Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
DOI 10.18224/frag.v29i3.7214
Resumo: o artigo procura analisar a maneira do cientista da religião lidar no contato com
as expressões religiosas. Acredita-se que o fazer antropológico agrega às ciências das religiões,
sobretudo por sua formação histórica. A antropologia passou das concepções evolucionistas
do homem aos trabalhos onde o próprio pesquisador se põe em contato com o outro. Isso
exigiu seu aprimoramento na relação observador/observado. Assim, este trabalho se baseia
nas contribuições das obras de Geertz e Goldman para o desenvolvimento da pesquisa antro-
pológica. Por evocar um amplo horizonte metodológico, a pesquisa em ciências das religiões
pode absorver das demais disciplinas aprendizados significativos. A antropologia oferece aos
estudos de religião um método de pesquisa que trata os envolvidos de forma igualitária e
exige do pesquisador considerar o observado não como objeto, mas sim como um ser humano.
Participar das rezas, dos cânticos, dos batuques e partilhar de experiências sobrenaturais
permite captar o sentido de determinado sistema de crenças para o sujeito.
ETNOGRAFIA E PÓS-COLONIALISMO
Isso posto, temos a etnografia como ferramenta para executar a tarefa de olhar o ser
humano como um todo, a partir das diferenças. Geertz, então, se preocupa em definir o papel
do etnógrafo, deixando evidente que a presença do pesquisador no campo é imprescindível:
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a ver com
uma aparência factual, ou com um ar de elegância conceitual, do que com sua capacidade
de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa
outra forma de vida (ou, se você preferir, de terem sido penetrados por ela) – de realmente
haverem, de um modo ou de outro, “estado lá” (GEERTZ, 2005, p. 15).
É possível abstrair de Geertz a linha tênue por onde trafega o pesquisador de religião
ao entrar em contato com outras formas de culto ou crença. Por um lado tem-se a preocupação
de não tratar as pessoas como meros objetos, a partir de uma visão etnocentrista. Por outro
lado, há que se ter atenção justamente com o contrário, ou seja, em cair no impressionismo, de
“ouvir uma música que não existe”. Segundo o autor, esse seria um grande causador de mal-estar
na pesquisa de campo: produzir textos científicos a partir de experiências biográficas. Ou, nas
palavras do autor, “uma é a preocupação científica de não ser suficientemente neutro, outra, a
preocupação humanista de não estar suficientemente engajado” (GEERTZ, 2005, p. 28).
REFAZER O OBSERVADOR
Os tambores dos vivos e os tambores dos mortos fazem parte da mesma classe de fenô-
menos e foi certamente preciso ser afetado pelos primeiros para ouvir os segundos. Mas,
em outro sentido, foi também preciso escutar os tambores dos mortos para que os dos
vivos passassem a soar de outra forma. Apenas nesse momento passei a viver um tipo
de experiência que, sem ser necessariamente idêntica à de meus amigos em Ilhéus, tem
com ela ao menos um ponto de contato: o fato de ser total e de não separar os diferentes
territórios existenciais nos quais nos locomovemos (GOLDMAN, 2003, p. 452).
Nesse sentido, Marcus acentua que a etnografia tem tido a preocupação de assu-
mir novas perspectivas diante da necessidade de compreender a modernidade. Como escreve
o autor: “Esse deslocamento coloca sob o foco da reflexão antropológica o modo como as
identidades coletivas e individuais são negociadas nos lugares onde o antropólogo faz suas
pesquisas de campo” (MARCUS, 1991, p. 197).
De acordo com Marcus, os processos de sincretismo global, frutos da modernidade,
tem despertado nos pesquisadores um maior interesse por questões que girem em torno, por
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 29, n. 3, p. 528-536, jul./set. 2019. 531
exemplo, da etnicidade e da raça. Na esteira dessas mudanças, a própria perspectiva do cien-
tista em face de sua pesquisa é remodelada:
O objetivo último deste texto é refletir sobre a possibilidade de manter o ponto de vista
antropológico tradicional, quando o objeto observado faz parte do coração da sociedade do
observador. Essa reflexão é efetuada por meio de um confronto entre algumas discussões
mais ou menos clássicas sobre a observação antropológica e minha experiência de campo,
pesquisando eleições e participação política dos movimentos negros em Ilhéus, no sul da
Bahia. Deixando de lado qualquer preocupação normativa, trata-se, através desse confronto,
de tentar equacionar uma série de questões cruciais para a antropologia contemporânea:
será efetivamente possível assumir um olhar distanciado em relação a algo tão central para
o observador quanto a democracia representativa? De que forma e seguindo que procedi-
mentos? Existe alguma diferença entre estudar um grupo de “crentes” (no candomblé, por
exemplo) sendo “cético” e um grupo de “céticos” (na política, por exemplo) sendo “crente”?
As supostas diferenças de escala entre objetos, grupos ou sociedades devem inevitavelmente
afetar os procedimentos de pesquisa? (GOLDMAN, 2003, p. 445).
Goldman revela que durante sua participação em uma cerimônia fúnebre do can-
domblé, em determinado momento ele ouviu sons de tambores ecoando ao longe. O que a
princípio julgou serem tambores de pessoas físicas, vivas, que estariam em algum outro lugar
próximo, o que os possibilitava ouvir os sons que ecoavam. Em conversas posteriores com os
conhecidos – os observados – o autor foi surpreendido com a afirmação de que os tambores
que ouvira se tratavam de tambores de mortos (GOLDMAN, 2003, p. 446-448).
Todavia, longe de julgar sua pesquisa como comprometida por se desvirtuar do
distanciamento, o autor assevera que apenas ao conseguir ouvir os tambores dos mortos ele
foi capaz de compreender os tambores dos vivos. Isso nos permite perceber que a barreira da
imposição de identidades da qual tratava Marcus estaria sendo superada, uma vez que o etnó-
grafo em questão conseguiu partilhar dos mesmos sentidos do grupo em observação.
Assim, ao refletir sobre sua intensa experiência de campo com a feitiçaria no Bocage
francês, Favret-Saada (...) sustentou a ideia de que, ao falar de observação participante, a
antropologia sempre adotou uma concepção psicológica da participação (como identificação
ou compreensão), o que teria conduzido a disciplina a reter apenas a observação, gerando
assim uma “desqualificação da palavra indígena” e uma “promoção da do etnógrafo”. Ao
contrário, por “participação”, Favret-Saada entende a necessidade do etnógrafo aceitar
ser afetado pela experiência indígena, o que, diz ela, “não implica que ele se identifique
com o ponto de vista indígena, nem que ele aproveite a experiência de campo para excitar
seu narcisismo” (GOLDMAN, 2003, p. 461).
A leitura da passagem acima nos permite perceber que Goldman enquadra sua ex-
periência na qual foi afetado com a ideia de participação mencionada. Isso, de acordo com o
autor, seria desejável, uma vez que permite a superação das diferenças culturais que acabam
por afetar a percepção, o ponto de vista do observador e do observado.
Ainda nesse sentido, o autor passa a considerar o enquadramento que Lévi-Strauss
dá a antropologia: ao contrário da sociologia (que trata do ponto de vista do observador) a
antropologia é a elaboração da ciência social do observado. Cabe ao etnógrafo captar o ponto
de vista daquele que ele procura estudar “e que seja independente, ao mesmo tempo, do ob-
servador e de seu objeto”. E ainda salienta que a antropologia se ocupa de questões que não
são escritas ou fixadas em pedras, pelo contrário, estão dadas nos níveis mais abstratos:
534 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 29, n. 3, p. 528-536, jul./set. 2019.
Nesse sentido, a antropologia desenvolveu “métodos e técnicas apropriados ao estudo de
atividades que permanecem […] imperfeitamente conscientes em todos os níveis em que
se exprimem”. E é por isso que o trabalho de campo não poderia ser apenas considerado
“nem um objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendi-
zagem técnica” (GOLDMAN, 2003, p. 462).
É preciso destacar que Goldman não considera essa mudança de perspectiva como
meramente pôr-se no lugar do nativo, ou transformar-se em nativo. O que o autor defende,
quanto ao posicionamento do observador, seria o que chama de devir nativo. “O devir, na
verdade, é o movimento através do qual um sujeito sai de sua própria condição por meio de
uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição outra” (GOLDMAN,
2003, p. 464). Ou seja, é possível concluir que a relação de afeição que ele teria tido com a
comunidade candomblecista em Ilhéus foi providencial no sentido que o permitiu se deslocar
de sua posição ulterior em relação a sua pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abstract: the article seeks to analyze the way the religion scientist deals with contact with religious
expressions. It is believed that the anthropological work adds to the sciences of religions, especially
for their historical formation. Anthropology has gone from the evolutionist conceptions of man
to works where the researcher himself puts himself in contact with the other. This required their
improvement in the observer / observed relationship. Thus, this work counts on the contributions
of the works of Geertz and Goldman. By evoking a broad methodological horizon, research in the
sciences of religions can absorb significant learning disciplines from other disciplines. Anthropology
offers to religion studies a method of research that treats those involved in an egalitarian way and
requires the researcher to consider the observed not as an object but as a human being. Partici-
pating in prayers, songs, batuques and sharing supernatural experiences allows us to capture the
meaning of a certain system of beliefs for the subject.
Referências
ENGLER, Steven; STAUSBERG, Michael. Metodologia em Ciência da Religião. In:
PASSOS, João D.; USARSKI, Frank (org.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo:
Paulinas, 2013. p. 63-74.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2005.
GOLDMAN, Marcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia,
antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n. 2, p.
445-476, 2003.
GUERRIERO, Silas. Antropologia da religião. In: PASSOS, João D.; USARSKI, Frank
(org.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2013. p. 243-256.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2005.
MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias
sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial. Revista de Antropologia, São
Paulo: USP, n. 34, p. 197-221, 1991.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2005.
WIRTH, Lauri Emílio. Religião e epistemologias pós-coloniais. In: Passos, João D.;
USARSKI, Frank (org.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2013. p.
129-142.