Parasceve
Puzzles e ironias
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Prelúdio
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sim, consciente de que criara as condições para haver tran- pensa do mesmo modo. Na verdade, aprofundar a intensidade
guilidade de espírito para todos. Excepto para o texto que não de viver e deixá-la à natureza, é morrer menos. Falo do meu
se mostrava muito contente. Entendi, no entanto, gue o livro ponto de vista de visitante, porque ali não havia m011e; não ~i
lhe pe11encendo quase por inteiro, me coubesse a mim o seu se não tinham palavras para isso ou se simplesmente não pre-
breve exórdio, por razões que talvez venha a explicitar. cisavam dela. Havia uma fonte que a seiva molhava a meio de
Com um simples olhar eu subia, mais do que eu própria es- uma Praça - um rasgão no céu - , e, paradoxalmente, seres
tivesse a andar ou a ser transportada. Os últimos dias não ti- se sentavam nessa seiva onde, imergindo, tomavam rosto que
nham sido fáceis, e eú apaziguava-me verdadeiramente por uma humana como eu reconhecesse. As mãos fremiam. Foi a
ter encontrado, ao levantar a cabeça, as ruas finas da árvore primeira parte do corpo deles que reconheci. Eu não tinha acei-
que penetravam as minhas veias e me faziam ascender sem te a sua hospitalidade com a intenção de lhes contar quem era,
voar porque o meu corpo é muito terra. mas para os ouvir falar sobre a sua própria pessoalidade.
Nesse alto universo chovia, e por isso a clorofila deixava-
-se inundar de um tom brilhante que marcava até aos calca- Levaram-me a uma divisória para eu poder lavar as mãos
nhares os pés de quem passava. Havia pés por cima de mim, num riacho, e repousar. Disseram-me, falando gentilmente a
no ~, minha linguagem: «0 mais difícil para ti vai ser não imagina-
e eu senti que, naquele instante, muitos seres «nasciam», por- res. Tu és uma textuante. A cama que aqui deixamos servir-
que chovia e aqueles pés eram particularmente leves. Mesmo -te-á de ponto de apoio». E, de facto, o espaço era sem fim,
que um apontasse o meu coração, o meu coração continuaria a dentro dessa divisória sem fim. E, estendendo os lábios,
bater, e talvez renascido. QJacto é que eu resvalava só. ÇQmO beijaram-me todos num só, que era mais alto do que eu.
alguém que eu sou privada de linguag,çm. Resvalava só por não
estar sendo quem sou, quem fui, quem serei. Estava, no entan- Eu tinha junto à minha cama, bela como o interior e o exte-
to, conscientemente muito visível. A suspensão das minhas rior das janelas ausentes, dois vasos com aspidistras peroladas
coordenadas habituais não me inquietava. Pelo contrário, com- de gotas de água, e onde a chuva continuava a"êair, conser-
preendi que seria uma visitante bem aceite na cidade-árvore. Se vando a grande delicadeza das gotas. Desci para o chão pelo
eu perguntasse se conheciam os meus textos, creio que amavel- fundo do leito, e vi que a cor determinava a própria matéria
mente me diriam: «Nós também escrevemos sobre folhas. Po- dos objectos que eram todos naturais e se desfaziam sob os
des entrar!». Foi o que ouvi do fundo da chuva para si própria. meus dedos, reconstituindo-se, ainda mais belos e coloridos,
adiante. Esta inversão de lugares - a cadeira de balouço no
Descrever um lugar indescritível é tomá-lo inamovível para vão da janela e as plantas próximo de mim - trouxe-me a paz
o resto da minha vida, que certamente decorrerá ao lado da ár- criativa com que estou a ler,
vore, como sempre tem decorrido no jardim que o pensamento precisamente,
permite. O jardim não é criado pelo pensamento, o jardim per- a falar com alguém que desconheço, e que precisa deste tex-
~te pensar, tem a sua própria forma de pens~r o pei1Sãmento. to. Uma mulher, creio. A que está sentada sobre o dicionário.
O Grande Maior tem as mesmas p;opriedades. ~-~não Talvez, um dia, precise que a traga aqui.
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fi artiu-se o pote de barro esférico para flores, as-
pidistras, sobretudo, com relevo de ramo e pássaro. Era be-
o. Mas, quando olhou para o lugar vazio que deixara, prin-
cipalmente a auréola de sujo que corroera o verniz do so-
brado, a mulher reparou que os seus cacos formavam no
chão um pregueamento de extrema beleza. A própria terra
do vaso não destoava, nem as aspidistras pareciam sofrer
com o sucedido. Em vez da irritação que deveria ter senti-
do, e a teria obsessivamente levado a repor rapidamente o
quadro anterior, ficou de pé, hesitante, a cismar sobre o sig-
nificado de ter sido liberta de «um» belo inferior que, até
àquele momento, considerara como perfeito. Para essa cer-
teza, muito contribuíra certamente a simetria que o vaso for-
mava com outro, de forma exactamente igual, no vão da ja-
nela.
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seu contento de luz e de sombra. Estava-lhe, aliás, grata. Vol- Impele-me o sonho de acudir-lhes. Infelizmente, esse sonho
·I tou ao quarto. Olhou sem hesitação a auréola, a marca, o equi- é sempre um puzzle por resolver. E, no entanto, excita-me,
valente e sentiu a singular leveza de serem leves. faz-me falar alto, sentir no fundo do que escrevo um real que,
por falta de bondade (que tomo por elementar racionalidade),
Apenas não reparou que acabara de mudar de vida. surge como um precipício instante.
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Ontem, como quase habitualmente por esta época, saí. Ao preferia o quarto dos arrumos que não tinha janelas, e apenas
passar por uma porta, dei com um saco de lixo contendo ter- recebia claridade por dois postigos colocados perto do tecto.
ra e cacos de um vaso onde ainda se percebiam pássaros be- Era o quarto onde acumulava móveis, livros, bibelots, rou-
líssimos desenhados sobre ramos de árvore. Abri o saco e ten- pas. Não os olhava como percurso de um passado. Não tinham
tei recompor parte da imagem. Achei preferível, no entanto, vida, não tendo uso. Eram pó em consistência. A única parte
levá-lo comigo. Passei pelo café onde me serviram um desca- da casa, aliás, que não organizara em função de um critério es-
feinado. Pousei o saco aos pés da mesa. Bebi o café e parti pa- tético, mas do melhor aproveitamento do espaço disponível.
ra o parque onde, em altas ramagens, vislumbrei, ao longe, a
minha árvore. O Grande Maior movia-se. Corri para ela. Com Sempre que percorria o corredor nos dois sentidos, passava
ela, movendo-se ao vento, contornei realidades aéreas que me duas vezes diante da porta fechada desse quarto de arrumos.
eram infinitamente caras, incluindo a beleza, a nostalgia, a le-
veza, a pujança, o espaço, certa de que o espaço-tempo é uma Como se eu visse a mulher certamente a não reconheceria,
narrativa mítica à imagem da imagem parcial do vaso que de- nunca lhe perguntei o que sentia quanto à dicotomia evidente
pus ao pé do Grande Maior. de critérios. O que sei dela, aprendi a supor a partir da nossa
comunhão textuante. Não me admirei, pois, de a ver cismar,
Era a minha oferenda da manhã. Ofereci-lhe cacos que ape- dia após dia. Não me admirei que o não-uso começasse a
nas precisavam de aereamente voar. Precisam do vosso ruah, chamá-la e que, num gesto aparentemente inexplicado, pas-
disse-lhes com frontalidade. Pelos matizes abertos no azul, sasse por debaixo da porta do quarto de arrumos as poucas fo-
compreendi que me haviam compreendido. O seu plátano- lhas em que tentara reconstituir os pássaros medianamente be-
-cidade parecia o globo do mundo. los pousados sobre os ramos de uma árvore. «No não-uso há
qualquer coisa superior à beleza», pensou .
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à beira do regresso do Inverno, a mulher mantinha intacta a
mancha equivalente. Demorava-se menos no quarto e percor- reconheço que contraí com o Grande Maior uma dívida de
ria, em ambos os sentidos e com mais frequência, o longo cor;_ pensamento.
redor da casa. Sentava-se a uma mesa e cismava sobre a falta Por mais irrisório que seja o banco de pedra, a seus pés, ou
física da visão da beleza pregueada. Tomava notas sobre os por mais forte que seja a humidade que, não raras vezes, o co-
seus sentimentos. Um repositório de factos mais do que ob- bre, foi ele que me impediu de supor que fora o jardineiro ale-
servações. Notas que nada tinham de sentimental. Procurava , var, de novo, para o lixo os cacos do vaso. O certo é que quan-
reconstituir a imagem do vaso, cujas impressões se iam natu- do lá voltei o tronco estava apenas rodeado pela sua terra habi-
ralmente diluindo, à medida que o vazio deixado perdia a sua tual. Que cada um pense o que puder e entender. Mas, quando
força estimulante. Curiosamente, sempre achara que a casa respiro e o ar se eleva, por tão leve se tornar, o meu coração su-
não tinha janelas suficientes. E, no entanto, a todos os quartos põe que os cacos foram recolhidos pela própria árvore.
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E fiquei-lhe profundamente grata. Apareceu, a meus olhos e «Onde Vais?»
para sempre, como as folhas (e as gralhas) de um livro. «À Memória»
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«Porquê?»
As suas linhas em camada, a folhagem e as suas margens, «Procurar o Excerto Dessa Possibilidade.»
e, sobretudo, os espaços em branco, deixam filtrar o ar e as
imagens. Elevam-nos. Impedem que me pareça estranha a sua «Onde Vais?»
espantosa velocidade de assimilação. Pelo contrário, acho-a «A um Encontro de Amor»
perfeitamente natural..Uo natural como quando sinto que caJ- «Com Quem?»
çg um Jiyro. «Com a Minha Condição de Vaso Quebrado.»
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eno:nne de actos menores de decepação. Como que em anda- Pegou no escrito e empurrou-o pela frincha da porta do
mento, acrescentou, pois sentia visualmente que ela, ocupan- quarto de arrumos. Em seguida, atirou pela janela a imagem
do o nó do parapeito, estava andando por um ribeiro azulado de madeira.
calcetado de pedras onde a santidade nascente se via desli-
zando com a água. «Onde irá o membro decepado?», pergun- •
tou, vendo os outros, igualmente indispensáveis, levantarem a
água do ribeiro, na esteira do corpo da imagem. hoje, o inverno prossegue.
Não vejo, neste momento, o Grande Maior porque, estando
Para a mulher, era uma cintilação demasiadamente clara so- dentro dele, o nevoeiro tapou a cidade-árvore por fora.
bre a sua inquietude e, num instante, todo o seu universo de
_dor se dissipou. Decidiu pois, ir atrás da imagem para ver o Esta cidade também tem os seus anfitriões (uma espécie
que ela lhe propunha que dissesse. muito apreciada), mensageiros que andam constantemente
numa roda viva, praças como já referi e, sobretudo, esplana-
Sei que foi ter com ela um diálogo pacífico, das a céu aberto, cujas cadeiras se comportam com as mesas
de uma maneira absolutamente inimaginável. As mesas fa-
e que o azul angustiante que ela apaziguara acabou.por lhe ser lam, pois; a sua cor dominante é a clorofila. E quem se senta
dado sob a forma de um voto - o voto da decepação. A mu- nas cadeiras nunca se sente solitário. Do mesmo modo que há
lher devia escrevê-lo para escrever menos incerto. Devia, so- biliões de galáxias, de diferentes tipos, todas elas com biliões
bretudo, observá-lo na emanação das suas fontes de inteli- de estrelas, as cidades-árvore formam uma rede inextricável,
gência. e praticamente sem limites. Pelo menos, é a impressão que te-
Olhou para a imagem enquanto escrevia: «Repararei todos nho. Mas esse traço não é o mais notável. A multidão das ár-
os dias no vulto da mulher cortada pelo busto. Verei, simulta- vores tem um amor fixo - fazer companhia. Não por serem
neamente, o lugar de um objecto sobre a arca que está no fun- boas e estarem destinadas a esse ofício, mas por dividirem e
do do meu quarto, um objecto construído por um artesão». separarem. Desde que o homem é homem, estão condenadas
a ser implacavelmente decepadas. E sabem-no. Por isso se
Enquanto selava o escrito desse voto, pensou: «Todos os ob- deslocam e se sentam à mesa, não em si mas nas suas folhas
jectos lêem, ou são dados a ler>>. Pensou ainda que, não sendo dispersas que caem nas cadeiras.
crente, o escrito bastava. Não precisava da imagem (era um
mero não-uso), apesar do apelo ter em todos os pontos o equi- Por exemplo, nenhuma folha perguntou a uma estatueta de
valente religioso de uma promessa conjugal. Afinal, decepar- madeira que apanhei na rua onde tinha deixado as mãos.
-se todos os dias como quem se lava, ou anda, deixando para Tinha-as dispersas ou, então, eram múltiplos de outras cadei-
trás o sujo, ou um membro do seu próprio corpo, ou nós da sua ras destinadas à perfeita escuta. Dito de outro modo, escapa-
mente, era superior ao não-uso de qualquer objecto. -~lh~-~.!?.tuição de existir não existindo.
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Ainda outro exemplo: a névoa apenas as toma mais húmi- panhada pela sua luz até ao sótão, um último andar com jane-
das. Têm uma visão muito própria do que é a condensação - las sobre o telhado, águas furtadas com vários planos, inci-
um sopro que ora senta as folhas nas cadeiras, ora se levanta, e dências, divisórias. Um lugar feliz e infeliz quando, finalmen-
as folhas se levantam com ele. Não escapa, pois, aos olhos das te, se abre._~_aguela hora o objectivo do yento é a tempestade,
folhas nem o som da revoada, que imitam na perfeição, nem a pensou e, ao olhar pelo janelo, sentiu com perplexidade as
sua queda num nevoeiro cerrado. O importante é que o múlti- emoções que, por falta de cuidados e de alimento, atravessa-
plo, e a sua metamorfose não se demorem mais do que o ne- vam o pensamento quase extinto de uma criança. Nessa visão
cessário. E mesmo essa eventualidade não lhes causa apreen- instantânea, a criança retraía-se como uma minhoca fria e pra-
são. Sabem cair por terra, acastanhar-se, dissolver-se em maté- ticamente não reanimável. A mulher retraiu-se, apesar de o
ria de árvore. Há sempre tantas mesas em perspectiva... candeeiro ser rosa, um manto diáfano potente para atravessar
o inverno. O vento estridulava, e o rosa lampadino difundia-se
Encanta-me viver empoleirada nesta estranha forma de na divisória, tomando os recantos mais íntimos visíveis e pró-
consciência. ximos. Talvez por isso, a mulher reparou imediatamente que
«Lobo ou lebre?», pergunta-me ironicamente o Grande lampadino não era um equivalente exacto, e que essa impure-
I· Maior. za lhe conferia um valor imagético superior. O que a espantou,
Escolhi lobo. pois pensava que já havia ultrapassado a fase em que precisa-
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il «Tu tens ruah», disse, staccatto. «Mas "piano" também não va de imagens. Afinal, não decepara ainda o nó do imaginário.
seria uma má resposta». Em lampadino havia, de facto, luz - Aladino e a sua lâmpa-
da. E esta, como a mulher tão bem sabia, dava tudo o que se
• lhe pedisse, excepto a escolha. A lâmpada nunca escolhia.
o caminho para o inverno prossegue na grande mansão em Vivendo só, Q voto de decepação tomara a mulher expe-
que a mulher vive sozinha. À medida que aprende a decepar riente em lingua~m. Se a natureza não se importava que so-
os nós da sua mente, mais se espanta que a natureza a tenha fresse, o seu cérebro, não. O equivalente não exacto que este
criado como uma reprodução que não reconhece ter qualquer lhe dera era um estético a contra-verdade, uma menos-valia,
dívida com essa natureza. Como se a natureza contradissesse I!ê ordem da perfeiç_ão, um sedativo para que não soubesse.
a natureza, ou fosse da sua natureza proceder assim. Pega no Sentou-se na cadeira mais próxima. _Sentara-se só e desprovi-
bolo com a mão. Não usa o garfo. Ontem, trouxe do sótão um da pois, à medida g_ue crescia a deslembrança. crescia acerte-
i candeeiro de suspender do tecto, não um qualquer, mas aque- za de uma dor tremenda sobre a qual construíra a vida. Era
lir. le que, na sala do rés-do-chão, iluminava a mesa de trabalho possível.
1. de alguém que tinha tido.
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Tudo vago, portanto. A mulher não estava disposta a deixar
Sentia que entrava por debaixo da lâmpada, que a lâmpada evoluir a cena esquecida para o melodrama. Seria inoperante
acesa a cobria, que ela própria se difundia na lâmpada, acom- sobre os factos actuais. Queria saber como sabia, nesse ins-
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tante, que algumas colinas da pequena bilha assinada L. S., ficasse em dúvida, ou com uma porta de saída. E o homem
esverdeadamente azul e com uma árvore imensa, pousada na contou-lhe: «Esta manhã fui à pastelaria e, estando eu próprio
mesa ao lado, surgiam como que estampadas na parede e que de costas para si e voltado para a janela a escrever inutilmen-
os contornos de um homem avançavam sobre a bilha entre re- te a um amigo, vi-a também escrever, mas sobre um caderno.
voadas de pássaros traçados com um simples V mais escuro. De repente, e de modo natural, pensei que era correspondên-
No fundo da bilha, lia-se o número de origem 304, com a cia contra correspondência. Ninguém estava como nós ali.
mesma nitidez com que três árvores cobriam o bojo, forman- Tão perto e tão longínquamente distantes. No mesmo lugar,
do um campo azul que se debruçava sobre uma criança. Que- mas em diferentes linhas paralelas. Pensei que um de nós era,
ria que acontecesse exactamente assim na vida real da cena desculpe a expressão, moço de fretes ou, melhor dizendo, tra-
esquecida, nem que 304 fosse a marca indelével, um equiva- zia uma mensagem para o outro».
lente puro de uma anunciação insuportável. Essas marcas são A mulher não reagiu. Não estava disposta a deixar evoluir
anjos humanos, mensageiros da vida própria. Vêm de espada o diálogo para o melodrama. O homem continuou: «Esta é a
e não trazem consolo. Podam. minha carta, a remota carta que eu escrevia» e estendeu a mão
«Falassem, pois!», pediu ela à contra-natureza do seu cére- para receber da mulher, em troca, um sinal de que a sua carta
bro. E, enquanto voltava a pousar sobre a mesa a bilha, reno- fora entregue. Mas ela recusou-lho e, por instinto, recuou pa-
vou, no seu íntimo, o voto de decepação. ra dentro da luz do candeeiro que seu cérebro persistia em
O tempo retrocedeu. chamar lampadino. Mas esse mesmo cérebro fez-lhe reparar
A seu lado estava um homem que, com alguma sedução, que lampadino começava a enferrujar-se por causa da humi-
lhe entrega uma carta, ao mesmo tempo que lhe diz: «Seja dade e do não-uso do tempo.
bem-vinda!». E a mulher pensou que um homem não se pode, «Mais tarde», disse apenas ao homem, entrando destemida-
nem se deve, designar por «um homem», pois é sempre pecu- mente na visão do desassossego. E, de facto, entrou no quarto
liar, capaz de produzir uma emoção distinta. Correspondeu, de arrumos. Entrou sem rumor nesse sonho, ou yjsão comple-
pois, ao seu olhar, reparando que a sua única distinção residia tamente acordada e a san~ue frio. Abriu o guarda-vestidos, pu-
no gesto de lhe entregar uma carta. xou pela sua porta normal e habitual que tinha por detrás um
O dito homem ainda não a tinha na mão, mas acabara de a espelho e viu uma criança esquelética, pavor de qualquer ima-
escrever, e o envelope aberto mostrava nitidamente o triângu- gem, engelhada como um bicho quando já está há algum tem-
lo da parte superior, debruado de cola. po morto. Sentou-se a seu lado com uma precaução perfeita,
«Não a ponha no correio», disse, e acrescentou: «A carta é de modo a não ser dominada pela dor ou espantar o pouco ruah
para si». que houvesse. Ela que habitualmente, à noite, deitava da jane-
Nesse momento, tinha olhos azuis, e a mulher viu-o absor- la para a rua restos de comida para os animais, movida pela
to a escrever a carta. Havia na cena qualquer coisa, no entan- vontade de bem-fazer, não sabia como fazer bem com a crian-
to, que a punha de sobreaviso. O seu cérebro fazia girar os ça a quem chamou, logo ali para se proteger com a linguagem,
tempos verbais, não se mostrava natural a contar-lhe o que «Triste Véspera». Mas não desviava os olhos de seus ossos, não
acontecera na sua sequência. Queria, aparentemente, que ela ocultos pela carne, antes expostos no seu perfeito esqueleto.
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Não sabia como decepar uma morte iminente. Voltou-se, e tuem todo o seu mobiliário. Não quero esquecer a cesta onde
não viu o homem. Não queria, no entanto, que a cena evo- guardo as paixões e onde espeto a agulha com que escrevo,
luísse para o melodrama, o que seria, aliás, inoperante sobre ponta móvel renovável todos os dias.
os factos actuais. Estou, de facto, sempre ansiosa por pressentir o decurso do
tempo, voltar as páginas e constituir o meu percurso. Um tur-
Pegou na criança e deitou-a num saco de linho. Desceu as bilhão de emoções é um vento que se eleva. A cada pancada
escadas para a rua. Abriu a porta e colocou na soleira o saco do meu coração uma emoção bate,
e o seu fardo. Mergulhada na dor que estava a decepar por ac- eis por que, por vezes, me sento do lado de dentro, à porta
ção livre da natureza implacável, uivou na noite em busca de do abrigo, olhando o ar que se dissolve no cume das árvores,
socorro. esta cidade imensa que se balança ao vento como navio no
mar.
«Afinal, era essa a mensagem», disse uma voz encostada ao
muro da mansão. A mulher não recuou quando essa voz Tento habituar-me aos golpes imprevistos do vento e à es-
acrescentou: «Venha comigo». Pegou no saco de linho, e foi tranha forma das correntes.
no seu encalço.
O vulto continua a descer a colina até que, piano e homem
Lembrava-se vagamente de o homem, a certa altura, lhe ter escorregando, vêm parar à minha porta que, como já referi, é
dito para deixar o fardo aos pés de uma dada árvore. De fac- apenas um orifício aberto na cúpula do Grande Maior.
to, não podia mais com o seu peso. A cada passo, o saco
tornava-se mais pesado. Lembra~se ainda que o homem lhe «Mandam-lhe este piano solitário» é a sua mensagem.
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disse: «Não há nada de mais pesado do que um ruah puro». «Como entrará ele pela porta?» é o que indago do persona-
gem.
• «A música, de qualquer modo, entrará», responde o moço
/ ' de fretes do piano que se despede dele levantando a tampa e
a cor, a forma, o traço, o traçado, as horas, os diversos cantos pousando no teclado um saco de linho onde vagidava um blá-
do espaço relacionam-se, neste momento, de uma forma tão -blá melódico.
coincidente que eu acabo por invocar o nome de Beleza den-
tro do qual surge um homem descendo uma colina com um Entrou a música e entrou o piano. Falta alguém no seu te-
piano aos ombros. Fixo~o melhor e verifico que ele o arrasta clado mas é uma ausência em que não reparo imediatamente.
com uma simples pressão das mãos. Só depois abro o saco e extraio a melodia de um ruah ainda
criança. É leve.
Era o que faltava ao meu abrigo vazio onde o orvalho cai
nas pontas da manta estendida entre os ramos do Grande Sabem por que escrever ou tocar um instrumento é admirá-
Maior. Uma manta, um piano, um livro por escrever consti- vel? Porque, no primeiro momento, não há nada, parece que
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o vazio primordial e natural estão sentados connosco, impor- la. O lobo poderá sempre morder, atacar sem prevenir, ter no-
tunando-nos, e, de repente, no instante seguinte, estala uma jo do seu cheiro humano. Um cheiro de inimigo.
tempestade serena que distribui as figuras do som ou da ima-
gem no interior da casa. A mão esvoaça, e irrompe a acção de Sonha com um corpo aberto e pregueado e, de facto, o so-
sentir. As mãos decepadas são as mais velozes. Por vezes, a nho estaca diante do lobo, dizendo que o vai ultrapassar mas
estatueta de madeira chama pelas suas, e é admirável vê-las pedindo-lhe que corra cruelmente atrás dele. O sonho quer um
correr a uma velocidade incrível pelas folhas. E acreditam? sonho de lobo, que só possa ser exprimível num corpo-
Ouve-se uma melodia. -variedade.
Suspiro, e como o orifício não tem porta, esboço o gesto de O cérebro sente que captou finalmente um instantâneo do
a fechar, e ela fica fechada, protegendo-me o espaço para dor- lobo. Diz à mulher que encontrou o seu animal contraditório
mir. Eu, um piano, os outros acontecimentos que, rolando no preferido, «repara na meiguice opulenta dos seus olhos».
tempo, atingem o presente, chegam até mim. Somos todos
presenças móveis, capazes de augurar os sonhos desta noite. •
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devorados pelos animais selvagens dos afectos) dorme num Mas o sonho vinha dessa zona, a mulher não tinha dúvidas.
lugar seguro, Esses sonhos devem ser contados de forma que se sinta pelo
lado mais livre que se encontrar, não serve de nada encadear
sonha gue um lobo se aproxima e lança um uivo, não frustra- os factos, é essencial
do de fome. mas de carinho. Um grito, no entanto, lamentoso é isso, diz-lhe o cérebro,
e prolongado por não encontrar resposta. E provável. O lobo é essencial libertar o seu perfume,
sonha e a criança acorda. -
tudo o que resta de uma vida quando ela passa aqui. A mulher
Numa outra cena ainda, forçosamente rapidíssima, anterior sorri, a meio da noite sente-se bem, corre atrás de uma incó-
à precedente, uma carta de rapina, de grande porte, contendo gnita sem dor. Era inconclusivo saber se principiara pelo que
urna mensagem plumosa preta e nua devora a carne dos ani- viera primeiro, ou pelo que sobreviera, logo depois. Constata
mais mortos abandonados nas campinas, sobe aos céus, plana mesmo que há momentos posteriores do tempo que tinham si-
e cai de repente sobre o piano. O brilho do instrumento do anteriores em ansiedade. Foi, pois, subindo por um parque
reflecte-se, multiplicado na mensagem multifacetada da carta de imagens que sentiu o desejo relâmpago de desdobrar uma
de rapina que se afasta amedrontada. Por breves momentos, vida ocorrida perto de uma árvore que dava sombra a uma
deixei de o ver, mas do mesmo modo que lançou o seu brilho fonte. Deixou desfilar vários episódios, lembrou-se de uma
o recuperou, e fê-lo refluir com leveza sobre o seu próprio te- bilha, até sentir que um lobo a procurava para que o caçasse.
clado. Pressentira a presença da criança-ruah e a sua necessi- Sim, é verdade, havia um lobo e, como já retivera uma vez,
dade de um blá-blá melódico e carinhoso. A seu modo, res- um, de grande beleza nos seus olhos, precipitou-se na terra
pondia a uma incógnita que precisava ser desvanecida. firme desse facto, apesar de o espaço ramalhudo das imagens
continuar no sítio mais alto dessa árvore. Ela disse «no olho
• da árvore». Não se sentiu incomodada. Pelo contrário, teve o
júbilo de constatar que muitas dessas imagens primordiais es-
a mulher desperta e senta-se na cama com a sensação de ter tavam a nascer. Sem que ele estivesse presente,
sonhado. Um sonho sonhado nos primórdios da vida, quando
o cérebro só tem para sonhar as marcas de vazio, trazidas de a mulher começou a falar com o lobo querido que lhe fugia, e
outros mundos. A mulher sorri com a definição. Tudo come- que aspirava oxigénio pelas suas duas ventas. Palavra feia,
ça aqui, no único rnlJ)ldo que existe, não achando estranho que mas provindo directamente do vento de um sopro. Se eu quí~ ·
se nasça com urna bagagem de imagens nunca nele vistas. ser ficar realmente acordada, mesmo e sobretudo, no que evo-
«Bem», concluiu, «impreciso mundo». Há muita névoa, nes- luiu e passou (e está sempre a evoluir), pensou a mulher, te-
sa zona de baixas pressões da vida. Aliás, esta nem sequer se nho de dar-me ao trabalho de redesenhar na inundação a pai-
agarrou ainda à terra, ao mundo, nem sabe ainda se é uma vi- sagem (e sorriu da sua própria audácia), de modo que ela se-
da que quer ficar na vida. ja retida por um sempre máximo, no interior da pessoa, ou do
animal, que assim se torna indelével.
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O perfume do lobo era um desses «sempre máximos». Sem qualquer lógica perceptível, vi-a decidir que esvazia-
ria, mal rompesse a aurora, o seu quarto de arrumas.
Esse pensamento fê-la sentar-se à lareira onde demo-
ra a inscrever-se no futuro o dinamismo do movimento men- •
tal que é o equivalente do lume aceso. Por momentos,
julgou ver o lobo sentado contra o f9go, e concluiu «é o equi- cochilo à sombra do Grande Maior.
valente do lume aceso com lenha». E um lugar de grande per- Deitei-me na manta e seguro uma das patas do piano. Ne-
feição. Nele coexistem, além do equivalente, a marca do va- nhum som sobe no ar e impede que sejamos realmente osso-
zio, a decepação e o não-uso, sem qualquer presença de ima- litários de uma noite solitária. Apenas cantam os suspiros da
ginário consolador. O lar vazio e limpo com marcas de fogo, natureza infantil.
a progressiva consumação e as cinzas. O calor é real, um ini-
migo à altura da ilusão. O lobo, revezando o piano, canta, de facto, para a criança-ruah.
Razão por que, por ter pensado fugazmente que apenas
existia o que correspondia a esse fogo, a deixou, de repente, Sinto-me ligeiramente inquieta (para não dizer incógnita),
insatisfeita. E falou com o desejo que lhe viera de que o lobo plena de não-saber. Estamos aqui, trazidos pela infância, pa-
deitado realmente ali estivesse, apesar de não ter que pedir o lavra que associo à de natureza (cosmos e árvores) e depois a
que já estava presente. Seja como for, a prece é uma respira- Spinoza, meu velho mestre, a quem ensinei as cores e, mais
ção murmurada em palavras presas umas às outras por ligei- longe ainda, à de perigosa esperança,
ras gotas de água que libertam a mente que, por sua vez, li- momento único em que, abrindo esta aragem com a pan-
berta o sonho, o que não tem qualquer parecença com as ima- cada de um gongo, entrei num devaneio profundo levan-
gens que alcançara a dormir. Confessa, pois, ao lobo que está do o piano, a meu lado, a murmurar uma história antiquíssi-
junta de qualquer chama com ele, vendo no berço sua mente, ma.
seu corpo ainda pequeno mortal, e o espaço que lhe está sen-
do concedido pelo mundo inteiro. era uma vez,
uma vibração errante que decidiu pousar no pensamento da
No entanto, se se soerguesse e observasse mais atentamen- errância;
te quanto a claridade da chama incide naquele lugar, a mulher construiu abóbadas de aragem a que chamou florestas,
verificaria que quem ali estava era um indivíduo do mundo a cismar em troncos e em mulheres vigorosas,
verde que o vento que sopra da lareira, através da chaminé, cheios de humildade no amor que distribuíam,
impelira, não para o seu corpo de mulher, mas para a postura recebendo no regaço de suas folhagens e pregas,
do lobo que, no quarto amplo, e subitamente amorfo, repre- as crianças perdidas de seus pais.
senta o animal da incógnita. A mulher pressentiu com argúcia
esse facto. Pressentiu agudamente que ela e o lobo talvez fos- «As crianças-ruah», digo, e murmuro para o piano: «Por is-
sem complementares na cor verde e que talvez nessa cor resi- so és feito de madeiras diversas e de cordas vibráteis ... »
disse o «sempre máximo» da sua vida.
34 35
O lobo continua a cantar para a criança. Não é uma canção portanto, que eu ali ficasse sozinha o tempo que me conce-
qualquer mas uma melodia cheia de metabolismo e de meta- desse a minha autobiografia.
morfose, de respiração e de imortalidade. «Tu não falas do que é acidental», era a razão da sua bono-
mia para comigo.
«Sim», diz-me o piano levíssimo, «O meu som cria os no- E pousou o focinho sobre o esqueleto coberto de ruah.
vos órgãos das crianças-ruah». «E o lobo?», perguntei-lhe. O seu corpo em nada se distinguia de um tronco antiquíssimo
Mas ele já adormecera no meu regaço. em repouso.
Era o terceiro Ele que eu, durante tanto tempo, havia pro- Este diálogo fez-me pensar.
curado. Era ele com o focinho apontado ao esqueleto coberto
de ruah. Mais além, era perceptível um carvalho a derramar a teoria da evolução das espécies selecção por adapta-
uma metamorfose intensa sobre o Grande Maior. ção revela, na sua contrapartida, um enunciado radical.
«Vou seduzir este lobo», pensei. «Vou juntá-lo ao desejo S_e ca~spécie se adapta às cirqmstâncjas da meio, cada es-
que já existe.» pécie representa uma leitura das virtualidades desse meio.~
Vi-o procurar um esconderijo constituído por vegetais muito da espécie é uma leitura. A viabilidade de cada espécie é so-
antigos e inexpugnáveis. Mas como, se nos encontrávamos am- brevivência específica porque representa, de facto, uma des-
bos sobre a imensa árvore que o ar atravessava antes de chegar crição específica do real. Tantas quantas as espécies. Cada
às narinas e à boca? Desistiu do esconderijo e ficámos par~os, uma delas é, se bem entendo, uma história consistente do
um diante do outro, a contemplar as respectivas cabeças, a ver meio terrestre. Há, desta Terra, infinitas descrições possí-
como pensa quem não tem esconderijo, nem manha, nem toca. veis ... desde que escritas. Mais, dentro de cada espécie, há vá-
É manifesto que ele pensa no inverno. Não apenas na ~o rias leituras. Tantas quantos os desvios evolutivos.
mida rara, mas na respiração e imortalidade que pode acumu- Mas haverá apenas diversidade?
lar, rusga após rusga, nessa estação. Será possível que as leituras sejam convergentes e solidá-
~ «Ü inverno é o seu método de pensamento», pensei. rias?
«Deve estar exausta de ter piedade e de não a sentir», per-
cebi que pensava sobre mim. Quando o texto põe em contacto diversas espécies, no âm-
Abanei a cabeça. Ele levantou a cabeça e acerou o olhar. bito de comunidades associativas locais, está a reunir numa
«Ele deve ter horror às cores garridas», pensei eu, mais mesma linha diversas descrições do real que, nesse encontro
adiante. Desse ponto extremo do pensamento via-se um terre- inesperado, produzem uma nova descrição.
no ·não uniforme, lapidado pelo luar sobre a neve que ainda Todas juntas emigram de problema adaptativo, de leitura e
não entrara na cor posterior do chumbo. «Ü lobo é branco su- de desvio. Convergem. Alteram o sempre-drama da realidade.
jo», insisti para o obrigar a pensar em mim sem abrigo. São uma esperança perigosa e fascinante.
Servindo-se do seu pensamento, «Textuante, sou cor de lua»,
disse-me, como se falasse para uma neve a lapidar. Aceitava,
36 37
®
O Quarto de Arrumas
e a Solidariedade dos Mundos
---
se de ter história, apenas se sentia habitada por uma certeza
inabalável
- -
doravante seria o lobo que a contaria, e contá-
-la-ia com os seus olhos de lobo, com o seu pe1fume de lobo,
com os seus pêlos de lobo que se ~ espalhando pelo quar-
Ao regressar a casa, renovou o seu voto de decepação. Ape-
nas não reparou que este, entretanto, se transmutara.
•
to. Como, não sabia amda.
Levantei-me coberta de neve com uma necessidade absoluta
Foi atravessando ruas que, em diversas idas e vindas, depo- de tocar no piano, mas não o encontrei. O seu futuro perdera-
sitara o lixo da sua biografia no terreiro vago da capela. Foi -se momentaneamente do meu.
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Uma série ininterrupta de aguaceiros de neve permanece lá Como era apenas um facto, e não uma frase de sabedoria,
fora e uma espécie de pânico atingiu a minha vibração habi- deu-me vontade de lhe dizer que, no entanto, achara alguns dos
tual, que rompe. Se os aguaceiros estivessem a traçar a minha seus capítulos magníficos, por exemplo, o capítulo («é um ra-
autobiografia, eu veria como ela forma um tecido de linhas mo») sobre o equilíbrio salutar («O viçoso do corpo»), o am-
solidárias. De facto, como digo ao Grande Maior, eu sempre biente («as correntes de ar, o solo, a exposição ao sol»), os lu-
desejei que houvesse um ponto de coincidência de todo o es- gares de viver («O espírito do lugar»). Digo-lhe apenas para que
paço, de todos os factos, de todas as espécies, de todos os rei- saiba, exactamente, como as florzinhas brancas que despontam
nos. Apenas do Há, entenda-se. Porque a sua força de coesão em baixo, no seu sopé de jardim bravio, polvilhado de neve,
é sinónimo de memórias dispersas reunidas, de narrativas circundam a erva que se enrola em verde molhado e selvagem.
transactas em concórdia. Pensamento que me atemoriza pois
o texto já as reuniu, há milhões de anos, para virem ao nosso Frase complicada, excelente para mudar de assunto.
encontro. Ele entende que há no meu olhar um eixo nostálgi- «E o piano?», pergunta-me ele, como se não soubesse.
co de expectativa, pressente o sabor do êxtase que há nesse Sim, para onde fora o piano que adormecera no meu seio,
pacto. Digo-lhe que houve um dia em que tive na mão um só- tão diferente do que, em tempos, vi assomar a uma varanda,
lido que cristalizara no sistema monoclínico. O entrelaçamen- teclado colado à tristeza de não ter texto como eu?
to das facetas constituía um nome reunia. E eu falei pa-
ra esse sólido, fiz dele meu confidente, como neste momento · E, talvez porque essa tristeza me invadisse, tive medo de que,
lhe falo. por não haver piano, o corvo amarelo que vereis surgir adiante
não viesse pousar sobre o seu polido negro e não me entregas-
Ouço-lhe ainda as vozes de cada uma das suas facetas eco- se, po1tanto, a ponta da sua asa para que eu a comparasse com
mo me foram aproximando do lugar em que eu queria o lápis da minha infância. Mas mesmo que viesse, era bem pos-
encontrá-las. Não muito distante, aliás, de uns apontamentos sível que, dada a inconstância do meu piano, o corvo amarelo
que encontrei, mais tarde, sobre Ecce Homo, de Nietzsche. me voltasse as costas no reflexo deixado sobre o lustro da mú-
Não me pergunta quem é, nem do que trata, nem eu pretendo sica. Não era de excluir que, ao partir, se transformasse no men-
esclarecê-lo. Há muitos mais nomes no seu mundo do que no sageiro da dispersão fragmentada. Se assim fosse ...
meu. Digo-lhe que é um livro onde não me encontro plena- «Se assim fosse ... », repetiu, em eco, o Grande Maior, algo
mente. irónico.
«Porquê?» «Se assim fosse, quem olharia em mim e fora de mim estes
«Porque no chapéu sobre a sua cabeça não vislumbro abas pensamentos, disposto a fazer-lhes ajustiça da bondade?»
de magnanimidade», respondo-lhe a rir. Mas, de repente,
lembrei-me da sua cúpula frondosa e imponente, e acrescen- Mal terminei os meus temores infantis, o Grande Maior pôs
tei: «Apesar do excesso, é magnetizante». todas as suas folhas a rir. Aliás, fazia-lhe jeito. Sendo um plá-
«Afinal, só o excesso é que magnetiza>>, responde-me ele. tano de folhagem persistente e autobiográfica, o peso da ne-
ve poderia ser fatal para alguns dos seus ramos. Rir era igual-
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mente uma forma de se sacudir, sobretudo quando o vento, de o pensamento que, de raspão, atravessa o sentimento. Não é
tanto frio, não estava disposto a correr no desabrigado. Ape- um devaneio. Fora um facto interrompido pela distracção.
sar do estardalhaço, ouvi-o muito bem dizer: «Saltitas tanto
de diamante em cristal, ç!_f._montículo inteligente em montícu- Depois volta a transferir o branco para o branco. Aparece,
lo vagamente inteligível, vais tão depressa desse teu futuro de novo, a brancura, e ela sente que, enquanto olhar a parede
para o meu presente, queres tanto teres nas mãos todas as di- defronte, há um alguém no pleno uso da sua liberdade naque-
mensões luminosas do afecto, e suas direcções, gue pressin- la dimensão sem nada. Não é um vazio. É apenas o não-uso
to que o piano continuará a dissipar~se sem arrependimento ... do branco. Está um frio de neve pura. «É bom», diz, e cai de
E se te calasses um pouco?» supetão no chão do quarto. Distende as pernas e elas tocam na
parede em face. Sente-se apertada, presa, no quarto exíguo.
Calei-me, pouco por pouco, um pouco estupefacta. Ele re-
matou a brincar: «Afinal, alguém terá de ensinar o temor ima- A angústia que a invade é sem importância. «Estás a viver
ginante à criança ruah. Nada melhor do que um humano para uma típica transição de biografia», tenho vontade de lhe di-
isso». zer. Mas, apesar de a estar a ver, nem sequer sei onde ela es-
tá. Apenas se sente mais ela no exíguo onde não é livre do que
Mas eu sabia melhor do que ele (razão porque a última fra- na brancura para a qual não se consegue transferir. É lá que
se me pertence) que era impossível ensinar o temor prudente, está alguém que se sente bem «no branco para branco».
sem ensinar também os excessos do temor imaginante.
O dia declina. A luz do candeeiro que conserva na mão ga-
• nha relevo. Volta a tentar olhar fixa e serenamente o branco .
A transferência do branco para o branco é mais lenta. Muito
o que acontecera? Uma experiência muito simples. Inespera- mais lenta do que à claridade difusa do dia. A brancura
damente, ocorrera na sua vida uma experiência. A mulher, ensopa-se de sujo. Há mais tons de branco do que a brancura
sentada no chão, de costas apoiadas na parede, olhava com fi- faz supor. Há círculos de obscuro que se formam como ondas
xidez a outra parede branca do quarto - a parede que menos a nadar sobre água. E a mulher cai num ponto branco. A mu-
recebia claridade. Devido a esse pormenor existia entre o seu lher levanta-se com o desejo de o assinalar com a unha. Mas
olhar e a parede um levíssimo diferencial no branco. com o movimento do corpo e da luz do candeeiro dá-se a des-
locação do ponto - até que desaparece. O eu livre (e feliz)
A mulher não se distrai. Mantém o olhar fixo. Sente apenas não está na parede, nem no seu corpo, apesar de o sentir ma-
força e alguma curiosidade. Sem se dar conta, transfere bran- terialmente nesse seu corpo e naquela parede.
co para o branco. Olhos e parede esvaem~se numa espécie de
brancura dinâmica. Durante algum tempo é bom. Em seguida, Olha, algo descoroçoada, para a luz levemente rósea do
distrai-se, e a mulher cai no sentimento de que o espaço do candeeiro. Imagina que há invisíveis coisas no espaço, formas
quarto é restrito. «Há uma imensidade neste quarto exíguo» é adequadas, incógnitas, mas o candeeiro não a esclarece. O ser
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humano é provavelmente o que tem a folhagem menos per- «Não vê que ele deixou o corpo noutro lado?», disse o cor-
sistente. vo amarelo e, sem mais contexto, naquela manhã chuvosa e
de ventania, trouxe-lhe no bico um cordeiro perdido e de ore-
A mulher deita-se na posição fetal. Apoia o candeeiro sobre lhas brancas. O cordeiro, mal se viu livre, saltou e foi cheirar
as ancas. Intui que importa tanto tê-lo agarrado ao corpo co- a criança ou, melhor dizendo, foi bater com o seu espírito ju-
mo ter olhos e uma parede branca em frente. São os instru- venil à sua porta que ligeiramente se entreabriu.
mentos de um excesso 1!1agnetizante. O ser humano é prova- «Ü menino tem espírito», disse o corvo.
velmente o tronco erecto que mais o procura. E,_no entanto, nenhuma maré de livros dera à costa; apenas
alguns sabores, umas tantas melodias e algumas sombras des-
Apenas não sabe como transferir o corpo para esse excesso garradas de folhagem haviam penetrado no seu olhar. Fora o
e voltar incólume à posição de repouso. Mas há ali alguém. suficiente para que o ruah moldasse «alguém».
Não diz algo ou algum. De qualquer modo, só pode olhar com «Uma só árvore é o mesmo que uma floresta», disse o cor-
os seus olhos de mulher. Ver o ponto que desapareceu como vo amarelo. «E as suas perguntas nada ajudaram?»
uma coisa é deixar que esta a veja como algo. Seria contrário
à sua inteligência. É verdade que, neste caso, uma ou muitas são plural. Se eu
corto um dedo toda a pata sangra. Se eu corto uma Iíngu~
• ~ a linguagem se cala. Se aquele em quem eu penso morrer,
fica uma morte injustificada dentro do meu pensamento. Que
compreendi que o corvo amarelo estava atrás de mim, de pé, se faça, pois, justiça em cima da beleza que não fala.
com palpitações de anjo nas asas. Pousou no alto da minha ca-
beça, ou seja, no meu excesso imaginante, e enxugou as lá- Mas o corvo amarelo atalhou: «Já não há ninguém para fa-
grimas da criança ruah com um só olhar desferido à sua nuca. zer justiça no mundo de onde ele veio. Vi-o no meu voo».
Era esta precisamente que eu estava a formar, e começara pe- Pousou junto ao cordeiro. Fixou, com os olhos de ponta, sua
la nuca porque ela chorava, num choro ininterrupto e doloro- orelha branca. «Queres brincar com esta criança?»,
so, apesar de ainda não ser visível qualquer órgão físico cria- perguntou-lhe. «Meu Deus», pensei, «é a reforma do entendi-
do. Mas chorava, de facto. mento de Spinoza transformado em ave»,
foi porque a andorinha morreu? já que, enquanto aves, os livros deixaram praticamente de
foi porque o corpo do teu amor se fundiu? existir. Eu não sabia o que lhe dizer. Queria trocar-me pela
foi porque elevaram a voz contigo? paz de espírito. O corvo pôs-me na mão o único fragmento de
foi porque o medo do medo final te atormenta? livro que encontrara - o desenho anatómico da asa de uma
foi porque tens falta de ruah? ave de grande porte. Eu azradeci, sem vislumbrar como
foi porque me perdi no que procuro em ti? aceitá-lo.
foi porque, afinal, te imaginei sem querer?
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Reflexos das asas cortadas dos livros iluminavam a noite. Um enlevo que a persuade sem ansiedade a ir de uma pon-
Os livros eram pobres que vinham a descer. Amanhã, o pobre ta a outra do sentido, sempre aberto. É esse enlevo que, an-
pode ser esta crianrra. O ofício da noite é cobri-la para pen~ar, dando facilmente no vazio, a conduz, como vê a luz, ao seu
pensei, mas não há nenhum livro para dormir com ela. equivalente - o ponto luminoso oscilando sobre a ponta do
lápis.
«É assim na terra», disse ao corvo amarelo.
«Vamos ter esperança. Se a mãe der com ele, toda a criação O lápis prefere um lugar onde respirar seja mais fácil do
recomeça», respondeu-me com bonomia. Em seguida, pôs o que no vazio, algo de mais sujo e de obscuro. Mas a mulher
bico e grasnou: «E se lhe déssemos um corpo de asa?» «Mas pr~fere-o como asa inquiridora e inteligente. Vai, pois, ver.
como vai a mãe reconhecê-lo?», perguntei-lhe. Bnncar com a brancura até cair de cansaço ou de asfixia.
«Quem reconhece um anjo, mais facilmente reconhece uma Lá~is e brancura? Sim, até a brancura se envolver, um pou-
asa de pássaro», disse imitando o tom de voz de Spinoza. c? SUJa, com o lápis caído no aéreo. Há, assim, do ponto de
vista da luz, uma mulher que se desnuda e um lápis sonhante .
•
não há qualquer luz que embriague tanto como a brancura. Luz, por qual deles começar?
O que a mulher experimenta é que uma autobiografia só é <?on:ecemos pe~o _l~pis sonhante. Quando o lápis, no pri-
desmontável e transportável quando se aprende a arte de gra- meiro impulso de 1mciar um percurso, está suspenso, sonhan-
var em ar. te, não desenha qualquer escrita. Está para escrever, para en-
trar no branco, esperando a noite, o bosque obscuro e algo su-
O candeeiro aceso olha-a com atenção para ver em que mo- jo onde lhe parece que os encontros redobram de certeza e de
mento deixará cair o lápis e abandonará a sua posição levan- intensidade.
tada. A mulher não pode deixar de crer que a luz sustentada
pelo seu braço esquerdo, que ainda não cedeu ao cansaço, es- O l~pis sonhante varia constantemente de aspecto, e a mu-
tá à espera do lobo. lher ve-o como um transeunte errático que se multiplica em
cada ponto do branco - seja ele o que for, desde que leve-
De facto, a luz vive de um modo tão natural como a bran- mente sujo - , praça, mirante, banco, parque, jardim ou pes-
cura (o medo foi ofuscado pelo sol ao longe), e olha sem sa- soa que se encontre submersa na brancura. Isso tem um nome
ber ainda o que pensa o olhar da mulher. Ora, a mulher pensa pensa a mulher, com o lápis pousado na parede. Criar con~
em enlevo. Um enlevo que lhe sugere que é possível que to- traste, abrir fendas na brancura.
dos os pontos da brancura incomparável sejam iguais em ar-
dor, e apenas diferentes sobre a linha da interrogação. A mulher levantada, com o candeeiro na mão esquerda, ain-
da não começou, nem ainda cedeu ao cansaço. Apenas não se
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distrai. É o que vê a luz do candeeiro. O lápis não morre, res- · Luz, por qual deles começar? Pelo lápis sonhante ou a mu-
suscita no confronto com a voz branca da parede. lher desnuda?
Comecemos pela mulher desnuda.
De repente, a mulher crava a unha para marcar o trajecto do
traço futuro. Unha após unha, hesitando com firmeza. Sabe on- •
de cravar-se. Inesperadamente, por puro excesso de afirmação,
parte a ponta do lápis ao primeiro traço, junto à imagem que jor- mas, como aqui todos escrevem, uma espécie de música entra
ra nos seus bordos. A mulher não o larga, é difícil afiá-lo com por onde quer entrar. Não tenho outra definição para as jane-
uma mão ocupada. Agarra-se a ele, pensando numa pena que las que vejo aqui - mexem e mudam de lugar.
cresce na cauda de uma ave. «E não a deixarás perder», diz-lhe.
Principio a sentir frio sobre os ombros. «Como transferir o
Recua. Olha, como a luz está vendo que olha, uma linha si- relógio para a criança ruah?», pergunto ao corvo amarelo.
nuosa, feita de um traço e de cravos de unha, espalhados pela Mas, quando me volto, não o vejo a ele, mas um Relógio em
parede. Quem ler o que o lápis escreve, na noite predominan- tomo do qual chilreiam pássaros e folhagens. Tocam, anun-
te oriunda dessa imagem - que é para embeber e responder ciando a manhã, à volta da qual vão continuar a proclamar o
ao ler com o seu lido - entrará na paz dos universais. Esse, sonho da terra. Há, assim, uma grinalda de sons activos que
o momento por que espera a luz ver-se. Ver-se no an- marcam as horas que, na realidade, são graus de leveza.
jo que desassossegou a brancura, lhe libertou a imagem, e a
vai serenando, no momento seguinte, de linha em linha, de Na leveza é mais difícil sentir. No denso, a liberdade é rara
degrau em degrau. e muito lenta. Não tenho outra definição para caligrafia. In-
sensivelmente, e sem dar por isso, resvalando, eu própria co-
«Este lápis quer noite», pensa a mulher. E aponta-o, sem bi- mecei a aumentar o tamanho da minha caligrafia atrás da qual
co ou ponta, ao ponto-alguém que para sempre a trará a esse se agitam melros e pardais.
encontro. «Ao que ela disser, ele responderá», vê a luz.
A caligrafia cresce em excesso e reflui para a nuca da crian-
A mulher chora, ri, explodindo dentro da felicidade natural ça ruah. Uma nuca de asa. Não tenho outra definição para cor-
de estar consciente na sua parte livre. «Terei descoberto o__!!leu po. Entretanto, a copa do Grande Maior iluminou-se e imagi-
modo de transferir branco no hrapcoTu, pergunta. «Ma~ per- no que, se escrevesse, o texto estaria - pressinto-o - a rom-
gunta a quem?», interroga a.luz. per a sua textura. Ouço elevar-se o seu canto de trabalhador, de
lápis ao ombro, algures, sobre a terra. Beijo-o profundamente,
A imagem ainda está submersa. A parede não está submer- mas não terei nenhum sono erótico que o liberte da ansiedade.
sa na imagem, é a imagem que está submersa na outra mulher
- a desnuda. «Quando ensinar a criança-asa a ler, estarei a ensinar-lhe
uma língua morta», pensei com melancolia. Mas tenho de
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aceitar que se quebrou o canto da terra con~r~ ~ fascínio, da •
mesa que chegou hoje. Não tenho outra defmiçao. para cere-
bro de criança-asa. Pouso o texto sobre a anatomia das asas achou-se levantada no ponto mais alto da parede, e a imagem
que estava a tentar ler através da luz azulada. Tiro os ócu.los, que surgia desse ângulo era um corpo de criança com o rosto
0 braço, o punho, os dedos, as unhas, significando com ~sso completamente por f01mar. Não completamente, contudo. Era
que, por momentos de muitos anos consecutiv~s, vou d~ix~r evidente para a mulher que teria olhos de lobo - um não-uso
de escrever. Mas a minha alegria de garota sera sempre infi- perfeito e sem equivalente. Nem sequer pensou que isso tinha
nita porque sem escrita-·- que aqui é música de relógio.-. ~ um nome, no vocabulário humano, que era o dela. Teve a cer-
metabolismo não será metamorfose. Somos, de facto, feitos a teza que, há muito, perdera de vista aquilo. «Pelo corpo ainda
imagem de. Mas que rosto é o desse alguém? A criança ruah, não chegara a nascer», pensou. Mas, pelos olhos que se pre-
de uma só asa ou leme, será carteiro. via, era já um animal feito. Seria um olhar seguro, que não to-
ma o mundo por ilusão.
Aprenderá a recolher as mensagens tecladas nos arbustos e
folhagens que, aqui, não estão sob a dependência absoluta. de ne- Quis escrever-lhe por debaixo um nome, um nome nosso -
nhuma dor. Há pedaços de folhas coladas nas portas ou J~nelas queria dizer humano-, mas pressentiu que aquilo lhe respon-
dos abrigos. Talvez nem !he diga que há uma árvore reve~tt?a ~e deria: «Nome, só tenho o meu». Por outro lado, precisava de
pequenos cumes duros. E possível que lhe esconda a ex~stenci_a afiar o lápis, sem se separar da luz, nem dele. A mulher procu-
de açoites munidos de espinhos. Tomei-me totalmente msensi- rava apenas deixar indícios. Não tinha a certeza de voltar àque-
vel a tais recordações sumárias dos anos que me precederam. le ângulo, como era possível que aquilo não voltasse àquilo .
._.
Recolhendo as mensagens diárias, alimentará o sonho real. Além do mais, havia o medo. «Mas que farei do medo de
Há muitos mundos à espera dele e da sua espécie. São raras as subir ao sempre máximo da parede?», interrogava-se, apesar
crianças-asa. Coloco todos os sonhos sob a benção do Reló- de o medo a atrair, por a fazer veloz.
gio, que tem um rosto humano indescritível. Que imp~rtância
tem se as suas badaladas medem apenas leveza? Que importa Assumiu, então, que a luz seria sua companhia. Que com
. , l?
que os humanos, se o vissem, sentissem um med o mo_meave · ela partilharia o medo, a paixão e a velocidade. Em termos
A criança-asa saberá reconhecer a sua bondade. Nao. t~nho simples, era óbvio que estava a transferir-se. Mais óbvio se
outra definição para a signografia do espaço que, daqui visto, tomou ainda quando aquilo lhe disse, por meio dos olhos que
é incontestavelmente maior do que o tempo. teria: «Eu, tratado como coisa, sou muito independente. Mas
leva contigo este brinquedo».
Encontrarei algum brinquedo antigo, sua música e respecti-
va dança, onde se escondiam as perguntas a que se devia res- Era um livro de brincar no sempre máximo que faria com
ponder? Gostaria que assim fosse. que a mulher nunca se sonhasse como coisa concreta a ser so-
nhada. Desceu o olhar da parede. Saiu para o corredor. Pegou
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com os dentes no apara-lápis, à vista sobre a mesa. Afiou a E começou a esperar a visita do lobo. Podia surgir, pensou
sua ponta partida. Fora a correr e não se vira. a mulher, debaixo da cadeira onde se sentia presa. Por detrás
de qualquer móvel. Saltar por qualquer janela e entrar. Entrar
Foi apenas vista pela luz e pelo lápis sonhante, verdadeira- e avançar para ela como quem cresce.
mente encantados com a mulher a atravessar nua o corredor.
É como se ela tivesse passado por eles no começo da manhã: A mulher estava a transferir-se para o receio do medo. O lo-
«uma mulher desnuda a a.travessar o corredor dá alegria», en- bo ameaça. Mas não faz mal, pensou, «falarei com ele sobre
quanto uma chuva glacial caía lá fora. as coisas semelhantes das nossas vidas», sobretudo, da músi-
ca que ambos tinham ouvido. Podiam igualmente falar da li-
O que mais os surpreendeu é que ela, à medida que atra- xeira e do conhecimento. E, no seu máximo, o perfume do lo-
vessava, rejuvenescia, nunca deixando de ser uma beleza con- bo apagaria todas as palavras. Afinal, a melhor maneira de fa-
templável. Ao sair do quarto, parecia um ser humano muito lar não é comunicar, mas escrever. Desenhos e desenhos, sons
antigo e velho. A meio do corredor, já ia na idade madura. e sons, para fazer sentir o que na outra sensibilidade está au-
Quando pegou com os dentes no apara-lápis, era uma jovem sente. Cair apaixonada na sua boca.
mulher núbil. Indício claro de que corria por um desfiladeiro
magnetizante. Onde estaria, pois, o excesso? A mulher não está a imaginar. Está apenas a reunir forças.
Desde que viera para o corredor que havia alguém a raspar
Quando se sentou na cadeira, ao fim do corredor, a mulher com as unhas a porta da rua. «Não há razão para gritar quan-
começava a saber o que pretendia. A imagem que vira na pa- do ele aparecer.» «A sua boca efectivamente não morde.» «Só
rede, aquilo, fora apenas um isco para a fazer sair do quarto. os humanos se abocanham uns aos outros.» «Na realidade, é
A brancura não era um mistério. Era uma força movida por mais poderoso e apaixonante do que está no papel das ima-
imagens. Ali, a mulher começava a entendê-lo, não era a úni- gens.» Puzzles e ironias.
ca que sabia. Havia um vasto panorama no mero facto de es-
tar aparentemente sozinha no lugar onde passavam as coisas Mas, de repente, sentiu um pavor profundo. O lobo fora es-
concretas, mais concretas, que há na realidade. Consoladoras crito. As marcas das unhadas que a mulher deixara na parede
e não, as partes felizes não se distinguindo facilmente das que eram prova disso mesmo. «Um lobo escrito é um temível
se adensam e param. ser», pensou, levantando-se, e o lobo, assim desnudo, entrou.
Cresce no corredor em direcção à mulher. Sempre farejando e
O que queria a mulher? Guardar as felizes no seu seio e dei- sem matilha. De cauda erguida à brisa de alegria que sentia
xar murchas as densas em qualquer parte. Isso era possível, e planar. Também havia medo. E lançou-se à boca da mulher,
até prático, mas não ali, não naquele mundo. O voto de dece- pousando as patas sobre os seus ombros.
pação era apenas uma terapia. Mais construtiva fora a decisão
de guardar unida ao corpo a luz e de não pousar o lápis, uma Infelizmente, com o choque, a mulher desequilibra-se e cai.
e outro incompreensíveis sem a sombra e sem o sujo. Das suas mãos soltam-se a luz e o lápis sonhante que rola pa-
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ra debaixo do tapete. A luz rosa balança lentamente até en-
contrar a sua estabilidade inerte. E o lobo crava os dentes na
nuca da mulher.
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Na realidade, os convivas são seres muito díspares. Basta velocidade. Também pode ser visto como um barquinho de
notar como neles o mais pequeno ruído tem uma violência papel, ou até uma palavra a vogar como um rutilante.
formidável de sopro em nódulos de pequenas melodias. Co-
municam. Despertam espécies de palavras ausentes nas melo- A questão é: Quem está esse barco a amar.? Quem amava,
dias de sensibilidades muito diferentes. Parecem-se com que- com todo o risco? E amar, neste caso, seria o verbo ex~Õu
rubins e são folhas. a.-teJTível palavra ausente? Para ~ivas, o espaço é, de
Dentro em breve é manhã. Ambrosia, clorofila e contem- longe, mais provável do que o tempo.
plação são equivalentes desde que ouvidas como sons.
Quem entrara no meu pátio da Lembrança queria bem à lin-
Logo que a criança-asa penetrou no meu pátio da Lem- guagem que soprava e ao que ela exprimia na sensibilidade
brança, disse-lhe: «Nada iguala o prazer difuso de estar alheia. Disse-lhe, no entanto: «Dou-te o meu corpo maleável
consciente à hora em que se formam, como gotas, os sonhos para exprimires a tua linguagem. Vê o que fazes de mim».
do Grande-Maior». Pedi-lhe que reparasse que esses sonhos A resposta veio pronta: «Sobrarão corpo e cabriolas para ti».
eram metamorfoses estranhas do luar natural. Contam,
aliás, com ela para distribuir mensagens e anúncios, e pres- Feliz com a resposta, incitei-a a desejar profundamente o
cindir de as ter sonhado. A criança-asa sente, então, que espaço e a temer o tempo que, por sua origem parcialmente
vem do exterior para dentro da Lembrança, que, no seu ín- humana, teria de reger. De facto, como tentei explicar aos
timo, a lembrança é transparente, e que há nessa transpa- convivas, o espaço e o tempo não sabiam beijar-se. Ainda só
rência uma grande arte. «Sente o ar que leva e solta, feliz, o sabiam fazer o beijo onde estavam impressos os seus lábios.
som das horas», minha criança-relógio. Não há melhor ma- Não tinham ainda descoberto a fase seguinte. Aprender a
neira de receber o sonho. Basta que lhe acrescente o dese- beijar-se, de muitas maneiras e em qualquer espaço.
nho de uma rua, o traçado de uma casa, a sequência de por-
tas vagabundas que acolhem a felicidade de ser sem tecto - Como, nesse momento, senti as garras da asa nascente da
e receber. criança na palma da minha mão, acrescentei à atenção dos
convivas daquela noite: «Terão de aprender o pedido de uma
Nesse instante, um olhar de lobo salta sobre o desenho da troca sem objectivo, apenas fundamento de uma fulgurante
criança-asa. Aponto a dedo: «Vê. É a consciência», digo-lhe. percepção gestual de liberdade». O Grande Maior acrescen-
tou: «e de liberalidade».
Seria esse o traço característico do humano?
1 A surpresa que o tempo acabara por trazer? São perguntas Nos momentos em que me encontrava a sós com a criança
que interessam profundamente os convivas. De facto, pelas li- ruah, minha pessoa amada, ou palavra ausente, ia esculpindo
nhas desse tempo de que é feito o humano circula, veloz, um a sua asa na árvore, totalmente entregue ao desenho desse cor-
barco de cânticos de silêncio que, conforme a leveza da água po. Não raro, ele fazia-me rir, não na boca mas nos lugares do
que corre de folha em folha, altera o ritmo e a direcção dessa futuro movimento. «Vem», dizia-lhe, enquanto meu corpo hu-
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mano lhe comunicava a tinta do sangue humano e ela, melo- de cada folha que a criança-asa aprenderá a discernir no sem-
dia estranha, já não chorava por ser demasiado grave e explí- pre máximo da sua nitidez. Espero ensinar-lhe a viver nas fo-
cita a sua natureza de híbrido. lhas perenes, contemplando as flores que, por liberalidade, lhe
lançarão abelhas aos seus olhos de Iob9.
Foi assim que a criança-asa foi abrindo o desenho firme da
sua consciência. •
E, no entanto, há dias e.m que as árvores se reduzem ao seu O cerne é o modo como se forma o pensamento. O mo-
próprio desenho. Nesses dias, não as conto. Mas, no dia de mento crucial desse cerne é a identificação da sua raridade.
hoje, em que os convivas demonstraram uma tal preocupação Outra coisa não há. Mas onde o vivo emerge pode haver. Qua-
pelo sentido do criado, sinto-me feliz por ver a criança inte- se, de certeza, que haverá.
riorizar o sol de qualquer galáxia. Aliás, os plátanos rugiram
de fulgor só de a verem aceitar todo o díspar, aceitando cami- No preciso momento em que um vivo entra em contacto
nhar ao lado de qualquer ser criado. Ser mensageiro para com uma pessoa, isso torna-se vivo, e começa o pensamento.
qualquer «alguém» é um grande acto de generosidade. De- V~vo ,não é: p.ois, bio ne?1 matéria. Não é carne, nem espírito.
ram, por isso mesmo, um abrigo áo animal querubínico que a Nao e mecamco, nem vital. Não é unidade, nem múltiplo.
criança-asa é, depois de ter sido figura humana como eu. Gos-
tam especialmente de a ver entrar na toca da meditação, de É uma relação entre pessoas, seja qual for a sua ordem, em
onde os seus primeiros ui vos, regressando em eco por toda a bus~a de uma arte de viver, ou seja, de mútua não-anulação.
floresta, fazem as árvores desejar crias capazes de transferir Assim, por exemplo, para ela, o voto, a luz, o lápis, a parede,
sonhos para o imenso espaço. Essa, a sua grande expectativa o corredor, o lobo, os sonhos, a incógnita de que não se recor-
- dar à floração híbridos mensageiros de sonhantes, de hu- dava, eram pessoas. Também podiam ser coisas. Mas, se o fos-
manos e de vegetais. sem, seriam inexistentes, do ponto de vista da não-anulação.
A toca da meditação tem o chão atapetado de ramos e de Por isso, entre todas elas - a mulher incluída - foi-se
excrementos de antigas aves abrigadas, que há muito secaram, co.nstruindo, passo a passo, uma arte de viver. Conceit~s pró-
e são agora uma carícia doce para o seu rosto em formação. pn~s. Bastava lembrar não-uso, decepação, sempre máximo,
eqmvalente, marca de vazio, o branco para o branco, e outros.
Sei que vai ter dificuldade em falar de si próprio, pois a me- Pensavam, e depois viera o lobo, e perguntara à mulher no
tamorfoJe comanda o seu corpo, e ora é, ora não é o que está seu primeiro acto de pessoa: «Onde está a tua infância?».'
sendo. E capaz, por exemplo, de colocar uma carta de rapina
numa jarra e queimar, por o fogo ser mais forte do que ele, A mulher não sabia. O que não é grave. Sozinha nunca sa-
fragmentos de sonhos. Mas há dias em que a água não tem beria, teria ap~nas interesses e necessidades, e alguns traços
sombra. Pelo contrário, forma um resplendor sonoro à volta de prazer. Tenam de ver, em conjunto, qual seria o próximo
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passo da mútua não-anulação. Enquanto pensassem talvez pensamento, aceder ao pacto da mútua não-anulação. Bateu o
viessem a saber ou não, mas nunca se anulari..'.:~ pé, «Ü que é o pó poético?», perguntou, insistindo mais do
que uma vez.
De pé no quarto, com a luz à cabeça como um cesto, a mu-
lher escrevia em voz alta e claramente, na parede: «Essa in- A mulher sentou-se, algo nervosa com o pensamento. A bran-
fância, seja quem for, é um desconhecido fragmentado, e nun- cura da parede estava silenciosa, e o lápis sonhante parado.
ca me olhou olhos nos olhos, talvez apenas de lado». Todos a Apenas a luz se mantinha acesa no cocuruto do cérebro. Era
ouvem e, inclusivamente; alguns vêem que, olhando para es- manifesto que se colocava um grave problema de acesso. Não
se lado - um lado que a faz ter vertigens - , se veio sentar se entra na infância-pessoa pelo bibe, nem pelo chocolate.
no seu espírito, mesmo ao lado dos olhos, uma recordação
que, anos e anos a fio, sempre se tem mantido silenciosa. Há A mulher perguntou-se: «Será a poesia o cheiro da terra, e o
apenas um choro. «Mas como saber se não foi inventada pela seu etecetera a força de fusão das galáxias? A sua última fra-
memória?» É uma pergunta da mulher dirigida, obviamente, a grância fundida?». Já tinha o dedo sobre os lábios como quando
todas as pessoas presentes. estava a cismar e o conceito do seu sonho lhe parecia longínquo
e a extinguir-se. Nada a fazia rebelar-se tanto, no seu espaço exí-
A infância podia ser um estado, uma coisa. Nesse caso, es- guo, como querer alcançar, e mais não poder. Havia uma ques-
taria perdida. Era mais prático tratá-la como pessoa. tão técnica, era evidente. Escapava-lhe o não-uso. Talvez fosse
Perguntá-la. Por exemplo, «Brilhas no fundo como um chei- preferível desenhar rabiscos na sua memória e suspender, por
ro?», «ÜU estás presente à superfície como o pêlo?», «Gosta- hoje e naquele instante, o «onde me ilumina o meu meditar».
vas agora de viver connosco?», e talvez ela nos respon'!.a,
pensou a mulher. E era um pensamento verdadeiro. A infâ:J- A verdade é que, com receio de ser pessoa, a mulher se trans-
cia é muito mais infantil do que as crianças da terra onde duas feriu de meditar para a memória onde a infância é apenas coi-
luzes apagam, por regra, uma terceira. ___ sa, como é óbvio. Escolheu, sem ilusões, o tempo e o cerimo-
nial dessa ficção que range como uma porta anunciando que é~
Terá ela - a infância - , como o lobo, um sabor sem-par? porta, nunca se sabendo se dá entrada, nem se o conteúdo para\
Era uma excelente pergunta. E se a mulher a ouvisse respon- onde a porta abre está dentro ou fora da memória. Como uma
der? Por exemplo, «Ü que é o pó onde tu me rojavas?». Imagi- cama mal arejada, a memória também tem os seus ácaros.
nemos que não lhe soubesse responder e apenas a visse por en-
tre poeiras que, fugindo e fulgindo, se sumiam. Era evidente pa- Ao vê-la tão abatida, momentaneamente anulada, todos os
ra todos os presentes que outra voz, separando-se da primeira, presentes vieram em seu socorro. Decidiram contrapor à me-
de certeza, perguntaria: «Para onde foi o estertor da poeira?». mória da mulher um forte estímulo contemplativo. O que era, da
sua parte, bastante hábil. Porque a infância-pessoa não era dela,
E a mulher principiou a balbuciar Poesia, como lhe haviam pertencia integralmente ao pensamento, à arte de viver comum.
ensinado desde o nascimento. Mas a voz queria aceder ao
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Reparemos, disseram-se, como, por vezes, os objectos sozi- nas lembrada. Por pudor, e por excepcional sabedoria não
nhos no quarto de brinquedos adquirem plasticidade e movimen- gostam de ser olhadas, destacadas para análise. E, antes de
to próprio, e jogam uns com os outros. Assim, o que está pen- murcharem, tornam-se rápidas e incompreensíveis.
sando se interroga e desloca em si mesmo concluindo que, sem
destinatário apontado, também pode haver conceito na memória. De repente, o pensamento de todos os presentes tornou-se
velQZ, ou seja, intuitivo. Quanto mais singular e original for
«Que conceito?», quis saber a mulher. «Ü de jardim?», uma cena, mais receptiva e acolhedora se torna, ou seja, reju-
responderam-lhe. O que lhe estavam a sugerir é que se trans- venesce - foi o que todos intuíram. Eles próprios eram essas
ferissem sem tardar para as cenas do corpo. Se o não fizes- cenas, combatendo o veneno que as queria fixar numa ficção
sem, as palavras a brincar perturbariam o pensamento. escrita. Eram capazes de se transformar em fio de leite para
dar de beber a uma criança que não queria o seu ruah.
Ao saltarem em uníssono caíram na cena em que o corpo
vivo age, pousado, e sem ninguém o ler. Não lhe perguntem Sentiam uma pujança enorme no pensamento. Não lhes se-
como é possível porque era o impossível que nele se estava ria difícil transferirem-se para a infância. Aliás, ela está no
fazendo, naquela cena, cuja semelhança com uma cena de chão do quarto a brincar com um grão de poeira. «Estou à es-
ópera era realmente impressionante. pera que cintile a luz do sol, ou a energia de qualquer outra es-
trela.» Estava à espera do seu princípio de criação.
As cenas do corpo eram, obviamente, uma pessoa. Todos os
presentes podiam, pois, perguntá-las. «Qual a vossa função Todos se baixaram. A luz incidiu, o pensamento concen-
entre o desejo rápido e o desejo consciente constante de per- trou-se como algo de floral, de térmico, de facto somado a ou-
manecer? Permanecer fugazmente num sítio em que não vos tro facto. Era tão fácil soprar sobre aquele pó que, sem ansie-
perdeis de vós próprias?». Era possível que as cenas respon- dade, foi adquirindo a forma global de umafolha de afecto.
dessem: «Temos sempre o desejo de cobrir rapidamente a nos-
sa nudez com uma toalha branca». E, se lhes fosse perguntado: O tempo está a entrar em todos os presentes, em vez de de-
«Porquê?», responderiam: «Ü pensamento não consegue ler os les sair. Não é de admirar que rejuvenesçam, sobretudo a
nossos sinais que galopam». mulher.
«E não quereis ser pensadas?»
«Queremos pensar com quem pensa.» Aliás, que outra res- E, quando a infância se transferiu em todos eles, a memória
posta poderia dar urna pessoa? reparou que quem fala no que há-de apagar-se não pára de an-
dar. Anda.
As cenas do corpo não se cansam de estar abertas. A todos
os momentos, a todas as horas, em todas as circunstâncias po- E a infância perguntou: «Memória, responde a esta pergun-
dem ser interrompidas e aperfeiçoadas. O que se interrompe ta:» O que há-de apagar-se onde quem fala?
numa dada cena? A sonolência que a acomete quando é ape-
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• É isso que qualquer deles é, cómico ou burlesco, sapiente ou
irónico. Por exemplo, o corvo amarelo pode hoje ser um cava-
eu nasci num mundo metabólico onde as formas são individuais lo adestrado e elegante como uma dama e, logo a seguir, outra
e lutam pela sua permanência no distinto. Temem ser confundi- coisa absolutamente imprevisível. Não sei com quem estará a
das com outras, embora, por vezes, aspirem a ser tomadas pelo brincar, ou quem quererá provocar. Por exemplo, quando o
-
que não são. Ao texto desse mundo gosto de chamar textolábio.
Eu sei. Mas corno explicar·lhes o que é a luta pela perma- Não sei se há pensamento no que penso. Pego na criança-
nência? O que isso exige de histórias romanceadas, de aconte- -asa e levo-a para a toca de meditação. Olho-a no rosto que se
cimentos securizantes, de lances e desfechos previsíveis ... Não ..' forma. Os seus lábios já estão formados. Passo os dedos por
consigo explicar-lhes o que é o medo, e como este provoca uma esses lábios quase vegetais. «Tu és alguém, meu amor>>, vou-
tristeza de fundo. Sinto a criança-asa retrair-se nos meus braços. -lhe dizendo. Vou-lhe dizendo com a convicção de que sobre
esse rosto se há-de debruçar uma pessoa amada, o amante que
«Então, o nosso mundo é alegre?» afaga.
«Sim, é cristalino.»
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E ela fica quieta, sinal seguro do seu crescente tino. Sobre zes, irrespirável. Tem nojo do híbrido que forma com os seus
nós paira por dentro a grande repercussão de um segredo libi- companheiros de pensamento.
dinal. «Menos pregas, menos pragas», murmuram os seus lá-
bios, à procura do único conceito verdadeiramente misterioso. Transfere-se para a mente - seu refúgio mais seguro.
Um conceito cuja força se vai esgotando. Agacha-se. O que sempre faz quando o seu sentimento inte-
rior surge num ponto em que está voltada para fora, do aves-
«Sim, meu menino-carteiro, chegou a hora de viajar.» so. Fora a memória que lhe enviara aquela visão, com a men-
ção expressa de que galopasse. Não galopa, deita-se de lado,
• como quando lia romances a fio. Pensando-se a coberto, dei-
xa desfilar algumas das personalidades inapagáveis e de gran-
e a memória respondeu-lhe à letra: «galopa, galopa, cavalo in- de resistência que conhecera na actividade febril da leitura ..
dómito. Nos teus ermos haverá certamente uma compreensão E, sem saber como, sentiu nascer do ventre uma mensagem ir-
mais nítida da vida selvagem, de caminhantes para o desco- recusável. Tinha de ir depressa avisar Nils Holgersson e a Ca-
nhecido que horizanta a charneca. E, ao longe, o mar. E, per- tarina, do Monte dos Vendavais.
to, o teu quarto de janela fechada, onde vibram cavaleiros
apeados, ofegantes, de suas montadas, ou clavicórdios». Não era que não soubesse que a sua mente roçava doloro-
samente o delírio. Ir avisá-los de quê, meu bem? E que senti-
E, de repente, pelos olhos da mulher passou a visão de al- do tinha ir avisar frases?
guém, talvez uma mulher também, que atravessava uma pon-
te e lhe entregava nos braços um berço onde repousava uma Achando-se só, do ponto de vista da terra que se torce e re-
quimera. Disse-lhe: «Toma-a, é tua. A tua infância». O cho- torce, e que se afunda, a mente estava a destilar-lhe por todo
que que sentiu foi de tal modo forte que, por pouco, não dei- o corpo uma agitação tumultuosa que lhe subia aos lábios com
xou cair no chão a luz da sua segurança. sabor ao esplendor do fel. ·
Foi como se a poesia tivesse acabado ali. Sentiu-se afogada «Galopa», dizia-lhe a memória. Corre, sai daí. Esses perso-
em música, uma executante inábil da sua própria vida. Ape- nagens estão perdidos. É ii:iútil encontrar para eles filiações ou
nas o lobo batia ritmicamente a cauda. Para ele, o quarto de- parentescos securizantes mas inviáveis.
ve ser uma toca com um orifício invisível que mal vislumbra
mas em que entra rastejando, para logo erguer o dorso e roçar- O texto está a morrer como um titanic que se afunda.
-se na parede. É bem visível o friso de sujidade que foi dei- A mulher ouvia sem mexer um dedo. Estava paralisada.
xando atrás de si.
4
Alguém-infância veio em seu socorro. Pega-lhe pela mão e
A mulher sabe que deve tratar docemente e com inteligên- leva-a a anichar-se junto do lobo. É essa a sua intenção. A sua
cia os obstáculos, apesar de o cheiro do lobo se tornar, por ve- . mente sente repulsa, mas cede. A mulher dá passos, e avança .
t
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1
...
Aceita transferir-se para o pensamento. Paradoxalmente, a in- do corpo que se desenrola dentro do pensamento de todas elas
fância segreda-lhe algo de singularmente parecido com um não lhes diz respeito? Por que não descem à liça defender
segredo libidinal «soma o que és ao que não és». aquele pequeno fragmento de amor que se passeia entre elas?
Agora, são os territórios híbridos que se movem. Não as «Chegou o momento», diz-lhes o Alguém-infância.
mentes, nem a memória. A mulher dá mais um passo, e pen- «Que momento passou?», perguntam-lhe.
sa: «Talvez não». Apoia-se no «Alguém-infância», apesar de «A cena do corpo não é apenas uma realidade clownesca de
desejar que a história fosse outra e, sobretudo, que a visão encanto», disse-lhes, cortante.
nunca tivesse acontecido.
A mulher desnuda reclinou-se mais um pouco sobre o dor-
A sua mente continua a sentir nojo do híbrido. «Para que so do lobo. Teme o seu rosnar. Pensa como a bruma interior é
precisas tu desse tipo de território, no território que sempre foi fatal para a arte de vi ver do pensamento. Como esta deve ser
teu, mesmo que se encontre em perigo?» A memória, mais ex- clarividente, se for preciso, «como é preciso» ir ao encontro
periente e manhosa, propõe uma alternativa: «É sempre possí- da cena de amor mais ingrata à sua recordação. Decepar a me-
vel que, no mesmo território, o chão volte para trás e incite, ou mória. Decepar a imagem. Separar no berço a quimera do ino-
promova, uma maturação desconhecida ... etecetera>>. Puzzles e meável. Aceitar um nome que não seja condenação.
ironias.
«Mas que quer dizer isso, meus Senhores?», pergunta a
Está perto do lobo que, pela primeira vez, lhe rosna: «Para mente da mulher que, na realidade, nunca teve de enfrentar o
me entenderes, através dos meus gestos, não cortes os fios ex- espírito bravio.
tensos de compreensão de que precisas. Não ouses tomar-me
por lobo-bicho. Se imaginares que não existe o meu reino, en- «Quer dizer mente», riposta o Alguém-infância. «Quer» é
tre vários, quebrar-te-ei a nuca, antes de a tua intolerância men- uma vontade.
tal impedir que prossiga o advento do lobo-humano. Nada me
impedirá de evoluir através de desenhos singulares de espanto». Quer dizer aceitar o impulso de receber um madrigal com
o corpo e devolvê-lo com os lábios sobre os sinais da exis-
«É isto que me diz ao ouvido o meu lobo?», pergunta a mu- tência do amado. Amado sem género. Perfeitamente híbrido
lher à mulher, ajoelhada perto do seu lobo. A mulher desnuda ou neutro.
sabe que aquele bicho é provavelmente o pedaço obscuro de
um grande amor que se fragmentou quando o espaço entrou «Quero essa linguagem-princeps do neutro.» Disse o Al-
em contacto com o tempo. guém-infância, e a mulher desnuda caminha para ele, para esse
lugar de onde não sabe o sítio. Ou ele. Ou o que for que a des-
O que mais surpreende é o silêncio das demais pessoas - perte do gosto da pertença prófuga ao exclusivamente humano.
a luz, o lápis, a parede, a brancura, o corredor, o voto. A cena
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Agora, sim, vai devagar a mulher desnuda. Transfere-se pa- não era espelhável na água que corria sob a ponte. Esse não-
ra a visão que tanto horror causara à mente. Caminha, pois, -espelhável foi-se confundindo, sem pregas de impaciência,
em direcção do anúncio que lhe foi feito naquela ponte. Sen- com a lâmpada e, desta, foi escoando para as cenas mais in-
te um enorme cansaço que a queima como espuma de lume. verosímeis daquele corpo.
Vê-se sentada ao espelho da água que passa debaixo da pon-
te. Não para lhe apreciar a superfície reflexiva mas para lhe Se alguém entrasse, nesse instante, no quarto de arrumos,
pedir a devolução de um anel que, ao entrar no tempo, lança- veria apenas a mulher aconchegada ao corpo do lobo. Teria
ra àquelas águas. Havia um nome escrito no anel. Não selem- dificuldade em destrinçar os membros de um e de outro. Mes-
bra qual, mas precisa dele. mo a cor do pêlo era apenas gradativa. Mas não sentiria, cer-
tamente, horror. Compreenderia, sem dificuldade, que naque-
Quer saber o nome justo da forma libidinal estranha que es- le aconchego trabalhavam os sentidos - os conhecidos e os
plende no berço. ainda por vir.
Foi então que essafonna-outrora-malnomeada - Alguém- Se esse alguém lhe dissesse que ela estava, finalmente,
-animal ou Alguém-vegetal ou Alguém-outro - se ergueu aberta à orientação do rio e ao cordoame do navio, ela diria:
das águas e lhe tirou a venda que cobria o olhar da mulher: «Há um cavalo sobre as águas». Ou também poderia dizer:
«Uma única onda, uma onda sem género», disse-lhe. Fez-lhe «Todas as árvores batem com as folhas no mar».
um leve gesto de presença que sentiu profundamente e lhe fe-
chou o sexo. Adaptou~se ao seu corpo. Não a fez estremecer. Seria a sua maneira de dizer que, nela, mulher desnuda, não
Estremeceu ao seu ritmo, em que se integrou. Era como um havia lábios e sexo para abrir porque eles deixavam-se vogar
piano mudo que levantara a tampa, passara os dedos pelo te- (diria: «Olhe!») por sensações ainda maiores.
clado, e pusera debaixo do seu gosto o fruto da música.
Na realidade, outra coisa não podeiia dizer porque o lobo
Esse gosto fez-lhe inclinar a cabeça que, por simples gravi- não acreditava no indizível de qualquer linguagem de desejo.
dade, se concentrou nos seus olhos fechados. Do seu rosto, o
lobo apagava com a língua significações pardas que lembra-
vam papel reciclado e situações perdidas. De certo modo, se
não fosse tão arriscado dizê-lo assim, o lobo desfazia com a
humidade da sua língua o molde de cartão, também conheci-
do como máscara, que formara o rosto da mulher e que tanto
destoava na mulher desnuda.
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Assim, na Terra ...
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Noutra, confessaria: «Tenho vivido dias de grande oposição •
de linguagens». antes de partir, a mulher tem vontade de quebrar o corpo co-
mo um vaso, tirar do peito o coração e dar de beber ao lobo.
Conforme a reacção que obtivesse, escreveria noutra: «Eu
Não era branquear a sua biografia que pretendia. Seria absur-
não sabia que um real expresso em várias linguagens não é, de
do, nem o seu espírito bravio nascente lho permitia. «Queres
facto, o mesmo». abrir», disse-lhe o Alguém-infância, «uma luz ao fundo da
contradição por onde sair». E saiu.
Se visse o meu correspondente angustiado, escolheria ima-
gens: «Caleche e dissemelhança. Gostaria de ficar mudo e Embora leve todo o seu corpo consigo, a mulher quer deixar
oculto, somente observando e recebendo a oscilação progres- uma carta - «0 Surdo Absurdo do Teu Amor» - para o lo-
siva do que se vai fazendo?». bo. É simplesmente um título, uma respiração amorosa, aberta
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e, por detrás das costas do verdadeiro pianista ausente, deixa- e o velho fez um gesto obsceno com os dedos
va a sua criança-filha tocar-lhe uma melodia. Era sempre uma Pénia ri, com o seu filho nos braços
melodia dissonante, escapando às harmonias da boa e bela
cor. É por ela que, neste preciso instante, a mulher se está a e é sobre essa gargalhada de Alguém-mãe que a criança filha
transferir para a sua alma, uma gota inesperada de orvalho abre a porta, sai do piano como o dedo lhe sai da boca, cai em
que vai caindo nas pernas infantis que dançam. E conta-lhe o si e sempre se perguntou se o nome que a mãe lhe dera era, de
banquete, a outra cena longínqua a que as duas, o Alguém- facto, o nome que verdadeiramente lhe pertencia. A gargalha-
-mãe e a criança-filha, tinham assistido por inadvertência, dir- da perdura, as mulheres riem. Ri a própria mulher, a recordar-
-se-ia. «Ouve!», dizia-lhe, «Não faças bulha. É Sócrates, -se das frases típicas de Alguém-mãe:
aquele despenteado, não vês? Aquele que está sentado ao la-
do do rapaz jeitoso ... Está a falar». E a criança-filha tirava os «Mulher é rei do Universo. Não é o leão, é a mulher.»
dedos das teclas e metia apenas um só desses dedos na boca. «Filha, que a cabeça se nos desprenda da cabeça, eles não
Os dedos da outra mão, a que se incumbia dos graves subia gostam.» «Eles», a criança-filha sabe quem eram. Chamava-
ao cabelo e enrolava-o em minúsculos vórtices. -lhes os Pénios.
«Que a mulher vogue sobre a pauta e escreva outra letra,
«Era tão barroco, não era?», pergunta a mulher ao Alguém- eles não gostam.»
-infância. Mas esta não responde, ouve o desgrenhado. A to-
nalidade da sua voz, os seus passos jocosos de velho em Ri e medita, ela que habitualmente não vê sem óculos, mas
qualquer cena incitam-na, feliz, a soltar gargalhadas, sem ne- agora está a ver. Vê a angústia principal do vento que disper-
nhuma maldade, sobre o mundo. O velho desfaz nós górdios, sa a cabeça de Alguém-mãe. Para onde iriam as suas partes
em saltos exuberantes de sombra e dança. Como se veste e mentais - a imaginação, o conhecer, o sentir, a arte de viver?
despe, traz para o meio da cena a misteriosa polpa da maçã: O Alguém-infância vê, de facto, a cabeça da mãe a dispersar-
«0 Amor não pode ser um deus. Eros é um ser intermediário -se, a quebrar-se como um vaso.
entre os deuses e os homens», está ele a dizer... «Mãe!», chama ou grita, não se percebe bem.
no dia do nascimento de Afrodite, os deuses deram um ban- E o lobo responde-lhe: «Digo-te um segredo. A tua Alguém-
quete. No fim do repasto, Pénía, também chamada Pobreza ou -mãe escrevia uma ética. Foi uma mulher infeliz. Escreve tu
Decepação, abeirou-se para pedir esmola. Poros, também cha- uma Sensualética».
mado Riqueza ou Homem de muitos expedientes, dormia, nos «Estás a brincar como o velho?»
jardins de Zeus, ébrio pela muita ambrósia que bebera. Pénia
deitou-se a seu lado, com a firme intenção de ter um filho com É já manhã e a vida esplende.
1
ele. E teve, acrescentava Sócrates, o seu nome é Eros. Um hí-
brido, sedento de beleza, pobre, indigente, mas inventivo e
manhoso
Fez-se noite e a mulher guardou o coração no peito.
80 81
• em volumes duplos e triplos, volumes de imagens densas e
grossas, mas sem peso que nos arraste», o que, vindo da sua
o piano resolveu voltar, ao fim de todo esse tempo. Imagino boca, se presta a uma certa contradição.
que andou entregue à alegria erma das suas teclas ou, então,
soube pelo corvo amarelo que se prepara a grande viagem da O cântico de um poema surge, inopinado. Traz a criança-
criança-asa. -asa pendurada nas suas vogais. Ela ri, salta e voa, como se o
lesse, servindo-se da asa para propulsionar o seu movimento
Têm um roteiro preparado. Vão mostrar-lhe as terras le- em espiral, enquanto o seu olhar de lobo se concentra. O cân-
ves. Ainda não chegou a caleche que nos levará, mas grande tico convida-nos a entrar no rutilante. Em seguida, antes de
é o ai voroço na folhagem a perder de vista do Grande Maior. saltar para o estribo, dá um ligeiro empurrão à caleche que
É rara, de facto, uma tão grande simbiose entre o humano e o quase parte por sua própria iniciativa.
vegetal.
O elefante, talvez impressionado com tanto automatismo,
A madrugada está a postos para a viagem. Trouxe o piano, teve um acesso de memória:
como já referi, a estatueta decepada, os cacos do vaso e outros «Conheci um rutilante que, com a pressa, se tornava verde-
personagens que mal distingo. Com eles, chegaram dois habi- te sobre metal.»
tantes daqui que resolveram por facécia (e não só, imagino), «Ah!, sim?!», retorquiu o urso-clown.
metamorfosear-se em animais. Suponho que um deles seja o «Sim, sim. Era impotente para aceder às circunstâncias da
próprio Grande-Maior e o outro, o corvo amarelo. Do primei- bondade. O seu núcleo primevo rebentava por sistema», es-
ro, a ser como suponho, vejo apenas a forma de um enorme clareceu o elefante.
elefante que perdeu a memória. Do outro, vejo o corpo sober- «E como saíam dessa circunstância?», perguntou o urso-
bo de um urso-clown. -clown, querendo dizer «embaraço». Acontece, todavia, que a
palavra não lhe viera. Resolveu acrescentar, trivial: «Reben-
Pode ser uma história infantil. Como é possível que não o tava a castanha na boca dos rutilantes».
seja. Essas metamorfoses encantam-me e amedrontam-me Queria ele dizer «passageiros»? Fiquei sem saber.
porque, se eu quiser dizer o que, de facto, vejo, terei de as «Felizmente, não há história que domine a única história
apresentar como formas muito especiais de paragens horizon- principal», comentou, amável, a estatueta de mãos decepadas.
tais que existem. «Üu folhas de estepe, eis o que nós somos», «Só há, de facto, uma circunstância que me apaixona», re-
diz o clown, antes de anunciar: «Eis a caleche escura». torquiu o urso-clown, imitando-me a voz.
«Qual?», quis saber.
E vejo aproximar-se um rutilante de pensamento profundo. «... e para o vivo voou», respondeu-me em cantilena.
Pelo menos, é o ar que dá. Dirige-se ao piano. «Havemos de A verdade é que a algazarra era tanta, uma algazarra pro-
trocar de teclas e de pedais», diz-lhe, cerimonioso. E este vinda da paisagem loucamente a desfilar, que o som mais sua-
responde-lhe, quase no mesmo tom: «Projectámos a viagem ve da criança-asa ficara ocultado. Disse-lhe em voz alta:
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«Ü percurso determina os lugares fatais por onde se deve irromper a sua prega. Perguntar-me «onde está» redundava
passar.» Siou lentamente sobre o meu peito: «Está sempre vi- sistematicamente em «não está, já passou». Mas o inverso
vo o lugar que enxergo nos teus olhos de imagem». também era verdade. «Já passou?», então, «sei onde está!».
Cada vez que tentava pôr em dia o pensamento, parecia-me 1
Era como se uns falassem em poemas, e outros fizessem!:,ª- que estava a ler a Ética e, de repente, a tropeçar num postula- \
lavras cruzadas. do que ainda não lera, como se já o devesse ter lido. Que es-
«Para mim, que sou caleche, é uma estranha canção para de- tranha era a comunidade dos pensantes que, em vez de apenas
dilhar, não achas?», dizia· ela para o piano, mas este não teve densos, reunisse pragas e pregas. Um praguejar pensante ...
tempo de responder porque o urso-clown lhe bateu nos croma- Achei que tinha encontrado o ponto certo onde a minha inter-
dos: «Mas que mania! Tu és um rutilante, e não uma caleche!» rogação se equilibrava.
O rutilante pareceu não gostar. Havia no diálogo demasiada «Devem fazer ao meu mestre humano uma pergunta auda-
enxúndia, gordura a mais para um mecanismo híbrido e veloz. ciosa», propus-lhes.
«Brinquemos aos fragmentos!», propôs ele.
O piano resolveu voar. Tocava no ar. «Brincar aos frag- «A que mestre audacioso já perguntámos?», disse o urso-
mentos não é brincar aos sonhos?», perguntava ele sem, na -clown, invertendo, de propósito, os meus tempos verbais.
realidade, perguntar. Era apenas um lied muito amado.
«Eu sou feito de fragmentos leves», esclarecia o rutilante. «Perguntem-lhe: "Ó Mestre, quais as qualidades do primei-
«Sou uma canção que não perturba qualquer unidade.» O pia- ro orgasmo verdadeiro?"»
no ouviu e deu a sua anuência. As teclas, os pedais, os marte-
los, a percussão, o arranhar das cordas e até o brilho da sua A resposta veio fulgurante; passou por outra reunião de
tampa puseram-se a dançar freneticamente ao som «do que fragmentos, para além das nuvens de pensar. Tivemos o dese-
não perturba qualquer unidade». E, no final, deu um estrondo jo instantâneo de entrar na cor mais intensa que não é esta,
na música. «Eis um musicante», concluíram (não sei bem co- mas a que lhe fica próxima. «Não perguntes para que lado fi-
mo!) os cacos do vaso que, como berlindes, andavam de um ca», pede-me a criança-asa, como se isso desfeasse o seu voo
lado para o outro do rutilante aos solavancos. espiralado.
Na realidade, esboçava-se entre todos nós um esquisito ero- Depois de atravessar estradas juncadas de veemência, o ru-
tismo de mareantes. Nada de usual. Um modo pouco prático, tilante apaixonara-se pela palavra «cor mais intensa». Esta
talvez, de servir a iguaria rara de visões pessoais. Ou, então, não parara de chover os seus invisíveis e a vontade era tão ab-
era eu que me esquecia de que não tinham corpo denso, tão soluta e intensa que o próprio urso-clown sugeria que era me-
contrário ao meu. Por exemplo, sempre que aproximava um lhor desistir momentaneamente das obrigações impostas pe-
dedo para sentir os cromados irisados do rutilante, eu sentia los declives da palavra e da cor.
que o prazer de um desenho novo pairava, sem que eu visse
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Que, de preferência, colhêssemos a grande velocidade (ou seria, talvez, a sensação mais segura da cor intensa. «Repara»,
colhêssemos, a grande velocidade? Não importa), as falhas e dizia o elefante, do tamanho de um brinquedo de cobre, para
folhas que iam deixando, impermeáveis ao esverdeado leve. a criança-asa, «não há melhor definição para a cor que nos
Quando chegavam às nossas formas em distorção acelerada atrai».
eram cartas que fatalmente falavam dessa cor de fabulosa in-
tensidade. Apenas me sentia perturbada quando, na imensa estepe que
atravessávamos, emergia o som de um sino a clamar contra o
A pessoa não é o que o ·denso imagina. Estávamos lançados torpor que, por n~a, invade o tem_po. Esse som, ~a
nos lugares mais controversos, por onde passa a linha de ri- velocidade, ouvia-se nos meus tímpanos, autoritário e defini-
validade entre os mundos. tivo, insistindo numa rivalidade que eu deixara, há tanto, de
Seiitir. Era a única nota discordante. Faltava-lhe uma qualida-
O elefante subia por escadas que eu não via e penetrava nas ae de «atraso» ou de «adiantado». Algo que não quebrasse o
casas, escolhendo com uma rapidez impressionante o seu in- vaso da palavra apaixonada em cacos.
terior e não o toldo que as escondia da sua substância de pes-
soas. «Ü interior é calmo», dizia para a criança-asa que, espi- Parámos, finalmente, numa clareira incomensuravelmente
ralando na sua grande beleza, colhia os tons deixados no ras- distante, pareceu-me, do Grande-Maior. Estou como só. Que-
to, imagino, da sua mais perfeita cor. ro dizer, sei que vou voltar.
Olhei em volta e senti-me oscilar entre um ambiente de pra- Não tenho sede. O rutilante pasta no prado próximo. Há
ça cosmopolita, com muitos estrangeiros, à espera do som da uma grande serenidade de experiência. Deixo que ela flutue à
estranheza, e a profusão de um cais barroco, de onde se parte brisa e se aproxime, com o seu ritmo próprio de evidência, de
repetidamente para novas volutas, como me acontecia quando que «tudo o que me for desconhecido me será conhecido».
lia as notícias dos jornais. «É conhecido», diz-me a estatueta de mãos decepadas. De
facto, não tinha reparado que aí estou, que a possibilidade de
A palavra «cor mais intensa>> sumia-se, encantada, na atmos- aí estar ultrapassa a possibilidade de não estar naquela clarei-
fera de chuva que se precipitava sobre o rutilante, como se ti- ra de «aí estou». O nevoeiro, uma vez atravessado, é uma cor-
vesse encontrado, por fim, o ponto de equilíbrio entre o que via tina coloridame1;·te adaptada ao invisível. É uma palavra que
e o que desejava colorir de uma verdade profunda e propria- as minhas asas fortes se esforçam por quebrar. Asas, sim, por-
mente incompreensível. Mesmo ela, que nascera para dizer, que a travessia da linha entre os mundos, com o abandono
fulgia feliz por ver q1Je apenas o olhar toma soberbo o que vê, consciente e querido da rivalidade que os conjlitua, fez de
quando à primeira consistência do denso acrescenta uma ou- riíím um pássaro de grande ROrte. Sobre a asa mais lúcida, ou
sada projecção de inconsistência. O rutilante atravessava a li- ·.. translúcida, repousa, aliás, a criança-asa. Dorme.
nha de rivalidade,
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O invisível, naquela clareira, é duro e indestrutivelmente Quando o Alguém-infância vem, o senhor do sonho acorda.
colorido. Todo ele me deixa a sós comigo, na expectativa da
metamorfose que não o desnature, nem o anule. Pede-me um Também não fora isto que mostrara. No sonho, a mulher vi-
suplemento ra apenas, preso a uma pequena caixa de porcelana branca a
«Sê, por graça e generosidade, o meu pássaro poético trafi- pairar nas memórias do seu cérebro, um recado escrito em pa-
cante» pel. «Eu te saúdo», estava nele escrito, e concluíra que o se-
sedento de batalha. nhor do sonho a esperava. E concluíra porque só o Alguém-
-infância tinha, que soubesse, um tal poder.
•
E, com efeito, sentiu sentar-se
era a última noite sobre a carpete da sala de jantar de antigamente onde viviam
e, no momento em que guardou o coração no peito, adorme- ainda fragmentos da sua vida. Como estariam eles, depois de
ceu a mulher. Toda a noite sonhou com a Casa da Infância, si- tanto tempo? Com pó, ou podres? Talvez nem tivessem dado
tuada a grande distância do seu quarto de arrumos. O sonho pela sua falta. Seu espírito bravio dizia-lhe gue, vuma vida, há
chegou ao fim, quando ela disse: «Acalma-te!» para o sonho, sobretudo microvidas independentes que ninguém ouve.
ciente de que viria com ela. « É um sonho-norte», disse para
o corpo ao acordar. Mas não fora assim. «Eu te saúdo» dava, por uma estranha
alteração de vogais, algo de parecido com «Então!? ... ». Ti-
E falar-lhe assim é tomar o corpo por um desnudo lançado nham reparado na ausência da mulher desnuda. Esperavam
no movimento imparável da nudificação. vê-Ia chegar arrastando o caminho no sentido do regresso.
A vau, dado a vida tratar-se de um rio.
Vivera muito tempo nesse quarto, pensou, admirada por ter
dormido directamente no seu chão entre marcas de vazio, vo- No denso, o irreversível é excessivam~nte raro. É quase um
tos, paredes brancas e equivalentes. Nunca pusera cama. Se- milagre ou, então, é o resultado de uma troca curiosa de vogais,
ria contrariar o sempre-máximo de saudar, clara e simples- pensou. Não queria, no entanto, ler ao contrário a sua vida.
mente, sendo que para ela, como descobrira, saudar entre pes- «Não irás a vau do inverso», prometera-lhe o seu Alguém-
soas era o equivalente de dialogar. -infância.
Para o caminho que ia iniciar, daí a instantes, o sonho pre- Sentiu-se nua. Os olhos do lobo, preparados para a despe-
vira alterações à forma de ser que cultivara a mulher, assim dida, diziam: «Vai nudificar no rio onde nascemos», quase co-
como inesperados desvios na sua mente, indispensáveis para mo uma ordem.
acolher o espírito bravio. O sonho não falara desse modo. Dis-
sera apenas que choveriam objectos, projectados à distância, Eu via a mulher desfiar, uns após outros, pensamentos des-
com trajectórias que seria inane prever. tes. Acordara, transferida para a mente. Eis por que retardava
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a hora da partida. Não lhe pusera o sonho uma gabardina no «E "cobre", o que é?»
quarto para que se cobrisse? Quando se parte,
«Não tem "dirma", de certeza.»
as páginas de um livro abrem-se, e sabemos que se abrem por-
que um clima de tempestade se desenha meticulosamente na Por exemplo, «finalmente, cheguei» é vogal como, aliás,
página. O rio, de longe, confunde-se com o mar. Aliás, o chei- «são horas de partir». «Mas tenho de voltar» é consoante. Pa-
ro a maresia é em tudo equivalente. O livro fala exactamente ra o Alguém-infância dinnam uns com os outros.
como em sonho - para à mulher, ou para o lobo. Não distin-
gue. É evidente que o mar vai evadir a casa da infância, des- Havia muitos mais. Quase tudo dinnava. «Esperar comple-
de os alicerces às traves. Não obstante a página de abertura ser tamente o amado» é vogal, como o é «O sentimento de ter en-
cinzenta (é memo assim, não importa discutir), debaixo do contrado o sol directamente». Mas «sofrer na contemplação
céu de tempestade, o mar será sereno. A palavra justa, mulher, do amado» é consoante. «Indo eu com o anel do meu amor»
é mar determinado. Pegará em ti e far-te-á regressar às vogais também é consoante, dinna com o sentimento de ter encon-
do sono de dormir. E ela, estou a ouvi-la, embora não saiba trado o sol directamente.
onde, repete, enquanto veste a gabardina, «dinnor, dar amor,
morder». Só no momento de partir, «Mas "obriga-me a voltar", o que é?»
a palavra se apercebe que, sem vogais, pura e simplesmente Dimiarera exactamente igual (e melhor, pensa a mulher, ao
não existe, como um mar inconcebível sem vagas. Parece uma fechar a porta do quarto) do que jogar com uma flor ao mal-
perca de tempo um mar com vagas (por que não um mar com -me-quer bem-me-quer. Este interrompia-se com o total des-
mares?) mas, sem vogais, a palavra partiria em todas as di- nudamento da flor. Dinnar também se interrompia, por vezes,
recções. Onde estaria o sentido? Seria um mar sem falésia mas as palavras nunca ficavam nuas. Podiam, sim, ficar vara-
nem praia onde morder ou dirmor. Apenas ao sair da vaga, das. De repente, a consoante mordia a vogal e aparecia um ca-
so de mal-me-quer. Ou a vogal excitava a consoante e tinha-
no momento em que as consoantes mordem as vogais, o mar, -se um caso de bem-me-querer. Por exemplo, <<já é noite
de repente, cai no rio. Esse, o nome do irreversível raro, quando chego» é sempre mal-me-quer. Pelo contrário, «deito-
lembras-te?, brincar afazer dinnor. -me com a certeza de que tudo é uma circunstância» é abso-
lutamente bem-me-quer. Mas, de repente, a frase traía a con-
Não admira gue o lobo sinta uma._~ a de desejo de lamber fiança do Alguém-infância. Por exemplo, dizendo-lhe que
a coroa solar do seio que ainda não foi coberta pela gabardi- «amanhã, viverei nova circunstância». Não era nem uma coi-
na entreabe11a. A ponta do seio é vogal, a orla do bordo é con- sa nem outra e aparecia, muitas vezes, quando o sono estava
soante. «Dinna», diz, feliz, o Alguém-infância da mulher. E a para dormir. Mas como dormir, sem dinnar? Fora, por isso,
gabardina cobre-o, em vez de o meter entre os dentes do lobo. que Alguém-mãe lhe contara a história de Pénia e de Poros.
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Agora, que está com um pé para a escada que a vai levar da- Pelo contrário, fica de sobreaviso. Há um incêndio que aflora
li, lembra-se que Alguém-infância tinha insónias terríveis por o seu cérebro infantil.
não conseguir dinnar. Tomava-se piegas e colérica. Foi quan-
do Sócrates surgiu na noite. Viera para ensiná-la a conhecer- Chamas e recordação dinnam. Qualquer delas pode, de fac-
-se. Como se dinnar fosse isso. to, incendiar. Aproximam-se de um centro inviolável onde,
desde sempre, nesse cérebro, Eros dirma com «ninguém ter».
«Mas "obriga-me a voltar", o que é?»
«Ü seu nome não será Eros?», perguntou-lhe o velho que nun- A mulher sente um quebranto brusco no movimento.
ca sabia responder. Alguém-mãe tinha a mesma mania. «Mãe, Apoia-se na soleira de uma porta. Na realidade, é a sua infân-
viste o meu anel?» Resposta: «Não o terás deixado na sala?». cia em chamas que se apoia - se está a apoiar agora - , no
desejo de aspirar a alguém, fosse de que natureza fosse.
E o Alguém-infância dava voltas à cabeça. Pénia era, de Está a dizer, no cerne ardente da recordação: «E p1incipal-
certeza, bem-me-quer. Poros tinha de ser fatalmente mal-me- mente ... ».
-querer. Não conseguia ver Eros, seu filho arrancado a Poros,
nem que tivesse sido a vau, como um mal-me-quer. Quando esse advérbio advém, a mulher não sabe como
resistir-lhe. Transfere-se, sem saber bem como, para a infân-
E o velho perguntava-lhe: «Se ninguém sabe, alguém cia. Sabe que é um mal-me-quer, mas transfere-se num movi-
tem?». Era óbvio que ninguém tem, a menos que, no mesmo mento penoso que lhe faz explodir as costas
pensamento, duas frases seguidas fossem vogais. Mas esse era porque
um caso de batota - um paraíso. Ou saber seria um paraíso
de batota descarada. Uma maneira de adormecer e dormir, essa coisa, a infância, só pousa quieta no grande fundo de um
sem ter conseguido dinnar? ser. Algo que a mulher não conseguira decepar. Escrevera dias
inteiros no quarto de arrumos. As paredes ficaram marulhadas
Agora, que a mulher pisa sem hesitação a rua, é evidente de escrita e de desenhos. Só agora se apercebe de que nunca
que em nada se distingue do fio de água de uma fonte. Sem- escrevera a carta que teria o poder de arrancar a coisa. Uma
pre que leva as mãos ao bolso, encontra as mãos de Alguém- carta que deixasse, por misericórdia, à porta do ente mais so-
-infância, não havendo entre as mãos de uma e de outra qual- zinho - alguém que o lobo gostasse de devorar, depois de lhe
quer obstáculo. E, por instantes, ou por muitos passos (é indi- quebrar a nuca. Tentara. A frase que mais repetiu naquelas pa-
ferente porque dirmam entre si), aspiram o ar fresco que sen- redes incendeia-lhe na memória «Peguei na ponta do meu co-
tem. Parece um brinquedo de levar à boca, ração e mergulhei-o na água da taça como um pêndulo per-
pendicular, etc.» em vão. E sentou-se.
tão fresco e forte na madrugada que a mulher, desatenta, tro-
peça. Tenta equilibrar-se e repara que o seu Alguém-infância, Felizmente, havia ali perto um terraço de café ainda aberto.
enquanto sorve o ar, cogita no «ninguém ter». Não o censura. Ir ao fundo e arrastar-se até lá eram equivalentes. Senta-se a
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mulher na mesa da ponta, a mais próxima da praça deserta. infantil que a infância dos homens nem sequer concebe. Está
Ajeita a gabardina. Sente frio. Não ter para onde ir, é o as- a nascer do sempre-máximo de um olhar irónico. Não nasce
pecto que tem, Alguém-infância senta-se a seu lado. de uma semente. Não nasce de ninguém. Parece que está adi-
zer «nada». Pode estar a dizer «adam>.
«Vamos dirmar a coisa», diz-lhe.
«Ninguém ter» dança um segredo de simplicidade. Fulge.
A mulher sabe que é uma terrível frase para uma terrível O velho levanta-se. Tem linguagem suficiente para ver. Não a
coisa. Há chamas por toda a parte. Não queimam. Doem. bastante para cheirar. A mulher não entende bem, mas não se
Alguém-infância corre para o meio da praça e começa are- levanta.
presentar com as mãos de «ninguém ter» a morte da infância.
O velho quer ver se a beleza que está a cicutar a coisa é ape-
Sentada à mesa fria onde fumega uma chávena de chocola- nas uma forma, ou se tem cheiro. Só este é prova. Quer tocar
te, a mulher deixa que as luzes da madrugada e as luzes do ter- «ninguém ter», antes de a cicuta lhe gelar as narinas. Na rea-
raço concentrem o seu olhar no que ainda não reparara. Ove- lidade, quer cheirar o que nunca esperara ver. E, pela primei-
lho hirsuto e descalço recostara-se na ponta do passeio quero- ra vez, admite que se a forma de beleza cheirar como o ine-
deia a praça. Andrajoso, ri, como se Atenas fosse ali. A cicu- narrável infantil que procurou, ele há-de afirmar, sem pergun-
ta ainda não produziu todo o seu efeito. Mas já não falta mui- tar nada ou adan.
to. A mulher tem a impressão de que ele vai morrer antes de
beber o vinho da última colheita, de saborear o azeite novo. Em tomo da mulher plana um odor de lobo. «Dói-me a geo-
«Morre entre vasilhames lacrados», a mulher pensa. E não grafia perdida que estava sobre a mesa», ouve o velho dizer
tem pena. ao longe. «Ninguém ter» continua a passar de mão em mão a
beleza inenarrável infantil que floresce. Um arbusto que sur-
«Ninguém ter>>, no meio da praça, estende as mãos a tactear ge naquele empedrado do mundo.
o empedrado, a atmosfera, a forma da praça. Olha para a mu-
lher e olha para o velho. Faz sair a coisa, da parte da praça que Em vez de perguntar «Foi de mais? Foi de menos?», ove-
é mundo, e coloca-a na parte da praça que é vogal. Não a dei- lho diz à cicuta que o gela «nem de mais, nem de menos.
xa cair. Mostra-a e, à distância, não parece tão horrível. Com Cheirei o ninguém ter».
gestos precisos, embora de sentido a interpretar, «ninguém
ter» quer ver. Sua mão alonga-se e vem buscar à mulher o co- De repente, o Alguém-infância grita um grito de alegria pa-
ração. Sua mão alonga-se e vai buscar ao velho o olhar iróni- ra a mulher:
co que incendiou a maior parte do pensamento dos homens. «Dirma! Dirma!, não deixes a mente renascer».
Está a fazer um trabalho de mulher, «ninguém ter». A parir A chuva que começara com o cheiro do lobo redobra.
na coisa um infantil que a mulher não vê onde foi buscar. Um Toma-se um ente notado e indissociável desta praça e desta
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mulher. Cai e apaga o velho andrajoso. Apenas o seu riso iró-
nico se associa aos cheiros do lobo e da chuva.
96
Vejo a mulher entrar. Desejo-lhe paz e risco. Estou a vê-la
entrar num texto muito antigo, enquanto ela não se vê ainda.
Talvez nunca entre no texto em que estou a vê-la entrar. No
entanto, se for minha textuante, entrará. O texto é este: «No
primeiro dia da semana, a mulher foi ao sepulcro logo de
manhã ainda escuro e viu a lápide retirada. O corpo tinha si-
do levado. Pôs-se a chorar. Aconteceu-lhe, nessa aflição,
olhar para trás. Viu de pé um jovem. "Mulher, por que cho-
ras? A quem procuras?", perguntou-lhe ele. Por que pensa ele
que eu procuro?, foi o pensamento que lhe veio ao espírito.
Tomando-o pelo jardineiro, sentiu vontade de o censurar: "Se
o levaste, diz-me onde o puseste". E o jovem respondeu-lhe
(... ). Etc.». É este o texto.
100
o texto à sua espera. Recorda-se, certamente. Por exemplo, es- Não lhe traz qualquer vantagem. Quando o colapso sobrevem,
crevo todos os dias. Cenas de A4, como lhes chamo. Mas um deixa de haver futuro.
livro é uma montagem. Muitas dessas cenas terão um destino
imprevisível. Também, nesse sentido, o texto vai adiante. Assim sendo, P2_f que continuar a obrigar o texto a adaptar
as distinções do ser'humano?
Por vezes, o texto vai muito adiante. Pelo menos, mais do
que suporta a figura humana.
102 103
0- UM MOMENTO BREVE E DIAJ\;IANTINO - Diá-
logos entre a mulher e o olho da árvore. E a mulher que co-
meça.
C2)-1NSTRUMENTOSEEXECUTANTES -
106
- Se me lembro ... Era o segundo instrumento. - Era como dizia.
- Pobre mesa! Sempre encostada a mim. - E tu, como dirias?
- Era uma mesa de bonecas. Se a mãe ma tirasse, a faca - São apenas sentimentos que se bebem.
não servia para nada.
- Vejo que te lembras. Os instrumentos faziam um naipe.
- A mesa vivia praticamente sustida no ar. Viu voar mui-
tos quartos de maçã para trás dos arbustos. A mãe não com-
preendia que as maçãs não eram para comer.
- «Filha, o verde é apenas uma cor. E se tens olhos verdes
é porque na família foi sempre assim ... »
- Não imites a voz da mãe. Eu queria olhos verdes meus,
e não apenas herdados.
-As minhas imitações não têm maldade.
- Sem essa mesa, eu nunca teria tido uma vista clara sobre
as minhas mãos. Sabem cortar. Gostam do frio do mármore.
Imaginam.
- É verdade. Imaginavas com as mãos.
-Acreditas no espaço-tempo?
-A que propósito?
- Nunca saí daqui. Apenas não os vejo só como então os
via.
- Que acrescentaste?
-Às cenas infantis acrescentei muito sangue derramado.
- Ainda te lembras das cenas infantis?
- Não te disse já que nunca saí daqui. Eram o meu tercei-
ro instrumento.
- Bravo! Eram os teus escritos e candeeiros.
- Como assim?
---- A tua mãe passava muitas vezes por mim a murmurar
que tinha uma filha que não respirava ar, mas tretas e fanta-
sias. «Inventos e representaÇões.»
- A mãe tinha medo que me fizessem crescer fósforos ace-
sos sobre o meu corpo de criança.
- Corpo de criança?
108 109
G- FRICÇÃO E DIFUSÃO -
112
- Lição número um ... - «Que representa uma cena do mercado persa, mordida
- Lição número dois: «os instrumentos e os executantes de suavidade a primitiva agressividade das cores ... »
trocam entre si». -Assim mesmo. Ri-te. Vês como dá gosto imitar a voz do
- Vejo que não esqueceste a preciosa regra da permuta. cicerone do ...
Mas, quando chegaste, pareceu-me que tinhas esquecido. - Do gravador para onde debitava histórias. Estava con-
-Porquê? vencida de que, se viesse a perder-me, os anjos encontrariam
- Tinhas a chave. É verdade que o ferrolho está velho. o gravador e saberiam onde me encontrar...
Mas nem por isso deixàste de tocar à campainha, mesmo de- -Anjos?
pois de teres visto que não funcionava. - Sim, imaginava que uns eram e outros, não.
- Entre nós, nunca houve qualquer pedido de explicações. - Que estás para aí a dizer?
Não vamos começar agora. De onde venho, a regra é outra: - Quando entrei aqui voltei a sentir a presença deles. Não
«Se não há fé, não há despesa». soube onde me sentar, onde me pôr, porque me tinha comple-
- Compreendo. tamente esquecido da sua existência.
- Quando cheguei à porta, senti-me visita. Não devia, mas
senti-me. Confundiam-se em mim reflexos contrários. Apesar - Lembras-te como, por vezes, me sentia flutuar...
de eu saber que é inquebrável a relação do jogo com o rosto - Em momentos de lado algum?
de brincar, nesse momento, sentia-me reduzida a saber. - Sim. Era como lhes chamavas. Somente flutuar, no es-
A verdadeira convicção, a bravia, não vinha comigo. Estou paço de luz e sombra que protege a janela que dá para o teu
muito ferida, olho de árvore. olho.
-Nada, espero, que um chá não possa curar!
- Não brinques ... - E fazia, de cada pessoa que ali entrasse, uma pessoa úni-
- Lá isso é que brinco. Brincar cura. ca, voltada para o seu rosto de brincar. Tinhas-me ensinado a
- É grave, meu amigo. Sinto que perdi alguém. Sei que recebê-las.
perdi, mas nem o meu lobo híbrido me quis dizer quem. - De facto, umas eram e outras, não.
- Não é bem assim. Se fores à regra da permuta e te lem- - Isso mesmo. Era um espírito infantil (bravio, dizias) que
brares da primeira consequência, verás ... ali estava a recebê-las, como se fosse o adeus que as recebes-
- Sim, eu sei: «ninguém tem, excepto quem tem». se. Encontravam a saudação que se distribuía por todos os
- E vice-versa. O instrumento sabe a melodia ... brinquedos - os belos como os perigosos.
- E o executante, se não tem, entra no instrumento. Se - De facto, umas encontravam e outras, não.
tem, não entra excepto se... e sucessivamente. - Sim. Lembro-me que me tinhas avisado de que não ha-
-. Vês? Entra na memória e trata-a por alguém. via nenhum elemento da composição das palavras, mas mes-
- Quando entrei nesta sala foi como se não soubesse entrar. mo nenhum, que conseguisse voltar do avesso a relação do jo-
A qual das mesas me sentaria? Na cor-de-rosa, ou na verde? go com o rosto de brincar. Excepto ...
- Ou debaixo da tapeçaria de inspiração orientalista? ... - Sim, há um excepto.
114 115
- Apenas o tédio a podia rasgar à dentada. - É curioso. Lembro-me que eu identificava as que eram
- É o real realíssimo do tédio que fazia ... anjos porque traziam um sinal de sofrimento do mundo es-
- Que fazia com que umas subissem, por dentro delas, até quecido. Aproximavam-se da braseira, ao centro, próximo da-
ao rosto de brincar e outras, não. As primeiras, eu chamava, quela almofada. Passavam os dedos pela máquina de costura.
no meu íntimo, anjos. Houve um momento em que tive um Olhavam, nostálgicos, para a outra tapeça1ia onde, à força de
medo horrível de os perder. remos, alguém desce um rio. Só depois pegavam num b1in-
- E pensaste na gravação?! quedo.
- Não. A ideia foi tua. - Entravam e saíam.
- Nunca pensei em anjos. -Entretanto, deixavam-me uma saudação cerimoniosa, al-
- Anjos é um nome meu. Deixar a minha voz gravada pa- go irónica.
ra as pessoas que subiam ao seu rosto de brincar é que foi - O amor é uma saudação de caminhantes. Um chá que
ideia tua. cura a valer.
- As gravações não eram para os anjos. Eram para a tua - Não havia nenhuma turvação nesses corpos estranhos.
memória-alguém. Para que conseguisses viver. - Seguem uma regra de ouro. Lembras-te de qual?
- Mas porquê? - «Nunca se saúda o monstro que apresenta os dedos uni-
- Porque ser humano é isso mesmo. Perder de vista a voz dos lateralmente.»
que se tem com o rosto de brincar. Passar pelo «não tem», e - É uma regra para Iir. «Atenção ao desconhecido por di-
regressar. zer!»
- Era, então, isso?
- Penso, por vezes, se não é terrivelmente perigoso ser-se -Era, sim.
humano ... - Brincávamos a um jogo muito perigoso.
- Que voz melancólica é essa? - Sim. Ao jogo da liberdade da alma.
- É a voz do meu espírito bravio. É ela que, por vezes, fa-
la, como se toda a criação estivesse numa terrível encruzilha-
da.
- Nunca a tinha ouvido.
- Esse momento está chegando, minha amiga. Ainda bem
que a ouviste. Lição número três.
- «Ü rosto de brincar pode não ressuscitar.»
116 117
©- A ALMA DOS BRINQUEDOS -
- Perguntei-me, muitas vezes, nestes anos, se o recorte da
sombra não seria um instrumento muito especial. Uma próte-
se auditiva.
- Tens o recorte das nuvens, ou o meu recorte sobre aque-
la janela.
- Sim, o teu recorte sobre a janela.
- Como o sentias? As presenças surgiam nesse cone de luz
e de sombra.
- Cone? Estou a ver. Compreendo que digas assim. Para
mim, a presença de uma árvore junto da janela sempre foi es-
sencial, de um modo que explico dificilmente. Sempre tive
uma árvore junto da janela. A imagem mais próxima é a de
um nu recatado sobre o qual jorra claridade.
-A claridade da paisagem?
- Não. Tem de ser a claridade filtrada por uma folhagem
entrando pelo rectângulo da janela. ~É uma situação de uma sen-
sualidade muito próxima do indizível. Sobretudo, se há vento
e a folhagem vibra. Túmulo vivo de um brinquedo é outra...
- Desculpa, se interrompo. Não te esqueças do que ias a
dizer. Sobre esse nu, o recorte da sombra não equivale ao re-
corte da nuvem?
- Sim, um recorte que faz pender sobre ele o peso da altu-
ra, uma espécie de tontura controlada do espaço infinito.
- Falas como se a folhagem fosse amante. - É um brinquedo.
- E é. Mas há ainda outras sensações. Há o recato da cla- - E é. Um brinquedo a brincar consigo próprio.
ridade sobre a qual sobressaem pensamentos negros, total- - Sim, um brinquedo a brincar-se a si próprio.
mente inoportunos. Melgas, abelhas ou vespas ... - Partes magníficas do humano suspensas do globo puxa-
- Estás a falar de mim, sabes?! Apesar de nunca ter filtra- dor dos ventos. Ora ciciam, ora bramam, parecendo parados.
do outra claridade que a que fiz jorrar sobre nus infantis. - Como que num silêncio interdito.
- Houve outros, além do meu? - E vão deixando sobre o nu infantil uma mensagem.
- Q_g'±e faz o ciúme na tua voz? - Sim, sobre, por onde, como, quando, ao lado, para que,
- Não é apenas ciúme. Tenho a impressão de gue abres sempre, porque, eventualmente. À escolha.
portas e te vais ... Porquê essas? Sabes o que não sei, ou sabes - Sim, à escolha. Esse nu está a ler. O teu nu lia sem ob-
que é necessá1io que eu saiba? jecto.
- O meu cone de luz éfixo, mas não estático. O movi- - Quem visse, diria obsceno.
mento do vento não abre as portadas? Não se introduz, em re- -t{~d.~ havia para ver. _Nenhum objecto era disponível pa-
gra, pelo lado certo do lado errado? ra censura.
- Errar, aqui, é demasiado oportuno para ser totalmente - Por que fazemos objectos?
verdadeiro. - Perguntas por perguntar, ou queres tentar com a mente o
- Errar, aqui, é apenas o movimento da inteligência duvi- teu espírito bravio de outrora?
dosa que coloca sobre os teus joelhos um pensamento que se- - Quero tentar.
ria parado, se não fosse um auditivo. - Fazeis objectos para terdes o ruah que, de facto, não ten-
- Deslocaste tudo. Alteraste a dimensão. Não respondes- des. O ruah vive apenas no silêncio interdito, obsceno. Nesse
te. De certeza que, neste instante, cai a pique um frio sobre o túmulo de que te fala o desejo.
nu. Por isso, eu queria a janela. O túmulo vivo. - Era isso que me traziam os anjos.
- Foste tu que começaste. O ciúme nunca fez parte da nos- -Era.
sa sensualidade.
- · Claro. Mas por que há-de a alternância do som e do si-
lêncio contar mais do que a alternância da sombra e da clari-
dade sobre o nu?
- Esse nu infantil...
- Quem disse que era infantil?
- Falo apenas do que experimentei. Ou haverá maior sen-
sualidade que a que sente um corpo infantil, bravio, em re-
pouso, a ser varrido pelo silêncio? O estalido súbito da som-
bra ao passar não lhe causa medo, mas sobressalto. Tu vives-
te isso.
120 121
@- O LUGAR OBSCENO DA RESSUSCITAÇÃO -
- Não os vemos porque não deixam objectos.
- Onde o desejo der com o túmulo dará com essa presen-
ça a que chamas anjos.
@-- O ARCANO DO ESPÍRITO BRAVIO OU A TEO-
LOGIA DO CARBONO -
- Lembro-me que
- Mulher, e se deixássemos de nos lembrar?!
- Deixar de me lembrar é reconhecer que me esqueci.
-Não só.
- Vejo onde queres chegar.
- Se o dissesses, como o dirias?
- Dizê-lo é voltar lá.
- Sim. Lá é tralalá ...
- Diria que temos um puzzle e uma ironia.
- Aceito esse dizer.
- O puzzle é o espírito bravio a penetrar no seu próprio ar-
cano.
- Está bem visto.
- A ironia é esse arcano ser menino.
- Só aceito, se for exacto.
- Menino não é, de facto, suficientemente neutro. Um
brinquedo-nu-e-nunca-trágico seria melhor.
- Aceito. Objectos, só se forem para brincar...
- t- ironia é o humano voltar a ser bringuec!.o.
- Aceito com reservas. Preferia que deixasses o humano
para mais tarde. O puzzle ainda só vai no seu começo.
- Vou tentar. Esse neutro ...
- Diacho, porque não dizes simplesmente brinquedo? - Queres mesmo saber a minha opinião? Para mim, estás
- Aceito. O brinquedo procura forçosamente um viver com medo de fazer uma autêntica travessura. E se falasses
mais forte do que o viver acordado. com aquele brinquedo?
-Ah, sim?! -Qual?
- Eu, pelo menos, sempre fiz isso. - O palhaço de lata de gola azul.
-Tens razão. Procuraste um lugar onde não fosse possível - O que está a conduzir, numa charrete, um cavalo?
deixar censuras sobre a mesa. Complicado e instável, minha - Esse mesmo. Repara na tua mão.
querida. Seja como for, encontraste a ponta do teu puzzle. - Que tem a minha mão? Está a brincar. Abre e fecha os
Agora, só tens de dar guita ao espírito bravio. dedinhos.
- Não é fácil. O meu medo está em ponto de rebuçado. - Exacto. Encontraste as mãos do menino. Nesse jogo de
· -Tralalá. É doce para o amargo, ou vice-versa. Tanto faz. abre-e-fecha, no que pegam, e o que largam? Consegues dizer?
Desembucha. - Pregas do imaginário.
- Se o amor vence a morte, é forçosamente no túmulo que - É isso. Pregas exactamente iguais às da gola azul do pa-
se combatem, não é verdade? lhaço.
- Exacto. O túmulo é clínamen e polemos. Bordo e guerra. - Devo pegar nas pregas, ou tocar no azul?
- Está anunciado que aí terão de resolver o seu puzzle. - Precisas de reflectir. O puzzle diz que o melhor é pegar
O que não deixa de ser engraçado. Túmulo não te lembra tá- nas pregas. A ironia prefere o azul. Deixa vir o menino ...
lamo? - Porquê o azul?
- E então? - É a cor por excelência do neutro. Se tocares no neutro,
- Estamos em plena teologia. bifurcas.
- Nesse caso, desce à terra. Em termos práticos, o que pro- - Quem bifurca, ou sonha, ou tem medo da morte.
cura o brinquedo nu? - E quem tem medo, lê. E, se lê, brinca com a morte. E, se
- Doce esperança e brisa leve.
- Concordo. Folhagem em guerra, e sensualidade nos bor-
dos. O que nos leva a uma curiosa conclusão. A fonte de ironia
--
brincar...
- Sente dores na nuca.
- Exacto. É uma excelente nevralgia.
de todo o universo é, inexplicavelmente, o menino humano. - Claro. A noz infantil aquece excessivamente. Deita fu-
- O inexplicável é inexplicável, mesmo para um olho de mo. O fumo do inexprimível medo.
árvore como tu. Assim sendo, ou nos calamos, ou achamos ra- - Concordo. Sinal de que o excesso de percepção sonhan-
pidamente a poesia associada a esse inexplicado. te pode engolir a noz.
-· Isso é um truque de teologia. - Pode. É uma hipótese. Nesse caso, vence a morte.
- É óbvio. Mas, por vezes, resulta. - A outra hipótese é a nuca do menino ficar repleta de
- O terreno é movediço, mas vou aceitar. Que propões? ruah.
- Dar-lhe outros nomes. Por exemplo, noz pura, um beijo - A terrível travessura destes dedinhos!
fechado, o arcano e o seu quark? ... Que achas? - O carbono tem coisas dessas, de facto.
126 127
0- A PLENITUDE NOCTURNA -
- Anda alguém lá fora.
- É o jardineiro que deve ter ouvido algum ruído.
-A esta hora?
- Se a hora não fosse esta, tão tardia, talvez não tivesse re-
parado.
- Não deixa de ser estranha esta luz móvel a entrar pela ja-
nela...
- É-o, de facto. Parece que espreita cá para dentro à pro-
cura de alguém.
- E anda apenas lá fora à procura de um rasto qualquer...
- A plenitude nocturna é muito eficaz. É espantoso como
o candeeiro, a luz e o rasto caminham, num único movimen-
to solidário!
- E, juntos, se dilatam varrendo a janela que não abrem.
- Estão a desenhar no chão de pedra acontecimentos pró-
ximos e reais. E, ao mesmo tempo, no chão de terra, lá fora.
- Se não estivesses aqui, creio que teria medo.
- É possível. Repara como a luz parece deitar-se directa-
mente sobre a esteira.
- Dir-se-ia a insónia do tempo a arfar pausadamente.
- Eu estava a ver outra coisa. Dois espíritos bravios deita-
dos num abraço.
- Imaginação tua.
- Não digo que não. Pareceu-me, no entanto, que os seus
laços de afecto corriam para a sombra.
-Quem eram?
- Não consegui ver. A menos que a luz voltasse e se imo-
bilizasse sobre o seu rasto.
130
convicto de que cada jardim tem o seu, poderá parecer um dis-
parate, mas não tenho outra maneira de o dizer.
~ Luz é, então, um jardim a emitir em vários tons uma
constante fantasia? ·
- Sim, com um jardineiro fantasista à altura das fantasias
do seu jardim.
-·- Essa fantasia é fatalmente dolorosa para os corpos den-
sos ...
-· - O que é tenível é ela nos inspirar, quando fora dela, uma
série de patetices românticas. Mostrou-me hipóteses nuas de Gl)_ ACHADO, NEM AQUI, NEM LÁ -
convivência, bancos nas ruas, transportes velozes para mais
longe, aves-cavalos rutilantes a fluir saindo de ninhos abe1tos - É verdade que vim para encontrar, e tu nem me deixas-
em côncavos de luz. Buscavam, corriam e trocavam entre gor- te sequer limpar o pó.
jeios e relinchos que dificilmente me saíam dos ouvidos. Tu- - Poderia logo ter-te dito que não encontrarás aqui aquele
do circulava sem fazer volume. De repente, pousavam nos que procuras.
bancos da rua. Em seu lugar, surgiam velhos casais a escrever - Por que não mo disseste, então?
pequenas composições. Num bater de asa, jovens namorados - Seria terrível que o encontrasses na recordação. Ele não
liam as mensagens. Aprendiam a depositar nos próprios olhos pode ser um achado.
os sentimentos do outro. Em suma, patetices. - Mas se eu soubesse quem é ...
- São apenas sinónimos curiosos de jardineiro. Comentá- - Não podes saber. Apenas o teu espírito bravio o poderá
rios irónicos. reconhecer.
-· -· Eu sei. - Se eu não me tomar...
- É realmente uma maravilhosa ironia essa cidade sonha- - É isso. Não são precisas palavras. A tua vida interior
da pela anunciação floral, nos rebordos do tálamo. Dá para descerá à vida desconhecida. É quanto basta.
perguntar: «Quem dormiu aqui?» - Mas tu sabes quem é.
- Que me vale saber, se não fores capaz de o reconhecer?
Quem sabe o que há num cofre de fragmentos espirituais por
abrir?
-Terei de ficar parada à espera, é isso?
- Não, pelo contrário. Terás de correr a grande velocida-
de. Verás. Esse movimento tem uma consciência muito clara
dos seus gestos. Mas basta imaginar. Por mais que faças, o in-
visível não cria pó.
132
•
- «Estás a espalhar todos os fragmentos pelo tapete. As-
-Tive o gesto de o colocar sobre o grande tapete dobrado sim, eles sujam-se. Vão-se rasgar nas arestas dos brinque-
que está próximo da braseira em repouso. E agora? dos!»
- Olho pela janela aberta na extremidade da grande sala. - «Não vês que os brinquedos não sabem ler! Desce, já te
E agora? disse. Se não desceres, vou dizer ao olho de árvore!»
- Estou de pé a olhar para a árvore. E agora? - «Assim é que faz um cofre bem comportado! Mostra os
fragmentos!»
- Não! Não consigo sustentar o teu olhar...
- «Mas são apenas tiras ... »
•
•
- Devo sentar-me no tapete? Assim?
- «Espera! Vou buscar linha e uma agulha para tas coser... »
- Abro o cofre. Já o abri. Está aberto sobre os meus joe-
lhos. - «Oh, que cofre curioso, mas são de um vestido rasgado!»
- Mas é enorme! Pesa com todo o seu peso sobre o meu - Por onde terá ele andado para se rasgar tanto?
corpo! Está a esmagar-me! «Mãe!»
- «Não sejas arisco! Deixa-me coser-tas.» O que fazem
- «Olho de árvore, acode!» aqui estas manchas vermelhas? «Porco! És um porco!»
• •
- Oh! Ele levanta-se no ar! O meu cofre é imenso, volátil - «Estava a brincar. Vem cá. Abre-te, de novo! Peço-te.»
e transparente!
- «Deixas-me ver as tiras?»
- «Parasceve, desce.» «Vem cá!»
- Estas aqui são de um corpete. E estas?
- «Assim não vale!»
134 135
-· Ah! Esta parece fazer parte de uma gola! - «0 que têm os meus olhos? Por que os beijais?»
-Que puzzle engraçado! «Mas estas aqui não são domes- - «0 que têm de especial as minhas mãos? Que procurais?
mo vestido, pois não?» Não há nada nelas. Não vedes?!»
- Serão dois? É impossível! Creio que há mais tiras do que - «São muito pequeninas, é? Os veios deixam ver as veias,
há bocado. é isso? São como as vossas?»
- Não quero lembrar-me. O olho de árvore não gosta que - «Olhai-me nos olhos. Ainda não vi os vossos!»
eu me lembre.
- «Cheirai-me!...»
- «De quem tereis sido, meus dois vestidos lindos?»
•
- Que belo perfume tendes!. ..
- «Eu cheiro a sonho do tempo, é? É isso que me quereis
- «Para onde ides?» Pareceis dois brinquedos a correr um dizer?»
contra o outro, direitos a um choque frontal. «Parai, podeis fi-
car magoados!» - «Tenho-vos nos braços sempre que acordo?»
- «Por que vos deitais nas esteiras?» - «Sou um limiar? Mas como, se sou tão densa?»
- «Quem vos faz vivos? Quem vos ensinou essas coisas - «Vazia, é? Eu?»
feias? Mas isso não se faz!»
- «Amante e genetrix!? Mas como?»
136 137
@-NO TÁLAMO, OS DOIS VESTIDOS AMANDO-
-SE-
140 141
- «Não?»
- «Do medo?»
142
As distinções que o ser humano constrói permitem-lhe,
pois, sobreviver.
Sobrevive e ignora. Ignora e merece perdão, embora este
não o liberte do circulo repetitivo dos seus passos. É hoje evi-
dente que, com as distinções do humano, os trajectos estão
circunscritos a um localismo estrito.
146 147
gência entre catástrofe e liberdade. Ter-se-á a mulher atrasado imenso. Perto de que ponto, não sabia. A ca1ta diz-lho. Tú-
a chegar ao texto? Não sei. Imagino que essa desconexão dei- mulo também lhe sugere tálamo, o que a carta não assinalava,
xará marcas na alma de um e de outro. Na mulher e na medi- ,. embora o não excluísse. Aliás, se excluísse essa ou outra as-
tação. Tornando menos puro ou afirmativo o dom. sociação, a ca1ta negar-se-ia a si própria, interditando a acção
de ler sobre a própria leitura.
Não basta dizer que essas coisas acontecem, e passar adian-
te. Houve, ali, uma interferência do tempo. Por mínima que Cartas dessas não faltam, ao longo do caminho. «De carta
fosse, tornou, de repente, improvável um encontro há muito em carta» é, de resto, um exacto equivalente do trajecto figu-
anunciado. A mulher, que no texto procura o corpo amado e ral. Note-se, a mulher nunca pensou estar à beira de um tú-
desaparecido, por pouco que não encontrava a sua textuante. mulo. A carta, sim. Mas enquanto esteve à beira desse túmu-
Também é verdade que, se tivesse chegado mais cedo, teria lo, a carta, a mulher viu-se deitada num tálamo. É certo que,
dado com o seu corpo morto, em vez de desaparecido. Ou, en- num quarto, num tálamo feito de chão, à beira de um lobo
tão, teria assistido ao seu renascer iluminante. que, por pouco, não lhe cravara os dentes na nuca. Mas uma
coisa não anula a outra. São exactamente simultâneas. Razão
Talvez o atraso fosse positivo. Nada nos diz que a mulher ti- por que, quando há sobretudo espaço, as relações se diversifi-
vesse um nome adequado, um equivalente, para essa cena ab- cam de maneira assustadora, e assumem uma natureza pes-
solutamente catastrófica. Levava perfumes para um morto, soal. Em não imp01ta qual dos pontos do espaço, há textuan-
não para um enigma, um corpo conhecido voltando à vida nu- tes activos. Não são sinais de um sentido corrido. Não. São in-
ma outra forma de vida. Quando só há quase espaço, pontos terlocutores que, apagados, são coisas e, iluminados, falam
próximos quanto possível podem provocar colapsos irrepará- uns com os outros e com ela. Porque ela é também uma coi-
veis. De repente, o puzzle dessas proximidades é o equivalen- sa, quando apagada ou impotente, e uma carta que anda a ser
te exacto do enigma. distribuída, à medida que a sua pujança se afirma.
Penso, assim, que o ponto de vista do olho de árvore é ine- Se a tua mão te escandalizar, corta-a. E o escândalo é acre-
gavelmente prudente. Recordar é quase, de certeza, um ainda- ditar o humano como exclusiva sede de saber. A mulher fez
-mais-morrer. Ler o novo é, de longe, preferível. bem em lançar fora a estatueta. Não conseguia desprender-se
da sua matéria de madeira. Claro que o gesto da mulher não
Perto do seu lugar andam a ser distribuídas cartas. Vamos fora impecável. Não percebera que, ao lançar fora a estatueta
admitir a hipótese de que o texto onde a mulher entra é uma como lixo, a fizera entrar no ponto do espaço onde as suas
dessas cartas. A identidade do seu redactor é irrelevante. mãos decepadas estavam destinadas a executar melodias ad-
O que importa é que a mulher a leia como lhe sendo expres- miráveis.
samente dirigida. O que, de facto, faz. E fá-lo porque à beira
de um túmulo era onde se encontrava a meditar sem saber. Tú- No espaço textuante todos os corpos são, afinal, híbridos.
mulo, aqui, é a informação fundamental. Cismar, cismava Cismar, transmuta. Permite alcançar nomes novos e locais de
148 149
~cas que, antes de o pensamento pensar - sonham musi-
caminho. Razão por que o corpo físico original da mulher não
soçobrou no berço. Nem o dela, nem o daquela criança enig- calmente.
mática que deixou abandonada aos pés do Grande Maior.
Não é metáfora. É uma hipótese irónica. Porque seria mui-
E como sabe a mulher que é híbrida? Como sabe que é uma to estranho que não houvesse ritmo entre textuantes. O cami-
viajante? Como sabe que o seu percurso equivale a uma bus- nho - a grande batida da inquirição - tem batidas próprias.
~9 espaço onde estivemos, estaremos e sempre estamos,, o
ca consequente?
texto não se escreve com sentido, mas com ritmo.
Tem um corpo de perguntar, a mulher. Deve ser por isso.
Assim o sabe, e não de outro modo. Nenhum interlocutor lhe A mulher vê que o corpo é sonoroso e florido. Nada do que pa-
dirá, se lhe perguntar. Não querem, aliás, dizer. Querem ficar. rece. Porque, se o que parece fosse, não haveria sequer espaço,
A mulher olha para si. Tem olhos de lobo, os seus dedos são quanto mais pontos de assombrosa proximidade... O corpo qua-
lápis, a sua mão esquerda é um candeeiro sempre aceso. O seu se moribundo que deitou fora virá como ária, suspenso de uma
corpo não excita qualquer desejo sexual. A alegtia que susci- árvore verdadeiramente excepcional. Mas isso - ela não sabe.
ta, nua, é a de um C01Tedor a correr mais veloz do que o seu
volume. Está nua? Está. Deixou os seus vestidos noutro lugar.
Mais uma vez, à beira de. tY-: EXPLICITAR MEDO
São seus, esses vivos que encorpou. Como ela é deles. pode escrever-se dentro, a partir de fora, como faz o realismo.
~ estaca apoia a árvore. A árvore cresce, a estaca apodrece.
O caminho é um puzzle indissolúvel. Não se deram uns aos
outros como ajuda. Correm, de ponto em ponto do espaço, em E mais prático escrever dentro, de dentro. É o ponto de vista
busca do nome que impeça que o novo, o estranho, funcione da seiva. Nem sempre é possível, é a arte de jardinar. A mulher
como um explosivo deflagrante da consciência.
ouvia a voz, era a sua estaca. O grão corria pela voz, a seiva.
Medo? Medo de quê? Não há puzzle sem ironia. Alguém-infância cantava. No jardim onde está, neste mo-
mento, ela ouve um ruah nos ares. O jardineiro,
Há, no entanto, algo de extremamente curioso no corpo que
corre à procura de um semelhante. Não corre ele à procura de junto dela, diz-lhe que «de tão longe, não se percebe a letra».
um perdido? De modo algum. A maior parte dos semelhantes Aliás, já lhe disse «não está aqui». O encontro com o olho de
está por achar. árvore
Todos os corpos distribuem cartas, textos, objectos . .~
.disse, e o texto o mostrou. Algures, a uma distância - nula fora apenas, afinal, um modo de apontar a dedo o medo. O seu
ou infinita - , o texto escreve-se como textuante. ~ o dedo é lápis. Pousa os pés entre canteiros. Naturalmente, guar-
-
mesmo. Seria negar a sua solidão. Escreve coordenadas iró-
-
da as mãos nos bolsos da saia ampla e pregueada que vestiu.
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0-- APAIXONADAMENTE «Ó mulher!», diz apenas esse pensamento que.
e longe, o candeeiro junto à porta espera alguém. Como ha- Normalmente, não seria um pensamento mas, ali, foi-o,
bitualmente, amanhece. porque o disse à transparência. E a mulher estacou na imagem
da palavra brusca, assente no ó, delineada num delimitativo-
A mulher sente que está num terreiro a combater a desco- -mulher. Fora uma voz jovem que a dissera.
berto com a luz,
o espírito bravio, · Apesar de ter aprendido no quarto de arrumos que o pensa-
em risco de ser penetrado por um espectro, não I)lUlticor, mento não serve para pensar, que os acontecimentos não po-
mas de veloz morfose daquele que amou, abrindo-se em leque. dem ser calculados por uma tabuada rigorosa de cores e de
formatos,
Chamar-lhe-á mais tarde MetaVelozMorfose. Se ouvir falar
no jardim conversas banais do princípio da manhã, que é sempre alguém, quando se quer pensar,
dormiu bem?, apesar de o saber, não saudou a voz, disse apenas «eu sei».
está lindo o dia, Queria dizer «eu sei que sou isso». E a voz foi implacável:
sonhou?, «Um segmento de "eu sei" é o caule da flor». Ainda pensou,
acordei com apetite, por bravata, arrancar uma flor, mas recuou,
esse comum da fala não a tocará, julgará mesmo que nada ou-
viu. E avança no meio da luz. O espírito bravio admirando a isso não era um pensamento,
sua coragem, ascende a um aspecto menos acerado, e disse: «eu te saúdo, jovem». Disse-o sem sombra de respei-
diminui de tamanho e de aspecto, tos humanos pelo jardineiro. Ela falara numa voz clara, para
opera uma alteração de qualidade intrínseca, toma-se leve, o vento, diria ele,
uma brisa corre,
o vivo animal é, agora, um pensamento que passou por ali, de
eu falo com ele, diria ela. E começaram a pensar.
noite, e deslizou para o calor do lar. A mulher
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sentam-se onde a mulher está sentada. Afastam a voz jovem sabe que ele está ali, apenas não sabe onde, exactamente co-
num rompante. Há luta no vaso quebrado que o pensamento mo eu que os estou a ver a dois tempos. Cada vez que ele dis-
não permite. ser ele, ele falará por ela.
O j1ardineiro vê-a pensativa e triste. Se soubesse, diria que Se é à distância que nos fazemos, é inexoravelmente em
parece um caule fanado. E vem sentar-se onde os cacos se ha- dois tempos, pelo menos, que apenas podemos ver como dois
viam sentado, onde o jovem estivera antes no brevíssimo lap- lugares. No pensamento, quem entra ou sai fá-lo livremente,
so de uma interjeição. · sempre na fonna-Alguém. Ao lado dela estão os cacos, o
jovem-vê partido e o jardineiro que
Não são apenas formas sucessivas de companhia passando
a correr pelo seu cismar de mulher inteligente e tenaz. São as- lhe diz «comportava-se como se não tivesse sido criado. A se-
persão de dor. Por felicidade, está uma manhã clara. A brisa nhora percebe?». E a mulher responde «(eu) observava como
vem e evapora as gotas de presença quem servia com o olho fino do provador de imagens».
«Falava muito, contava histórias», acrescenta.
no seu espírito. E o jardineiro volta a dizer omesmo Mas quem acrescenta? O leitor percebe? Acha que o jardi-
neiro entendeu? É da opinião da mulher? Está de acordo com
por outras palavras. Não lhe diz que ele não está aqui, diz-lhe, o jovem-vê? Eu acho que quem acrescentou falou apenas pa-
ra nos ver o rosto. Espalhou cacos pela conversa para nos dis-
num tom de palavra-chave, trair. Fixos na história pelo muito falar, observa-nos para ver
que ele muitas vezes girava em tomo de simesmo porque se se algum de nós, algum deles, é o seu amante sonhado. E a
angustiava, mulher lembra-se do equivalente entre os cacos e a aura cir-
cular deixada como marca no chão da sala.
como se (eu) girasse em tomo de uma incógnita. Estou a vê-
-los no jardim, «Sim, (eu) respirava tempo», di-lo pela voz da mulher.
«Üra, minha senhora, era um grande sonhador a sonhar que
sem nunca saber onde fica esse jardim. Vê-los é ver a mulher, fora criado aqui», diz, agora, o jardineiro. E acrescenta
o jardineiro e o jovem-vê. Não sei onde fica, mas sei que fi-
ca em dois tempos. Quando a mulher diz «como se», o jardi- «mas, quando vos via, se por acaso não estivesse preparado,
neiro sabe que não é ele que fala, mas a mulher. Isso, ele vê. era como se pela primeira vez entrasse.»
O que lhe escapa é o parêntesis, como dois cacos de pé, onde
alguém fala na voz da mulher. E a mulher ouve-se falar, Por que se instalou um terrível mal-estar neste texto?
Por que se quebra constantemente na conversa o diálogo?
ouve a voz que fala por ela, [ Por que está a memória reduzida a cacos?
através dela e em seu nome,
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Não sei porquê. Sei apenas que alguém quer falar fora da «Afinal, o ruah sopra onde quer», diz ela.
memória. Não estar ali, presente e morto, numa insondável «Se tivermos um mínimo de nuca. Não é verdade?»
contradição e preconceito. Estão a magoá-lo, falando com ele
na terceira pessoa. Dele, e não com ele.
0- NUCA E ANEL
E o texto escreve: «Eu te saúdo, jovem-vê da Casa de In-
Todo o júbilo.está na nuca, na cerviz indobrável do huma-
fância».
no. Desde que QUCa seja anel.
«Eu te saúdo, texto, porque me reconheces vivo, não aqui,
mas agora, e por duas vezes.»
«Repara, minha amada!», pensa a mulher, no quarto mais
E o texto responde: «Deixas-me entrar na tua visão?»
íntimo e inacessível do seu coração.
«Deixo, ó mulher.» Repara, repara no anel. Olha, minha amada, para o vazio
que ele encerra.
G- PENSAR VISÃO Repara no que dizes, quando dizes ele, podendo dizer elo.
Repara como formámos um nó e, depois, fomos um elo
«0 gosto pela vida também se adquire», diz-lhe o jardinei-
ro enquanto se afasta. Diz para quem está. Não é o que mais um elo anel, uma cerca um jardim, um pouco de vinho um
importa? pouco de água, um universo um destino,
A mulher senta-se, finalmente, a seu lado. Põe-lhe a mão no sentimos a cerca, o elo,
braço, quando a coloca sobre o braço da cadeira de verga. Es- sentimos, agora, a chama
tá sol. Estão bem.
«Eu bebo água ou sumo de laranja», diz-lhe. um vazio em chamas que queimam a frio
«Eu beberia um pouco de vinho, mas acompanho-te na repara, minha amada,
água», responde-lhe.
olha, peço-te, para a parte invisível do anel,
«Trocamos o nosso paladar pela mesma bebida», diz ela, repara na obra do espírito bravio
enquanto deixa que a luz que tudo invade encha de calor os que nos deu nuca e júbilo,
copos. que nos dá dá,
«Vais-me ensinar ades-coordenar?», pede-lhe. como se falássemos os dois,
«Vamos acrescentar outra dimensão. Estás de acordo?»
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olha, minha amada, @-CAULE E FLOR
não me recordes, não quebres o elo,
O jardineiro acende o candeeiro de petróleo que despendu-
em todo o universo, é apenas isso que temos, rou da parede exterior da casa. Avança através das sombras,
não há outro instrumento para fazer, projectando a luz no interior como imagem. Aliás, a luz
dirige-se para o interior da casa,
deixa-me ser o teu jove1:11-vê. _o vazio está irreg~o. O vazio
produz. vai reunir, ela sabe, os laços do afecto para a sombra. Convi-
dá-los para a plenitude noctuma.
Vês? Estás a ver? És capaz de te transferir para o que eu es-
tou a ver? A certa altura, A mulher recebe das mãos do homem o candeeiro que en-
trou precisamente,
pousando eu as mãos no teu volante, a palavra perguntou-te:
«Rutilante, onde arrumas as essências dos sentimentos? Que neste instante,
essências preferes?». No Rutilante, o sentimento floresce er- na casa. Pousa-o sobre a esteira, paralela a uma das janelas,
rando. Há sensações quase inaudíveis pelas bermas da estrada, inspirando devagar a insónia do tempo. No momento de o
pousar, à medida que a luz desce e altera tudo o que não con-
e, coisa magnífica e estranha, temos olhares cruzados por segue atravessar, conferindo-lhe movimento e desproporção,
diálogos. Triplos, quádruplos, múltiplos. São a nossa única o jovem-vê pensa nela, estando ela a pensar que, naquela es-
voz. Sentir apodera-se da nuca e transforma-a num domínio teira, respiraste, outrora, fala-lhe ela com ele,
de alcançar dentro em breve. Tudo ao alcance, e tudo tão bre-
ve. E sinto, então, a inteligência dos teus pequenos seios que contém as lágrimas,
vêm à superfície da tua natureza, incluindo o teu espírito bra-
vio. É, nele, que nos tocamos em pleno Rutilante, a galopar porque há um momento em que a dor, parada, ou se transfor-
pela voz dos galos. É, certamente, uma aurora que vem. ma em dom e caminha, ou mata. Então, sim, mata. O lobo cai
Olho-te e vejo-te como um exemplo puro e outonal do ritmo sobre a nuca e destrói para sempre o ruah que gira, imenso,
de festa. Já não sabemos, minha amada, onde dormimos na nesse elo de afecto,
passada noite. Tenta lembrar-te, verás que não consegues.
Apenas as bermas ainda são recordáveis. E isso que interes- contém, pois, a memória-lobo,
sa? Mostra-me o teu anel!
porque o candeeiro, a luz, a sombra e o espaço caminham,
dilatam-se atingindo a janela que não abrem, desenham acon-
tecimentos próximos e reais, além dos imensamente distantes,
que apenas as chamas frias conhecem.
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~ensar para compreender cabalmente o incismado do ins-
No momento em que ela ia a entrar na ascese da memória
com que se abre o doce encontro do pensamento, o jardineiro tante, só mais tarde.
diz «lembro-me muito do seu menino, sabe?»,
sem saber que nessa frase há uma trela que se larga 8-- O MENINO-VÊ PÓPÓ
deixando o lobo livre
A palavra ficou parada fitando as contradições do verde e
para saltar sobre a mulher,
sedento do ruah que trai preso à nuca como um adereço vital. do vermelho, e a sua similitude inconfundível. O menino-vê
Não sabia, «tenha uma boa noite» e saiu. fita o copo em que estava desenhada,
«A luz montante das janelas é adversa ao tempo», ainda lhe continuou a estar desenhada, em miniatura, uma flor, solitária.
A mulher, instintivamente, pede que o copo não se quebre. Na
responde, num desafio a mulher
realidade, que ele não lhe pegue e o deixe cair mas, no limiar
mas, na realidade, sobressaltara-se muito mais do que dizia. da saudação, o menino-vê dobra voluntariamente o joelho,
Com o ímpeto que o lobo pôs no ataque, desequilibra-se e cai
e, enquanto cai no chão da própria memória, sem ser para entrar na escuridão da morte,
não imaginara vir a encontrá-lo ali, vislumbra num relance o caminho inclinado e dúctil que se
esperava-o no momento mais propício do princípio da tarde e move para muito longe dali
num outro tom de voz,
e o copo cai-lhe das mãos. O choque e os estilhaços ouvem-
sente vergonha, «vai encontrar-se em queda», -se, na noite, como um pópó disparado a grande velocidade
porque o lobo trazia nas fauces o seu menino-vê. E, de facto, sobre a esteira onde respirara o jovem-vê.
nesse momento aparentemente impropício,
«Ü caminho move-se», diz-lhe o menino-vê no pensamento.
havia uma flor, ali, o caule de uma dália com ela própria no
cume, uma entre as muitas do jardim, A mulher está à escuta. Compreende que o caminho desfaz
cuja frescura a água ainda guardava num copo. completamente em pó aquoso o espaço e fá-lo progredir para
Fora ela que a impedira de cair no chão mais chão da me- fora das paredes de branco e tijolos, quando anda, como corre
mória do lobo ou fora o lobo que a projectara para o copo? veloz, nesse instante, a voz do menino-vê no seu pensamento.
E isso importa? Essa voz, ela ouve, oscila entre a coragem e o terror de perder.
Apenas importa o menino-vê no seu copo. Por felicidade, em vez de se baixar para recolher os cacos,
entra na visão desse terror. A voz soa-lhe claramente «pópó,
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pópó» e vê o seu menino lançar-se, apaixonadame~te, por ~o Adormeceu antes de a viragem ter chegado.
dos os desvios. Aqui, afasta-se do terror, corre. Alem, desvia- Toma-se deliciosamente incómodo. A mulher sente-se dor-
mente na posição de querer sustê-lo a todo o custo, o tempo
-se com perícia do perder,
que durar a corrida até à viragem. A canção, é tudo o que ela
sente, poderá tremer, poderá fazer as lágrimas chegar-lhe aos
e é jâ muito noite na noite em que corre.
olhos e embaciar-lhe o olhar, mas terá de durar mais do que o
«Quem conduz ao volante?», pergunta o espírito bravio da tempo que a separa da viragem.
mulher. E mesmo se o ar, no relógio circulante que marca as mes-
«Uma faixa em tomo do pescoço», responde-lhe o menino-vê.
mas horas, no seu mundo e naquele onde o menino-vê corre,
«Desata a faixa», pede-lhe a mulher.
é de expectativa, a mulher responde-lhe à letra:
E o menino-vê desata a longa faixa que a palavra enrolara
«Quanto mais estranho mais suave», diz a canção. «Quan-
em tomo da sua nuca. to mais estranho mais próximo dos lábios», diz a canção.
Era bela? Era. «Quanto mais próximo dos lábios, maior a protecção que da-
Era ousada? Era. rás ao meu menino», diz a canção.
Levava ao lado uma criança a rir? Levava.
Não tinha medo? E a canção fez.
brar bruscamente na próxima viragem. O menino-vê saltou-lhe do regaço. A mulher sentiu todo o
seu corpo dormente. Apenas os lábios tinham sido vivificados
A mulher ouve. O terror de perder cai-lhe avassalador no pelo canto. Aliás, este desprendera-se do corpo físico e dolo-
pensamento. Senta-se roso da mulher. Para fazer o seu trabalho
'
como sempre se sentara na cadeira de verga, de braços de- manter o ruah na órbita da nuca,
bruados de azul. E espera na canção que lhe sai dos lábios. «elar» o anel, pensou ela, como se este girasse constantemen-
A canção treme, hesita na emoção. O corpo de amor do tem- te em elo e, apenas girando, se mantivesse e alimentasse a
po, como sempre chamara no coração ao menino-vê, aquieta- imensa chama que, estranhamente, nunca o devorava.
-se sobre o seu. Ela continua a cantar, apesar de estar plena de
um regaço vazio. Canta. Fala-lhe. Ele diz «pópó», em voz ca- Elar, pois, era o trabalho do seu canto.
da vez mais baixa. Adormece. «Toma-te mais ela, reparaste?», disse-lhe o seu menino-vê
no pensamento.
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«Não é no pensamento», disse-lhe ela. Aonde lhe disse, en- mas a sequência compassada de quem atravessa uma revoada
tão, se ela o ouvia de pombas, e se surpreende com o tremeluzir (o mesmo que
distintamente? sentira, durante toda a noite, no canto)
«No passeio-pópó», informou-a. Seja!, aceitou ela
da aragem que corre.
e saíram de casa. Para o dom do passeio. Não foi exactamen-
te isso que sentiu, mas uma palavra Simples, sem subconscientes de pacotilha, nem mente de
«há uma caleche que avànça na estepe», encantar parolos. Não há qualquer aparição, nem espíritos,
quando o dom desce. nem morte e outras vulgaridades. Não há nada que se veja.
A paisagem é a de sempre. É apenas mais-paisagem.
O passeio é ali, perto. Praticamente, mal saem do jardim.
Atravessam os canteiros, saúda o jardineiro, procura não su- «Esqueci-me completamente de regar o canteiro das dá-
jar a orla do vestido comprido que a cobre, leva uma das mãos lias», ouve o jardineiro dizer. «Desculpe», era, pois, para ela
solta, a outra, no bolso profundo e, finalmente, abre a cance- que o dizia. Estranhamente, aquela voz ouvia-se, ali,
. . ?
la. Nesse instante, ouve: «Tens a mmha voz para o passe10. »
apenas ali,
e sobressalta-se,
porque não a ouve, de facto, no pensamento, mas n.a paisagem era uma voz sem eco. A mulher esteve quase a pensar que, a bem
que se está a abrir. Dentro dela? De certo modo, sim. De cer- dizer, aquilo não tinha qualquer voz. Faltava-me passeio, uma
to modo, não. paisagem onde pudesse ser dita, mas não foi isso que concluiu,
Não é de admirar, pois, que os seus passos sejam ligeira- o seu espírito disparou-lhe à queima-roupa uma ocorrência as-
mente sociada: «Esqueci-me de limpar com água o momento em que
des-coordenados. Não tropeça, apenas olha para trás, desloca- os corpos choram». A que propósito, meu deus? A propósito,
liza-se um instante, não saberia. Mas fora a palavra que lhe viera. E, ali, parada, no
é, certamente, um efeito do dom de passear, espaço imenso e ainda des-coordenado, percebeu vagamente
que a mais-paisagem surge quando a terra onde pomos os pés
e vê a mesa com as duas cadeiras debaixo da árvore de som-
bra. Conhece todos perfeitamente. Não há nada de novo na não é apenas terra, propriedade nossa,
paisagem. Sim, há um novo difícil de definir, o espaço parece- mas a presença de um cuidado. Um nós, visto de outra mar-
-lhe interminável. gem. Dir-se-ia. Assim a vejo, como a vê o menino-vê, angus-
tiar-se com a diversidade dos dons e dos afectos, a sua própria
«Tens a minha voz para o passeio?», ouve nesse interminá- identidade parecendo absorver esse mais,
vel, como se não houvesse nem fluxo radiante, nem sombra,
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ser engolida por ele, e a soma resultante ser um menos-eu in- lentamente, na rapidez da observação,
quietante. Sentiu, então, as lágrimas da terra
estava a passar de mão em mão,
«que choram por meus olhos», cantava o ruah do menino-vê, a voz e que o seu ruah de criança lhe estava a ser provisoriamente
arrebatado.
que oscila sobre todas as outras no coro dos peregrinos. Ain-
da pensou que ter voz não era melhor nem pior do que ter si- A mulher, depois, quando pousar os pés num chão, seja ele
lêncio, mas recuou de terra, de memória ou de conceito, dirá:
porque dizê-lo seria atentar contra os recursos do silêncio. «Estávamos a ver o canto e a manhã, presos à janela, fi-
Que faz a terra se não ser silenciada? «Que há, aqui, que nun- xando, num relance único, o enlace do quarto com o espaço
ca ouso?», perguntou-se. de todos os brinquedos, multiplicados em livros de imagens,
de cavalos e de carruagens,
Está-se a lembrar da voz e do silêncio da voz do olho de ár-
vore, como poderia lembrar-se do infinito reino bacteriano. e vi melatas que cresciam no exterior,
De]19J?~~i>m os olhos marejados da terra, olha o parapeito_ da e a data da manhã, 10 de Outubro, onze horas e vinte
janela onde o menino-vê está sentado ~ observar a manhã e, finalmente, apenas Não havia mais nada.»
crescer. Quase vai para dizer «ar>>,
«Algures», acrescentou ela, insegura, «havia gotas amorá-
como se só agora o seu corpo reparasse como vivera quase na-
veis».
da respirando,
mas a mão meditante do menino-vê
Que queria ela dizer que vira?
leva-a, a tempo, para outro sítio, um refúgio, onde a mulher se
Não sabia. Sabia apenas que naquilo que vira havia uma
sente suspensa do que ia para dizer. Não sei se era o primeiro
encontro do seu corpo com a palavra. Era visível, no entanto, pergunta.
Essa, sim, de respirar.
que não estava habituado
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ouve a linguagem cair linearmente. E como um apelo secreto vazios de imagem,
(tem sexo? Tem. Tem também um sexo-mais) tombava como como «manchas sujas». De facto, pensou a mulher falando com
a chuva, o poeta, são obscuros activos. Trabalham para a completude da
imagem, mas fora dela porque ninguém, nem mesmo os
sentou-se em frente dos animais-noite que tinham vindo pro- animais-noite, as conseguem ver no seu trabalho.
curar o seu abrigo nesse secreto. Ninguém queria voltar para~ o
centro da linguagem onde se é morto e se assassina. TQ~O Por exemplo, as labioladas não tinham mãos, nem ouvidos,
nhavam que os que acordavam, os que n~ca tinham dormido mas materializavam expressões-linguagem,
e os que estavam a entrar no sono, _de facto , iar~L~J:'iDb..~.1!1
pareciam grutas onde ecoava pensamento. E, na realidade, o
com imagens-cha~ propícias para a progressiva revela~o olhar da mulher correu espontaneamente do poema para o va-
do puzzle, · so esguio de vidro para flores. Era um objecto real, que o poe-
ma escrevia, se escrevesse, como imagem, mas não era a ima-
Casa, Ponte ou Fonte, Cancela e Jardim, Copo ou Janela ... gem que faltava no puzzle.
Imagens repletas do silêncio e da fascinação dos sons. Guar-
dando a palavra como sua indefectível preciosidade. Ou fo- Já as faceoladas pareciam possuir rosto, ou seja, perfil, vi-
lhas que se entregavam com um prazer consciente e austero, são, cheiro e escuta.
Transportam o som, passo a passo, pelas nervuras da lin-
voluntariamente, guagem, como se esta fosse apenas oxigénio e clorofila. Estou
à beira de, dizia o corpo tenso da mulher, ela assim o sentia,
a uma espécie de simbiose bravia. Gerando híbridos de luar li-
bidinal. Um deles, o da Noite Obscura, desfolhava-se no te- à beira de um rosto,
clado dos sentimentos e fazia surgir, como um banal milagre uma presença amante debruada de um estranho permanente.
do ritmo, um florilégio de emoções estranhas.
Largou o livro, deixou-o cair com cuidado,
Não, Rilke, os animais-noite não têm manhas, pensou a mu- sentiu necessidade de cobrir a sua nudez apenas com o xaile
lher perante o que assistia. Não levam as imagens e as folhas quase translúcido do poema,
ao estado de êxtase, como se as coisas respirassem sentimen-
tos. O que nessa miríade tão próxima se via de Alguém com quem tinha forçosamente
de se abrir.
distinguia claramente a mulher, por estarem tão perto do seu
sexo adormecido, eram emoções labioladas e outras faceola- E foi assim que se encontrou a falar com a palavra,'
das. Porque essas eram as formas que deixavam no puzzle, a pedir-lhe autorização para entrar no som da sua vida, caso
um destino houvesse,
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um amante-vê apesar de argila, o corpo tem um estranho que o cheira.
que rompesse finalmente a distância que separa sons e for- Por que tem aroma a tua respiração?,
mas,
e aproximasse suficientemente as emoções labioladas das fa- perguntou.
ceoladas.
a AMANTE-VÊ OU ESTRANHO-VÊ~
-
Como? Como, se não me podes ouvir?, foi a resposta da
palavra-dom ao seu pedido.
A mulher
teve o gesto que o poema nunca lhe ensinara. Pôs a sua cabe-
çajunto da palavra.
·--Lã5iosnõs-Iâmos, rosto no rosto,
enquanto a sua nudez dizia Como? Como, se somente olho.
Somente olho, quando te ouço.
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\~-~eira do Rio da Escrita
Eu te saúdo, ó mulher-mãe.
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E a dor? Que tens tu a ver com a dor? «Nasci no momento em que a tua boca encontrou o desejo
amante do jovem jardineiro. Fui aquecido e retido por faixas
É o maior inimigo do homem, ao que sei. cerradas de língua perfumada e, finalmente, nasci aqui, neste
É também teu? balouço de terra. Foi tudo tão rápido, tão inocente, fora de qual-
Não. Nunca foi meu textuante. Tu, sim. quer contexto de estadia permanente que decidi perscrutar o
sucedido, onde nada acontece. O que havia, em tempos idos,
Escreveste-me para combater comigo? Foi por isso que para contar, tinha apodrecido, nem a memória ousava meditá-
vieste colocar-te a meu lado? -lo. Mas a memória veio sob outra forma de reconhecimento do
real. Entregou-se-me totalmente para que eu a mudasse, e lhe
Não. Nunca me coloquei no teu lado contrário. Só para ti desse um nome de pessoa virgem. Sempre me deu o sentimen-
pode haver um Alguém-dor. Admito. Imagino, no entanto, to de que havia um ritmo. Uma beleza inesquecível. Que a pa-
que deve ser extremamente perigoso. lavra era apenas uma parte da sua respiração. Era certamente o
«desconhecido desconhecida>> que eu viera buscar no beijo que
Tens, pois, uma imagem. me abrira a porta da vida. Era muito forte, extremamente forte,
o apelo que exerce sobre os da minha espécie, já noutro lugar.
Tenho.
É o que sua mão diz na tua?
E não a respiras? Que ritmo tem?
Sim, chegou a minha hora de atravessar a ponte.
Não a respiro. Creio que foi um caminho errado. Terás de
o desfazer lentamente. Mas acabemos com as especulações. Não te posso acompanhar.
O puzzle é problema teu. Façamos o que podemos fazer jun-
tos, neste momento. Agora, que te dei as minhas imagens, pro- •
curando encontrar o seu ritmo ... estou apenas nas tuas mãos,
As imagens soam-me no movimento do ouvido e da mão.
Na minha voz e no meu pensamento ... Sou a mulher deste texto. Vou a caminho da ponte que ele me
indicou e para a qual me escreveu, e de que, outrora, tive uma
Nas tuas mãos, insisto. O que ouves nas tuas mãos? Que diz breve e confusa visão. Espero ter coragem. Estou a escrever-
a sua mão na tua? -te, ó texto. Escorada no meu íntimo, respirando pelo corpo
com que avanço, decido empreender, com os cinco dedos da
Diz ... minha mão nua, uma acção sem mescla.
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Percorro com o olhar o que logo ao olhar pertence,
Fluxo e fluxo.
Ruído e som.
Emanação e ruah.
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DAAlITORA:
FICÇÃO:
Trilogia "Geografia de Rebeldes":
O Livro das Comunidades - Afrontamento. 1977; Relógio D' Água, 1999
A Restante Vida - Afrontamento. 1983
Na Casa de Julho e Agosto - Afrontamento. 1984
Trilogia ''O Litoral do Mundo":
Causa Amante - A Regra do Jogo. 1984; Relógio D' Água, 1996
Contos do Mal Errante - Rolim. 1986
Prémio lnasset de 1986
Da Sebe ao Ser - Rolim, 1988
DIÁRIOS:
Inquérito às Quatro Confidências - Relógio D' Água. 1997
Um Falcão no Punho- Rolim. 1985; Relógio D'Água. 1997
Prémio Casa de Mateus de 1985
Finita - Rolim, 1987
TRADUÇÕES:
Les Errances du Mal - Éditions Métailié, 1991
Un Faucon au Poing - Éditions Gallimard. Col. du Monde Entier, 1993
12. NÃO HÁ HORAS PARA NADA 26. À SOMBRA DAS ALTAS TORRES
Helena Vasconcelos DO BUGIO
Maria Regina Louro
13. CEMITÉRIO DOS DESEJOS
José Gil 27. QUE SINOS DOBRAM POR
AQUELES QUE MORREM
14. SÓ SE FOI AMANHÃ COMO GADO?
Fernando Fonseca Santos Rui Nunes
28. A MÚSICA DAS ESFERAS 43. UM FALCÃO NO PUNHO
Clara Pinto Correia Maria Gabriela Llansol