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Resumo: Ester artigo investiga as razões de resgate do conceito de poder moderador durante a
Primeira República. Nossa hipótese é a de que, além do desempenho deficiente da jurisdição
constitucional, ela se deve à assimilação progressiva, pelos republicanos, das críticas
monarquistas ao novo regime, e da tentativa de encontrar outras formas institucionais, capazes
fortalecer a autoridade do Estado, sem abdicar do regime democrático. O fracasso dessa
tentativa de restabelecer o poder moderador, como meio termo entre judiciarismo e
excepcionalidade, favoreceria a escalada autoritária que resultaria na instauração do Estado
Novo.
Title: Between constitutional jurisdiction and the state of siege: the ghost of moderating power
in the political debate of the First Republic.
Abstract: This article investigates why the concept of moderating power was revitalized during
the First Republic. Such a revival was made possible due to the gradual assimilation by
republicans of the critics to the new regime first elaborated by monarchists; the poor
performance of judicial review and the desire of nationalists to strengthen the authority of the
state without giving up the democratic regime. The failure of this attempt to restore the
moderating power as medium between judicial review and exceptionality favored the
authoritarian way of the Estado Novo.
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Gama Filho (UGF). Professor da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi pesquisador visitante da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e
do Centro de Pesquisas Políticas Raymond Aron (CPPRA/EHESS), em Paris. Autor de Brésil de la
monarchie à l’oligarchie - la construction de l'État, les institutions et la représentation politique (1822-
1930), publicado pela Hamattan em 2011.
2
(Schmitt, 1994), sendo aquele que exerce a ditadura em seu nome um ditador
comissário (Schmitt, 1992). A característica da sua legislação é a integração de uma
legalidade de períodos excepcionais, na conjugação de três características: finalidade
superior, circunstâncias excepcionais e derrogação da legislação de « normalidade »
(Saint-Bonnet, 2002). Assim, é no seu próprio interesse que o Estado de direito permite
a sobrevivência, em boa e devida forma, de uma manifestação tão tipicamente soberana,
na sua forma tradicional, isto é, una e discricionária. Entretanto, os poderes
extraordinários conferidos ao chefe são delimitados pelas condições estabelecidas pela
constituição, que determina as circunstâncias nas quais, e o tempo pelo qual, suas
próprias disposições poderão ser derrogadas, o que em geral dependera da duração da
situação excepcional. Esse instituto, que existia desregulamentado no Antigo Regime, e
servira aos propósitos de construção do Estado sobre a fragmentação política medieval,
é hoje, a mais das vezes, exercido pelo Chefe de Estado ou de governo, sob aprovação
prévia ou ratificação posterior do Parlamento. Embora não haja aqui lugar para
desenvolver o argumento, penso ser possível enquadrar, na categoria da
excepcionalidade, os poderes que têm os chefes de Estado ou governo para legislarem
por decreto-lei, como no Brasil, na Itália ou na Dinamarca.
aliás, se explica pela pressuposição de que a ameaça à vontade soberana, embutida nos
casos submetidos a uma corte constitucional, apresenta características distintas daquelas
que permitem a decretação do estado de exceção, sobretudo no que tange à sua urgência
e potencialidade danosa. Nem por isso, isto é, por se tratar de um mecanismo jurídico de
moderação institucional, a decisão perde, entretanto, seu caráter político e
discricionário. Quem o reconhece é o próprio Hans Kelsen, criador do modelo de corte
constitucional moderna, titular do poder de exercer o controle concentrado de
constitucionalidade. Segundo ele, quanto mais elevado o topos jurídico a ser decidido
pelo tribunal, mais político e sujeito a interpretações abertas – e, portanto,
discricionárias - ele estará2.
2
« O carater politico da jurisdição é tanto mais forte quanto mais amplo for o poder discricionario que a
legislação, generalizante por sua propria natureza, lhe deve necessariamente ceder (...). Na medida em
que o legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites, interesses contrastantes entre si, e
decidir conflitos em favor de um ou de outro, esta lhe conferindo um poder de criação do direito, e
portanto um poder que da à função judiciaria o mesmo carater 'politico' que possui – ainda que em maior
medida – a legislação » (Kelsen, 2003).
3
« O juiz constitucional se apresenta, portanto, como o 'representante' encarregado de exprimir a vontade
do soberano inscrita nos textos constitucionais. Ora, esses textos têm por autor 'o povo soberano (...)',
soberano ficticio suposto impor, ao cabo do tempo, sua vontade constituinte aos poderes constituidos.
Esse 'povo soberano constituinte ' correspondera ao 'povo eleitoral' que designa seus representantes
politicos ? (...) O constitucionalismo supõe que a vontade do soberano dure, que ela seja continua. (...) O
juiz constitucional reflete aos parlamentares a imagem de um representante que deve respeitar a
constituição. (...) O contrôle de constitucionalidade permete assim à vontade do 'povo constituinte' se
impor exteriormente aos poderes constituidos » (Blachèr, 2003).
5
Por fim, o poder moderador acha-se num ponto médio, a meio caminho
entre o estado de exceção e o controle jurisdicional na constitucionalidade. A existência
de um poder neutro, acima dos demais poderes (executivo, legislativo e judiciário),
provou-se, no decorrer da Revolução Francesa, um instrumento indispensável para se
garantir o equilíbrio constitucional de um Estado moderno. Esse Estado, se por um lado
deveria aceitar a premissa de que era licito a cada individuo perquirir seus próprios
interesses particulares, e fazê-los representar politicamente, acabava, porém, balançado
em seu equilíbrio pelos entrechoques constantes desses interesses no seu interior. Uma
vez que, entre estes, não havia arbitro ultimo, os conflitos privatísticos instalados no
âmbito dos poderes políticos tendiam a degenerar em convulsões institucionais que,
extrapolando os limites jurídicos, resvalavam para o golpe e a consequente ditadura de
um interesse sobre os demais. A base liberal do sistema político ficava assim
comprometida pelo próprio livre desenvolvimento de seu principio de autonomia
individual. Os contemporâneos da Revolução Francesa entenderam que seria possível
evitar esse desfecho se houvesse, no interesse coletivo, acima desses representantes dos
apetites particulares, um poder arbitral, chamado neutro, régio ou preservador,
encarregado de agir discricionariamente em hipóteses legalmente previstas de crise
política, dentro porem de estreitos limites, para evitar as ameaças à ordem
constitucional, enquanto expressão da vontade soberana, desarmando as crises
institucionais4.
4
“Em todos os governos, é preciso que haja uma autoridade, não ilimitada, mas discricionária. Essas duas
coisas foram confundidas; e dessa confusão resultaram muitos males. É preciso que essa autoridade
discricionária jamais se dirija aos homens, pois os homens devem sempre estar a salvo do arbítrio. Ela
deve dirigir-se aos poderes e deve retornar às mãos de quem não possa jamais apoderar-se deles ou deixá-
los às suas criaturas. Assim, o poder preservador não pode ser encarregado de nenhuma eleição, para que
ele jamais tenha interesses a desbancar. Assim, sua autoridade discricionária será puramente
preservadora » (Constant, 1991).
6
conflito entre legislativo e executivo cria um impasse político de tal ordem, num clima
de mutua animosidade, sem que nenhum dos dois poderes, contudo, esteja incorrendo
numa ilegalidade que possa ser sanada por meio de provocação de um tribunal
constitucional. Esse fato não torna menor a necessidade de desarma-lo, em beneficio da
governabilidade e do equilíbrio do sistema. Pode-se dizer, portanto, que o poder
moderador exerce um controle, não jurisdicional, mas político, da institucionalidade,
desempenhando um papel que, sendo político como o estado de exceção, tem fins de
equilíbrio constitucional, como a justiça homônima.
5
Do ponto de vista historico, o chefe de Estado republicano, nesses paises, é apenas o sucessor do
monarca constitucional, exercendo suas funções a partir de uma legitimidade nova, isto é, a democratica.
Essa filiação é bastante clara, como demonstram as circunstâncias fortuitas de seu surgimento na França,
na década de 1870, bem como o debate que o acompanhou então. Refiro-me aos primeiros anos da
Terceira Republica, denominada « republica dos duques », onde a restauração monarquica, desejada pela
Assembléia Nacional, não se efetuou pela incapacidade dos monarquistas de chegarem a um consenso
sobre qual das três casas reais disponiveis – a de Bourbon, a de Orléans e a de Bonaparte – deveria ocupar
o trono. Montou-se então uma presidência da Republica, que se pretendia provisoria, onde um membro da
Assembléia, por ela eleita, faria as vezes do rei.
7
6
Embora se diga que a reflexão de Constant decanta, na realidade, nas atuais formas do contrôle
jurisdicional de constitucionalidade, entendo que a preservação deste poder na pessoa do chefe de Estado
não invalida a aplicação contemporânea de sua teoria, seja no seu modo primeiro, puramente liberal
monarquico, seja na sua forma segunda, democratico-republicana.
7
Termômetro daquela primeira passagem foi a polêmica politico-intelectual em torno da interpretação do
poder discricionario do chefe de Estado, de acordo com o art. 14 da carta francesa. Travada entre 1829 e
1830 pela imprensa, dividida etre ultras e liberais, defendiam os primeiros que aquele artigo concedia ao
monarca um verdadeiro poder de exceção, na qualidade de depositario da soberania, na hipotese de crise
institucional com o parlamento. Os liberais, por outro lado, não viam no artigo mais que um poder
regulamentar do rei, que, no seu papel moderador, não poderia jamais pretender legislar sem a
colaboração do parlamento, devendo, ao contrario, satisfazer-se em nomear ministros que granjeassem o
apoio da daquela maioria (Waresquiel & Yvert, 2002) (Saint-Bonnet, 2002) (Laquièze, 2001).
8
A idéia de que o senado exerce um poder moderador encontra-se ja em Montesquieu (1997), como meio
de prevenir conflitos entre chefe do executivo e câmara baixa. Tornou-se justificativa de existência de
8
uma câmara alta no modelo presidencialista norte-americano. Na verdade, a moderação ai não se daria
pelo exercicio discricionario de poderes moderadores, mas pelo simples lugar da instituição entre dois
poderes mais ativos, servindo de filtro da atividade de ambos, na logica dos « freios e contrapesos ». A
idéia de uma câmara alta como poder moderador propriamente dito pertence à França, quando Constant ,
Sieyès e outros buscaram elucidar a quadratura do circulo institucional no periodo do Termidor (Constant,
1991) (Dupuy & Morabito, 1995) (Gauchet, 1995) (Bredi, 1988). Sieyès elaborou um projeto segundo o
qual o contrôle politico e jurisdicional seria exercido pelo senado, mas Napoleão Bonaparte alterou
bastante o projeto a ponto de desfigura-lo, na constituição do Consulado. Tornou-se, porém, referência
para o regime bonapartista, a ponto de ser ressuscitado no Segundo Império, nunca tendo sido capaz de
exercer moderação alguma.
9
O termômetro dessa segunda passagem, do Estado liberal para o liberal-democratico, foi o debate em
torno do alcance e natureza do papel do chefe de Estado de Weimar enquanto guardião da constituição e
sobre a conveniência de ser tal função, ao contrario, exercida por um tribunal. As estrelas do debate foram
Carl Schmitt (1998) [1931] em O guardião da constituição e Hans Kelsen (2003) [1931] em sua resposta
Quem deve ser o guardião da constituição ?, exatamente trinta anos apos a polêmica envolvendo liberais
e ultras na França dos fins da Restauração.
9
lhes era conferida, porém, a inamovibilidade, o que permitia ao partido que estivesse na
posse do poder executivo remove-los conforme sua conveniência política, o que só foi
atenuado pela resolução n. 559 de 28 de junho de 1850, que elencou as hipóteses de
remoção em numerus clausus (São Vicente, 1958:324). Além disso, compreendia-se
que o poder executivo podia, excepcionalmente, aposentar os juízes de direito, como
ocorreu em 1856 em Pernambuco, no episódio do desembarque de Serinhaém. Na
ocasião, o governo imperial aposentou compulsoriamente desembargadores que, por
injunções da política provincial, haviam absolvido importantes personalidades que se
achavam comprovadamente comprometidas com a continuação do tráfico negreiro,
proibido pela lei Eusébio de Queirós (Nabuco, 1997:220). Além disso, a separação de
poderes foi se aperfeiçoando somente ao longo do século, pois que era permitido aos
magistrados ocuparem cargos legislativos e executivos, sendo estabelecidas as
incompatibilidades somente a partir da década de 1850. Por fim, havia certas figuras,
como o juiz municipal, que, encarregado de causas menores, não gozava sequer de
vitaliciedade. Também não havia exigência de concurso público. Todos estes doestos,
porém, devem ser, como tudo, compreendidos na mentalidade da época, pois, conforme
vimos no primeiro capítulo, o controle jurídico de constitucionalidade ou a prevalência
prática do direito sobre a política não tinham lugar na Europa continental no período. O
poder judiciário era dependente do executivo também na França, na Espanha e em
Portugal.
Por outro lado, a constituição previa, em seu artigo 179, XXXIV e XXXV, a
possibilidade de decretação do estado de exceção, em casos de rebelião ou invasão
estrangeira. Ele deveria ser decretado por ato da Assembleia e apenas na ausência desta,
em caso de perigo iminente, poderia o governo fazê por conta própria, submetendo em
seguida seus atos à inspeção daquela. Havia leis ordinárias que regulavam a ação dos
poderes públicos, permitindo-lhes “dar buscas de dia, e até mesmo de noite; fazer sair
para fora indivíduos que têm ali domicílios, sequestrar armas e munições, e proibir
ajuntamentos e publicações impressas”. Entretanto, havia também legislação repressiva,
prevista no Código Criminal, que dispensava a necessidade de suspenderem-se as
liberdades civis (São Vicente, 1958:433). Embora se possa dizer que a lógica da
“salvação pública” tenha predominado no funcionamento das instituições políticas para
debelar as inúmeras insurreições, nos primeiros vinte e cinco anos do regime
representativo instituído em 1824, o fato é que, mesmo durante este período, o estado de
exceção somente foi decretado em províncias conflagradas e jamais em todo o território
11
nacional. Nem mesmo durante a guerra do Paraguai fugiu-se a esta regra. Ainda assim,
como forma de controle social ou equação autoritária de crises políticas, o estado de
exceção foi rareando durante o Segundo Reinado, sobretudo depois da última revolta
provincial, em 1848, a ponto de jamais ter constituído, durante o período, tópico
relevante de controvérsia constitucional, o que viria a ocorrer somente sob a República.
que justificara a adoção do poder moderador no Primeiro Reinado, foi assim posta a
serviço da estabilidade institucional, à exemplo das demais monarquias constitucionais
europeias.
Embora Benjamin Constant tivesse sido claro ao frisar que, sem eleições
honestas, o sistema representativo não passava de uma ficção – e com ele, todo o
arcabouço do Estado liberal por ele delineado (Constant, 1980:273), as fraudes foram
uma característica de todo o processo político desde pelo menos 1840 e eram
promovidas pelos partidos que estivessem no poder para assegurar seu predomínio
quase que incontrastável, o que ficava patente nas denominadas “câmaras unânimes”,
i.e., eleições legislativas onde a oposição mal conseguia cinco cadeiras em cem. Isto
importa afirmar que a alternância dos partidos no poder – representantes, por
excelência, dos interesses particulares na esfera pública – não seria possível pelo voto
nacional, mas somente se houvesse a intervenção de um poder supraoligárquico que
pusesse deliberadamente um fim ao domínio de um desses partidos e chamasse o outro
ao poder. Por outro lado, os partidos, constituindo verdadeiras frentes políticas
fracionadas entre diversos caciques, impunha que o monarca escolhesse algum deles.
Isso significa que não somente o poder moderador decidia juntamente com o Conselho
de Estado quando era hora de pôr fim a uma “situação” partidária, como ele deveria
escolher qual o chefe que deveria ser convocado. Ainda que houvesse praxes nesse
processo, envolvendo consultas ao próprio primeiro-ministro demissionário, sempre
ficava reservada ao monarca a possibilidade de guiar o processo conforme entendesse
mais adequada.
10
“Do choque ou divergência entre a Coroa e os ministérios surgiram mudanças políticas que
contribuíram para a mais rápida solução do problema e também para o declínio do sistema imperial. Ao
invés, então, de ver-se legitimado pela atuação reformista, pela eficácia em solucionar problemas, o
sistema imperial perdeu a legitimidade que conquistara. É que as principais reformas que promovera
atendiam a interesses majoritários da população que não podia representar-se politicamente” (Carvalho,
1996: 296 e 298).
14
A forma como tais conceitos se difundiram então, porém, não era a mesma
como eles até então vinham sendo empregados. Até então, os autores buscavam
distinguir o instituto do poder moderador e a pessoa do Imperador, tanto do fenômeno
do imperialismo, quanto do governo pessoal. Otoni, por exemplo, afirmava estar
“convencido de que no ânimo constitucional do Sr. D. Pedro II não se aninha a mais
15
remota ideia de usurpação” (Otoni, 1913). Mesmo Tito Franco, ainda que numa chave
muito mais indignada, em nenhum momento cita diretamente o Imperador, falando que
os males que apontava decorreriam do “imperialismo”. O debate que, a este respeito,
tradicionalmente ocupava a arena pública, era travado, desde 1837, em torno da
existência ou não de referenda ministerial nos atos praticados pelo poder moderador,
dividindo-se a este respeito os liberais, como o sobredito Teófilo Otoni (Otoni, 1913) e
o próprio Zacarias de Góis e Vasconcelos (Vasconcelos, 1978), de um lado, e
conservadores, como o Visconde de Uruguai (Uruguai, 1960) e Brás Florentino de
Sousa (Sousa, 1978) 11. Nenhum deles questiona a existência do poder moderador, nem
da monarquia. Os liberais radicais, que sustentavam a existência do « poder pessoal »,
atribuíam os seus eventuais os desmandos, não ao Imperador, mas à « subserviência dos
ministros e cortesãos, que proclamam uníssono a onipotência imperial » (Otoni,
1913:216). O jovem Tavares Bastos de Os males do presente e as esperanças do futuro,
publicado no ano seguinte à Circular de Otoni, ainda não destoava dele, como
entretanto faria depois12.
11
Embora Portugal também possuísse poder moderador, o debate sobre a existência ou não de referenda
esteve longe de ter o alcance que teve no Brasil. A discussão portuguesa sobre o poder moderador era
influenciada pelos próprios livros de Zacarias e Uruguai, o contrário não ocorrendo aqui. Somente em
1885, por meio de um ato adicional, a carta portuguesa de 1826, que era cópia da brasileira, impôs
expressamente « a responsabilidade ministerial pelos atos do poder moderador, bem como limites
temporais para a convocação e a dissolução da Câmara dos Deputados e da parte eletiva da Câmara Alta,
restrições ao direito de perdão e comutação de penas aplicadas e ministros de Estado”(Canotilho,
1998 :138). A falência do sistema parlamentar, porém, engendrou a restauração da discricionariedade
primitiva do poder moderador num terceiro ato adicional, onze anos depois.
12
« Falar de governo pessoal numa monarquia representativa é, antes de tudo, uma inverossimilhança,
porque nela é isto impossível. Com efeito, o sistema que nos rege é o da soberania nacional, isto é, do
país pelo país. (...) O ministério é, portanto, uma expressão nacional : sobre ele deve cair o peso do
governo, em toda a extensão da palavra (...). Certo, a Coroa tem, como tal, uma missão de maior alcance
que a do grande eleitor de Sieyès. Ela pensa, delibera, preside ; mas não pode obrar contra a consciência
da responsabilidade no ministro, contra o voto, que a faz efetiva, da soberania no parlamento (...). Além
de impossível, isso de governo pessoal é uma visão. Apontai-me os casos em que o príncipe, que
atualmente conduz os nossos destinos, tenha excedido dos limites de um imperador constitucional. (...)
Demais, considero fraqueza ou traição alegar-se o obstáculo de um governo pessoal » (Bastos, 1976 :39).
13
Refiro-me ao célebre discurso do sorites, do senador Nabuco de Araújo, quando da queda do gabinete
Zacarias e a ascensão do ministério conservador de Itaboraí, em 16 de julho de 1868, protestando contra o
poder moderador: “Quero apenas fazer um protesto (…), não sobre a legalidade do ministério atual,
porque em verdade a Coroa tem o direito de nomear livremente os seus ministros, mas sobre a sua
legitimidade. E vós concebeis a diferença que há entre legalidade e legitimidade” (Nabuco, 1998:764).
16
Por outro lado, o desgaste provocado pela ação reformista da Coroa junto
aos partidos oligárquicos nacionais não se restringiu aos liberais ou radicais. O processo
de abolição da escravatura, em especial, iniciado em 1871, acabou por disseminar a
crítica ao poder pessoal ao próprio partido conservador (Carvalho, 1996), que sempre se
gabara de constituir o principal pilar do trono. Na oposição, um dos principais chefes do
partido, o Barão de Cotegipe, em 1879, afirmaria no Senado que « a preponderância da
Coroa sobre os demais poderes, chamem-na como quiserem – poder pessoal, poder
ditatorial, prerrogativa real, existe, com efeito » (Fialho, 1886 :22). Em 1884, seria um
14
Como veremos, Joaquim Nabuco partilhará do diagnóstico de Tavares Bastos, para chegar, porém, a
uma conclusão oposta, favorável ao « poder pessoal ».
17
15
“A centralização é essa fonte perene de corrupção, que envenena as mais elevadas regiões do Estado.
(…) Em verdade, o que é o nosso governo representativo ? nosso parlamento ? nossas altas corporações ?
Tudo isso assenta no ar. É o cetro, que eleva os humildes e precipita os soberbos. Por baixo está o povo
que escarnece”. Cf. Tavares Bastos (1997:28) [1870].
18
“No sistema de governo americano há um poder que vela pela observância das
divisas constitucionais entre os três poderes políticos do Estado – é o poder
judiciário. As sentenças deste poder, quando proferidas regularmente, pelo seu
órgão supremo, constituem a suprema aspiração do direito constitucional e formam
a verdadeira lei, a lei indubitável, a lei irrecorrível do país. A nossa constituição,
tomando aos Estados Unidos esta instituição, incomparavelmente benfazeja, lhe
deu, nos nossos textos constitucionais, uma consagração explícita e categórica,
convertendo em texto de lei aquilo que nos Estados Unidos era a expressão da
jurisprudência estabelecida pelos tribunais. Ficou desde então estabelecido, por um
modo absolutamente dogmático, a impossibilidade de se alterar, por parte do
Executivo, ou do Legislativo, uma decisão final do órgão supremo do nosso poder
judiciário” (Rui Barbosa, 1955: 268) [1915].
18
Esse suposto papel moderador do Supremo Tribunal Federal impregnou o proprio discurso judiciario.
Na cerimônia de 175 anos de existência de um supremo tribunal (a atual instituição incorpora em sua
historia a do imperial Supremo Tribunal de Justiça), em 18/09/2003, o ministro Carlos Velloso
reafirmaria a intenção de Pedro II de fazer de uma suprema corte o poder moderador, de acordo com a
narração de Salvador de Mendonça. O ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki,
iria mesmo às vias explicitas: “a Suprema Corte, como representa o poder moderador do Estado, tem no
Brasil uma história importantíssima. Acho que, além de ser a principal Corte, por força institucional, tem
se mostrado na sua prática a principal Corte pelo conteúdo de suas decisões, pela coragem histórica da
quase totalidade de seus julgamentos e acho que o povo brasileiro, a nação brasileira, pode se orgulhar da
sua Suprema Corte” (http://www.femperj.org.br/jornal/noticias/n20092003_1.htm )
22
Seja como for, deve ser dito em honra ao Supremo que, ainda que todos
esses obstáculos fossem miraculosamente superados, ele provavelmente jamais poderia
ter exercido a influência « moderadora » de seu congênere norte-americano. E isto, pelo
fato muito concreto de que ele não dispunha do poder de vincular os juízes e tribunais
que lhe eram inferiores ao resultado de seus julgados, ao contrário da Supreme Court.
Esse poder, que se programava por um mecanismo denominado stare decisis, firmava a
orientação do tribunal num determinado assunto a partir do julgamento de um caso
particular, e obrigava todo o aparelho judiciário (ao menos o federal), na adoção do
mesmo ponto de vista, criando uma jurisprudência obrigatória. Como o stare decisis,
porém, não existia no Brasil, não apenas os juízes inferiores, federais ou estaduais, mas
os próprios poderes executivo e legislativo, federais ou estaduais, não se entendiam
obrigados a rever sua própria linha de orientação na interpretação da legalidade de seus
próprios atos. Assim, cada cidadão cujos direitos fossem violados era obrigado, se
realmente desejasse « justiça », a levar seu próprio caso a um juízo comum e aguardar
pacientemente que, depois da passagem por todas as instâncias inferiores, o processo
chegasse ao Supremo - ainda que este já houvesse examinado a matéria diversas vezes
no mesmo sentido. Somando-se esse problema ao do trafico de influência, vê-se que a
« função moderadora » do Supremo era exercida apenas a quem tivesse prestigio,
23
“Não é mister abrir lutas com os secretários do presidente da República e nem isso
seria possível, em um regime em que a autoridade é unipessoal, concentrando-se,
portanto, toda a responsabilidade na pessoa do depositário único do poder (Sales,
1908:80). Os que ainda não puderam ainda compreender bem a essência do regime,
21
“Os elementos agitadores (…) comprometem-nos, pois que, à sombra da nossa condescendência, vão
acarretando a nossa responsabilidade em sua ação, francamente e calculadamente anarquizadora. (…). Os
exaltados é que nos vão levando a reboque nas suas arruaças, meetings de indignação, etc.. (…) Ou os
declaramos adversários e lhes damos combate, ou renunciaremos à aspiração de formar um partido
conservador, ordeiro, governamental e orgânico (…) Basta de Câmaras agitadoras. Precisamos de ordem
para governar bem” (1908: 136).
26
partidária deveria ser neutralizada ou anulada, mas somente mantida dentro de limites: a
competição e intervenção dos partidos na formação dos governos podem ser
indesejáveis, mas é legítima. Nesse aspecto, eles se mantêm na tradição do pensamento
político liberal. É certo que Deodoro da Fonseca havia também tentado, em novembro
de 1891, dissolver o Congresso, alegando que este havia se corrompido e não
representava mais os interesses da nação. Mas Deodoro era antes de tudo um militar,
sendo que o Exército sempre acreditou ser um depositário do interesse nacional,
desinteressado exatamente porque não político. A novidade, em Campos Sales, é que,
pela primeira vez, um civil ocupante de um alto cargo da administração nacional, de
carreira toda político-partidária, sugere que a participação dos partidos políticos nos
assuntos do governo federal é ilegítima e que, a rigor, não deveria haver partido algum,
uma vez que eles são frutos das ambições pessoais e não possuem princípios que os
norteiem. Temos assim um Executivo que, pretendendo administrar o país, ou seja, em
nome do interesse público, se identifica com o critério técnico, isto é, culto. Interesse
público, tecnicismo, governo, saber, se opõem ao interesse particular, à política, aos
partidos, à ignorância.
Essa discussão tem relevância neste trabalho por dois motivos. O primeiro
diz respeito a uma determinada tese de que o Executivo federal, na República Velha,
por força da política dos governadores, teria se convertido num novo poder moderador.
Essa tese nos parece destituída de fundamento. Parece-nos que ela só pode ser admitida
se, por poder moderador, entender-se “o novo arranjo em torno do qual orbita a política
concreta” ou, como parece sugerir Renato Lessa com alguma ambiguidade, o
“equivalente funcional do poder moderador” (1999:155), o que não é mesma coisa que
afirmar que a República Velha teve um poder moderador e muito menos que o chefe do
Executivo o representou. Historicamente, o poder moderador havia sido uma autoridade
suprapartidária que limitava a ação dos partidos dentro da atividade governamental, que
por eles era exercida em todo o país, e os alternava no poder. A política dos
governadores, ao revés, pretende neutralizar competição partidária, embora não
pretenda eliminá-la, alijando a influência do partidarismo da esfera governamental
federal. Ademais, o poder moderador do Império, devido à centralização, ao inverter
uma situação política, viabilizava a troca de comando de todos os cargos
administrativos das províncias em prol das oligarquias que estivessem anteriormente no
constitucional, quando, como verdadeiros partidos e não facções, respeitem o que é justo”. E ainda :
“(…) eis como em geral se entende a política entre nós, que vem a er quase a arte de achar meios de
coonestar injustiças e tudo o que abrange tal expressão” (Dom Pedro II, 1956:16 e 27).
28
Não pretendo aqui afirmar que tais autores fossem então, no íntimo,
autoritários no sentido de suprimir a liberal democracia. É mesmo duvidoso que
pudessem sê-lo, pelo menos antes que houvessem sido instalados governos formalmente
autoritários na Europa. O que se pretende aqui é apontar que tais atores, na defesa do
situacionismo da República Velha, desenvolveram, em sua atuação pública, argumentos
que justificavam a prática sociologicamente autoritária do regime de 1891, opondo-se às
tentativas oposicionistas de promoção de reformas que tornassem a prática política
verdadeiramente democrática, como o voto secreto, ou que dessem poder efetivo ao
Congresso ou ao Supremo Tribunal Federal. O situacionismo incondicional desses
atores, suas posições de lideranças e a impossibilidade de aceitar argumentos da
oposição, que implicassem na possibilidade de alternância de facções, os impelia,
independentemente do eventual posicionamento íntimo de cada um, a desenvolver, na
esfera pública, um conjunto de argumentos literalmente reacionários, a mais das vezes
calcados na necessidade de reforço da autoridade do Executivo e a defesa da « energia »
como condição da ordem, esta condição, por sua vez, do progresso nacional. Esses
argumentos surgiam especialmente no combate às oposições, fossem eleitorais – como
na campanha civilista e na campanha da Reação Republicana – ou armadas – como as
revoltas da Armada e da Chibata, as insurreições tenentistas, ocasiões que davam ensejo
ao pedido de decretação do estado de sítio e aos debates parlamentares que se lhe
seguiam. Elas também surgiam contra as veleidades do revisionismo e em particular na
defesa do sistema presidencialista de governo. Da mesma forma, embora alguns dos
atores situacionistas pudessem, eventualmente, fazer a defesa da necessidade de
existência de partidos, na prática negavam que os partidos pretéritos passassem de
ajuntamentos egoísticos buscando a partilha do poder. A exigência idealizada de um
partido altruístico, formado em torno de princípios, composto de uma elite de estadistas
31
24
No final do regime, segundo Homero Sena, era a seguinte a posição de Amado : « Orador oficial da
Convenção que apresentou candidatos à presidência e à vice-presidência da República, Washington Luís
e Melo Viana ; prestigiado como intelectual, pelas análises que fazia dos problemas nacionais, encarando-
os de pontos de vista inteiramente novos ; senador por um Estado pequeno, mas amigo pessoal de Júlio
Prestes ; morando numa casa ampla na Avenida Atlântica (...), confessa Gilberto que, nessa época, ‘era
agradável passear na avenida, ir à Colombo, olhar a vida contente na cidade feliz, contemplar do planalto
central da senatoria o futuro desimpedido, o horizonte claro’. Tudo marchava tranqüilamente, pois ‘havia
homem no Catete’ e ‘café nos armazéns’ » (In: Sena, 1967 :147).
32
entretanto, não tinham como ser adequadamente resolvidas pelo aparelho judiciário ou
pelo Supremo Tribunal, dadas as suas já mencionadas limitações. Em 1911, Gilberto
Amado, talvez o maior « sociólogo » do situacionismo, escreveria sobre o estado de
sítio do governo Hermes da Fonseca, ironizando as catilinárias judiciaristas de Rui
Barbosa:
« Vimos que o estado de sítio não é um pavor, cuja única presença suspende o
respirar às nações e determina as clássicas síncopes constitucionais que tanto
espantam os encantadores estilistas do jornalismo patriótico. O estado de sítio entre
nós perdeu o caráter de medida excepcional; não é a enfermidade horrível que há
tempos mestre Rui temia com eloquência se tornasse crônica no Brasil, com toda a
sua gravidade substancial. É, ao contrário, um incômodo leve, cuja intermitência
não assombra (...). O Brasil não parece mais que um sujeito amarelado o
pernóstico, que se mete a falar francês, aparentar musculaturas de atleta (...) e que,
no melhor da festa, zás! arrebenta o fígado numa aluvião de bílis (...). O estado de
sítio e os acontecimentos que o determinaram vieram surpreendê-lo nos
esplendores de uma saúde aparente. Mas foi uma maravilha, uma insulsa e louvável
inutilidade que, longe de paralisar a vida do país, teve apenas o ânimo de ‘sanear’ a
Rua Senador Dantas (então, zona de prostituição elegante); levar ao xadrez
algumas pessoas inócuas; obrigar-nos à impertinência dos salvo-condutos (...).
Mais nada. A Constituição quase funcionou normalmente, nutrindo a
jurisprudência do Supremo que, como instituição nacional, não quis fugir
ilogicamente às delícias da anarquia em que o vimos mergulhar por ocasião dos
últimos trabalhos » (Amado, 1963 :71 e 72).
Assim, pelo menos nos últimos quatro anos da Republica Velha, a maior
parte dos tenentes, cuja origem social e idade os desvinculava do establishment, já não
pleiteavam uma revisão constitucional, e sim uma verdadeira reinstauração da republica
34
num sentido nacionalista. O Brasil deveria passar a ser encarado como um todo
orgânico, sem prejuízo das regiões mais pobres, e esses fins não poderiam ser atingidos
pela mera federalização da Justiça ou pela verdade eleitoral. Era necessária a própria
centralização do pais, com o consequente fortalecimento da União, de forma a dar-lhe
meios para superar os entraves opostos à modernização do pais (Forjaz, 1988). Essa
modernização passava ainda por medidas estatizantes no campo econômico, pela
nacionalização da exploração de recursos naturais e pela resolução de um problema
social que a « politicalha » preferia continuar tratando como caso de policia. O
repertorio de ideias deste movimento era, em muitos sentidos, mais atual do que a dos
« judiciaristas », nela reverberando toda a radicalidade da critica à ordem liberal, que
recrudescera em todo o mundo após a Primeira Grande Guerra. No grupo tenentista
majoritário, cujo chefe era Juarez Távora e que chegaria ao poder em 1930,
predominavam as ideias de dois autores nacionais. O primeiro deles havia escrito suas
duas principais obras em 1914 e as teria visto se disseminarem na década de 20, caso
houvesse sobrevivido. Em seu projeto de reforma constitucional, ele propunha
reinstaurar, sob outro nome, na cúpula do Estado republicano, um poder moderador à
brasileira, isto é, neutro e ativo. Este autor era Alberto de Seixas Martins Torres, antigo
governador do Estado do Rio e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.
Pouco antes de estourar a Grande Guerra, Torres publicara O problema nacional
brasileiro e A organização nacional, obras em que discutia a situação do Brasil do
ponto de vista nacional e internacional, pleiteando uma reforma política que o salvasse
da fragilidade e do atraso em que se encontrava. Embora saído dos quadros
administrativos da república, da qual havia mesmo sido propagandista e, depois, alto
funcionário, Torres havia na juventude sido bastante influenciado pelo positivismo.
Quando redigira seus livros principais, estava absorvido também por outras teorias de
base « cientifica » de seu tempo, criticas do formalismo jurídico enquanto instrumento
valido de conhecimento do real. Embora não haja aqui espaço para discutir essas
influências, o que importa reter é que elas ajudaram Torres a dar-se conta da
vulnerabilidade em que o Brasil se encontrava, num período de imperialismo
internacional predatório, onde as nações mais fortes haviam perdido qualquer pudor,
que outrora pudessem ter se permitido, de submeter as nações mais fracas aos seus
desígnios particulares de poder e riquezas. O verdadeiro fantasma era a China, grande
pais outrora poderoso, tornado presa das grandes potências internacionais, dividida em
protetorados de fato, humilhada pelo estrangeiro (Torres, 1914 a).
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O projeto de Torres espanta ainda hoje pela sua modernidade. Ele suscita
questões e sugere diversos remédios, que só fariam parte da agenda internacional depois
da Primeira Grande Guerra. Entretanto, por mais inventivo que ele seja, e por mais que
criticasse a monarquia, é praticamente impossível não concluir que, em alguma medida,
ele se achava influenciado pela experiência que viveu das instituições imperiais e
pretendia atualiza-las, negando, porém o intento para não suscitar a acusação de
36
monarquismo, o que ele sem duvida não era. O fato de se tratar de um conselho e não de
uma única pessoa no exercício desse poder não o descaracterizava como moderador,
porque, na experiência concreta do Império, o exercício desse poder pelo monarca
sempre estivera associado às consultas obrigatórias que ele fazia ao conselho de Estado,
nata da classe política nacional. Em ambos os casos, tratava-se de entregar o papel de
traçar estratégias nacionais de longo prazo a um conselho cujos membros, de elevada
envergadura moral e intelectual, gozando de vitaliciedade, pairassem acima do
quiproquó político-partidário. No fim das contas, Torres propunha conceder a um
conselho de estado as atribuições interventoras de um poder moderador ativo, sujeitando
a esse conselho uma gigantesca burocracia que o permitisse exercer suas atividades
modernizadoras nos menores vilarejos do país25. De « moderador », o poder
coordenador era na verdade um poder interventor.
No que tange a esse ponto, porém, havia uma nota destoante no próprio
movimento monarquista; nota que, dissonante, soava porém mais alto. Quem a tocava
era Joaquim Nabuco. O ex-deputado liberal pernambucano, auto-exilado do novo
regime, guardava todo o seu prestigio de antigo chefe do partido abolicionista. Em seus
escritos da década de 1890, Nabuco ensaiava não apenas a reentrada do conceito do
poder moderador numa chave muitíssimo positiva, como o fazia numa chave
explicitamente modernizadora, o que não ocorria desde que o Visconde de Uruguai
publicara o seu Ensaio sobre o direito administrativo, em 1862. Nabuco, porém, ia mais
além que o velho saquarema: o que ele iria advogar, era um poder moderador que,
embora neutro e passivo frente às oligarquias e seus interesses, fosse partidário (isto é,
ativo) quando se tratasse de defender os interesses nacionais, emprestando sua voz a um
soberano popular que se achava subjugado e amordaçado.
motor ao progresso social e cujo povo estivesse subjugado por uma casta oligárquica de
roupagem parlamentar, o exercício do poder moderador para esses fins – e não a arena
legislativa - é que exprimia a vontade nacional. Para tanto, o conselho de Estado era o
órgão altaneiro que auxiliava o poder moderador a atender ao interesse da opinião
publica extraparlamentar.
«Ha muito tempo, Senhor Presidente, que eu abandonei o caminho das sutilezas
constitucionais que se adaptam a todas as situações possíveis”. Pelo estado do
nosso povo e a extensão do nosso território, nos teremos por muito tempo, sob a
monarquia ou sob a republica, que viver sob uma ditadura de fato. (...) Pois bem,
todo o meu esforço em política ha bastantes anos tem consistido em que está
ditadura de fato se inspire nas necessidades do nosso povo até hoje privado de teto,
de educação e de garantias e que ela compreenda que a verdadeira nação brasileira
é coisa muito diversa das classes que se fazem representar e que e que tomam
interesse na vida política do pais. (...) Agora (...), o que se vê, Senhor Presidente, é
essa ditadura de fato assumir o caráter de governo nacional no mais largo sentido
da palavra, promovendo a abolição (..) » (Nabuco, 1983).
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Às vésperas da republica, Nabuco afirmaria: « A mim, me sobra consciência de que estou com o povo
defendendo a monarquia, porque não ha, na republica, lugar para os analfabetos, para os pequenos, para
os pobres. Neste sentido, o partido republicano é um partido de classe como os dois partidos
monarquicos » (Nabuco, 1949). Depois de 1889, ele repetiria: « Se nas republicas, por um motivo ou
outro, os presidentes têm forçosamente que ser chefes de partido, pode-se dizer que falta à testa desses
governos o chefe da nação, a qual nunca se pode compreender como um partido triunfante. (...) Nos
chamados governos presidenciais, o presidente esta muito mais adstrito ao jugo partidario do que nas
republicas parlamentares, onde ele representa o papel de um soberano constitucional (...) » (Nabuco,
1937).
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O ano da morte de Nabuco (1910), como vimos, coincidiria com o inicio das
contestações ao sistema implantado em 1891, deflagrada pela eleição presidencial de
1909, pelo desaparecimento do movimento monarquista enquanto força relevante de
oposição ao regime e pela incorporação, todavia, de suas das criticas, ao repertorio
contestador republicano. Com efeito, ha inúmeros sintomas de uma virada das ideias
políticas brasileiras nesse período, provavelmente a mais importante em vinte anos. Em
1914, o próprio Rui Barbosa, da tribuna do Senado, reconheceria, num discurso célebre
sobre a corrupção política republicana, o fracasso do regime na criação de um
verdadeiro Estado de direito, apontando a superioridade do Império neste aspecto,
graças, sobretudo, à ação « saneadora » do Imperador, fazendo assim o elogio indireto
do poder moderador. Esse discurso causou grande escândalo na arena parlamentar, a
ponto de Pinheiro Machado, interpela-lo publicamente sobre seu « monarquismo ».
Destaco sua passagem mais famosa:
"A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males,
a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a
miséria suprema desta pobre nação. (...) De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto
ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-
se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se
da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos
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« A manutenção de um vasto continente em estado permanente de desgoverno, de anarquia, é um fato
que dentro de certo tempo ha de atrair forçosamente a atenção do mundo, como afinal a atraiu o
desaproveitamento da Africa » (Nabuco, 1937).
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«O fato é que, desse mecanismo dual, monarquico-parlamentar, em que o monarca é um diretor, como o
é o parlamento, em vez de ser um autômato das câmaras, resulta a tranqüilidade e a segurança do regime
durante quatro gerações. Se o Imperador não tem a direção suprema; se não é o arbitro independente dos
partidos; se tem que se limitar a rubricar os decretos que se lhe apresentem, e não mudar a situação
(politica) senão por efeito de eleições contrarias, muito provavelmente o Segundo Reinado não teria sido
mais que a continuação da Regência, ou a antecipação da Republica, e o poder imperial, escravo e
instrumento da oligarquia, à mercê dos que o seqüestrassem, teria desaparecido em poucos anos do
redemoinho das facções » (Nabuco, 1997).
41
anos. No outro regime, o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem
perdido para todo o sempre, as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma
sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto,
guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da
justiça e da moralidade gerais". (Anais do Senado, 1914).
31
Percebe-se aqui ainda a influência de Nabuco: « O que Joaquim Nabuco assevera a respeito da
interefrência de Dom Pedro II na abolição aplica-se a tudo quanto de bom se particou durante o Império:
melhoramentos materiais e espirituais, estradas de ferro, navegação a vapor, telégrafos, colonização,
imigração (...). Todos esses atos, lis, resoluções sobre esses assuntos receberam o salutar influxo do
monarca. Se foi um crime – felix culpa ». (Celso, 1929).
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importantes » (Torres, 1973). Sua proposta, muito enfática o que toca à necessidade de
progresso, se insere nitidamente no quadro de uma modernização conservadora, com
reforço da autoridade do monarca na atividade governamental. Novamente houve
sessão para debater o manifesto no Congresso Nacional, graças à iniciativa de Martim
Francisco, deputado herdeiro dos Andradas que se intitulava monarquista, o que mostra
que o tema ainda ali causava frisson e que as propostas eram objeto de debate, num
quadro porém antes contemporâneo que historiográfico (Torres, 1973).
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« Muito cedo o Imperador compreendeu que, num pais sem gente, sem instrução, etnicamente cheio de
defeitos, sociologicamente atrasado, ou um espirito diretor, uma vontade forte seria o freio das paixões e
sofreamentos muito proprios do meio, tornando-se o supremo contraste, o guia, o mediador, o agente
plastico, das ambições, das tendências, dos exageros dos homens, e a maquina da sociedade funcionaria
regularmente, ou a força derivaria desse centro para uma delegação maior, e a confusão se operaria na
razão direta da divisão da mesma força. (...) Dom Pedro II ou faria o que fez ou o seu reinado teria
terminado ha mais tempo ». (Leal, 1914).
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despeito dele, graças ao poder moderador de Dom Pedro II, que teria exercido seu
inevitável poder pessoal num sentido patriótico, com todas as virtudes de um verdadeiro
republicano. Nesse viés, os dois enxergavam o presidencialismo como um sucedâneo do
poder moderador monárquico, equivalendo a preponderância do Presidente da
Republica sobre o conjunto do Estado àquela outrora exercida pelo Imperador no
conjunto das instituições. Para Leal, enquanto não houvesse esfera publica e moralidade
pública, um regime de executivo forte não só era inevitável, como era necessário para
obviar os problemas decorrentes de um regime representativo fictício, até que este, por
força da evolução social, se tornasse possível. Já Lessa era um judiciarista de governo:
não fazia a apologia do executivo, defendia as prerrogativas do judiciário e opunha-se à
revisão da constituição, que era boa – ruins, eram os costumes, que só o tempo poderia
corrigir. O argumento do atraso socioeconômico seria retomado em 1916 pelo então
deputado Gilberto Amado, em seu discurso denominado Instituições políticas e o meio
social do Brasil. Amado trabalharia numa chave algo diferente: se ele reconhece o
atraso e saúda o Império, menos entusiasticamente porém que Lessa e Leal, com seu
« príncipe que me parece como um verdadeiro milagre da espécie humana », por outro
lado ele protesta, à Torres, contra o jurismo e a falta de praticidade da política brasileira,
clamando por uma elite ilustrada que proceda à modernização do pais pelo alto, cuidado
da população (Amado, 1979). Em 1917, ele enunciaria com clareza o « realismo
sociológico governista »:
“Onde não existe opinião pública para compreender, formar certas noções, onde
não se organizam núcleos vivos, responsáveis, conscientes de população, não é
possível à palavra dos homens desinteressados encontrar a ressonância que faça um
ambiente favorável ao êxito das ideias. As reformas têm de vir por si mesmas,
arrastadas pelas forças dos próprios fatos que circunstâncias inelutáveis
determinam ou pela dádiva de cidadãos bem intencionados quando a fortuna os
coloca no poder” (Amado, 1963:310).
“D. Pedro nos da meio século de progresso moderado, disciplinado, sadio. Meio
século de paz, de tranquilidade, de ordem. Meio século de legalidade, de justiça, de
moralidade. Pela atração da majestade imperial, contém o centrifuguismo das
províncias. Pela ascendência de seu poder pessoal, corrige a hostilidade, a
intransigência, o exclusivismo das facções políticas. (...) Durante o meio século de
seu reinado, ele exerce, enfim, a mais nobre das ditaduras – aquela « ditadura da
moralidade », de que fala um historiador, e que é, sem duvida, a mais poderosa
força de retificação moral, na ordem publica e privada, que jamais conheceu o
nosso povo” (Viana, 1987).
47
Referências bibliográficas:
Nacional.
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Mangabeira, João (1960). Rui – o estadista da republica. 3a. Edição. São Paulo,
Livraria Martins Editora.
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eleitores de deputados pelo segundo distrito eleitoral da mesma província para a
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tomo LXXVIII, parte 2a., da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
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52