial de mérmore, 0 peixe, as couves, 0 la- co, 0s alhos, ferver o leite ¢ entrementes fazer torra- das para os meninos (no tempo das laranjas espremer af uma diizia delas — os meninos sao cinco), preparar 0 caldo de maizena e vianda de leite, e os flocos de aveia, migar 0 pao prs sopas dos mais novos, esfregar © cho de pedra da cozinha e a mesa da cozinha, antes de pér a toalha aos quadrados azuis para 0 pequeno- -almogo, tirar 0 gréo © o bacalhau que ficaram de mo- Iho desde a véspera ou ir ao quintal uma vez mais, no qual agora o gato, estatico, silencioso ¢ muito atento, caca infrutiferamente borboletas, ir de faca em punho e debaixo do braco o alguidar (€ preciso sempre ter cui- dado, nao bater com ele no corrimao da escada, assim ‘ partiu dois que teve de pagar ¢ uma porrada de massa Ihe custaram e este esta rachado, talvez da 4gua quen- te, com dois gatos grandes ali ao pé da borda), voltar com a galinha morta ou ferida de morte dentro do al- guidar, a cebega entre as asas como um sono, deitar-Ihe gua a ferver, tirar do lume o leite, 0 caldo de maizena, guardar a louga que quase j4 secou, servir 0 dejejum a0s menincs que gritam, depois de no quintal terem jo- gado um bocado ao bot, ao berlinde, a pancada, a0 pido, conforme a época do ano, ficando com feridas negras ou feridas de sangue nos joelhos, ou atio depois de serralha ao grilo cantarrista terem dado, se em tem- po deles é, que quer tanto dizer como na primavera, quando finalmente eles se vao, meter mais louga suja na pia da lavagem, depenar a galinha, p6-la ao lume porque as vezes € dura, sentar-se enfim no banco de pedra ao canto da janela de guilhotina aberta, masti- gando uma bucha de po com queijo ou chourigo ou farinheira ou banha (0 que houver) ¢ entre os dedos hiimidos um piicaro de lata com café de soja e com isto tudo hdo-de ser dez horas e o estémago a dar-lhe horas desde as seis, por isso anda largando 0 osso nesta bruta labuta todo o santo dia que inda vai no comego mas que um dia, espera, talvez quando casar, ou talvez ndo, hé-de acabar; batem as sete; tem os olhos cerrados e, cansadamente, reconstitui os gestos gastos a fazer; 0 dia que se segue é-Ihe meméria negra; assim 0 percor- reu, envolta em trevas, por semanas santas que dura- ram séculos € agora sabe apenas que no quarto existe alguma pouca claridade; entra pela fresta da janela o frio do sol nascendo; néo ha sombra de diivida, isto tem de acabar; horas de pr-se a pé; horas de inicio, horas de comecar; s4o mais que horas. ne Joao Carlos Séo mais que horas, pensou ele, acordando; esta ja muito calor ¢ hoje é o dia; na vila haverd vozes, altas ¢ lamentosas, dos animais que morrem; imolarei tam- bém; ele é, 0 nosso cordeiro, como as palavras man- dam; sem mancha, macho, dum ano; agora vou maté- lo, dentro da madrugada; num golpe brusco, grave, Ihe abrirei a garganta, com a faca que gargantas abriu j4 antes desta, que a s6is duros brilhou iguais ao de ho- je, que outrora se cobriu do mesmo sangue; depois ca- minbarei para os canaviais que se vergam ao vento com a faca tinta do sangue cortarei um tubo na prépria cana verde e nele aplicarei os labios e sentindo o aroma fresco ¢ leve insuflarei a pele do carmeiro ¢ ela se en- cheri ¢ 0 esfolarei ¢ 0 tomarei pela cauda e cornos ten- ros ¢ de uma drvore o hei-de pendurar pelos dedos ¢ ele daré as folhas o iltimo arrepio e Ihe descerrarei ventre desde a base do queixo até ao escroto e amora- velmente meterei as maos no interior das visceras e um calor antigo me subir dos bracos para a boca e a boca saberd o cheiro do sangue e as tripas rolardo para a ter- 10 ra em que sangue comeca a empapar ¢ esfolado 0 borrego a cabega € uma mancha roxa de mandibulas longas ¢ feito este trabalho cortarei um pedago da car- ne do lado e sobre as brasas prepararei a carne, com paes dzimos ¢ silvestres alfaces festejaremos a prepara- go da pascoa e apés termos comido lavaremos as maos nas aguas da ribeira e juntos partiremos pela planicie; seré na primavera; no principio de tudo; 0 sol cairé a pique sobre nossas cabecas quando enfim alcancarmos as portas da cidade; séo coisas de direito divino, coisas santas, 0s muros e portas da cidade. @) Arminda As portas da cidade os dois paramos; como dizer se em volta havia mar ou vento? depressa surgiram os outros agressivos; juntaram-se nossa roda; cria- ram 0 citime; as faces eram miscaras més, caras de feroz mudez; 0 siléncio que deles ressumava corrom- pia 0 tempo; o ventre e os seios sentia consciente; 0s outros riam ou uivavam quando 0 pai chegou ¢ dis- se que era assim, que podiamos partir, que estévamos curados; eles permaneceram no pavilhéo sem fim, mais furiosos, um respirar de morte os assolava; a morte morde; a voz do pai apenas pressentida, 0s corpos agitados dois a dois uniram-se junto a con jugada conjuragio dos astros; eis que, contudo, num esgar dorido, bragos e pernas erguiam para 0 vécuo © a sua uniéo deles era tao fugaz que nem sequer chegava para sé-lo; a voz do pai distava, ditava; na mesa os pratos vacilaram; rei e rainha no mar da inconsciéncia se abragavam; uma imagem deles po- rém ndo conseguida; os pares repetiam 0 seu rito fa- tal; a esperanca de um dia; carros que passavam a luz R de candeeiros tinham um fogo branco nos rufdos; as sombras dispersaram sobre 0 deserto frio; deserto trio; frio: — ha, ah és tu, Joao Carlos; obrigada por me teres chamado; que sonho sinistro tive. 13 _ Que sonho sinistro; assim como Arminda, a mae esta irritada desde que despertou, e se recorda; visto da ca- ma, em que 0 marido dorme, o tecto é alto, branco, as paredes azuis, de um azul forte nobre, aquecem-Ihe silencio, as trés janelas dao para o desterro da rua, com barrancos e bosta, com sinos e 0 grito, muito agudo e cortante, quente, perto, do comboio sem pressa e do seu fumo lento que atravessa montes e montados; 0 tecto € alto, a cama é muito larga, chega para dois cor- pos destinados 4 morte, tem relevos de fogo, patas de 4guia fincadas, o sobrecéu ausente para destruir o me- do; ha muito o sol raiou, por dentro, a solidao da terra, a podre e estéril e fecunda, a porca, o mal amaldigoado até ao fim; este € 0 quarto no interior do qual a vida se me decidiu; ao canto do oratério com um chciro cho- cho a velho, onde 0 ouro dos anjos ¢ dos santos e das flores estilizadas sem graca brilhou ao fundo de dentro da penumbra, repousa um frasco de remédio de qual- quer morto antigo j4 esquecido; ele repousa, o morto, outro, em qualquer cama de qualquer quarto de qual- 4 quer casa outra, repousa frio ¢ longo, fino e grave como todos os mortos, sob 0 selo de cera da sua face morta, ele repousa, ei-lo, na mesma cama em que, de miipcias noite nova, os amantes se abragam, ternos € fu- riosos, com receio e espanto se descobrem, na primave- ra, entre 0s leng6is bordados, largos (no chao de lustro escuro amontoam-se as roupas e 0 vestido de noiva, como de bailarina, mitico e cheio de espuma, seios, sobre © tapete fofo meio gasto, azul ¢ encarnado, desenhado no qual, em solenes noites cravejadas de estrelas ¢ do crescente agudo como um sabre, um sexo, um alfange cortando 0s inimigos, em cima dum cavalo célere ¢ de focinho estreito, o érabe galopa com a mulher nos bra- gos ¢ as palmeiras bravas longamente espalmam pal- mas, estalam, de longe, da mesquita ¢ palicio), na mesma cama em que suaram dores de parto ¢ seres r0- xos nasceram, ¢ abortos e, até ao horizonte grande, fundo, para além dos telhados secos, pardos, dos mu- ros cegos, brancos, da torre da igreja fina e estreita, em curvas suaves ¢ volutas e aletas, uma pequena cruz de ferro ao cimo, um péra-raios, sem cor contra o azul ‘um tanto encarnigado, para além das coisas e dos cor- pos, das faces que impressionam, abalam, intimidam, comovem depois de, por muito tempo antes em desa~ tencdo e pressa olhadas, agora desvendadas, em seu mistério surdo e carga de sentidos, para além da taber- na diante, de janelas baixas, gradeadas, cheias de sons duma luz intensa, natural, dispersa, @ qual se juntam vyozes de homens de quando em vez gritadas ¢ 0 ruido arrastado, repetido e Aspero das malhas férreas que raspam pelo chao até baterem, certeiras, na madeira ou no fito, para além, até ao horizonte longe, vermelho como se a vila ardesse em silhueta, em leque, em arco, amarelo, verde e ocre, azul, ao alto, nascente de mira- gens, puro pesadelo, mar com ilhas estreitas, alonga- das, cor de sombra e de carne, mar de vidro, aquario 15 nitido, préximo, percorrido de vento e, até ao horizon- te calmo curvo porto de abrigo, uma bafa, apesar de todos os tormentos ¢ martirios, apesar da guerra e fo- me e peste, a vida viu, uma vez mais, surgir a nua luz do dia; esta é a casa em que desperto; esta a hora; a casa esta em ruina, as paredes desfazem-se; casa anti- ga; entra-se; a escada hoje apenas sombra; depois do primeiro andar scgue cm vertigem por af acima povua- da dos passos das geragdes passadas; tudo ausente der- radeira derrota; a comprida sacada sob o frontdo trian- gular abre-se para a planicie no além do largo; dentro da sala do candelabro, dos quadros e do espelho, o frio dos méveis arrepiou a vida; um vento duro estremece as vidragas durante o dia todo assustadoramente; odeio © vento; nesta sala eles viveram, jovens de cabelos bri- Ihantes longos densos, raparigas de pequenos peitos e de triste olhar, quase velho, mordendo a sua noite e ca- minhando lentas e caladas pelos corredores, cozinhas, caves, despensas em que se falava a lingua do terror; mais tarde a da revolta; criadas querendo e temendo 0s patrdes impudentes; no escrit6rio de baixo, apainelado, vi pela primeira vez uma nédoa de sangue; ali esteve a doida, gradeada em édio, as escuras para nao convidar 0s homens que na rua passavam, tantos anos seguidos que, por fim, ninguém dela falava; jamais gritou; ha- viam-lhe cortado as cordas da garganta; lembro-me do dia em que morreu; tinha eu sete anos; era por certo j4 maior que ela, tio mirrada, t4o escura, tio nojenta; vieram acordar-me numa manha como esta, abriram s6 a fisga da janela ¢ disseram: a tiavé morreu; qual tia- ‘v6? a louca; neste seu s6 nome vinha o desprezo e 0 alivio; vestiram-me de preto igual a ela, como duas irmas; tinha o cabelo escuro semelhante a0 meu; che- gou gente de fora, entravam e safam, falavam em se- gredo; fui obrigada a dar a volta a sala para que as se- nhoras me beijassem e me fizessem festas; na casa da 16 entrada a mesa coberta com pano negro ¢ folhas de pa- pel ¢ cart6es-de-visita, cheios de letras; um pobre dei- xou dinheiro na bandeja, costumavam fazer isso entre eles; eram amigos nessa altura e todos os criados da la- voura foram a tarde no enterro; hoje as coisas muda- ram; nao sei se a rapariga j4 voltou da praga; tenho de ir & cozinha ver como as coisas correm. 7 © André Como as coisas correm; calmas correm; tanto quanto sei a génese do dia, eu estava ali num mundo hostile morno e as paredes duma brancura alva cegavam como s6is nos olhos sempre abertos; movimentos lentos, 0 suor cansado; um peso entrando pela raiz dos cabelos sobre a testa franzida, sobre os labios; de repente um vento gelado por néo sei onde entrando, despenteando a calma, abrindo ambas as abas do casaco como asas, enfunando as costas até fazer corcunda; 0 carro parara num plano inclinado de quase oitenta graus, sem que eu o desligasse embora cheio de sono; tudo me estava ocluso dentro do mundo a roda, a estrada multiplicava- se em grandes vagas de lume sob o sol; travao de pé no fundo e embraiagem; recordo acordo para meter a primeira, porém puxei com forca a alavanca do travao de mao; seguro 0 automével, motor em andamento; te- ria tempo de fechar por um minuto os olhos; mas eles vieram ¢ tudo foi inttil; eis que ali estavam, em relevo, Jacob e 0 Anjo sobre a parede clara, provocantes sor- rindo como répteis verdes vermes gordurosos em seu 18 visco atraente; abri os olhos dcidos quando as paredes se moveram, imanizadas se soldaram em cima sob 0 céu e, compasso opaco, iniciaram mais venenosas ¢ suaves 0 encontro dos bragos; urgente partir, subir a es- trada-onda, caminhar para a vida do lado de 14 da lom- ba, ultrapassar a curva que nio sei se existia; atirei o pé ao travao e fui tirando a embraiagem até sentir 0 som diferente; ouvido este, destravei e parti a toda a forga dos motores; receei nao ter tempo e dei uma pa- tada na embraiagem para engrenar a segunda; os mu- ros aproximavam-se depressa; impossivel alcangar 0 ci- mo; na parede, porém, eles permaneciam © ambos morreriam de seguida, mas eu queria vé-los ¢ viver, queria realizar o impossivel, s6 descendo a ladeira in- greme; 0 pé na embraiagem, meti marchatras; 0 carro deu um salto, precipitou-se para trés; os cabelos do Anjo em luta com Jacob acenavam do vacuo, 0 carro despenhava-se, arranhava as paredes, estilhacavam-se 08 vidros e eu nao via o espelho, por fim e lentamente © carro mergulhou num baque sereno, com bolhas a sairem do motor e dos bancos e da boca de espanto, nas 4guas profundas lodosas do lago sob a montanha alta; no meio da noite, no seu grande regaco, foi entao recolhido um automével; da banda do volante a porta aberta, com os farGis ¢ farolins acesos; préximo, 0 cor- po de um adolescente em decibito deitado como quem adormece; faltam-lhe os dois sapatos e na perna de ci- ma, ou seja a esquerda, entre a meia e a dobra das cal- as, tem uma larga lasca de lata enterrada; em lado al- gum do corpo se vé sangue sendo talvez na boca, derramando-se sobre as algas méveis; pela paz e delica- deza do seu sono, 0 corpo do jovem nao apavora os peixes; estamos na primavera dos peixes; em abril ou marco; dele a face foi envelhecida para uma era de ce- ra; os bracos junto ao peito; por cima, agua metélica, riscos verdes; 0 grande peso no mar das quase manhas 19 fechadas; as nuvens pardas do sono; um siléncio sé frio € agucado; olhos abertos de futuro sao repasto dos pei- Xes; sobre as aguas uiva um cdo branco, cego, coxo; no fundo um carro desventrado; os farolins do céu duros como facas; as estrelas, buracos por onde passa a luz do outro lado; estrelas rodardo o tempo mudaré; na cidade, prédios dentados, as arvores dos parques pega- das & noite o mistério das ruas inclinadas; eléctricos passando certos cheios de pressa e as pessoas neles transportando em alforges de trabalho a sua morte; a morte deles vai arrumada e espera; é disso que eles fa- lam; de suas mortes breves; 0 seu seguro modo de ir morrendo; um dia vem a morte, leva um deles ¢ pron- to; depois leva o vizinho ¢ pronto; assim sempre; as cr- vas sero rasas ¢ nao aterradoras; indecisdo e dor; eis que alguém sente, subindo pelas veias devagar, a forca urgente de um touro novo; André dorme; o sono nao é {fécil mas é sono; tenta acordar; faz um pequeno esfor- ‘G0; nao consegue; adormece; vem sono e 0 sonho; os Imonstros ancestrais néo dormem. (6) Francisco Nao dormem aqueles a quem devo o que sou; meu av arranjou a fortuna que tenho ¢ que néo aumentei, pelo contrério; devia por de parte tudo que néo dé lu- cro, foi o que ele me disse pouco antes de morrer, ¢ nao tive tempo nem forga para isso; velho, tinhas ra- zo; eu te procuro nos indecisos edificios de névoa da memoria ¢ de ti o que encontro é s6 siléncio, um silén- cio que parece nem respira e que de quando em vez por entre o rduo félego consente umas palavras anti- Bas e serenas, de quem usou a vida a saber a verdade, talvez tdo-s6 a sombra da verdade, mas uma sombra verdadeira, nao ilus6ria como a de quase todos nés, teus descendentes; escuto tua voz vaga entrecortada de asma e a tua saudade dum mundo que morreu acende mal e brevemente, vem-me a tua ilusdo de procurar um firme estddio neste mundo quando tudo mudou e vai fi- car para quem? quando aqueles sete mil hectares de terra campa e virgem, de estevas e sargago e rosmani- nho do tamanho de homem ou maior ainda, com sécu- los de crescimento, com pernadas da grossura de per- 21 nas, de um velho ¢ cretino marqués ou conde, foram leiloados e uma familia inteira se juntara para 0s com- prar oferecendo de cada vez dez patacos (isto antes de mil € novecentos) e a oferta ia j4 heroicamente em vin- te € cinco contos, tu vieste com a tua prosdpia ¢ 0 teu dinheiro ofereceste simplesmente, sem levantar 0 brago, numa voz grave, facil e definitiva 14 do fundo da sala, para onde todos se voltaram, gratos, estarrecidos, vinte e ito contos e todos se cerraram num murmiirio € as terras foram tuas por quatro escudos o hectare depois os ganhées fizeram a escalva, os seareiros vie- ram arrendar terra limpa, os imensos montados € nhas ¢ olivais surgiram, tu viste palpavel toda a tua am- bicdo, por isso foste forte até bem velho e de repente, a subir uma escada nesse teu passo firme, tiveste uma tontura e um desmaio e, por um raivoso desconsolo no olhar, quando palavras te faltavam, vi que ias morrer, que morrias depressa, arrogante, sem dar parte de fra- co, ¢ tuas vaidades e apetites do mundo, cavalos amantes, tudo passou, velho, j4 nao volta e nao valeu a pena, agora a fortuna vai desmoronar-se e de ti, velho, vai ficar a meméria de teres arranjado uma grande for- tuna para nada, por isso agora que deixaste esta pocil- ga te recordo ¢ o teu destino ¢ morte me comovem, a mim, teu neto predilecto. — Francisco, estas acordado? —estou, mais ou menos, mais que menos — tenho de ir a cozinha ver como as coisas correm € acordar os pequenos. Os pequenos ocupam o grande quarto ao fundo, J6 a direita, junto A porta, e Tiago, 0 mais novo, ao pé da janela esquerda; em frente das camas, da mesa-de- “eabeceira e do quadro com 0 anjo da guarda, fica a ampla sacada para o largo; est escuro e ambos so- nham, ou sonharam, ou ho-de sonhar, ‘ainda que’ O20 saibam, nao rec do fundo de suas tre vas sem meméria; J6: estava no colégio, no patio cheio Sol, quando o carcereiro veio para mim com ar irado disposto a matar-me; olhei a volta, vi que no havia porta por onde ir; dei uma corrida e, com um grande esforgo, passei o muro voando, subindo a grande altu- ra, enquanto o director disparava a metralha para o ar, porém em direccdo inversa A minha; vibrando os bragos A laia de remos passei por cima de uma praia em que as pessoas se transformaram de stibito em formigas: sob 0 mar um veloz vermelho enorme peixe; sem parar continuei sobrevoando caminhos varios onde tentei pousar; cansado; creio mesmo que pousei mas parti lo- g0, com medo de ser preso pela gente festiva que pas- 23 sava; por fim aterrei num grande armazém, espécie de estacéo de caminho-de-ferro, onde de novo pus os pés em terra; um rapaz do meu tamanho acompanhava-me quando cheguei onde dois homens conversavam, na es- tagao que, neste momento, antes parecia uma fébrica velha ou um lagar; nao havia carrugens nem locomoti vas, 86 carrogas na vertical abandonadas; desconti que estes homens me queriam mal; possivelmente pela radio 0 guarda da priséo tinha avisado e, com efeito, sem explicagées, ali me meteram numa grande marqui- se, donde pensei poder escapar voando, porém logo re- parei ter 0 cimo coberto de vidro' verde fosco sem um raio de sol ¢ isto revoltou-me, mais anda porque comi- go fora preso o rapazito; enquanto um dos homens se ausentava, talvez para telefonar, 0 outro entrou com a mulher, ‘esta afirmou-me que ficaria no quarto ntimero vinte sete; sabia que aquele era o quarto dela, mas pa- ra ter a certeza perguntei ¢ ela disse: sim, € 0 nosso quarto; e abragou-se a mim com muita forga, muita, muita forca (J6 acordou esporrado ¢ levantou-se gil, para ir a casa de banho, naquele corredor, do outro lado). ” @ Tiago ‘Mas na casa de banho estava a irma, ¢ J6 teve de voltar pelo mesmo caminho ao quarto e de limpar-se, despertando Tiago, que estremece; 0 sonho deste: & noite a mae deitava-me; no quarto uma luz baixa; a ca- ma quente, com botija de cobre que queimava e brilha- va; tudo fechado curvo biizio; tinha j4 o pijama ¢ a mie beijou-me quando no corredor ouvi passos pesa- dos ¢ logo a porta se abriu silenciosa ¢ 0 lobo entrou; calado caminhou devagar, seguro, cigarro colado ao lé- bio; 0 fumo ardia-me nos olhos ensonados ¢ enevoava- -08; ele trazia, vestido e justo pelo cinto de cordéo ao corpo alto, o grande robe de meu pai e, nos pés, os sa- patos de quarto; apalpou a mae no peito; logo largou 0 cigarro ¢, sem sequer olhar para mim, beijou-a muito na boca ¢ a levou; ela nada dizia e eu de pé na minha raiva sobre a cama; queria gritar, chamar, mexer-me, mas tinha a boca muda e os pés selados; foram juntos para o quarto; tudo ficou escuro turvo breu; de noite veio outra vez 0 lobisomem e eu deitado sem dormir; comegou a lamber-me a orelha de cima com sua baba 25 fria; morto de pavor, meti a cabega dentro dos coberto- res, fiquei imével, sem respirar; por fim ele saiu, pa- rando um pouco a porta; ouvi-lhe os passos afastando- -se; entéo pude chorar 0 meu medo mortal (Tiago acorda no momento em que Jé bate, de volta, com a porta do quarto; tem os olhos mothados, himida a al- mofada; da boca entreaberta escorre-lhe saliva mole sobre © lengol). 26 Moisés Lengol nao existe na cama de Moisés; to-s6 0 cobertor castanho ja sem pélo, puido de sebo e de ve- Ihice; Moisés acorda muitas vezes de noite; € noite alta com estrelas, uma lua distante, no circulo de luz sobre as veredas secas; lua transhicida alaranjada por tras da qual as nuvens se esfarrapam, no seu quieto mar, liso, limpido, raso; a terra charruada tem um tom escuro es- calvado, enquanto a noite ocupa as celestes esferas; a0 fundo da quinta de verde sombrio passam as carrogas ecoando, estalando na areia que o vento transportou € pés desertos, grossos, as horas gastas, pisam; 0 milho cresceu e voltou a crescer, as espigas apontam seus es- petados dedos, as folhas como espadas batem de en- contro ao vento; o vento percorre o respirar da vila, as muralhas, as torres e a ponte; Moisés pensa e diz, dei- tado, com um gesto de mao lento no ar, que da padrea- do do vento sobre a vila nasceram os negros corredo- res da noite; noite aberta, extensa, mexendo no rumor das arvores lividas, proximas das fachadas, cerradas; a0 nivel dos telhados paira uma forca dura, rasa, irromper 2 de fios ¢ ervas para 0 voo incerto ¢ répido de rapaces; € noite longa e longa, morta, vinda do outro lado; é noite, 4trio da morte, sem esforgo e sem descanso girando sobre a terra, sobre os torrilhes, morros, ameias de pura altura; do outro lado fica 0 ignorado; ¢ debaixo das sombras das coisas de c4, que meméria toma? pergunta-se Moisés, o an- itrar palavras e sem uma res- posta a sua grande inomindvel ignorancia; do outro lado 0 qué? copas das arvores redondas de Alentejo, Arvores cheias de sustos e sedes diante do mar e suas Aguas gordas & noite de altas ondas sob o brilho da Tua que me lembra a minha mulher nua atenta aos nossos movimentos; tinha eu quinze anos, era um ho- mem, bati a porta da casa dela, barricada, e 14 disse- ram: quem é € ao que vern? respondi ¢ disse: sou Moi- sés dos Santos, venho buscar honra e fama e mulher pra cama; logo a mie dela destrancou a porta, atirou o cachaporro ao chao e abragou-me com seus grandes bracos, bebemos uns copos com torresmos e fugimos nessa noite para casar daf a oito dias, dormimos na tasca do Cavalo Branco; agora a noite mora sobre a vila em volta sitiada de estrelas, de espacos, de telha- dos, de carros que, na estrada, muito espacados pas- sam ¢ se arrastam tarde, ou se quedam iméveis, junto aos passeios com enfeites de pedra, barrocos ¢ abs- tractos de formas curvas de flores e aves e cristais, de pombas, lis e cruzes (como tapetes de Arraiolos) nos quais ninguém, ao pisar ¢ repisar, repara; carros ba- gos ¢ definitivos esperam a morte, 0 vento magro e acre das geadas, 0 magno mistério das manhas, a sombra inquieta de luzes longe e perto, do castelo num cabeco em frente, fumo negro de padaria ou ne- crotério no hospital onde ha clarab6ias acesas sobre pernas cortadas ¢ velhos com tosse como eu; Moisés, de cabeca branca na trouxa do pelico e grande barba 28 de profeta, alva, crescendo sobre 0 peito, s6 suja junto a boca, no queixo e nas narinas, tem a tarimba na cava- lariga hoje quase vazia, separada da casa dos patrées, para os trases da quinta; a quinta é fresca ilha no seco mar do Alentejo, ilha que dois séculos ¢ mais de meio antes os frades descobriram; ao canto um edificio bar- roco de finalidade indefinida, em forma de capela, cur- ta e curva, tendo um tanque no meio, estilo drabe, os quatro evangelistas em azulejo a cada Angulo, com os nomes por baixo e, nas trés paredes livres, excluindo a da porta, trés esculturas tonsuradas, de santos ou de padres em pau, um de livro e caveira, outro sem nada de notavel a ndo ser a careca, 0 terceiro com um livro aberto, no qual se 1é em grossas letras: IN GLORIAM ‘MAIOREM DE € adiante, sobre a madeira sem tinta, escri- to a lapis indeciso de crianga, Caril Chessman condena- do a morte e morto ao fim de doze anos de prisao cela 2455 caixa postal 66565 So Quintin Calif6rnia; fora, em relevo de pedra, a data de 1705 e, mais abaixo, RE~ ‘CONSTRUIDO EM mil novecentos e qualquer coisa; & vol- ta, por cima dos quatro bancos de pedra, quatro pai- néis azulejados azuis setecentistas, como os do liceu de Evora, representam as estagdes do ano em figuras balo- fas de bacos mulheres; ao lado uma pedra tapa, se- gundo a tradicdo, a secreta passagem para 0 convento na colina, em rufna, com sua branca torre fina triangu- lar de cinco sinos, donde todas as tardes os frades me- nores vinham defender-se do sol sob as sombras da quinta, beber a 4gua férrea no grande tanque cheio de limos brilhantes, méveis, verdes, castanhos ou verme- Ihos na base, e até um pouco patuscar, perto a nora; durante o inverno os alcatruzes eram colocados a ban- da, por cima dos ferros que sustentam a roda, ¢ ai se descobria, chegada a primavera, uma densa rede de teias de aranha, fulgurando ao sol; entre 0 viveiro de laranjeiras e a nora, a Agua cafa para o tanque numa 29 frescura de bothas e de espuma que, depois de ter des- ido ai meio metro, acima regressava em movimentos de algas; era o tanque em que as mulheres, as criadas, a tarde, lavavam, conversando, debaixo da parra e das nespereiras; impossivel alguém permanecer ao pé da- quela agua sem ter sede; para além da sebe, a sul da nora, as oliveiras magras, sequiosas, de um verde que 0 calor torna cinzento ou azulado, com bolsas redondas € disformes nos ngulos da seca, corcundas sAfregas de seiva, aleijoes dementes dispersados pelos montes, que € preciso tratar, podar e nao esgalhar barbaramente por sete anos, como faziam dantes, caiar para que 0 fruto seja bom, 0 azeite denso ¢ fino, semear a terra de tremoco, tremocilha ou gro que as adobem de azoto, nao de pao de pragana que Ihes tira a forga, as enve- Ihece, as enche de cogumelos pelo pé, deixando-as um dia inateis, envoltas em morte, animais na noite, lobi- somens postos nos caminhos, arvores velhas do alarme, da revolta e da paz; no cabeco préximo um moinho sem velas, habitado ¢ bem cuidado, guardado por dois eucaliptos altos, de folhagem rala muito 14 em cima; junto dele os postes os fios da luz; e pelas hortas em volta, com a primavera, logo ao Sao Brés, quando as searas despontam e as cegonhas verds, hé espantalhos de latas de conserva de peixe quase em cada drvore ou de fios ligados a uma cana com penas de galinha ou mesmo s6 um saco vazio e emborcado, acenando um tanto no calor imével; os campos estéo quentes de pa- poilas, das fisgadas dos gaiatos aos ninhos e do balir in- tenso dos cordeiros pastando, de olhos brandos, para a pascoa; trigos cerrados assoberbam-se, embora com er- vas daninhas pelo meio, enquanto as favas irradiam j4 seu cheiro acre; a lenha amontoa-se pelos campos a es- pera que a transportem, forma vultos de medo em meio da noite, e as casas so claros fantasmas; a reca marra branca teve na véspera um ror de bécoros ma- 30 gros, com o corpo pelado, cor-de-rosa rugado e cabecas ternas de tao feias, de transliicidas orelhas; ela est dei- tada na pocilga ao final do quintal e marra-Ihes e mor- de com cautela e cuidados quando os filhos, em vez de caminharem pra barriga, buscam as tetas nas costas; postos como cachorros uns por cima dos outros, s6 as caudas 4geis ainda nao lagadas mexem tensas; Moisés no pensa nos bacorinhos sem se comover; praticamen- te sempre os olhos enevoados; limpa-os, ¢ as ramelas, com as costas da mao; maos gretadas, rudes, dedos pa- pudos, angulados para cima, longos até as unhas corta- das muito rentes, a direito, negras em espatula; puxa com as maos 0 cobertor para o peito, para as barbas ¢ © pescoco engelhado; sem ser capaz de dormir, olha a noite Ié fora ¢ a luz pela janela; olha tranquilo 0 sono ¢ a vigilia; sem_pressa, sem nenhuma_pressa; também nao sonha; diz que nao esta j4 em idade de sonhar; nao se lastima munca do tempo que passou mas do que pas- 8a; VE 08 poentes e os circulos da tarde, enche o cora- & uma alégtia calma; dé ao siléncio o s ¢ n&O busca nos homens sendo o que nao sabem; ouve 0 vento distante e nao se move; ao canto da agoteia sobre © tecto em que dorme, o vento faz de quando em vez girar num remoinho répido uma porgio de pé e de cotdo com pétalas de malva, folhas secas de malva ¢ de roseira brava, restos de linhas com pedagos de pano e papel de jornal, a casca duma barata meio encarnicada no ventre e na base das patas como pentes, os anéis a dessoldar-se e a cabeca larga chata; 0 hom Moisés, de boca pregueada, nariz curvo de velho, molhado, rugas fundas por toda a face, dorme vestido, de ceroulas, ca- misa xadrez, meias sujas suadas, € recorda, desperto, sem querer: o siléncio da noite agora € grande, como quando ela morreu; a noite é morte, a raposa velha; morreu um ano, nem sequer um ano, depois de nos juntarmos; os nove meses, foi aquela conta; albumina, 31 disse 0 doutor, 0 raio que o parta; o criango veio mor- 10, vil € cinzento, de pescoco torcido; mas nao interes- sava isso, desde que ela vivesse; eu sabia; tinha dez possibilidades de escapar, contra noventa; foi-se; pron- to, nao sofre, que havemos de fazer? uma noite como esta, deserta e aluada; quando ela morreu estévamos 86s 0s dois, s6s como quando am4mos; ela deu um gri- to e em seguida um ai, contente, levezinho, resignado, quando rompi aquilo, nessa noite; ndo na outra; suava, tinha a cara alagada, cheia de febre, dores, se calhar pena de morrer; fiquei de todo abandonado; andei sem eira nem telha, como um bicho, nao voltei a conhecer mulher, foi o diabo; entao c4 0 morgado arranjou-me trabalho; cuidava dos cavalos e vivia-se; mas os cavalos rancolhos tiveram de ser vendidos, e 0 breque também; a cocheira ficou vazia, eu a dormir nela, verdo e inver- no, sem ninguém, sentindo a falta da mulher, de um corpo ao menos que nos meus achaques me valesse; hei-de morrer aqui em uma noite destas e s6 se lem- bram de mim ao fim do outro dia, ao darem pela minha falta & hora de jantar, quando eu estiver feito um cara- pau, livido inteirigado; na noite em que fugimos fomos para Vila Nova de Milfontes, af trabalhei de maritimo durante todo 0 verdo; foi um imenso verao; ela nao ti- nha visto o mar, fechada na charneca entre azinheiras, disse que nao sabia de o mar ser assim tanta 4gua em moito, e quando tivemos que atravessar a serra ela perguntou por que é que tinham feito uns cabecos ta- manhos, que calhando estavam ali desde que mundo é mundo, desde que Deus Néssenhor thes deu amanho; calhando, pois, retorqui-Ihe eu; o mar era qual se, a su- perficie, tivesse posta uma colcha de gaze, uma rede de pesca, em cujas malhas as ondas se afilassem; no me esquego do mar; é como um espelho ou a eternidade; brilha, reflecte, fere e encandeia; a terra castanha e se- ca, casas, cercadas de planicie; af € que se sabe a soida- 32 de da sede (¢ 0 homem da terra respondeu e disse: se- meio sempre até que o sono chegue mas a mulher anda de pingadera e a ceia é velha, como a sede), Moisés so- nhou ou passou-Ihe aquela nuvem pela vista, deu-lhe uma tonteira ¢ os sentidos a modos que lhe safram da cabeca; as sobrancelhas pesam, grossas, sobre os olhos abertos; h4 uma vontade, nele, de regressos; na sombra da cocheira, com freios e estribos e selas de argo, a sua cara de malares e queixos salientes parece rir ou sorrir, mas recorda: devagar fomos para o cemitério; passémos pelos jazigos dos ricos, enfeitados, portas janelas gradeadas, lamparinas, flores, seguimos para 0 alto, a parte pobre, onde o vento vinha pelo meio das ervas ¢ desmoronava os torrdes das covas rasas; af, como eu um dia, af foi que ela adormeceu para sempre. 33 os o ) Nae Estela Sempre, de manha, quando a casa se assusta de rui- dos surdos, insondaveis, desde o estalar dos méveis de madeira velha ¢ 0 cair de estuque sobre o forro do s6- tio, até ao repetido enervante voejar musicado dos mosquitos, Estela pensa no homem, quando acorda ¢ 0 nio vé na cama; uma vez por semana lhe escreve, A sexta-feira, para chegar lé domingo: Anrique muito es- timo que ao receber esta minha carta te va encontrar de prefeita ¢ feliz satide na companhia dos nossos filhos que eu ao fazer desta fico bem gracas a Deus Anrique cé recebi a tua carta nela vi todo quanto me manda- vas dizer © onde vi que tinham todos ficado de satide foi o que eu mais estimei saber Anrique quando te eu mando procurar alguma coisa tu no me respondes a is- so eu tive af uma carta que dizias que estavas todo con- tente e eu mandei-te proguntar que me dissesses por que era e tu nem me deste resposta agora com respeito a tu vires vem quando quiseres que eu nunca mandei na tua vontade nem agora mando e nem quero man- dar Anrique mandaste me dizer que estavas doido da 34 cabeca pois olha a minha todos os dias me d6i de cada vez que me alembro que inda faltam aquase quatro me- ses para o brdo Anrique vé lA se te deixas por af imbro- xar do Augustinho do Tanque que ele até é s6 para te desgracar tu fala af a Joaquina que essa tem o milho ou se ela nao to arranjar vai ao Luis pastor que se ele nio © tiver ele ld to arranja que quando era para o primo comprar a casa ele também Iho arranjava 1é num puli- cia amigo dele Anrique estimo que tivessem boas festas, do Carnavale nem me mandaste dizer se o Jacinto pas- sava af o Carnavale ou se ia embora eu estava me mes- ‘mo alembrar que tu nem comes pois olha toma seitido ndo tires 0 susteinto ao corpo inté quem nao trabalha precisa de comer quanto mais quem trabalha como eu na minha ideia intendo gracas a deus que eu tive pes- soas que me disseram que tu af que nem para ti ganha- bas mas tou a ver que chega para ti e para nés estavas, para ai tu a dizer que me pareceu pouco mas eu néo me pareceu pouco parece me muito sabes que tive car- ta do Artur vés talvez nem vos alembrastes dos anos dele como tu fizeste das batatas que nei sequere me fa- laste nelas Anrique também te vou pedir uma coisa que nao aborecas af os nossos filhos ¢ tu ao Artur no o aboregas deixa 0 andar vontade dele que nao se es- traga por isso tu leva o com modo por bem tudo se leva ¢ com isto termino muitos beijos aos nossos filhos ¢ tu de mim recebe um apertado abrago desta tua mulher que se assina Estela a Deus 35 Lo» Mo Piedade Sempre a manhé desta sexta-feira € diversa das ou- tras na casa; Piedade, a cozinheira, 0 sabe, por isso despertou cedo, embora se levantasse um pouco tarde, depois daquele tempo todo a memorar; € uma sexta. -feira cheia de sol de marco, é sexta-feira dita a santa; Piedade ensombrece, e sofre ndo por ser sexta-feira, nem por ter sido santa, mas precisamente porque reme- mora, porque ainda na véspera a noite, de luz apagada € deitadas ambas, falou no seu passado a companheira € choramingou ou chorou mesmo; esta nao o saber4 di- zer, durante a calma confissio da noite comoveu-se bastante, deu estalidos amigos com a lingua, mas dei- xou-se dormir de seguida e hoje, com a carta ao mari- do de manha (para poder seguir ainda no correio) j4 esqueceu tudo ¢ desce as escadas, caminho da cozinha, satisfeita, fazendo um estardalhago de chinelas nos de- graus; Piedade nao, Piedade nao esquece, como esque- cer-se do que lhe pertence? parece-lhe até que dormiu mal, as voltas em suor, as orelhas escaldantes, a cabeca pesada, com o reavivar daquela velha ferida; Piedade 36 cedo aprendeu a sofrer: desde que me conhego como gente que sei o que isso é, e nada mais eu fiz que nao fosse isso, suar, zmochar, sofrer desde que minha mae morreu quando eu nasci, tal como aconteceu 4 mulher de Moisés, morreu de parto, e eu podia mesmo até ser filha dele, fui criada com os meus avés, pais da minha mie, 0s quais me arranjaram ama, fazendo o que po- diam, me deram tudo que tinham, pois meu pai voltou a casar em seguida e nao quis mais saber de mim para nada, foi viver com a nova mulher ¢ os filhos dela para Odemira, onde também nasci, nunca mais ele me que- rendo ver, talvez me detestasse por eu ter morto a mie, ou talvez ao contrério pensasse que eu € que o odiava por ele casar logo, inda hoje nao sei, nao compreendo, © que sei € que estive vinte anos sem o ver, desde que ‘me conheco como gente senti a falta de ter pais, 0 de- samparo primeiro, e a revolta depois, que isso me da- va, ndo porque meus avés vivessem mal, viviam até bem, no monte duma herdade préxima de Odemira, si- tuado no alto de um cabego, nu, escalvado, e descendo empinado para a estrada, mas cresci sempre fechada com os velhos, ndo tive quase infancia e nunca fui crianga, quando ia & escola estava sempre séria, no brincava, néo me lembro de ter puxado uma tnica vez os cabelos duma companheira, de ter saltado & corda ou levado pancada, fui mulher posta de lado, s6, sem amparo, sem nada, mordendo-me de raiva porque me nao falavam quando ia pela rua, por isso estudava com todo o afinco e telvez pudesse um dia chegar ao magis- tério, 0 que me destacaria j4 dentro da nossa classe, se os meus av6s nao tivessem morrido no curto espago de dois meses, ndo me deixando peva, porque nada, a nao ser © seu trabalho de caseiros, eles tinham, e eu ali s6 com eles, com um e depois outro, a vé-los ir-se, ¢ ver uma pessoa que para nds é tudo falecer, é de fugir, esse” fundo.-¢ jf nao ter resposta, ja 37 nao estar ali sendo um corpo imével, frio em breve, en- tregue como um cristo sobre a cruz, entéo vim viver com esta minha tia daqui, ela era solteira, brincalhona, € nos seus quarenta anos nem pensara em casar, porém 1a imaginou que era melhor para a gente ter um ho- mem em casa, um amparo, conhecia um um pouco mais velho que ela, casaram, fizeram 0 negécio, mas ele néo a ama ¢ néo me pode ver, néo a amava, pois cla também agora j nao sofre, ele empregava 0 tempo todo em torturé-la, deitando sempre as culpas para ci- ma de mim, porque se embirrasse comigo sem o dizer a ela, podia ser que a amasse, mas nao, fazia-o de prop6- sito 86 por eu comer da mesa deles, oprimia-me, humi- Ihava-me, foi assim que me resolvi a vir servir, sabia fa- zer por assim dizer tudo, tinha até jeito para desenho ¢ bordado, bordava para fora, mas néo podia mais viver em casa deles, rebentava, um dia endoidecia, ainda por cima o meu pai, volvidos vinte anos sem saber de mim, nem se interessando, veio c4 o ano passado pela feira de maio e foi fazer uma visita a minha tia, irma da mi- nha mie, pois quando entrou a porta e me viu apenas disse: boa tarde a todos; e depois: como esté minha se- nhora? e apertou-me de fugida a méo, como se me vesse visto inda na véspera, eu fiquei branca, comecei a tremer, cheia de frio © de arrepios nas costas, os solu- gos subiam por mim com toda a forga e eu nio era ca- paz j4 de os suster, levantei-me da mesa do almoco e corri para 0 cubiculo de tabique do meu quarto e ali fi- quei toda a tarde naquilo, chorando, ele nem se deu ao trabalho de me ir ver, nem despedir-se, quando findo o almogo Ié se foi embora, eu fiquei esiarrapada dos ner- vos, sem ser sequer capaz de engolir ou mover o né da garganta, tanto que me dofa de chorar, a minha tia também ficou muito abalada e, talvez com os desgotos, comegou a finar-se ¢ morreu dentro em pouco, dizem que do coragao, ainda nova, ato é que tive de sair da- 38 quela casa porque ja nada a ela me prendia, inda por cima o estupor do meu tio quis abuser de mim, ela ali morta ¢ ele a querer mesmo deitar-se comigo, quando apareceu este lugar, com a falta de criadas que hé, eu deixei os bordados e vim para a cozinha, e foi porque nao havia outro trabalho. 39 Na aula, ao fundo, a direita, sozinho na carteira de dois, longe de tudo, abandonado, J6 estava olhando para o tampo, desatento, farto; era o melhor aluno, punham-no no canto a fim de que nenhum (os cébulas, adiante) copiasse por ele e ele ndo pudesse, como vi- nha sendo hébito, soprar a ninguém nada; fazia depres- sa Os pontos e por isso gostava de os passar se os outros precisassem (e sempre precisavam), mas agora, isolado assim e sem utilidade, sentia-se irado como num castigo uma impresséo obscura na barriga fazia-lhe calor ¢ enervava-o; puxou uma revista da pasta com cuidado, dissimuladamente, e desatou a Ié-la, j4 de tudo esque cido; mas logo apés um breve ou longo tempo, a mao grande pousou-lhe sobre o ombro e ele nem teve neces- sidade de virar-se para saber; o professor tirou lenta- mente a revista, com dois dedos apenas, no asco de quem toca em coisa suja e por outro lado gozando com delicia a descoberta de um enigma, talvez de um crime, violagio ou assassinio (pega de roupa interior de mu- Iher, esquecida debaixo do colchao da vitima, ou cabe- 40 lo louro sobre 0 travesseiro, importante como na terri- na da sopa, filmimagens dos livros policiais que 1é ser6es inteiros, enquanto os outros estudam); nao disse nada, o tipo, mas mostrou a revista a turma, sorrindo, € levou-a para diante consigo, calmo, cinico, como quem transporte um troféu ou um filho; pé-la na secre- tGria; af o sol entrava com forca pela janela, iluminan- do a jarra verde cheia de flores secas de papel j4 velho, azuis, cinzentas; sobre a mesa o livro de ponto e a pau- ta abertos, junto ao globo terrestre com asas de metal amarelo; para Ié da janela, no patio de recreio, sobre 0 telhado das traseiras de um prédio velho formando 4n- gulo recto com a sala de aula (esse prédio que ele olha quando nao quer ouvir, pondo-se a imaginar 0 que se passa por detrés das janelas, umas estreitas, com vidros pintados, séo casas de banho certamente, af onde se encontra, diante de si mesma, a maior nudez, a maxi- ma miséria, a mais dura verdade, as outras apresentam cortinas e portadas, quase sempre fechadas, ha algumas com escritos em losango por dentro das vidragas, dei- xando adivinhar um interior deserto com pé ¢ ratos pelos cantos, cotdo e papelada, 0 eco cavo de fora su- bindo pelos corredores e escuras escadas), dois pe- quenos pardais, de penas ericadas, gritavam e gala- vam-se repetidas vezes, 0 macho de grande mancha preta ao peito (em casa, J6 conserva, de crianca, um livro com fabulas de pardais, e recorda-se de uma, ou inventou-a a partir dai, o pai pardal em casa, a man- cha preta de cabelos a ver-se entre a camisa aberta, as asas a cabeca, aflitas ¢ ericadas ou tristes e zanga- das, diante de qualquer desgraca, a seguir no tribunal, direito © digno, com gravata preta ou plastrao, é livro antigo, desses que tém um cheiro acre usado, do tempo dos pais, o pardal, respondendo ao juiz, em sentido, de pé, entre dois pardais guardas que 0 agarram com rai- va, por fim talvez na legiao estrangeira, fardado de 4 bivaque igual ao que ele € obrigado a usar na Mocida- de, contudo sempre de luto, de gravata grave), ¢ J6, olhando-os no telhado, distraiu-se da sua grande pena, logo viu 0 professor folheando a revista por alto, a rir com escdrnio, como se (revista boa, de viagens) se tra- tasse de visa pornografica, e em seguida fazer uma da- ta de mémeros no quadro, do género 0962 2690 9602 6920 2096 9620 0296 6290 2609 9260 0629 6029, o que parecia ser os anos do seu futuro exilio; houve riso; en- tretanto a sineta tocou e no espago vazio néo existiu mais nada; despertou de todo e j4 de vez; era 0 leiteiro tocando ao portéo do quintal; deviam ser nove horas; saiu de novo para a casa de banho, livre agora. Tiago Acordou a chorar, com a cara alagada, por isso re- cordou uma manha na praia, anos antes; brincara todo © tempo a beira da 4gua com a prima, agarrando-a pe- las pernas e caindo-lhe em cima as cavalitas, para fura- rem ondas; sentia um prazer vivo vindo das costas dela, como quando trotava sobre o burro da quinta, o que ti- ava @ nora; o pai disse que eram horas do almogo: to- ca a arranjar-se, tenho pressa; comecou a vestir-se a0 fundo da barraca, tirando 0 fato de banho o mais rapi- damente que podia, para enfiar as calgas curtas brancas de que, contudo, atrapalhado, néo era capaz de acertar com as pernas, ora trocando-Ihes o lado, ora metendo ambas na mesma, voltando-se de costas, curvado, cheio de pejo; ouviu, nitida, atrés, a voz do pai: —olha praquilo, até parece que tem a esconder qualquer coisa — pois tenho —tem o qué, mostre 14? — tenho pois —atdo mostre la 43 —na mostro —nao tem mas é nada — na € pros outros verem —o qué? esse berloque ou 14 que é? — qual berloque? —entdo se nao é mostre — mostre o pai o seu antes 86 se lembra que pesado, ardente formigueiro the embateu na cara, a mao do pai, deitando-o para o la- do, contra o pau da barraca, tonto sem ver nada, e dai para 0 chao, sentindo-se despido ¢ tapando, aflito, o meio das pernas. 44 Ww Arminda Foi na conferéncia, poucos dias antes de vir para fé- rias, que aquilo comegou, a lembranca de que nao de- vemos ir a conferéncias nem fazer conferéncias, pelo que disse a Samuel: vamos embora, em voz alta, que 0 vizinhos ouviram, olhando sisudos, cheios de circuns- pecgdo, abanando a cabeca, a forga levantando-se para nos dar passagem, enquanto eu ia dizendo, antes mes- mo de alcancar a porta: usam pistolas, estes tipos, nao nos deixam descer para a planicie, mas sio préximos os dias ou pelo menos j4 estiveram mais longe (safamos & rua, subfamos o passeio a pé, ele assustado tentando serenar-me, eu tropecando a cada instante sobre os sapatos altos), eis que ela chega, a nossa idade mé- dia, tropa de choque a cavalo, ouves ao longe os cas- cos dos cavalos, pergunto-te se ouves os cascos dos ca- valos, cavalos de fogo, escuta, repara como galopam lentos, implacdveis, espumados de branco, repara, agora ficaram iméveis sobre a chapa do tempo, em movimen- to eterno pelo vécuo, as patas pisam a terra pejadas de ameagas, ouves 0 choro que fazem os cascos sobre 45 as rochas, sdo eles, a quatro e quatro, serenos, certos, crinas ¢ espadas, ah se tu ouvisses, Samuel, ei-los que chegam, caminham com as bocas fendidas e, nas cau- das, 0 sinal de uma vinganca escrita, eles v4o separar- ~nos, Samuel, escuta, tu que és 0 ouvido divino, ouve, nao posso consentir que partas, vés? os vidros do hos- pital ao por ¢ nascer do sol sempre assim ensanguenta- dos, jactos de sangue esguichado debaixo dos cascos cinzentos dos cavalos, apressemo-nos, ou chegaremos talvez demasiado tarde, traze a tua arma, o teu cavalo bravo, vamos para 14, ndo vés aquelas manchas sobre as nuvens da tarde? mas que foi, Samuel? nao, néo me quero deitar, dormir mais, tenho sono, sim, imenso, tanto, que se me deito durmo para nunca mais voltar a ver-te, tenho medo de dormir, tenho tempo depois, de- masiado tempo, ndo me deixes sozinha A espera de morter, néo te vés, transporta as tuas coisas para 0 meu quarto, amplo, antigo e em desordem, com um es- pelho de cristal florenfeitado, um guarda-fato enorme em que até cabe a morte, aquela cruz cheia de pé e madrepérola, o meu quarto em que tenho frio e deliro, tenho febre, estou cansada, doente, dorida nas coxas, néio me soltes 0 brago, Samuel, oigo o que dizes, oigo as tuas palavras, mas fala mais alto, grita se isso for ne- cessério, para que seja verdade, os teus olhos fixam os, meus olhos, os teus olhos cortantes, a tua face abriu-se, faca afiada, Samuel, no vés como os teus olhos séo duros? ndo gosto dos teus olhos nem desses punhais surdos, apaga essa luz que nos lambe de fogo, verme- tha luz, agora 0 quarto penetrou, tu penetraste em tre- vas, agora nada oigo sendo a tua voz, Arminda dorme, Arminda dorme, agora estou cansada como se tivesse atravessado a terra, agora o sol aparece a nascente, agora vou descansar no seio da terra. 46 (15) SO Joao Carlos Com a alba deste dia de Vénus (veneris, venerdi, ven- dredi) cle crgueu-se, saiu da cama nua caminhando dois passos pra janela, abriu-a e o frio entrou, himido, 4spero, habitado por distantes sons, vozes de madruga- da, voltou para o leito na penumbra e¢ sentou-se na borda, em cima dos pés e de maos nos joelhos, abertos e cruzados, contemplagao ioga, enquanto a manha crescia 14 por fora, logo teve um estremecimento ¢ le- vantou-se, comecando a despir o pijama; na casa de ba- nho fez a barba, lembrando-se da primeira vez que a fez, h4 quatro anos (procurou gilete, lamina, pincel e sabdo, nervoso, logo de infcio Ihe surgiu um problema, nao sabia se molhar primeiro a cara e ensaboar depois, se, ao contrério, ensaboava e em seguida fazia com 0 pincel a espuma necesséria; resolveu-se afinal pela pri- meira e até ali ndo se deu mal; pior foi depois; agarrou na gilete, a mao tremente, nivelou a patilha e puxou de leve, to de leve que ndo deu por cortar um s6 pélo; de novo a levou acima e a deslizou para baixo com mais forca; ndo conseguiu ainda; a barba fina e fraca; impa- ciente, 0 amor-prdprio j4 ferido, premiu forte e feio desta vez, dando um esticdo quase violento; resultava, entusiasmou-se, rapidamente raspando a cara toda; re- parou que pequenos pontos indecisos de sangue sur- 47 giam ¢ iam engrossando; meteu a cara dentro de 4gua mas o sangue continuava em maior quantidade; por fim 14 se lembrou do 4lcool, procurou o frasco no armério, jogou-o na mao e, a medo, o passou pela cara; ardia; soprava sobre as maos em concha a frente, € 0 queixo e a face, descobertos no espelho, apresentavam um esta- do lastimAvel), em seguida tomou banho; do chuveiro safa uma vaga de frio e o ruido da agua sobre a banhei- 1a € 0 corpo, lasso e morno sob a dura 4gua; limpou-se, vestiu-se, saiu; ao fundo do quintal o cordeiro espera- va; fez-Ihe uma festa na 14 grossa e puxou-o para junto do regueiro das canas; pensou que tinha de estudar di- reito de manha, € que o tempo era pouco; o tempo; 0 tempo do direito romano; tempo imével e mével, este continuo e util, computado naturalmente ou ad mo- mento a temporum e civilmente ou ad dies (dies cedit, dies venit); dies a quo ou termo inicial ou suspensivo (dies a quo computatur in termino, dies a quo non com- utatur in termino) e dies ad quem ou termo final ou re- solutivo (dies ultimus inceptus pro completo habetur); e contudo sabemos que 0 nosso tempo nao chegou ainda, ha uma voz distante, uma reminiscéncia, eco sem fim, que devora o velho esquecimento, mas, quando vier a hora, havemos de estar preparados, acordados; 0 nosso reino pobre, a nossa casa triste, os nossos pensamentos estéo ha muito cerrados, o tempo nao consente que se- jamos felizes e 0 morto vela 0 sono como um mal en- forcado; morto cordeiro da Pascoa, pendurado, esfola- do, assim aberto, as costelas lisas, brilhantes como pléstico pintado as tiras alternadas, brancas ¢ encarna- das, desde a espinha, com bolhas de gordura nas per- nas e barriga, um cheiro morno intenso um pouco nauseabundo, as vértebras da cauda apontando para o ar, figado, coragio, lingua, fressura, bofe, misturados no sangue j4 escuro do alguidar. 48 Moisés Bis que caminha pela manha de névoa, quando ainda a charneca est4 cheia dessas aves que cantam como sendo pingos lentos que caem ¢, a caminho da sua mis- sa difria, assalta-o 0 nevoeiro igual de anos atrés, nas infind4veis tardes de Milfontes; ai, pouco depois das cinco horas, até as vezes antes, um grande nevoeiro vi nha do norte ao longo do canal e da linha do mar, che- gava a barra, baixo, ia entrar pelas furnas lé do outro lado (da praca, junto ao castelo, velhos da vila e mari- nheiros diziam: temos mar brabo, as furnas deitam fu- mo, a modos que o mar arde), enchia as falésias de cin- zento, como se fossem s6 mancha no olhar, uma sombra do sol, subia pelas costas verdes empinadas, cobria a margem sul entrando pela foz, os pinheiros, os montes € as casas, brancas, de telhados pardos, ocupa- va 0 rio € as ondas ao largo, vergastando nas rochas, de repente parecia recuar em bando, com as aves mari- nhas que seguiam répidas e os corvos ouvidos onde nao se sabe, mas voltava, mais denso, persistente, dividi- do em bragos de neblina, altos, xistosos como as mar- 49

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