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Entre a jurisdição constitucional e o estado de sítio: o fantasma do


poder moderador no debate político-constitucional da Primeira
República.

Christian Edward Cyril Lynch1

Resumo: Ester artigo investiga as razões de resgate do conceito de poder moderador durante a
Primeira República. Nossa hipótese é a de que, além do desempenho deficiente da jurisdição
constitucional, ela se deve à assimilação progressiva, pelos republicanos, das críticas
monarquistas ao novo regime, e da tentativa de encontrar outras formas institucionais, capazes
fortalecer a autoridade do Estado, sem abdicar do regime democrático. O fracasso dessa
tentativa de restabelecer o poder moderador, como meio termo entre judiciarismo e
excepcionalidade, favoreceria a escalada autoritária que resultaria na instauração do Estado
Novo.

Palavras-chave: história constitucional, Primeira República, jurisdição constitucional, estado


de sítio, poder moderador, pensamento político brasileiro.

Title: Between constitutional jurisdiction and the state of siege: the ghost of moderating power
in the political debate of the First Republic.

Abstract: This article investigates why the concept of moderating power was revitalized during
the First Republic. Such a revival was made possible due to the gradual assimilation by
republicans of the critics to the new regime first elaborated by monarchists; the poor
performance of judicial review and the desire of nationalists to strengthen the authority of the
state without giving up the democratic regime. The failure of this attempt to restore the
moderating power as medium between judicial review and exceptionality favored the
authoritarian way of the Estado Novo.

Keywords: constitutional history, First Republic, constitutional jurisdiction, state of siege,


moderating power, Brazilian political thought.

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Gama Filho (UGF). Professor da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi pesquisador visitante da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e
do Centro de Pesquisas Políticas Raymond Aron (CPPRA/EHESS), em Paris. Autor de Brésil de la
monarchie à l’oligarchie - la construction de l'État, les institutions et la représentation politique (1822-
1930), publicado pela Hamattan em 2011.
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1. Entre a jurisdição constitucional e o estado de exceção: esboçando uma teoria do


poder moderador.

Do ponto de vista de uma teoria institucional, o poder moderador se insere


no quadro das instituições dotadas de uma discricionariedade exercida em nome do
soberano, mas constitucionalmente regulada. Antes de 1789, a filosofia política já havia
desenvolvido inúmeras reflexões sobre o lugar do poder discricionário dentro de um
governo de leis, republicano ou misto, tendo sido as mais famosas as de Maquiavel
(1997) [1518], Locke (1995) [1690] e Rousseau (1998) [1766], em torno,
respectivamente, da ditadura romana, da prerrogativa real e da ditadura e tribunato.
Depois da Revolução, o problema concreto da absorção do principio da soberania, na
sua antiga forma de unidade absoluta, na tradição de Bodin, Hobbes e Filmer, no quadro
do novo Estado de direito, isto é, do pluralismo e do limite ao poder social, parece ter se
resolvido na conformação de pelo menos três institutos: o estado de exceção, o poder
moderador e o controle jurisdicional da constitucionalidade. Os três versam sobre a
possibilidade de emprego discricionário do poder publico, isto é, desgarrado, em maior
ou menor grau, dos limites ordinariamente impostos pelo Estado de direito. Nos três
casos, esse exercício de poder é exercido em nome do soberano, descabendo em regra
qualquer possibilidade de apelo dessa decisão. O exercício dessa discricionariedade
suprema somente se justifica na medida em que a própria lei a admite, no interesse da
preservação do povo e da observância de sua vontade, expressa na constituição. Passo a
uma breve descrição da natureza dessas instituições e, entre elas, a do poder moderador,
que representa, por assim dizer, um meio termo entre ambas.

O estado de exceção é a possibilidade, prevista pelo próprio soberano, de se


suspender parte da constituição, isto é, das regras gerais de funcionamento da
comunidade política, em situações de necessidade excepcional em que a própria
existência do povo se encontra em perigo, concentrando-se o poder nas mãos de uma
única autoridade. Se a normalidade é a base de toda a norma, a própria norma deve
prever a eventualidade de casos anormais, que deverão ser tratados de forma anômica,
isto é, mediante decisão discricionária. Aqui são os velhíssimos princípios romanos
necessitas legem non habet e salus populus suprema lex esto que põem a nu todo o
essencialismo da política enquanto decisão soberana. As referências aqui são de Carl
Schmitt, para quem é soberano « aquele que decide sobre o estado de exceção »
3

(Schmitt, 1994), sendo aquele que exerce a ditadura em seu nome um ditador
comissário (Schmitt, 1992). A característica da sua legislação é a integração de uma
legalidade de períodos excepcionais, na conjugação de três características: finalidade
superior, circunstâncias excepcionais e derrogação da legislação de « normalidade »
(Saint-Bonnet, 2002). Assim, é no seu próprio interesse que o Estado de direito permite
a sobrevivência, em boa e devida forma, de uma manifestação tão tipicamente soberana,
na sua forma tradicional, isto é, una e discricionária. Entretanto, os poderes
extraordinários conferidos ao chefe são delimitados pelas condições estabelecidas pela
constituição, que determina as circunstâncias nas quais, e o tempo pelo qual, suas
próprias disposições poderão ser derrogadas, o que em geral dependera da duração da
situação excepcional. Esse instituto, que existia desregulamentado no Antigo Regime, e
servira aos propósitos de construção do Estado sobre a fragmentação política medieval,
é hoje, a mais das vezes, exercido pelo Chefe de Estado ou de governo, sob aprovação
prévia ou ratificação posterior do Parlamento. Embora não haja aqui lugar para
desenvolver o argumento, penso ser possível enquadrar, na categoria da
excepcionalidade, os poderes que têm os chefes de Estado ou governo para legislarem
por decreto-lei, como no Brasil, na Itália ou na Dinamarca.

Quanto ao controle jurisdicional de constitucionalidade, ele é exercido por


uma corte ou conselho, como poder à parte ou cúpula do judiciário, com poder de
excluir do ordenamento jurídico normas produzidas pelos demais poderes, desde que ele
as entenda incompatíveis com a vontade soberana expressa na constituição. Essa
decisão, via de regra, tem o poder de vincular toda a administração publica, que é
obrigada a seguir o mesmo entendimento. Assim, o juiz constitucional se faz intérprete
da vontade do soberano e, com base na sua interpretação e em seu nome, toma a decisão
que faz dele uma espécie de legislador negativo. Embora os estudos sobre a natureza
desse instituto sempre primem por apresenta-lo como a antítese do estado de exceção,
em nome da conservação dos direitos individuais ou difusos contra os excessos do
poder, penso que é mais produtivo apresenta-lo como estando na extremidade de uma
mesma balança de discricionariedade exercida em nome do soberano. Ambos velam
pela preservação da vontade do soberano, ambos desempenham papéis eminentemente
políticos, ambos fazem uso de um poder discricionário normativamente regulado. O que
varia entre as instituições que exercem esse poder é o grau de discricionariedade, que se
torna muitíssimo mais reduzido no caso da justiça constitucional, mas que, a despeito
disso, subsiste em margem bastante apreciável. Essa redução na discricionariedade,
4

aliás, se explica pela pressuposição de que a ameaça à vontade soberana, embutida nos
casos submetidos a uma corte constitucional, apresenta características distintas daquelas
que permitem a decretação do estado de exceção, sobretudo no que tange à sua urgência
e potencialidade danosa. Nem por isso, isto é, por se tratar de um mecanismo jurídico de
moderação institucional, a decisão perde, entretanto, seu caráter político e
discricionário. Quem o reconhece é o próprio Hans Kelsen, criador do modelo de corte
constitucional moderna, titular do poder de exercer o controle concentrado de
constitucionalidade. Segundo ele, quanto mais elevado o topos jurídico a ser decidido
pelo tribunal, mais político e sujeito a interpretações abertas – e, portanto,
discricionárias - ele estará2.

Entretanto, o que o controle jurisdicional de constitucionalidade perde em


margem de discricionariedade, ganha em periodicidade de seu exercício cotidiano,
através da possibilidade de propositura de ações especificas por parte de membros
legitimados do soberano. É o que alias também explica a adoção de procedimentos mais
elaborados, pautados pelo contraditório, próprios do direito e, em particular, do direito
processual. Historicamente, esse instituto encontrou suas formas sucessivas de exercício
nos modelos da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal Constitucional austríaco,
copiados mais ou menos por toda a parte. Na querela sobre a identidade do instituto com
o Estado de direito ou com a soberania, cabe cada vez menos discordância doutrinaria
acerca do fato de que o controle de constitucionalidade é modo de expressão da vontade
geral, e da soberania popular. Se a lei votada não exprime a vontade geral senão na
medida em que for conforme a constituição, o controle jurisdicional da
constitucionalidade aparece necessário à expressão da vontade do soberano, pois, sem a
efetividade do respeito à constituição, a lei votada não representa aquela vontade.
Assim, o juiz constitucional seria o intérprete da vontade do soberano, vez que ele
enuncia, pelo seu ato de jurisdição, os princípios contidos na constituição3.

2
« O carater politico da jurisdição é tanto mais forte quanto mais amplo for o poder discricionario que a
legislação, generalizante por sua propria natureza, lhe deve necessariamente ceder (...). Na medida em
que o legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites, interesses contrastantes entre si, e
decidir conflitos em favor de um ou de outro, esta lhe conferindo um poder de criação do direito, e
portanto um poder que da à função judiciaria o mesmo carater 'politico' que possui – ainda que em maior
medida – a legislação » (Kelsen, 2003).
3
« O juiz constitucional se apresenta, portanto, como o 'representante' encarregado de exprimir a vontade
do soberano inscrita nos textos constitucionais. Ora, esses textos têm por autor 'o povo soberano (...)',
soberano ficticio suposto impor, ao cabo do tempo, sua vontade constituinte aos poderes constituidos.
Esse 'povo soberano constituinte ' correspondera ao 'povo eleitoral' que designa seus representantes
politicos ? (...) O constitucionalismo supõe que a vontade do soberano dure, que ela seja continua. (...) O
juiz constitucional reflete aos parlamentares a imagem de um representante que deve respeitar a
constituição. (...) O contrôle de constitucionalidade permete assim à vontade do 'povo constituinte' se
impor exteriormente aos poderes constituidos » (Blachèr, 2003).
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Por fim, o poder moderador acha-se num ponto médio, a meio caminho
entre o estado de exceção e o controle jurisdicional na constitucionalidade. A existência
de um poder neutro, acima dos demais poderes (executivo, legislativo e judiciário),
provou-se, no decorrer da Revolução Francesa, um instrumento indispensável para se
garantir o equilíbrio constitucional de um Estado moderno. Esse Estado, se por um lado
deveria aceitar a premissa de que era licito a cada individuo perquirir seus próprios
interesses particulares, e fazê-los representar politicamente, acabava, porém, balançado
em seu equilíbrio pelos entrechoques constantes desses interesses no seu interior. Uma
vez que, entre estes, não havia arbitro ultimo, os conflitos privatísticos instalados no
âmbito dos poderes políticos tendiam a degenerar em convulsões institucionais que,
extrapolando os limites jurídicos, resvalavam para o golpe e a consequente ditadura de
um interesse sobre os demais. A base liberal do sistema político ficava assim
comprometida pelo próprio livre desenvolvimento de seu principio de autonomia
individual. Os contemporâneos da Revolução Francesa entenderam que seria possível
evitar esse desfecho se houvesse, no interesse coletivo, acima desses representantes dos
apetites particulares, um poder arbitral, chamado neutro, régio ou preservador,
encarregado de agir discricionariamente em hipóteses legalmente previstas de crise
política, dentro porem de estreitos limites, para evitar as ameaças à ordem
constitucional, enquanto expressão da vontade soberana, desarmando as crises
institucionais4.

Essa arbitragem faria desse poder preservador uma espécie de « poder


judiciário » dos demais poderes políticos, o que por si já evidencia sua proximidade
com o controle jurisdicional de constitucionalidade. Ele deveria ser apartidário e, como
tal, representativa da unidade e da tradição nacionais. Se ele goza de maior grau de
discricionariedade em relação ao controle de constitucionalidade, em compensação ele
obedecesse ao pressuposto de que as crises políticas, de desencontro entre parlamento,
gabinete e opinião publicam, devem ser sensivelmente mais raras do que edições de leis
ou decretos contrários à constituição, que ocasionam o controle jurisdicional. Por outro
lado, a natureza do conflito político com que o poder moderador tem que se deparar é
diverso, também, daquele submetido a uma corte constitucional. A mais das vezes, um

4
“Em todos os governos, é preciso que haja uma autoridade, não ilimitada, mas discricionária. Essas duas
coisas foram confundidas; e dessa confusão resultaram muitos males. É preciso que essa autoridade
discricionária jamais se dirija aos homens, pois os homens devem sempre estar a salvo do arbítrio. Ela
deve dirigir-se aos poderes e deve retornar às mãos de quem não possa jamais apoderar-se deles ou deixá-
los às suas criaturas. Assim, o poder preservador não pode ser encarregado de nenhuma eleição, para que
ele jamais tenha interesses a desbancar. Assim, sua autoridade discricionária será puramente
preservadora » (Constant, 1991).
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conflito entre legislativo e executivo cria um impasse político de tal ordem, num clima
de mutua animosidade, sem que nenhum dos dois poderes, contudo, esteja incorrendo
numa ilegalidade que possa ser sanada por meio de provocação de um tribunal
constitucional. Esse fato não torna menor a necessidade de desarma-lo, em beneficio da
governabilidade e do equilíbrio do sistema. Pode-se dizer, portanto, que o poder
moderador exerce um controle, não jurisdicional, mas político, da institucionalidade,
desempenhando um papel que, sendo político como o estado de exceção, tem fins de
equilíbrio constitucional, como a justiça homônima.

Ao contrario do que se pensa, o poder moderador nem é uma criação


arbitrária do inicio do século XIX, nem desapareceu do cenário institucional. A reflexão
desenvolvida na época, e alias vinculada tanto aos seus institutos irmãos do estado de
exceção e da justiça constitucional, mantém toda a sua atualidade como forma de pensar
o político, como demonstram as obras contemporâneas de Marcel Gauchet (1995),
como continuam a dar conta do papel dos chefes de Estado onde estes não se
confundem com os de governo, ou seja, em países de sistema parlamentar ou
semipresidencial. Seja ele monarca constitucional ou presidente da Republica, entre
suas atribuições típicas encontram-se as de fazer graça, dissolver o parlamento e nomear
e demitir ministros5. O exercício deste poder pelo chefe do Estado o arma de poderes
contra classe política, em nome da soberania popular, quando cessa a corrente entre
ambas. Nesse sentido, ele se arvora em verdadeiro representante da unidade e
permanência da nação, pairando acima dos interesses contingentes e fiscal da atividade
dos representantes imediatamente eleitos do povo, no interesse deste, como alias
enunciam diversas constituições, como a francesa, a italiana, a espanhola, a grega, etc.
Ele goza, no exercício de suas funções, de um poder simbólico que dificilmente pode
ser equipado ao de um tribunal, poder este que é um resquício, axiologicamente
neutralizado, da antiga pregnância da ideia de unidade do corpo social, outrora
garantido pela estruturação social do religioso, a partir de uma concepção divina de
unidade do universo, que foi progressivamente laicizada na figura do monarca absoluto
(Gauchet, 1985). A neutralização do poder no cume das instituições corresponderia à

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Do ponto de vista historico, o chefe de Estado republicano, nesses paises, é apenas o sucessor do
monarca constitucional, exercendo suas funções a partir de uma legitimidade nova, isto é, a democratica.
Essa filiação é bastante clara, como demonstram as circunstâncias fortuitas de seu surgimento na França,
na década de 1870, bem como o debate que o acompanhou então. Refiro-me aos primeiros anos da
Terceira Republica, denominada « republica dos duques », onde a restauração monarquica, desejada pela
Assembléia Nacional, não se efetuou pela incapacidade dos monarquistas de chegarem a um consenso
sobre qual das três casas reais disponiveis – a de Bourbon, a de Orléans e a de Bonaparte – deveria ocupar
o trono. Montou-se então uma presidência da Republica, que se pretendia provisoria, onde um membro da
Assembléia, por ela eleita, faria as vezes do rei.
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manutenção das expectativas de exercício delegado e ocasional da soberania por um


símbolo de sua unidade e a do próprio Estado6.

Esses três institutos jurídicos, ao passarem da teoria à pratica institucional,


adquirem conformações muito diversas, que variam conforme o lugar, o tempo e a
experiência concreta de cada pais. Quanto ao lugar, vemos estados de exceção de maior
ou menor latitude, decretados com participação de mais de um órgão político ou não;
temos controles de constitucionalidade exercidos de forma concentrada numa só corte,
ou difusa pelo aparelho judiciário, ou mesmo mista, como no Brasil, incidindo a
posteriori ou a priori quanto ao momento de promulgação das leis (Favoreu, 1996);
temos poderes moderadores exercidos por assembleias, conselhos ou chefes de Estado,
com diferentes atribuições. Por outro lado, ha países sem estado de exceção (Bélgica),
sem poder moderador (Suécia), sem controle de constitucionalidade (Ucrânia), sendo
porém pouco provável encontrar-se um pais de tradição ocidental que não tenha nenhum
deles. A mesma variedade se observa quanto à interpretação do lugar da
discricionariedade dessas instituições no decorrer do tempo, isto é, conforme foi se
difundindo e sedimentando a modernidade política de caráter liberal democrático.
Assim, o estado de exceção, que é herdado do Antigo Regime e enquadrado
constitucionalmente, é, dos três, o instituto privilegiado em períodos de periclitarão do
Estado, como demonstram as passagens do absolutismo para o liberalismo, no inicio do
século XIX, e a passagem do Estado liberal para o liberal-democrático, no inicio do
século XX. Em fases de estabilização relativa das instituições, passa-se a privilegiar
mecanismos concretos de moderação institucional, para além da separação de poderes,
tateando-se uma forma de controle político da constitucionalidade (Gauchet, 1995) 7.
Quanto ao controle jurisdicional de constitucionalidade - existente já nos Estados
Unidos no inicio do século XIX -, depois de cem anos de tentativas, durante os quais ele
foi sem êxito atribuído, por exemplo, a um senado8 ou a uma corte de cassação, ele

6
Embora se diga que a reflexão de Constant decanta, na realidade, nas atuais formas do contrôle
jurisdicional de constitucionalidade, entendo que a preservação deste poder na pessoa do chefe de Estado
não invalida a aplicação contemporânea de sua teoria, seja no seu modo primeiro, puramente liberal
monarquico, seja na sua forma segunda, democratico-republicana.
7
Termômetro daquela primeira passagem foi a polêmica politico-intelectual em torno da interpretação do
poder discricionario do chefe de Estado, de acordo com o art. 14 da carta francesa. Travada entre 1829 e
1830 pela imprensa, dividida etre ultras e liberais, defendiam os primeiros que aquele artigo concedia ao
monarca um verdadeiro poder de exceção, na qualidade de depositario da soberania, na hipotese de crise
institucional com o parlamento. Os liberais, por outro lado, não viam no artigo mais que um poder
regulamentar do rei, que, no seu papel moderador, não poderia jamais pretender legislar sem a
colaboração do parlamento, devendo, ao contrario, satisfazer-se em nomear ministros que granjeassem o
apoio da daquela maioria (Waresquiel & Yvert, 2002) (Saint-Bonnet, 2002) (Laquièze, 2001).
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A idéia de que o senado exerce um poder moderador encontra-se ja em Montesquieu (1997), como meio
de prevenir conflitos entre chefe do executivo e câmara baixa. Tornou-se justificativa de existência de
8

finalmente se estabelece na Europa após a guerra de 1914 e triunfa em definitivo depois


da de 1939. Foi nesse período áureo de estabilidade política e social que se começou a
admitir que os próprios cidadãos ou associações suas pudessem, em nome da vontade
soberana, provocar diretamente um órgão que lhes poderia fazer o papel de intérprete
daquela vontade, distribuindo justiça a partir dessa medida – e isto, para além do
controle político exercido pelo chefe do Estado9.

Essas alterações no tempo, culminando na difusão e sedimentação do ideal


de uma sociedade amplamente liberal-democrática e institucionalmente estável, com a
consequente rareamento de situações excepcionais (ao menos nos países centrais),
acarretaram assim transferências sucessivas de prestigio para cada uma das três
instituições, correspondentes a cada etapa de concretização do processo de efetiva
apropriação do exercício da soberania pelo povo. Entretanto, é importante ter em mente
dois fatos: primeiro, que isso não significa que tal situação, nos países centrais, não
possa se alterar com a eventual mudança das condições políticas nacionais ou
internacionais; segundo, que a sucessividade de seu prestigio não importa em sua
recíproca exclusão, coexistindo ao revés os três institutos jurídicos no desempenho de
seus diferentes papéis, na maior parte dos países do mundo. O prestígio de cada uma
dessas instituições é assim indicador de determinadas tendências políticas de cada país,
num dado momento. Medir seu grau maior ou menor numa determinada sociedade, bem
como o seu efetivo desempenho na manutenção das instituições liberais e democráticas,
pode servir tanto de instrumento para aferir o estado de maturidade de suas elites, como
o seu eventual descompasso com a morfologia de poder do país que comandam. A partir
de um raciocínio assim definido, onde as três instituições servem de balizas sucessivas,
penso ser possível, através do rastreamento dos debates políticos e jurídicos que lhes
concernem em cada época, retraçar ou contar de outra forma os caminhos e

uma câmara alta no modelo presidencialista norte-americano. Na verdade, a moderação ai não se daria
pelo exercicio discricionario de poderes moderadores, mas pelo simples lugar da instituição entre dois
poderes mais ativos, servindo de filtro da atividade de ambos, na logica dos « freios e contrapesos ». A
idéia de uma câmara alta como poder moderador propriamente dito pertence à França, quando Constant ,
Sieyès e outros buscaram elucidar a quadratura do circulo institucional no periodo do Termidor (Constant,
1991) (Dupuy & Morabito, 1995) (Gauchet, 1995) (Bredi, 1988). Sieyès elaborou um projeto segundo o
qual o contrôle politico e jurisdicional seria exercido pelo senado, mas Napoleão Bonaparte alterou
bastante o projeto a ponto de desfigura-lo, na constituição do Consulado. Tornou-se, porém, referência
para o regime bonapartista, a ponto de ser ressuscitado no Segundo Império, nunca tendo sido capaz de
exercer moderação alguma.
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O termômetro dessa segunda passagem, do Estado liberal para o liberal-democratico, foi o debate em
torno do alcance e natureza do papel do chefe de Estado de Weimar enquanto guardião da constituição e
sobre a conveniência de ser tal função, ao contrario, exercida por um tribunal. As estrelas do debate foram
Carl Schmitt (1998) [1931] em O guardião da constituição e Hans Kelsen (2003) [1931] em sua resposta
Quem deve ser o guardião da constituição ?, exatamente trinta anos apos a polêmica envolvendo liberais
e ultras na França dos fins da Restauração.
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descaminhos dessas nações rumo à terra prometida da modernidade política


democrática. Embora a forma como essas instituições se enraízam na realidade, como
vimos, possa fazê-las adquirir colorações algo diversas, cada tradição nacional as
moldando historicamente conforme suas próprias necessidades, o importante é
identificar a forma como seus conceitos se alteram no decorrer do tempo,
reconstituindo-se a sua trajetória peculiar.

2. Fim do Império. O primado do poder moderador como forma de funcionamento


das instituições. O conceito de poder moderador no debate político no fim do
regime.

A constituição imperial brasileira de 1824 não previa nem comportava um


controle jurisdicional de constitucionalidade, que de resto ainda inexistia na Europa.
Inspirado pelo direito constitucional francês, o poder judiciário, ainda que teoricamente
equiparado ao executivo e ao legislativo, na prática estava sujeito ao executivo, na
pessoa de seu ministro da Justiça. O Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art. 163,
era uma corte de cassação, que apenas tinha competência para rever julgados em
recursos de revista. O supremo tribunal de justiça não pode declarar a
inconstitucionalidade das leis ou decretos; só o próprio parlamento, guardião da
constituição (Calmon, 1964:2904). Seus acórdãos não tinham sequer o poder de
uniformizar a jurisprudência nacional, porque a constituição não lhe havia conferido o
direito de “tomar assentos”, isto é, editar súmulas, o que só veio a ocorrer em 1875.
Durante a discussão, no Senado, do projeto de lei que criaria o Supremo Tribunal de
Justiça (1828), o Marquês de Caravelas, depois de salientar querer um Judiciário
independente, observaria, contudo, não desejar excessos, tal como os monarquianos
franceses e os partidários do relatório Thouret, em 1791: “Eu quero viver seguro na Lei,
e não na esperança de que o Juiz há de proceder desta ou daquela forma » (AS,
1828,I:55). Alguns dias depois, o irmão do Marquês, Francisco Carneiro de Campos,
seria ainda mais claro nessa lógica: « as bases da lei são fundadas mesmo nos princípios
do Tribunal de Cassação, que é conceder revistas, quando se ver que foi ferida a lei na
sua letra, e quando as fórmulas em toda a qualidade de processos forem dispensadas »
(AS, 1828, II:56). Além disso, as garantias conferidas aos juízes de direito eram
precárias: se o art. 51 da constituição conferia vitaliciedade aos juízes de direito, não
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lhes era conferida, porém, a inamovibilidade, o que permitia ao partido que estivesse na
posse do poder executivo remove-los conforme sua conveniência política, o que só foi
atenuado pela resolução n. 559 de 28 de junho de 1850, que elencou as hipóteses de
remoção em numerus clausus (São Vicente, 1958:324). Além disso, compreendia-se
que o poder executivo podia, excepcionalmente, aposentar os juízes de direito, como
ocorreu em 1856 em Pernambuco, no episódio do desembarque de Serinhaém. Na
ocasião, o governo imperial aposentou compulsoriamente desembargadores que, por
injunções da política provincial, haviam absolvido importantes personalidades que se
achavam comprovadamente comprometidas com a continuação do tráfico negreiro,
proibido pela lei Eusébio de Queirós (Nabuco, 1997:220). Além disso, a separação de
poderes foi se aperfeiçoando somente ao longo do século, pois que era permitido aos
magistrados ocuparem cargos legislativos e executivos, sendo estabelecidas as
incompatibilidades somente a partir da década de 1850. Por fim, havia certas figuras,
como o juiz municipal, que, encarregado de causas menores, não gozava sequer de
vitaliciedade. Também não havia exigência de concurso público. Todos estes doestos,
porém, devem ser, como tudo, compreendidos na mentalidade da época, pois, conforme
vimos no primeiro capítulo, o controle jurídico de constitucionalidade ou a prevalência
prática do direito sobre a política não tinham lugar na Europa continental no período. O
poder judiciário era dependente do executivo também na França, na Espanha e em
Portugal.

Por outro lado, a constituição previa, em seu artigo 179, XXXIV e XXXV, a
possibilidade de decretação do estado de exceção, em casos de rebelião ou invasão
estrangeira. Ele deveria ser decretado por ato da Assembleia e apenas na ausência desta,
em caso de perigo iminente, poderia o governo fazê por conta própria, submetendo em
seguida seus atos à inspeção daquela. Havia leis ordinárias que regulavam a ação dos
poderes públicos, permitindo-lhes “dar buscas de dia, e até mesmo de noite; fazer sair
para fora indivíduos que têm ali domicílios, sequestrar armas e munições, e proibir
ajuntamentos e publicações impressas”. Entretanto, havia também legislação repressiva,
prevista no Código Criminal, que dispensava a necessidade de suspenderem-se as
liberdades civis (São Vicente, 1958:433). Embora se possa dizer que a lógica da
“salvação pública” tenha predominado no funcionamento das instituições políticas para
debelar as inúmeras insurreições, nos primeiros vinte e cinco anos do regime
representativo instituído em 1824, o fato é que, mesmo durante este período, o estado de
exceção somente foi decretado em províncias conflagradas e jamais em todo o território
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nacional. Nem mesmo durante a guerra do Paraguai fugiu-se a esta regra. Ainda assim,
como forma de controle social ou equação autoritária de crises políticas, o estado de
exceção foi rareando durante o Segundo Reinado, sobretudo depois da última revolta
provincial, em 1848, a ponto de jamais ter constituído, durante o período, tópico
relevante de controvérsia constitucional, o que viria a ocorrer somente sob a República.

Assim, o grande eixo sobre o qual se apoiaram as instituições políticas


brasileiras durante o Segundo Reinado foi o poder moderador, previsto explicitamente
no art. 98 e seguintes da constituição como um quarto poder e cujas principais funções
de controle político da constitucionalidade eram as de anistiar, dissolver a câmara dos
deputados, nomear e demitir ministros, escolher senadores provinciais a partir das listas
dos mais votados. Embora a recepção jurídica do conceito, através da doutrina de
Benjamin Constant, tal como exposta no Cours de politique constitutionnelle, tenha sido
tão fiel quanto era possível fazê-lo no Brasil, a doutrina que informara essa recepção, na
verdade, indicava que a intenção dos conselheiros da Coroa era a de assegurar a
supremacia desta, enquanto poder executivo, sobre o legislativo. A constituição
sujeitara ainda o exercício dos atos do poder moderador à prévia oitiva do Conselho de
Estado, de livre nomeação do Imperador, de forma que eles não eram suscetíveis de
controle ministerial ou parlamentar. Tanto o poder moderador como o conselho de
Estado foram, assim, combatidos durante o Primeiro Reinado e a Regência, a ponto de o
segundo ser extinto na reforma constitucional de 1834 e o primeiro quase ter tido
idêntica sorte, depois de ter tido suas atribuições cerceadas pela lei que regulou a
atuação do poder público durante a minoridade de Dom Pedro II. O « regresso », porém,
detonado pela ascensão do partido conservador, em 1837, e o golpe da maioridade, em
1840, asseguraram não somente o restabelecimento do poder moderador com todas as
suas garantias, como o do conselho de Estado, que voltou à vida por uma lei ordinária.
Os liberais se revoltaram em 1842, em Minas Gerais e São Paulo, temendo que os
conservadores, no poder, pretendessem com a nova lei tornar o conselho redivivo num
bastião que assegurasse seu domínio exclusivo do poder, o que não ocorreu, conforme
ficou comprovado em 1844 com a ascensão dos liberais e a posterior aceitação do
rodízio dos partidos, a partir da mediação do poder moderador. Além de garantir essa
mediação, mediante os poderes de dissolução da câmara e de nomeação e destituição de
ministros, Dom Pedro II, por sua vez, tratou de compor o Senado e o Conselho de
Estado com as principais lideranças de ambos os partidos, além de outros membros, de
índole neutra, de reputação ilibada e saber conhecido. A lógica da « salvação pública »,
12

que justificara a adoção do poder moderador no Primeiro Reinado, foi assim posta a
serviço da estabilidade institucional, à exemplo das demais monarquias constitucionais
europeias.

Embora Benjamin Constant tivesse sido claro ao frisar que, sem eleições
honestas, o sistema representativo não passava de uma ficção – e com ele, todo o
arcabouço do Estado liberal por ele delineado (Constant, 1980:273), as fraudes foram
uma característica de todo o processo político desde pelo menos 1840 e eram
promovidas pelos partidos que estivessem no poder para assegurar seu predomínio
quase que incontrastável, o que ficava patente nas denominadas “câmaras unânimes”,
i.e., eleições legislativas onde a oposição mal conseguia cinco cadeiras em cem. Isto
importa afirmar que a alternância dos partidos no poder – representantes, por
excelência, dos interesses particulares na esfera pública – não seria possível pelo voto
nacional, mas somente se houvesse a intervenção de um poder supraoligárquico que
pusesse deliberadamente um fim ao domínio de um desses partidos e chamasse o outro
ao poder. Por outro lado, os partidos, constituindo verdadeiras frentes políticas
fracionadas entre diversos caciques, impunha que o monarca escolhesse algum deles.
Isso significa que não somente o poder moderador decidia juntamente com o Conselho
de Estado quando era hora de pôr fim a uma “situação” partidária, como ele deveria
escolher qual o chefe que deveria ser convocado. Ainda que houvesse praxes nesse
processo, envolvendo consultas ao próprio primeiro-ministro demissionário, sempre
ficava reservada ao monarca a possibilidade de guiar o processo conforme entendesse
mais adequada.

Tais atribuições, consideradas legítimas pela maior parte da elite política,


pelo menos desde 1844, voltaram contudo a ser questionadas de modo mais acerbo a
partir de 1868. O motivo principal foi a interferência mais direta que o poder moderador
estaria a exercer nas questões cruciais da agenda brasileira, como a encaminhamento da
questão da escravidão e a da reforma eleitoral. A primeira questão dizia respeito a toda
grande propriedade rural, que era o principal sustentáculo do trono; e à segunda, à
necessidade de se reduzirem as fraudes, a fim de garantir ao partido apeado do poder
uma minoria digna nas assembleias legislativas e na Câmara de Deputados, de forma a
reduzir a grita dos que, na oposição, se viam privado dos cargos públicos. A
interferência da Coroa se traduzia, concretamente, no suporte que ela daria a gabinetes
que teriam perdido a confiança parlamentar, preferindo, a pedido do primeiro-ministro
em minoria, dissolver a Câmara a demitir o gabinete, ou forçando a exoneração de um
13

gabinete que se recusasse a programar uma política que o Imperador julgasse


indispensável no momento. Tanto no processo de abolição como no da reforma
eleitoral, o Imperador agiu de modo a apoiar gabinetes reformistas que, no seu entender,
mereciam tal apoio a despeito da fraqueza com que se encontrava em relação às suas
bases de sustentação parlamentares. Tanto em 1871 (Rio Branco) como em 1884
(Dantas), a Coroa apoiara gabinetes abolicionistas contra a maioria parlamentar do
próprio partido do primeiro-ministro. Em 1888, ela demitira o primeiro-ministro
escravocrata para convocar outro, abolicionista. Em 1878, foi também o monarca quem
tomou a iniciativa de chamar ao poder os liberais, para que fizessem a reforma
eleitoral10.

Todas essas ações envolviam, em última análise, divergências de pontos de


vista e interesses entre a Coroa e as maiorias políticas, que não tinham como resistir à
vontade da primeira legalmente, já que, pelo fato de serem as eleições fraudadas, o
grupo político do gabinete mantido quase que fatalmente faria a nova maioria, alijando
os opositores da véspera. Bem é verdade que, de um modo geral, os partidos haviam se
acostumado a ficar alguns anos no ostracismo dos cargos governamentais, quando
apeados do poder em prol do outro. Era de praxe que invectivassem contra o adversário
e por vezes chiassem contra o poder moderador, responsável pela inversão. Entretanto,
agora havia novos agravantes: não só se tratava do mais delicado dos temas – a abolição
-, como este mesmo fato levava ambos os partidos a se dividirem, mesmo quando
tinham absoluta maioria na Câmara, o que obrigava o Imperador a sustentar o grupo
minoritário reformista contra o majoritário, sendo que as novas eleições ameaçariam
este último com o alijamento das vagas de deputado. A responsabilidade pelas ações dos
ministérios começou a ser então transferida, do chefe do gabinete, para a mão dinástica
que o apoiava. O programa reformista não era mais associado ao partido, ou a uma
seção de determinado partido, mas à própria vontade da Coroa. Essa nova realidade
política teve reflexos importantes na redefinição do conceito de poder moderador, que
passou paulatinamente a ser compreendido como « poder pessoal », associado, ainda, à
centralização político-administrativa e, por fim, à própria monarquia. Vejamos cada um
desses aspectos.

10
“Do choque ou divergência entre a Coroa e os ministérios surgiram mudanças políticas que
contribuíram para a mais rápida solução do problema e também para o declínio do sistema imperial. Ao
invés, então, de ver-se legitimado pela atuação reformista, pela eficácia em solucionar problemas, o
sistema imperial perdeu a legitimidade que conquistara. É que as principais reformas que promovera
atendiam a interesses majoritários da população que não podia representar-se politicamente” (Carvalho,
1996: 296 e 298).
14

A expressão « poder pessoal », bem como seu equivalente menos frequente,


« imperialismo », havia sido introduzida no Brasil, como a maior parte do repertório
conceitual político brasileiro da época, por meio da literatura afim produzida na França.
Os liberais franceses dos oitocentos sustentavam que, em matéria governamental, o rei
deveria deixar a última palavra ao seu gabinete, por se tratar de uma comissão extraída
do parlamento, órgão representativo da vontade popular. Ambas as expressões foram
incorporadas pela esquerda liberal brasileira, que se sentiam à vontade para comparar o
Império de Dom Pedro II com o de Napoleão III, a despeito de todas as flagrantes
diferenças entre ambos os regimes – o primeiro, liberal; o segundo, autoritário. Embora
Bernardo Pereira de Vasconcelos e Paula Sousa já falassem, no final da década de 1840,
na distinção entre a monarquia real e a monarquia pessoal (Sousa, 1988:202), como
distintivas de poder absoluto e poder legal, a expressão « governo pessoal » firmou-se
depois. Ela já consta, por exemplo, da Circular dedicada aos senhores eleitores de
senadores pela província de Minas Gerais, de Teófilo Otoni, publicada em 1860. Já o
termo imperialismo ficaria célebre por ser a idéia-força de O conselheiro Francisco
José Furtado – biografia e estudo de história política contemporânea, escrita por Tito
Franco de Almeida e publicada em 1867. Tanto uma como a outra remetiam às
experiências pretéritas dos Stuarts, de Jorge III da Inglaterra e de Carlos X da França e
significavam « a aspiração ao poder absoluto em um país livre (...), desprezando a
constituição e nulificando a nação representada em seu parlamento » (Almeida,
1944:13). A queda do terceiro gabinete de Zacarias de Góis e Vasconcelos, em julho de
1868, motivada pela negativa do Imperador de, no exercício do poder moderador,
aceitar a indicação do candidato ministerial ao Senado, provocou o retorno dos
conservadores ao poder, e a crise política desencadeada pelo retorno dos liberais aos
bancos da oposição, quando mais firmes se sentiam no poder, acabou por difundir e
vulgarizar as duas expressões (« poder pessoal » e « imperialismo »), que constam de
praticamente todas as brochuras e panfletos liberais da época. Entre outros que a
adotariam, encontra-se, em 1874, o próprio Rui Barbosa (Oliveira, 1987) e Tavares
Bastos (Bastos, 1976).

A forma como tais conceitos se difundiram então, porém, não era a mesma
como eles até então vinham sendo empregados. Até então, os autores buscavam
distinguir o instituto do poder moderador e a pessoa do Imperador, tanto do fenômeno
do imperialismo, quanto do governo pessoal. Otoni, por exemplo, afirmava estar
“convencido de que no ânimo constitucional do Sr. D. Pedro II não se aninha a mais
15

remota ideia de usurpação” (Otoni, 1913). Mesmo Tito Franco, ainda que numa chave
muito mais indignada, em nenhum momento cita diretamente o Imperador, falando que
os males que apontava decorreriam do “imperialismo”. O debate que, a este respeito,
tradicionalmente ocupava a arena pública, era travado, desde 1837, em torno da
existência ou não de referenda ministerial nos atos praticados pelo poder moderador,
dividindo-se a este respeito os liberais, como o sobredito Teófilo Otoni (Otoni, 1913) e
o próprio Zacarias de Góis e Vasconcelos (Vasconcelos, 1978), de um lado, e
conservadores, como o Visconde de Uruguai (Uruguai, 1960) e Brás Florentino de
Sousa (Sousa, 1978) 11. Nenhum deles questiona a existência do poder moderador, nem
da monarquia. Os liberais radicais, que sustentavam a existência do « poder pessoal »,
atribuíam os seus eventuais os desmandos, não ao Imperador, mas à « subserviência dos
ministros e cortesãos, que proclamam uníssono a onipotência imperial » (Otoni,
1913:216). O jovem Tavares Bastos de Os males do presente e as esperanças do futuro,
publicado no ano seguinte à Circular de Otoni, ainda não destoava dele, como
entretanto faria depois12.

De 1868 em diante, porém, essa distinção começou a se tornar menos


frequente. Foi a partir de então que, « desmascarado », o poder moderador tornou-se
sinônimo de poder pessoal, isto é, de poder ilegítimo (embora legal) do Imperador na
arena política13. É certo que haveria quem, mais clarividente, reconhecesse que o poder
da Coroa advinha, não dos maus desígnios do Imperador, mas das eleições fraudulentas,
cuja responsabilidade não lhe cabia. Era o caso de José Antônio Saraiva, senador liberal,

11
Embora Portugal também possuísse poder moderador, o debate sobre a existência ou não de referenda
esteve longe de ter o alcance que teve no Brasil. A discussão portuguesa sobre o poder moderador era
influenciada pelos próprios livros de Zacarias e Uruguai, o contrário não ocorrendo aqui. Somente em
1885, por meio de um ato adicional, a carta portuguesa de 1826, que era cópia da brasileira, impôs
expressamente « a responsabilidade ministerial pelos atos do poder moderador, bem como limites
temporais para a convocação e a dissolução da Câmara dos Deputados e da parte eletiva da Câmara Alta,
restrições ao direito de perdão e comutação de penas aplicadas e ministros de Estado”(Canotilho,
1998 :138). A falência do sistema parlamentar, porém, engendrou a restauração da discricionariedade
primitiva do poder moderador num terceiro ato adicional, onze anos depois.
12
« Falar de governo pessoal numa monarquia representativa é, antes de tudo, uma inverossimilhança,
porque nela é isto impossível. Com efeito, o sistema que nos rege é o da soberania nacional, isto é, do
país pelo país. (...) O ministério é, portanto, uma expressão nacional : sobre ele deve cair o peso do
governo, em toda a extensão da palavra (...). Certo, a Coroa tem, como tal, uma missão de maior alcance
que a do grande eleitor de Sieyès. Ela pensa, delibera, preside ; mas não pode obrar contra a consciência
da responsabilidade no ministro, contra o voto, que a faz efetiva, da soberania no parlamento (...). Além
de impossível, isso de governo pessoal é uma visão. Apontai-me os casos em que o príncipe, que
atualmente conduz os nossos destinos, tenha excedido dos limites de um imperador constitucional. (...)
Demais, considero fraqueza ou traição alegar-se o obstáculo de um governo pessoal » (Bastos, 1976 :39).
13
Refiro-me ao célebre discurso do sorites, do senador Nabuco de Araújo, quando da queda do gabinete
Zacarias e a ascensão do ministério conservador de Itaboraí, em 16 de julho de 1868, protestando contra o
poder moderador: “Quero apenas fazer um protesto (…), não sobre a legalidade do ministério atual,
porque em verdade a Coroa tem o direito de nomear livremente os seus ministros, mas sobre a sua
legitimidade. E vós concebeis a diferença que há entre legalidade e legitimidade” (Nabuco, 1998:764).
16

ao se referir ao “poder ditatorial da coroa”. Embora ele reconhecesse que “o Sr. D.


Pedro II tem de fato um poder igual ao de Napoleão III”, enquanto a origem desse
poder, na França, achava-se na constituição, no Brasil ele residia nas fraudes eleitorais:
“uma câmara legitimamente eleita dará fim a essa ditadura funesta ao rei, como ao
povo, e restabelecerá o equilíbrio entre os diversos poderes constitucionais” (In: Nabuco
de Araújo, 1979:46). No entanto, o fato é que a noção de « poder pessoal » era por
demais sedutora para os partidos que estivessem fora do poder, porque os isentava de
culpa perante os próprios adeptos pelo fato de, na oposição, se acharem privados de
cargos públicos. A retórica do « poder pessoal » também servia para ocultar a
responsabilidade dos partidos no falseamento da representação, devido às fraudes que
no poder praticavam a fim de garantirem a ocupação maciça dos cargos administrativos,
bem como para chantagear o Imperador e assim apressar o rodízio dos partidos no
poder. A responsabilidade não recaia assim sobre os partidos, mas sobre os caprichos ou
o absolutismo do Rei, que pretendia arruinar o sistema representativo. Embora alguns
liberais, como Tavares Bastos, reconhecessem que a atuação reformista da Coroa ia ao
sentido de modernizar o país, cumprindo o programa liberal, protestavam contudo que o
Imperador estava fazendo por via do despotismo ilustrado, esvaziando o partido que
deveria promover as reformas, corrompendo as instituições e atraindo para si a ira de
toda a classe política14 (Bastos, 1976). Assim, paulatinamente foram se confundindo, na
retórica dos oposicionistas, monarquia, poder moderador e arbítrio. Assim, se para o
centro liberal o Brasil monárquico era uma “ditadura” (Nabuco de Araújo, 1997:764),
sendo por isso necessário inscrever a responsabilidade ministerial pelos atos do poder
moderador no programa do partido, este última medida já seria insuficiente para os
liberais radicais. Para estes, o poder moderador era « o absolutismo prático » (Marinho,
1885:35), cujo remédio único era a sua pura e simples extinção (Chacon, 1979:29).

Por outro lado, o desgaste provocado pela ação reformista da Coroa junto
aos partidos oligárquicos nacionais não se restringiu aos liberais ou radicais. O processo
de abolição da escravatura, em especial, iniciado em 1871, acabou por disseminar a
crítica ao poder pessoal ao próprio partido conservador (Carvalho, 1996), que sempre se
gabara de constituir o principal pilar do trono. Na oposição, um dos principais chefes do
partido, o Barão de Cotegipe, em 1879, afirmaria no Senado que « a preponderância da
Coroa sobre os demais poderes, chamem-na como quiserem – poder pessoal, poder
ditatorial, prerrogativa real, existe, com efeito » (Fialho, 1886 :22). Em 1884, seria um
14
Como veremos, Joaquim Nabuco partilhará do diagnóstico de Tavares Bastos, para chegar, porém, a
uma conclusão oposta, favorável ao « poder pessoal ».
17

deputado conservador quem, por ocasião da dissolução da câmara dos deputados,


determinada para apoiar o gabinete abolicionista do senador Dantas, proferiria o pior
ataque já formulado ao Imperador no parlamento. Aí, já não se tratava de confundir
instituto e regime político, mas de insulto pessoal ao imperante, que era um « príncipe
conspirador », um « césar caricato » que por quarenta anos oprimiria, onipotente, a
desorganizada opinião pública do país. (Magalhães Jr., 1956:252). Assim, a intervenção
ativa do poder moderador como agente reformista deslegitimava-o enquanto controle
político da constitucionalidade: ele passava a ser visto na chave do poder de exceção,
sendo que o Segundo Reinado nada mais era que um contínuo estado de exceção
disfarçado em estado de direito.

Além de ser assim identificado com o arbítrio, o poder moderador, para os


federalistas brasileiros, também se converteu em sinônimo de centralização política e de
opressão. A falta de autonomia provincial, com os governadores sendo nomeados do
Rio pelo Imperador, a partir da indicação dos primeiros-ministros, impediria a
continuidade administrativa e o livre desenvolvimento das atividades econômicas,
inibindo a livre iniciativa dos indivíduos industriosos15. Embora houvesse federalistas
monárquicos, como Nabuco e Tavares Bastos, logo surgiu quem apregoasse que, do
ponto de vista “doutrinário” e “empírico”, a instituição da monarquia era incompatível
com a federação das províncias; o que só seria possível dentro do modelo norte-
americano, que era presidencialista e republicano. O desprestígio da monarquia entre as
elites políticas fazia com que a instituição, feita sinônimo de atraso, se confundisse com
a própria figura do Imperador e da princesa Isabel – o primeiro, visto entre incapaz,
frouxo, ou como autoritário; a segunda, como mulher beata, sentimental, casada com
um estrangeiro antipático. Esta claro que tal identificação se estendesse ao próprio
poder moderador, uma “excrescência constitucional” cujas atribuições eram da essência
da Coroa.

A retórica democrática dos partidos monárquicos, naturalmente, foi bastante


aproveitada pelo partido republicano, para quem a resolução de tantos males – poder
pessoal, falseamento da representação parlamentar, centralização político-administrativa
- passava pela eliminação pura e simples da monarquia. Também para os republicanos,
o poder monárquico era sinônimo de poder pessoal: Campos Sales, durante a terceira

15
“A centralização é essa fonte perene de corrupção, que envenena as mais elevadas regiões do Estado.
(…) Em verdade, o que é o nosso governo representativo ? nosso parlamento ? nossas altas corporações ?
Tudo isso assenta no ar. É o cetro, que eleva os humildes e precipita os soberbos. Por baixo está o povo
que escarnece”. Cf. Tavares Bastos (1997:28) [1870].
18

regência da Princesa Isabel, denominaria também o exercício do poder dela como «o


poder pessoal, o poder despótico, o poder senhorial », cujo futuro reinado « anuncia-se
pelo abastardamento, que começa comprometendo os partidos políticos e acabará
comprometendo a própria Coroa” (Sales, 1908:47). Entretanto, a essa crítica
adicionava-se a de todo o regime: a monarquia fundava-se no divino direito dos reis,
sendo oposta à democracia, por sua vez associada à república. A monarquia
constitucional era uma solução de compromisso espúria entre o absolutismo e a
democracia, que não poderia mais ser tolerada pela evolução natural das sociedades. Ela
era um regime de privilégio, na medida em que a família imperial tinha o monopólio da
chefia de Estado. Era uma instituição estranha ao nosso meio, “planta exótica” na
América republicana. A propaganda republicana, assim, era a única a fazer a crítica do
poder pessoal permanente, confundindo propositalmente a pessoa do imperante, o cargo
que ele ocupava, a instituição do poder moderador, a centralização político-
administrativa.

Exemplo disso é o panfleto intitulado Processo da monarquia brasileira,


escrito em 1886 por Anfrísio Fialho, que depois de escrever uma biografia elogiosa de
Dom Pedro II se convertera ao mais feroz dos republicanismos, depois de lhe terem sido
negados recursos do Tesouro para um negócio no exterior. Nesse panfleto, depois de
dissertar sobre o supostamente catastrófico estado de atraso em que, sem exceção,
achavam-se todos os aspectos da vida nacional, chega à conclusão de que a
responsabilidade exclusiva dessa situação era da pessoa do Imperador, por ser o único
elemento permanente num governo onde se sucediam um sem número de pessoas dos
dois partidos políticos e a quem interassaria manter o atraso do país porque este era
condição de seu próprio absolutismo disfarçado. Para alcançar tal fim, o monarca
recorreria a um plano deliberado que mesclava astúcia, fingimento, hipocrisia e
omissão, onde era comparado a Tibério, Maquiavel, Talleyrand, Luís XIV e César. Do
terceiro reinado nada se poderia esperar, pois, « mistura de orleanismo com
ultramontanismo, de traição com jesuitismo, será Roma governando o Brasil por
intermédio do núncio ou do capuchinho » (Fialho, 1886:310). A conclusão de todas
essas críticas era óbvia: demonstrar que a república federal era a única saída para salvar
o país. Apenas ela poderia modernizar as instituições políticas e nos colocar no caminho
do progresso, uma vez que extinguia ao mesmo tempo realeza, poder moderador e
centralização política16.
16
« Desenganem-se os brasileiros que ainda vivem iludidos : a comédia da monarquia com seus lances
trágicos continuará a representar-se no teatro americano até que, preparada a mina da indignação
19

As novas instituições resultantes da implantação da República e


consubstanciadas na Constituição de 1891 refletiram esses aspectos da propaganda,
consagrando o voto universal, a tripartição de poderes, o presidencialismo e a federação.
A ideologia de propaganda republicana, com a instauração do novo regime, passa a
informá-lo na posição de doutrina oficial. Ao mesmo tempo em que ela justifica a
república pelos erros da monarquia, ela justifica as instituições republicanas, tais como
modeladas na Carta de 1891. Essa interpretação dos fatos e das instituições, no início,
teve de enfrentar tanto a versão monarquista, que continha as críticas mais acerbas ao
regime, quanto à versão jacobina, que propunha uma radicalização da República. No
final da tumultuada década de 1890, marcada por revoltas e atentados, a maioria da
classe política se inclina a apoiar uma política de apaziguamento, o que facilita o
predomínio da versão dos republicanos históricos, mormente depois que o governo já se
encontra nas mãos deste grupo. Esse predomínio se consolidará e somente entrará em
declínio na passagem da década de 1910 para a de 1920.

3. Primeira Republica: rearticulação do conceito de poder moderador entre a


impotência da jurisdição constitucional e a onipotência do estado de sitio.

O fim do regime e a extinção das instituições monárquicas, porém, não


significava que os republicanos entendessem que a nova republica presidencial e
federativa, pudesse viver sem um equivalente funcional do poder moderador, só que
mais « moderno ». Nos primeiros anos da década de 1890, Rui Barbosa e Campos Sales
foram explícitos no sentido de que doravante o papel de arbitragem dos conflitos
institucionais deveria, como nos Estados Unidos, caber a um supremo tribunal, que
cumpriria as suas atribuições através de procedimentos juridico-constitucionais. A ideia
não era propriamente nova e não era mesmo privativa dos republicanos. Não por acaso,
enquanto pregavam a circunscrição da margem discricionária de ação do Poder
Moderador, no plano inclinado de influência francesa e ascendente anglo-saxão, os
liberais insistiam no fortalecimento do Poder Judiciário como adequado árbitro neutro
das contendas individuais e mesmo das contendas eleitorais. Combatendo a todo o
transe a reforma do Estado elaborada por Uruguai, o manifesto do Centro Liberal
nacional, o povo, um belo dia, faça a esses cômicos de profissão e aos seus comparsas aquilo que o Sr.
Sinimbu, quando era primeiro ministro do Sr. Dom Pedro II, queria que se fizesse aos colonos europeus  :
pô-los fora da barra à cacete ! » (Fialho, 1886 :313).
20

exigia, em seus pontos de número 8, 9 e 19, a independência do Poder Judiciário e a


unidade de jurisdição, com a extinção do contencioso administrativo querido pelos
conservadores e a transformação do Conselho de Estado em mero “auxiliar da
administração e não político” (Nabuco de Araújo, 1979:104). Tavares Bastos, por sua
vez, defendia a entrega da magistratura de primeira instância às províncias, ou, seguindo
a sugestão de Prévost-Paradol, prover os cargos por concurso e fazê promover por um
processo que envolvesse órgãos do Judiciário e do Legislativo, excluído o Executivo
(Bastos, 1976:241). Ao apresentar seu ministério frente às câmaras, em 1882, também
o Marquês de Paranaguá frisava a necessidade de emancipar o Judiciário da
dependência do Executivo, de molde a inspirar a confiança dos partidos em sua
neutralidade em matéria política (ACD, 03/07/1882). O mesmo faria Lafaiete Rodrigues
Pereira, no ano seguinte, ao lembrar aos deputados, na qualidade de Presidente do
Conselho, que o Judiciário carecia ser fortalecido pela “idoneidade intelectual e moral
do magistrado e sua perfeita independência pessoal” (ACD, 24/05/1883). Já em 1886
estava no ar a possibilidade de se atribuir a verificação dos poderes dos deputados
eleitos pelo Supremo Tribunal de Justiça (Nabuco, 1949 c: 164). Por fim, a acreditar-se
no depoimento de Salvador de Mendonça, segundo o qual o próprio Imperador estaria
cogitando de criar um tribunal semelhante e transferir-lhe a sua competência para o
exercício do poder moderador (Süssekind, 1960). A ideia mestra era a de que o poder
moderador de uma republica presidencial e federativa residia na jurisdição
constitucional de uma suprema corte. Estava pavimentado o caminho que levaria à
substituição do Poder Moderador pelo controle jurisdicional de constitucionalidade17.

Sales, ministro da Justiça do governo provisório, foi claro na exposição de


motivos que precedeu ao decreto que deu organização à Justiça Federal. O Judiciário era
« a pedra angular do edifício federal e o único capaz de defender com eficácia a
liberdade e a autonomia individual », pois, « ao influxo de sua real soberania, desfazem-
se os erros legislativos e são entregues à austeridade da lei os crimes dos depositários do
Poder Executivo ». Nele residiria «essencialmente o princípio federal e a boa
organização » de que deveriam « decorrer os fecundos resultados que se esperam do
novo regime » (In: Leite, 1981:70). Outro indício desta pretensão de corrigir a
17
Tavares Bastos elogiava a não intervenção do governo inglês nas leis aprovadas pelos estados
australianos, dando a entender que as alegações de inconstitucionalidade das leis provinciais seria, no
Brasil, um instrumento do governo central para apertar a centralização sobre as províncias: « O que serão
no Brasil, porém, essas despejadas violações constitucionais que o governo central e seus presidentes
omitem, ou suspendendo leis provinciais já promulgadas, ou inventando casos de inconstitucionalidade
em outras, depois de segunda vez votadas por dois terços das assembléias. Cá é o crime grosseiro, que
nem se pune, nem se defende; lá, um governo de gente honesta que congraçou-se sofridamente com a
liberdade » (BASTOS, 1996:66).
21

instituição moderadora corrompida pela política (o poder moderador monárquico) por


via do direito, entendido como o contrário ou a ausência de política (o judiciarismo) foi
o aparte do deputado Gonçalves Chaves ao discurso proferido em 15 de julho de 1891
por Francisco Glicério. Enquanto este afirmava que, em virtude da nova ordem
constitucional, o Supremo Tribunal Federal era « o poder mais alto da República » e
que, por isso, ele deveria ser « o mais prestigioso, o mais elevado posto da liberdade
política, para compreender nesta fórmula simples, o direito individual, o direito dos
Estados, e todos os deveres da autoridade pública na Federação », Chaves não teve
dúvidas em qualificá-lo: « Pode-se dizer que é o poder moderador da República » 18 (In:
Leite, 1981:75 e 76). A Constituinte republicana de 1890 acabou por aprovar a ideia,
conferindo a este Supremo Tribunal Federal o papel de instância decisória máxima no
controle difuso e concreto de constitucionalidade. Assim, caberia à nova corte resolver
incidentalmente, e em última instância, sobre a inconstitucionalidade dos atos do poder
publico, seja em relação aos administrados, seja em relação aos conflitos entre os novos
Estados, no quadro de um Estado de direito marcado pelo federalismo, conforme
estabelecido no art. 59 da Constituição de 1891. Alguns anos mais tarde, Rui Barbosa
assim o explicaria:

“No sistema de governo americano há um poder que vela pela observância das
divisas constitucionais entre os três poderes políticos do Estado – é o poder
judiciário. As sentenças deste poder, quando proferidas regularmente, pelo seu
órgão supremo, constituem a suprema aspiração do direito constitucional e formam
a verdadeira lei, a lei indubitável, a lei irrecorrível do país. A nossa constituição,
tomando aos Estados Unidos esta instituição, incomparavelmente benfazeja, lhe
deu, nos nossos textos constitucionais, uma consagração explícita e categórica,
convertendo em texto de lei aquilo que nos Estados Unidos era a expressão da
jurisprudência estabelecida pelos tribunais. Ficou desde então estabelecido, por um
modo absolutamente dogmático, a impossibilidade de se alterar, por parte do
Executivo, ou do Legislativo, uma decisão final do órgão supremo do nosso poder
judiciário” (Rui Barbosa, 1955: 268) [1915].

18
Esse suposto papel moderador do Supremo Tribunal Federal impregnou o proprio discurso judiciario.
Na cerimônia de 175 anos de existência de um supremo tribunal (a atual instituição incorpora em sua
historia a do imperial Supremo Tribunal de Justiça), em 18/09/2003, o ministro Carlos Velloso
reafirmaria a intenção de Pedro II de fazer de uma suprema corte o poder moderador, de acordo com a
narração de Salvador de Mendonça. O ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki,
iria mesmo às vias explicitas: “a Suprema Corte, como representa o poder moderador do Estado, tem no
Brasil uma história importantíssima. Acho que, além de ser a principal Corte, por força institucional, tem
se mostrado na sua prática a principal Corte pelo conteúdo de suas decisões, pela coragem histórica da
quase totalidade de seus julgamentos e acho que o povo brasileiro, a nação brasileira, pode se orgulhar da
sua Suprema Corte” (http://www.femperj.org.br/jornal/noticias/n20092003_1.htm )
22

Em que pese a opinião contrária de certos autores, de que o Supremo


Tribunal teria passado a desempenhar a contento suas funções a partir do governo
Prudente de Morais (Rodrigues, 1991), a verdade é que a percepção crescente da
opinião publica foi no sentido contrario, isto é, de que essa instituição estava muito
longe de cumprir o desígnio para a qual havia sido criada e que era de todo impotente
para resolver os impasses do regime (Mangabeira, 1960). O tribunal enfrentava todas as
dificuldades próprias do contexto da época, como a resistência dos demais poderes a
semelhante controle, por tradição ou por uma interpretação rígida da teoria da separação
de poderes. Além disso, a própria nomeação dos ministros do tribunal era submetida aos
critérios da política dos governadores, decorrendo de retribuição de favores ou de
alianças entre facções regionais. Os ministros votavam de acordo com os interesses das
facções a que eram ligados, mantendo-se incertos os limites de aplicação da ordem
constitucional. Assim, o preço da preservação, pelos tribunais, das condições de
reprodução da ordem dominante na Republica Velha, à custa da exclusão das facções
rivais e das classes populares, foi a impossibilidade de representarem-se como ordem
geral (Koerner, 1994) e exercer o seu pretendido efeito moderador.

Seja como for, deve ser dito em honra ao Supremo que, ainda que todos
esses obstáculos fossem miraculosamente superados, ele provavelmente jamais poderia
ter exercido a influência « moderadora » de seu congênere norte-americano. E isto, pelo
fato muito concreto de que ele não dispunha do poder de vincular os juízes e tribunais
que lhe eram inferiores ao resultado de seus julgados, ao contrário da Supreme Court.
Esse poder, que se programava por um mecanismo denominado stare decisis, firmava a
orientação do tribunal num determinado assunto a partir do julgamento de um caso
particular, e obrigava todo o aparelho judiciário (ao menos o federal), na adoção do
mesmo ponto de vista, criando uma jurisprudência obrigatória. Como o stare decisis,
porém, não existia no Brasil, não apenas os juízes inferiores, federais ou estaduais, mas
os próprios poderes executivo e legislativo, federais ou estaduais, não se entendiam
obrigados a rever sua própria linha de orientação na interpretação da legalidade de seus
próprios atos. Assim, cada cidadão cujos direitos fossem violados era obrigado, se
realmente desejasse « justiça », a levar seu próprio caso a um juízo comum e aguardar
pacientemente que, depois da passagem por todas as instâncias inferiores, o processo
chegasse ao Supremo - ainda que este já houvesse examinado a matéria diversas vezes
no mesmo sentido. Somando-se esse problema ao do trafico de influência, vê-se que a
« função moderadora » do Supremo era exercida apenas a quem tivesse prestigio,
23

paciência e dinheiro, e mesmo assim a conta-gotas.

A realidade do exercício do poder político na Republica Velha era


francamente contraria ao propalado liberalismo de suas instituições. Os primeiros dez
anos do regime, marcados por continuas conspirações, golpes ou tentativas de golpes de
Estado, rebeliões, renuncias de presidentes, foram marcados por uma verdadeira
entropia institucional. Até o inicio do século XX, a critica às novas instituições
republicanas eram marcadas por um debate que opunham parlamentaristas republicanos,
como Silvio Romero (Romero, 1979), e positivistas, como Julio de Castilhos (Castilhos,
1982), os primeiros defendendo o fim do presidencialismo, que julgavam autoritário, e
os segundos, defendendo-o com unhas e dentes. Entre uns e outros, isto é, no centro,
estavam os defensores do establishment, como os republicanos históricos e os antigos
adesistas, apoiados pelo positivismo gaucho. Por fora, corriam os monarquistas, que
pretendiam restaurar o antigo regime e a centralização. No período, porém, da primeira
década do século XX, entre a ascensão de Campos Sales ao poder, de um lado, e a crise
da sucessão de Afonso Pena, opondo as candidaturas de Rui Barbosa e Hermes da
Fonseca, ocorre uma cisão interna neste centro de sustentação do establishment, que vai
definir em grandes contornos os espectros político e ideológico da Republica Velha até
a sua queda.

A principal causa dessa cisão foi o novo eixo de funcionamento


« sociológico » da política dos governadores, calcada na fraude eleitoral, eternizando as
oligarquias no poder regional e impedindo o surgimento de uma oposição parlamentar,
bem como a impotência da Justiça em geral, e do Supremo em particular, para
assegurarem a alternância dos cargos políticos. O fim forçado da competição
oligárquica pela ocupação patrimonial dos cargos públicos, em beneficio de apenas uma
parte dela, provocou cedo ondas periódicas de motins regionais organizados pelas
facções excluídas, levando o governo federal seguidamente a recorrer ao instituto do
estado de exceção e à intervenção federal para reprimir essas sublevações e manter seus
aliados no poder. Essa cisão caracterizou-se pela oposição entre dois grupos
antagônicos. De um lado, uma « centro-direita », situacionista, de discurso oficialista,
de culto da vontade política presidencial, que, a partir de um diagnóstico « realista » da
sociedade brasileira, pregava a precedência do Executivo sobre os demais poderes, em
nome da necessidade de progresso do País, cujas origens intelectuais mais imediatas se
encontravam no pensamento de Campos Sales. De outro lado, uma « centro-esquerda »
oposicionista, que pedia a revisão da constituição para fortalecer o Judiciário e da União
24

Federal, de culto da legalidade, pregando a preeminência do Supremo Tribunal Federal


sobre o conjunto das instituições. Seu ícone era Rui Barbosa. Por afinidades políticas,
os positivistas castilhistas tenderiam a se aliar aos primeiros, e os parlamentaristas, aos
segundos. Vejamos as teses de situacionistas e oposicionistas para, sem seguida,
compreender como retorna, no debate político, o tema do poder moderador ou do poder
pessoal.

O pensamento de Sales parte de um diagnostico realista, que é a desordem e


a fragmentação da vida política e a vacuidade ideológica dos partidos, que se resumem
numa luta acirrada por interesses privados, de um lado, e a necessidade de priorizar a
administração, dedicando-se a uma obra de saneamento financeiro, de outro. O drama
de seu antecessor, Prudente de Morais, governante instável que, tentando debelar a
anarquia jacobina, de um lado, e monarquista, de outro, tendo sua ação dificultada, no
Congresso, por um partido despido de princípios e entregue às ambições pessoais (o
Partido Republicano Federal de Francisco Glicério), o convencera da necessidade de, se
realmente pretendia dedicar-se à obra pura de saneamento das finanças do país, deveria
reorganizar o funcionamento das instituições, reforçando a autoridade do Presidente da
República e retirando-o, o tanto quanto possível, do raio de alcance da esfera político
partidária parlamentar. Reorientar o regime de acordo com sua “verdadeira natureza”
implicava, para ele, neutralizar o Congresso, tornando-o apartidário e governista 19. O
grande tema é, aqui, a caracterização da política partidária e legislativa como
“politicagem” 20, que versaria apenas acerca de interesses particulares, seja do próprio
parlamentar, sejam de sua base, em arrancar do Executivo concessões para si ou para
arrebatar o poder. Os políticos partidários, especialmente os mais poderosos, seriam
“caudilhos políticos, todos igualmente soberanos, e cioso, cada um, da sua influência
19
‘Era meu firme propósito fazer um governo de administração, visto ser nessa esfera que se
encontravam, acumulados, os problemas nacionais. Na ordem política, propriamente, não havia questões
que devessem preocupar-me. Assim, o meu ponto de vista levava-me naturalmente a procurar os
ministros que tinham de executar o meu pensamento, for a dos circuitos políticos. (…) Para a escolha dos
ministros, não tratei de saber o que pensavam as influências. (…). Bem sei que não era esse o processo
mais certo par organizar dedicações, mas era o que me parecia mais seguro para superar as dificuldades
que tinha de enfrentar” (1908:206).“Entendi dever consagrar o meu governo a uma obra puramente de
administração, separando-a dos interesses e das paixões partidárias, para só cuidar da solução dos
porblemas que constituíam o oneroso legado de um longo passado. (…) E chama-se a isso – desorganizar
os partidos !” (Sales, 1908:224).
20
“Até este momento da história da República, nenhuma idéia nova, nenhum princípio fundamental,
nenhuma aspiração na ordem administrativa foi lançada de modo a poder caracterizar intuitos en contraste
e legitimar lutas partidárias. Tomado aquele ponto de partida, origem fatal e perpétuo fermento de ódios e
ressentimentos, que cada vez mais se acirravam, formaram-se esses agrupamentos, cujo objetivo único
nas lutas que travaram era o cargo de presidente da República” (1908:112).“O que proclamei como um
mal a ser extirpado, por ser um embaraço oposto à eficácia da ação governa (…), foi o ‘espírito
partidário’, com as suas paixões e violências, ora perturbando a evolução benéfica das idéias, ora se
contrapondo ao desdobramento tranqüilo da ação governamental” (Sales, 1908:226)
25

pessoal” (Sales, 1908:229). Da mesma forma, o grande perigo da República era a


« anarquia », pelo que a preservação da ordem era a condição primeira de uma boa
administração. Daí porque os elementos « anarquizadores » deveriam ser varridos da
esfera pública legítima. Em outras palavras, Sales entendia que o pluralismo político,
como vinha se exercendo desde o governo Floriano, tendo comprometido o êxito
administrativo da administração Prudente de Morais, era um empecilho ao progresso,
isto é, à modernização do país e dai a necessidade de neutraliza-los21.

Para resolver o problema, Sales dá dois passos. Em primeiro lugar, em


nome, repita-se, da necessidade de administração do país, sendo preciso “domesticar” o
parlamento, cujos integrantes de entregam a uma competição politicamente exacerbada,
é que Sales trança, com os governadores dos Estados e com a maioria da Câmara dos
Deputados, o arranjo que, denominado por ele política dos Estados, entra na história
como política dos governadores. Esse arranjo, como se sabe, envolvia o apoio do
Executivo federal às oligarquias estaduais que estivessem no poder, em troca do apoio
daquelas aos candidatos que apoiem o governo da União. O controle da presidência da
Câmara determina o controle sobre a verificação dos poderes dos candidatos eleitos, de
molde a “degolar” os oposicionistas e garantir somente o ingresso dos situacionistas.
Em segundo lugar, ele elimina os vestígios que ainda existiam do governo de gabinete
na administração da República, adotando em toda a sua extensão os princípios de
governo presidencialista, onde a responsabilidade recai unicamente sobre o chefe do
governo e os ministros são, antes de figuras politicamente relevantes, somente auxiliares
técnicos daquele. Por outro lado, o chefe de Estado deve pairar acima das facções, não
pertencer a partido nenhum, governar para todos. Este é o ponto que mais nos interessa
aqui, porque ele faz uma comparação direta de sua concepção do poder presidencial
com o antigo « poder pessoal » do Imperador, que ele mesmo tão criticara outrora – em
outras palavras, aquilo que ele julgava ter sido o poder moderador:

“Não é mister abrir lutas com os secretários do presidente da República e nem isso
seria possível, em um regime em que a autoridade é unipessoal, concentrando-se,
portanto, toda a responsabilidade na pessoa do depositário único do poder (Sales,
1908:80). Os que ainda não puderam ainda compreender bem a essência do regime,

21
“Os elementos agitadores (…) comprometem-nos, pois que, à sombra da nossa condescendência, vão
acarretando a nossa responsabilidade em sua ação, francamente e calculadamente anarquizadora. (…). Os
exaltados é que nos vão levando a reboque nas suas arruaças, meetings de indignação, etc.. (…) Ou os
declaramos adversários e lhes damos combate, ou renunciaremos à aspiração de formar um partido
conservador, ordeiro, governamental e orgânico (…) Basta de Câmaras agitadoras. Precisamos de ordem
para governar bem” (1908: 136).
26

tal como o concebeu o nosso mecanismo institucional, mostram-se ingenuamente


apavorados ante esta influência exercida legitimamente pela autoridade
presidencial, supondo estarem na presença desse fantasma do poder pessoal, que
outrora atribuíamos, nos, os republicanos principalmente, ao Imperador, buscando
ai valiosíssimo subsidio para os ataques à monarquia. Existe, é certo, no regime
presidencial, um poder pessoal; mas – é nisso que se diferencia do poder pessoal
dos soberanos – um poder constitucionalmente organizado, sujeito a um tribunal
político de julgamento » (Sales, 1908).

Ha uma coerência entre a interpretação republicana do poder do imperador,


que nega a veracidade do regime parlamentar imperial, substituído pelo exercício
concreto do governo pelo « poder pessoal » do monarca, ainda que numa chave
negativa, para a interpretação republicana presidencialista do poder do presidente da
republica, sendo ele independente do parlamento e chefe direto do governo. Sales dá a
entender, portanto, que o presidente, na republica, passou a deter legalmente o poder
pessoal que o imperador teria exercido ilegalmente na monarquia, criando assim uma
linha de continuidade entre ambos os tipos de regime, ambos marcados pelo poder
pessoal. Nessa verdadeira constituição sociológica criada por Campos Sales sob a
constituição nominal, portanto, o poder pessoal nacional, isto é, a concentração de
poderes nas mãos do presidente da Republica, de um lado, e federalismo oligárquico, de
outro, eram faces da mesma moeda. O presidente tinha de mandar sozinho, sem ser
contaminado pela « politicalha » do blablablá das deliberações legislativas, naquele que
era o reino do interesse publico, da pura administração e do progresso nacional; em
contrapartida, os Estados tornavam-se terreno livre das oligarquias situacionistas, da
política de campanario e de compressão, do exclusivismo dos cargos. Esse verdadeiro
Tratado de Tordesilhas político foi a forma como o então presidente tornou possível a
governabilidade do quadro de ingovernabilidade que a experiência constitucional
evidenciava até então.

Essa visão do processo político não era nova no Brasil, manifestando-se


aqui e ali durante todo o século XIX. Ela vinha mesmo a justificar a existência do poder
moderador no período imperial em pensadores como o Visconde de Uruguai e Joaquim
Nabuco. Dom Pedro II, em seu íntimo, também tinha horror à atividade partidária, mas
justamente por não ser político, ele compreendia que seu papel era regular a
participação dos partidos no governo22. Nenhum dos três sustentava que a política
22
“Não sou de nenhum dos partidos para que todos apóiem nossas instituições; apenas os modero, como
permitem as circunstâncias, julgando-os até indispensáveis para o regular andamento do sistema
27

partidária deveria ser neutralizada ou anulada, mas somente mantida dentro de limites: a
competição e intervenção dos partidos na formação dos governos podem ser
indesejáveis, mas é legítima. Nesse aspecto, eles se mantêm na tradição do pensamento
político liberal. É certo que Deodoro da Fonseca havia também tentado, em novembro
de 1891, dissolver o Congresso, alegando que este havia se corrompido e não
representava mais os interesses da nação. Mas Deodoro era antes de tudo um militar,
sendo que o Exército sempre acreditou ser um depositário do interesse nacional,
desinteressado exatamente porque não político. A novidade, em Campos Sales, é que,
pela primeira vez, um civil ocupante de um alto cargo da administração nacional, de
carreira toda político-partidária, sugere que a participação dos partidos políticos nos
assuntos do governo federal é ilegítima e que, a rigor, não deveria haver partido algum,
uma vez que eles são frutos das ambições pessoais e não possuem princípios que os
norteiem. Temos assim um Executivo que, pretendendo administrar o país, ou seja, em
nome do interesse público, se identifica com o critério técnico, isto é, culto. Interesse
público, tecnicismo, governo, saber, se opõem ao interesse particular, à política, aos
partidos, à ignorância.

Essa discussão tem relevância neste trabalho por dois motivos. O primeiro
diz respeito a uma determinada tese de que o Executivo federal, na República Velha,
por força da política dos governadores, teria se convertido num novo poder moderador.
Essa tese nos parece destituída de fundamento. Parece-nos que ela só pode ser admitida
se, por poder moderador, entender-se “o novo arranjo em torno do qual orbita a política
concreta” ou, como parece sugerir Renato Lessa com alguma ambiguidade, o
“equivalente funcional do poder moderador” (1999:155), o que não é mesma coisa que
afirmar que a República Velha teve um poder moderador e muito menos que o chefe do
Executivo o representou. Historicamente, o poder moderador havia sido uma autoridade
suprapartidária que limitava a ação dos partidos dentro da atividade governamental, que
por eles era exercida em todo o país, e os alternava no poder. A política dos
governadores, ao revés, pretende neutralizar competição partidária, embora não
pretenda eliminá-la, alijando a influência do partidarismo da esfera governamental
federal. Ademais, o poder moderador do Império, devido à centralização, ao inverter
uma situação política, viabilizava a troca de comando de todos os cargos
administrativos das províncias em prol das oligarquias que estivessem anteriormente no

constitucional, quando, como verdadeiros partidos e não facções, respeitem o que é justo”. E ainda :
“(…) eis como em geral se entende a política entre nós, que vem a er quase a arte de achar meios de
coonestar injustiças e tudo o que abrange tal expressão” (Dom Pedro II, 1956:16 e 27).
28

ostracismo, o que apaziguava a política também no plano regional. A política dos


governadores, ao contrário, se erige no congelamento sine die das situações estaduais,
retirando a esperança de que as elites apartadas possam atingir o poder legalmente. Se
ela ordena o cenário político em curto prazo, a médio empurra as oligarquias
oposicionistas a fazê-lo extra constitucionalmente, i.e., por meio de sublevações e
motins, desestabilizando as instituições. Assim, embora, por um lado, o presidente da
República erigisse em torno de si e de seu governo uma redoma impermeável aos
interesses privados na salvaguarda do interesse público, os meios empregados
acarretavam o predomínio incontrastável de determinados interesses particulares nos
Estados. Ou seja, à medida que pretendia estabilizar a administração federal,
potencializava, em médio prazo, a instabilidade das administrações estaduais. Por outro
lado, o arranjo satisfazia as oligarquias situacionistas e a maior parte dos congressistas,
de modo a garantir o prosseguimento, na elite investida de poder, de extremado apego
em torno das instituições de 1891 e à doutrina republicana dos “históricos”.

O fato de o situacionismo ter adotado a política dos governadores como eixo


permanente da política nacional incorporou e aperfeiçoou o « realismo » do discurso
salesiano do Chefe de Estado, de viés abertamente elitista, decisionista e antipartidário.
Embora não fosse unânime entre os governistas, que pela sua situação mesma de
absoluta dependência do sistema, tinham de cooperar plenamente, ainda que críticos dos
sistema23, esse ponto de vista protoautoritario, « ordeiro » e situacionista, foi
aperfeiçoado por atores e autores, crítico do liberalismo democrático, de que são
exemplos Carlos Peixoto, deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados do
governo Afonso Pena (1906-1917); Gilberto Amado, deputado federal e depois senador
(1914-1930); e Francisco Campos, quando deputado federal (1921-1926). Muito
sintomaticamente, todos os três tinham uma opinião bastante elogiosa sobre a
presidência Campos Sales, não viam no jurismo um valor máximo do regime
republicano e eram declaradamente elitistas, nutrindo amizade ou admiração recíproca.
Assim, para Amado, Peixoto era « brilhante, paradoxal, sorridente, enérgico, belo, forte,
dominador », deplorando, diante de sua morte, « a covardia da mediocridade conjugada
contra a inteligência » (Amado, 1979:202). Diante da pregação de Francisco Campos
contra a candidatura oposicionista de Nilo Peçanha, “agitação estéril”, obra de
23
Exemplo de governistas desse tipo foram Afrânio de Melo Franco, Pandiá Calógeras, Prudente de
Morais Filho e Agenor de Roure, convictamente liberais, mas também preocupados com a ordem, e que,
depois de 1930, se preocupariam mais em reabilitar o legislativo e aparelhá-lo contra o poder absorvente
do executivo, sem contudfo recorrerem ao parlamentarismo. Em trabalho posterior, vou buscar diferenciar
esses liberais esclarecidos daqueles que defendiam o superpresidencialismo, na expressão de Afonso
Arinos de Melo Franco (Franco, 1955)
29

“demagogos”, Amado o aparteará nos seguintes termos: “São sentenças luminosas,


magistrais, lapidares (...). Eu me sinto honrado de ser brasileiro, assistindo a uma
demonstração tão fulgurante de energia. É uma aurora maravilhosa, que honra a
intelectualidade brasileira” (Campos, 1979:53). Da mesma forma, esses autores faziam
a apologia da “vontade” e da « realidade », num sentido mais vitalista que o de Campos
Sales, na defesa do executivo forte, bem como a ênfase na necessidade de que ele
deveria fomentar o progresso nacional. Em 1914, lembrando que, no Brasil nossa
tradição constitucionalista era “puramente lírica”, Amado, ao lembrar a atuação de Feijó
durante a Regência, faria o elogio de sua « energia » na manutenção da ordem,
afirmando que « nenhum é maior do que ele na nossa história »:

“O pensamento puro não existia para ele. O pensamento é um consectário da ação.


A política, a utilidade pública em movimento. O papel do homem de Estado,
resolver os problemas positivos que a nação suscita em vista de sua grandeza e
conservação (...). Homem forte, desinteressado e ardente, Feijó, pelo seu amor à
causa pública e pelas faculdades de execução rápida e segura, era bem o tipo do
ditador honesto, o chefe ideal do regime presidencialista, o grande presidente
americano” (Amado, 1963:96 e 98)

Outro exemplo de ator tornado autor na arena pública, representativo dessa


corrente de ideias, foi, conforme frisado, Carlos Peixoto Filho. Para ele, o governo
elitista era essencial para contrabalançar a tendência de nivelamento para baixo dos
regimes democráticos, sendo que essa diminuta elite política teria mais chance de surgir
num regime presidencialista do que num regime parlamentar. O culto da vontade
política ou a apologia do decisionismo esta sempre em sua argumentação, atribuindo os
males da Republica a luta entre os partidos e todos os benefícios de que ela até agora
teria gozado eram « obras de chefes de Estado, muitas vezes contrariados pelos partidos
e sempre combatidos pelos que presumiam falar em nome da maioria da opinião
publica ». Neste sentido, o presidencialismo « é o regime em que maior apelo se faz às
qualidades individuais e mais dilatada amplitude se da à ação desembaraçada do
homem; o presidencialismo é um regime de afirmações pessoais de capacidades
espontâneas » (Duarte, 1918:39) e o chefe do Executivo teria, assim, « certa soma de
força arbitraria que é o seu poder discricionário e o indispensável instrumento de sua
atuação individual no movimento publico do país » (Duarte, 1918:84). Como em Sales,
porém, não se trata de um regime de independência dos poderes, mas de prevalência do
Executivo, a quem incumbe a missão de fomentar o progresso do país: « o Legislativo
30

fazendo as leis, o Judiciário interpretando-as (...), o Executivo dinamizando-as, fazendo


a policia superior da ordem constitucional, presidindo e impulsionando a atividade
econômica do país, mantendo a absoluta segurança dos direitos civis e políticos dos
povos » (Duarte, 1918:88). Como se vê, Peixoto não defendia uma ruptura com a liberal
democracia, e sim uma prática institucional verdadeiramente presidencialista, regime
que nos teria garantido a prática da liberdade civil, « impedindo que ela degenerasse na
demagogia inconsciente, que conduz à anarquia e abre assim caminho fácil a perigosas
aventuras de violência, fonte e matriz do cesarismo e da tirania » (Peixoto Filho,
1978:239).

Não pretendo aqui afirmar que tais autores fossem então, no íntimo,
autoritários no sentido de suprimir a liberal democracia. É mesmo duvidoso que
pudessem sê-lo, pelo menos antes que houvessem sido instalados governos formalmente
autoritários na Europa. O que se pretende aqui é apontar que tais atores, na defesa do
situacionismo da República Velha, desenvolveram, em sua atuação pública, argumentos
que justificavam a prática sociologicamente autoritária do regime de 1891, opondo-se às
tentativas oposicionistas de promoção de reformas que tornassem a prática política
verdadeiramente democrática, como o voto secreto, ou que dessem poder efetivo ao
Congresso ou ao Supremo Tribunal Federal. O situacionismo incondicional desses
atores, suas posições de lideranças e a impossibilidade de aceitar argumentos da
oposição, que implicassem na possibilidade de alternância de facções, os impelia,
independentemente do eventual posicionamento íntimo de cada um, a desenvolver, na
esfera pública, um conjunto de argumentos literalmente reacionários, a mais das vezes
calcados na necessidade de reforço da autoridade do Executivo e a defesa da « energia »
como condição da ordem, esta condição, por sua vez, do progresso nacional. Esses
argumentos surgiam especialmente no combate às oposições, fossem eleitorais – como
na campanha civilista e na campanha da Reação Republicana – ou armadas – como as
revoltas da Armada e da Chibata, as insurreições tenentistas, ocasiões que davam ensejo
ao pedido de decretação do estado de sítio e aos debates parlamentares que se lhe
seguiam. Elas também surgiam contra as veleidades do revisionismo e em particular na
defesa do sistema presidencialista de governo. Da mesma forma, embora alguns dos
atores situacionistas pudessem, eventualmente, fazer a defesa da necessidade de
existência de partidos, na prática negavam que os partidos pretéritos passassem de
ajuntamentos egoísticos buscando a partilha do poder. A exigência idealizada de um
partido altruístico, formado em torno de princípios, composto de uma elite de estadistas
31

esclarecidos, inviabilizava de antemão o surgimento realístico de qualquer partido, que


era logo tachado de faccioso – desde, é claro, que não fosse de oposição (como foi o
caso do efêmero Partido Conservador Republicano, durante o governo Hermes). Isto
fica claro quando se tem em mente que Amado, adepto do realismo sociológico, crítico
de tantos aspectos da vida política nacional, no campo político sempre apoiou o
establishment durante a República Velha e jamais atacou o poder executivo de
absorvente ou lhe imputou o fato da impotência do legislativo, o que faria
retrospectivamente, depois de 193024.

Longe de a situação se estabilizar no decorrer dos anos, concedido sempre


por um Legislativo de obedientes clientes, o estado de sitio, como veículo repressor, e a
intervenção federal, como mecanismo de alternância de oligarquias estaduais, tornaram-
se expediente ordinários para superar os obstáculos políticos opostos pelos opositores
do governo. O caso era mais grave que durante o Império, na medida em que as
dissoluções das câmaras de deputados eram veículos de alternância de facções, tanto no
centro como nas províncias, e não de sua perpetuação. Agora, o poder presidencial era
visto como instrumento partidário da manutenção de um condomínio oligárquico no
poder, e não como agente neutro de sua alternância. Como o regime não se permitia
oxigenar, eram cada vez mais violentos os reclamos da oposição e, por conseguinte, a
necessidade de recorrer a remédios brutais para reprimi-la. Se até 1910 haviam sido
decretados três estados de sítio, daí por diante eles se tornariam parte da rotina
institucional e justificados pela situação, através do realismo sociológico, da
necessidade de preservar a ordem e pelo culto da vontade política, de forma que o
quadriênio de Artur Bernardes, já na década de 20, transcorreria praticamente todo sob
o estado de exceção. Entre 1909 e 1922, haveria pelo menos nove intervenções federais
nos Estados. Ainda que a oposição crescente ao regime aproveitasse a publicidade do
procedimento judiciário para produzir o maior estardalhaço possível na opinião publica,
como ilustram o uso da tribuna feito por liberais oposicionistas, monarquistas – como
Andrade Figueira - ou republicanos – como Lauro Sodré e Rui Barbosa -, as
inumeráveis arbitrariedades cometidas pelo governo federal, durante o sitio ou fora dele,

24
No final do regime, segundo Homero Sena, era a seguinte a posição de Amado  : « Orador oficial da
Convenção que apresentou candidatos à presidência e à vice-presidência da República, Washington Luís
e Melo Viana ; prestigiado como intelectual, pelas análises que fazia dos problemas nacionais, encarando-
os de pontos de vista inteiramente novos ; senador por um Estado pequeno, mas amigo pessoal de Júlio
Prestes ; morando numa casa ampla na Avenida Atlântica (...), confessa Gilberto que, nessa época, ‘era
agradável passear na avenida, ir à Colombo, olhar a vida contente na cidade feliz, contemplar do planalto
central da senatoria o futuro desimpedido, o horizonte claro’. Tudo marchava tranqüilamente, pois ‘havia
homem no Catete’ e ‘café nos armazéns’ » (In: Sena, 1967 :147).
32

entretanto, não tinham como ser adequadamente resolvidas pelo aparelho judiciário ou
pelo Supremo Tribunal, dadas as suas já mencionadas limitações. Em 1911, Gilberto
Amado, talvez o maior « sociólogo » do situacionismo, escreveria sobre o estado de
sítio do governo Hermes da Fonseca, ironizando as catilinárias judiciaristas de Rui
Barbosa:

« Vimos que o estado de sítio não é um pavor, cuja única presença suspende o
respirar às nações e determina as clássicas síncopes constitucionais que tanto
espantam os encantadores estilistas do jornalismo patriótico. O estado de sítio entre
nós perdeu o caráter de medida excepcional; não é a enfermidade horrível que há
tempos mestre Rui temia com eloquência se tornasse crônica no Brasil, com toda a
sua gravidade substancial. É, ao contrário, um incômodo leve, cuja intermitência
não assombra (...). O Brasil não parece mais que um sujeito amarelado o
pernóstico, que se mete a falar francês, aparentar musculaturas de atleta (...) e que,
no melhor da festa, zás! arrebenta o fígado numa aluvião de bílis (...). O estado de
sítio e os acontecimentos que o determinaram vieram surpreendê-lo nos
esplendores de uma saúde aparente. Mas foi uma maravilha, uma insulsa e louvável
inutilidade que, longe de paralisar a vida do país, teve apenas o ânimo de ‘sanear’ a
Rua Senador Dantas (então, zona de prostituição elegante); levar ao xadrez
algumas pessoas inócuas; obrigar-nos à impertinência dos salvo-condutos (...).
Mais nada. A Constituição quase funcionou normalmente, nutrindo a
jurisprudência do Supremo que, como instituição nacional, não quis fugir
ilogicamente às delícias da anarquia em que o vimos mergulhar por ocasião dos
últimos trabalhos » (Amado, 1963 :71 e 72).

A crescente oposição liberal ao regime passou a fundar seus reclamos,


sobretudo a partir da década de 1910, em torno de um movimento de revisão
constitucional. Esse movimento, capitaneado por Rui Barbosa, exigia a regeneração da
republica pelo estabelecimento da verdade eleitoral e pela reforma judiciária, no sentido
de centraliza-la na justiça federal. Também aqui se tratava de duas faces da mesma
moeda. Entendia-se que as justiças estaduais, sempre parciais e dependentes dos
ocupantes dos poderes locais, que as nomeavam, desempenhavam um papel central na
perpetuação das oligarquias, visto serem quem sancionava as fraudes eleitorais. A
unidade da Justiça facilitaria a defesa dos direitos civis e políticos da oposição, dada a
maior visibilidade da esfera federal e a suposição de que tal reforma conferiria ao
Supremo Tribunal Federal, no seu papel ultimo de garante do Estado de direito, a
importância que lhe era devida. Essa defesa de uma reforma institucional fulcrada na
33

justiça e na valorização do Supremo como lugar privilegiado da resolução dos conflitos


políticos leva-me a denominar essa oposição liberal ao regime de judiciarista. A esta
linha filiar-se-iam atores como Levi Carneiro, João Mangabeira e Batista Pereira.
Desnecessário acrescentar, por outro lado, que praticamente todo o establishment
recusava, em nome da intangibilidade da « obra republicana » e, dentro dela, do
« federalismo », qualquer possibilidade de semelhante revisão, a começar pelo próprio
Campos Sales e pelo senador Pinheiro Machado, condestável castilhista do regime.
Poder-se-ia fazer-lhes a mesma critica que os situacionistas faziam aos parlamentaristas,
que era o de frear o poder significava frear o progresso.

No inicio da década de 1920, contudo, surgiu o tenentismo, outra espécie de


oposição, mais heterogênea, mas também mais radical nos métodos e aspirações, cuja
maior parte rapidamente evoluiu para questionar os próprios fundamentos liberais da
ordem estabelecida em 1891. Ao invés de campanhas parlamentares, os tenentes
exprimiam-se em sublevações armadas, que ocorreram praticamente em todas as regiões
do pais, como Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte,
Amazonas, sem falar na Coluna Prestes que atravessou quase que todo o pais.
Inicialmente, os manifestos tenentistas abraçavam os ideais judiciaristas, reclamando a
reforma eleitoral e judiciária, e fazendo a critica dos governos estabelecidos. Entretanto,
a maioria logo evoluiu para questionar os próprios fundamentos do regime, reclamar
uma transformação nacional muito mais ampla e a fazer a critica da própria atividade
política profissional. Assim, se em 1924 os revoltosos paulistas e amazonenses
criticavam os «governos de nepotismo, de advocacia administrativa e de incompetência
técnica na alta administração », para « emancipar a Nação brasileira do jugo aviltador
de meia dúzia de tiranos encapuzados que a depauperaram, e retaliam e desonram »,
através do voto secreto e da unificação da magistratura e do processo, em 1926 os
tenentes gaúchos já admitiriam que «não importa estar este ou aquele nome na
presidência da Republica (...)”. Ou a política se regenera, se torna sã e útil, ou nos a
destruiremos (...) pela espada e pela metralha » (Carone, 1975). Não surpreende que, em
1929, enfim, já se tratasse de mudar o regime e nacionalizar as instituições mediante de
um interregno ditatorial, eis que as existentes seriam importações estrangeiras
inadaptáveis às peculiaridades e imperativos nacionais.

Assim, pelo menos nos últimos quatro anos da Republica Velha, a maior
parte dos tenentes, cuja origem social e idade os desvinculava do establishment, já não
pleiteavam uma revisão constitucional, e sim uma verdadeira reinstauração da republica
34

num sentido nacionalista. O Brasil deveria passar a ser encarado como um todo
orgânico, sem prejuízo das regiões mais pobres, e esses fins não poderiam ser atingidos
pela mera federalização da Justiça ou pela verdade eleitoral. Era necessária a própria
centralização do pais, com o consequente fortalecimento da União, de forma a dar-lhe
meios para superar os entraves opostos à modernização do pais (Forjaz, 1988). Essa
modernização passava ainda por medidas estatizantes no campo econômico, pela
nacionalização da exploração de recursos naturais e pela resolução de um problema
social que a « politicalha » preferia continuar tratando como caso de policia. O
repertorio de ideias deste movimento era, em muitos sentidos, mais atual do que a dos
« judiciaristas », nela reverberando toda a radicalidade da critica à ordem liberal, que
recrudescera em todo o mundo após a Primeira Grande Guerra. No grupo tenentista
majoritário, cujo chefe era Juarez Távora e que chegaria ao poder em 1930,
predominavam as ideias de dois autores nacionais. O primeiro deles havia escrito suas
duas principais obras em 1914 e as teria visto se disseminarem na década de 20, caso
houvesse sobrevivido. Em seu projeto de reforma constitucional, ele propunha
reinstaurar, sob outro nome, na cúpula do Estado republicano, um poder moderador à
brasileira, isto é, neutro e ativo. Este autor era Alberto de Seixas Martins Torres, antigo
governador do Estado do Rio e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.
Pouco antes de estourar a Grande Guerra, Torres publicara O problema nacional
brasileiro e A organização nacional, obras em que discutia a situação do Brasil do
ponto de vista nacional e internacional, pleiteando uma reforma política que o salvasse
da fragilidade e do atraso em que se encontrava. Embora saído dos quadros
administrativos da república, da qual havia mesmo sido propagandista e, depois, alto
funcionário, Torres havia na juventude sido bastante influenciado pelo positivismo.
Quando redigira seus livros principais, estava absorvido também por outras teorias de
base « cientifica » de seu tempo, criticas do formalismo jurídico enquanto instrumento
valido de conhecimento do real. Embora não haja aqui espaço para discutir essas
influências, o que importa reter é que elas ajudaram Torres a dar-se conta da
vulnerabilidade em que o Brasil se encontrava, num período de imperialismo
internacional predatório, onde as nações mais fortes haviam perdido qualquer pudor,
que outrora pudessem ter se permitido, de submeter as nações mais fracas aos seus
desígnios particulares de poder e riquezas. O verdadeiro fantasma era a China, grande
pais outrora poderoso, tornado presa das grandes potências internacionais, dividida em
protetorados de fato, humilhada pelo estrangeiro (Torres, 1914 a).
35

O argumento central de Torres, portanto, era o de que a modernização do


pais não podia ser mais adiada, sob pena de o pais perder-se enquanto nacionalidade. O
Brasil, distraído nas quimeras das doutrinas abstratas, se pretendia sobreviver na selva
em que o mundo se tornara, precisava com urgência se conhecer objetivamente para,
dotado de informações sobre a sua própria condição, reorganizar-se politicamente numa
plataforma realista. Essa modernização, que ele denomina « organização nacional »,
seria possível por meio de reformas de Estado que, permitindo-lhe alcançar os mais
distantes rincões, graças a uma burocracia racionalizada e meritocrática, elevasse o
padrão de instrução, alimentação e saúde da população. Para tanto, era necessário, além
de romper com o mimetismo institucional estrangeiro, ganhar a partida contra as
oligarquias que faziam do cenário político nacional “uma vegetação de caudilhagem e
destruição, ramificada por todos os órgãos do poder público”, o que seria obtido por
uma reforma constitucional que liquidasse o federalismo permissivo de 1891 e,
centralizando o poder na autoridade federal, criasse um « governo fortíssimo » (Torres,
1914 b). Esse novo arcabouço institucional seria encimado por um quarto poder – poder
coordenador – que teria como órgão principal um conselho de estadistas, não apenas
encarregado do planejamento, em longo prazo, das diretrizes dessa nova ordem, como o
de decidir acerca de uma série de questões fundamentais da vida política nacional, como
a autorização da intervenção federal, o controle concentrado de constitucionalidade, a
elaboração da legislação trabalhista e a verificação da lisura das eleições. Esse quarto
poder coroaria...

“... estas disposições tendentes, todas, a fortalecer a ação governamental, a ligar


solidariamente as instituições do país e a estabelecer a continuidade na persecução
dos ideias nacionais (...) com um órgão, cuja função será concatenar todos os
aparelhos do sistema político, como mandatário de toda a nação - da Nação de
hoje, da Nação de amanhã - perante seus delegados. Não é uma criação arbitrária; é
o complemento do regime democrático e federativo, sugerido pela observação da
nossa vida e pela experiência das nossas instituições” (Torres, 1914 b).

O projeto de Torres espanta ainda hoje pela sua modernidade. Ele suscita
questões e sugere diversos remédios, que só fariam parte da agenda internacional depois
da Primeira Grande Guerra. Entretanto, por mais inventivo que ele seja, e por mais que
criticasse a monarquia, é praticamente impossível não concluir que, em alguma medida,
ele se achava influenciado pela experiência que viveu das instituições imperiais e
pretendia atualiza-las, negando, porém o intento para não suscitar a acusação de
36

monarquismo, o que ele sem duvida não era. O fato de se tratar de um conselho e não de
uma única pessoa no exercício desse poder não o descaracterizava como moderador,
porque, na experiência concreta do Império, o exercício desse poder pelo monarca
sempre estivera associado às consultas obrigatórias que ele fazia ao conselho de Estado,
nata da classe política nacional. Em ambos os casos, tratava-se de entregar o papel de
traçar estratégias nacionais de longo prazo a um conselho cujos membros, de elevada
envergadura moral e intelectual, gozando de vitaliciedade, pairassem acima do
quiproquó político-partidário. No fim das contas, Torres propunha conceder a um
conselho de estado as atribuições interventoras de um poder moderador ativo, sujeitando
a esse conselho uma gigantesca burocracia que o permitisse exercer suas atividades
modernizadoras nos menores vilarejos do país25. De « moderador », o poder
coordenador era na verdade um poder interventor.

Essa recuperação do conceito de poder moderador provavelmente só foi


possível porque, entre outros motivos, já não de todo era politicamente incorreto que
membros da própria elite republicana pudessem evocar algumas das instituições
imperiais numa chave positiva. Isso decorria da distância progressiva que tomavam os
acontecimentos de 1889 e a próprio crescimento da oposição contra a situação criada
pela política dos governadores. De fato, além da crise de legitimidade sofrida pelo
regime a partir da campanha de Rui Barbosa contra a candidatura oficial de Hermes da
Fonseca, a década de 1910, tão crucial na gestão das ideias que vão dominar as décadas
seguintes, foi também marcada pela incorporação da critica dos monarquistas
propagandistas da restauração, a mais importante feita até então a republica de 1891.
Essa decantação das criticas monárquicas ao repertorio da oposição republicana ao
establishment ocorreu exatamente – e provavelmente não por acaso – quando a proposta
restauradora estava em vias de perder de todo sua importância no conjunto de forças de
oposição e morriam os últimos estadistas do Império que encabeçavam o movimento,
como o Visconde de Ouro Preto.

Com efeito, os monarquistas haviam deixado obras e criticas onde


centravam fogo, exatamente, nos pontos em que os próprios oposicionistas republicanos
25
O Poder Coordenador teria como órgãos o Conselho Nacional, na capital da República; um Procurador
da União em cada Estado (província, na nova terminologia constitucional de Torres); um delegado
federal em cada município, nomeado pelo Conselho Nacional, e um representante e um preposto da
União, em cada distrito e quarteirão, respectivamente. O Conselho Nacional seria composto de no
máximo vinte integrantes vitalícios, a serem escolhidos pelo Presidente e Vice-Presidente da República,
pelos próprios membros do Conselho, por deputados e senadores, pelos ministros do Supremo Tribunal
Federal e pelos diretores de um hipotético Instituto de Estudo dos Problemas Nacionais, a quem deveriam
os candidatos a legisladores dirigir obrigatoriamente suas propostas de melhoria do país.
37

haveriam de vislumbrar o calcanhar de Aquiles do regime – a fraude eleitoral e, por via


do federalismo exagerado, com perigo de fragmentação nacional, o desempenho sofrível
da Justiça dual no papel de mantenedora do Estado de direito. A mais brilhante defesa
do retorno ao sistema de centralização judiciária havia sido a feita pelo ex-ministro da
Justiça do ultimo gabinete liberal, o jurista Cândido de Oliveira (1986), na vasta obra
coletiva de critica monarquista publicada para « comemorar » os primeiros dez anos do
golpe de 15 de novembro, A década republicana, cuja publicação em fascículos
adentrou o século XX. Os monarquistas, além de enaltecerem, como era de se esperar,
as virtudes pessoais da família imperial e o parlamentarismo, faziam o elogio do
Conselho do Estado e da alternância partidária durante o Império, mostra, segundo eles,
da possibilidade de competitividade política num regime liberal, que a Republica era
incapaz de fornecer. Da mesma forma, apontavam a tolerância do regime monárquico à
propaganda republicana, a extensa liberdade de imprensa, o respeito aos direitos das
minorias políticas – enfim, tudo aquilo que fazia o apanágio do verdadeiro liberalismo.
Esse fato talvez explique mesmo a moderação com que, até pouco antes da época em
que Torres escreveria suas obras, os monarquistas aludiriam ao poder moderador,
preferindo esconder o conceito por trás da atuação pessoal de Dom Pedro II, « o
magnânimo ». Talvez não soubessem, também eles, como conciliar doutrinariamente
sistema parlamentar e poder moderador (Afonso Celso, 1899 e 1900).

No que tange a esse ponto, porém, havia uma nota destoante no próprio
movimento monarquista; nota que, dissonante, soava porém mais alto. Quem a tocava
era Joaquim Nabuco. O ex-deputado liberal pernambucano, auto-exilado do novo
regime, guardava todo o seu prestigio de antigo chefe do partido abolicionista. Em seus
escritos da década de 1890, Nabuco ensaiava não apenas a reentrada do conceito do
poder moderador numa chave muitíssimo positiva, como o fazia numa chave
explicitamente modernizadora, o que não ocorria desde que o Visconde de Uruguai
publicara o seu Ensaio sobre o direito administrativo, em 1862. Nabuco, porém, ia mais
além que o velho saquarema: o que ele iria advogar, era um poder moderador que,
embora neutro e passivo frente às oligarquias e seus interesses, fosse partidário (isto é,
ativo) quando se tratasse de defender os interesses nacionais, emprestando sua voz a um
soberano popular que se achava subjugado e amordaçado.

Desde o final do Império até o inicio do governo Campos Sales, o antigo


chefe abolicionista não somente reiterara diversas vezes sua condição de monarquista,
como advogara a necessidade do poder moderador da monarquia para tais fins. Essa
38

suspeita quanto às potencialidades benéficas do poder moderador, que ele já alimentava


pelo menos desde 1884, quando escreveu O abolicionismo26, e reafirmada logo no ano
seguinte, no opúsculo O erro do Imperador27, acabou por lhe ser confirmada
plenamente em 1888. Tal como ocorrera quando da votação da Lei do Ventre Livre e do
sustentação dada ao gabinete Dantas, respectivamente em 1871 e em 1884, a Coroa
desempenhou então um papel fundamental no processo de abolição da escravatura,
valendo-se da discricionariedade que lhe era própria para exonerar um gabinete
escravista, sem que este houvesse perdido a maioria na câmara, chamando ao poder
outro, que fizesse imediatamente a abolição. O 13 de maio foi, então, questão de uns
poucos dias, para a indignação de toda a bancada escravocrata, que passaria a agourar a
continuidade da monarquia. Depois da abolição, Nabuco, ao contrario, passou a
sustentar pelos jornais a necessidade da defesa da monarquia, postura que não se
modificou depois do 15 de novembro, como se depreende de seus novos opúsculos,
como Por que continuo a ser monarquista, seja em suas obras do inicio da década de
1890, como Balmaceda e A intervenção estrangeira na revolta de 1893.

Seu argumento central era o de que a modernização do Brasil, num sentido


democrático, não tinha como se efetivar pelos meios liberais clássicos. Na ausência de
uma opinião publica livre da dominação pessoal, que pudesse conhecer seus interesses e
exprimi-los inequivocamente, o regime parlamentar liberal não apenas encobria uma
realidade social de « feudalismo », como estava a serviço das oligarquias agrárias que,
ressentidas com a monarquia, não tinham qualquer interesse na modernização política e
social do pais. Dai porque era necessária a existência de uma força, no topo das
instituições políticas, livre dos interesses político-partidários vinculados aos partidos,
dotada de espírito imparcial e público, capaz de, no quadro do próprio liberalismo, não
somente manter o equilíbrio constitucional contra as investidas privatísticas, mas
também de impor, sempre que necessário, as reformas modernizadoras exigidas pelo
interesse nacional, quando aqueles interesses tencionassem lhes obstruir o caminho.
Segundo Nabuco, numa regime constitucional, despido de esfera publica que servisse de
26
« Não temos que nos incomodar com os que nos chamam contraditorios porque fazemos apelo ao
Imperador sendo opostos, pelo menos na maior parte, ao governo pessoal. O uso do prestigio e da força
acumulada do Imperador representa no Brasil, em favor da emancipação dos escravos, seria no mais lato
sentido da palavra expressão da vontade nacional. Com a escravidão não ha governo livre, nem
democracia verdadeira: ha somente governo de casta e regime de monopolio. As senzalas não podem ter
representantes, e a população avassalada e empobrecida não ousa tê-los » (Nabuco, 1988).
27
« Do que eu acuso o Imperador quando me refiro ao governo pessoal, não é o de exercer o poder
pessoal, é de não servir-se dele para grandes fins nacionais. A acusação que eu faço a esse déspota
constitucional, é de não ser ele um déspota civilizador; é de não ter resolução ou vontade de romper as
ficções de um parlamentarismo fraudulento, como ele sabe que é o nosso, pra procurar o povo nas suas
senzalas ou nos seus mocambos e visitar a nação em seu leito de paralitica » (Nabuco, 1999).
39

motor ao progresso social e cujo povo estivesse subjugado por uma casta oligárquica de
roupagem parlamentar, o exercício do poder moderador para esses fins – e não a arena
legislativa - é que exprimia a vontade nacional. Para tanto, o conselho de Estado era o
órgão altaneiro que auxiliava o poder moderador a atender ao interesse da opinião
publica extraparlamentar.

«Ha muito tempo, Senhor Presidente, que eu abandonei o caminho das sutilezas
constitucionais que se adaptam a todas as situações possíveis”. Pelo estado do
nosso povo e a extensão do nosso território, nos teremos por muito tempo, sob a
monarquia ou sob a republica, que viver sob uma ditadura de fato. (...) Pois bem,
todo o meu esforço em política ha bastantes anos tem consistido em que está
ditadura de fato se inspire nas necessidades do nosso povo até hoje privado de teto,
de educação e de garantias e que ela compreenda que a verdadeira nação brasileira
é coisa muito diversa das classes que se fazem representar e que e que tomam
interesse na vida política do pais. (...) Agora (...), o que se vê, Senhor Presidente, é
essa ditadura de fato assumir o caráter de governo nacional no mais largo sentido
da palavra, promovendo a abolição (..) » (Nabuco, 1983).

Dai porque o regime republicano seria fatalmente mais opressor que o


monárquico. Um presidente da republica não apresentaria qualquer garantia de força,
legitimidade ou imparcialidade nacionais. Saído dos grupos oligárquicos, cria do
latifúndio, também ele acabaria por empregar seu poder contra o povo, de que davam
exemplo diversas republicas hispano-americanas28. Nabuco iria mesmo mais longe,
advogando a necessidade de um poder moderador para todos os países da América
Latina, envolta em intermináveis contendas caudilhistas que resultavam em golpes de
Estado e governos de classe, liberais somente da boca para fora: «Não ha mais bela
ficção no direito constitucional do que a que imaginou Benjamin Constant com o seu
poder moderador”. O que a América do Sul precisa é um extenso poder moderador, um
poder que exerça a função arbitral entre partidos intransigentes. De muitas doenças
graves costuma-se dizer que foi no principio um resfriamento mal curado; a historia da
América do Sul parece não ter sido outra coisa que uma revolução mal curada »

28
Às vésperas da republica, Nabuco afirmaria: « A mim, me sobra consciência de que estou com o povo
defendendo a monarquia, porque não ha, na republica, lugar para os analfabetos, para os pequenos, para
os pobres. Neste sentido, o partido republicano é um partido de classe como os dois partidos
monarquicos » (Nabuco, 1949). Depois de 1889, ele repetiria: « Se nas republicas, por um motivo ou
outro, os presidentes têm forçosamente que ser chefes de partido, pode-se dizer que falta à testa desses
governos o chefe da nação, a qual nunca se pode compreender como um partido triunfante. (...) Nos
chamados governos presidenciais, o presidente esta muito mais adstrito ao jugo partidario do que nas
republicas parlamentares, onde ele representa o papel de um soberano constitucional (...) » (Nabuco,
1937).
40

(Nabuco, 1937). A existência do poder neutro na América Latina se mostrava ainda


mais imperiosa na medida em que, como repetiria Torres, a sua instabilidade e o seu
atraso crescente começava a pôr em risco a sua própria existência independente na
emergência de um cenário internacional belicoso e neocolonialista como era o da
passagem do século XIX para o XX29. Suas obras posteriores, de caráter propriamente
historiográfico, como Um estadista do Império e Minha formação, não deixariam
igualmente de engrandecer o papel da monarquia e, em particular, o da dinastia de
Bragança, como agentes fundamentais da independência, da unidade e da nacionalidade
brasileiras30.

O ano da morte de Nabuco (1910), como vimos, coincidiria com o inicio das
contestações ao sistema implantado em 1891, deflagrada pela eleição presidencial de
1909, pelo desaparecimento do movimento monarquista enquanto força relevante de
oposição ao regime e pela incorporação, todavia, de suas das criticas, ao repertorio
contestador republicano. Com efeito, ha inúmeros sintomas de uma virada das ideias
políticas brasileiras nesse período, provavelmente a mais importante em vinte anos. Em
1914, o próprio Rui Barbosa, da tribuna do Senado, reconheceria, num discurso célebre
sobre a corrupção política republicana, o fracasso do regime na criação de um
verdadeiro Estado de direito, apontando a superioridade do Império neste aspecto,
graças, sobretudo, à ação « saneadora » do Imperador, fazendo assim o elogio indireto
do poder moderador. Esse discurso causou grande escândalo na arena parlamentar, a
ponto de Pinheiro Machado, interpela-lo publicamente sobre seu « monarquismo ».
Destaco sua passagem mais famosa:

"A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males,
a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a
miséria suprema desta pobre nação. (...) De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto
ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-
se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se
da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos
29
« A manutenção de um vasto continente em estado permanente de desgoverno, de anarquia, é um fato
que dentro de certo tempo ha de atrair forçosamente a atenção do mundo, como afinal a atraiu o
desaproveitamento da Africa » (Nabuco, 1937).
30
«O fato é que, desse mecanismo dual, monarquico-parlamentar, em que o monarca é um diretor, como o
é o parlamento, em vez de ser um autômato das câmaras, resulta a tranqüilidade e a segurança do regime
durante quatro gerações. Se o Imperador não tem a direção suprema; se não é o arbitro independente dos
partidos; se tem que se limitar a rubricar os decretos que se lhe apresentem, e não mudar a situação
(politica) senão por efeito de eleições contrarias, muito provavelmente o Segundo Reinado não teria sido
mais que a continuação da Regência, ou a antecipação da Republica, e o poder imperial, escravo e
instrumento da oligarquia, à mercê dos que o seqüestrassem, teria desaparecido em poucos anos do
redemoinho das facções » (Nabuco, 1997).
41

anos. No outro regime, o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem
perdido para todo o sempre, as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma
sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto,
guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da
justiça e da moralidade gerais". (Anais do Senado, 1914).

Outro sintoma da mudança na apreciação do conceito do poder moderador


vinha dos próprios monarquistas, que, desmobilizados politicamente, aparentemente já
conformados com a irreversibilidade da republica, mantinham acesa porém a chama da
memória do Império. O Conde de Afonso Celso, que, como os demais monarquistas, até
então estivera mudo quanto ao tema especifico do poder moderador, preferindo fazer o
elogio do sistema parlamentar em obras como Oito anos de parlamento ou A década
republicana, não apenas passou então a reconhecer, por esse tempo, que de fato o
Imperador exercera o « poder pessoal » tão criticado durante seu reinado, na linha de
Nabuco, como declarava ainda, já sem qualquer receio, que esse poder pessoal era legal
e que havia sido, ao contrário do que se afirmara, benéfico e mesmo fundamental para o
desenvolvimento do pais31. É o que se depreende da leitura de sua obra posterior, de
1914, intitulada Poder pessoal de Dom Pedro II (Celso, 1929).

A aparente desmobilização dos velhos monarquistas, porém, parecia não


sossegar o regime. O tema continuava a assombra-lo, por motivos reais ou imaginários,
mobilizado como instrumento de exploração política da oposição. Em 1908, o herdeiro
presuntivo do trono, Dom Luis, filho da princesa Isabel, tentou desembarcar no Brasil,
semeando certo pânico nas hostes republicanas e ensejando mesmo uma consulta
jurídica do presidente Afonso Pena a Rui Barbosa sobre a constitucionalidade do
decreto que banira a família imperial. Em 1913, o mesmo príncipe lançava um
manifesto no qual denunciava o federalismo e as oligarquias regionais como perniciosas
à unidade nacional, defendendo, na eventualidade de uma restauração, a reforma
federativa em sentido centralizador, a unidade da Justiça, a atenção ao problema social
operário e – como não poderia deixar de ser - o restabelecimento do conselho de Estado,
cujo « caráter vitalício de seus membros, assegurando a permanência de representantes
dos diversos partidos políticos, constitui uma garantia de imparcialidade, tão necessária;
e as luzes ai reunidas são para a Coroa valiosas, na decisão das questões mais

31
Percebe-se aqui ainda a influência de Nabuco: « O que Joaquim Nabuco assevera a respeito da
interefrência de Dom Pedro II na abolição aplica-se a tudo quanto de bom se particou durante o Império:
melhoramentos materiais e espirituais, estradas de ferro, navegação a vapor, telégrafos, colonização,
imigração (...). Todos esses atos, lis, resoluções sobre esses assuntos receberam o salutar influxo do
monarca. Se foi um crime – felix culpa ». (Celso, 1929).
42

importantes » (Torres, 1973). Sua proposta, muito enfática o que toca à necessidade de
progresso, se insere nitidamente no quadro de uma modernização conservadora, com
reforço da autoridade do monarca na atividade governamental. Novamente houve
sessão para debater o manifesto no Congresso Nacional, graças à iniciativa de Martim
Francisco, deputado herdeiro dos Andradas que se intitulava monarquista, o que mostra
que o tema ainda ali causava frisson e que as propostas eram objeto de debate, num
quadro porém antes contemporâneo que historiográfico (Torres, 1973).

A revalorização do conceito de poder moderador e de um conselho de


Estado não ficou, porém, restrita aos meios estritamente oposicionistas. Nesse mesmo
Congresso Nacional, muitos deputados, diante da crise de 1910, passaram a simpatizar
com a ideia de restabelecer um conselho de Estado no quadro da Republica. Assim, é
também deste ano o projeto apresentado pelo deputado Arnolfo de Azevedo (Azevedo,
1968), cuja exitosa carreira parlamentar toda seria marcada pelo mais acendrado
governismo (a ponto de ser incluído nomeadamente na lista dos « carcomidos », depois
da Revolução de 30). Seu projeto teve parecer favorável no ano seguinte e voltou à
comissão de Justiça em 1912, encontrando o apoio entusiástico de Afrânio de Melo
Franco, então também deputado (Franco, 1955). Entretanto, a proposta desses
governistas era de natureza bastante diferente da de Alberto Torres: tratava-se de um
conselho consultivo para assessorar a presidência da Republica com suas « luzes »,
auxiliando-o e contribuindo para a « indispensável continuidade administrativa », que,
segundo eles, não tinha lugar num regime sujeito a solavancos quadrienais. O enfoque
nada tinha de propriamente modernizador: o intuito era o de desconcentrar o poder do
presidente, já entendido como excessivo, em proveito de um órgão de « grandes e
experientes estadistas », composto inclusive de ex-presidentes da Republica. Como se
vê, a leitura que os liberais governistas faziam da experiência imperial era bastante
diferente daquela que faziam os modernizadores, embora com eles comungasse da ideia
de um poder « esclarecido » que « iluminasse » o Executivo. O elitismo esclarecido é
que, pela leitura da experiência imperial, lhes dava saudade, no lugar do um elitismo
bronco que, para eles, dominaria a republica do Marechal Hermes e de Pinheiro
Machado. Embora o projeto tenha sido reapresentado algumas vezes no decorrer da
Republica Velha, inclusive na década de 1920 (Azevedo, 1968), ele não tinha nenhuma
possibilidade de aprovação num regime menos interessado em partilhar o poder do que
em concentra-lo, de que seria prova a revisão constitucional de 1926. O fato, porém, é
que, como veremos, a ideia faria seu caminho.
43

Outros aderentes notórios do regime, instalados em importantes postos seus,


como o político e historiador Aurelino Leal e o ministro Pedro Lessa, do Supremo
Tribunal, acabaram, no mesmo período, não apenas por admitir as insuficiências da
republica, como por reconhecer que o poder pessoal do Imperador e sua elite político-
administrativa haviam sido indispensáveis num pais que, ainda no tempo em que
escreviam, não tinha condições sociais de praticar adequadamente um regime
democrático. Ambos combatiam então o revisionismo e a proposta de reintrodução do
parlamentarismo, dando a entender que o sistema parlamentar imperial na verdade era
um presidencialismo disfarçado nas mãos do Imperador... Ambos chegavam mesmo a
reconhecer a superioridade do Império sobre a Republica, ressaltando porém que a
restauração da monarquia de nada adiantaria, pois a diferença era de qualidade do
imperante e das elites por ele arrebanhadas e não da essência do regime. Restaurada
hipoteticamente a monarquia, na pessoa de D. Isabel ou de um de seus filhos, a nova
monarquia haveria se defrontar com a mesma mediocridade de elites da Republica e a
sua « politiquice » (Lessa, 1925).

«O excepcional governo do Brasil sob Pedro II foi um produto de vivo, intenso e


inamolgável sentimento de justiça, da incomparável honestidade e do entranhado
amor à liberdade do imperante”. (...) O principal fator do período de rara
moralidade administrativa, e justiça e de liberdade política que fruímos sob o
Império, foi a grande envergadura moral do chefe da nação. (...) Sigamos na
republica, o que não é absolutamente impossível, o exemplo da monarquia. Não ha
forma de governo, que tenha a eficácia de amparar uma nação e preserva-la dos
males oriundos da incapacidade e da imoralidade dos homens que a governam
(...) » (Lessa, 1925).

O que movia o pensamento de Lessa e de Leal era a crença de que o Brasil


não tinha e por muito tempo não teria as condições necessárias para que existisse uma
opinião publica forte que pudesse sustentar um regime democrático liberal verdadeiro 32.
Embora Lessa enfatizasse o aspecto da decadência dos costumes políticos, e Leal, o
atraso propriamente social do pais, o fato é que ambos convergiam na compreensão de
que a grandeza do Império era devida, não ao parlamentarismo, mas que ela existira a

32
« Muito cedo o Imperador compreendeu que, num pais sem gente, sem instrução, etnicamente cheio de
defeitos, sociologicamente atrasado, ou um espirito diretor, uma vontade forte seria o freio das paixões e
sofreamentos muito proprios do meio, tornando-se o supremo contraste, o guia, o mediador, o agente
plastico, das ambições, das tendências, dos exageros dos homens, e a maquina da sociedade funcionaria
regularmente, ou a força derivaria desse centro para uma delegação maior, e a confusão se operaria na
razão direta da divisão da mesma força. (...) Dom Pedro II ou faria o que fez ou o seu reinado teria
terminado ha mais tempo ». (Leal, 1914).
44

despeito dele, graças ao poder moderador de Dom Pedro II, que teria exercido seu
inevitável poder pessoal num sentido patriótico, com todas as virtudes de um verdadeiro
republicano. Nesse viés, os dois enxergavam o presidencialismo como um sucedâneo do
poder moderador monárquico, equivalendo a preponderância do Presidente da
Republica sobre o conjunto do Estado àquela outrora exercida pelo Imperador no
conjunto das instituições. Para Leal, enquanto não houvesse esfera publica e moralidade
pública, um regime de executivo forte não só era inevitável, como era necessário para
obviar os problemas decorrentes de um regime representativo fictício, até que este, por
força da evolução social, se tornasse possível. Já Lessa era um judiciarista de governo:
não fazia a apologia do executivo, defendia as prerrogativas do judiciário e opunha-se à
revisão da constituição, que era boa – ruins, eram os costumes, que só o tempo poderia
corrigir. O argumento do atraso socioeconômico seria retomado em 1916 pelo então
deputado Gilberto Amado, em seu discurso denominado Instituições políticas e o meio
social do Brasil. Amado trabalharia numa chave algo diferente: se ele reconhece o
atraso e saúda o Império, menos entusiasticamente porém que Lessa e Leal, com seu
« príncipe que me parece como um verdadeiro milagre da espécie humana », por outro
lado ele protesta, à Torres, contra o jurismo e a falta de praticidade da política brasileira,
clamando por uma elite ilustrada que proceda à modernização do pais pelo alto, cuidado
da população (Amado, 1979). Em 1917, ele enunciaria com clareza o « realismo
sociológico governista »:

“Onde não existe opinião pública para compreender, formar certas noções, onde
não se organizam núcleos vivos, responsáveis, conscientes de população, não é
possível à palavra dos homens desinteressados encontrar a ressonância que faça um
ambiente favorável ao êxito das ideias. As reformas têm de vir por si mesmas,
arrastadas pelas forças dos próprios fatos que circunstâncias inelutáveis
determinam ou pela dádiva de cidadãos bem intencionados quando a fortuna os
coloca no poder” (Amado, 1963:310).

A passagem da década de 1910 para a de 1920 foi a segunda grande virada


no movimento de ideias políticas durante a Primeira Republica. Além do surgimento do
partido comunista e do movimento de arte moderna, o período foi politicamente
marcado por três eventos cruciais na evolução do regime, dois propriamente políticos e
um terceiro, de natureza politico-intelectual. O primeiro dos eventos políticos foi a
segunda campanha presidencial de Rui Barbosa, em 1919, que passou a admitir a
discussão da chamada « questão social », na ordem do dia com o fim da Grande Guerra
45

(Rui Barbosa, 1960). A campanha cristalizou a linha judiciarista de oposição liberal ao


regime – e, tanto assim, que a seguinte, que teve Nilo Peçanha por candidato, foi
marcada por tintas bem democráticas e, por conseguinte, uma linguagem mais acessível
e popular. Esse fato não passou despercebido para um establishment avesso a comícios
e habituado a eleger fraudulentamente seus candidatos apenas por banquetes, cartas e
declarações oficiais. Por isso até mesmo seus membros « esclarecidos » acusaram a
campanha de Peçanha de demagógica, numa chave abertamente elitista, de que são
exemplos os discursos então proferidos pelos deputados Gilberto Amado (1979) e
Francisco Campos (1979). Em São Paulo, o tom da imprensa oficial chegou mesmo às
raias do racismo (Motta, 1992). O segundo evento relevante dessa virada foi a
deflagração da sucessão de revoltas militares tenentistas, no ano do centenário da
independência, ocasião em que a referida oposição modernizadora fez sua entrada no
cenário político. Essas revoltas evidenciaram uma radicalidade que, assustando tanto os
apoiadores do « sistema », esclarecidos ou não, como seus adversários liberais,
apontava no sentido de uma nova oposição ideológica, mais acirrada, cuja natureza
propositiva ainda não parecia muito clara. Essa « falha », entanto, seria logo suprida
pela absorção do ideário de Alberto Torres e, como veremos, de Oliveira Viana.

De fato, do ponto vista intelectual, o terceiro evento, fundamental para a


evolução dos argumentos ideológicos tenentistas, foi a publicação, em 1920, da primeira
obra de Francisco Jose de Oliveira Viana, Populações Meridionais do Brasil, que
obteve um segunda edição logo em seguida e constituiu um verdadeiro best-seller que,
em quatro anos, levaria o desconhecido « sociólogo » fluminense ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Nessa obra, Viana colocava o latifúndio autárquico, autônomo
em relação à sociedade e ao Estado, onipotente diante da inexistência da pequena
propriedade rural ou de uma burguesia, como matriz da sociedade brasileira. Essa
sociedade teria então se desenvolvido destituída de sentimento de cidadania e de
organização político-econômica, governada que era, inevitavelmente, por uma
parcialidade oligárquica que, sob pretexto de grandes princípios liberais importados, na
verdade lutava clientelística e patrimonialmente pelo poder. Na ausência de uma classe
média e de vínculos sociais entre elites e o povo, o único elo entre estes seria o coronel,
isto é, o oligarca local, senhor do latifúndio. Esse regime de dependência do mandão
local, segundo Viana, continuava a existir porque o Estado republicano não rompia com
a lógica desagregadora do latifúndio para, adentrando seus domínios, conceder à
população subjugada a efetividade de seus direitos civis, sem os quais nunca se
46

consolidaria o sentimento pleno de individualidade e de independência pessoal, que


caracterizaria a modernidade.

Nesse sentido, conforme ficaria mais bem delineado em O ocaso do Império


(1925), este regime se destacava como o período de ouro do Brasil. Marcado, na
Regência, por reclamos por federalismo e autogoverno, que na realidade serviam de
fachada para as rivalidades oligárquicas de campanario, esse regime, capitaneado por
uma pequena elite de estadistas extraordinários, como Paraná, Itaboraí, Caxias,
Vasconcelos, Eusébio de Queiros e Uruguai, presididos por Dom Pedro II, teria sido
capaz de, compreendendo a tendência centrifuga da vida nacional e a relatividade dos
argumentos importados liberais, nadar contra a correnteza e reivindicar a centralização
do poder no centro, a despeito de toda a « modernidade liberal » em voga nos países
centrais. Dai porque haviam se organizado contra o movimento descentralizador
efetuado pelo Ato Adicional, bancando o chamado Regresso e a consequente
centralização político-administrativa. A existência de um poder moderador
centralizador, cercado de uma elite de estadistas extraordinários, com assento no
Conselho de Estado, resistentes aos interesses facciosos regionais, teria sido responsável
pela consolidação da então frágil unidade nacional e, através dela, de um projeto de
nacionalidade brasileira. O chamado « poder pessoal » do Imperador, ao invés de
condenável, havia sido o que mantivera, «na volubilidade das situações parlamentares e
na instabilidade das situações ministeriais, a tradição e o prestigio da autoridade,
ameaçada a todo instante pelas crises inevitáveis dos partidos e pelas eventuais
coligações faccionárias, que se amatulam contra o governo para enfraquecê-lo e destruí-
lo ». Dessa forma, na mesmíssima chave interpretativa de Nabuco, o poder moderador
havia desempenhado «uma função equivalente à da realeza no continente europeu,
quando se alia ao povo para desoprimi-lo da compressão da nobreza feudal ».

“D. Pedro nos da meio século de progresso moderado, disciplinado, sadio. Meio
século de paz, de tranquilidade, de ordem. Meio século de legalidade, de justiça, de
moralidade. Pela atração da majestade imperial, contém o centrifuguismo das
províncias. Pela ascendência de seu poder pessoal, corrige a hostilidade, a
intransigência, o exclusivismo das facções políticas. (...) Durante o meio século de
seu reinado, ele exerce, enfim, a mais nobre das ditaduras – aquela « ditadura da
moralidade », de que fala um historiador, e que é, sem duvida, a mais poderosa
força de retificação moral, na ordem publica e privada, que jamais conheceu o
nosso povo” (Viana, 1987).
47

O impacto e as influências de Oliveira Viana têm sido bastante bem


estudadas e por isso elas nem teriam aqui lugar. O que importa reter é que o impacto
dessa obra em seu tempo foi, em boa parte, devida à forma com o autor deu conta, de
forma coerente, concatenada e simultânea, das três questões então na ordem do dia, sem
contrariar o ambiente geral de expectativas que, no fundo, eram de antemão favoráveis
ao diagnostico e às soluções que ele acabaria por dar. A primeira delas era o desafio da
« questão nacional », colocado por Alberto Torres: Viana satisfazia os critérios
epistemológicos de conhecimento das peculiaridades da formação social brasileira, via
literatura « cientifica social » francesa (Le Bon, Demoulins, Le Play, etc.), para declarar
a necessidade urgente de modernização do pais. Segundo, Viana resolvia a questão do
lugar do Império dentro da historia republicana do Brasil, como paradigma a ser seguido
em termos de centralização de um poder imparcial e nacional, a ser restabelecido sem,
porém, acarretar uma restauração monárquica. Ou seja, o passado nacional servia de
exemplo para a contemporaneidade, na melhor tradição da historia magister vitae. Por
fim, Viana conseguia fazer uma critica profunda, mas equilibrada e não explicitamente
partidária, do regime republicano existente, nos seus pontos mais combatidos, isto é, no
que ele continha de democraticamente falso, de federativamente exagerado e de
intelectualmente artificial. Esses três tópicos – discurso nacional calcado na
especificidade nacional, o resgate do Império como experiência institucional positiva e a
critica do regime existente, numa argumentação clara e encadeada – desempenharam
um papel fundamental no êxito obtido pela sua obra e na sua difusão, por um publico
que se alargava pelas cidades em acelerado processo de urbanização, a ponto de
Capistrano de Abreu afirmar que então Oliveira Viana « grassava » em popularidade.
De forma que, em 1930, pode-se dizer com certa segurança que não havia
« intelectual » político vivo mais conhecido e respeitado, que Oliveira Viana. Foi nesse
ano crucial, alias que, em Problemas de política objetiva, Viana, preconizando, como
Torres, uma nova reforma constitucional, queixando-se da falta de um eixo
modernizador do pais, afirmaria:

“Esse centro de coordenação, de estabilização, de fixação, precisa vir, precisa ser


inventado, precisa ser descoberto. Há quarenta anos seguros, a nossa vida política
vem correndo descontínua, incoerente, instabilíssima, variando a todo o momento,
conforme variam as ideias dos chefes (…). Essa instabilidade administrativa e
política da vida da República (…) deriva justamente da ausência de um centro
permanente de orientação e equilíbrio na cúpula do regime. Em suma, da
inexistência de um poder político vitalício entre os poderes temporários criados
48

pela Constituição Republicana. (…). O problema central da obra revisionista há


de ser, pois (…) criar um quarto poder, tal como o antigo Poder Moderador, que,
sendo judiciário também, tenha, entretanto, o direito de iniciativa, que o Judiciário
não tem” (Viana, 1930).

De forma que, após a Revolução de 1930, diante da inexorabilidade da


reconstitucionalização do pais, enfrentar-se-iam, na comissão governamental
encarregada de redigir a nova constituição do pais, dois projetos de poder moderador. O
primeiro, de cunho liberal, capitaneado por Afrânio de Melo Franco, pretenderia o
restabelecimento de um conselho de Estado que fizesse às vezes do antigo Senado,
influenciado pela ideia « iluminada » de um grupo de estadistas que velasse pela
continuidade administrativa, freando os excessos do executivo. O segundo, reclamado
pelos tenentes de Juarez Távora, encarnaria a proposta de Alberto Torres e de Oliveira
Viana de um conselho que, lendo o Império de outra forma, representasse, dentro de um
quadro liberal e democrático, um poder discricionário que pudesse levar adiante a
modernização do pais, sem sujeitar-se à « politicalha » das oligarquias que, pela
reconstitucionalização, pretenderiam retomar as rédeas do pais. O fracasso desta ultima
proposta, pelo abandono que dela parece ter feito o próprio Oliveira Viana, e
consubstanciada no tímido papel do Senado da constituição de 1934, parece mesmo o
símbolo da impossível conciliação entre elitismo liberal e elitismo discricionário
modernizador que levaria à radicalização e ao posterior golpe do Estado Novo, em
1937, concentrando o poder nacional na figura do presidente de Republica. Foi então
que um confesso antiliberal como Azevedo Amaral, alias um antigo adepto do
« realismo salesiano » da hipertrofia presidencial, pôde escrever com todas as letras, a
respeito de Getulio Vargas, num artigo denominado Realismo político e democracia,
que « o poder pessoal, que as ficções do liberalismo democrático depreciaram,
desfigurando-o e fazendo-o perder a sua significação fundamental e permanente,
ressurge como elemento básico e insubstituível na direção das atividades do Estado e no
encaminhamento da marcha progressiva da Nação » (Amaral, 1943:35).

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